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99 Psicologia & Sociedade; 17 (2): 99-104; mai/ago.2005 Somos viajantes imersos em um mundo com o qual estamos em permanente diálogo. O que isso significa? A epígrafe apresentada nos dá algumas in- dicações nesse sentido. O viajante em questão é Mar- co Polo, cidadão italiano que se aventurou a conhecer outras culturas, a sair de um determinado lugar - de sua cidade – e, andando em princípio sem roteiro pré- vio, permitiu se defrontar com o desconhecido. Nesse percurso, o que encontrou, mais do que a diferença, foi a si mesmo, até então não estranhado e, portanto, SUJEITO E ALTERIDADE: REFLEXÕES A PARTIR DA PSICOLOGIA HISTÓRICO-CULTURAL Andréa Vieira Zanella Universidade Federal de Santa Catarina RESUMO: A temática constituição do sujeito vem se caracterizando como objeto de discussões em diferentes orientações teórico-metodológicas da Psicologia e é importante na medida em que problematiza tanto o objeto dessa ciência como a forma com que é abordado. A temática é discutida neste texto tendo como referencial de base os aportes teóricos de L.S.Vygotski. Na perspectiva desse autor, a especificidade humana decorre da dupla relação que se estabelece com a realidade: via atividade, o ser humano se apropria da cultura e concomitantemente nela se objetiva, constituindo-se assim como sujeito. Desse modo, a dimensão singular é inexoravelmente constituída e constituidora do social, o que pode ser tematizado como alteridade, como a dimensão de um outro ou das relações com outros. Palavras-chave: Alteridade; relações eu-outro;, psicologia histórico-cultural; L.S.Vygotski. PERSON AND OTHERNESS: REFLECTIONS FROM HISTORICAL-CULTURAL PSYCHOLOGY ONWARDS ABSTRACT: The theme of the subject’s constitution has been characterized as object of updated discussions within different areas of knowledge and most specifically in severeal theoretical-methodological orientations in Psychology. This matter is relevant because it enquires about the object of this science as well as the way it is approached. Based on the presupposition of the eminently social character of human gender, it brings out the need of entering into dialogue with other areas of knowledge as well as delimiting specific areas of analysis, which allow the psychological science to develop and justify itself as locus of knowledge. The historical-cultural psychology perspective says that the human specificity comes from the dual relation established with reality: through activity the human being assimilates culture and concomitantly develops himself as person. Consequently, the singular dimension is inexorably developed and it develops social, which can be known as otherness, as well as the other’s dimension or the relations with the other. Additionaly, other issues need to be inquired, such as the consciousness, the unconsciousness, and the affections, which will be discussed here having as reference the theory of Vygotski. Key-words: Otherness, myself-other relations, historical-cultural psychology, L.S.Vigotski. Os outros lugares são espelhos em negativo. O viajante reconhece o pouco que é seu descobrindo o muito que não teve e o que não terá. Ítalo Calvino desconhecido. Poderíamos pensar então nos outros lugares a que Calvino se refere como não somente circunscri- tos a espaços geográficos, mas também a tudo que nos cerca e do qual nos diferenciamos, caracterizan- do-se assim como referência para o próprio reconhe- cimento. Essas questões iniciais remetem a uma temática que vem sendo discutida pela psicologia: a da alteridade. Consultando a enciclopédia Larousse 100 Zanella, A.V. “Sujeito e alteridade: reflexões a partir da Psicologia Histórico-Cultural” Cultural (1998), encontramos seu significado como “Estado, qualidade daquilo que é outro, distinto (antônimo de Identidade)” (p 220). A mesma enciclo- pédia apresenta o significado de alteridade para a filosofia e psicologia, remetendo a primeira à “... re- lação de oposição entre o sujeito pensante (o eu) e o objeto pensado (o não eu)” e, a Segunda, às “relações com outrem”. Significados, no entanto, como nos esclarece Vygotski (1992), apesar de consistirem na “zona mais estável dos sentidos”, são social e historicamente pro- duzidos e, portanto, mutáveis. Não é de estranhar que as definições citadas, apesar de apresentarem um eixo comum – o outro -, referem-se a olhares diferentes sobre a mesma questão. Problema maior se apresenta nessas definições: a perspectiva da psicologia é trazida como una, quando essa ciência se caracteriza pela pluralidade, pela diversidade de leituras a respeito das relações sujeito-sociedade que resultam em teori- as antagônicas sobre a constituição do sujeito. Não é objetivo deste trabalho adentrar nessa diversidade mas pontuar a questão para, a partir de algumas leituras atuais sobre a temática, resgatar contribuições de L.S.Vygotski que nos ajudam a discuti-la. ALTERIDADE: ALGUNS OLHARES O conceito de alteridade tem aparecido com relativa freqüência em espaços de discussão da psico- logia. Jodelet (1998) destaca que a questão da alteridade vem sendo tratada há muito tempo por uma diversidade de espaços intelectuais que vão desde a filosofia às ciências ditas humanas e sociais, sendo que a psicologia esteve ausente desse debate até a emergência da abordagem das representações soci- ais, inaugurada por Moscovici. A temática, no entanto, sempre esteve pre- sente nas reflexões da antropologia. Para essa ciên- cia, a alteridade se constitui, desde a sua emergência, em desafio a ser explicado, posto que a antropologia se estrutura sobre a temática cultura. Nesse sentido, tem prestado relevantes contribuições na medida em que suas investigações tratam de mostrar o outro como diferença, desvendando suas características e especificidades. Das leituras do diverso calcadas na comparação com a cultura européia que marcaram seu inicio ao reconhecimento e defesa das diversida- des um longo trajeto foi percorrido, sendo que o desa- fio da ciência antropológica é hoje muito maior. Afi- nal, se no passado o outro era de fato dife- rente, distante e compunha uma reali- dade diversa daquela de meu mundo, hoje, o longe é perto e o outro é também um mesmo, uma imagem do eu inverti- da no espelho, capaz de confundir certe- zas pois, não se trata mais de outros povos, outras línguas, outros costumes. O outro hoje, é próximo e familiar, mas não necessariamente é nosso conhecido. (Gusmão, 1999, pp. 44-45) As leituras psicológicas da temática, por sua vez, incorrem de um modo geral, segundo Jodelet (1998), em uma perspectiva que encerra a diferença em si mesma, posto que “...ao designar o caráter do que é outro, a noção de alteridade é sempre colocada em contraponto: ‘não eu’ de um ‘eu’, ‘outro’ de um ‘mesmo” (p. 48). Destacando a alteridade como “pro- duto de duplo processo de construção e de exclusão social que, indissoluvelmente ligados como os dois lados duma mesma folha, mantém sua unidade por meio dum sistema de representações” (Jodelet, 1998, pp. 47-48), a autora defende que sua análise deve compreender tanto os níveis interpessoal e intergrupal. Em outra perspectiva e a partir do diálogo com a física, Rolnik (1992) define alteridade como: ...o plano das forças e das relações, onde se dá o inelutável encontro dos seres, encontro no qual cada um afeta e é afe- tado, o que tem por efeito uma instabilização da forma que constitui cada um destes seres, produzindo trans- formações irreversíveis. Em outras pala- vras, a existência inelutável do plano da alteridade define a natureza do ser como heterogenética. (p. 1) Diferenciando a identidade – esfera reconhe- cida, consciente, visível – do processo permanente de subjetivação, que compreende a dimensão invisível, do devir-outro, a autora destaca o inconsciente como “...a dimensão em que se produzem as diferenças, nosso desassossego” (Rolnik, 1995, p. 152). Visível e invisí- vel expressam, desse modo, vetores da subjetividade que Rolnik identifica como homem da moral e ho- mem da ética: o primeiro é o homem da consciência,que nos possibilita operar no mundo vigente. O ho- mem da ética, em contrapartida, é o vetor de nossa subjetividade que transita no invisível: É o homem do inconsciente: operador da produção de nossa existência como obra de arte. Ele também guia nossas escolhas, só que selecionando o que fa- vorece e o que não favorece a vida, ten- do como critério a afirmação de sua potência criadora – daí porque chamá- lo de ‘ético’. (pp. 154-155) Destaque pois é dado, nas leituras psicológi- cas atuais, à dimensão da relação com o outro, seja através da defesa de análises que considerem aspec- tos interpessoais e intergrupais, como em Jodelet (1998), ou aos processos de subjetivação, como des- 101 Psicologia & Sociedade; 17 (2): 99-104; mai/ago.2005 tacado por Rolnik (1995). A essas perspectivas parece importante resgatar outra que, embora originada nas primeiras décadas do século XX, apresenta-se como atual: trata-se da teoria de Vygotski, a qual contribui com o debate sobre a alteridade a partir da análise do espaço intrapsicológico, entendido como inexoravelmente relacionado ao contexto social, interpsicológico. Sobre Sujeito e Alteridade na Perspectiva His- tórico-Cultural O termo alteridade aparece com pouquíssima freqüência nos escritos de L.S.Vygotski1. A dimensão de outro, ou mais adequadamente falando, da rela- ção com um outro é, por sua vez, uma constante: as explicações do autor sobre a constituição do psiquismo humano fundam-se no pressuposto de que esta se ori- gina no contexto das relações sociais. Referindo-se à Tese VI sobre Feuerbach, Vygotski (1995, p. 151) des- taca: “Modificando a conhecida tese de Marx, poderí- amos dizer que a natureza psíquica do homem vem a ser o conjunto de relações sociais transladadas ao in- terior e convertidas em funções da personalidade e em formas de sua estrutura”. Mas como isso acontece? Seguindo a tradi- ção marxista, para Vygotski é através da atividade humana que o ser humano transforma o contexto so- cial no qual se insere e nesse processo constitui a si mesmo como sujeito, ou seja, constitui o seu psiquismo. A história do desenvolvimento da sociedade e de cada pessoa, portanto, está diretamente relacionada às transformações da atividade humana e dos motivos que a impulsionam. Segundo Lúria (1986) A atividade vital humana caracteriza-se pelo trabalho social e este, mediante a divisão de suas funções, origina novas formas de comportamento, independen- tes dos motivos biológicos elementares. A conduta já não está determinada por objetivos instintivos diretos... O traba- lho social e a divisão do trabalho provo- cam a aparição de motivos sociais de comportamento. É precisamente em re- lação com todos esses fatores que no homem criam-se novos motivos comple- xos para a ação e se constituem essas formas de atividade psíquica específicas do homem. Nestas, os motivos iniciais e os objetivos originam determinadas ações e essas ações se levam a cabo por meio de correspondentes operações es- peciais. (pp. 21-22) A psique humana, portanto, não é dada e nem tampouco tem seu desenvolvimento caracterizado por etapas que pressupõem o seu ápice: necessário refe- rir-se ao processo de sua constituição, social já em sua origem e marcado tanto pelas conquistas históri- cas do gênero humano quanto pelas marcas singula- res que socialmente produzimos. Considerando as relações entre subjetividade e objetividade, processos psicológicos e fisiológicos, Vygotski destaca que a psique humana consiste na expressão subjetiva dos processos cerebrais, “como uma faceta especial, uma característica qualitativa especi- al das funções superiores do cérebro” (1991, p.100). Compreende, a psique humana, os processos psicoló- gicos - como memória, atenção, linguagem, pensa- mento... – e processos emocionais que estão necessa- riamente a estas relacionados, sejam conscientes ou não. Destaca o autor que “...é preciso considerar esta (a psique) como parte integrante de um processo com- plexo que não se limita em absoluto a sua vertente consciente; por isso consideramos que na psicologia é completamente lícito falar do psicologicamente cons- ciente e inconsciente: o inconsciente é potencialmente consciente” (ibid., p.108) Consciente e inconsciente, portanto, referem- se nesta perspectiva não a instâncias psíquicas, mas fundamentalmente a características da própria ativi- dade humana, seja esta objetivada sob a forma de palavra, gesto, expressão ou outro signo qualquer. Consciente e inconsciente afirmam que nossas carac- terísticas singulares são produzidas como resultado da complexa trama entre objetivação e subjetivação, sendo todos e cada um marcado por aquilo que sabe e escolhe e, ao mesmo tempo, por aquilo que escapa, que é invisível e não capturável, mas que passa sem deixar vestígio. Por sua vez, a característica demarcadora da atividade humana, entendida como categoria explicativa para o desenvolvimento tanto filo quanto ontogenético e que nos permite afirmar que a psique humana é social em sua origem, é o fato de ser medi- ada. Se nos escritos marxistas encontram-se referên- cias quanto às ferramentas técnicas como mediado- ras da atividade (Marx & Engels, 1989), nas obras de Vygotski (1991, 1992, 1995, 1996) os signos apresen- tam-se enquanto ferramentas simbólicas responsáveis pelas especificidades do psiquismo humano e sua con- dição essencialmente mediada. Considerados como instrumentos psicológi- cos, Vygotski (1991) refere-se aos signos2 como “...dis- positivos sociais para o domínio dos processos pró- prios ou alheios” (p. 65), como instrumentos que re- organizam a operação psíquica na medida em que possibilitam a regulação da própria conduta. Permi- tem, assim, a inserção do homem na ordem da cultu- ra e o estabelecimento de relações qualitativamente diferenciadas com a realidade: ao invés de diretas e imediatas, estas passam a ser mediadas pelos signos, pela cultura3. 102 Zanella, A.V. “Sujeito e alteridade: reflexões a partir da Psicologia Histórico-Cultural” Consistindo os signos em formas de lingua- gem, estabelece-se assim a relação entre linguagem e consciência: ...se a linguagem é consciência que exis- te na prática para os demais e, por con- seguinte, para si mesmo, é evidente que a palavra tem um papel destacado não só no desenvolvimento do pensamento, mas também no da consciência em seu conjunto... A consciência se expressa na palavra assim como o sol se expressa em uma gota d’água. A palavra é para a consciência o que o microcosmo é para o macrocosmo, o que a célula é para o organismo, o que é o átomo para o uni- verso. É o microcosmo da consciência. A palavra significativa é o microcosmo da consciência humana. (Vygotski, 1992, pp. 346-347) A palavra, por sua vez, comporta duas di- mensões: a fonética e a semântica. Se a primeira diz respeito à materialidade física do signo, a segunda refere-se às propriedades do signo em si, ou seja, ao fato deste expressar a realidade de forma generaliza- da. Desse modo, destaca-se a afirmação de Vygotski (1991) de que “a consciência em seu conjunto tem estrutura semântica” (p. 129). Se o que caracteriza a consciência é o fato de ser semioticamente mediada, a origem social da cons- ciência a que se fez referência anteriormente é explicada pela dimensão inexoravelmente social dos signos. Estes resultam da atividade humana conjunta e sua origem remonta aos primórdios da nossa civili- zação, quando a luta pela sobrevivência demandou a comunicação entre os próprios homens. Produzidos coletivamente, os signos são particularmente apropri- ados e, ainda que tornados próprios, trazem a marca do contexto, da época e do grupo social em que se originam. Os signos, portanto, relacionam inexoravelmente sujeito e sociedade, eu e outro, fato este explicado por Bakhtin (1990) ao referir-se à pa- lavra: Na realidade, toda palavra comporta duas faces. Ela é determinada tanto pelo fato de que proce- de de alguém, como pelo fato de que se dirige para alguém. Ela constitui justamente o produto da interação do locutor e do ouvinte.Toda palavra serve de expressão a um em relação ao outro. Através da palavra, defino-me em relação ao outro, isto é, em última análise, em relação à coletividade. A palavra é uma espécie de ponte lançada entre mim e os ou- tros. Se ela se apóia sobre mim numa extremidade, na outra apóia-se sobre o meu interlocutor. A palavra é o território comum do locutor e do interlocutor. (p. 113) Voltamos, nesse momento, à temática foco deste trabalho: a questão da alteridade. Pelo exposto até então é possível afirmar que, na perspectiva de Vygotski, a dimensão da relação com um outro é fundante do próprio sujeito, pois ainda que “...a sós consigo mesmo, este segue funcionando em comuni- cação” (Vygotski, 1987, p. 162). Ou seja, a existência de um eu só é possível via relações sociais e, ainda que singular, é sempre e necessariamente marcado pelo encontro permanente com os muitos outros que caracterizam a cultura. A contribuição de Vygotski à discussão sobre a alteridade consiste, pois, como original no sentido de que explica a base desse encontro: este se funda na utilização dos signos como ferramentas mediadoras da atividade caracteristicamente humana. Produzidos socialmente, estes comportam inexoravelmente tanto uma dimensão coletiva quanto privada, são porta- vozes tanto da história social humana quanto das his- tórias dos sujeitos que os utilizam. O encontro com um outro, portanto, entendi- do enquanto alteridade, é característico de toda e qualquer atividade humana, desde que mediada. Essa distinção se faz necessária porque Vygotski, ao falar sobre as relações sociais, destaca que estas podem ser tanto imediatas quanto mediadas. Se a característica das primeiras é o fato de se basearem nas formas ins- tintivas do movimento e da ação expressiva (Vygotski, 1987), as relações mediatizadas entre as pessoas fun- dam-se nos signos, os quais possibilitam a comunica- ção. Duarte (1992) adverte, no entanto, que “... até mesmo a relação aparentemente mais imediata entre dois indivíduos é uma relação mediatizada pelas objetivações genéricas, ou seja, é uma mediação his- tórica” (p. 133), o que relativiza a afirmação de Vygotski da possibilidade de relações imediatas. Ou- tra questão que merece ser apontada é o fato de que a mediação caracteriza não somente a relação social, mas também a relação consigo mesmo, esta igual- mente social, conforme apontado anteriormente. Diferencia-se, desse modo, as contribuições de Vygotski das apresentadas anteriormente. Se Jodelet (1998) chama a atenção para a necessidade de análi- ses que compreendam os níveis interpessoal e intergrupal, Vygotski destaca uma outra dimensão igualmente relevante: a intrapsicológica, relaciona- da inexoravelmente à interpsicológica. Rolnik (1992), por sua vez, chama a atenção para a processualidade intrínseca da subjetividade, resultante do encontro com o outro, não só humano. Este é desestabilizador e, enquanto tal, anunciador do novo, produtor de heterogênese. Apesar das proxi- midades das explicações no que se refere ao encontro com o/um outro, em Vygotski esse encontro pode pro- 103 Psicologia & Sociedade; 17 (2): 99-104; mai/ago.2005 mover tanto a heterogênese quanto a homogênese, posto que é uma constante em toda e qualquer ativi- dade humana. Aspectos, talvez, a serem melhor aprofundados a partir de suas reflexões, fundamen- talmente as que se referem à dimensão da produção social da diferença, ou às características da atividade humana não consciente/inconsciente, as quais o au- tor faz referência porém não aprofunda, posto que sua obra é marcada por uma preocupação em expli- car a consciência humana ou, mais especificamente, a possibilidade da atividade humana constituir-se como consciente, deliberada, auto-regulada. À GUISA DE CONCLUSÕES Em todos os seus escritos, Vygotski tematiza, seja claramente ou de forma velada, a questão da constituição da psique humana. De sua pergunta ini- cial quando se aproximou do campo psi, de seu inte- resse em explicar o processo de constituição do ser humano como produtor de cultura, até seu último tex- to, pensamento e palavra (que se encontra publicado nas Obras Escogidas II, de 1992) onde o sentido emerge como categoria fundamental na explicação tanto das características singulares quanto coletivas de cada pessoa e ao mesmo tempo de todas, a dialeticidade das relações sociais e sua historicidade estão presen- tes. Vygotski cala em relação a vários aspectos desse processo que caracteriza a cada um de nós e a todos enquanto gênero, etnia, classe, profissão, saber e não saber, lugares sociais, porém muito fala sobre o movimento em que interesses, vontades e desejos são produzidos nas relações cotidianamente e coletivamen- te vividas e que são subjetivadas, convertendo-se em diferença, em alteridade. Cada pessoa, para Vygotski (2000, p. 33), é “ um agregado de relações sociais encarnadas num in- divíduo”, donde se depreende que só há sujeito porque constituído em contextos sociais, os quais, por sua vez, resultam da ação concreta de seres humanos que coletivamente organizam o seu próprio viver. A assertiva é aparentemente simples e ao mesmo tempo complexa, pois remete a um todo, a um agregado anônimo que está visceralmente interli- gado – as relações sociais – e que ao mesmo tempo se dissipa em composições múltiplas, em infinitas possi- bilidades de vir a ser que se objetivam em cada pes- soa, que encarnam e marcam a carne que se faz gen- te, que se faz um(uma), que é indivisível. Considerar que cada pessoa é um “agregado de relações sociais encarnadas num indivíduo” signi- fica afirmar que, ao mesmo tempo há um “eu” e não há. Não há um “eu” originário, descolado dos outros, da realidade, enfim, do que o constitui como humano e como possibilidade de diferenciação. Não há essên- cia, não há a priori. Por sua vez, cada pessoa concre- ta descola aspectos da realidade a partir do que signi- fica como relevante, do que a emociona e mobiliza, constituindo assim modos de ser que são ao mesmo tempo sociais e singulares. A partir das reflexões aqui apresentadas destaca-se, por fim, que, tal como o viajante da epígrafe que reconhece o pouco que é seu no encontro com o até então desconhecido, as contribuições de Vygotski nos permitem afirmar que, mais do que reconhecer o pouco que é seu descobrindo o muito que não teve e o que não terá, o encontro permanente e incessante com um outro possibilita reconhecer a pluralidade do que se é e do que se pode vir a ser. NOTAS 1 Uma das passagens em que o apresenta é a que segue: “O que move os significados e determina seu desenvolvimento é a cooperação entre consciências. O processo de alteridade da consciência” (Vygotski, 1996, p. 187). 2 “Como exemplo de instrumentos psicológicos e de seus complexos sistemas podem servir a linguagem, as diferentes formas de numeração e cômputo, os dispositivos mnemotécnicos, o simbolismo algébrico, as obras de arte, a escrita, os diagramas, os mapas, os desenhos, todo gênero de signos convencionais, etc.” (Vygotski, 1991, p. 65) 3 “Com a invenção dos sistemas de signos, o homem armou-se de um poderoso instrumento que lhe permitiu dar à natureza e a si mesmo uma nova forma de existência: uma existência cultural. Suas relações com a natureza e com seus semelhantes alteraram-se profundamente. Com a sua entrada definitiva na “ordem simbólica”, o homem rompeu as “barreiras da sensorialidade”, tornando o real natural em um real significante, objeto de conhecimento e de comunicação, enquanto ele se tornava um ser falante e pensante. Natureza e cultura se encontram no universo do signo..., do qual o homem é o articulador” (Pino, 1992, p. 318) REFERÊNCIAS Bakhtin, M. (1990). Marxismo e filosofia da lingua- gem. São Paulo: Hucitec. Calvino, I. (1990). Cidades invisíveis. São Paulo: Com- panhia das Letras. Duarte, N. (1992). A formação do indivíduo e a objetivação do gênero humano. Tese de Doutorado não-publicada, Universidade de Campinas. Campinas, SP. Grande Enciclopédia Larousse Cultural (1998). São Paulo: Nova Cultural. 104Zanella, A.V. “Sujeito e alteridade: reflexões a partir da Psicologia Histórico-Cultural” Gusmão, N. M. M. (1999). Linguagem, cultura e alteridade: imagens do outro. Cadernos de Pesquisa (Fundação Carlos Chagas), 107 (jul.), 41-77. Jodelet, D. (1998). A alteridade como processo e pro- duto psicossocial. Em A. Arruda (Org.), Representan- do a alteridade (pp. 47-67). Petrópolis, RJ: Vozes. Lúria, A. (1988). O cérebro humano e a atividade consciente. Em L. S. Vygotski, Linguagem, Desenvol- vimento e Aprendizagem. São Paulo: Ícone. Lúria, A. R. (1986). Pensamento e linguagem: as últi- mas conferências de Lúria. Porto Alegre: ArtMed. Marx, K. & Engels, F. (1989). A ideologia alemã (Feuerbach). São Paulo: Hucitec. Pino, A. (1992). As categorias de público e privado na análise do processo de internalização. Educação e Sociedade, XII(42), 315-327. Rolnik, S. (1995). À sombra da cidadania: alteridade, homem da ética e reinvenção da democracia. Em M. C. R. Magalhães (Org.), Na sombra da cidade (pp. 141-170). São Paulo: Escuta. Rolnik, S. (1992). Diálogo e alteridade. Boletim de Novidades, 5(44), 35-44. Rolnik, S. (1992). Subjetividade e história. Trabalho apresentado no Curso de Psicanálise promovido pelo Instituto Sedes Sapientiae, São Paulo. Vygotski, L. S. (1987). Historia del desarrollo de las funciones psíquicas superiores. Ciudad de La Habana: Científico-Técnica. Vygotski, L. S. (1991). 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Recebido: 09/09/2004 1ª revisão: 24/11/2004 2ª revisão: 24/08/2005 Aceite final: 24/10/2005 << /ASCII85EncodePages false /AllowTransparency false /AutoPositionEPSFiles true /AutoRotatePages /All /Binding /Left /CalGrayProfile (Dot Gain 20%) /CalRGBProfile (sRGB IEC61966-2.1) /CalCMYKProfile (U.S. Web Coated \050SWOP\051 v2) /sRGBProfile (sRGB IEC61966-2.1) /CannotEmbedFontPolicy /Warning /CompatibilityLevel 1.4 /CompressObjects /Tags /CompressPages true /ConvertImagesToIndexed true /PassThroughJPEGImages true /CreateJDFFile false /CreateJobTicket false /DefaultRenderingIntent /Default /DetectBlends true /DetectCurves 0.0000 /ColorConversionStrategy /LeaveColorUnchanged /DoThumbnails false /EmbedAllFonts true /EmbedOpenType false /ParseICCProfilesInComments true /EmbedJobOptions true /DSCReportingLevel 0 /EmitDSCWarnings false /EndPage -1 /ImageMemory 1048576 /LockDistillerParams false /MaxSubsetPct 100 /Optimize true /OPM 1 /ParseDSCComments true /ParseDSCCommentsForDocInfo true 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