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Brasília-DF. Psicodrama clínico Elaboração Michele de Oliveira Cruz Produção Equipe Técnica de Avaliação, Revisão Linguística e Editoração Sumário APRESENTAÇÃO ................................................................................................................................. 5 ORGANIZAÇÃO DO CADERNO DE ESTUDOS E PESQUISA .................................................................... 6 INTRODUÇÃO.................................................................................................................................... 8 UNIDADE I A PSICOLOGIA CLÍNICA ...................................................................................................................... 11 CAPÍTULO 1 A CLÍNICA PSICODRAMATISTA E A SOCIOTERAPIA ................................................................... 11 CAPÍTULO 2 PSICOTERAPIA PSICODRAMÁTICA COM CRIANÇAS E ADOLESCENTES ..................................... 19 CAPÍTULO 3 PSICOTERAPIA PSICODRAMÁTICA COM ADULTOS E 3ª IDADE .................................................. 22 UNIDADE II INTERVENÇÕES PSICODRAMÁTICAS ..................................................................................................... 24 CAPÍTULO 1 O PSICODRAMA PSICANALÍTICO ............................................................................................ 24 CAPÍTULO 2 AS INTERVENÇÕES PSICODRAMÁTICAS ................................................................................... 58 CAPÍTULO 3 TÉCNICAS INTEGRATIVAS: INSTRUMENTOS, CONTEXTO E ETAPAS ............................................... 60 UNIDADE III INTERVENÇÕES NA SAÚDE E NA CLÍNICA ............................................................................................. 75 CAPÍTULO 1 CONCEPÇÕES DE SAÚDE E DOENÇA EM PSICODRAMA ......................................................... 75 CAPÍTULO 2 EXPRESSÃO CORPORAL E TREINAMENTO SENSORIAL ............................................................... 81 CAPÍTULO 3 DIREÇÃO E PROCESSAMENTO DE VIVÊNCIAS GRUPAIS ............................................................ 83 UNIDADE IV A PESQUISA NA CLÍNICA PSICODRAMATISTA ......................................................................................... 87 CAPÍTULO 1 DIFERENTES DIMENSÕES DE INTERVENÇÃO EM PSICOLOGIA CLÍNICA ..................................... 87 CAPÍTULO 2 A PESQUISA INTERVENTIVA EM GRUPOS ................................................................................. 105 CAPÍTULO 3 MÉTODO QUALITATIVO PARA PESQUISAS SOBRE GRUPOS ...................................................... 107 PARA (NÃO) FINALIZAR ................................................................................................................... 109 REFERÊNCIAS ................................................................................................................................ 111 5 Apresentação Caro aluno A proposta editorial deste Caderno de Estudos e Pesquisa reúne elementos que se entendem necessários para o desenvolvimento do estudo com segurança e qualidade. Caracteriza-se pela atualidade, dinâmica e pertinência de seu conteúdo, bem como pela interatividade e modernidade de sua estrutura formal, adequadas à metodologia da Educação a Distância – EaD. Pretende-se, com este material, levá-lo à reflexão e à compreensão da pluralidade dos conhecimentos a serem oferecidos, possibilitando-lhe ampliar conceitos específicos da área e atuar de forma competente e conscienciosa, como convém ao profissional que busca a formação continuada para vencer os desafios que a evolução científico-tecnológica impõe ao mundo contemporâneo. Elaborou-se a presente publicação com a intenção de torná-la subsídio valioso, de modo a facilitar sua caminhada na trajetória a ser percorrida tanto na vida pessoal quanto na profissional. Utilize-a como instrumento para seu sucesso na carreira. Conselho Editorial 6 Organização do Caderno de Estudos e Pesquisa Para facilitar seu estudo, os conteúdos são organizados em unidades, subdivididas em capítulos, de forma didática, objetiva e coerente. Eles serão abordados por meio de textos básicos, com questões para reflexão, entre outros recursos editoriais que visam tornar sua leitura mais agradável. Ao final, serão indicadas, também, fontes de consulta para aprofundar seus estudos com leituras e pesquisas complementares. A seguir, apresentamos uma breve descrição dos ícones utilizados na organização dos Cadernos de Estudos e Pesquisa. Provocação Textos que buscam instigar o aluno a refletir sobre determinado assunto antes mesmo de iniciar sua leitura ou após algum trecho pertinente para o autor conteudista. Para refletir Questões inseridas no decorrer do estudo a fim de que o aluno faça uma pausa e reflita sobre o conteúdo estudado ou temas que o ajudem em seu raciocínio. É importante que ele verifique seus conhecimentos, suas experiências e seus sentimentos. As reflexões são o ponto de partida para a construção de suas conclusões. Sugestão de estudo complementar Sugestões de leituras adicionais, filmes e sites para aprofundamento do estudo, discussões em fóruns ou encontros presenciais quando for o caso. Atenção Chamadas para alertar detalhes/tópicos importantes que contribuam para a síntese/conclusão do assunto abordado. 7 Saiba mais Informações complementares para elucidar a construção das sínteses/conclusões sobre o assunto abordado. Sintetizando Trecho que busca resumir informações relevantes do conteúdo, facilitando o entendimento pelo aluno sobre trechos mais complexos. Para (não) finalizar Texto integrador, ao final do módulo, que motiva o aluno a continuar a aprendizagem ou estimula ponderações complementares sobre o módulo estudado. 8 Introdução Neste curso vamos aprender como a psicanálise e o psicodrama convergem e somam no atendimento clínico individual e grupal, além de sua aplicabilidade na interpretação de sonhos no ato psicodramático. Vamos compreender, por meio de apresentação de diversos casos clínicos, como o psicodrama (teoria e prática) é uma ferramenta essencial e eficaz na resolução de conflitos interpessoal, seja no campo matrimonial, seja nas relações familiares ou profissional, bem como traumas e autoestima. Isto é, sua aplicabilidade nos diferentes contextos e implicações de quadros psicopatológicos, aliviando sofrimento e auxiliando em novas descobertas e possibilidades para o paciente. Nesta disciplina iremos aprofundar o estudo do psicodrama no campo clínico, facilitando a compreensão da prática clínica. Esta será exemplificada por casos clínicos de renomados psicodramatistas, além do pai do psicodrama, Jacob Levy Moreno. Dessa forma, por meio de exemplos vivenciados por eles, faremos o estudo e a análise dos casos correlacionando com a teoria. Sabemos que é possível ampliar toda a teoria e a técnica a partir do sociodrama, bem como utilizá-la de forma a sanar e minimizar sofrimento emocional, além de colaborar com comunidades e escolas. Para tal, retomaremos os conceitos pilares do psicodrama e desenvolveremos ainda mais recursos avaliativos para que a prática clínica seja favorável. Seguindo com os aprendizados, vamos estudar os conceitos: psicodrama e psicanálise, psicodrama na clínica infantil, adolescentes, adultos e idosos, psicodrama e pesquisa. Para aprender mais, leia todo o material e inclua, na sua rotina de estudos, as sugestões de leitura complementar. Objetivos » Compreender a aplicação do psicodrama na psicoterapia em diversas idades: criança, adolescente, adulto e idoso. » Desenvolver a análise de casos clínicos. 9 » Aprender sobre as contribuições terapêuticas da aplicação psicodramática nas relações interpessoais. » Revisar os conceitos pilares da técnica. » Aprimorar conceitos e compreender a relevância do aquecimento e dos instrumentos. » Aprofundar a teoria e estudar a análise da técnica e os resultados sob oponto de vista técnico de Jacob Levy Moreno. » Treinar a análise clínica a partir da leitura de casos clínicos. 11 UNIDADE IA PSICOLOGIA CLÍNICA CAPÍTULO 1 A clínica psicodramatista e a socioterapia A clínica psicodramatista e a socioterapia estão interligadas, uma vez que a socioterapia é uma técnica terapêutica de integração social. Ela pode ser baseada, assim como o psicodrama, em diversos contextos diferentes, como participar de coral – pois a música proporciona efeitos terapêuticos –, bem como atuar em grupos de dança, de artes e pinturas e praticar exercícios em grupo. A clínica psicodramatista, como sabemos, possui inúmeras ferramentas teórico- práticas para a integração terapêutica social. Dentro da perspectiva moreniana, a socionomia tem como base a sociatria, e esta, por sua vez, está dividida em três técnicas: psicodrama, sociodrama e psicoterapia de grupo. Cada uma delas inclui propostas teórico-práticas que podem ser utilizadas para promover o bem-estar individual e grupal em diversos contextos: educacional, sistema prisional, ambientes corporativos, comunidades, clínica individual, bem como terapias grupais com temas variados, desde grupo de mães a grupos de pessoas adictas. O que é socionomia? Vamos nos ater a etiologia da palavra. Assim, vamos descobrir que “sócio” deriva do latim “socius”, que significa “companheiro”. Já a palavra “nomia” é derivada do grego “nomus”, cujo significado é “aquilo que regula”, lei. Portanto, Moreno define socionomia como um método, sistema teórico-prático, para as leis do desenvolvimento social e das relações sociais. 12 UNIDADE I │ A PSICOLOGIA CLÍNICA De acordo com a Federação Brasileira de Psicodrama [s.d], a socionomia pode ser definida como: Ciência das leis sociais e das relações, a socionomia é caracterizada fundamentalmente por seu foco na intersecção do mundo subjetivo, psicológico e do mundo objetivo, social, contextualizando o indivíduo em relação às suas circunstâncias. Divide-se em três ramos: a Sociometria, a Sociodinâmica e a Sociatria, que guardam em comum a ação dramática como recurso para facilitar a expressão da realidade implícita nas relações interpessoais ou para a investigação e reflexão sobre determinado tema. Desse modo, notamos a complexidade e a abrangência da técnica socionômica e sua aplicabilidade em contextos. De acordo com nossos estudos, a amplitude da técnica moreniana ocorre em especial pelo comprometimento e pela preocupação que Moreno tinha com a comunidade e a transformação social. Em Viena (1921), influenciado pela filosofia, ao ir às praças, ele estimulava adultos e crianças a falar e a refletir sobre novas formas de estar no mundo. Moreno, muito observador, embasa a teoria e a prática psicodramática por meio do potencial criativo do ser humano, da sua espontaneidade. A técnica psicodramatista está centralizada na relação do indivíduo com o meio, pois o indivíduo é um ser social e necessita do “outro” para se reconhecer, para desenvolver sua individualidade e para seguir seu desenvolvimento e sua sobrevivência. O olhar é social, mesmo quando se aplica a técnica individualmente. Não há como excluir o indivíduo da sociedade. Ele faz, ou fez, parte de uma família, comunidade, nação etc. Então, suas ações influenciam o meio e vice-versa. É sempre bom relembrar que a prática, ainda que possa ser aplicada em diferentes modalidades e contextos, inicia com a identificação do indivíduo com o tema, por meio de memórias da sua própria vivência. O papel do psicodramatista é aplicar as técnicas psicodramáticas, facilitando os recursos de ação. Além disso, deve assegurar o entrosamento do grupo, proporcionando, assim, reflexões sobre as experiências do grupo envolvido no ato encenado. Desse modo, podemos concluir que o psicodrama é uma construção mais ampla da técnica da socionomia. Portanto, ao pensarmos em psicodrama, a socionomia estará incluída. 13 A PSICOLOGIA CLÍNICA │ UNIDADE I Assim, podemos concluir que o psicodrama é uma forma de realizar a socioterapia de forma mais técnica, dirigida e detalhada por conta de todo o processo técnico que o psicodrama inclui em todas as variáveis aplicáveis. Contexto social, grupal e dramático O psicodrama contribui não só para a mudança individual, mas dos grupos e, consequentemente, da sociedade em si. Ao estudar as bases da teoria moreniana, fica claro que, no sociodrama, o protagonista é o grupo. Dentre tantos campos de atuação grupal, um dos objetivos é estimular os grupos e o indivíduo a vivenciar a realidade a partir do reconhecimento do outro com suas diferentes experiências. O sociodrama pode ser compreendido também no contexto escolar de uma comunidade específica. Nesse ambiente, os participantes (alunos) compartilham de uma mesma conserva cultural, uma vez que as escolas atendem bairros próximos. Obviamente, já sabemos que a atuação do sociodrama refere-se a inúmeros contextos, mas podemos aplicá-lo em grupos de pessoas obesas, por exemplo. Essa é mais uma demonstração de como o psicodrama pode ser utilizado no contexto social. Afinal, a obesidade é considerada uma doença crônica multifatorial, pois envolve fatores genéticos, emocionais, sociais e culturais do indivíduo. Outro papel importante do psicodrama na comunidade é desenvolver o desempenho e o treinamento de papéis, estimulando a espontaneidade e a criatividade. As experiências e os conflitos dos componentes do grupo propiciam uma ação afetiva e, consequentemente, efetiva e ativa. Isso acarreta a busca de soluções práticas e reais para as questões abordadas, e a criação de novas alternativas e respostas será o resultado da participação de todos os componentes do grupo. Sabemos que é importante compreender a coesão grupal para o trabalho em grupo, podendo a coesão ser interpretada como a coerência e a harmonia entre os membros de um grupo com propósitos e objetivos em comum. A composição e a influência de grupos são estudadas pela sociologia e pela psicologia social, assim como a psicanálise também se interessou pelas características de sua formação, composição grupal, interesses, influências sociais e funcionalidade, dentre outros aspectos. 14 UNIDADE I │ A PSICOLOGIA CLÍNICA Vamos seguir os estudos com a apresentação de um caso clínico da autora Oliveira (2008) em que relata seu trabalho com um grupo de pessoas obesas. Sabemos que a obesidade é multifatorial, mas que a conserva cultural e todas as exigências e, em especial, o modelo de beleza que é cultuado pela sociedade pós- moderna. Em geral, para as mulheres, é exigido um corpo magro e esculpido, um padrão de beleza quase inatingível e que não corresponde aos hábitos alimentares ou ao estilo de vida da maioria da população mundial. Sem considerar, é claro, os fatores genéticos de cada pessoa em diferentes culturas existentes na sociedade. Os padrões de beleza empregados por si só como um “padrão” excluem automaticamente a individualidade e a subjetividade. Isto é, desconsidera as características físicas e genéticas que são múltiplas e inúmeras. Essa tendência é quase que um apelo social não saudável e por si só inatingível, considerando que somos todos diferentes. Assim, torna-se tóxica, além de ser responsável por inúmeros distúrbios emocionais e alimentares. A beleza, quando associada unicamente e exclusivamente à forma corporal magra, é fator excludente e atenuante para a depreciação da autoimagem e, consequentemente, para a redução da autoestima. Dessa forma, contribui para a fragilidade emocional e impulsiona o surgimento de transtornos afetivos e alimentares. Para contextualizar, é importante recordar sobre o conceito de Moreno (1975). Este descreve os papéis psicossomáticos que desenvolvemos ao longo da vida e que devem ser considerados na análise de pessoas com transtorno alimentar, desencadeando em transtornos mentais. Como sabemos, os papéis psicossomáticos possuem um formato biológico do contato sensorialentre a criança e o seu mundo, até a formação de um “eu” parcial fisiológico, que será responsável pelas relações com o corpo. Segue, abaixo, a descrição do caso clínico da psicodramatista Bruna Domingos de Oliveira, publicado no ano de 2008, na qual descreve todo o processo de seu trabalho psicoterápico com método psicodramático. De acordo com a autora, o grupo é composto por cinco mulheres casadas, com filhos, e com faixa etária entre 40 e 60 anos. Para manter o sigilo, as participantes são identificadas pela autora com as iniciais dos nomes. 15 A PSICOLOGIA CLÍNICA │ UNIDADE I Início da transcrição do caso clínico Nas primeiras sessões em grupo, a psicoterapeuta preocupou-se em trabalhar com a técnica do duplo, que propicia o desenvolvimento da sensação e o princípio da percepção no sentido de começar o processo de resgate de si mesmo, que significa um retorno à terceira fase da matriz de identidade, de reconhecimento do “eu”. Isto inclui também a percepção do próprio corpo, do excesso de peso e de seu incômodo, já que muitos obesos têm dificuldade de perceber e assumir a própria gordura. Este “re-reconhecimento” de si mesmo significa tomar consciência do excesso de peso, assumindo-se como gordo, porém de forma saudável, sem preconceitos ou denegrindo a própria imagem. Conseguiram racionalizar a causa que gerou esse estado, facilitando o processo de perda de peso. Estes primeiros encontros são chamados por Yozo (1996) de momentos do “eu-comigo”, em que não há contato físico entre os participantes. O mesmo é ilustrado pelo jogo da descoberta do próprio corpo (YOZO, 1996), que consiste em explorá-lo através do tato e serve também para trabalhar a autoestima das clientes. Percebendo suas qualidades, sem a contaminação do padrão de beleza imposto pela sociedade, inicia-se o processo de “ressignificação” do valor de si mesmas. As sessões que se seguiram foram baseadas nesse tema: como elas estavam se vendo, como elas gostariam de estar. Para isso, foram utilizadas a técnica da construção da própria imagem e desenhos. Através desses trabalhos, passaram a perceber o quanto estavam preocupadas em emagrecer, pois estavam se sentindo desvalorizadas. As sessões seguintes foram focadas no contato com os próprios sentimentos, e a maioria deles estava relacionada à raiva de si mesmas, culpa e arrependimento por comerem demais. Trabalhando-se com a técnica do espelho, as clientes tiveram mais clareza de quanto estavam se agredindo, por meio dos excessos na alimentação ou pela autopunição. Percebe-se que já nesta primeira fase em que o grupo se encontrava é possível trabalhar os papéis psicossomáticos do obeso, que normalmente vincula emoção à alimentação. Por isso, 16 UNIDADE I │ A PSICOLOGIA CLÍNICA muitas vezes, não consegue diferenciar a fome orgânica da emocional, exagerando na comida sem perceber que existe aí uma carência afetiva. Em uma das sessões seguintes, o trabalho sobre o significado da comida veio à tona: M. foi a protagonista da sessão e, muito angustiada, dizia: “não aguento mais fazer regime e depois comer tudo o que vai pela frente!”. Assim como ela, todas traziam a angústia de não conseguir controlar- se e resolveram trabalhar esse tema. Sendo M. a protagonista, trouxe uma cena que a emocionou muito: quando tinha nove anos de idade, seu pai, afundado em dívidas, abandonara a família e ela estava faminta, pois não tinham nada para comer. Sua mãe preparou um caldo ralo de feijão e deu para ela e seus irmãos. Relembrando a cena, disse: “aquela foi a comida mais gostosa que já comi!”. Ao montar a cena, tomando o papel de menina, sentia-se sozinha, abandonada. Emocionada, dizia: “eu vejo minha mãe chorando nos cantos da casa sem saber o que fazer e isso me deixa angustiada...” (M. como mãe): “Meu marido me deixou, a única coisa que tenho pra dar para os meus filhos é só esse caldo de feijão...” T. (terapeuta) interveio na cena e conversou com a mãe. “E o que esse feijão está representando para você, mãe?” M. (como mãe): “É todo o meu amor, é tudo o que os meus filhos, não tenho mais nada... ”. No decorrer da cena, quando a menina senta-se no banquinho para comer o feijão, T. falava para ela: “Repare como está esse caldo, sinta o cheiro, o gosto... O que você está sentindo?” M.: “É o melhor feijão do mundo! Que delícia, que cheiro bom...” T.: “Então agora seja o feijão dentro de você!” M. (como feijão): “Estou reconfortando ela, dando carinho que a mãe dela queria lhe dar...” T.: “Agora volte a ser você mesma. Depois de terminada a refeição como é que você está se sentindo?”. 17 A PSICOLOGIA CLÍNICA │ UNIDADE I M.: “Estou melhor, satisfeita... (fez uma pausa em silêncio). Mas ainda estou preocupada com meus pais, com a nossa situação, com o nosso futuro...” (chora). T. pede que o ego-auxiliar, representado por uma das participantes, tome o papel de mãe e converse com ela: “Mas minha filha, as coisas vão melhorar, vou arrumar um emprego, e eu estou aqui com você!” (a mãe pega em sua mão). M.: “É muito bom ouvir isso de você, mamãe...” Ela nunca falava. T. diz “Aqui, neste momento, tudo pode acontecer, até a mamãe que conseguia falar, aqui ela fala! Aproveite este momento, o que você quer dizer pra ela?” M.: “Primeiro quero tirar esse feijão do meu colo!” Tirou o prato de feijão do colo, levantou-se e abraçou a mãe por algum tempo. Para encerrar a cena, a terapeuta perguntou o que o feijão estava representando para ela naquele momento: “o amor da minha mãe”, disse a cliente, emocionada. T.: “E agora que você a abraçou, precisa do feijão?”. M. balançou a cabeça dizendo não. No momento do compartilhar, A. (cliente) relatou que essa história lhe lembrava seu pai, que bebia muito. T.: “Então o que o ‘seu feijão’ representava?”. A.: “A paz que eu queria dentro de casa, tinha medo de o meu pai me bater, brigar com a minha mãe e eu me afundava no prato de arroz com feijão...” V. (cliente): “É interessante percebermos que a gente tenta substituir um monte de coisas em nossas vidas com a comida. Mas o pior é que a comida funciona como um conforto só na hora que eu estou comendo e os problemas continuam lá... ou até pioram, porque me sinto culpada por comer demais!”. Este tema rendeu várias sessões, em que as clientes passaram a refletir sobre as carências afetivas, em quais momentos do dia comiam mais e procuraram juntas alternativas para preencher este vazio. Pode-se perceber que a formação psicológica do indivíduo provém da Matriz de Identidade de cada um, por meio do desempenho de papéis. Percebe- 18 UNIDADE I │ A PSICOLOGIA CLÍNICA se que se existirem vivências perturbadoras, mesmo que vividas no início da sua vida, isto irá influenciar na personalidade do indivíduo em psicossocial dramática. (OLIVEIRA, 2008, pp. 65-67). Final da transcrição do caso clínico A autora segue com considerações sobre a cena psicodramática, seus efeitos psicoterápicos e análise entre teoria e prática. Histórias vividas na Matriz de identidade, carregadas de um clima afetivo tenso como no caso de M., podem gerar conflitos que dificultam a aprendizagem dos papéis. A necessidade de receber carinho e proteção pode levar o indivíduo a uma grande dificuldade de se amar, achando que não merece este sentimento. Desamparada, M. pode ter passado a sentir uma dificuldade de aprender a se conhecer e se respeitar. Daí se explica o comportamento autodestrutivo de comer em excesso. O caldo de feijão passou ter um valor simbólico naquele momento, pois preenchia a carência afetiva. E o estômago cheio confirmava mais ainda essa substituição. Mas, com a vivência da cena, a protagonista percebeu que o feijão não resolveu a angústia, e sim o abraço aconchegante da mãe. Esses são alguns dos motivos que levam o obeso a valorizar a comida e ter dificuldade de fazer dietas, pois o alimento se torna uma válvula de escapede fácil acesso, transformando-se até mesmo em objeto de adição, como descreve Cukier (2004). Assim, deve-se levar a pessoa obesa a tomar consciência dessa repetição de comportamentos e ir em busca de mudanças, pela livre vontade e sem imposições, que é o exercício natural da espontaneidade. (OLIVEIRA, 2008, p. 67) O trecho citado acima é parte do artigo Obesidade: teoria e prática dentro da abordagem psicossociodramática, de Bruna Domingos de Oliveira, localizado na Revista Brasileira de Psicodrama, ano 2008, v. 2. Busque pelo artigo e aprofunde seus conhecimentos! 19 CAPÍTULO 2 Psicoterapia psicodramática com crianças e adolescentes A psicoterapia psicodramática com crianças é um recurso psicoterapêutico que auxilia ambos os públicos a aliviar a ansiedade, a restabelecer espontaneidade, a reduzir ou extinguir conflitos, a elevar a autoestima, dentre outros fatores. Para diferenciar não a técnica em si, e sim a sua aplicabilidade em diferentes contextos, vamos falar primeiro sobre o contexto que permeia a realidade dos adolescentes. O psicodrama com adolescentes pode ser utilizado nos mais diversos contextos, incluindo grupal ou individual. Devemos considerar que é um período repleto de incertezas e de mudanças, em especial, mudanças físicas e hormonais. Estas, por sua vez, provocam dúvidas, conflitos e muita insegurança. Assim, o psicodrama pode ser aplicado com o intuito de dar contorno a essas questões e a conflitos internos, bem como auxiliá-los a compreender esse período de transição. Sua aplicabilidade também pode ser utilizada para reduzir a ansiedade, trabalhando os papéis “futuros” que se tornarão parte de suas vidas, por exemplo: papel profissional, papel de adulto, dentre outros temas que geram ansiedade, estresse e inseguranças. Em outros contextos gerais, como ressignificação de traumas e conflitos familiares, a aplicabilidade da técnica é frutífera e os adolescentes conseguem protagonizar e vivenciar essa experiência assim como os adultos. Dessa forma, deve-se tomar cuidados e dirigir a cena de forma clara e adequada. O psicodrama pode auxiliar na tomada de decisões, no âmbito escolar, na preparação para a escolha profissional e nas relações interpessoais de forma geral. Cabe ressaltar que a técnica, quando utilizada em grupo, deve seguir o conceito de coesão grupal e alocar o adolescente em grupos nos quais haja identificação, facilitando, assim, o entrosamento e a participação. No que se refere ao psicodrama infantil, é utilizada a técnica de inversão recíproca de papéis. De acordo com Kellermann (1998), essa técnica tem como intuito facilitar o processo de aprendizado social que, geralmente, as crianças precisam conhecer, praticar e identificar valores, estruturas e atitudes sociais. Isto é, facilitar o processo de socialização. 20 UNIDADE I │ A PSICOLOGIA CLÍNICA Desse modo, a inversão recíproca de papéis pode ser usada para facilitar a assimilação das normas sociais. A psicologia social sustenta que as crianças se desenvolvem em interação com seu meio e, especialmente, com outras pessoas importantes, que estimulam ou inibem como seu senso de self. Os “outros” significativos transmitem uma realidade social externa com a qual a criança pode se identificar. No diálogo com essa realidade social externa, a criança se torna um objeto para si mesma, desenvolvendo, assim, um self como objeto (“Mim”). O self como objeto, ou o self social, é a primeira concepção de self, e se desenvolve a partir das percepções e respostas das outras pessoas. Cooley (1902) usou o termo “Self-Espelho” para descrever esse aspecto, que se desenvolve a partir da experiência refletida de uma pessoa que olha para ele -ou para si mesma, por intermédio das outras pessoas, como num espelho. De forma análoga, Moreno e Moreno (1959) descreveram como as crianças usam seus pais como ego-auxiliares naturais não treinados, para ajudar a criança a se iniciar na vida por meio do espelhamento. (KELLERMANN, 1998, pp. 328-329) Embora o processo de socialização, até como conceito da psicologia social, seja mais empregado em crianças, a inversão de papéis recíproca permite que o “outro” altere a forma como percebe o “outro” em questão e ressignifique a relação, suas atitudes e seus comportamentos, pois é a partir da inversão que o entendimento do outro se torna mais claro. Também é possível se perceber e corrigir posturas e atitudes que podem ferir ou prejudicar as relações. A inversão de papéis proporciona não apenas a compreensão do outro, mas de si mesmo, auxiliando no processo de autorreflexão. Para coletar dados, o teste sociométrico mais utilizado é o de três critérios (entenda situação por critério). Segundo Oliveira (2017, p. 3), são eles: É solicitado, individualmente, a cada criança que indique três amigos com os quais prefere estar em cada situação: » Brincadeira livre ao ar livre. » Atividade em casa, trabalho escolar de casa. » Atividade, ou trabalho de grupo, dirigida (não livre). 21 A PSICOLOGIA CLÍNICA │ UNIDADE I Essas situações são utilizadas por retratarem circunstâncias cotidianas no ambiente escolar da criança. Utilizar de brincadeiras, co-histórias criadas e fantasias é uma forma de inserir as crianças na ação psicodramática e observar a forma como interagem entre si, os padrões que revelam quando estão nos personagens relacionados à história que estão “brincando” (encenando). Isso auxiliará na interiorização de valores, assimilação de normas sociais ou temas nos quais estão precisando de apoio ou ressignificação. 22 CAPÍTULO 3 Psicoterapia psicodramática com adultos e 3ª idade Ao longo do curso, tivemos diversos exemplos práticos de como o psicodrama atua com adultos, e por que não idosos? No decorrer dessa disciplina, teremos mais exemplos clínicos sobre como essa ferramenta psicoterápica pode auxiliar em diversos aspectos do cotidiano, até nas implicações mais graves, por exemplo: em transtornos afetivos e alimentares. No que se refere aos adultos, sabemos que pode ser utilizada em amplos contextos e deve seguir todos os passos de estruturação do grupo e da metodologia, sem restrições, diferentemente das crianças e dos adolescentes que não possuem o mesmo repertório de experiências, maturidade cognitiva e emocional. Até mesmo papéis psicossomáticos os quais os adultos possuem em maior quantidade pela própria experiência proporcionada pela idade cronológica. O psicodrama aplicado em grupo ou individual com adultos raramente implica algum aspecto restritivo. Mas, se idosos são pessoas adultas, por que diferenciar? A questão não é segregar, mas propor encontros que façam parte da realidade social do idoso. Por exemplo, um adulto tem o seu papel social profissional ativo, ou seja, ele o exerce; já o idoso, de forma geral, não, pois está aposentado. Pensar em ações que promovam a saúde e a qualidade de vida do idoso é fundamental para um envelhecimento saudável e ativo. O psicodrama trabalha a psiquê de forma ativa e proativa, os integrantes estão envolvidos e participativos. E, a partir da técnica, é possível trabalhar o luto pelas perdas decorrentes das fatalidades da vida, o luto pelos papéis psicossociais já não desempenhados, ajudar a ressignificar acontecimentos antigos e abrir espaço para que novas memórias sejam construídas, auxiliar a descobrir e valorizar os novos papéis dessa fase da vida, bem como dar sentido ao momento atual. Além das questões citadas acima, é muito importante para a saúde mental dos idosos trabalhar a espontaneidade e a criatividade, assim como a expressão corporal. 23 A PSICOLOGIA CLÍNICA │ UNIDADE I Portanto, trabalhar esses conceitos e ajudá-los a resgatar/desenvolver é de suma importância para a saúde mental e física. O psicodrama com idosos, assim como nos demais casos, também pode ser realizado de forma individual ou grupal. 24 UNIDADE IIINTERVENÇÕES PSICODRAMÁTICAS CAPÍTULO 1 O psicodrama psicanalítico Parafalar sobre o psicodrama psicanalítico, é interessante retomarmos a história do psicodrama e suas influências. Em seu livro Psicodrama (1975), Moreno fala sobre o contexto histórico que proporcionou o princípio da ideia do psicodrama. Em Viena, no ano de 1914, havia duas oposições à psicanálise: uma era a oposição ao grupo excluído contra o indivíduo, e a outra foi a contestação do ator reprimido contra a palavra. Assim, a primeira já constitui a “terapia” de grupo, e a segunda torna-se um ato além da psicanálise, o “psicodrama”. “No princípio foi a existência. No princípio foi o ato.” (MORENO, 1975, p. 23). No entanto, embora o contexto histórico tenha auxiliado na concepção do psicodrama, não foi nesse momento que ele foi criado e desenvolvido. De acordo com seu criador, Moreno (1975), no dia 1º de abril de 1921 (precisamente entre as 19h e 22h), no teatro Komoedien Haus, a primeira sessão psicodramática aconteceu. Moreno apresentou-se sozinho e sem preparação alguma, ou seja, sem atores, para uma plateia de mais de mil pessoas. O intuito de Moreno era tentar curar a “plateia”, que vivia em um período pós-guerra, no qual havia muita dor, sofrimento e revolta provocados pela Primeira Guerra Mundial. O governo era instável e, além disso, estavam sem líderes. O elenco, para o psicodramatista, era a plateia, e o cenário era apenas uma poltrona vermelha, que “lembrava” o trono de um rei. Como tema, utilizou-se de um enredo que era a busca por uma nova “ordem”, e testar, de alguma forma, cada pessoa do público que se identificasse com o perfil de líder, que tentasse fazer a mudança. 25 INTERVENÇÕES PSICODRAMÁTICAS │ UNIDADE II O público, composto por curiosos, políticos, militares, ministros, escritores, advogados e médicos, era convidado a sentar no trono e, sem preparação prévia, teria de atuar como um “rei”. E quem era o júri? O júri era a plateia. No final da encenação, ninguém havia sido aprovado pelo júri, ou seja, ninguém foi considerado digno de ser rei. A repercussão pela imprensa vienense não foi positiva, e Moreno perdeu alguns amigos. Após esse episódio, Moreno percebe que precisar aprimorar a técnica. Então, ele começa um processo de se afastar da sociedade literária vienense e passa a ficar mais próximo dos grupos teatrais. Dessa forma, foi conhecendo inúmeros atores e se aproximando de alguns artistas, os quais começaram a se unir às ideias de Moreno e, consequentemente, formaram seu próprio grupo teatral. Desse modo, em 1922, ainda em Viena, Moreno aluga um teatro e seu grupo passa a dramatizar peças e notícias de jornais espontaneamente. Essas encenações eram chamadas de “jornal vivo”. As pessoas também podiam subir no palco e encenar seus dramas, experiências, conflitos, ou suas próprias peças. Assim, surge o “Teatro da Espontaneidade”, com objetivo de ajudar o indivíduo a desenvolver sua espontaneidade e criatividade. Dessa vez, as críticas da imprensa eram positivas. O teatro estava frequentemente lotado, e Moreno se envolvendo, cada vez mais, como líder. Logo, ele percebe seu papel de diretor. O psicodrama, então, inicia seus diversos estágios, até ir se aperfeiçoando na técnica que, atualmente, conhecemos. Mas, qual é a definição de psicodrama? Drama é uma transliteração do grego “δράμα”, que significa ação, ou uma coisa feita. Portanto, o psicodrama pode ser definido como a ciência que explora a “verdade” por métodos dramáticos. (MORENO, 1975, p. 17) E qual é a definição de psicanálise? 26 UNIDADE II │ INTERVENÇÕES PSICODRAMÁTICAS De acordo com o dicionário de Psicanálise La Planche e Pontalis, psicanálise pode ser compreendida como: = D.: Kontrollanalyse.- F.: psychanalyse controlée ou sous contrôle.- En.: control ou supervisory ou supervised analysis. – Es.: análise de control ou supervisión. -I: analisi di controllo ou sotto controllo Análise conduzida por um analista em formação e da qual contas periodicamente a um analista experimentado que o guia a compreensão e direção do tratamento e ajuda a tomar consciência da sua contratransferência. Este modo de formação é especialmente destinado a permitir ao aluno aprender em que consiste a intervenção propriamente psicanalítica, relativamente a outros modos de ação psicoterapeutica (sugestões, conselhos, diretrizes, esclarecimentos, apoio, etc.). A prática da análise sob controle instaurou-se por volta de 1920 (1) para se tornar progressivamente um elemento importante da formação técnica do psicanalista e uma condição prévia da sua habilitação à prática. Admite se hoje nas diversas sociedades de psicanálise que o candidato so está autorizado a efetuar análises sob controle estão habitualmente pre vistas pelo menos duas) depois de estar suficientemente avançada a própria análise didática*(x). (LAPLANCHE; PONTALIS, 2004, p. 388) É importante ressaltar que, diferentemente da psicanálise, o psicodrama não se utilizou do recurso da hipnose, nem de recursos que visem trabalhar os acontecimentos do passado. A atuação é no momento “do aqui e agora”. Em contrapartida, o foco da psicanálise, tendo como técnica essencial o método da associação livre, visa trabalhar conteúdos do passado. O psicodrama tem interesse por grupos e por sua composição. As influências de grupos são estudadas pela sociologia e pela psicologia social. Da mesma forma, a psicanálise também se interessou pelas características de sua formação, composição grupal, interesses, influências sociais e funcionalidade, dentre outros aspectos. A psicanálise também se interessou pelo tema “grupos”. Freud publicou um famoso estudo a partir das ideias de Le Bom (1941-1931), A Psicologia das Massas e a Análise do Eu, no qual sua proposta de pensar as massas não é vê-las como uma forma única. 27 INTERVENÇÕES PSICODRAMÁTICAS │ UNIDADE II É interessante ampliar a visão teatral ao psicodrama e à psicanálise e perceber como esses universos ora convergem, ora diferem, mas, ao mesmo tempo, estão circundando um ao outro. Cabe lembrar que são técnicas diferentes, mas que cada uma delas possui valor e contribuições valiosas, em cada área que se propôs a estudar. São apenas formas diferentes de investigar e olhar o indivíduo, seus conflitos, emoções, relacionamentos, formas de agir, de interagir, e de contribuir para a sociedade em si. Somos múltiplos, diferentes e, por esse motivo, é tão importante que se tenham várias formas de pensar as diferenças e de tentar intervir em um universo particular tão vasto e rico em conteúdo. Dentro deste contexto de psicodrama e psicanálise no qual ambas as técnicas podem ser aplicadas em conjunto, é importante ficar atento ao manejo e ao conhecimento de ambas as especialidades. No que se refere à estruturação da técnica, durante as sessões, Bezerra et al., (2013, p. 36) apud Moreno (1974) descreve que há quatro passos utilizados. São eles: 1. A produção total de uma sessão, os acontecimentos, a ação e os diálogos, tanto no grupo como na cena, são considerados como fio diretor da continuação e da análise do tratamento. A produção no presente é a única instância decisiva. Todo o passado se exprime de alguma forma na produção atual. Todos os estímulos e as fontes de auxílio para um drama espontâneo se encontram, natural, e, por assim dizer, inevitavelmente no presente, já que se trata de uma criação imediata. Não se dispõe nem de um manuscrito de uma peça concebida por um autor nem de uma história de um doente. Todo o processo é necessariamente experimental e pioneiro para o desenvolvimento de uma terapia profunda, ativa e atuante; 2. A produção é orientada para o presente (sub especie praesentis) e não para passado; 3. A regra de livre-associação é substituída pela regra de “livre-atuação”, em que está contida inclusive a associação de palavras; 4. O divã bidimensional da psicanálise é substituído por um espaço tridimensional. É importante conhecer a técnica e estudar a fundamentação.Percebam que a regra de “associação livre, que é um conceito psicanalítico, é substituída pela ‘livre atuação’, ainda que esta “atuação”, à qual se refere, seja manifestada por palavras”. Se a fala é livre, prevê o conceito de espontaneidade, o qual é a ferramenta-chave primordial do teatro da espontaneidade. 28 UNIDADE II │ INTERVENÇÕES PSICODRAMÁTICAS Podemos correlacionar com a técnica de associação livre da psicanálise na qual o paciente deve falar livremente sobre qualquer coisa que lhe vier à mente, sem medo, julgamentos ou racionalização. O espaço tridimensional se refere à plateia bem como todos os outros integrantes que são envolvidos. O processo, embora seja particular, significativo para cada indivíduo, ocorre em sua configuração de forma grupal, oposto à proposta psicanalítica, na qual a relação é estrita ao paciente e analista. A privacidade que há no teatro terapêutico provoca conforto e confiança em seus atores, pois o processo é realizado com muito respeito. Os segredos podem ser compreendidos como os traumas, conflitos, cenas mnêmicas, que não ficam expostas no consciente, e estes surgem no decorrer da psicodramatização. Como isso ocorre? O nome desse processo é catarse, e a psicanálise explica: Método de psicoterapia, em que o efeito terapêutico visado é uma “purgação” (catharsis), uma descarga adequada dos afetos patogênicos. O tratamento permite ao sujeito evocar e até reviver os acontecimentos traumáticos a que esses afetos estão ligados, e ab-reagí-los. Historicamente, o “método catártico” pertence ao período (1880- 1885), em que a terapia psicanalítica se definia progressivamente, a partir de tratamentos efetuados sob hipnose. (LAPLANCHE; PONTALIS, 2004, p. 60) Os autores complementam: Catharsis é um termo grego, que significa purificação, purgação. Foi utilizado por Aristóteles, para designar o efeito produzido no espectador pela tragédia: “A tragédia é a imitação de uma ação virtuosa, que aconteceu e que, por meio do temor e da piedade, suscita a purificação de certas paixões”. (LAPLANCHE; PONTALIS, 2004, pp. 60-61) A catarse ocorre tanto no psicodrama quanto na psicanálise, mais uma vez, corroborando com a eficácia dos dois métodos. Moreno (1975, pp. 78-79) nos explica sobre o conceito de psicocatarse e em como se baseou para conceituá-lo: 29 INTERVENÇÕES PSICODRAMÁTICAS │ UNIDADE II Tentei redefinir o status nascendi do teatro e descrever as suas versões básicas. O novo quadro de referência permite-nos formular um novo ponto de vista e delimitá-lo do ângulo que Aristóteles apresentou em sua Poética: “A tarefa da tragédia e produzir (nos espectadores), mediante o temor e a piedade, uma libertação de tais emoções.” A base da análise de Aristóteles foi a tragédia acabada. Ele procurou derivar o significado do teatro do efeito exercido por um produto acabado sobre as pessoas, durante a sua representação. Os fundamentos em que este livro baseia a sua análise do teatro não constituem um produto acabado mas a realização espontânea e simultânea de uma obra poética, dramática, em seu processo de desenvolvimento, desde o seu status nascendi em diante, passo a passo. E, de acordo com essa análise, tem lugar a catarse: não só no público efeito secundário desejado - e não só nas dramatis personae de uma produção imaginária mas, primordialmente, nos atores espontâneos do drama que produzem os personagens libertando-se deles ao mesmo tempo. (Primeira publicação nas pp. 25-29 de Das Stegreiftheater). Sendo assim, o psicodrama e a psicanálise, unidas como técnica terapêutica, dão contorno e vazão para a legitimidade do psicodrama psicanalítico. Este surge na França, em meados de 1944, como uma possibilidade de psicoterapia em grupo, no qual une o teatro terapêutico, que tem como base a representação improvisada e livre, à espontâneas cenas de vivências traumáticas por meio da associação livre em que é possível investigar os vínculos emocionais e a psiquê, podendo ser ressignificada por meio da troca de papéis, técnica do espelho na qual a catarse ocorre. Sigmund Freud (1856-1939), conhecido como o pai da psicanálise, publica o texto “A interpretação dos Sonhos” (1900) elucidando e explicando como a psicanálise faz a interpretação dos relatos oníricos. Assim a técnica psicanalítica torna-se ainda mais conhecida como é atualmente pela análise dos sonhos. Desse modo, o psicodrama psicanalítico também atua na interpretação dos sonhos. Sabemos que o palco psicodramático não diferencia a realidade da fantasia. As representações são livres, espontâneas, sem ensaios prévios ou roteiro definido. Para exemplificar, vamos estudar um caso clínico apresentado durante uma sessão de psicodrama de Blomkvist e Rützel (1998, pp. 298 a 315). 30 UNIDADE II │ INTERVENÇÕES PSICODRAMÁTICAS Os autores esclarecem como um sonho (realidade adicional) pode ser usado no trabalho psicodramatista. De acordo com Blomkvist e Rützel (1998), o método do psicodrama onírico foi desenvolvido por um grupo chamado Liechtenstein. Esse grupo é formado por diretores psicodramatistas profissionais de diferentes países e surgiu em 1985. Ele tem como objetivo desenvolver o conhecimento e as habilidades referentes ao psicodrama onírico. Para tal, o grupo também aprofundou estudos no surrealismo. Blomkvist e Rützel (1998, p. 298) esclarecerem: O sonho não é reproduzido no palco da forma como a pessoa que sonhou se lembra dele. Trata-se mais de um locus nascendi para uma nova experiência de realidade adicional no palco psicodramático. Muitas cenas dramaticamente produzidas não existem no sonho tal como a pessoa se lembra dele. Essa forma de trabalho com o sonho foi inspirado pelo pintor surrealista André Magritte. A arte surrealista e a arte teatral grega têm técnicas muito distintas de preparo para a viagem dionisiaca a essas dimensões escondidas da mente, e a palavra protagonista pode ser compreendida como “o iniciado à loucura divina” (theia mania). Essas técnicas foram convertidas em técnicas psicodramáticas, e não devem ser entendidas como técnicas isoladas, uma vez que cobrem toda a filosofia da realidade adicional. Para manter o espírito do psicodrama, não corrigimos muito a fala do protagonista ou dos egos-auxiliares. Com os participantes, funciona da seguinte forma: os integrantes do grupo que quiserem compartilhar seu sonho da noite anterior o fazem, no entanto, o grupo não pode fazer muitos comentários a respeito do sonho. Vamos aprender com o exemplo do caso clínico que se chama Senhora Blanche e seu espelho – Um psicodrama Onírico. Início da transcrição da sessão de psicodrama: Após o compartilhamento do sonho, Roland foi selecionado como protagonista. Trata-se de um homem alto e loiro, com trinta anos de idade, da Alemanha; é uma pessoa razoavelmente quieta. Ele freqüentava o projeto Liechtenstein desde o começo. Na época em que freqüentava seminário daquele ano, andava meio deprimido e estava em busca de novas oportunidades na vida. 31 INTERVENÇÕES PSICODRAMÁTICAS │ UNIDADE II Ele é psicólogo e psicodramatista; está empregado e também trabalha em consultório particular. É casado e tem um filho. O diretor dessa sessão é o líder do projeto, Leif Dag Blomkvist, e pede a Roland que suba no palco e sente-se numa cadeira próxima a ele. Todos fecham os olhos, e Roland narra seus sonhos. Ele os apresenta em tempus praesens, e é instruído a não tentar se lembrar de coisas, a não ser as que surjam espontaneamente na mente. Narra seu primeiro sonho da seguinte maneira: “Algumas pessoas estão numa corrida, como se fosse um filme. Há uma cabana de acampamento como as das montanhas iugoslavas. Há um homem e uma mulher e Napoleão e eu. Napoleão e a mulher caem num vale. Mas acho que isso não é tão perigoso.” Duas noites após, emerge o seguinte sonho: “Entro numa vila ou mansão, e devo consertar ou pintar alguma coisa nela. Uma mulher sofisticada moranesse lugar. A moldura de um espelho deve ser pintada de branco. Pinto a moldura, mas em certos lugares a madeira não aceita a tinta. Tento colocar várias camadas de cor nas partes, mas, no entanto, a moldura rejeita a cor, e eu me sinto insatisfeito. Eles dizem que seria melhor que Günter o fizesse.” O rapaz que havia sonhado está associando esses dois sonhos, referindo-se à sua incapacidade de fazer as coisas corretamente, ou de saber o que deveria fazer. No primeiro sonho, ele tinha que conduzir um grupo de pessoas pelas montanhas, e não realizou adequadamente sua tarefa: as pessoas caíram. No segundo sonho, ele falhou em pintar a moldura do espelho. O protagonista inicia imediatamente pela arrumação da cena mais importante do segundo sonho no palco. De forma contraditória ao trabalho ortodoxo com o sonho de Moreno, a escola de Liechtenstein não o protagonista para o papel de sonhador a partir do trabalho com os resíduos do dia anterior ao sonho. Ela inicia [o trabalho] imediatamente com o sonho, e, portanto, com a realidade adicional. Deixar que o protagonista conte o sonho mais uma vez antes que a ação se desenrola possibilita ao diretor uma pista sobre onde entrar ou como aquecer para a sessão. O diretor, assim como o protagonista, 32 UNIDADE II │ INTERVENÇÕES PSICODRAMÁTICAS pode, no caso de o sonho ser muito longo e ter muitas cenas, selecionar a cena que pareça mais apropriada para dar início à sessão. Roland escolhe começar pelo segundo sonho. O diretor pede-lhe que arrume a cena na mansão, e Roland desloca diferentes cadeiras e muda as luzes coloridas para criar a atmosfera adequada a uma sofisticada mansão burguesa na França. A mulher sofisticada está de pé na porta de entrada do aposento com a moldura danificada do espelho. O protagonista dá a essa mulher o nome de sra. Blanche. O protagonista inverte papéis com a sra. Blanche. Sra. Blanche: Estou sozinha nessa casa aqui na França, e ela tem quinze quartos. Tenho muitos empregados trabalhando para mim, e gosto muito deles, assim, pago os muito bem. Sou uma mulher muito bacana. Diretor: O que esse espelho tem de especial? Sra. Blanche: Ele é lindo. A moldura é linda. É barroca. Ele fica pendurado no hall de entrada, ao lado das escadarias que vão dar na galeria. Infelizmente, ficou velho e sujo. Tem mais de duzentos anos. Diretor: Ele é da época da Revolução Francesa ou de Napoleão? Sra. Blanche: Sim, algo assim. Eu o achei no porão. O protagonista agora sai do papel de sra. Blanche e vai para o papel do espelho. Espelho: Eu fui feito antes da Revolução Francesa. Fui feito para ser usado. Tudo estava se quebrando naquela época. Eu estava em perigo, e tenho sorte por não ter sido esmagado. (o espelho vira a cabeça para a sra. Blanche). Espelho: (para a sra. Blanche). Eu fico pendurado aqui no hall para que você possa dar uma última olhada antes de sair. Como era maravilhoso nos velhos tempos! Tínhamos muitas festas e reuniões aqui, só a alta sociedade, barões, duques etc. A evolução do sonho é a expansão de um certo símbolo ou aspecto do sonho. Nesse caso, seleciona-se uma cena de uma festa nos idos bons tempos. Todavia, essa cena jamais existiu no sonho original. Os membros do grupo se preparam para os respectivos papéis. Estão presentes o rei e a rainha, alguns intelectuais e muitas outras pessoas. 33 INTERVENÇÕES PSICODRAMÁTICAS │ UNIDADE II O protagonista escolhe o papel do marquês de Longgelan com sua mulher. O protagonista queria que as tradicionais pessoas famintas dessa época também estivessem presentes no palco. Marquês: Parece que muitas pessoas estão viajando para o exterior hoje em dia. Principalmente os que têm que pagar impostos. Sra. Du Pont: Como é desagradável ouvir a gritaria do proletariado e ver como eles estão loucos por dinheiro. De qualquer modo, nem sabem o que fazer com o dinheiro. Proletários: Vocês nem ganham seu próprio dinheiro. Rei: E vocês não têm nada na cabeça. Vocês nem sabem o que é viver, porque vocês comem merda o tempo todo. Proletários: Nós vamos pegar vocês! A cena termina com a batalha da Bastilha. O teatro do psicodrama parece um campo de batalha, e o grupo todo participa de forma espontânea. Há um princípio segundo o qual obtém-se a catarse pela participação da ação no palco. Esse aspecto lúdico do drama espontâneo muitas vezes é esquecido. A cena volta à vila da sra. Blanche. Ela está sentada sozinha em seu quarto, pensando na vida. Sra. Blanche: Aqui estou eu sentada sozinha. Já tive um marido, mas ele se foi há muito tempo. Os amigos que tenho não considero adequados para mim. Sinto que a vida perdeu sua substância. Diretor: Bem, seu artesão está aqui, Roland Berger (o protagonista), para consertar seu espelho. O que você acha dele? Sra. Blanche: Ele é bom e muito cuidadoso. Eu consegui o nome dele com uma tia minha, e ela disse que ele trabalha bem. Roland: Sinto-me bem em vir trabalhar para a senhora, pois esta é uma linda casa, e eu consertarei o espelho da senhora. A técnica de monólogo no psicodrama significa que o protagonista exprime diferentes pensamentos ou sentimentos que estão escondidos e o aparecem em sua ação no palco. Essa técnica é excelente para expressão da ação do ego onírico. Roland: (monólogo) Sinto-me um pouco inseguro porque não sou um profissional. No entanto, eu poderia ser capaz de fazê-lo. Se eu tiver 34 UNIDADE II │ INTERVENÇÕES PSICODRAMÁTICAS um pouquinho de sorte, vai dar certo. Ainda não falei sobre preço com a senhora Blanche, e talvez não possa pagar esse custo. Esse conserto vai demandar muito tempo, e não sei o quanto cobrar. Sinto-me desconfortável. Diretor: Você gosta desse trabalho? Roland: Sim, gosto de fazer coisas desse tipo para mim. Diretor: Você não estabeleceu um preço! Roland: Eu não posso, pois não sou um profissional. Um profissional teria feito isso em sua própria Werkstatt (oficina). Esses comentários dão a dica para a introdução de um personagem que não estava presente no sonho, mas que entrará na produção onírica psicodramática, no aqui e agora. Será o personagem ou arquétipo do “profissional que o protagonista chama de sr. Schneider. O objetivo desse diálogo é trazer a sombra à luz e tornar visíveis as projeções dos personagens da sombra para Roland. O sr. Schneider, como personagem da sombra, projeta incompetência em Roland, o que é, em certa medida, verdadeiro. No entanto, o ego do sonho se identifica como sendo competente. O conteúdo subjetivo projetado no objeto não é aquele com que o objeto se identifica ou como se define. Raramente, ou jamais, algo que é projetado se encontra presente no objeto. (VON FRANZ, 1980) Roland assume o papel do sr. Schneider, o profissional. O sr. Schneider tem um diploma e muita experiência em sua área. Ele pode provar o que e quem é ele. O papel de Roland é desempenhado por um ego auxiliar. Schneider: Seu idiota, afaste-se deste espelho. Você o está destruindo. É isso que acontece quando a gente contrata esses lunáticos. Eles não apenas roubam o trabalho como também fazem um serviço mal feito. Senhora Blanche, não creio que a senhora ficará satisfeita com o trabalho desse merdinha do senhor Berger. Eu tive que aprender por dez anos, e sou mais velho que ele. Vou cobrar da senhora $1.500. A senhora poderia conseguir um preço mais barato com o senhor Berger, mas ele arruinará o seu espelho. 35 INTERVENÇÕES PSICODRAMÁTICAS │ UNIDADE II Roland: Eu já fiz isso muitas vezes. Eu sei como fazê-lo! Schneider: Ignorância, ignorância. Você não faz jus nem a metade do preço! Roland tenta trabalhar, enquanto o sr. Schneider o olha com um grande sorriso e a sra. Blanche também o observa. O trabalho começa a ir mal, e o espelho não está ficando muito bom. Roland está agora no papel dele mesmo, e o sr. Schneider é representado por outro membro do grupo. Sra. Blanche: Isso não está muitobom. Quanto mais eu me aproximo do espelho, mais insatisfeita fico. Esse homem não faz um bom trabalho Roland: Vejo que o trabalho não está muito bom. A crítica está correta. O espelho e a moldura não estão ficando bons. Eu me superestimei. Tentei, mas não consigo fazer melhor do que isso. Estou humilhado. Sinto-me envergonhado. Mas esse não é o meu trabalho usual. Eu só queria fazer um favor. Vergonha e humilhação são os sentimentos vivenciados quando as pessoas começam a integrar sua sombra. O ego foi muito inflado, e, portanto, decolou e está aterrissando de volta à terra. Lyn Cowan escreve o seguinte: A palavra ‘humilhação’ vem do latim humus, que quer dizer “terra” ou “chão”. Humus é o material orgânico escuro que existe no solo, produzido pela decomposição da matéria vegetal e animal. Ele essencial para a fertilidade da terra. A humilhação, portanto, é um processo de decadência e de decomposição de matéria apodrecida. Aquilo que é escuro e maculado em nós, que se decompõe e que faz com que percamos a compostura, torna-se material fertilizador, vitalisador, vital. (COWAN, 1982, p. 36) Simbolicamente, podemos dizer que o espelho nunca mente. A sombra se reflete no ego e cria os sentimentos de vergonha e constrangimento. O trabalho feito na moldura não é muito bom. Até esse ponto, o protagonista esteve preocupado com a moldura do espelho que pertence a Blanche. 36 UNIDADE II │ INTERVENÇÕES PSICODRAMÁTICAS Ele não olhou para o espelho em si. A senhora Blanche representa aspecto feminino refletido em Roland. A moldura, em seu aspecto feminino, é também um símbolo do self. Roland desempenha o papel do espelho e se lamenta: Espelho: Eu já fui tão lindo. Todos se impressionavam com a minha beleza, e eu estava pendurado num lugar muito importante da casa. Mas os tempos mudaram. Hoje eu só posso viver de sonhos. Diretor: Como se sente com relação a Roland agora com o trabalho que ele realizou em você? Espelho: (para Roland) Você precisa de uma maior experiência. Parece cansado e pálido. Você precisa melhorar a sua condição. Você está doente? Acho que é aquele seu maldito trabalho na escola. Tudo de que você precisa de manhã é ler o jornal, isso é o que é importante para você. Você não tem nenhum interesse nas aulas. Tudo o que faz é matar o tempo. Quando você trabalha como psicólogo no seu consultório, tudo o que fazer é pensar quando terminará o horário de consultas, para ir para casa e comer. O espelho está advertindo Roland sobre o perigo do aspecto feminino de seu psiquismo. Se o aspecto feminino, o assim chamado anima, predomina, ele pode fazer com que os homens fiquem sentimentais, que vivam sonhando, pensando como as coisas poderiam ser, fazer com que fiquem preguiçosos e com falta de iniciativa. A anima pode ser uma femme fatale, envenenando o ego masculino. Roland: Tudo bem, mas eu não sou assim o tempo todo. Não estou sempre entediado. Mas o espelho tem razão: quando me sinto fraco, eu lustro a minha máscara e me sinto fraco. No psicodrama onírico, o diretor tem que estar consciente do fato de que, num certo nível, o sonho apenas se simboliza a si mesmo. É como um teatro da vida e da existência. Os velhos dramas gregos nada mais eram do que reflexões da relação do homem com os outros e com os deuses na vida diária. Ao vivenciar o drama psicodramaticamente, a vida cotidiana muitas vezes assiste à produção espontânea mesclada ao sonho, e, portanto, uma nova produção onírica é realizada no palco, no aqui e agora. 37 INTERVENÇÕES PSICODRAMÁTICAS │ UNIDADE II Seria errado manter a vida diária fora de uma produção onírica, assim como a vida diária pode nos ajudar a entender nossos sonhos se estivermos desejosos de olhar um pouco mais de perto nossos componentes irracionais da existência diária. Roland diz ao diretor que se sente dessa forma com relação a seu trabalho como professor e psicólogo numa escola para pessoas desempregadas. Ele tem a impressão de que ninguém lá tem o menor interesse. Ele vivencia também uma falta de iniciativa. Roland arruma sua sala no trabalho. São 8:45 da manhã. Ele coloca o jornal sobre a mesa, coloca sua lancheira com comida diante de si, e senta-se diante de um enorme quadro de programações. O quadro ocupa a sala toda. Roland inverte papéis com o quadro de programações. Quadro de programações: Eu sou maravilhoso, tenho todas essas grades e horários, todas essas diferentes cores para as diferentes atividades. Quando alguém olhar para mim, poderá achar que isso aqui está cheio de atividades. Roland adora fechar sua porta e colocar planos em mim. É maravilhoso. Sou impressionante, mas quem, diabos, está batendo na porta? Bem agora que Roland e eu estamos nos divertindo? Como Roland trancou a porta por dentro, ele tem que destrancar para que seu colega Peter possa entrar. Peter: (fora da sala) Gostaria de falar com você sobre a situação na escola e nas aulas. Roland: (monólogo) Que cara chato, e tão mal vestido nesse macacão vermelho. Esse idiota está sempre enchendo. Não ajuda nada o fato de ele ser de Hunsrück (zona rural da Alemanha). E além do mais, esse idiota é apenas um pedagogo social. De que merda estou rodeado? A equipe não é muito melhor que os clientes. Roland: Entre! Peter: O quadro de programação está com um aspecto cada vez melhor. Mas, na verdade, não reflete realmente a realidade. Só umas poucas coisas estão ocorrendo. É muito exagero. Provavelmente eu não entendo isso. É tão complicado! 38 UNIDADE II │ INTERVENÇÕES PSICODRAMÁTICAS Roland: Meu quadro de programação não é complicado. É um plano, é numa moldura do nosso trabalho que temos que trabalhar. É uma sugestão para o nosso futuro e como devemos trabalhar. Você é entediante e secarrão. Você me cansa. O próximo movimento no psicodrama tem que se referir à moldura. A moldura já apareceu no sonho como o espelho da sra. Blanche no qual Roland tem que trabalhar, mesmo não sendo um profissional. A moldura agora aparece como sua moldura de trabalho, como o quadro de programações. O espelho da sra. Blanche tinha aproximadamente duzentos anos e datava da época de Napoleão. Além disso, Napoleão também aparecia no primeiro sonho de Roland, caindo da montanha. Se o ego estiver inflado pela energia feminina inconsciente, uma grande quantidade de energia é percebida. No entanto, a energia criativa necessita de braços para transformar os sonhos em realidade. Moreno chama a isso de espontaneidade. Se o fator espontâneo estiver faltando, um certo tipo de megalomania, manifestada aqui sob o personagem de Napoleão, aparece. Napoleão conhecido por seu gênio assim como por sua queda. Essa é a razão para introduzir agora, na situação real do trabalho de Roland, um personagem onírico no psicodrama. Roland inverte papéis com Napoleão, que está de pé no quarto dele, próximo a um grande mapa. Em suas inversões de papel, ele usa um chapéu semelhante ao usado por Napoleão. Napoleão: Eu conquistei quase que o mundo todo. Sou um homem de grande importância. Vou constituir uma grande França. Bem, minha gente, o que pode ser feito para aumentar a França? Roland, no papel de Napoleão, dá muitas ordens diferentes. Ele também pede sugestões para os outros. Ele usa a sala toda, e o grupo o ajuda desempenhando os papéis de soldados e da multidão. Napoleão: Quero expandir. A França, ela não é suficientemente grande para mim e você. Todavia, não podemos conquistar a Espanha porque ela é grande demais. Soldados: Não, não podemos conquistar a Espanha, mas podemos conquistar a Prússia. 39 INTERVENÇÕES PSICODRAMÁTICAS │ UNIDADE II Napoleão: Boa idéia. Vou mandá-los para a Prússia e vocês construirão um império nela Soldados: Mas nós ouvimos dizer que eles vão ocupar Paris. Napoleão: Vocês estão com medo? Tenho planos maravilhosos. Olhem para este plano. Estou desapontado com todos vocês. Ondeposso arranjar pessoas corajosas? Diretor: Conte-me sobre sua morte, Napoleão. Napoleão: Bem, tudo começou de forma esplêndida, mas o final não foi muito bom! Diretor: Por quê? Napoleão: Eu morri no exílio. Meus planos falharam. Meu povo não me quis mais. Talvez tenha havido alguma conspiração. Morri com o coração partido. Mas foi divertido no início. Napoleão está sendo trazido para a escola onde Roland trabalha. Esse é um bom exemplo de como a realidade adicional pode ser usada e como o psicodrama agora tem os mesmos componentes que um sonho. Ou seja, a diferenciação do tempo, bem como a diferenciação entre fantasia e realidade, não é mais válida. Napoleão está furioso diante da porta do consultório de Roland. Napoleão: (para o grupo) Que nome ridículo! Tageskollegium (colégio diurno), há também um acth collegium (colégio noturno). Por que essa porta está trancada? Deixe-me entrar! Roland está em seu consultório com um grupo de drogadictos, e há também o quadro de programações. Napoleão: O que isso significa? Deixe-me entrar! Roland: Quem é? Napoleão arromba a porta e surge como um louco no aposento, diante de um surpreso grupo de pessoas. Ele vê o quadro de programações, berra o mais alto que pode e rasga o plano em pedaços. Roland está agora no papel de Napoleão. Roland é representado por um membro do grupo. 40 UNIDADE II │ INTERVENÇÕES PSICODRAMÁTICAS Roland: Esse é o meu plano. Deu muito trabalho para fazer. Napoleão: Esse plano não funciona. Ele não é exeqüível. Não passa de uma bolha de sabão. Todos esses antigos drogadictos e prostitutas continuam tomando drogas. Eles faltam à escola todos os dias. Como essa vida degradada pode fazer parte do seu quadro de programações? Isso não funciona. Senhor Berger, eu estou falando com o senhor, e o senhor vai me ouvir. Roland: Eu não gosto de o senhor ter rasgado o meu plano em pedacinhos. Napoleão: Todas essas prostitutas que não conseguem tomar nenhuma decisão. Isso aqui é uma Wolkenkuckusheim (Terra de Lunáticos). O plano é um monte de bolhas de sabão. Roland: Mas eu tenho algo a fazer. Napoleão: Isso não significa nada. Roland: As pessoas estavam bem impressionadas. A soberba significa estar cheio de ar quente e estar estufado. Napoleão está lembrando a Roland o risco que a soberba impõe ao ego. Isso é oposto ao entusiasmo, que significa estar preenchido por Deus. O entusiasmo deve ser integrado em pequenas doses; de outra forma, há o risco da inflação. A megalomania, pode-se dizer, é o extremo de um ego inflado. Napoleão: Se eu fosse você, não ficaria por aqui tão freqüentemente, nesse emprego. Por que você não vai a conferências? Leia alguns livros! Aprenda algo! Roland: Eu trago um livro comigo todo o dia. Diretor: O que mais faria sentido? Napoleão: Construa algumas outras coisas, seu consultório particular, por exemplo. De outra forma, você não terá nenhuma energia. Fui um jogador, e muita coisa aconteceu à minha volta. Eu invadi a Rússia. O final não foi assim. Roland: Eu já estou cansado quando entro nesse lugar e nesse trabalho. Napoleão: Só há o ar vazio aqui. Você só pode ficar cheio disso. Quantas vezes não tentei ajudá-lo? Tentei dar-lhe grandes planos, a prática, mas você só está matando o tempo! Roland: A gente precisa viver de algo. 41 INTERVENÇÕES PSICODRAMÁTICAS │ UNIDADE II Napoleão: Eu ensinei a você como ser um novo Napoleão. Eu investi muito em você, e o que você fez com isso? Roland: Os seus planos são meio fora da realidade. Napoleão: Eles são ótimos. No ano que vem você não terá um único cliente. O ego está sofrendo porque está quase sem energia e combustível. O entusiasmo aumenta a autoconfiança, o crescimento espiritual e a inspiração. No entanto, só pode ser tomado em pequenas doses e adaptado. Se o ego ficar inflado demais e for encharcado pelo inconsciente, tornar-se-á passivo e sem condições de tomar decisões e de discriminar. Também ficará sem iniciativa. Nosso protagonista está lutando dentro de seu ego. O ego, que geralmente deseja a unilateralidade, isto é dizer e/ou, agora está estraçalhado. Pode-se ver também como o personagem da sombra, Napoleão, está confrontando as idéias de Roland. É também paradoxal que Napoleão esteja falando dessa forma, mas os personagens oníricos são paradoxais. Como regra geral, a integração do personagem da sombra traz energia. Durante essa cena, o protagonista inverte papéis muitas vezes com Napoleão. Esse encontro é também um aspecto fundamental do psicodrama. O protagonista, que geralmente é quieto e introvertido, está se expressando espontaneamente. A experiência catártica no psicodrama não consiste em encontrar uma solução ou causa. Consiste mais em proporcionar um palco para uma pessoa e uma área onde se sinta livre para se expressar. Não conseguiremos nunca enfatizar suficientemente a importância de as pessoas poderem ser capazes de ter um diálogo com seus personagens internos. Diretor: Como Napoleão chegou a esse prognóstico? Napoleão: Porque as pessoas não têm que pagar suas próprias terapias. Isso significa que o próximo ano está em perigo. Diretor: Você precisará desse emprego? Roland: Ninguém está interessado em se eu vou ficar sentado. Napoleão: Eu estou interessado. Estou desapontado com o que você está fazendo. Comece com suas idéias. 42 UNIDADE II │ INTERVENÇÕES PSICODRAMÁTICAS Roland: Não estou interessado nos seus conselhos. Eles não parecem me ajudar. Quantos não morreram porque o seguiram? Tudo deu errado para você no final, e você morreu na prisão. Napoleão: Mas eu tinha energia. Eu fiz alguma coisa Roland: Eu estou fazendo algo. O que faço, basta. Eu leio o caderno de esportes, O time de Colônia venceu. Isso é muito importante. Quando estou aqui, faço o que quero. Eu posso manter o meu ritmo de manhã. Ninguém vem me encher. Este lugar é importante para mim devido à sua segurança. O emprego me dá dinheiro. Quando as pessoas são confrontadas com sua sombra de forma excessivamente pressionadora, elas tendem a regredir. Neste presente momento, o protagonista está se tomando defensivo, rejeitando sua complicada situação e brigando com o seu ego. Uma das maneiras que o ego tem de se livrar rapidamente de sentimentos dolorosos ou desagradáveis de ambivalência é tornar-se unilateral, tomando uma decisão obstinada. Do ponto de vista de direção, o diretor tem que estar atento a esse processo. Nesse ponto, seria importante interromper a cena, porque o ego do protagonista não pode integrar mais material da sombra. Diretor: Como você vê a diferença entre você e Napoleão? Roland: Bem, a segurança não era importante para Napoleão; ela é importante para mim. Mas, por outro lado, Napoleão tem mais coragem do que eu. Diretor: Onde Roland é corajoso? Roland: No clube esportivo. Em seu grupo de psicodrama. No atendimento [aos clientes]. Diretor: Acho que seria de bom alvitre falar com Napoleão sobre como você se sente com relação a maneira com ele influencia a sua vida. Roland: Napoleão, você faz com que eu me sinta insatisfeito quando olha para mim com seus planos heróicos. Por outro lado, você me infunde coragem e vitalidade. Você tem planos grandes demais, e quando eles não acontecem, você fica desapontado e crítico... 43 INTERVENÇÕES PSICODRAMÁTICAS │ UNIDADE II O protagonista decide examinar a dualidade de Napoleão. Num certo sentido, pode-se dizer que Napoleão também representa uma energia dionisíaca. Dioniso é realmente o Deus da alegria, e, portanto, dá sabor à vida. No entanto, sua alegria pode se transformar igualmente numa loucura destrutiva. Sabemos, por meio do mito de Dioniso, que as pessoas que rejeitaram a loucura dionisíaca tornaram-se, elas próprias, loucas, enquanto que para aqueles que o seguiram houve posteriormente uma vida mais gratificante. Dioniso também é famoso por sua selvageria primitiva, e, portanto, pode assumir seu curso brutalcaso o ego o rejeite. Louve-se os deuses por aquilo que eles são. Nosso protagonista decidiu fazê-lo. Napoleão sai do palco, e estamos de volta ao quarto da sra. Blanche, onde Günter está consertando o espelho. A sra. Blanche, Roland e Günter circundam o espelho. Acontece que Günter é uma pessoa que, na vida real do protagonista, ele não suporta. Ainda estamos lidando com a sombra e suas projeções. Günter é uma pessoa que funciona como um gancho de projeção para o protagonista. Pede-se ao protagonista que assuma o papel de Günter. Na apresentação do papel podemos ver que a descrição de Günter certamente contém uma boa carga de projeções de caráter negativo. A apresentação é estereotipada, muito negativa, e seria absolutamente contrária a como o próprio Günter se apresentaria. Eros, o deus do Amor e da Relação, encontra-se ausente. Moreno falava sobre a tele como sendo o oposto da projeção. A tele tem duas vias, seu processo fundamental é a reciprocidade (de atração, de rejeição etc.), e ela contém Eros. A tele se baseia num sentimento e reconhecimento da real situação dos outros. Esse certamente não é o caso na apresentação que Roland faz de Günter Günter: Estou desempregado. Sou mais uma mãe que um homem. Francamente, eu quase tenho peitos. Tenho também uma voz extremamente alta e estridente. Os peitos, eu adquiri praticando esporte. Uns anos atrás eu era campeão de esportes, mas isso foi há vinte anos, Tenho um cabelo comprido e engordurado horroroso: Em geral, pareço um porco, ou uma puta. 44 UNIDADE II │ INTERVENÇÕES PSICODRAMÁTICAS O protagonista está muito excitado e se veste de Günter. Uma toalha molhada representa os cabelos ensebados, e as almofadas, por baixo do macacão do protagonista, representam os peitos. O protagonista está cheio energia e está agindo espontaneamente. Sempre que as pessoas encenam sua sombra no psicodrama, o ser humano total lá se encontra. Sra. Blanche: Acho que Günter conseguirá consertar esse espelho! Como ele é prático! Roland: Günter é ridículo e, a propósito, ele tem peitos. Diretor: O que aconteceu com você, Günter? Günter: Bem, eu cresci, me casei e tive filhos. Estou de desempregado e sou casado com uma médica. Meu casamento vai mal, e tenho que arrumar a casa antes de ela voltar do serviço. Diretor: Bem, Günter, isso não parece ser muito legal. Você poderia nos mostrar uma cena sobre a hora em que sua mulher está chegando em casa? Günter: (ainda representado por Roland) Com certeza! A plena expansão de um psicodrama significa ser capaz de atuar no papel do outro. No psicodrama surrealista, não há necessidade de se ter cenas que o protagonista tenha vivenciado. O protagonista está agora representando uma cena que existe em sua mente, uma cena onde ele próprio, enquanto Roland, não está incluído. Representar esse tipo de cena é representar a sombra. Os protagonistas, em geral, se divertem e têm um prazer sádico em suas performances. Como regra geral, quando algo está colorido pelo fenômeno da projeção, o protagonista se recusará a ver que o material apresentado tem relação consigo. O insight não ajuda, mas a ação sim. O protagonista está representando o material da sombra: pode-se dizer que o mesmo transpira por meio da ação. Após certo tempo, ou numa sessão posterior, o protagonista automaticamente fará algumas conexões com seus próprios traços. A cena mostra Günter em casa, com a mulher e os filhos. A Mulher: Deus do céu, que dia terrível na clínica. Eu não agüento mais, e agora tenho que voltar pra casa, pra essa merda com quem me 45 INTERVENÇÕES PSICODRAMÁTICAS │ UNIDADE II casei. Eu faço tudo, e ele realmente não faz nada! Ele é um verdadeiro Schlappschwanz! (que, literalmente, quer dizer: rabo frouxo ou pinto frouxo) Günter: Oi, como foi de trabalho? A Mulher: Essa casa está um chiqueiro. O que você fez o dia todo? Vá já arrumar. Estou cheia de fazer tudo. As crianças me irritam, estou cansada e não quero ser perturbada. Fui clara? Günter: Vamos, crianças, a mamãe está cansada! A mulher: Vista as suas meias e pare de andar por aqui. Isso é um zoológico. Preciso descansar. (monólogo) Meu Deus, eu realmente já estive casada com um peão e olhe só o que aconteceu. Por que estou aguentando isso? Günter: Bem, você está falida. Seu trabalho como médica não rende na nada. Você é um fracasso. A mulher: Como você ousa falar comigo desse jeito! Se não fosse por mim, estaríamos vivendo na rua. Você absolutamente não tem condições de sustentar sua família. O diretor traz Roland mais uma vez de volta à cena na casa da sra. Blanche e encoraja o protagonista a se encontrar com Günter sobre o espelho. Agora pode-se perceber claramente que a cena inclui temores ocultos de não ser homem. Como um homem pode dominar e perder sua identidade masculina e estar sob o domínio de uma mulher. Essa imagem é adequada quando o ego masculino perde o controle de sua consciência, estando sob o domínio da anima. O casamento entre o masculino e a anima transforma-se em escravidão, e não numa união frutífera. Diretor: Você poderia, por favor, exprimir seus sentimentos em relação a Günter e também exprimir sua relação para com ele? Roland: Você dominou tudo, estou cheio de você. Dê uma olhada para o jardim-de-infância que seus filhos freqüentam. E tudo do seu jeito, suas idéias sobre piqueniques, sobre construir casas para as 46 UNIDADE II │ INTERVENÇÕES PSICODRAMÁTICAS crianças etc. Depois de meio ano ninguém mais pode suportá-lo. Você tem essas idéias napoleônicas! Günter: Você é um psicólogo típico. Não diz nada, nem faz nada. Você é um fracasso! Roland: Fracasso?! Pense um pouco no jardim-de-infância que você ia construir. O que aconteceu? Nada! Günter: Todos me abandonaram e eu tive que construí-lo sozinho. O que você pode fazer com os outros? O que você tem a oferecer? Günter, que reflete o lado sombra, está agora abordando um grande problema para o protagonista, que é uma pessoa introvertida e tem sérios problemas com a extroversão. As pessoas introvertidas também têm um grande desejo de participação, mas isso inclui abrir mão de parte de seu mundo interior e de suas expectativas em favor do coletivo. O problema de uma pessoa introvertida é o equilíbrio entre mundo interior e o exterior. Ou elas se sentem sobrecarregadas pelos outros, ou elas os controlam. Falta certa energia para um livre fluxo entre as pessoas. Nosso protagonista trouxe à tona essa questão várias vezes, mas, como muitas pessoas introvertidas, chega à seguinte conclusão: é trabalho demais e é melhor não fazer nada. Roland: Posso trabalhar junto com a minha mulher e tenho um cérebro que você não tem (o protagonista hesita, e, então, se cala). Diretor: O que está se passando em sua mente? Roland: Ele tem mais coragem que eu. Tem coragem de fazer algo, mesmo que todos riam dele. Ele é uma criança, e adora o que está fazendo, com todas as suas forças. Mas daí, tudo dá errado. E todos podem perceber seus altos e baixos, só umas poucas pessoas conhecem os meus. Lentamente, o protagonista está fazendo a conexão com sua própria sombra, e o sente. A ação não é um insight intelectual, mas sim dramático, vivenciado no momento, e, portanto, podemos ver um efeito terapêutico no psicodrama. Ter consciência da própria sombra é impossível, e sua integração no ego é um processo que frequentemente está relacionado a uma grande 47 INTERVENÇÕES PSICODRAMÁTICAS │ UNIDADE II dose de sofrimento e dor chamada katabasis (a viagem dionisíaca ao submundo), ou, como diz o provérbio: “Temos que agüentar a própria cruz com paciência”. A consciência da sombra não está relacionada com a sua integração. Na melhor das hipóteses, poderia ser um início dessa. Muitas pessoas em psicoterapia, incluindo os psicoterapeutas, geralmente terminam o trabalho psicoterapêutico nesse ponto de partida, ou seja, eles
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