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FENOMENOLOGIA E EXISTENCIALISMO NA CLÍNICA Unidade 1 Unidade 1 - Introdução à psicologia fenomenológica existencial na clínica Nesta unidade você verá: // temas fundamentais da Fenomenologia e Existencialismo // aspectos conceituais sobre a Clínica Psicológica // o conceito de saúde e doença e a questão do normal versus patológico Apresentação Objetivos Temas fundamentais da Fenomenologia e Existencialismo Aspectos conceituais sobre a Clínica Psicológica O conceito de saúde e doença e a questão do normal versus patológico 1/5 Apresentação A Fenomenologia Existencial na clínica é uma das abordagens dentro do grande e amplo campo de atuação da psicologia, tratando-se de uma linha que, como o próprio nome “existencial” aponta, se refere a uma atitude em relação aos seres humanos que se apresentam como um conjunto de pressupostos que definem sua existência como “ser”. Essa perspectiva começa a ser entendida dentro do âmbito da filosofia, influenciando diversas correntes sobre a existência humana e a origem de seus comportamentos. Portanto, dentro de uma perspectiva teórica que aponta como o homem vive e estabelece as relações consigo próprio e com seus pares, é uma obrigação conhecer, analisar e ter uma visão ampla da disciplina, sem contar que as principais questões apontadas servem de base para a prática clínica dentro do contexto da Psicologia. Compreender como a Fenomenologia auxilia na compreensão do conceito de saúde e doença, além da atuação profissional dentro de uma visão humanista do sofrimento humano, traz um entendimento prático referente ao lugar de psicoterapeuta e cliente. Assim, a ideia de normal e patológico é tratada na perspectiva de quebra dos estigmas e estereótipos que cercam o papel do psicólogo na prática clínica. Tal abordagem contribui para a formulação de como é possível que um ser se relacione com outro, entendendo a comunicação a partir da concepção do aspecto consciente. AUTORA A professora Francisca Edinete Nogueira de Sousa é mestre em Ciências Humanas pela UNISA – Universidade de Santo Amaro (2020), especialista em Neuropsicologia pela UNIPAR – Universidade do Paraná, em Parceria com a UNIFESP – Universidade Federal de São Paulo (2016), e graduada em Psicologia pela UNISA – Universidade de Santo Amaro (2004). Dedico este trabalho a Deus, em primeiro lugar, por ter me proporcionado esta possibilidade, aos meus professores, que sempre motivaram a passar meu conhecimento adiante, aos meus filhos, fonte de toda a minha inspiração para a vida pessoal e profissional e que me impulsionam a ser um bom ser humano. Francisca Edinete Nogueira de Sousa 2/5 Objetivos UNIDADE 1. Introdução à psicologia fenomenológica existencial na clínica Francisca Edinete Nogueira de Sousa OBJETIVOS DA UNIDADE • Apresentar os pressupostos da abordagem fenomenológica existencial; • Contextualizar o aspecto histórico dos conceitos de saúde e doença; • Contribuir para a prática clínica da abordagem fenomenológica existencial. TÓPICOS DE ESTUDO Temas fundamentais da Fenomenologia e Existencialismo // A existência humana dentro da perspectiva fenomenológica // O ser humano e o aspecto transcendental // O ser humano dentro de uma visão integradora Aspectos conceituais sobre a Clínica Psicológica // A fenomenologia e a psicoterapia O conceito de saúde e doença e a questão do normal versus patológico // A relação entre a saúde e a doença na fenomenologia // O sofrimento psicológico 3/5 Temas fundamentais da Fenomenologia e Existencialismo A relação entre Psicologia e Fenomenologia é um tema relevante dentro dos estudos da Filosofia. O primeiro filósofo a se interessar por esta questão, o alemão Edmund Husserl (1859-1938), concebe a fenomenologia como uma nova disciplina, composta por um método rigoroso, passando a ser considerada uma nova ciência dentro do campo da Psicologia. Husserl também fundamenta, ainda na segunda metade do século XIX, a compreensão do homem por meio de uma nova abordagem. A palavra Fenomenologia tem origem grega, representada por duas partes: FENÔMENO – Tudo aquilo que se apresenta e é percebido através do sentido. LOGIA – Estudo de uma determinada situação por meio de uma teoria. Dessa forma, é possível pensar que o grande interesse é explicar que o ser humano possui uma capacidade intrínseca para refletir sobre determinado fenômeno, procurando uma explicação para sua existência, se tratando de uma nova corrente dentro da Psicologia. Essa é uma das questões que se pretende responder, já que a fenomenologia se fundamenta em rigor metodológico, rejeitando todo o cientificismo naturalista presente na filosofia e estudando a subjetividade de uma forma racionalista e não experimental. O método fenomenológico passa a fazer parte dos estudos da consciência e, nessa perspectiva, todo conhecimento se dá a partir de como a consciência interpreta os fenômenos, traduzindo o seu sentido na ótica fenomenológica e relacionando-o com o conceito de “objeto”. No tocante ao método fenomenológico, são levantados aspectos ligados a uma das linhas de atendimento dentro da psicologia, porém, é importante salientar que este método de investigação garante uma construção sólida dentro do campo que estuda as transformações de um campo de atuação, o que requer técnica e domínio profissional, em especial a respeito do entendimento do fenômeno na experiência humana. O método fenomenológico é empregado de modo a fazer o profissional compreender o fenômeno da forma como ele se apresenta para além do entendimento do senso comum, que entende como fenômeno qualquer coisa que aparece. Com vistas a essa compreensão, a fenomenologia existencial impõe a ideia da subjetividade e de contexto, ou seja, a subjetividade só é analisada num determinado contexto e necessita ser interpretada de forma muto particular. Quando se pensa na questão do indivíduo num contexto, ele é responsável por atribuir significado a tudo que acontece a sua volta e, em razão disso, se fala da interpretação dos fatos. Toda a relação com o mundo começa pela percepção, ou seja, pelos sentidos. O ser humano interpreta os acontecimentos ao seu redor e procura dar sentido a cada um deles, numa dinâmica de dar sentido aos eventos do cotidiano que não é “pura”, mas que produz interpretações a partir de um contexto específico, fazendo sentido a quem se insere nele. Para Husserl, o mundo só pode ser compreendido a partir da forma como se manifesta, isto é, como aparece para a consciência humana. Não há um mundo em si e nem uma consciência em si, embora a consciência seja responsável por dar sentido às coisas. Quando se pensa numa nova abordagem, denominada Fenomenologia Existencial, surge a necessidade de compreender que tal abordagem traz a concepção de que os atos psíquicos têm início dentro das indagações filosóficas pois, uma vez que se mostra uma técnica eficiente dentro do campo da Filosofia, cresce a demanda desse tipo de fundamento dentro da ciência psicológica, como lembrado por Goto, na página 13 de Introdução à Psicologia fenomenológica: a nova psicologia de Edmund Husserl, editado em 2008. Nessa relação, o trabalho do psicólogo na perspectiva fenomenológica existencial deriva da relação entre a psicologia e fenomenologia transcendental, abordando o problema da distinção entre subjetividade psicológica e subjetividade transcendental. O método não alude apenas a um conjunto de ferramentas e procedimentos de análise de uma situação trazida num campo terapêutico, mas faz com que o profissional tenha um cuidado para desvendar o que lhe é trazido, cabendo uma interpretação para além do que é mostrado e o significado que lhe é atribuído. A psicologia fenomenológica existencial surge no cenário brasileiro como uma perspectiva humanista na década de 1970, mesma época em que a própria psicologia em si, com outras linhas teóricas, busca espaço.Yolanda Cintrão Forghieri, uma das primeiras psicólogas a trazer a prática da perspectiva humanista rogeriana (de Carl Rogers), ao se deparar com os Estudos de Edmund Husserl, citando a Filosofia Existencial, passa de uma atuação clinica com a visão humanista para uma clínica fenomenológica existencial. Na visão de Forghieri, o elo com o mundo pode não ser um lugar ou o tempo, mas uma pessoa. A angústia mediante a perda dessa pessoa ou pela falta de compreensão aponta que a relação de “Ser-no-mundo” só pode ser ressignificada na relação com outro ser. Nesse ponto, devido ao modo como se enxerga o mundo, a Psicologia Humanista e a Fenomenologia se aproximam em suas práticas, pois elas analisam o indivíduo e sua relação com a própria existência. A EXISTÊNCIA HUMANA DENTRO DA PERSPECTIVA FENOMENOLÓGICA Evangelista, em Psicologia fenomenológica existencial: a prática psicológica à luz de Heidegger, de 2016, afirma que homem e mundo não se separam. Qualquer tentativa de separação faz com que se perca a possibilidade de conhecer de fato o humano, uma vez que não é possível conhecer o outro sem conhecer o seu mundo. Com base nesse entendimento, a fenomenologia faz uso da projeção, um termo da psicanálise. O que o indivíduo projeta no mundo está ligado ao significado que ele representa, externalizado a partir de uma concepção interna. O mesmo autor cita Van Den Berg, importante teórico do método fenomenológico e que traz essa discussão sobre a projeção (mecanismo de defesa da psicanálise), declarando que, se o paciente está doente, tudo que corresponde ao seu mundo também está doente e, por consequência, seus objetos. Além disso, a abordagem fenomenológica existencial prega que o ser humano é um ser com toda a responsabilidade por meio de suas ações. Assim, ao longo da vida, ele cria um sentido para sua própria existência. A partir desse pressuposto de autonomia moral e existencial, o indivíduo faz escolhas na vida, traçando caminhos e planos. Nesse sentido, toda escolha implica numa perda ou em várias, de acordo com as várias possibilidades impostas ao indivíduo. Logo, essa é a interpretação realizada por psicoterapeutas numa visão fenomenológica existencialista, indicando que o ser humano é responsável por suas escolhas, haja vista o livre arbítrio. A avaliação subjetiva que o indivíduo realiza sobre um determinado evento pode acontecer devido a crenças irracionais. A Figura 2 demonstra que as crenças e os valores interferem na forma como uma pessoa se comporta, assim, a subjetividade muda o conceito das pessoas conforme um acontecimento. Portanto, a perspectiva de acreditar ou não em um fato é gerada pela experiência, dando margem a um sentimento de angústia, o que revela uma fragilidade humana. O ser humano é o único responsável sobre seus atos, mas vale ressaltar que há uma necessidade de orientar a sua existência para um projeto individual ou social de forma livre, o que permite fazer escolhas mais conscientes e de acordo com a essência. Nesse sentido, está presente na discussão o livre arbítrio, referente à liberdade do indivíduo fazer escolhas nem sempre positivas ou marcantes. Jean-Paul Sartre, um dos grandes percursores dentro da Fenomenologia Existencial, se torna alvo de muitas críticas devido à ideia do livre arbítrio, que ignora os princípios de uma sociedade e faz uma análise de ocorrências consideradas fora dos padrões de moralidade, que se devem ao fato de haver um consentimento embutido no que o autor chama de escolha existencial. Uma das obras mais importantes dentro da perspectiva fenomenológica existencial, o livro Ser e tempo, escrito por Heidegger, faz uma análise da existência humana, sendo essa a principal tarefa do “ser psicólogo”, termo que também define o profissional atuante numa proposta que leva a uma análise mais apurada e realista do fenômeno. EXPLICANDO A escolha existencial, vista como um dos pressupostos básicos da Fenomenologia Existencial descrita por Jean-Paul Sartre, é aquela na qual o homem se vê diante de um dos seus maiores dilemas pois, mesmo com uma normatização imposta por crenças e valores, há a consciência intencional que impulsiona escolhas e traz responsabilidade pelas consequências. O SER HUMANO E O ASPECTO TRANSCENDENTAL De acordo com o Dicionário de Filosofia de Abbagnano (1998), a transcendência é um termo que se vincula à concepção de divindade, indo para além do ser em sua existência e ultrapassando os limites da consciência. Essa compreensão parte do pressuposto de que o corpo é uma substância física e que a transcendência está ligada à alma, à natureza inteligível, sendo um aspecto incapaz de ser explicado pela ciência psicológica, que só pode observar acontecimentos que não tem explicação e que fazem parte da existência humana. Portanto, esse termo traz a ideia de que Deus está além de todas as determinações concebíveis, até mesmo do ser, da possibilidade de existência, nunca se resolvendo no possível e com o qual a única relação que o homem pode ter consiste na impossibilidade de alcançá-lo. Nesse sentido, o tema transcendência do ego é entendido como a superação da identificação com uma defensiva e socialmente imposta imagem de si, em seu sentido mais amplo, caracterizando antes uma temática transpessoal e motivando a necessidade de uma compreensão além da explicação humana, acrescentando uma característica humana para além de uma mera justificativa do existir. Para Nietzsche, a transcendência é a busca da perplexidade, denominada dentro de uma concepção comparada ao termo alienação, ou seja, a pessoa tem uma visão dualista do mundo (real e ideal), do erro, de engano e que deve ser deixado de lado em relação ao superior e completo mundo ideal, em que o humano está sempre a perseguir e se projeta nesse ideal. Nesse sentido, o ser humano é responsável pelas escolhas e consequências, algo explicitado no conceito de livre arbítrio. Os objetos do mundo são seres em si e transcendentes, ao passo que o ego (sujeito), por sua vez, é um ser transcendente e em si mesmo. Quando a consciência diz “eu penso”, ela reconhece a existência e, de algum modo, deposita no ego a sua própria espontaneidade. Por isso, cabe recordar que o ego transcendental de Husserl coloca em risco toda a teoria da intencionalidade. Sartre, como exposto no livro A Transcendência do Ego, editado em 2013, propõe que o Ego muda através do estímulo de habilidades existentes, ou de um conjunto dessas habilidades, sendo suscetível a captar e agregar para si tudo ao redor. Portanto, desde que essa escolha seja compatível com a sua realidade, o ser humano escolhe quem ele quer ser. Quando o autor se propõe a investigar a relação de consciência intencional, ele se refere ao fato do ser humano ser livre para fazer suas escolhas. Dentro dessa visão, há algum tempo, existe uma preocupação sobre a compreensão da existência humana e o aspecto transcendental, que se apesenta como uma das explicações, posto que está além de uma explicação concreta, uma vez que se associa de maneira direta à subjetividade, o que explica a consciência intencional presente nas escolhas. O SER HUMANO DENTRO DE UMA VISÃO INTEGRADORA A Fenomenologia Existencial tem como pressuposto básico apontar para uma visão integradora do ser humano, rejeitando ideias de que o ser humano nasce bom e que as relações estabelecidas o moldam e o desviam dessa bondade original. Dentro dessa visão fenomenológica existencial, não há como não destacar que o homem procura dar sentido às suas vivências, que nem sempre são vividas no presente, uma vez que é possível dirigir o pensamento para algo já vivenciado ou que se tem a expectativa de vivenciar. Definindo o homem dentro de uma visão integradora, julga-se necessário expor à condição humana, permeada por eventos internos e externos, a interpretação mediante os objetos que demonstram certa implicação no mundo. Serlivre, ter reponsabilidade e intencionalidade são características inerentes ao humano que podem e derivam de interpretações do comportamento, levando em consideração a subjetividade. Nesse mesmo sentido de compreensão, a psicologia fenomenológica salienta a ideia de Carl Rogers, um grande teórico que fundamenta a visão integradora do ser humano a partir de um método centrado na pessoa, compreendendo o homem como detentor de potenciais que necessitam de desenvolvimento e de qualidades que as facilitem, como congruência, aceitação positiva e capacidade de empatia. A visão humanista é apontada como uma das perspectivas que mais se aproximam da fenomenologia, passando a entender o homem e a relação estabelecida com o mundo, além do entendimento da forma como o homem se relaciona com seus semelhantes. Essa nova força surge numa época em que o método fenomenológico é visto como essencial e validado na tentativa de trazer uma outra concepção, dando significado e conceituando com fenomenologia existencial a compreensão do fenômeno e a existência humana. A partir de uma concepção sólida e de outras correntes, a Psicologia Humanista aparece como uma perspectiva que alcança seu lugar de respeito a nível mundial no campo da Psicologia referente à teoria, prática e pesquisa. O método humanista se aproxima da perspectiva fenomenológica e dá grande ênfase a ela pelo fato de que seu precursor, Carl Rogers, ao responder seus pacientes, facilitava a compreensão do discurso, repetindo de forma que o indivíduo pudesse se conectar ao terapeuta. Tal método, ao facilitar uma fluência livre de sentimentos e pensamentos, pode levar esse indivíduo a uma elaboração por meio de lembranças de forma empática, pois o paciente se sente seguro na relação com o psicoterapeuta. Dentro desse entendimento do livre fluir dos sentimentos, é possível pensar nos objetivos de olhar o homem como um todo dentro do aspecto da evolução, levando ao autodesenvolvimento e à autorrealização. Um outro teórico nessa linha de pensamento é Abraham Maslow, que explicita a ideia da influência do existencialismo na forma de compreender a personalidade e as escolhas de indivíduo para alcançar seus objetivos e desenvolver seu bem-estar. 4/5 Aspectos conceituais sobre a Clínica Psicológica May, em A Psicologia e o dilema humano (2009), afirma que a fenomenologia existencialista se desenvolve na Europa, dentro da Psicologia e da Psiquiatria. Sob diversas ênfases, o autor ressalta que, nesse movimento de desenvolvimento da perspectiva fenomenológica, três pontos de vista se sobressaem. O primeiro olha de outra maneira para realidade do paciente por meio do método fenomenológico em si, algo abordado por Edmund Husserl. A segunda questão apontada é a de que a psicoterapia baseada na fenomenologia existencial se propõe a compreender, dentro de uma visão holística, o homem em sua totalidade. A terceira ênfase faz uma junção das duas primeiras e tem como definição como um termo referente à Ontologia, mas ainda pouco conhecido dentro da Psicologia. Segundo o aristotelismo, parte da filosofia tem por objeto o estudo das propriedades mais gerais do ser, a partir da infinidade de determinações que, ao qualificá-lo particularmente, ocultam sua natureza plena e integral. Figura 3. Ilustração representando Martin Heidegger, filósofo alemão. Fonte: Shutterstock. Acesso em: 06/08/2021. A atuação do profissional do psicólogo numa perspectiva fenomenológica existencial traz a proposta de que o paciente é compreendido na relação particular e concreta, ou seja, na relação paciente e terapeuta, diante de uma relação estabelecida no encontro do terapeuta-paciente. Nesse sentido, o atendimento do paciente acontece a partir dele mesmo e da maneira como ele vive, num encontro existencial. Heidegger é um dos teóricos que apontam que a Ontologia permite a elucidação da vivência do paciente na situação e na sua relação particular e concreta que se estabelece a cada encontro. A atitude do terapeuta permite que o paciente compreenda sua situação dentro de uma posição de interrelação. A FENOMENOLOGIA E A PSICOTERAPIA A fenomenologia é descrita como a forma de olhar o ser humano no mundo a partir de como ele próprio interpreta determinados fenômenos de sua existência. Dessa forma, fazer uma relação da fenomenologia dentro da atuação psicoterápica é importante para criar um elo entre a prática e o indivíduo, possibilitando que ele se beneficie do trabalho psicológico. Conforme descrito por Holanda (2007), o campo fenomenológico está sempre em encontro com outro campo, estabelecendo uma relação dualista, em que há a partilha de experiências e sentimentos mútuos. Contudo, deve-se ficar claro que não há a troca de lugar, mas, sim, uma projeção em campos diferentes. Nesse sentido, entende-se que a psicopatologia necessita de uma análise em sua totalidade e, diante dessa realidade, a abordagem fenomenológica se mostra como uma revolução de paradigma. Isso porque, a partir da adoção dessa metodologia, a doença passa a ser entendida dentro de pressupostos inerentes à concepção humana, buscando-se a compreensão da doença mental de maneira geral, o que ressalta a importância do terapeuta e do setting terapêutico. Assim, quando aplicada à psicoterapia, a fenomenologia subentende a postura do indivíduo, analisando sua atitude no encontro com o fenômeno e revelando, assim, a dificuldade pessoal em entender sua subjetividade quando esta entra em contato com a subjetividade do outro – uma relação intersubjetiva e de ser-no-mundo. Os psicólogos que atuam com a perspectiva fenomenologia devem expressar uma atitude que leve o paciente, de acordo com o que ele pensa e sente, a trilhar um percurso para o alcance da autorrealização. Logo, o papel do terapeuta envolve aceitar o que é trazido pelo paciente, sem que haja qualquer tipo de julgamento, uma vez que o conteúdo expresso equivale ao que o indivíduo vivencia. De acordo com Heidegger: O campo por onde passamos lá fora, mostra-se como o campo que pertence a alguém, que é por ele mantido em ordem; o livro usado foi comprado em tal livreiro, […] o barco ancorado na praia refere-se a um conhecido que nele viaja ou então um barco desconhecido mostra outros (HEIDEGGER, 1998, p. 169, adaptado). Com essa afirmação, enfatiza-se que os encontros entre os seres acontecem de forma diferente em um mesmo mundo, sendo importante compreender o contexto em que cada um está inserido e como o ambiente influencia suas decisões. Logo, busca-se um profissional do encontro que assuma uma postura de compartilhamento da existência. Ele deve se considerar como um ser limitado também, mas que busca desvendar os obstáculos que impedem aquele que o procura de encontrar seu verdadeiro sentido para a existência. O encontro terapêutico possibilita ao indivíduo analisar suas decisões e refletir sobre valores e crenças responsáveis por quaisquer escolhas que venha a ter. Assim, partindo da premissa de não julgar, tende-se a compreender as influências existentes, com base na subjetividade, a qual pode ser descrita como a percepção do eu. Portanto, nessa abordagem, o campo terapêutico tem um papel essencial devido à relação estabelecida, uma vez que o aspecto do vínculo é abordado de maneira particular. Com isso, objetiva-se levar o paciente a viver de forma livre e plena, havendo resposta positiva frente ao processo terapêutico e permitindo a ele o autoconhecimento em consequência do desenvolvimento de suas potencialidades. 5/5 O conceito de saúde e doença e a questão do normal versus patológico O conceito de saúde se modifica conforme o contexto em que o indivíduo está inserido, sendo preciso analisar o tempo, a cultura e os valores aos quais ele está relacionado. Scliar (2007) reforça tal ideia, afirmando que a conceituação de saúde carrega a ligação direta com alguns aspectos, como fatores econômicos e políticos.Logo, diversos fatores devem ser considerados para que haja uma definição adequada. No que concerne à época, por exemplo, saúde e doença foram vistas como situações de grande interferência de concepções divinas. Diante desse panorama histórico, apareciam como uma espécie de desobediência frente às regras impostas pela igreja. O entendimento sobre saúde foi descrito ainda como ausência de doença. Porém, com os avanços em estudos, houve uma reformulação conceitual, passando-se a entender a saúde como a capacidade de lidar de forma satisfatória com as adversidades do dia a dia das pessoas. Dessa forma, ela pode causar prejuízos de acordo com as possíveis reações a situações e até mesmo restabelecer bem-estar físico e mental. Na visão fenomenológica, doença e saúde, mais especificamente a primeira, são concebidas como tentativas de preservação do ser por parte do indivíduo. A exemplo dos acometidos por uma doença mental, há uma dificuldade de falar sobre o assunto, uma vez que os quadros podem resultar em sofrimento e, muitas vezes, são frutos de preconceito na sociedade. Entretanto, sendo uma condição como qualquer outra doença que venha a atingir um indivíduo, ela possui tratamento e, por isso, necessita de uma constante compreensão, fato este que se expande para o estudo do funcionamento cerebral (PAREKH, 2018). Permeada por valores e crenças responsáveis por decisões, ressalta-se que a relação entre saúde, doença e concepção do dilema humano é influenciada e influencia a percepção do indivíduo. Por isso, dentro da abordagem fenomenológica, o termo responsabilidade se apresenta com um fator determinante a ser analisado. A RELAÇÃO ENTRE A SAÚDE E A DOENÇA NA FENOMENOLOGIA Os conceitos de saúde e doença devem ser analisados de acordo com a evolução histórica e a partir de um contexto cultural, social, político e econômico. Isso porque houve uma mudança das ideias, diretamente ligadas à experiência humana. A exemplo de tal evolução, tem-se a Lei Antimanicomial, que se tornou um marco para o campo da Psicologia. Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS, 1978), a saúde não é ausência da doença, e, sim, um conjunto de habilidades específicas que determinam como uma pessoa lida com situações adversas a seu cotidiano. CONTEXTUALIZANDO A Lei Antimanicomial n. 10.216 (BRASIL, 2001) dispõe sobre a proteção e os direitos das pessoas portadoras de transtornos mentais e redireciona o modelo assistencial em saúde mental, criando as bases legais para um cuidado que respeite os direitos humanos e busque tratar em liberdade, com prioridade para a rede ambulatorial de serviços. Com relação aos hospitais psiquiátricos antes permitidos, Antonin Artaud, escreveu em 1925 uma carta relatando o sofrimento dos pacientes. Para ler o conteúdo dela, acesse o site da Rede Humaniza SUS. De acordo com Frayze-Pereira (1984, p. 22), “se o normal se define mediante a execução de um projeto normativo, este, ao mesmo tempo que engendra o anormal (o anormal é condicionado pelo normal), é acionado por ele (o anormal é condição do normal)”. Nesse sentido, a relação estabelecida entre os conceitos de normalidade e anormalidade é concebida diante de um cenário que depende da análise da conjuntura em que foi desenvolvida em uma determinada sociedade. Assim, considera-se o que é valorizado e qual é o entendimento do conceito de doença que leva um ser a ser normal ou anormal. Dentro da fenomenologia, o conceito de doença está diretamente ligado ao fato de o ser humano ser visto pelos papéis que exerce na sociedade, a qual é criadora de padrões. Quem foge a esses padrões se apresenta como um ser anormal e, com isso, não é possível distinguir o normal do patológico, uma vez que a estrutura de saúde está relacionada aos dois conceitos. ASSISTA O filme Nise: o coração da loucura (2016), dirigido por Roberto Berliner, retrata a história de Nise da Silveira, na década de 1950, que revolucionou o tratamento psiquiátrico, contrariando seus colegas. Essa profissional inicia uma nova forma de lidar com os pacientes por meio da arte e ressignifica a doença de seus pacientes. Nesse sentido, a doença mental deve ser entendida como um produto da interação entre as condições de vida social, a trajetória específica do indivíduo e sua estrutura psíquica. Ela pode ser justificada de duas formas: por meio de um processo orgânico; ou consequência de processo psicofuncional. Ao se questionarem sobre a origem das doenças mentais, os profissionais podem se deparar com uma questão difícil de ser respondida. Uma das possíveis respostas é a cser_educacional de identidade vivenciada pelos homens nos tempos atuais. Ela pode desencadear o fenômeno da ansiedade, que pode levar à destruição da capacidade de um ser interpretar de forma positiva suas experiências, havendo uma despersonalização e, por consequência, o adoecimento mental. Por conseguinte, compreender o significado da doença mental é, em muitos casos, como montar um quebra-cabeça. Para tal, faz-se necessário formular pressupostos ontológicos, uma vez que o terapeuta não conhece muito sobre o paciente, além da busca por uma centralidade perdida, que pode ter acontecido devido à angústia ou à ansiedade, por exemplo. Atenta-se ainda à concepção sobre a corporeidade, especificamente humana, que designa o corpo vívido ou existencial, sendo uma noção criada por alguns teóricos da Psicologia. Também descrita como conflito existencial, quando se compreende a ideia de corporeidade, pode-se perceber a enfermidade como uma ruptura da unidade do corpo, que, para a fenomenologia, não pertence ao ser humano. Essa ruptura representa a perda de funcionalidade e controle que o indivíduo tem sobre seu corpo, fazendo com que a doença ou enfermidade se revele como um desgaste na capacidade racional diante da existência. A perda da familiaridade com seu próprio corpo representa também a falta de liberdade, uma vez que, geralmente, há a submissão a tratamentos que levam a uma cisão com a realidade. A liberdade, dessa forma, é entendida como se fosse direcionada por outros. Nesse sentido, a fenomenologia pode ser de grande contribuição para a situação de adoecimento. Dentro da prática clínica, ela permite que o ser humano na vivência de um dilema, caracterizado por um sentimento dúbio, enfrente o que ele é, o mundo e como ele se apresenta, ou seja, a relação com o objeto e consigo próprio. O SOFRIMENTO PSICOLÓGICO O sofrimento é uma questão que permeia a humanidade, sendo observado de diversas maneiras, com várias terminologias e formas de ser compreendido. Uma dessas formas baseia-se em explicar a existência humana diante da verificação de que o humano possui um vazio existencial que causa solidão. Esse vazio pode ser caracterizado como uma marca de como as pessoas são e tem sido frequentemente uma das principais queixas presentes nos consultórios, aliada às crescentes dificuldades de estabelecer relacionamentos duradouros e amorosos verdadeiros. O sofrimento nasce de uma relação de causa e efeito e da interpretação que o indivíduo faz diante de uma determinada vivência. Nesse sentido, a atuação frente ao sofrimento precisa ser construída por meio de uma dialética que possa ser investigada a partir da compreensão da subjetividade. Figura 5. Demonstração do sofrimento em diversos contextos. Fonte: Shutterstock. Acesso em: 06/08/2021. A problemática do sofrimento psíquico está no fato de que ele pode se tornar patológico. Isso ocorre pois ele pode levar a uma adaptação do indivíduo com relação a uma determinada situação, impedindo o desenvolvimento de sua potencialidade de maneira positiva e o estabelecimento de relações interpessoais de forma assertiva. Perante o sofrimento de uma pessoa que procura ajuda, existe uma perspectiva de que isso ocorre devido a um desequilíbrio. Os sintomas apresentados estão, assim, diretamente associados à maneira como o indivíduomantém sua existência, aspecto que está em desequilíbrio e pode levar a um desajustamento. Nesse sentido, o ajustamento é necessário para que a centralidade seja mantida. Pode-se dizer que a noção de ser-no-mundo, levantada pela fenomenologia, não se dá apenas nas relações que se estabelece consigo mesmo e com os outros; está na abertura do ente em sua totalidade. A perspectiva de totalidade está determinada pelo cuidado e também pelo fato de que o próprio ser é experimentado como um ser no mundo. Conforme descrito por May (2009), diante da realidade de pacientes que precisam de auxílio para o ajustamento, a psicoterapia necessita da fenomenologia para tecer uma análise diante da relação entre terapeuta e paciente, que tem origem na clássica transferência. A transferência, assim como outros conceitos trazidos por Freud (1976), designa uma ampliação da influência da personalidade, ou seja, a compreensão de que vivemos nos outros e eles, em nós. Figura 6. Conceito de si mesmo, como a pessoa se vê e na relação com o outro. Fonte: Shutterstock. Acesso em: 06/08/2021. Dessa forma, a abordagem fenomenológica auxilia a responder algumas questões formuladas, a exemplo de como o ser humano pode se relacionar com outro sem que haja interferências. Essa resposta é possível, em muitos casos, porque se entende que a transferência acaba por contribuir para uma distorção na relação terapeuta e paciente. Agora é a hora de sintetizar tudo o que aprendemos nessa unidade. Vamos lá?! SINTETIZANDO O objetivo dessa unidade foi apresentar um panorama geral da Psicologia fenomenológica como uma abordagem que tem como principal fundamento a compreensão do ser humano a partir da relação que este estabelece consigo próprio e com o mundo. A fenomenologia tem suas raízes na Filosofia, buscando tornar racionais e científicas questões que permeiam a subjetividade humana. Para compreender a doença com auxílio dessa perspectiva, é preciso entender o conceito de normalidade, partindo do pressuposto de que o normal é uma construção social. Ademais, existe a necessidade de contextualizar cada uma das questões que levam o indivíduo a desenvolver um quadro de doença que o leve a sofrimento psíquico. Dessa forma, indica-se uma atuação mais humanizada para que sejam criadas estratégias de enfrentamento frente a determinados problemas. Assim, para auxiliar sua trajetória como psicoterapeuta, cabe ressaltar que a relação que se estabelece com o paciente, apesar de necessária, depende da capacidade de separar o que é seu e o que é do outro e de ser empático. Assim, ao considerar o uso da fenomenologia, busca-se não somente experimentar o sofrimento do outro, mas também compreender o que o fez ter essa percepção diante de um fenômeno, possibilitando a ele a mudança necessária. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ABBAGNANO, N. Dicionário de Filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 1998. BRASIL. Lei n. 10.216, de 6 de abril de 2001. Diário Oficial da União, Poder Legislativo, Brasília, DF, 9 abr. 2001. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/leis_2001/l10216.htm>. Acesso em: 06 ago. 2021. EVANGELISTA, P. E. R. A. Psicologia fenomenológica existencial: a prática psicológica à luz de Heidegger. Curitiba: Juruá, 2016. FREUD, S. A dinâmica da transferência. In: FREUD, S. Obras completas. Rio de Janeiro: Imago, 1976. 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