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CENTRO UNIVERSITÁRIO FAVENI HISTÓRIA DA FILOSOFIA MODERNA GUARULHOS – SP 2 SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO .................................................................................................................. 4 2 AS BASES DO PENSAMENTO MODERNO ................................................................... 5 2.1 A FILOSOFIA NA IDADE MODERNA .............................................................................. 5 2.2 A CIÊNCIA NA IDADE MODERNA ................................................................................. 8 2.3 OS ESTADOS NACIONAIS E O MERCANTILISMO.......................................................... 12 3 HUMANISMO, RENASCIMENTO E REVOLUÇÃO CIENTÍFICA .................................. 16 3.1 HUMANISMO ..........................................................................................................16 3.2 RENASCIMENTO..................................................................................................... 17 3.3 REFORMA PROTESTANTE E CONTRARREFORMA ....................................................... 20 3.4 CONTRARREFORMA ............................................................................................... 22 3.5 NICOLAU MAQUIAVEL (1469-1527) ......................................................................... 25 3.6 MICHEL DE MONTAIGNE (1533-1592) ..................................................................... 29 3.7 FILOSOFAR É APRENDER A MORRER ........................................................................ 31 3.8 REVOLUÇÃO CIENTÍFICA......................................................................................... 33 4 O PROBLEMA DO CONHECIMENTO ........................................................................... 34 4.1 RACIONALISMO ...................................................................................................... 35 4.2 O PROJETO FILOSÓFICO CARTESIANO ...................................................................... 36 4.3 O MÉTODO.............. ............................................................................................. 38 4.4 O COGITO, FUNDAMENTO DA FILOSOFIA CARTESIANA ................................................ 41 4.5 MÉTODO GEOMÉTRICO ........................................................................................... 43 4.6 EMPIRISMO ..........................................................................................................46 4.7 O EMPIRISMO A PARTIR DE BACON E O MÉTODO INDUTIVO ......................................... 48 4.8 PENSAMENTO CRÍTICO – TEORIA DOS ÍDOLOS .......................................................... 49 4.9 O EMPIRISMO A PARTIR DE LOCKE (1632 – 1704) .................................................... 50 4.10 CRÍTICA ÀS IDEIAS INATAS .................................................................................. 51 4.11 CETICISMO ....................................................................................................... 53 5 IDEALISMO ALEMÃO .................................................................................................... 57 5.1 ILUMINISMO........... ................................................................................................ 57 5.2 ROMANTISMO ........................................................................................................ 60 5.3 IDEALISMO TRANSCENDENTAL A PARTIR DE IMMANUEL KANT ..................................... 63 3 5.4 O QUE É CONHECER?............................................................................................. 65 6 BIBLIOGRAFIA BÁSICA ................................................................................................ 73 6.1 BIBLIOGRAFIA COMPLEMENTAR .................................................................... 73 4 1 INTRODUÇÃO Prezado aluno! O Grupo Educacional FAVENI, esclarece que o material virtual é semelhante ao da sala de aula presencial. Em uma sala de aula, é raro – quase improvável - um aluno se levantar, interromper a exposição, dirigir-se ao professor e fazer uma pergunta, para que seja esclarecida uma dúvida sobre o tema tratado. O comum é que esse aluno faça a pergunta em voz alta para todos ouvirem e todos ouvirão a resposta. No espaço virtual, é a mesma coisa. Não hesite em perguntar, as perguntas poderão ser direcionadas ao protocolo de atendimento que serão respondidas em tempo hábil. Os cursos à distância exigem do aluno tempo e organização. No caso da nossa disciplina é preciso ter um horário destinado à leitura do texto base e à execução das avaliações propostas. A vantagem é que poderá reservar o dia da semana e a hora que lhe convier para isso. A organização é o quesito indispensável, porque há uma sequência a ser seguida e prazos definidos para as atividades. Bons estudos! 5 2 AS BASES DO PENSAMENTO MODERNO A Idade Moderna foi um período marcado por continuidades e transformações em relação ao mundo medieval. A cultura, a economia, a política e a sociedade foram afetadas por novas visões de mundo e novos questionamentos. Em alguns aspectos, coexistiam traços do medievo com características que poderíamos atribuir à modernidade. Neste capítulo, você vai aprender a comparar e diferenciar as linhas de pensamento que surgiram na Idade Moderna com a filosofia medieval. Para isso, verá de que forma a ciência influenciou as mudanças na concepção dos indivíduos sobre sua subjetividade, sobre suas relações com a natureza e sobre o mundo e, por fim, vai analisar a relação dos Estados Nacionais com a prática mercantilista. 2.1 A filosofia na Idade Moderna Do ponto de vista cultural, compreendendo “cultura” em suas diferentes manifestações (artísticas, filosóficas, religiosas), a Idade Moderna se caracterizou pela emergência de novas visões de mundo e novos valores, que transformaram a forma de compreender o ser humano e sua relação com a natureza por meio da mescla com a cultura medieval, ou em sua total transformação. Nesse sentido, a emergência do humanismo é um marco significativo no pensamento moderno. Os humanistas, para Sevcenko (1994, p. 14), eram: [...] um conjunto de indivíduos que desde o século anterior [século XIV] vinha se esforçando para modificar e renovar o padrão de estudos ministrados tradicionalmente nas universidades medievais. Esses centros de formação intelectual e profissional eram dominados pela cultura da Igreja e voltados para as três carreiras tradicionais: direito, medicina e teologia. Estavam, portanto, empenhados em transmitir aos seus alunos uma concepção estática, hierárquica e dogmática da sociedade, da natureza e das coisas sagradas, de forma a preservar a ordem feudal. 6 Essa forma de ensino não era mais condizente com as transformações econômicas, políticas e sociais ocorridas na Europa Ocidental. Os humanistas, portanto, surgiram como um “movimento” para atualizar, dinamizar e revitalizar os estudos universitários, incluindo os “estudos humanísticos” nos currículos, ou seja, a filosofia, a história, a matemática e a retórica. Para o estudo dessas disciplinas, era necessário o domínio das línguas clássicas (grego e latim) e do árabe, do aramaico e do hebraico, o que significava, também, que esses estudos deveriam ser realizados a partir de textos dos autores da Antiguidade Clássica, excluindo-se os manuais de textos medievais. “Significava, pois, um desafio para a cultura dominante e uma tentativa de abolir a tradição intelectual medieval e de buscar novas raízes para a elaboração de uma nova cultura” (SEVCENKO, 1994, p. 15). Nesse sentido, o projeto humanista chocava-se diretamente com as práticas e os valores da Igreja Católica. Isso não quer dizer que os humanistas fossem ateus ou pagãos: “[...] eram todos cristãos e apenas desejavamreinterpretar a mensagem do Evangelho à luz da experiência e dos valores da Antiguidade. Valores esses que exaltavam o indivíduo, os feitos históricos, a vontade e a capacidade de ação do homem, sua liberdade de atuação e de participação na vida das cidades” (SEVCENKO, 1994, p. 15). É a partir dessa proposta que se desenvolve uma das características do pensamento moderno, o antropocentrismo, pois os humanistas acreditavam nas capacidades espirituais e físicas dos seres humanos em detrimento de uma cultura teocêntrica. Essa compreensão sobre os indivíduos e sobre o mundo encontrava uma enorme receptividade nos estratos burgueses da sociedade. Os “antigos” eram, para esses pensadores, uma inspiração em seus atos, suas crenças e suas realizações para o comportamento dos europeus, “[...] um comportamento calcado na determinação da vontade, no desejo de conquistas e no anseio do novo” (SEVCENKO, 1994, p. 15). Souza e Öelze (1998, p. 178) identificam nesse comportamento um “espírito de aventura”, que seria característico ao indivíduo moderno: Na aventura, procedemos de um modo diametralmente oposto: apostamos tudo justamente na chance flutuante, no destino e no que é impreciso, derrubamos a ponte atrás de nós, adentramos o nevoeiro, como se o caminho devesse nos conduzir sob quaisquer circunstâncias; [...] por isso a atividade do aventureiro frequentemente parece loucura aos olhos do homem sóbrio, porque, para que tenha sentido, ela parece ter como pré-requisito o que o insondável seja sabido. 7 Fique Atento! Como surge o interesse dos humanistas pela crítica histórica? Francesco Petrarca, um dos precursores do “movimento” humanista, afirmava que os autores e obras da Antiguidade Clássica deveriam ser recuperados a partir de uma crítica filológica (estudo da linguagem e dos textos), estabelecendo “[...] a mais perfeita versão e a leitura mais cristalina” (SEVCENKO, 1994, p. 16), pois a cultura medieval poderia ter deturpado seus sentidos. Da crítica interna a essas obras, derivou a preocupação com as circunstâncias e os períodos em que foram escritas, buscando-se as características das sociedades antigas, ou seja, a crítica histórica. Entretanto, as contribuições dos humanistas à cultura e ao pensamento moderno não se restringiram ao âmbito educativo e à temática da antiguidade. De acordo com Sevcenko (1994, p. 16), os humanistas “[...] estabeleceram em primeiro lugar as bases das línguas nacionais da Europa moderna e passaram, em seguida, ao estudo histórico das novas sociedades urbanas e dos novos Estados monárquicos. Eles davam assim sua contribuição para a consolidação dos Estados-nações modernos”. Assim, “humanistas” deixou de ser um termo utilizado para designar o movimento de renovação dos estudos universitários para abranger todos aqueles que criticavam a cultura tradicional e apoiavam um novo código comportamental e de valores, centrado no indivíduo e em sua capacidade realizadora. Mas de que forma o pensamento humanista se confrontava com a cultura medieval? Primeiramente, em relação a seu espírito crítico, voltado para a percepção da mudança e para a transformação das tradições e dos costumes. Essa atividade crítica se chocava diretamente com o pensamento medieval e os valores da Igreja Católica, caracterizados pela estabilidade, pela imutabilidade e pela preocupação com o mundo transcendental. O clero reforçava a submissão dos seres humanos a Deus, ao clero e à nobreza, exaltando valores como a disciplina, a mansidão e a piedade. Os humanistas, por sua vez, voltavam-se para o aqui e o agora, para o mundo concreto dos seres humanos em luta entre si e com a natureza, a fim de terem um controle maior sobre o próprio destino [...] valorizavam o que de divino havia em cada homem, induzindo-o a expandir suas forças, a criar e a produzir, agindo sobre o mundo para transformá-lo de acordo com sua vontade e seu interesse (SEVCENKO, 1994, p. 17). 8 A reação da Igreja Católica ao pensamento humanista foi voraz. Sevcenko (1994, p. 17-18) lembra as penas às quais foram submetidos uma série de humanistas: alguns, como Dante e Maquiavel, sofreram com o exílio, outros, como Campanella e Galileu “foram submetidos à prisão e tortura, Thomas Morus foi decapitado por ordem de Henrique VIII, Giordano Bruno e Étienne Dolet foram condenados à fogueira pela Inquisição, Miguel de Servet foi igualmente queimado vivo pelos calvinistas de Genebra, para só mencionarmos o destino trágico de alguns dos mais famosos representantes do humanismo”. 2.2 A ciência na Idade Moderna https://farolbi.com.br/o-que-e-ciencia-dos-dados/ Durante a Idade Média na Europa Ocidental, boa parte das explicações sobre os fenômenos astrológicos, climáticos e naturais era dada por componentes de fé e pela providência divina. O conhecimento era especulativo e tinha como base o dogmatismo a partir de interpretações bíblicas. Podemos afirmar que a ciência na Idade Moderna influenciou e foi influenciada pelas transformações no âmbito da cultura, já que uma de suas principais características, a experimentação, decorre de uma nova concepção de homem como 9 ser de conhecimento, ao mesmo tempo que permite reforçar a laicização, a racionalidade e a secularização da ciência. O traço mais característico da ciência moderna é a ideia de método, e mais especificamente de método hipotético-dedutivo. Tornam-se necessárias hipóteses como tentativas de solução de problemas; hipóteses das quais se deduzem consequências experimentais publicamente controláveis. É a ideia de ciência metodologicamente controlada e publicamente controlável que, de um lado, exige as novas instituições – sedes de discussões, confrontos e controles – como as academias e os laboratórios, e de outro funda a autonomia da ciência em relação à fé; [...] (REALE; ANTISERI, 2004, p. 139). Com Copérnico e Galilei, a Terra é deslocada do centro do universo, contrariando um dos principais dogmas da Igreja Católica, que compreendia o planeta como centro do universo criado por Deus, em que os seres humanos seriam o cume do processo de criação. Os impactos dessa “revolução científica” podem ser medidos a partir das seguintes perguntas, que questionavam as certezas provenientes da cultura medieval: E se a terra não é mais o lugar privilegiado da criação e se ela não é diferente dos outros corpos celestes, então não poderia haver outros homens também em outros planetas? E, ocorrendo isso, como poderia resistir a verdade da narração bíblica sobre a descendência de todos os homens de Adão e Eva? E como é que Deus, que desceu nesta terra para redimir os homens, poderia ter redimido outros eventuais homens? (REALE; ANTISERI, 2004, p. 143). Saiba mais! O surgimento e a disseminação da teoria heliocêntrica levou a profundas transformações na cultura. Blaise Pascal, pensador francês, afirmava que o silêncio eterno desses espaços infinitos lhe apavorava, o que, segundo Porto e Porto (2008, p. 4.600-4.601), seria um indício “[...] do sentimento de estranhamento do ser humano em face de um universo com o qual não mais se comunicava simbolicamente”. Com a destruição do cosmos geocêntrico, o homem moderno foi tomado por um sentimento de intensa perplexidade diante de um novo universo, impessoal e refratário à atribuição de qualquer significado simbólico. 10 As descobertas e os inventos científicos da modernidade, juntamente com as descobertas e as conquistas de outros territórios no planeta, levaram a mudanças econômicas e políticas, mas também a profundas transformações antropológicas e religiosas. Os indivíduos modernos interpretaram a revolução científica “[...] como uma confirmação de sua situação singular no Universo, pela sua aparentemente ilimitada capacidade de compreensão da realidade a sua volta, cuja máxima expressão se deu com a previsibilidadee o determinismo causal da mecânica newtoniana” (PORTO; PORTO, 2009, p. 4.601-4.602). Nesse sentido, torna-se importante a discussão sobre a relação entre o homem e a natureza, em que o mundo é objetivado, e “[...] a natureza transforma-se na fonte única, para a técnica, a ciência e a indústria” (BATISTELA; BONETI, 2008, documento on-line). O entendimento da modernidade, especialmente pela perspectiva do padrão relacional sociedade/natureza, depende, fundamentalmente, da compreensão da instauração de algumas ideias-chave, a partir das quais edifica-se o construto ideacional moderno, que serve como cosmovisão norteadora do desenvolvimento das sociedades humanas a partir do século XVII. O humanismo e o antropocentrismo, dessa forma, contribuem para o desenvolvimento de uma percepção do potencial humano para compreender a realidade e não se limitar às concepções dogmáticas religiosas. A modernidade se instaura, portanto, sobre o desvelamento dessa indeterminação existencial no humano; quer dizer, sobre a perspectiva de que nada parece prescrever, deterministicamente, nosso devir histórico. Não precisamos estar, então, necessariamente, atrelados à dinâmica natural; podemos transbordá-la, subvertê-la, subjugá-la: eis o ideário liberal da modernidade, vivenciado pelo liberalismo, que rompeu com a visão da providência divina, dando ao homem um caráter histórico e livre (BATISTELA; BONETI, 2008, documento on-line). Nesse sentido, um dos principais contribuidores para o desenvolvimento da ciência moderna foi Galileu Galilei, no sentido de sua crença no potencial cognoscente do ser humano a partir da aposta na experimentação como forma de compreensão e transformação do real. Com Galileu, ocorre “[...] uma intensificação singular no 11 processo de conhecimento humano da realidade, fundamentado na ênfase na medição da concretude do real pelo aporte do método quantitativo” (BATISTELA; BONETI, 2008, documento on-line). Segundo sua ideia, certamente original, o ser humano pode desvendar a realidade ao dirigir a atenção para as propriedades quantificáveis da matéria. “É o que empreende Galileu, cujo êxito é conhecido historicamente. Sua defesa da teoria heliocêntrica é que acaba provocando toda a revolução científica que está na base da edificação da modernidade” (BATISTELA; BONETI, 2008, documento on-line). Essa compreensão é desenvolvida, filosoficamente, por René Descartes (1596- 1650), filósofo francês do século XVII que pode ser considerado um pensador que demarca as bases do pensamento moderno, que teoriza sobre a essência do ser humano e da realidade. Segundo Batistela e Boneti (2008, documento on-line) Descartes objetivava, assim, [...] a construção de uma ciência radicalmente nova, alicerçada em bases sólidas e inabaláveis, cuja essência seria sua redutibilidade matemática e sua consequente indubitabilidade científica. Para tanto, embrenhou-se Descartes no famoso método da dúvida metódica, revendo sistematicamente todos os seus conhecimentos à procura de toda forma de dúvida e/ou certezas inabaláveis. Ao cabo do processo deparou-se com infindáveis meandros de dúvidas e uma única certeza indubitável, inabalável, matemática, sintetizada na frase “cogito, ergo sum” (penso, logo existo). Assim, podemos afirmar que tanto a ciência quanto a filosofia moderna foram constituídas paulatinamente por meio de elementos presentes na cultura medieval da Europa Ocidental, do contato cultural com outros povos a partir das rotas comerciais e dos descobrimentos e da recuperação de autores e obras da Antiguidade Clássica. Dessa forma, foi-se desenvolvendo um ideal de liberdade e de razão como formas de orientação do conhecimento, aliadas ao antropocentrismo, com a autonomia e a responsabilidade do sujeito, em contraposição ao mundo revelado da Igreja Católica e característico da cultura medieval. As verdades não seriam mais dogmas revelados a partir das escrituras ou fenômenos espirituais, mas era necessário fabricar o conhecimento (CALDAS; 2018). 12 2.3 Os Estados Nacionais e o mercantilismo O processo de formação dos Estados Modernos se deu a partir de uma série de transformações culturais, econômicas, políticas e sociais ocorridas desde a Baixa Idade Média, todas de mútua influência. https://www.educamaisbrasil.com.br A organização do sistema bancário, as grandes navegações e descobrimentos, o desenvolvimento das cidades, a perda por parte da Igreja do monopólio de explicação dos fenômenos naturais e humanos, o declínio do poder dos senhores feudais e da Igreja, tornou o homem moderno mais crente em si mesmo, deixando de almejar tanto Deus e passando a prestar mais atenção aos semelhantes e ao ambiente que o rodeava. Liberto da onipresença divina o homem se tornou livre para ser e construir o que quiser (GODINHO, 2012, documento on-line) Sabemos que o fortalecimento do poder real, com a expansão de suas atribuições, influências e poderes, decorre da perda de poder econômico e político da nobreza feudal e do apoio recebido da burguesia, que via no monarca 13 [...] um recurso legítimo contra as arbitrariedades da nobreza e um defensor de seus mercados contra a penetração de concorrentes estrangeiros. A unificação política significava também a unificação das moedas e dos impostos, das leis e normas, de pesos e medidas, fronteiras e aduanas. [...] Com a grande expansão do comércio, a monarquia nacional criaria a condição política indispensável à definição dos mercados nacionais e à regularização da economia internacional (SEVCENKO, 1994, p. 9). De acordo com Nunes (2007, p. 302): Na base das concepções fundamentais dos mercantilistas está, no entanto, uma filosofia individualista de busca do máximo lucro a partir do aumento da produção e do comércio. A atuação dos regimes mercantilistas caracterizou- -se, de resto, pela ajuda prestada às atividades privadas, incentivando-as e protegendo-as nos primeiros passos do seu desenvolvimento em moldes capitalistas. [...] Historicamente, o mercantilismo contribuiu, no plano doutrinal e no plano da ação política, para a acumulação de capitais necessária à implantação do capitalismo como modo de produção dominante. É durante esse período da Idade Moderna que a economia passa a ter um caráter nacional, ou seja, ser desenvolvida entre nações, e não entre indivíduos. Esse caráter se dá a partir das funções que os soberanos dos Estados Modernos passam a desempenhar em relação à economia, considerados como condutores do sistema econômico. Veja, a seguir, algumas das características da política econômica mercantilista de acordo com Nunes (2007): política de incentivo à exportação de produtos manufaturados; proibição da exportação de matérias-primas e dos capitais necessários à indústria nacional; limitação da importação de produtos estrangeiros, excetos os de utilidade para a indústria nacional; reserva de mercado para os comerciantes nacionais; política de fomento às manufaturas; liberdade de comércio interno, unificando o mercado dentro das fronteiras dos reinos; 14 práticas colonialistas como busca de novos mercados e novas fontes de matérias-primas. A faceta metalista do mercantilismo, ou seja, a adoção da quantidade de metais preciosos que uma nação possui como forma de riqueza, estabeleceu- -se a partir do renascimento comercial das cidades e da emergência de uma classe comerciante e manufatureira que transformou as relações de trabalho (BAUER, 2020). A política mercantil entendia a riqueza e o desenvolvimento como dependentes de um Estado, que deveria unificar a tributação, controlar a atividade produtiva e estabelecer um sistema alfandegário para proteger os produtores do seu país. O Estado deveria manter uma balança comercial favorável, ou seja, exportar mais do que importar. Devido à necessidadede manutenção dessa balança favorável, associada ao metalismo, os governos mercantilistas foram levados a argumentar em favor da autossuficiência interna e da prática do monopólio, o direito exclusivo do monarca sobre a economia. Foram subvencionadas indústrias para garantir o abastecimento do mercado interno, mas, como a riqueza só podia ser medida a partir do comércio exterior e do fluxo de metais em seu território, a sustentação do sistema mercantil vai depender do sistema colonial. Assim, o governo vai licenciar companhias para o comércio ultramarino e promover a organização dos territórios ocupados. Diferentes tipos de mercantilismo foram adotados nos países europeus, e o critério para definir cada tipo de mercantilismo foi a posse ou não de territórios coloniais e o tipo de produto que forneciam. A expansão marítima europeia trouxe o domínio de novos territórios, novas fontes de riquezas e novos braços de trabalho ao antigo continente. A estruturação do sistema de exploração colonial só foi possível após o entendimento da necessidade de gerar riqueza neste território. No entanto, a relação entre os Estados Nacionais e a burguesia não se limitou somente ao âmbito econômico. De acordo com Sevcenko (1994, p. 9), para a criação e manutenção do poder, era preciso, nesse momento, “contar com um grande e temível exército de mercenários, um vasto corpo de funcionários burocráticos de corte e de província, um círculo de juristas que instituísse, legitimasse e zelasse por uma nova ordem sócio-político-econômica e um quadro fiel de diplomatas e espiões, ocultos e eficientes”. Segundo o autor, esses homens mais provavelmente estariam nos escalões da burguesia. 15 Saiba mais De que forma as casas comerciais burguesas lucravam com sua inserção no Estado Moderno? Sevcenko (1994, p. 10-11) nos responde essa questão, afirmando que o Estado se tornou uma vasta empresa: Todas essas casas comerciais possuíam uma enorme burocracia, que abrangia dimensões tanto nacionais como internacionais, graças às suas inúmeras agências, feitorias e entrepostos. Desenvolviam igualmente um sistema completo de contabilidade e de administração empresarial e financeira. Não relutavam, mesmo quando necessário, em contratar com companhias especializadas os serviços de corpos de mercenários para a guerra, para combater revoltas populares ou para simples ameaça. E o que era o Estado moderno senão a ampliação de uma empresa comercial, cujo controle decisório estava nas mãos o rei, sendo que este se aconselhava com os assessores financeiros, fiscais, comerciais, militares, com os diplomatas e espiões antes de qualquer gesto? Era natural, portanto, que os monarcas buscassem o apoio, a inspiração e encontrassem parte de seu pessoal junto a essas grandes casas comerciais. Normalmente o acordo incluía a concessão dos direitos de exploração de minas de metais preciosos e ordinários, de sal e alume, o monopólio sobre certos artigos comerciais e o arrendamento da cobrança de impostos. Os lucros e o poder que tais privilégios propiciavam a seus detentores eram extraordinários e faziam com que eles se tornassem verdadeiros patronos dos Estados aos quais se associavam. Tem-se, dessa forma, a imagem de um Estado transformado numa vasta empresa e ele próprio dominado por uma ou algumas casas financeiras. Não podemos esquecer, portanto, que a passagem da Idade Média para a Idade Moderna, com a ascensão da burguesia e o desenvolvimento de práticas mercantilistas, marca, também, o desenvolvimento do conceito moderno de Estado, como estudou Skinner (1996, p. 10): “O poder do Estado, e não o do governante, passou a ser considerado a base do governo. E isso, por sua vez, permitiu que o Estado fosse conceitualizado em termos caracteristicamente modernos — como a única fonte da lei e da força legítima dentro de seu território, e como o único objeto adequado da lealdade de seus súditos”. 16 3 HUMANISMO, RENASCIMENTO E REVOLUÇÃO CIENTÍFICA 3.1 Humanismo De acordo com Abbagnano (2007, p. 602), o Humanismo, característico da modernidade, se apresenta sob duas abordagens distintas: histórica e filosófica. No panorama histórico, o Humanismo representa um movimento artístico, filosófico e literário originário da segunda metade do século XIV na Itália, alastrando- se por toda a Europa e tornando-se um aspecto essencial do Renascimento – período histórico do qual partiremos para constituirmos nossas pesquisas sobre a Filosofia Moderna. Isto é, introduz uma nova maneira de pensar, que tem como interesse desvencilhar-se das bases metafísicas do pensamento medieval a partir do reconhecimento do valor do homem em sua totalidade. O homem passa a ser compreendido como natural e histórico. No ponto de vista filosófico, denomina-se humanista toda filosofia que assume como eixo central o homem, que se baseie na natureza humana ponderando seus interesses e seus limites, e, assentando-se nisso, redimensione os problemas filosóficos. Nas palavras de Abbagnano (2007, p. 603): No léxico filosófico atual fala-se de Humanismo a propósito: a) das teorias que veem no homem – e não fora do homem – o centro da realidade e do saber; b) das teorias que visam a salvaguardar a “dignidade” do homem diante das forças que a ameaçam (nesta acepção costuma-se falar em Humanismo existencialista, cristão, marxista etc.). De forma geral, podemos garantir que o Humanismo é uma atitude filosófica que confere ao homem um valor supremo, dispondo-o como medida na procura pelo conhecimento. São frequentemente conferidas como características do Humanismo: o reconhecimento do homem como ser composto de corpo e alma, que tem lugar central na natureza, que é dotado de liberdade e tem seu futuro desenhado pelo poder de domínio sobre a natureza; a assimilação do homem como ser social e histórico, que possui conexões com o passado (tais conexões tanto podem aproximar quanto distinguir o homem desse passado); mais uma característica relevante do Humanismo conserva com a própria origem do termo uma relação muito estreita, trata-se da 17 valorização da palavra humanistas, traço característico da paidéia grega; enfim, o reconhecimento do homem como ser natural, para o qual o conhecimento da natureza é fator imprescindível para a vida. 3.2 Renascimento As transformações sucedidas na Europa a partir do século XII, como o desenvolvimento das cidades, do comércio e a expansão marítima, foram acompanhadas por um intenso movimento cultural. Diferente do que se via na Idade Média, nos séculos XV e XVI apareceram numerosos escritores, pintores e escultores que procuravam retratar os valores daquela nova era, isto é, propagavam em suas obras as modificações advindas na maneira de interpretar o mundo europeu renascentista (CALDAS; 2018). É possível apontar como pontos comuns de toda a produção renascentista, em primeiro lugar, a retomada da cultura greco-romana, por avaliarem que estes possuíam um saber muito mais extenso no que concerne à vida e suas possibilidades, distinta da visão de mundo predominante na Idade Média. Em segundo lugar, podemos direcionar como ponto comum a valorização do ser humano. Este compõe- se como um ponto de essencial relevância neste período, pois é a partir da compreensão do homem como eixo central para o entendimento do universo que vai se ampliar o antropocentrismo, ideia que se contrapõe ao teocentrismo, predominante na Idade Média, quando o mundo era interpretado como manifestação divina. Outro ponto importante a avaliar, é a mudança de valores em relação à vida. Em função da compreensão espalhada até então, a vida das pessoas se reduzia à prática religiosa ou à prática da guerra, mas com as modificações sucedidas, outras maneiras de vida passaram a ser valorizadas, tornando possível uma vida voltada a diferentes interesses como a literatura,as artes e a vida pública. Uma figura de ampla importância para o Renascimento, e de grande representatividade desse novo modelo de vida, é Leonardo Da Vinci (pintor, escultor, literato e cientista). Por fim, temos, também como ponto comum, a valorização da razão e da natureza. O Renascimento, conforme veremos, foi caracterizado pelo racionalismo, que se traduziu na elaboração e aplicação de métodos experimentais e na observação da natureza. 18 Figura 1 - O Homem Vitruviano de Leonardo Da Vinci https://gq.globo.com Atenção! O Homem Vitruviano é uma obra de 1490 e foi primeiramente fundamentada na obra do arquiteto romano Marcus Vitruvius. A obra faz menção às proporções anatômicas divinas perfeitas, demonstrando a perspectiva do ideal humano. É, também, uma retomada dos traços característicos da cultura greco-romana, como o realismo e a perfeição das formas. O Renascimento aconteceu primeiramente em determinadas cidades da Itália, em função do desenvolvimento comercial, se difundindo em seguida por toda a Europa. Na Itália, os nomes de maiores destaques foram: Leonardo da Vinci (1452- 1519), Michelangelo Buonarroti (1475-1564), Rafael Sanzio (1483-1520), Sandro Botticelli (1444-1510), Galileu Galilei (1564-1642) e Nicolau Maquiavel (1469-1527). https://gq.globo.com/ 19 No restante da Europa, o Renascimento adquiriu contornos distintos daqueles adquiridos na península Itálica. O historiador Edward Burns, interpreta as diferenças existentes nas manifestações do Renascimento pelas várias regiões da Europa em sua obra História da Civilização Ocidental: Na península itálica, alegres, descuidados e despidas de rigidez moral, as pessoas inclinavam-se a procurar na arte e na literatura o meio mais propício para expressão de seus sentimentos. Além disso eram herdeiras das tradições clássicas que ainda alimentavam mais seus interesses estéticos. Por outro lado, o europeu setentrional (do Norte), devido à luta mais árdua pela existência, tendia para objetivos mais sérios e práticos. Inclinava-se a encarar os problemas da vida de um ângulo moral e religioso: tudo era questão de bem ou de mal, a nada se atribuía valor só por ser belo. (BURNS, 1970, p. 421). Abaixo temos os demais países europeus onde o Renascimento se estabeleceu e seus principais representantes: • Países Baixos – Considerado um dos mais ilustres humanistas da renascença, Erasmo de Roterdã (1466-1536) elabora ferrenha crítica à sociedade em que vivia na obra Elogio da Loucura; • França – Os principais representantes do Renascimento francês foram François Rabelais (1494-1555), que escarneceu a monarquia e o Cristianismo em suas obras, e Michel de Montaigne (1533-1592) autor da obra Ensaios; • Inglaterra – O principal representante do Renascimento inglês foi William Shakespeare (1564-1616); • Espanha – Na literatura renascentista espanhola, temos como principal expoente Miguel de Cervantes (1547-1616), autor de Dom Quixote de la Mancha. Tabela 1 – Quadro sinótico Plano econômico Plano religioso Plano político-social Transição da economia feudal para a economia de mercado Crise na Igreja, ocasionada pela baixa confiança passada pelo clero aos fiéis Substituição do estado feudal pelos estados nacionais centralizados Revolução comercial estimulada pelas navegações Insatisfação da burguesia (classe em ascensão) em função das restrições do Substituição da sociedade rural pela urbana (nascimento das cidades) 20 clero ao comércio e ao lucro *** Reforma Protestante e Contrarreforma *** RENASCIMENTO – Movimento intelectual que consistia numa forma laica de expressão da cultura burguesa, abarcando os campos literário, artístico, filosófico e científico. Fonte: Elaborada pela Autora Saiba mais! William Shakespeare foi o maior poeta e dramaturgo da Inglaterra e um dos maiores de todos os tempos. Entre suas obras destacam-se aquelas pertencentes aos gêneros da comédia e tragédia: Romeu e Julieta, Hamlet, Muito barulho por nada, Júlio César, Otelo etc. Em suas obras, descreve de maneira maravilhosa os sentimentos e as paixões humanas. 3.3 Reforma Protestante e Contrarreforma No século XVI, o poder e a grande influência da Igreja Católica foram abalados de forma profunda, por um movimento de contestação à sua autoridade e doutrina. Esse movimento, teve como principais representantes: Martinho Lutero (1483-1546), fundador do Luteranismo no Sacro Império; João Calvino (1509-1564), que fundou o Calvinismo na Suíça; e Henrique VIII (1491-1547), que criou o Anglicanismo depois dos movimentos de protesto e rebeldia na Inglaterra. Todos esses movimentos receberam o nome de Reforma Protestante. A Reforma Protestante colaborou também para modificações, a principal, podemos citar, foi a desestabilização do domínio da Igreja Católica Romana ao fazer- se apelo à consciência de cada um. A Reforma proclama o retorno à Escritura e a primazia da Bíblia. Fé e graça ocasionam a salvação aos homens. A adesão profunda do coração é muito mais relevante que as obras. Nesse caso, o destaque é colocado no sujeito e na pessoa, no ser humano distinto dos outros. Acontece, portanto, uma 21 drástica revolução espiritual visto que o conhecimento direto da Escritura é muito mais importante que a tradição da igreja (CALDAS; 2018). https://gustoporlahistoria.com Vários foram os fatores que colaboraram para a irrupção da Reforma, não apenas questões religiosas, mas questões políticas, econômicas e culturais. Dessa forma, foram inúmeras as implicações derivadas desses movimentos. No campo religioso, via-se até a época da Reforma, a vida das pessoas serem tomadas pelos sentimentos de medo e culpa ocasionados pela ideia de pecado, o que gerava a procura incessante pela salvação por meios de orações e doações de bens e dinheiro à igreja, enquanto os papas e bispos habitavam no luxo tendo como preocupação apenas os seus ganhos e descuidando-se das suas obrigações religiosas. No campo econômico, a Igreja condenava as atividades burguesas afirmando que a prática comercial desagradava a Deus. Atividades como o comércio, a procura de lucro e a usura eram interpretadas como pecado, isso provocava ampla insatisfação na classe burguesa, que se via prejudicada pela permanência de um pensamento tipicamente feudal causado pelo posicionamento tomado pela igreja. No campo político, o poder que antes concentrava-se na figura do papa em várias regiões da Europa, passa a ser 22 concentrado nas “mãos” do rei, originando violenta oposição à interferência estrangeira, por conseguinte, ao papa. No campo cultural, podemos apontar, em primeiro lugar, a centralidade ocupada pelo homem em suas preocupações, que se difundiu pela Europa pondo em discussão várias crenças católicas; em segundo lugar, temos a invenção da imprensa, por meio da qual difundiram-se conhecimentos e hábitos de leitura, privilégio de uma minoria durante muito tempo. A difusão do saber cooperou para que os indivíduos consentissem de aceitar passivamente a doutrina da Igreja (CALDAS; 2018). Todos os abusos feitos pelo clero eram malvistos pelos fiéis, que solicitavam a aproximação entre o que era pregado e o que de fato era praticado, ou seja, era imprescindível uma reforma da igreja: As consequências da Reforma foram: O enfraquecimento político da Igreja Católica; Fortalecimento dos ideais burgueses; Ampliação do poder dos reis; Transmissão da instrução religiosa fundamentada no estudo da Bíblia; Origem de conflitos religiosos entre católicos e protestantes; A reação da Igreja Católica à Reforma originou um movimento chamado de: 3.4 Contrarreforma Como reação aos movimentos reformistas, que apresentaram como decorrência, entre outras coisas, a redução do poderio do clero nas mais distintas áreas,a Igreja Católica adotou uma série de medidas que ficaram conhecidas como Contrarreforma. Dentre as medidas adotadas estavam: a convocação do Concílio de Trento, a criação da Companhia de Jesus e o asseveramento das atividades no Tribunal do Santo Ofício (Inquisição). 23 Figura 2 - Concílio de Trento https://conhecimentocientifico.r7.com Atenção! O Concílio de Trento é uma reunião de todos os bispos da igreja, sob a direção do papa, para definir assuntos relevantes da doutrina católica. No referido período, o Concílio decidiu pela condenação da doutrina protestante, reafirmando a doutrina católica; constituiu a necessidade de formação de sacerdotes em escolas especiais (seminários); estabeleceu o Index, relação de livros proibidos e reafirmou o valor das indulgências. 24 Figura 3 – Companhia de Jesus https://ohistoriante.com.br Atenção! Seu criador foi Inácio de Loyola (1491-1556). Ele estruturou a Companhia em moldes militares (por ter sido um militar espanhol), subordinando seus membros (jesuítas) a uma rígida disciplina e obediência ao papa. Os jesuítas combatiam os ideais protestantes e dedicavam-se à educação dos jovens e à conversão de distintos povos ao Cristianismo. 25 Figura 4 – Tribunal do Santo Ofício (Inquisição) http://cvc.instituto-camoes.pt/ 3.5 Nicolau Maquiavel (1469-1527) Pudemos analisar até aqui, a ruína – ou pelo menos o enfraquecimento – da república cristã e o ato de nascer dos Estados Nacionais, repúblicas e senhorias, duas formas de governo que, permitindo maior liberdade, preocupam-se mais com as questões materiais do que espirituais dos seus cidadãos. Então, nessa conjuntura de perda de autoridade política do papado, a atenção dos governantes volta-se para os próprios súditos e para interesses limitados, não mais para Deus e para a Igreja como na Idade Média (CALDAS; 2018). 26 https://moaciralencarjunior.wordpress.com É justamente com a política que serão comprovadas as novas concepções de homem e de mundo que compõem o espírito do Renascimento, e será na obra de Nicolau Maquiavel que teremos sua representação mais fiel. Em sua obra O Príncipe, o autor amplia uma teoria realista com a finalidade de implantar uma nova ordem política – dominada pela liberdade moral e física – capaz de tornar os homens melhores, derrubados de sua pequenez natural. Em Discurso sobre a primeira década de Tito Lívio, outra relevante obra de Maquiavel, o autor mostra-se admirado e admirado ao compreender tamanha inspiração ocasionada pelos antigos, seja no que diz respeito às artes, costumes ou à política, ao passo que lamentava o fato de tais atos admiráveis de virtudes e de dedicação à grandeza da pátria fossem “mais friamente admirados do que imitados”. (MAQUIAVEL, 2007, p. 16). Maquiavel assegura ver os homens servindo-se dos ensinos dos antigos em múltiplos segmentos sociais, a exemplo das leis e da própria medicina, no entanto, quando se trata de “ordenar a república, conservar o Estado, governar um reino, comandar exércitos e administrar guerra” (MAQUIAVEL, 2007, p. 16), não se viu um só governante apoiar- se no exemplo dos antigos. O filósofo florentino, entretanto, aponta uma possível causa para o fenômeno relatado, em suas palavras: 27 A causa disto, na minha opinião, está menos na fraqueza do que a moderna religião fez mergulhar o mundo, e nos vícios que levaram tantos Estados e cidades da Cristandade a uma forma orgulhosa de preguiça, do que na ignorância do espírito genuíno da história. Ignorância que nos impede de aprender o sentido real, e de nutrir nosso espírito com a sua substância. O resultado é que os que se dedicam a ler a história ficam limitados à satisfação de ver desfilar os acontecimentos sob os olhos sem procurar imitá-los, julgando tal imitação mais do que difícil, impossível. Como se o sol, o céu, os homens, os elementos não fossem os mesmos de outrora; como se a sua ordem, seu rumo e seu poder tivessem sido alterados. (MAQUIAVEL, 2007, p. 18). O fundamento do pensamento político de Maquiavel está no seu olhar pessimista em relação à natureza humana, visão transmitida, em grande parte, de sua análise pessoal. Ele afirma, fundamentando-se nos exemplos históricos e na tradição política, que aqueles que preparam a forma de um Estado devem partir do pressuposto “de que todos os homens são maus, estando dispostos a agir com perversidade sempre que haja ocasião” (MAQUIAVEL, 2007, p. 29), pois se esta (a maldade) não é compreendida de imediato deve-se a alguma causa desconhecida que a experiência ainda não permitiu proclamar, mas que de maneira inevitável será manifestada com o tempo. A exemplo do que acontecera com a queda da monarquia romana, a consequente expulsão do último rei de Roma, Lúcio Tarquínio Soberbo, e a fundação da República Romana, Maquiavel explana como os nobres encobriram-se de falsidade para forjar uma proximidade amistosa com a população mais modesta enquanto ainda não desfrutavam de plena liberdade. Assim que os Tarquínios morrem, os nobres perderam o medo e derramaram sobre o povo todo o veneno que preservavam em seus corações, agredindo com todas as vexações possíveis. Com isso, o autor reitera sua compreensão acerca da perversidade natural do homem: Os homens só fazem o bem quando é necessário; quando cada um tem a liberdade de agir com abandono e licença, a confusão e a desordem não tardam a se manifestar por toda parte. Por isto se diz que a fome e a miséria despertam a operosidade, e que as leis tornam os homens bons. Quando uma causa qualquer produz boas consequências sem a interveniência da lei, esta é inútil; mas quando tal disposição propícia não existe, a lei é indispensável. (MAQUIAVEL, 2007, p. 29). 28 Segundo Maquiavel, o remédio mais eficaz contra a corrupção humana é o Estado, pois apenas este permite a cumprimento de todas as demais medidas possíveis. É importante observarmos que, mesmo partindo de uma visão pessimista sobre a natureza humana, o autor pondera a probabilidade de melhoramento político. Podemos indagar, contudo, como seria possível tal melhoramento? Por meio da firme disciplina, pela educação, pelas leis e pelos bons costumes, pois são estas ações que separam o homem de sua crueldade natural, tornando-os aptos ao convívio ordenado. Battista Mondin, em seus escritos sobre os filósofos da renascença, corrobora a compreensão de Estado exibida pelo autor florentino: Deve-se entender por Estado, antes de tudo, não tanto como organismo ético quanto como força, como poder de mando e de coerção, como vontade dominadora que se impõe mais pelo amor do que pelo amor, sem ou quase sem consideração pelos valores de ordem superior, graças aos quais o poder político se justifica. Os Estados são criados, todavia, pela “virtude” de poucos homens superiores, virtude que é, ao mesmo tempo, sabedoria capaz de conceber uma ordem política e firme vontade de execução que, empregando qualquer meio, sabe traduzir esta ordem em formas concretas, em instituições úteis e vitais. Esta virtude se comunica aos cidadãos ou aos súditos quando eles se tornam cônscios dos seus deveres de membros de uma sociedade civil bem organizada. (MONDIN, 1982, p. 10). Como descrevemos inicialmente, Maquiavel inaugura uma maneira de pensar, que marca determinantemente a política mundial ao romper com o idealismo da tradição, inserindo a concepção política realista: [...] pareceu-me mais conveniente ir em busca da verdade extraída dos fatos e não à imaginação dos mesmos, pois muitos conceberam repúblicas e principados jamais vistos ou conhecidos como tendo realmente existido. Em verdade, hátanta diferença entre como se vive e como se deveria viver, que aquele que abandone o que faz por aquilo que deveria fazer aprenderá antes o caminho de sua ruína do que o de sua preservação. (MAQUIAVEL, 2009, p.123-124). Segundo ele, a política não deve ajustar-se na moralidade, – pois, assim como os idealistas políticos sugerem, a concepção de um bom governante seria aquela que admite virtudes cristãs e que as insere no exercício do poder político – mas deve ser 29 autônoma, porque localiza em si a própria justificação ao garantir uma existência ordenada aos súditos. Isso não significa que o chefe político (o príncipe) deva ser imoral ou indiferente ao bem e ao mal, mas às vezes o que para um indivíduo é ruim, torna-se necessário ao Estado, precisando ser feito mesmo a duras penas. Com a tomada de conhecimento da teoria política maquiaveliana, o pensamento político europeu inicia um processo de mudança da antiga ideia do direito natural, pois o escritor florentino demonstra que a convivência em comunidades justas não faz parte da realidade social dos homens, pelo oposto, os homens habitam em sociedades desconexas onde “o povo não quer ser mandado nem oprimido pelos poderosos, e estes desejam governar e oprimir o povo”. (MAQUIAVEL, 2009, p. 83- 84). Ao mesmo tempo, Maquiavel mostra também que o Estado não surge da razão, nem do sentimento natural de justiça, nem de um decreto divino, mas da lógica de forças e conflitos que governam a vida social. Dito de outra forma, surge independentemente de qualquer sistema ético ou religioso. 3.6 Michel de Montaigne (1533-1592) Ao pensarmos o Renascimento como momento de profundas e decisivas modificações, é indispensável que tenhamos consciência que a necessidade de mudanças é sempre gerada num momento de crise, e era justamente esse o cenário que se tinha entre o final da Idade Média e o início da Idade Moderna. O resultado desse estado de transição, crise e indefinição, de acordo com vários historiadores, foi o chamado ceticismo filosófico, cujos maiores expoentes teriam sido Montaigne e Erasmo. Nesse ambiente, Montaigne, representante do Renascimento francês que inventou o gênero literário chamado ensaio, procura uma sabedoria capaz de promover a arte de viver bem para o ser humano, para isso, ele elabora a partir do Ceticismo, Estoicismo e Epicurismo sua própria concepção de sabedoria. Por sua influência cética (pirrônica), várias vezes faz suspensão de juízo em sua obra em relação à verdade. Em sua obra Ensaios (Essais), Montaigne difunde uma advertência ao leitor informando ser aquela uma obra auto analítica, cujo foco de investigação era 30 ele próprio, isso porque o autor jazia radicado numa experiência pessoal e social muito forte. https://www.pensador.com/ Montaigne apresenta um pensamento organizado numa perspectiva contrária ao ideal humanístico: da dignidade humana e confiança nas capacidades criativas e intelectuais do homem; o homem para Montaigne pode pouco, pois sua racionalidade não consegue obter a essência das coisas. O saber é concebido como um processo parcial que acontece dentro do curso universal e, deste modo, sujeito às leis que dirigem o cosmos. Nessa medida, o homem se exibe como nada mais que um pedaço do universo, onde se há de questionar: como é possível que as leis reguladoras universais sejam provenientes desse fragmento? O autor responde a isso de maneira negativa e original. Segundo Montaigne, o homem não é um ser privilegiado como acreditavam os medievais, ao crerem que Deus revela ao homem a verdade sobre a natureza, para ele, era demasiado pretenciosa a crença na capacidade do homem avaliar a totalidade da qual faz parte. Para ele, o homem sabe bem pouco sobre si mesmo (CALDAS; 2018). 31 A grosso modo, podemos afirmar que, para Montaigne, o mundo é marcado pela diversidade e perante a diversidade não cabe juízo de valor, mas juízo de fato. O importante é reconhecer a multiplicidade que compõe a universalidade, reconhecimento esse característico do Ceticismo renascentista. Se existe multiplicidade de pensamentos, todos são do mesmo modo legítimos, uma vez que, para cada argumento formado existe outro igualmente válido. A postura cética adotada pelo filósofo francês, assim sendo, é marcada pela suspensão de juízo, que significa não nomear entre quem está certo e quem está errado. No período em que escolhe pela suspensão de juízo alcança-se a imperturbabilidade da alma e ausência de inquietações (ataraxia), entre os céticos deve-se praticar a ataraxia, porque não se conhece a natureza daquilo que se deseja ou se teme. 3.7 Filosofar é aprender a morrer Uma das mais difundidas ideias apresentadas por Montaigne é a de que, retomando Cícero: “filosofar não é outra coisa senão preparar-se para a morte”. (MONTAIGNE, 2010, p. 50). A meditação sobre a morte é a temática do primeiro ensaio, ofertando a essa parte um caráter – em alguma medida – pessimista. Contudo, no terceiro ensaio, é possível analisar otimismo – do mesmo modo, em alguma medida – quando exibe-se um aprendizado sobre o “bem viver”. A referida temática é oferecida na célebre passagem que se segue: Diz Cícero que filosofar não é outra coisa senão preparar-se para a morte. É assim porque, de certo modo, o estudo e a contemplação retiram nossa alma de nós e a ocupam separada do corpo, o que constitui certo aprendizado da morte e tem semelhança com ela; ou então, é porque toda a sabedoria e a razão do mundo se concentram, afinal, nesse ponto de nos ensinar a não ter medo de morrer. Na verdade, ou a razão está escarnecendo de nós ou seu objetivo deve ser apenas o nosso contentamento, e todo o seu trabalho deve tender, em suma, a fazer-nos viver bem e a nosso gosto, como dizem as Sagradas Escrituras. (MONTAIGNE, 2010, p. 50). Refletir sobre a morte é a melhor maneira, afinal, de localizar a fonte da vida. Ao avaliar o tema da morte, Montaigne alerta para o fato de que muitos apavoram-se ao pensar na morte e recebem como remédio para a ansiedade que os destrói, não 32 pensar nela, assim, o autor interroga: “Mas de que estupidez brutal pode vir cegueira tão grosseira? ”. (MONTAIGNE, 2010, p. 54). Atrelar à morte tamanho pavor e desprezo, confere vantagem a esta em relação à própria vida. Nesse sentido: [...] para começar a tirar-lhe sua grande vantagem sobre nós, tomemos um caminho totalmente oposto ao comum. Tiremos-lhe a estranheza, frequentemola, acostumemo-nos com ela, não tenhamos nada de tão presente na cabeça como a morte: a todo instante a representemos em nossa imaginação e em todos os aspectos. (MONTAIGNE, 2010, p. 58). Dessa forma, Montaigne aconselha: “considera como teu último dia aquele que brilha para ti” (MONTAIGNE, 2010, p. 58), pois na medida em que vivemos cada dia como o único (ou o último), todos os outros que vierem serão tomados como graça. Se não sabemos como, quando ou onde seremos descobertos pela morte, precisamos contar que ela possa aparecer em toda parte. Por não ser capaz de expressar de maneira mais clara e significativa o ensinamento montaigniano, vejamos o que ele garante sobre aprender a morrer: “quem aprendeu a morrer desaprendeu a se subjugar. Não há nenhum mal na vida para aquele que bem compreendeu que a privação da vida não é um mal. Saber morrer liberta-nos de toda sujeição e imposição”. (MONTAIGNE, 2010, p. 58). Com isso, quer dizer que ao habituar-nos com a morte afastamos dela o componente mais poderoso contra nós, que é o fato de considerá-la como inimiga. Portanto: “Meditar previamente sobre a morte é meditar previamente sobre a liberdade”. (MONTAIGNE, 2010, p. 58). De nada adianta passarmos a vida inteira tentando evitar o inevitável, compreender isso é libertar-se de apreensões e privações vãs e inúteis. Não são os acasos e perigos que nos aproximam da morte, do mesmomodo que o vigor ou mesmo a segurança do nosso lar não nos separa dela. A morte é um processo pelo qual passaremos e não existe nada que possamos fazer para evadir isto, assim sendo, precisamos lembrar sempre o que Montaigne nos ensina “tudo o que pode ser feito um outro dia pode ser feito hoje”. (MONTAIGNE, 2010, p. 60). 33 Saiba mais! A principal obra deixada por Montaigne foi Ensaios (Essais). Ela é composta por três livros, tendo sido a primeira edição (contendo os livros I e II) publicada em 1580; em seguida, em junho de 1588 é publicada uma nova edição com o livro III; mesmo tendo completado os três livros, Montaigne continuou trabalhando para o enriquecimento da obra até o ano de sua morte em 1592; por fim, em 1595, é lançada postumamente a versão final dos Ensaios. 3.8 Revolução Científica Ao discorrermos em Revolução Científica, o primeiro ponto a ser elucidado é o pioneirismo no uso deste termo, pois esta expressão passou a ser empregada a partir de 1939, quando Alexandre Koyré, historiador francês, o cunhou para designar o momento de mudanças intelectuais radicais. Dentre tais mudanças intelectuais podemos citar o nascimento da ciência moderna como a principal delas, ciência sobre a qual se debruça toda a modernidade. Conforme vimos no início desta Unidade, o Renascimento (período de transição entre a Idade Média e a Idade Moderna, propriamente dita) trouxe modificações radicais no que tange à relação do homem com o conhecimento da realidade, das coisas e do próprio homem, tais modificações, como não poderia deixar de ser, intervieram de forma profunda na produção dessa nova compreensão de ciência. Podemos elencar, de forma inicial, aspectos característicos da ciência moderna no período do seu surgimento: O afastamento de objetivos transcendentais em detrimento do foco em objetivos imanentes; A substituição do objetivismo dos antigos e medievais pelo subjetivismo dos modernos; O desejo moderno pela dominação e subjugação se sobrepõe à relação de contemplação da natureza e do ser, característica dos antigos e medievais. 34 O progresso científico, que estabelece uma das maiores glórias da Idade Moderna, percorreu sempre ao lado do estudo do método mais apropriado. Deste tema ocuparam-se Galileu Galilei, Descartes, Spinoza, Pascal, Vico, Hume, Leibniz e Kant, assemelhando-se em alguns pontos e diferindo-se em outros. Para o desenvolvimento da ciência é preciso, além de um bom método, também um critério seguro de verdade. A ciência ativa moderna rompe com a separação antiga entre a ciência (episteme), o conhecimento teórico, a técnica (téchne) e o saber aplicado, agregando ciência e técnica, fazendo com que problemas práticos no campo da técnica levem ao desenvolvimento científico, bem como com que hipóteses teóricas sejam testadas na prática, a partir de sua aplicação na técnica (CALDAS; 2018). 4 O PROBLEMA DO CONHECIMENTO A modernidade, como foi visto, é um momento que se exibe de modo muito complexo. Seu nascimento é caracterizado pela procura de uma ruptura com a tradição, especialmente no que tange à compreensão da racionalidade, além de ser um momento de profundas modificações históricas. Essas mudanças têm sua raiz na valorização da razão, aspecto primordial desse período em função do antropocentrismo. Desse modo, sendo a razão componente comum a todos os seres humanos, torna-se o fundamento a partir do qual o mundo deve ser compreendido e organizado. A Filosofia preocupa-se com as questões do conhecer capazes de produzir a nova ciência, ou seja, recursos que pudessem proporcionar a passagem da especulação metafísica para os esclarecimentos experimentais. De forma geral, podemos dizer que o problema do conhecimento se desenvolve ao longo de três fases bem demarcadas em relação às suas preocupações, mas interligadas entre si, são elas: 1) Teoria do Conhecimento, que estuda a natureza do saber de forma geral; 2) Epistemologia, que estuda a natureza a base do conhecimento científico; 3) Metodologia Científica, que trata dos processos lógicos de obtenção do conhecimento científico. 35 Nesta Unidade, nos ateremos à Teoria do Conhecimento, exibiremos as principais correntes filosóficas que se ocuparam de investigações que têm por objetivo responder a questões como o “que é o conhecimento?”, “qual a probabilidade de obter o conhecimento?”, “qual o fundamento do conhecimento?”, além de investigar as suas origens e seu valor. As correntes estudadas serão: Racionalismo, Empirismo e Ceticismo. 4.1 Racionalismo O pensamento moderno tem como marca característica a preocupação com o homem, sua capacidade de conhecer o mundo e transformá-lo. Isto é, procura-se pôr o valor do conhecimento humano e descobrir um método (ou percorrer uma metodologia) capaz de bem guiar o pensamento, ou melhor, um método apropriado para proceder na investigação filosófica. René Descartes, estimado pai do Racionalismo, pondera que o único conhecimento válido é aquele que está inato na alma, assim sendo, que não provém dos sentidos. O pensamento racional parte do universal e necessário, tornando possível o saber da natureza verdadeira e imutável das coisas. Nas palavras de Mondin (1995, p. 200-201), “o homem atinge a perfeita felicidade fazendo triunfar o poder da razão sobre os instintos e as paixões, e dedicando-se à contemplação amorosa de Deus (amor intellectualis Dei, segundo a bela expressão de Spinoza)”. Racionalismo vem do latim Ratio, que significa razão ou entrosamento. Nesse fluxo de pensamento avalia-se a razão como a fonte de todos os saberes e estes, por sua vez, podem ser: universalmente válidos (intuição) ou contingentes (sentidos e experiências). Os racionalistas esperavam na existência de um mundo intrinsecamente verdadeiro e capaz de ser intuído pela inteligência humana. Dessa forma, o conhecimento verdadeiro seria oriundo de processos racionais, da intuição pura e abstrata. O conhecimento originário das experiências, de acordo com os racionalistas, não pode ser considerado verdadeiro, pois sofre as mudanças dos fenômenos e se transforma com as alterações deles. Os principais representantes 36 dessa corrente de pensamento são: Descartes, Spinoza e Leibniz, cujos sistemas conheceremos a seguir. Saiba mais A abstração, incide num processo intelectual por meio do qual um objeto só pode ser entendido quando isolado de fatores unidos à realidade. Referente ao fluxo racionalista, trata-se da aquisição de um saber em relação às experiências, isto é, alcançado sem a interferência da experiência. René Descartes (1596 – 1650) René Descartes é um relevante pensador moderno, chegando a ser considerado iniciador da Filosofia Moderna. De acordo com Jacqueline Russ (2015, p. 134). “o homem [...] está em condições de conquistar por si mesmo, pelas próprias forças e por um bom uso da razão, o que é verdadeiro: ao recorrer à dúvida metódica e ao conservar à distância a autoridade, Descartes estabelece o racionalismo moderno”. Conheceremos um pouco sobre seu desempenho no pensamento moderno, especialmente no que tange às questões referentes ao saber, seu valor e sua contribuição, e estudaremos o projeto filosófico cartesiano nos atendo aos seguintes pontos: o método e a metafísica (cogito). 4.2 O projeto filosófico cartesiano Descartes, em seu projeto filosófico, constitui a razão como uma bússola fundamental do homem. Todos os traços característicos do pensamento moderno que vimos aparecer no decorrer do Renascimento, encontram-se solidificados na elaboração do pensamento cartesiano, na medida em que delineia-se a autonomia da filosofia em relação à teologia; o direcionamento do pensamento seguindo de forma prioritária a via do conhecimento (gnosiológica), conservando a metafísica em segundo plano– não quero dizer com isso que exista algum desinteresse pela 37 metafísica, mas que têm prioridade em resolver o problema do saber; por fim, a preocupação com o método (CALDAS; 2018). Em todas as obras que compõem o seu sistema filosófico, fica evidente a preocupação de Descartes em saber se existe um método capaz de evitar o erro. Para isso, o autor partia de questões como: é possível estabelecer proposições que sejam categoricamente verdadeiras? Quando é possível dizer que uma afirmação é verdadeira? Há algo do qual não podemos duvidar? Como ocorre o processo de raciocinar? Como se deve proceder para obter o saber científico? Nas Meditações sobre a filosofia primeira ou Meditações metafísicas (1641), dá-se conta de que vários dos ensinamentos que há muito lhe foram advindos eram falsos, é justamente a partir daí que Descartes começa sua procura pelo saber verdadeiro. O autor interrogava se era possível avaliar todas as nossas crenças, apartando aquelas que nos fazem incidir em erros. A solução descoberta foi assumir um posicionamento cético, com a finalidade de que pudesse localizar algo do qual não se pudesse duvidar, mas como é possível descobrir o que é indubitável? https://www.seculodiario.com.br 38 Em sua obra Princípios da Filosofia (1644), Descartes garante ter em nós liberdade suficiente para que, no exercício correto da razão, fujamos de ser ludibriados e, por conseguinte, nos aproximemos e/ou alcancemos o saber verdadeiro. Diz ele: [...] mesmo no caso de ser, aquele que nos criou, todo-poderoso, e ainda que sentisse prazer em nos iludir, não deixamos por essa razão de sentir em nós uma liberdade tal que, sempre que nos seja agradável, possamos evitar receber, em nossa convicção, as coisas que não conhecemos bem, e desse modo evitar de nunca sermos enganados. (DESCARTES, 2010, p. 71). 4.3 O Método Descartes, na primeira parte do Discurso do Método (1637), faz considerações acerca das ciências, o autor parte da seguinte questão: se o bom senso e a racionalidade são naturais ao homem, sendo divididas por todos, o que esclarece a probabilidade e a ocorrência do erro, do engano e da falsidade? O autor ainda expõe que: O bom senso é a coisa melhor dividida no mundo, pois cada um se julga tão bem dotado dele que ainda os mais difíceis de serem satisfeitos em outras coisas não costumam querê-lo mais do que têm. E, a esse propósito, não é verossímil que todos se enganem. Isso prova, pelo contrário, que o poder de bem aquilatar e diferenciar o verdadeiro do falso, quer dizer, o chamado bom senso ou a razão, é naturalmente igual em todos os homens e assim, que multiplicidade de nossas opiniões não deriva do fato de uns serem mais razoáveis do que outros, porém somente do fato de encaminharmos nossos pensamentos por diversos caminhos e não levarmos em conta as mesmas coisas. Não é suficiente ter o espírito bom, o essencial é bem aplicá-lo. As maiores almas são capazes dos maiores vícios como das maiores virtudes e os que caminham muito vagarosamente podem adiantar muito mais, se prosseguirem sempre em seu caminho reto, do que os que correm e dele se afastam. (DESCARTES, 2010, p. 9). Como provável resposta ao autor, pronunciamos que o erro resulta na realidade do mau uso da razão, de seu aproveitamento incorreto em nosso conhecimento do mundo. No momento em que Descartes amplia seus escritos, existem dois métodos possíveis: indutivo e dedutivo. O primeiro, parte da experiência, enquanto que o 39 segundo, parte de princípios universais. É justamente do método dedutivo que Descartes irá se ocupar. Atenção Finalidade do método: Pôr a razão no bom caminho evitando assim o erro. Etimologicamente, a palavra “método” tem sua raiz no Grego, Methodos, composta de meta (por meio de, através de) e de hodos (caminho, via). Geralmente é usada para referir-se a um certo caminho que consente chegar a um fim. Na conjuntura ao qual estamos nos referindo, método incide num procedimento que tende a garantir o sucesso de uma tentativa de conhecimento, da elaboração de uma teoria científica. Constitui-se de regras e princípios que são os caminhos desse procedimento. Apesar de Descartes não dê nome a essas regras, seus estudiosos as denominaram da seguinte maneira: evidência (ou intuição), análise, síntese e enumeração, respectivamente. Descartes no Discurso do método, descreve sua procura solitária – “e, como não tivesse, além do mais, felizmente, preocupação alguma ou paixão que me perturbassem, passei o dia só” (DESCARTES, 2010, p.15) – por respostas às questões divulgadas no início deste item (é possível formular proposições que sejam absolutamente verdadeiras? Quando é possível dizer que uma afirmação é verdadeira? Existe algo do qual não podemos duvidar? Como se produz o processo de raciocinar? Como se precisa proceder para obter o saber científico?), ele seleciona pela procura solitária, por considerar que “as construções que apenas um arquiteto empreendeu e levou ao fim costumam ser mais belas e melhor localizadas do que aquelas que muitos tentaram restaurar usando velhas paredes edificadas para outras finalidades”. (DESCARTES, 2010, p. 17). Em seguida, avaliando as dificuldades de empreender uma procura por caminhos obscuros e nunca percorridos, Descartes explica que escolhe por caminhar pausadamente, mesmo que isso procrastine sua chegada ao destino desejado (entenda por destino pretendido o alcance do verdadeiro método para chegar ao saber de todas as coisas de que seu espírito fosse capaz), pois assim “evita pelo menos cair”. O autor assegura não ter, pelo menos primeiramente, renunciado 40 completamente nenhuma das ideias que nasceram em sua mente, sem que sua razão as tivesse investigado. No excerto abaixo, Descartes apresenta as regras do método: E como o excesso de leis dá desculpas, muitas vezes, aos vícios, de forma que um Estado é muito melhor regido quando, possuindo apenas muito poucas, elas são rigorosamente observadas, acreditei, por isso, que, em vez dos inúmeros preceitos de que a lógica se compõe, ser-me-iam suficientes os quatro seguintes, logo que tomasse a firme e constante resolução de não deixar de observá-los nenhuma vez. O primeiro consistia em jamais aceitar como verdadeira coisa alguma que eu não conhecesse à evidência como tal, quer dizer, em evitar, cuidadosamente, a precipitação e a prevenção, incluindo apenas nos meus juízos o que se apresentasse ao espírito de modo tão claro e distinto que não subsistisse dúvida alguma. O segundo consistia em dividir cada dificuldade a ser examinada em tantas partes quanto possível e necessário para melhor resolvê-las. O terceiro, pôr ordem em meus pensamentos, começando pelos assuntos mais simples e mais fáceis de serem conhecidos, para atingir paulatinamente, gradativamente, o conhecimento dos mais complexos e, supondo ainda uma ordem entre os que não se precedem normalmente uns aos outros. E o último, fazer, em cada caso, enumerações tão exatas e revisões tão gerais que estivesse certo de não ter esquecido nada. Essas extensas cadeias de razões simples e fáceis, das quais os geômetras costumam servir-se para alcançar as suas mais complexas demonstrações, deram a oportunidade de imaginar que todas as coisas que podem cair sob o conhecimento dos homens, seguem-se umas às outras da mesma forma e que, contanto apenas que se impeça tomar por verdadeira alguma que não o seja e que se respeite sempre a ordem estabelecida para deduzir umas das outras, não pode haver nenhuma tão distante que por fim não se alcance nem tão oculta que não se descubra. Método indutivo: aquele segundo o qual uma lei geral é constituída a partir da observação e repetição de regularidades em casos particulares. Embora o método indutivo não admita o estabelecimento da verdade da conclusão em caráter definitivo, fornece,no entanto, razões para a sua aceitação, que se tornam mais seguras quanto maior o número de observações realizadas. A indução é assim essencialmente probabilística. Este método se torna relevante na ciência experimental, especialmente a partir de sua defesa por Francis Bacon, sendo posteriormente sistematizado por J. Stuart Mill. (Cf. Dicionário básico de filosofia, Hilton Japiassú e Danilo Marcondes). Método dedutivo: entende-se por esse termo aquele método que consiste em buscar a confirmação de uma hipótese por meio da verificação das consequências 41 previsíveis da própria hipótese. Reichenbach mostrou o caráter complicado desse método e a sua irredutibilidade à verdadeira e própria dedução. Admitir que existe uma relação dedutiva entre a hipótese e os dados analisados, significaria admitir que a implicação A/B nos autorize a considerar a como provável quando b é dado [...]. (Cf. Dicionário de Filosofia, Nicola Abbagnano). 4.4 O cogito, fundamento da filosofia cartesiana Dadas as regras das quais se deveria empreender a caminhada em procura do saber verdadeiro, e tomadas como critério de verdade a clareza e a distinção, Descartes enxerga na dúvida metódica um momento preliminar do conhecimento. O a sua finalidade, com isso, não é evidenciar a impossibilidade de qualquer afirmação, mas remover todos os preconceitos que impedem o correto desenvolvimento do raciocínio. É relevante, termos em mente, no entanto, que apesar de Descartes se usufrua de um posicionamento cético, a dúvida empreendida por ele não é absoluta como nos céticos pirrônicos, que previam a suspensão de todos os juízos num movimento denominado epoché (CALDAS; 2018). A preocupação de Descartes, é antes com as questões referentes ao valor do conhecimento do que propriamente com os estudos das coisas particulares. Desta forma, o filósofo procura localizar um embasamento garantido para o saber (e nesse caso precisa considerar a procura pelo saber científico), por meio da refutação do Ceticismo. Para isso, amplia o chamado “argumento do cogito” cuja principal conclusão é entendida a partir da célebre expressão filosófica “Cogito, ergo sum”. Assim, podemos nos interrogar, se o objetivo fundamental do argumento do cogito é proporcionar um embasamento seguro para o conhecimento por meio da refutação do Ceticismo, qual a intensão de Descartes ao adquirir um posicionamento cético? A intensão de Descartes é refutar o Ceticismo a partir de seus próprios apoios, isto é, adotando um posicionamento cético e exibindo ao crivo do Ceticismo todo seu saber, de tal modo seria possível localizar uma certeza imune às dúvidas céticas. Deparando a certeza “absoluta” e usando um método seguro, é possível restituir o conhecimento em fundamentos sólidos (seguros). Vejamos como Descartes procede nessa procura. 42 Fazendo uma analogia da nossa mente com um cesto contendo determinadas maçãs podres e outras em perfeito estado, o filósofo francês argumenta que: igualmente em nossa mente existe determinados saberes não cofiáveis e que apenas poderemos apontar estes dos realmente seguros por meio do exame minucioso de cada um desses saberes. Nas Meditações Metafísicas (1641), os argumentos são aplicados em graus de intensidade cética crescentes, da maneira como veremos a seguir: • Argumento contra a ilusão dos sentidos: os sentidos várias vezes nos enganam; • Argumento dos sonhos: tudo o que experimentamos acordados, podemos experimentar dormindo, em sonhos não temos nenhum critério para distinguir um estado do outro; • Argumento do “gênio maligno”: poderia ocorrer que determinado espírito maligno, algum demônio, nos confundisse, fazendo-nos, por exemplo, crer que 2+3=6 e não 5. Podemos analisar a dúvida sendo empregada como método de comprovação de validade das certezas avaliadas. Diante da apresentação dos argumentos citados acima, nos encaminhamos para a primeira certeza: até para que tenha um Deus enganador (“dúvida hiperbólica”), que me ludibrie acerca de tudo que eu creio conhecer, é preciso que eu exista. Marcondes (2010, p.172), referindo-se ao argumento do cogito, profere: “chegamos assim à primeira certeza, à verdade precisa do cogito. Se até mesmo para duvidar é preciso pensar, a existência do pensamento, do ser pensante, não está sujeita à dúvida: é mais básica, mais originária do que está, é um pressuposto dela”. Saiba mais O vocábulo “cogito” é usado de maneira primordial com Descartes, e por isso merece uma maior explicação acerca do que, de fato, significa esse termo no projeto filosófico cartesiano. Battista Mondin se fixa de forma breve à discussão atribuindo significado ao cogito no acesso que se segue: 43 A propósito do cogito, é preciso notar que não se trata de uma demonstração, mas sim de uma intuição. O logo (ergo) não tem valor de consequência, mas é simplesmente pleonástico. Se o cogito fosse a conclusão de uma demonstração, ou seja, um entimema, então seria preciso subentender uma premissa universal (por exemplo: em toda parte conhecimento é existência) e não seria, portanto, mais possível considerar o Cogito como a primeira verdade metafísica. Quanto à existência provada pelo cogito não se pode tratar senão da existência do pensamento, da realidade pensante (res cogitans), e não da realidade distinta dos pensamentos. (MONDIN, 1995, p. 272). Spinoza é outro relevante representante do Racionalismo moderno. Por meio de uma ordem matemática e geométrica, o filósofo holandês fala do tema Deus, enquanto substância única e infinita da qual deriva toda a realidade, a partir da tese do monismo substancial e opondo-se ao dualismo cartesiano. O autor ocasiona ainda no seio de sua principal obra (Ética) o tema da liberdade, que se torna provável pelo saber. O cerne da problemática do saber depara-se na maior obra de Spinoza: A Ética demonstrada à maneira dos geômetras (publicada postumamente), composta por definições, axiomas, proposições, revelações, escólios e, em determinados casos, corolários e lemas. A obra está dividida em cinco partes: De Deus; A natureza e a origem da mente; A origem e natureza dos afetos; A servidão humana e a força dos afetos; A potência do intelecto ou a liberdade humana, respectivamente. 4.5 Método geométrico A argumentação filosófica identifica-se de distintas maneiras ao decorrer da História da Filosofia. Gêneros como a poesia, o diálogo, o tratado, o ensaio, o aforismo, o romance literário, o conto, e ao mesmo tempo o método geométrico se mostram presentes ao decorre-se de seu curso. O método geométrico está presente como forma de exposição ao longo de toda História da Filosofia, sendo encontrado algumas vezes de forma plena, usando todos os elementos do método, e outras somente parcialmente. Benedictus de Spinoza 44 O more geométrico adquire grande importância no século XVI e começo do século XVII com o desmoronamento do sistema medieval, o que deu início a uma intensa procura por um método para obter o saber verdadeiro e indubitável. Dois autores podem ser destacados como os principais filósofos a empregarem o método geométrico, são eles: René Descartes e Benedictus de Spinoza. Embora ambos façam uso do mesmo método, a maneira como este é aplicado por cada um é distinguida. Descartes faz utilização do método geométrico analítico, enquanto Spinoza aproveita o método geométrico sintético. Mas em que versa, prioritariamente, a justificativa para opção do método geométrico adotando vertentes diferenciadas pelos autores supracitados? (CALDAS; 2018). http://benedictusdespinoza.pro.br As principais características da filosofia de Descartes que justificam o emprego do método geométrico analítico são: a transcendência, o dualismo substancial e o entendimento finito. A análise versa na procura da verdade, que parte do saber