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D ID Á T IC A F IL O SÓ FI C A M ÍN IM A D an te A ug us to G al ef fi A tese que examinamos, hoje, 23 de novembro de 2015, é fruto da maturidade docente das atividades desenvolvidas em 18 anos, na nossa querida Faced, a Faculdade de Educação da Ufba. Justifica que considera oportuno realizar um esforço comedido para expor o seu posicionamento diante do ensino de filosofia na educação básica nacional. Se a educação é geralmente o capítulo final na vida da maioria dos filósofos, no professor Dante a compreensão com o fenômeno pedagógico é uma preocupação inicial no seu percurso filosófico. O professor Dante trata da Didática como docente que é de Didática e Práxis Pedagógica em Filosofia I e II. Prossegue na sua reflexão filosófica, no seu pensar fenome- nológico. Na compreensão da tese, nas suas derivações conceituais e metodológicas, concebe também o mínimo como o inevitável, como condição do pensar. A didática filosófica mínima não é uma filosofia de escola, mas sim filosofia como diálogo intercultural em ato. Ao ler toda essa digressão filosófica, na cogita- ção do que se percebe e é percebido, como será para o aluno a percepção da Didática Filosófica Mínima? O texto deixa evidente que se trata de uma utopia, sobretudo os últimos capítulos. Não há mais o professor e sim o dialogante mediador, co-construtor do conhecimento e não o “repetidor”. É toda uma filosofia que Dante prevê. Em face de uma construção tão valiosa, acho que deveríamos fazer um projeto experimental com essas ideias para enriquecer o que foi formulado. Prof. Dr. Edivaldo Boaventura (Texto extraído e adaptado do Parecer escrito e lido por ocasião da banca de defesa da tese defendida pelo Prof. Dante Galeffi como requisi- to para a progressão à classe de Professor Titular da UFBA) Dante Augusto Galeffi Professor Titular da Universidade Federal da Bahia (Faculdade de Educação, UFBA), Doutor em Educação (Filosofia da Educação, UFBA, 1999), Mestre em Arquitetura e Urbanismo (Teoria, História e Crítica do Restauro, UFBA, 1994), Estudos de Pós-Graduação, Università degli Studi di Roma, Corso di Specializazione per lo Studio ed il Restauro dei Monumenti, 1980-1982, 1989), Graduado em Arquitetura e Urbanismo, UFBA, 1979); Professor perma- nente do Doutorado Multi-institucional e Multidisciplinar em Difusão do Conhecimento (DMMDC-UFBA/UNEB/IFBA/UEFS/LNCC/ SENAI CIMATEC), Coordenador da Linha de Pesquisa 1 ― Cognição, Linguagem e Constru- ção do Conhecimento/ DMMDC, líder do Grupo de Pesquisa "Epistemologia do Educar e Práticas Pedagógicas", pesquisador e escritor de temas de Filosofia da Educação, Aprendizagem Filosófica própria e apropriada, Formação do Educador Transdisciplinar, Estética, Ética, Hermenêutica, Fenomenologia, Transdiscipli- naridade, Espiritualidade, Difusão do Conheci- mento, Teoriação Polilógica e Teoria da Complexidade. dgaleffi@uol.com.br | galeffid@gmail.com http://lattes.cnpq.br/2133155712300731 DIDÁTICA FILOSÓFICA MÍNIMA Dante Augusto Galeffi Eis um ponto capital da didática filosófica mínima, não se trata de fornecer ao aprendiz tudo o que já foi dito e feito em relação ao mundo das "teorias de mundos", e sim o de fazer com que aprenda pela dialógica e polilógica a manter-se atento às coisas mesmas, atenção ao seu estado de ser-com, a partir de sua singularidade radical. O mínimo quer justamente ir direto ao ponto de decisão para o salto de natureza necessário para se poder falar e realizar o filosofar em sua propriedade dialógica radical, em que não faz sentido polarizar, hierarquizar, impor pensamentos que devem ser imitados pelos aprendentes, e sim deixar vir à superfície o pensar próprio e apropriado de cada um. 978.85.8005.125.4 DIDÁTICA FILOSÓFICA MÍNIMA Ética do fazer-aprender a pensar de modo próprio e apropriado como educar transdisciplinar Dante Augusto Galeffi DIDÁTICA FILOSÓFICA MÍNIMA Ética do fazer-aprender a pensar de modo próprio e apropriado como educar transdisciplinar Salvador – 2017 Copyright © Quarteto Editora, 2017 Nenhuma parte deste livro pode ser reproduzida, sejam quais forem os meios empregados, a não ser com a permissão escrita do autor e da editora, confor- me a Lei no 9610, de 19 de fevereiro de 1998. Projeto gráfico Quarteto Editor Imagem da capa Criação de Dante Galeffi Capa Helga Sant Anna Editor José Carlos Sant Anna Conselho Editorial Célia Marques Telles – Universidade Federal da Bahia Edivaldo Boaventura – Universidade Federal da Bahia Edleise Mendes – Universidade Federal da Bahia João Carlos Salles – Universidade Federal da Bahia Sérgio Mattos – Universidade Federal do Recôncavo da Bahia Suzana Alice Marcelino Cardoso – Universidade Federal da Bahia Todos os direitos desta edição reservados à: Quarteto Editora Av. Antonio Carlos Magalhães, 3213 Ed. Golden Plaza, s/ 702 – Iguatemi 40.280-000 – Salvador – Bahia Telefax: (71) 3452-0210 Email: quarteto.livros@compos.com.br www.editoraquarteto.com.br Impressão e acabamento: EGBA Rua Mello Moraes Filho, nº 189, Fazenda Grande do Retiro CEP: 40.352-000 Tels.: (71) 3116-2837/2838/2820 Fax: (71) 3116-2902 Salvador-Bahia E-mail: encomendas@egba.ba.gov.br SIBI/UFBA/Faculdade de Educação – Biblioteca Anísio Teixeira Galeffi, Dante Augusto. Didática filosófica mínima: ética do fazer-aprender a pensar de modo próprio e apropriado como educar transdisciplinar / Dante Augusto Galeffi. – Salvador: Quarteto, 2017. 154 p. Originalmente apresentado como tese do autor como requisito para progressão funcional para Professor Titular da Faculdade de Educação, Universidade Federal da Bahia. ISBN 978-85-8005-125-7 1. Filosofia – Estudo e ensino. 2. Didática. 3. Pensamento. 4. Educação Humanística. 5. Diálogo. 6. Ludicidade. I. Título. CDD 107 – 23. ed. Aos queridos mãe e pai, Maria Luigia Magnavita Galeffi (Gina) e Romano Galeffi, pelo cuidado intangível que nutriu o coração do caminho próprio e apropriado (em memória); ao querido filho, Rafael Larcher Galeffi, pela dádiva da aprendizagem sem fronteiras na escuta sensível do inaudível. à querida amiga, Urânia Auxiliadora Maia, pela providência do diálogo e poliálogo que nos torna fazedores de histórias próprias e apropriadas sem fronteiras e nas sendas de risos dadivosos; à querida amiga e irmã espiritual Noemi Salgado Soares, que se encontra presente em cada palavra e intenção do que foi escrito; ao querido amigo e mestre da “Ética do amante” Hugo Kutscherauer (em memória), dedico esta obra com o coração alegre, brincante e dadivoso. Sumário Prefácio 9 1 Introdução: por que escrever uma tese? 15 2 O horizonte compreensivo da tese e suas deri- vas conceituais e metodológicas, estéticas, éti- cas, epistemológicas, ontológicas e ecológicas 21 3 O que pretendeu a “didática magna” e o que quer a “didática mínima” 59 4 Considerações sobre a crise de paradigma na globalização contemporânea: a revolução da educação em curso 77 5 Didática filosófica mínima: desenho metodoló- gico acional 113 6 Em síntese: a didática filosófica mínima como caminho interrogante em devir ético e estético 141 Referências 147 9 Prefácio Ao iniciar a escrita do prefácio referente à tese elaborada pelo colega professor DANTE AUGUSTO GALEFFI, para atender ao requerido na passagem de Professor Associado IV para Profes- sor Titular, o faço evocando o poema Fábula de um arquiteto, para que, por analogia a João Cabral de Melo Neto, comece assim: formular uma DIDÁTICA FILOSÓFICA MÍNIMA: Ética do fa- zer-aprender a pensar de modo próprio e apropriado como educar transdisciplinar é como construir portas de abrir, ou como cons- truir o aberto; portas por-onde, jamais portas-contra. Como arquiteto do pensamento e das palavras, Dante inau- gura e atravessa seu tecido escritural com portas de abrir a educa- ção para um “agir aprendente radical”, o que o autoriza a expres- sar sua compreensão de filosofia como aspiração humana, pelasabedoria abrangente, articuladora e intensiva no devir situado e por sua concepção de filosofar como participação imediata no corpo vivente pensante que é ser o que se é com os outros (Nossa, eu gosto muito disso!). A partir dessas compreensões, outras se apresentam como portas por-onde sua tese da didática filosófi- ca mínima passa e dá passagem como “proposição para o fazer- -aprender a pensar de modo próprio e apropriado, a partir das coisas mesmas” que dizem respeito ao “campo da experiência do conhecimento que aspira à Sabedoria”. dante augusto galeffi 10 Mínima, mas abrangente, a Didática Filosófica proposta por Dante é uma construção do aberto que propõe substituir a formação filosófica para uma elite intelectual por um caminho filosófico para todos, compreendendo que “todos são seres huma- nos vivos, inteligentes e potencialmente sensíveis à realização do poder ser mais próprio e apropriado”. Talvez, por isso, as cenas imaginadas e esboçadas pelo Prof. Dante para a sua Didática Fi- losófica Mínima atendem, conforme nos informa, aos diferentes momentos do florescimento humano, correspondendo ao pro- cesso da aprendizagem infantil e fundamental (poética/poiésis de primeridade), da aprendizagem média (poética/poiésis de secun- didade) e da aprendizagem profissional continuada (poética/poiésis de terceridade). A arquitetura basilar da Didática Filosófica Mínima, nos tra- çados multiformes de seu idealizador, é a atitude aprendente ra- dical. Nisso se encontra a revolução do projeto dântico: deslocar o foco do ensinar para o aprender, que tem como fio condutor a investigação do pensamento pelo próprio pensamento situado, com atenção às coisas mesmas, a si, ao outro, ao mundo, um siou- tromundo, um construto batizado por Dante de sioumu, no lugar do Dasein heideggeriano. E é com o triético dântico que o sioumu se realiza. Assim, revela seu texto: “O único compromisso é com o mundo da vida e seu cuidado triético. E o triético é o ético em suas frentes de ação. A ênfase no triético se dá como maneira de chamar a atenção para a condição humana planetária em toda a sua extensão e intensidade. A triética, pois, quer chamar a aten- ção que não basta o cuidado com o ambiente sem que se cuide das sociedades e seus valores espirituais (mentais)”. (p. 24) Considerando os posicionamentos de Morin acerca da re- volução necessária aos nossos dias, que não mais depende de um didática filosófica mínima 11 operador principal, mas de uma multiplicidade de mudanças, transformações autônomas e interdependentes, e em todos os do- mínios, Dante assume que a revolução que impulsiona sua didá- tica é acêntrica, não movida por nenhuma organização ideológica partidária e parcial. Ao contrário, trata-se muito mais de uma pressão gerada pelo ímpeto da vida desejante de mais-vida e mais cuidado triético. Com uma estrutura que se estrutura, se configura, se engen- dra, é trançada e é tramada, em seu processo de construção, a tese da Didática Filosófica Mínima se desdobra num movimento heu- rístico que se realiza na interação autor-texto-leitor. Por isso, na condição de leitora, fui convocada a coparticipar dos argumentos, entendendo que o que lia não traduzia a vontade individual de um sujeito-autor, dono absoluto de seu dizer, mas se configurava como processo de interlocução, o que se abria a possibilidades de sentidos. Com seus espaços e ambientes de indagações sobre o ato de aprender, o texto não me deu trégua. “O que é pensar? Em que consiste uma investigação filosófica? O que faz uma investigação ser filosófica? Por que insistir no uso de uma expressão tão terri- torializada como filosofia? Não seria mais direto não utilizar mais o termo filosofia? ...” Como compreendi com estudiosos do pensamento, a exem- plo de Emanuel Carneiro Leão, que “[...] o questionar nos lança nas questões, nas quais toda resposta tão só a retoma em novo horizonte, numa dialética de afirmação e de negação, sem gene- ralizações, conclusões e exclusões”, fiquei sobressaltada, mas não paralisada diante da profusão de questionamentos do professor Dante. E o que fiz? Nada mais nem nada menos do que embarcar com ele “[...] na terceira via que corta transversalmente o plano de imanência, formado pela relação conflituosa da cultura filosó- dante augusto galeffi 12 fica versus a cultura não filosófica” e, com ou sem sua permissão, escavar com Guimarães Rosa, “uma terceira margem do rio” do inconsciente, de onde emana a magia do ir e vir nas águas do rio e da vida, para entoar com Milton Nascimento e Caetano Veloso: Água da palavra Água calada, pura Água da palavra Água de rosa dura Proa da palavra Duro silêncio, nosso pai. Margem da palavra Entre as escuras duas Margens da palavra, clareira, luz madura Rosa da palavra Puro silêncio nosso pai. E, dessa interação, entendi que a Didática Filosófica Mínima se realiza como história de pensamento que se solta e se pren- de no grande universo de pensamentos chamado mundo social e mundo das circunstâncias, para viver em tensão. E, para escapar a polarização do isto ou aquilo, toma uma terceira via, ou uma “terceira margem do rio”, a margem da liberdade de fazer pensa- mento alçar voos de pensamentos circundantes, elevados, rasan- tes, mirabolantes, avançados, conservadores, não importa o tipo, pois sua matéria prima é a vida que não comporta uma didática comportada. Acho que, por isso, Dante se divertiu, ao escrevê-la, e me contagiou a tal ponto que me diverti, ao produzir sentidos com a sua leitura que não somente me remetia à tese criada e ao didática filosófica mínima 13 seu criador, Dante, mas, ainda a uma outra, a Didática Magna e a seu criador, Jean Amos Comenius. Por conseguinte, a mim importa louvar e louvor a quem bem merece: Professor Dante Augusto Galeffi e sua Didática Filosófi- ca Mínima, tese arquitetada e tecida em pensamentos exemplar- mente estéticos, e materializar minha louvação com um trava-lín- gua que guardo desde muito antes: Terrível é o pensar e eu penso tanto e me canso com meu pensamento que às vezes penso em não mais pensar, mas isso requer ser bem pensado, pois, se penso demais, acabo dispensando tudo que pensei, e, se não penso, fico pensando nisso o tempo todo. Mary de Andrade Arapiraca Professora Titular UFBA-FACED Salvador, 23 de novembro de 2015. 15 1 Introdução: por que escrever uma tese? Trata-se de texto escrito para atender ao requerido da pas- sagem de professor associado IV para professor titular, tendo escolhido escrever uma tese inédita e não um memorial das ati- vidades desenvolvidas ao longo dos últimos 18 anos na Facul- dade de Educação da Universidade Federal da Bahia, junto ao Departamento de Educação II. Considero oportuno realizar um esforço comedido para expor o meu atual posicionamento diante do ensino de filosofia na educação básica nacional. Escolhi tratar de Didática, também para demarcar minha pertença ao Departa- mento de Didática e Práxis Pedagógica nas diversas áreas do co- nhecimento formadoras de licenciados – professores(as) da edu- cação básica. A questão da práxis pedagógica em filosofia sempre me inquietou, levando-me inclusive a realizar a tese de doutorado dedicada à construção de uma proposta batizada de poemático- -pedagógica1 para fazer-aprender filosofia na educação básica. Isto 1 A tese foi publicada com o título “O ser-sendo da filosofia. Uma compreen- são poemático-pedagógica para o fazer-aprender filosofia”, pela EDUFBA, em 2001. dante augusto galeffi 16 me levou a um posicionamento filosofante próprio e apropriado, um pôr-me a caminho de uma investigação radical da condição existencial e histórica do ser que cada ser humano é em si mesmo, pelo simples e óbvio ser que cada ser é em seu existir fenomenal, fático, finito. Ouso pensar todo o conhecimento como uma fe- nomenologia polilógica, que não se limita ao horizonte determi- nado pela filosofia e cultura do Ocidente, e que procura pensar a condição humanaem sua marcha múltipla e diversa, mantendo uma relação com a inteligência criadora para além dos limites da racionalidade técnica dominante e usurpadora dos outros tantos horizontes possíveis de poder-ser humano. Minha aproximação com a fenomenologia se dá de modo completamente transversal, e ocorre a partir de uma compreen- são de que o trabalho propriamente fenomenológico só faz senti- do para quem o realiza em si mesmo. Interessei-me por uma fe- nomenologia da formação e transformação da condição humana vivente e considerei a atitude filosófica como a condição sem a qual não há mundo conectado em sua ambiguidade radical de ser e não-ser, de aparecer e aparência, de real e irreal. Compreendo a filosofia como a aspiração humana pela sabedoria abrangente, articuladora e intensiva no devir situado e concebo um filosofar a partir de uma participação imediata no corpo vivente pensante que é ser o que se é com os outros. Neste sentido, a filosofia é gre- ga apenas no nome, mas não em sua efervescência vital, porque é um traço comum da espécie humana a produção discursiva (lin- guageira) e simbólica de cosmovisões apresentadoras da totalida- de conjuntural, sejam elas reveladas e fabuladoras2 ou /e esclareci- 2 Do antepositivo fa-, do v. lat. for, fáris, fátus sum, fári, significa ‘falar, ter a faculdade e o uso da fala, dizer, explicar, confessar, declarar’ (HOUAISS, 2001). Assim, a fabulação é a capacidade humana de fabular, fantasiar, in- didática filosófica mínima 17 das e explicadas racionalmente. Estamos, como participantes do gênero humano, submetidos à lei imperante da Natureza, que se traduz de diversas formas e gradações, figurações e entendimen- tos tácitos e explícitos. Como seres viventes da espécie humana, somos natureza criada tal como as pedras e os dinossauros e ma- cacos, e como toda natureza criada segue a gênese de sua matriz, tudo o que é criado repete o ato criador de sua nascente. A criação é um fluxo pulsátil em aberto devir cuja estimativa de origem e fim compõe o horizonte de sentido de um ser linguageiro em seu dar-se ser como relação de acontecimentos constelados de senti- dos, o sentido de modo próprio e apropriado. A intenção de escrever uma didática filosófica mínima como tese original e inédita responde a uma exigência própria e apro- priada do trabalho atinente ao conhecimento da condição hu- mana e a educação necessária para a realização da emancipação humana em sua diversidade e diferenças de modos de ser com os outros no mundo. Trabalhando na graduação com a discipli- na Didática e Práxis Pedagógica em Filosofia acabei sempre mais desenvolvendo uma abordagem filosófica da educação que me permite hoje navegar de modo relativamente autônomo no ocea- no conturbado da vida planetária contemporânea, tendo em mira não o alcance de fins substanciais absolutos e objetivos, mas o modo de ser-mais-com que implica no sentido final da existência humana como acontecimento criador. E tudo o que é criado é também descriado, a vida morre, a morte produz vida. Portanto, parece que o fim da vida é criar e descriar, viver e desviver, e a vida humana também parece ser do mesmo gênero, um fluxo contí- nuo impermanente, permanente na impermanência de todo fe- ventar, falsear etc., indicando a função primordial da linguagem que é no- mear o vivido e conhecido. dante augusto galeffi 18 nômeno, um aparecer que desaparece voltando a aparecer sempre outro que até parece o mesmo, porque sempre outro semelhante à memória do vivido, do que apareceu e desapareceu para sempre, mas pode sempre voltar a reaparecer como memória atualizada na lembrança e como interpretação e atualização da informação. Proposição ou Tese: A Didática Filosófica Mínima visa lançar a investigação filosófica para além dos limites dos seus territórios conquistados ao longo de seu tempo glorioso, retornando às coi- sas mesmas para, a partir daí, investigar radicalmente a condição humana em sua inteireza constitutiva com o mundo da vida espi- ritualmente reconhecido, tendo em vista a participação na trans- formação humana para a plenitude vivente. A Didática Filosófica Mínima, assim, apresenta o próprio da aprendizagem filosófica, compreendida como o caminho humano para sua autorrealização inteligente, sensível, criadora e comum-pertencente. Não é um manual de como ensinar filosofia através dos múltiplos recursos didáticos disponíveis, e sim a indicação de como fazer-aprender filosofia a partir das coisas mesmas, através da experiência pró- pria e apropriada do pensamento interrogante compartilhado. Trata-se de uma Didática poética, dialógica, polilógica, portanto, também criadora de novos campos temáticos para o florescimen- to do filosofar como movimento de subjetivação dos indivíduos humanos e suas pessoas. É uma Didática que visa a uma comple- ta mudança da educação humana presente-futura ressignificando radicalmente o caráter transformativo do filosofar com-sentido. Portanto, não se toma aqui a filosofia como uma disciplina entre outras, mas como o campo da aprendizagem de si mesmo com o mundo e com os outros. A filosofia a compreendo como caminho próprio e apropria- do do tornar-se ser-mais, além de si em um para si infinitamen- didática filosófica mínima 19 te disposto à criação/transformação de entidades vitais. Trata-se, portanto, de um movimento sempre único e singular de floresci- mento espiritual transcendente ao suposto sujeito humano obje- tivamente representado, o que remete à subjetivação concreta em seu tornar-se sempre outro. A tese defendida é a didática filosófica mínima como proposi- ção para o fazer-aprender a pensar de modo próprio e apropriado, a partir das coisas mesmas. Meu intuito é o de apresentar alguns perfis do que entendo por didática filosófica mínima, como ma- neira para transformar radicalmente a educação humana presente e futura. A intenção chega a ser uma pretensão aparentemente descabida, mas nela cabe a compreensão radical da condição humana no intuito de desmistificar a impotência ontológica da maioria dos seres humanos. Penso, assim, uma didática filosófica mínima para todos e não apenas para aqueles que seguirão a pro- fissão de filósofos, pois o momento é oportuno para desfazer os nós da irresponsabilidade generalizada que insiste em congelar o projeto humano nas formas alienadas e insustentáveis de existên- cia fática. Ora, o sistema instituído da educação pública e obrigatória está falido na sua função de garantir uma educação de qualidade para todos. E está falido porque o desenho da escola que aí está foi traçado nos séculos XIX e XX e já passamos por uma revolu- ção tecnológica que cunhou a “sociedade do conhecimento glo- bal”, uma sociedade muito mais voraz e agressiva do que todas as anteriores, dividida em dois grupos distintos de pessoas: aquelas que sabem aprender a conhecer e aquelas que não sabem apren- der a conhecer. O conhecimento nesta disputa deixou de ser ava- liado pelo eruditismo e enciclopedismo do modelo de formação cunhado no século XIX na Europa e seguido no século XX. Fica dante augusto galeffi 20 evidente agora como o conhecimento se torna a moeda corrente da globalização em curso, e como não se trata mais de formar para a imitação e repetição de saberes gerais, porque a automa- ção maquínica requer agora o seu operador cognitivo complexo: um ser humano especializado em operações cognitivas complexas cada vez mais sofisticadas. E descobriu-se, depois de longa espera, que se tratava de seres humanos concretos e não de entidades abstratas, e foi possível perceber a emergência da sustentabilidade triecológica, triética. Então, a situação atual da educação em nosso país e no mun- do mostra o conflito entre um modelo cultural moderno e um modelo multicultural pós-moderno em movimento transforma- tivo acelerado, requerendo uma nova política tecida nos afetos intersubjetivos e intrassubjetivos, porque não se trata mais de re- presentação e sim de efetivaçãode uma humanidade realizadora do cuidado triético: cuidado ambiental, cuidado social e cuidado mental. Será esta mudança de natureza possível ao ser humano atual em sua variedade e complexidade existencial dicotômica e alienada de seu poder-ser mais próprio? 21 2 O horizonte compreensivo da tese e suas derivas conceituais e metodológicas, estéticas, éticas, epistemológicas, ontológicas e ecológicas A didática filosófica mínima intencionada só diz respeito ao âmbito filosófico no que este tem de próprio e apropriado, como campo da experiência humana do conhecimento que aspira à Sa- bedoria. Não é preciso recorrer aos gregos para se compreender que só há horizonte compreensivo no mundo da vida de quem se encontra sendo com sentidos. O âmbito filosófico é o engendra- mento de relações dialógicas entre seres humanos ecologicamente situados e economicamente estabelecidos no mundo da vida. O que é o “ser humano”? Esta é uma pergunta que se diz fi- losófica desde o início da filosofia grega. Ser humano é um desses conceitos genéricos que não dizem de fato o que é o ser humano, e sim que o ser humano pode fazer-se a pergunta: o que sou “eu”, ser humano? A pergunta filosófica pelo “que” das coisas percebidas é sempre feita por alguém que percebe. Quem é “este alguém que percebe”? dante augusto galeffi 22 Ora, eis um ponto capital da didática filosófica mínima, não se trata de fornecer aos que se encontram em formação tudo o que já foi dito e feito em relação ao mundo das “teorias de mun- dos”, e sim o de fazer com que o aprendiz aprenda pela dialógica e polilógica a manter-se atento às coisas mesmas, atenção ao seu estado de ser-com, a partir de sua singularidade radical. O míni- mo quer justamente ir direto ao ponto de decisão para o salto de natureza necessário para se poder falar e realizar o filosofar em sua propriedade dialógica radical, em que não faz sentido polari- zar, hierarquizar, impor pensamentos para serem imitados pelos aprendentes, e sim deixar vir à superfície o pensar próprio e apro- priado de cada um. Retoricamente não me cabe agora demonstrar o que primei- ro tem que ser mostrado para depois ser fatiado pela demonstra- ção. E o que tem que ser mostrado é que o mínimo quer dizer o que é imprescindível: o aprender a pensar pensando o pensado para deixar ser a aparição do impensado. Um jogo de efeito esté- tico, porque o pensar que se pode aprender é aquele que se pode saborear. O mínimo quer também dizer o que é inevitável: a con- dição vivente de todo pensar pensante. Tudo começa para acabar. Tudo flui. Tudo passa. Mas aí está o cerne do que compreendo por formação humana e por que se faz necessário ir direto ao que é próprio e apropriado como campo intencional da didática filo- sófica mínima aqui reunida. Penso. O que é pensar? Aprende-se a pensar? Ensina-se a pensar? O que quero dizer usando uma adjetivação para “didá- tica” que a qualifica de filosófica e ainda por cima enfatiza ser a didática filosófica mínima? Por que não usar, por exemplo, a palavra “pensante” no lugar de “filosófica”? Ficaria assim, Didá- tica pensante mínima. Por que insisto em chamar esta didática didática filosófica mínima 23 de filosófica? Por que não chamá-la de “didática ética mínima”, ou de “didática estética mínima”, ou ainda de “didática científica mínima”? Para mim o filosófico aponta para um âmbito em que é o pensar como pensar que se apresenta como aprendizagem do sa- ber pensar. Ora, o que significa saber pensar? Pode-se aprender a saber pensar? O por que aprender a saber pensar? Aqui se encontra a questão da formação humana e aparece a tensão que torna a formação humana um problema que pode ser investigado filosoficamente. Mas em que consiste uma “in- vestigação filosófica”? O que faz de uma investigação ser filosófi- ca? Por que insistir no uso de uma expressão tão territorializada como “filosofia”? Não seria mais direto não utilizar mais o termo filosofia para o que estou expressando com a proposição didática filosófica mínima? Encontro-me em uma encruzilhada. Por qual dos caminhos seguir? Minha escolha escava uma terceira via que corta transver- salmente o plano de imanência formado pela relação conflituosa da cultura filosófica versus a cultura não-filosófica. A polarização da lógica binária é deixada de lado, desativada, desmontada em sua certeza monológica. Eis aqui uma transcendência: saída do plano das polaridades pela compreensão da polarização em seu fluxo dinâmico, em sua dobra fluxonal flexível. É um corpo elásti- co, móvel, instável, efêmero, transformativo do que se tem diante como fenômeno. Um corpo desorganizado. Um corpo Outro. A encruzilhada é a dicotomia posta como norma. A saída pela terceira via é o abandono da luta de opostos. Não tomo par- tido! O que significa não tomar partido? Meu plano de imanência é um “nós” com muitos “nós” desa- tados que impediam a afetividade “entre nós”. Não tomar partido dante augusto galeffi 24 significa ultrapassar a representação. O que se pode pensar como acontecimento é presentação. A representação também acontece quando se reapresenta a presentação. Mas a representação também é o simulacro, e o simulacro também é parte do que se presenta no presentado. O simulacro é o efeito espelho de toda cognição. O jogo de imagens que se apreende em qualquer percepção é o plano engenhoso sem o qual não há aparição de nada. E toda aparição é um acontecimento do organismo vivo capaz de perceber, o que também compreende os seres não-humanos. A pretensão da razão humana em afirmar uma diferença entre os seres humanos e os ou- tros entes da natureza pela presença da linguagem-pensamento não passa de uma operação antropomórfica, uma operação que torna tudo o que se percebe como imagem e semelhança do humano. Ora, a inteligência não é uma propriedade exclusiva dos hu- manos e sim o modo de ser de toda matéria-energia do universo e dos universos existentes. E existentes significa “em efetuação” geracional. A inteligência de toda a Natureza criadora e criada não é algo derivado de um menos que em determinado momento se torna um mais: uma não-inteligência que se torna inteligência do nada. Na inteligência da Natureza o menos e o mais compõem relações gerativas, produzem diferenças geradas exclusivamente nas relações de afetos e desafetos de corpos inteligentes interco- nectados sem interconexões hierárquicas. Assim, todo simulacro perceptivo é constitutivo do ato de perceber e de pensar o percebido. O perceber e o pensar são afe- tações do vivido no vivente. Pensar consiste em afetar-se como corpo pensante vivente. Um corpo vivo em busca pulsiva de mais-vida. Em relação aos meus interlocutores, Heidegger me acompa- nhou até um certo ponto do caminho. Até quando compreendi didática filosófica mínima 25 que o filosofar só acontece em língua de si. É assim que os filóso- fos são como artistas da investigação por conceitos. São também poetas, pois são fazedores de conceitos. São, portanto, produtores de conceitos, inventores ao modo dos poetas da palavra e dos músicos compositores. E por que só se pode filosofar em língua de si, todo filosofar começa pela escuta como experiência do que se mostra pensando. Sem escutar não há pensar como atenção e disposição para o desvelamento do Ente em sua totalidade. E porque toda totalidade também é mais um caso de uma série, ne- nhuma totalidade divisada é a totalidade em si, mas apenas uma relação entre totalidades múltiplas. A pertinência e robustez do pensar de Heidegger nos alerta contra toda ilusão de uma língua do pensamento do ser que se mostra como a única língua capaz de dizer o que se quer dizer com o sentido de “princípio”, de “fim”, de “ser”, de “mundo” etc. Seria como admitir que a única música é a música moderna de concerto, porque passou a ser escrita e pode ser repetida em execuções orquestrais, em salas de concertos eruditos. É deixar de lado como a sabedoria popular presentificamodos de ser no mundo com outros. É negar que o “logos” está em toda parte, e em toda parte aparece “falante”. A língua do pensamento não é uma meta-língua universal e exata. A língua do pensamento é sempre uma interlíngua feita de interações entre sujeitos huma- nos concretos. Por não ser universal, a língua do pensamento se exprime em línguas diversas, e em cada língua o que se encontra é também um processo histórico concreto que alcança sua siste- matização como norma e se perpetua transformando-se. Nenhuma língua de pensamento é privada. É sempre uma língua coletiva tecida nas interações entre falantes vivos. Mas em cada língua há também os forjadores de nomes, um tipo de le- dante augusto galeffi 26 gislador ou fazedor dos nomes. Estes são os poetas. É da poesia que toda língua do pensamento tira sua modelagem conceitual. E porque é modelada, toda língua do pensamento é uma criação dos seus poetas. Isso para demarcar a desterritorialização do que se pode dizer propriamente filosófico. Eis então a filosofia como relação com as coisas mesmas, que são objetivações ou projeções de seres pen- santes em relação com a totalidade vivente. A filosofia, assim, é a “aspiração pela sabedoria”, o amor ao saber, a atenção ao instante, a disposição ao diálogo como aprendizagem pensante. O que destaco é a atitude filosófica como atitude aprendente. Este é o teor da desterritorialização realizada. Não me refiro à filosofia acadêmica com suas escolas e territórios. Refiro-me ao filosofar como atividade formativa, transformativa em ato. O ca- ráter filosófico da didática filosófica mínima, então, diz respeito à atitude aprendente radical: atenção às coisas mesmas − a si, ao outro, ao mundo – sioutromundo, um construto agora batizado sioumu no lugar de Dasein. Eis o ponto crucial: a didática filosófica mínima é a atitude aprendente radical. Deste modo, tudo o que for aprendido desde o início tem como fio condutor a investigação do pensamento pelo próprio pensamento situado. Nesta medida, o filosófico é propriamente o investigativo: todo conhecimento é investigado e construído em relações apropriadas. Conhecer é relacionar: cons- truir relações conascentes. Então, a didática filosófica mínima não limita o seu campo de ação a nenhuma moldura imposta pela filosofia autorizada. Não é filosofia de escola e sim filosofia como diálogo intercultural em ato. O horizonte de configuração da proposição didática filosófica mínica encontra-se aberto ao inusitado e imprevisível, o propria- didática filosófica mínima 27 mente criador. A resolução do dilema epocal que prefigura como um salto de natureza no âmbito da relação do ser humano com o seu meio e o cosmos só pode ocorrer por meio de pessoas huma- nas viventes. Veja-se: o que se quer para o ser humano? Educá-lo para quê? O horizonte não pode ser apenas ocidental, oriental, africano ou andino, porque é o horizonte do agora em que todos estão imersos no fenômeno da globalização. É o horizonte de cada um em sua singularidade e conjuntura. Tudo anda junto no âmbito do que faz sentido. Um horizonte agora localizado só pode ater-se ao seu contexto e entorno. Tudo começa pelo lugar em que cada um existe. E cada um é um projeto em desenvolvimento e o pen- samento não é particular, mas uma condição do gênero de ser que é a espécie humana em todas as suas derivas culturais e históricas. O ser humano pensa. Mas, o que é pensar? O ser humano pensa como uma condição de ser humano vivente. O pensamen- to se dá na linguagem e a linguagem se articula no pensamento. Pensamento e linguagem são o mesmo. O mesmo, entretanto, não significa que são iguais e sim que são um no outro sem solu- ção de continuidade. Não se pensa sem linguagem e o pensamen- to é a linguagem que se articula também em gestos e palavras. A linguagem é uma escuta e uma fala que se pode escrever. Quando escrita, a linguagem precisa ser lida para ser escutada. Mas a lin- guagem, o pensamento, não nasceu da escrita porque a escrita é uma técnica e a linguagem é uma poética que também é artifício que já distingue o ser humano dos demais seres vivos: a lingua- gem é o meio universal da existência humana, como Gadamer (1998) enfatizou em sua hermenêutica filosófica. E a linguagem como meio universal é sempre a linguagem encarnada de seres que existem na linguagem. O meio universal é como a água para dante augusto galeffi 28 os peixes. Assim, o pensamento é o modo de ser dos humanos como linguagem. Não é, portanto, um privilégio de alguns, mas é copresente em todo ser humano. Uso Gadamer para fazer ecoar o argumento da linguagem- -pensamento que é o que são os seres humanos em suas existên- cias fáticas. Nossa reflexão tem sido guiada pela ideia de que a lingua- gem é um centro em que se reúnem o eu e o mundo, ou melhor, em que ambos aparecem em sua unidade originá- ria. [...] Em todos os casos em que estivemos analisando, tanto na linguagem da conversação, quanto na da poesia e na da interpretação, tornou-se patente a estrutura espe- culativa da linguagem, que consiste não em ser cópia de algo que está dado de modo fixo, mas em um vir-à-fala, onde se anuncia um todo de sentido [...] O ser que pode ser compreendido é linguagem. [...] Por isso não falamos somente de uma linguagem da arte, mas também de uma linguagem da natureza, e inclusive de uma linguagem que as coisas exercem. (GADAMER, 1998, p. 686-687) A didática filosófica mínima se apresenta como meio comum para todos os processos aprendentes porque parte das condições concretas de cada caso singular humano. Não é, portanto, uma didática mínima em geral e sim uma didática mínima como dis- posição aprendente aberta ao acontecimento do pensar apropria- dor, próprio e apropriado. Significa que não é uma didática moduladora de uma forma padrão externa à relação do pensar nas circunstâncias comuns, e sim um meio dialógico e polilógico de deixar acontecer o apren- der a pensar no pensar encarnado de cada aprendente. didática filosófica mínima 29 Como sustentar a tensão da didática filosófica mínima em seu esvaziamento radical em relação a todos os modelos externos? Trata-se aqui de um posicionamento que começa do início. E o início é a criança em seu florescimento pensante. O pensamento é nosso meio universal de existência conjuntural. E o pensamento é inerente ao ser humano vivente. Aprende-se a respirar respirando. Aprende-se a pensar pensando. Como assim? Não há hierarquias a transmitir e perpetuar? Não há por primeiro a submissão exter- na para depois se conceber a possibilidade de se poder aprender a pensar? Como seria, então, a didática filosófica mínima em sua ação formativa? O que lhe cabe fazer para favorecer a aprendizagem do pensar apropriador? Em se tratando de didática o horizonte é metodológico, ético e estético, poético, epistemológico e político ao mesmo tempo. Assim, não se trata de uma negação da tradição de ensino vigente e sim de uma suspensão de seus efeitos museológicos e de ilus- tração, para favorecer a relação direta de cada aprendente com o mundo da vida. E este ponto do mundo da vida é um dos tensores mais importantes da concepção exposta e defendida por justifica- tivas dialógicas e pólilógicas. O mundo da vida é o mundo vivido e vivente. Humanos são seres vivos e o mundo da vida é o mundo dos que vivem. Vive-se com o mundo da vida e pensa-se o vivido do vivente. Pensar é vi- ver pensante! Mas, que sentido tem o pensar além dos afetos vivi- dos? Pensar em uma perspectiva afetiva fundamental é pertencer à vida pensante. Mas por que há diferentes graus estabelecidos do pensar e do bem pensar? A questão da centralidade monológica da filosofia ocidental precisa ser ultrapassada, transpassada para que se alcance o pensar dante augusto galeffi 30 concreto a partir de cada ser humano/pensante em seu aprender a pensar. E aprende-se a pensar escutando na língua de si, e se aprende a falar e se chega a aprender a ler ese alcança também a escrita. Por quais motivos separar tais aprendizados da atitude filosófica, que é a atitude aprendente radical? O que se quer fazer-aprender com a filosofia museográfica? E o que se quer fazer-aprender com a didática filosófica mínima? Trata-se de uma decisão em relação ao design da humanidade que se está construindo no presente-futuro. No mundo globalizado da sociedade do conhecimento e da informação não faz mais sen- tido a cultura da ilustração. A questão é então saber o que se coloca no lugar da escola ensinante dominante, na qual o educa- dor é um aulista − um dador de aulas homogeneizantes, fechadas para a construção colaborativa do conhecimento, repetidoras de padrões modelados de fora, dentro de uma temporalidade geo- metrizada e fracionada em parcelas de duração. O que se quer fazer-aprender com a didática filosófica mínima é o acontecimento realizativo de cada um em sua incontornável diferença. Nesta visada, todos são incluídos porque são in-con- cluídos, não há exclusões ou comparações de qualquer ordem porque tudo é composto de relações em cadeia. Entretanto esta didática pressupõe um outro mundo humano fundado no cuida- do incondicional ao mundo da vida em sua efervescência poética. Ela é o avesso do plano disciplinar de homologação do homo- gêneo estático ser em si surdo em sua incomensurável perdição fragmentária. De imediato, a didática filosófica mínima está aberta ao cos- mos em suas variações e climas diversos, em seus cursos e recursos trovejantes e relampejantes, em seus dias claros e noites profun- das. Este horizonte amplo, entretanto, se torna estreito em cada didática filosófica mínima 31 caso, porque o ser humano vivendo no mundo se encontra com- pletamente atado ao mundo da necessidade. Vive-se, em princí- pio, para manter a vida recebida no nascimento. Quem nasce está atado à vida em sua passagem inevitável: floresce para fenecer. O pensar humano, então, se dá no curso da vida vivida e vivente, e se aprende tendo em vista o desenvolvimento humano em suas circunstâncias vitais. Aprender a pensar, então, é a maior neces- sidade humana diante do que se encontra aberto como projeto ontológico em andamento. Mas, porque na história poucos aprendem a pensar como um modo de ser curador trivalente? Esclarecendo, o curador tri- valente é o ser humano em sua função cosmológica de mediador inteligente e sensível da totalidade que o abarca e ultrapassa. A construção histórica de um ser humano dominador da natureza se mostra como desvio ontológico grave, porque o ser humano não é o centro do universo e nem muito menos o termo final de uma evolução em curso. Ser curador trivalente é fazer-se morada temporária do que não tem ocaso em sua impermanência porque o mundo da vida vive de aparecer e desaparecer, e o ser humano encontra o seu sentido em cuidar do mundo da vida trivalente: ambiental, social e mental. A trivalência do curador humano projeta sua vida como cui- dado incontornável consigo, com os outros e com o mundo: a vida abundante como condição da inteligência vital consciente da consciência e da inconsciência. Uma abundância da otimização e não da maximização, do aproveitamento do caos no engendra- mento dinâmico da ordem, pois toda ordem nasce do caos e todo caos é a ordem da indistinção, aquilo de que não se pode saber mesmo com toda vontade de saber. E o que não se pode saber é quando tudo teve início e por que. Não se pode saber sobre os li- dante augusto galeffi 32 mites de início e fim, porque tudo o que é consiste em ser sempre um meio, um entre, uma relação, e o início e fim não passam de delimitadores temporais e configuradores espaciais e imagéticos, o que requer o campo da memória e o processamento cognitivo da informação em conhecimento genético, conhecimento que se acumula em sua gênese vital. E tudo do vazio surge. E o vazio está cheio do que não se pode ver e nem medir, nem mesmo ouvir, ou cheirar ou mesmo saborear. Porque o que se pode perceber é parte do que vive e é vivente. E é no vivente que toda inteligência se traduz/transduz de múltiplos modos e se projeta em andamentos criadores: o que aparece para quem percebe o aparecer é o que vai sendo criado como meio do vivente. No fluxo se dá o fenômeno que só é retido pela capacidade de registro de tudo o que vai acontecendo no mundo da vida. O horizonte da didática filosófica mínima se abre como me- todologia (saber fazer), epistemologia (saber conhecer), ética (saber agir), estética (saber fazer-como-se), ecologia (saber viver) e ontologia (saber ser) conjuntamente. É um poli-horizonte, é polilógico. Nele não há nada fora da relação conjuntural entre línguas plurais e é justamente poli-horizonte porque é divisado por muitos pontos de vista. O logos do horizonte é poli-logos, tem muitas falas, mora em muitos lugares ao mesmo tempo. E o ponto de vista de cada observador alcança um metaponto de vista quando se abre para além do configurado como posição fixa. Cada ponto de vista tende a ser um metaponto de vista, e todo metaponto de vista é somente um ponto de vista. Isso pri- vilegiando a visão: metaponto de vista ainda privilegia a visão. Mas pode ser um metaponto de interações em que a visão não tem privilégio e sim o campo das interações produtoras de um metaponto de interações. didática filosófica mínima 33 Assim se produzem mundos pela reunião de coletivos cons- tituídos em ações conjuntas. Todo indivíduo é constituído de muitos indivíduos. Os planetas são indivíduos feitos de muitos outros indivíduos. Para esclarecer, entendo por indivíduo não o que é indivisível, o que tem uma unidade ideal, e sim o que é indivisível como reunião de tantos outros indivíduos, o que tem unidade como reconhecimento do pertencimento polilógico, pertencimento de muitos no mesmo sem-fundamento. Tudo, então, confirma que se pode aprender a pensar sempre a partir das circunstâncias da aprendizagem. Muda-se, portanto, o horizonte de sentido no processo formativo humano. A apren- dizagem não está a serviço de atender a mercados de trabalho, porque serve ao desenvolvimento humano fundado no cuidado. Entretanto, secundariamente serve também para formar os pro- fissionais nos diversos campos tecnológicos necessários à manu- tenção da vida associada. É preciso que a didática filosófica mí- nima não se aliene no mundo mágico do pensamento filosófico instituído e tenha de fato utilidade na construção política de cada um e suas circunstâncias, uma das máximas do pensamento vita- lista fenomenológico-existencial do século XX, cunhada por José Ortega y Gasset (1967). Já o fato de se ter que circunstanciar cada ato aprendente e formativo significa atuar polilogicamente. Cada ser humano é único em sua aparição e aparência. O único pode até ser replicado em sua matriz combinatória, mas é preciso atentar para cada caso em sua singularidade própria. E aqui está o salto: para aprender a pensar deve-se começar pelas circunstâncias e não pelas pres- crições e molduras normativas para serem imitadas pela memo- rização. O primeiro passo é deixar de lado o informacionismo pré-fabricado e partir para a experiência própria do pensamento. dante augusto galeffi 34 Pergunte-se a uma criança o que ela acha de algo que a afete, e ela iniciará um diálogo que só acaba com as respostas recebidas dos adultos apressados em encerrar o assunto. A criança capaz de for- mular uma questão qualquer mostra que o pensamento é comum a todos os humanos em diferentes regimes de relação e perten- ça. Então, não há forma externa padrão para ser transmitida aos aprendentes que devem imitá-la e sim uma relação construtiva no ato de conectar-se ao conhecimento já edificado pela natureza e pelas sociedades humanas. A conexão já está estabelecida como mundo da vida, é preciso então favorecer o florescimento pela atividade aprendente. O horizonte aprendente é horizonte dos aprendentes. Sig- nifica dizer que todos sem exceção podem aprendera pensar de modo próprio e apropriado. O que também diz de uma condição que acolhe a diversidade e não comparação como campo de seu fazer e saber-fazer. Não há o que ser ensinado e sim o que pode ser aprendido no florescimento do viver com-sentido. Neste aspecto, ultrapassa-se o campo da filosofia profissional que atende a um universo de formação que classifica, discrimina e hierarquiza o posicionamento social e moral de pessoas humanas por critérios de aptidão ou inaptidão para as tarefas cognitivas ditas “superio- res”. A imagem histórica do filósofo como aquele ser estranho e alienado do mundo da vida, uma figura rara e especial do passado ocidental, assim como a do profissional de gabinete ocupado com seus autores eleitos, mas desatento aos acontecimentos instantes, dá lugar à necessidade humana por um desenvolvimento do pen- samento como o meio universal da existência, cabendo a todos aprender a pensar para a realização de uma vida comum-respon- sável e novidadeira, criadora. didática filosófica mínima 35 Assim, a didática filosófica mínina só leva a adjetivação de “filosófica” em virtude do sentido radical de “amor à Sabedoria”, o que é bem diferente do que se tornou a filosofia em seu caráter técnico e sistemático de um saber de poucos, cuja arqueologia requer uma especialização similar ao que precisa um arqueólogo de monumentos. Porque a filosofia moderna se tornou uma ativi- dade acadêmica disciplinar e deixou de lado sua natureza interro- gante radical para se tornar um discurso do “mesmo” que enfatiza e até justifica a dominação de uma minoria sobre uma maioria. Falando de uma maneira direta, imagina-se que uma edu- cação básica garantida pelo Estado tem que proporcionar o de- senvolvimento do pensamento operador para todos, em diferen- tes escalas e matizes. Isto significa que uma disciplina que tem o nome de filosofia vai apenas tratar de aspectos territorializados e oficiais do pensamento humano, não cumprindo a sua função formativa que seria a de proporcionar a aprendizagem do pensar apropriador e livre de autoridades externas, mas dependente das relações afetivas existentes no campo da experiência humana ge- ral. Assim, a ideia de livre pensamento é também complemen- tada com a compreensão da interdependência das partes de um todo complexo. O livre pensamento não é uma ruptura com a realidade construída e sim um posicionamento tensivo que pode interrogar sobre o que se mostra e pode decidir por onde ir e como passar os dias da finitude mantendo-se presente e amante. Se o que há de comum é o amor ao sabor que sabe, toda a história humana pode servir de cenário para a aprendizagem do pensar apropriador. Significa que não se privilegiará a história do Oci- dente e o curso da filosofia ocidental, e sim o encontro humano com seu poder-ser mais próprio: o alcance da comum-respon- dante augusto galeffi 36 sabilidade pelo mundo da vida. A prática criadora da liberdade partilhada. Quero chamar em causa que a tarefa da educação humana é a de favorecer o pleno desenvolvimento espiritual das pessoas, porque as pessoas esclarecidas de sua condição existencial e for- madas para exercerem atividades de produção complexas e au- tônomas são aquelas que podem se tornar curadoras do mundo da vida em sua amplitude e especificidade. E isso pressupõe uma revolução cultual capaz de desmistificar o uso centralizador do poder paradigmaticamente instituído. Quero dizer, o paradigma dominante é o da insustentabilidade triética, o que significa a manutenção do status das relações de poder estabelecidas, o que é uma contradição do ponto de vista de uma racionalidade ins- truída pela irredutível dignidade dos humanos em suas diferenças ontológicas radicais. Aqui me encontro diante de uma muralha grandiosa de pre- conceitos e impedimentos simbólicos estranhos e sorrateiros, que querem justificar o estado de indigência ontológica dos humanos marginais e inocentes, quando o que há é a manutenção da cren- ça que os aprisiona em toda espécie de desventura. Porque cada ser humano tem em si mesmo como corpo vivente a potência do pensar apropriador. E cada um tem o instinto de eleger o seu mundo, de decidir pelo seu viver. Este é o ponto crucial da di- dática filosófica mínima tomada como tese e aqui defendida: seu horizonte de efetuação é o deixar ser o aprendente aprendiz de si mesmo em um mundo ilusório. Realizo um esclarecimento necessário, porque estou afirman- do que há um mundo ilusório, o que pressupõe a existência de um mundo verdadeiro. A velha dicotomia entre aparência e es- sência. Não. Quando falo de ilusão me refiro ao conjunto de tudo didática filosófica mínima 37 o que é, porque nada permanece enquanto matéria-energia, exce- to o absolutamente imprescindível. E o imprescindível não são os mundos habitados e seus valores e sim o que não conhece ocaso. E o que não conhece ocaso ninguém conhece apesar de supor conhecer através da ciência empírica da matéria-energia. O que não conhece ocaso tão pouco alguma vez nasceu. Assim, tudo sem exceção é efervescência da ilusão: uma aparição fenomênica que só aparece para quem percebe. E quem percebe? É o sujeito, é a entidade inteligente, o indivíduo, o observador? Ora, quem percebe só percebe ilusões, configurações imagé- ticas geradas pelos sentidos construídos geneticamente. E quem percebe é o ser que não tem ocaso? Como assim? O perceber está além do percebido? Parece que caminho por uma argumentação que não quer provar nada, mas quer mostrar modos de compreender o mundo que vão direto ao ponto: a mente é o encobrimento do ser que não é nada, caso contrário seria ou “isso” ou “aquilo”, seria algu- ma coisa no tempo-espaço da percepção. Este “nada”, entretanto, é o que se pode chamar de presença: uma presença sem nenhu- ma substância, sem qualidade, sem extensão, sem limites. Uma presença que é um mundo, um ambiente, sociedades e produção de valores mentais/espirituais. Uma presença que também como presença se vive como ausência, perdição, infortúnio, fuga de si como aquilo que não tem ocaso. Tampouco é uma alma, porque alma é sempre psicofísica e quando morre o corpo desaparece a alma. De modo similar, quando se desliga um computador, tudo o que nele há desaparece da tela. Assim, a vida é como a ilusão da tela do computador que só funciona quando este está ligado. Uma vez desligado, tudo desaparece, se faz ausência. Entretanto, nada do que se fez se per- dante augusto galeffi 38 de, mesmo com a ausência de registro historiográfico, está tudo registrado, o problema é que não se tem em geral meios técnicos para traduzir a informação de cada parte de um todo e torná-la de novo presente nas superfícies do entendimento em ato. Tudo o que se pode entender está em relação com o aparecer e sua aparência. Como se percebe a textura de um ente natural? Como percebemos que percebemos? Em toda percepção há o que perce- be. Quem percebe? No horizonte da didática filosófica mínima dizer aprender é o mesmo que saber fazer. O campo vivencial da didática é a supres- são de toda didática seja ela mínima ou máxima. Sim, porque se nomeio uma didática mínima se pressupõe a presença de uma di- dática máxima. E dizer que há supressão de toda didática significa apenas que a didática é o modo como se faz e se aprende fazendo a fazer. Então, a didática é uma arte e uma ciência simultanea- mente. Como arte ela é uma estética, uma ética, uma política e uma ciência simultaneamente. Como ciência ela é um conheci- mento sistemático que é também estético, ético e político. Não se trata, pois, de separar as partes de um todo e sim de uni-las sem centros e hierarquias. No horizonte divisado muitos são os rostos e muitas são as caras. Rostos e caras são as dobras do que é apenas um: muitos rostos, muitas caras são todos um em todas. Mira-se o presen- te do presente: cuidado atentivo dialógico, polilógico. O senti- do não é formar para a insustentabilidade e, assim, não se temcompromissos com nenhuma das formas ideológica e regimes de enunciação dominantes, hegemônicos. O único compromisso é com o mundo da vida e seu cuidado triético. E o triético é o ético em suas frentes de ação. A ênfase no triético se dá como manei- ra de chamar a atenção para a condição humana planetária em didática filosófica mínima 39 toda a sua extensão e intensidade. A triética, pois, quer chamar a atenção que não basta o cuidado com o ambiente sem que se cuide das sociedades e seus valores espirituais (mentais). Nos dias de hoje essa ênfase faz sentido, mas para uma sociedade que vive harmonizada aos ciclos vitais de seu meio e deixa ser os que nas- cem em seu âmbito para que aprendam a linguagem do mundo da vida em suas necessidades concretas. Há aqui um salto importante, que consiste em radicalizar o acesso ao sentido que pode ser aprendido a partir de cada um e suas circunstâncias. E o salto também provoca vertigem, o qua- se medo do abismo, e por isso reclama a presença de curadores humanos aptos para deixar que os aprendizes aprendam as coisas mesmas. O curador (educador) é o que cuida do florescimento circunstancial dos florescentes. E por ser cuidador não lhe cabe imprimir formas nas almas supostamente vazias dos aprendentes inocentes. Seres humanos não são tábulas rasas e sim potências aprendentes vivas. Pois qualquer nascimento é circunstancial e o ser que nasce atende ao programa de sua espécie no conjunto do mundo da vida. O ser humano nasce aberto ao devir de suas conjugações e é por isso que tem que aprender a tornar-se um japonês ou um inglês, um andino ou um brasileiro. Nascesse cada um em outro lugar e com outros pais aprenderia a língua de si com seu entorno cultural. O que é este modo de ser que precisa de cuidados para vir a ser uma passagem? No horizonte delineado da didática filosófica mínima com- preende-se o ser humano como mediador e curador do mundo da vida e não o seu proprietário e senhor. Há, então, uma estética, ética, política, epistemologia, ontologia e ecologia acontecendo no modo de ser linguageiro das culturas humanas. É um hori- zonte de atividades aprendentes necessárias e comuns a todo ser dante augusto galeffi 40 humano em sua singularidade radical, compartilhando o que é comum no que é comum como mundo da vida. Mas o mundo da vida é também mundo cultural: artifício. O que é feito pelas mãos humanas. No ser humano o mundo da vida é o seu mundo espiritual vivo. Quase um teatro que é o mundo encontrado em seu estado de natureza em que no seu pal- co cênico as diversas máscaras se apresentam inclusive as máscaras sem máscaras que são os atores em si mesmos e seus personagens. Então, no âmbito humano não se compreende mundo da vida como mundo natural e sim como mundo que já estava aí antes de alguém, como cada um de nós, existir. E esse mundo que já estava aí é também revelado simbolicamente e na maioria das vezes é um simbólico que tem a medida do ser humano: um simbólico antropológico. Portanto, o horizonte configurado tem planos de ação visan- do à vida ativa das sociedades concretas que se implicam com seu florescimento e fenecimento com-sentido. Aliás, vivemos nas cer- canias do com-sentido mesmo quando o sem-sentido se mostra em sua concretude tanto quanto o com-sentido. E o com-sentido floresce de diversos modos e de formas inusitadas, assim como o sem-sentido impõe silenciosamente sua gravidade. Duas forças opostas que nunca são em separado, mas uma é a dobra da outra e cada qual só é no complemento do seu oposto contraditorial. Sendo um horizonte de ação, o estético, ético, político, epis- temológico, ontológico e ecológico que nele há diz da ação cul- tural no acontecimento florescente de sociedades humanas altivas e zelosas de seu poder-ser mais próprio: o cuidado trivalente e polivalente. Portanto a valência e valentia no que se projeta como saber-ser que se pode aprender pelo diálogo, poliálogo com as coisas mesmas: o que nos alcança e nos atravessa como consciên- didática filosófica mínima 41 cia encarnada capaz de cruzar os tendões da criação do que quer ser-mais e em que ser-mais é ser-mais cuidado e serviço amoroso. Não é um ser-mais em relação aos tantos seres-menos, porque é um ser-mais acêntrico, não hierárquico e sim comum-pertencen- te no ser-mais de cada florescente. E porque é um horizonte de ação dispõe também de sua epis- temologia própria, que é o seu agir consequente, rigoroso, impre- visível, experimental: cada caso é caso único de uma série de casos únicos. Tudo o que está sendo é caso de casos de série de casos. E o caso não precisa de publicidade para ser caso. Uma floresta em seu ciclo vital é o caso de uma série de séries sem publicidade. Um planeta desconhecido e distante com seu sistema solar é um caso de casos de séries de séries de planetas e sistemas solares. O horizonte figurado, então, é um campo virtual de aconte- cimentos ainda não gerados, mas que tem atrás de si outros hori- zontes que sucederam outros horizontes. Um horizonte é sempre um mundo vivido em sua concretude. Um mundo da duração com um antes um agora e um depois. Uma temporalidade do vivente que sabe ser vivente no limite da superfície do aparecer com sua aparência. O campo do que tem uma duração ligada ao vivente e só aparece como vivente-vivido: tem memória no presente do passado e do futuro pela antecipação presuntiva. O futuro previsto é o passado no presente estendido. Então, o próprio pensar não é nada além de afetos e afecções e em geral o pensar está ligado ao que já passou. Pensar é ater-se ao já passado. E é neste aspecto que o pensar se dobra como sen- tido do vivente e se projeta como vivido a viver. Pensar é assim a condição em que há afetos e afecções disparados em busca de flutuações de corpos em florescimento. E são corpos pensantes, ou melhor, sentintes. Pensar é sentir o que atravessa o sentido. dante augusto galeffi 42 Pensar é sentir o passado no presente já futuro. O futuro é o presente prolongado no ser que floresce e se percebe passando. O pensamento é uma passagem. Por que, então, aprender a pensar? Por que uma didática fi- losófica mínima se todo pensar é passagem e transcendência em si mesmo? Aprender a pensar para fazer-se curador do mundo vivido. É então um pensar que se atém ao concreto, ao mundo dos en- carnados e que têm a potência da unidade múltipla, a unidade não homogênea, a unidade na efervescência do vivido no vivente. Uma unidade comum-dividida. Unidade partilhada. Unidade re- lação. Unidade sem fronteiras. Unidade do vivente que se projeta em construção de si no conjunto do vivente em si. Uma grande tarefa aquela de unificar a dispersão pela acolhida incondicional da diferença no devir humano e além humano. Pois todos são pensantes. E porque todos são pensantes não quer dizer que são todos sábios porque pensam. Não, pensar não quer dizer nada de pessoal. Pessoal é a obra que se faz com o pensar, a obra dita filosófica no sentido presente desde os gregos. É óbvio que a história da filosofia é o aconteci- mento da criação de obras filosóficas por pessoas que filosofaram por escrito. São todas obras da operosidade criadora humana, e não são superiores e nem inferiores às outras formas de criação, como a arte e a mitologia e suas verdades são tão verdadeiras como as verdades míticas. Enfim, quando se lida com a tradição filosófica do Ocidente nos encontramos diante de um mundo cultivado por pessoas humanas singulares, e não por um mundo que é o modelo dos mundos. De certa forma, Husserl (2012) não tinha razão ao intencionar, em sua última obra “A crise das ciências europeias e a fenomenolo- didática filosófica mínima 43 gia. Uma introdução à filosofia fenomenológica”, uma restauração da grandeza da ciência europeia em uma evidente atitude euro- cêntrica. A extensão de suas proposições filosóficas, entretanto, vai muito além de algo limitado à história da ciência ocidental, e sua atitudefenomenológica só faz sentido como um regime de crença que só pode aderir quem a ele pertence e se sente pertencente. Vou assinalar uma passagem de Husserl reveladora de sua intenciona- lidade eurocêntrica e de sua vinculação ao historicismo filosófico ocidental, com seus luminares e as consequentes derivas escolares e sistemáticas. Como se o mundo e a história do mundo fossem um privilégio da cultura europeia desde os gregos e que seu esplendor a tornam universal para todas as outras medidas possíveis. Uma su- posição de universalidade que só entende a história como sendo a história da totalidade humana a partir do Ocidente, como se fosse possível abarcar a totalidade dos acontecimentos humanos pela for- ma de racionalidade discursiva nascida entre os gregos, fundamen- tal para se compreender a historicidade ocidental como um caso de racionalidade e não o modo universal da racionalidade. Vou trans- crever uma passagem para mim reveladora de um perspectivismo encerrado em uma ideia de sujeito transcendental transfigurado em ego transcendental, como reduto último de qualquer possibi- lidade de fundamento apodítico do conhecimento, portanto, que exprime uma necessidade lógica, não um simples fato corriqueiro, mostrando uma natureza evidente e indubitável. Este é o perigo de absolutização do pensamento filosófico ocidental como se fosse “o pensamento por excelência”. Um perigo deveras assustador porque pode se tornar instrumento de dominação de alguns sobre outros. O que, em si, é historicamente o primeiro é o nosso pre- sente. Sabemos sempre já do nosso mundo presente, e sabemos que nele vivemos, cercados sempre por um ho- dante augusto galeffi 44 rizonte infinito e aberto de efetividades desconhecidas. Este saber, como certeza de um horizonte, não é algo de aprendido, um saber que tenha sido alguma vez atual e que somente se tenha tornado imerso como um plano de fundo; a certeza do horizonte tinha de já ser, para poder ser explicitada tematicamente, ela é já pressuposta para que se queira saber aquilo que ainda não se sabe. Todo o não saber diz respeito ao mundo desconhecido que, no entanto, é para nós de antemão mundo, como horizon- te de todo o questionar do presente e, assim, também de tudo o que é especificamente histórico. Estas são as questões que se dirigem aos homens, como aqueles que agem e criam no mundo uns com os outros em comuni- dade, e que transformam sempre de novo a face cultural permanente do mundo. Não sabemos, além disso − e já tivemos de falar sobre isso −, que este presente histórico tem atrás de si os seus passados históricos, que ele veio a ser a partir deles, que o passado histórico é uma conti- nuidade de passados que resultam uns dos outros, cada um como uma tradição que foi presente, e que produz, a partir de si, tradição? Não sabemos que o presente e todo o tempo histórico nele implícito é o tempo histó- rico de uma humanidade histórica única-una, unificada pela sua vinculação generativa e constante comunidade no cultivar a partir do que já sempre foi cultivado, seja em um trabalho comum, seja em uma consideração re- cíproca etc.? Com tudo isto não se está já indicando um “saber” universal do horizonte, um “saber” implícito e sistemático, a ser explicitado segundo a estrutura da sua essência − não é este o horizonte, que se torna o grande didática filosófica mínima 45 problema, onde cabe todo o questionar, e que nele está assim pressuposto? (HUSSERL, 2012, p. 310). Essa passagem é suficiente para compreender como Husserl pensa a centralidade das ciências europeias na universalização da História da racionalidade planetária. Esqueceu-se de contemplar e investigar outras matrizes de pensamento que também são his- tóricas e não se afinam com a racionalidade ocidental. Talvez a interiorização da dialética hegeliana que tanto consolidou o idea- lismo alemão tenha subsumido a intenção de Husserl de radicali- dade e busca da verdade lógica absoluta. De qualquer modo, a inspiração de uma didática filosófica mínima vem de Husserl, de sua posição filosófica de retorno às coisas mesmas, por meio da epoché transcendental e da “redu- ção” eidética. Husserl retoma o sentido de uma filosofia primei- ra, absoluta, cujo fundamento é o sujeito transcendental em suas formas de determinação fenomênica. Confirma a tradição que vem dos gregos, sobretudo de Platão e Aristóteles, alcançando os modernos a partir de Galileu e Descartes e desaguando no kantismo de sua época. O seu grande mérito consiste em retomar a investigação da constituição do conhecimento humano em sua instância racional pura, a priori, não dependente da experiência empírica para ser reconhecida e convalidada. O sujeito transcen- dental é investigado em sua efetividade como intencionalidade eidética, e se revela em suas possibilidades infinitas de sentido. O “eidos” é um acontecimento autoevidente e ocorre primeiramen- te em um plano pré-reflexivo, antepredicativo, sendo o sujeito transcendental o fundamento apodítico de todo conhecimento fenomenológico. O fenomenológico aponta para o fluxo da cons- ciência intencional em suas vivências eidéticas, como aparecer e aparência. O que aparece é sempre um percebido por um ser que dante augusto galeffi 46 se dá conta do percebido e pode investigar sua evidência. Mas, sobretudo, há no último Husserl (2012) um sentido de historicidade em que se vê o acontecimento da filosofia e da ciên- cia do Ocidente como o legado mais elevado para a humanidade europeia diante de sua crise de valores. Critica, assim, as ciências europeias pela perda de seu sentido para a vida, demarcando o campo da atividade filosófica como sendo o da elucidação do ego transcendental apodítico em suas infinitas vivências intencionais. Uma afirmação da eternidade da vida do espírito que não estaria sujeita à impermanência das horas? Husserl vislumbra a infinitude do ego transcendental e pos- tula um caminho investigativo infinito. Mas ele não abandonou o legado da racionalidade nascida com a filosofia grega e trans- formada na era moderna em ciência objetiva e matematicamente definida. Apenas suspendeu os dados da razão construída para resgatar o tipo de intencionalidade que se dá a partir do mundo da vida. Assim, a consciência para Husserl não é o núcleo de uma entidade substancial e sim o meio em que se configura a trama do sentido humano como fluxo permanentemente transcendente em relação aos objetos percebidos pelos sujeitos concretos. Trata- se de descrever os modos de constituição de uma entidade eidé- tica pura que se encontra desvelada no mundo da vida. A prio- ridade do racional sobre o irracional do mundo da vida leva-o a configurar a fenomenologia como ciência rigorosa dos modos de constituição eidética do ego transcendental a partir do cogito em suas cogitações absolutas. A fenomenologia de Husserl pretende a mathesis universa- lis pela via do retorno ao ego transcendental. Uma via certamente infinita e que não se deve predeterminar em suas combinações possíveis, porque aquilo que se pode determinar como campo didática filosófica mínima 47 eidético puro é apenas o fenômeno vivido por uma consciên- cia intencional localizada corporalmente no mundo da vida, não sendo possível alcançar o transcendente e a suposta objetivida- de real postulada pelas ciências positivas, simplesmente porque atrás dos fenômenos não se encontraria uma coisa em si intocável, sempre objetivamente dada, mas apenas relações e câmbios cog- nitivo-afetivos viventes. Tudo o que se pode aprender são relações em campos afetivos que constituem mundos vivos. Assim, todo o perceber é campo de relações afetivas em trânsito no fluxo da vida, e do perceber só se diz o que é percebido e nomeado em sua singularidade. Percepção e nomeação se complementam como a casca do ovo e sua gema e clara. Ora, tudo o que se percebe é percebido pelo ser que percebe. Quem é o ser que percebe? Concretamente, o ser humano se desoculta emsua pro- dução linguageira. Sendo um ser falante ele é pensante: pensa para falar e fala pensando. Sua determinação ontológica possui o modo de ser da razão ajuizada e discursiva. Trata-se de uma razão que se pode conhecer no próprio modo epistêmico de sua dação antropológica. A episteme requerida investiga princípios e causas a partir do perceber humano e se pode traduzir em conceitos evidentes, de modo semelhante aos postulados geo- métricos e matemáticos. O encantamento de Husserl pelos prodígios da racionalidade nascida com os pensadores gregos e transformada na modernida- de em ciência positiva não lhe poupa de ter de considerar o calca- nhar de Aquiles da racionalidade filosófica e científica moderna, tendo em vista o florescimento de uma outra filosofia e de uma outra ciência, pela retomada dos grandes problemas da história a partir da relação do filosofar fenomenológico e epistemológico dante augusto galeffi 48 com o mundo da vida em sua estrutura prévia inacabada e em curso transformativo. Em uma passagem reveladora de sua inten- ção fenomenológica, na obra que é uma “Introdução à Filosofia Fenomenológica”, subtítulo de sua ultima obra “A crise das ciên- cias ee a fenomenologia transcendental”, ele diz: Que aprende a humanidade europeia, no homem anti- go, como essencial? Após alguma hesitação, o essencial não é senão a forma de existir “filosófica”; o dar-se li- vremente a si mesmo, a toda a sua vida, as suas regras, a partir da razão pura, a partir da filosofia. A filosofia teórica é a primeira coisa. Tem de se operar uma obser- vação do mundo que seja refletida, livre dos vínculos do mundo e da tradição em geral, um conhecimento uni- versal do mundo e dos homens numa absoluta ausência de pressupostos − reconhecendo finalmente, no próprio mundo, a razão e teleologia que nele residem, e o seu princípio supremo: Deus. A filosofia como teoria não liberta somente o investigador, mas todo aquele que seja formado filosoficamente. À autonomia teórica segue-se a prática. No ideal que guia o Renascimento, o homem antigo é aquele que se forma intelectivamente numa ra- zão livre. Isto implica, para o “platonismo” renovado: importa não só configurar-se a si mesmo eticamente, mas configurar de novo todo o mundo humano circun- dante, a existência política e social da humanidade, a partir da razão livre, a partir da intelecção de uma filo- sofia universal. De acordo com este modelo antigo, que se impõe de início aos indivíduos e em círculos restritos, deve surgir didática filosófica mínima 49 novamente uma filosofia teórica, que não deve ser re- cebida cegamente de um modo tradicional, mas como algo de novo a partir de uma investigação e de uma crí- tica próprias. (HUSSERL, 2012, p. 5) A fenomenologia de Husserl visa a descrever a constitui- ção eidética dos atos intencionais vividos pelos humanos concre- tos, pela consideração de um ego transcendental epistemológico, portanto, que se pode explicitar pela razão filosófica e científica. Mas, para que explicar racionalmente o ente humano? Trata-se do projeto de soberania do espírito sobre a natureza? Então, “voltar as coisas mesmas” significa retornar a si mes- mo como entidade intencional consciente? Mas, em que medida a racionalidade investigativa dos princípios e fins é a forma de ra- cionalidade mais elevada e que só ocorre na civilização europeia? O ato de retorno a si mesmo é necessariamente um encontro com a verdade logicamente justificada? Por que continuar seguindo uma tradição de pensamento que se põe a si mesma como medida da razão universal, afastando-se do mundo da vida? Para Husserl, a crise das ciências europeias se dá pelo afasta- mento destas do mundo da vida, a partir da admissão de uma ob- jetividade sem exame, portanto, não submetida ao crivo da críti- ca transcendental do conhecimento em seu fundamento último, apodítico. O que aconteceu com o destino da ciência gloriosa no Ocidente para chegar ao ponto de sua extrema fragmentação e dispersão? Ora, se a nova humanidade, animada e agradecida por esse alto espírito, não resistiu, isso só pôde ter aconteci- do por ela ter perdido aquela crença entusiasmante no seu ideal de uma filosofia universal e no alcance do novo dante augusto galeffi 50 método. E assim aconteceu efetivamente. Verificou-se que este método só podia atuar com resultados indubi- táveis nas ciências positivas. As coisas eram diferentes na metafísica, ou seja, nos problemas filosóficos em sentido particular, apesar de também aqui não ter havido falta de inícios esperançosos, aparentemente bem-sucedidos. A filosofia universal, na qual estes problemas − de modo muito pouco claro − estavam ligados às ciências de fato, assumiu a forma de filosofias sistemáticas impressionan- tes que, infelizmente, não se reuniam, mas se desaloja- vam entre si. Mesmo que ainda no século XVIII se pu- desse estar convencido da possibilidade de chegar a uma unificação, a uma construção que se ampliasse teoreti- camente de geração em geração e, com a admiração ge- ral, permanecesse inabalável perante qualquer crítica, tal como foi incontestavelmente o caso nas ciências positi- vas − esta convicção era insustentável por muito tempo. A crença no ideal da filosofia e do método, que guiava os movimentos desde o início da Modernidade, começa a oscilar; e isso não, por exemplo, pela simples razão exterior de que cresceu enormemente o contraste entre os constantes insucessos da metafísica e o ininterrupto e cada vez mais impressionante avolumar dos resultados teoréticos e práticos das ciências positivas (HUSSERL, 2012, p. 7). Husserl toma como tarefa reafirmar o ideal da filosofia uni- versal europeia que perdeu espaço para as ciências positivas mo- dernas e distanciou-se deste em seu próprio campo de atuação, procurando mostrar a infinita tarefa da filosofia fenomenológi- ca como caminho para a restauração da filosofia transcendental didática filosófica mínima 51 como fundamento apodítico de toda ciência possível ao constru- to humano. Trata-se de um ideal realizado por muito poucos e praticamente inacessível para a maioria da humanidade passada, presente e futura. É um ideal de uma racionalidade que alcança o seu ponto absoluto para regular o florescimento de uma humani- dade nova, aberta pelo horizonte teorético grego em sua marcha epistemológica e realizadora de seus próprios fins pragmáticos do domínio operativo da Natureza como afirmação da vida do es- pírito racional e livre de todo determinismo próprio da crença ingênua no mundo como é dado e percebido. A obra de Husserl revela a forma de racionalidade episte- mológica que constituiu o curso da filosofia europeia até o seu momento histórico contemporâneo. Vê-se em Husserl o exercí- cio filosófico em sua constituição tradicional de teoria especula- tiva sobre o mundo, pela busca do fundamento apodítico que ele acredita até o fim ser o “ego transcendental”, uma entidade espiritual pura e que só se tem acesso pelos próprios pensamentos e pelo pensar próprio. Não é uma entidade empírica e sim pura, livre de toda determinação externa a si mesma. Mas, com qual finalidade se deve encontrar a essência do ser puro em seu mundo eidético, ideal, de modo similar aos números e às formas geométricas? Trata-se da verdade absoluta que necessi- ta de uma filosofia fenomenológica do absoluto? O caminho filosófico de Husserl permanece destacando o campo do conhecimento teorético puro a priori, mesmo quan- do considera o mundo da vida a partir do pré-reflexivo, o que antecede toda predicação discursiva construída socialmente. Há então, um dado perplexivo, justamente porque apenas poucos indivíduos humanos alcançam o nível cognitivo da teoria pura. Então, como revolver a formação humana para que floresça na dante augusto galeffi 52 direção da mais pura teoria? Como transformar o constructo hu- mano em constructo racional puro, em pura atividade teorética? Há na fenomenologia de Husserl umaabertura para a radica- lidade aprendente e ao mesmo tempo um fechamento dogmático que pressupõe um tipo humano genial que tem acesso evidente ao mundo do sentido em sua essência e dispõe de seus operadores pragmáticos para viver racionalmente. A conduta ética se orienta pela verdade teorética e sua práxis é a teoria em sua autoprodução existencial como meditação infinita dos temas da razão em sua vida encarnada no mundo. O mundo da vida é o palco da vida do espírito em sua realidade noética e noemática, em seu modo de ser potência para a criação infinita. Toda a crítica de Husserl ao psicologismo o leva a postular uma psicologia transcendental, que acabaria realizando o ideal de uma filosofia fenomenológica em sua função orientadora da atitude radical diante do conhecimento em seu fundamento apo- dítico: o ego transcendental. Mas, o que vem a ser efetivamente o “ego transcendental”? “Ego transcendental” é o núcleo eidético de toda vivência intencional, ou seja, de toda consciência em ato. A consciência aparece apenas como tela em que o pensamento se torna o trans- cendente no âmbito da imanência do mundo da vida. Pois pensar é ser pensamentos que se sucedem como ondas do mar e só ces- sam quando se para de respirar. Ora, o “ego transcendental” é comum a todo ser capaz de pensar o mundo vivido. Mas, porque alguns o acessam conscien- temente e a maioria nunca o alcança como consciência da cons- ciência e da inconsciência? O sentido da vida inteligente e consciente é a criação ética sempre mais livre de todo determinismo cego. O projeto huma- didática filosófica mínima 53 no se lança no espaço cósmico do tempo instante e segue trans- formando-se na direção de um desenvolvimento indeterminado. Não se sabe ao certo para onde se vai com tanto desequilíbrio triético: o desequilíbrio ambiental, o desequilíbrio social e o de- sequilíbrio mental. O fato é que apenas uma minoria humana alcança o plano de uma formação para a plenitude vivente. Para quem serve, então, o conhecimento filosófico e seus operadores conceituais? Não é fácil enveredar pelos caminhos fenomenológicos de Husserl e de Heidegger, sobretudo pelo quilate com que estes artistas do pensamento teorético constroem suas moradas eidé- ticas no transcurso de suas vidas finitas como pessoas humanas. Mas é possível tirar deles o essencial como caminho a caminho de realizações inusitadas. Se tomarmos Heidegger (2009) como interlocutor vemos o seu decisivo passo na direção de uma filosofia porvindoura, quan- do abandona de vez o primado epistemológico do Ocidente para enveredar pelas sendas do ser em sua facticidade incontornável. Mas se trata de uma temática que já se encontra embrionária em Husserl, quando o mundo da vida aparece como horizonte teórico para toda a filosofia fenomenológica futura. A analítica do Dasein ou hermenêutica da presença é um caminho fenome- nológico que desvela aspectos comuns do ser humano no mundo, desenhando a condição prévia da estrutura ontológica desvelada pelo pensamento grego como abertura para o acontecimento do ser como sentido da cura. Mas o enquadramento intelectual do pensamento de Heidegger não o permitiu saltar para fora da me- tafísica, que ele ambicionou restaurar colocando os pontos nos “is” na história errática do ser desvelado pelos gregos originários e ocultada pela história da metafísica. dante augusto galeffi 54 Será que o privilégio do sentido humano é exclusivamente grego com sua episteme filosófica originária, ou o ser também se mostra de muitos outros modos e segundo princípios que estão além do logos europeu de matriz grega? O modo de determinação do ser do ente que nos é lega- do pela filosofia grega se dá na instância de um florescimento humano peculiar, singular, mas não é de modo algum o único caminho possível ao pensamento teorético que se desenvolve na humanidade por maturação de seus potenciais para o alcance de um modo de ser sábio. Assim, nesta didática filosófica mínima o que importa deixou de ser o horizonte histórico eurocêntrico, porque o ser humano mostrou-se para além do logos grego em seus modos de ser su- perlativo e hegemônico, centralizador. É preciso, assim, iniciar o processo formativo pelo retorno ao mundo da vida de cada indi- víduo/pessoa humana em seu florescimento concreto. Importa deixar ser o outro a invenção de sua doação humana para a liber- dade de ser. Deste modo, tudo o que interessa diz respeito aos seres humanos em formação que são potencialmente sapientes e realizadores trágicos no plano da arte e da criação estética funda- mental ao modo de ser cuidadoso e amoroso que constitui o que é doação de si no fluxo de todo aparecer e de toda aparência. Os grandes pensadores são todos admiráveis e até mesmo ex- traordinários. Mas nenhum deles é proprietário do conhecimen- to “verdadeiro” e universal. São todos como são todos os artis- tas criadores de mundos. O que se diz “desvelamento” o é como acontecimento da escuta do que diz o “logos” em seu aparecer e aparência. Ele deixa e faz ver aquilo de que trata uma investigação dialógica? didática filosófica mínima 55 Os grandes como Husserl e Heidegger são como mundos in- teiros em sua unidade e suas variações instantes, temporais, trans- formativas. Assim, não se trata aqui de desfazer o trabalho dos grandes e nem mesmo de desconhecê-los, e sim de considerá-los como outros tantos mundos que buscam dialogar com os outros e seus mundos. Não há, assim, nenhum abandono da tradição que foi construída ao longo do conturbado e glorioso Ocidente e sim um “distanciamento radical” de tudo o que nesta tradição é apresentado como “universal”. Ora, “universal” para quem? Quero aqui radicalizar a atitude filosófica própria e apropria- da como horizonte conectivo da didática filosófica mínima. O que significa que minha crença se torna uma abertura ao inusitado ser do cuidado. Cuidar para que as crianças comecem a pensar apren- dendo a viver o mundo de cada um em suas circunstâncias. Não se trata mais de uma formação filosófica para uma elite intelectual e sim de um caminho filosófico para todos, compreendendo que todos são seres humanos vivos inteligentes e potencialmente sen- síveis à realização do poder ser mais próprio e apropriado. Significa, seguindo o argumento, que antes de apresentar a tradição histórica da filosofia e seus problemas e paradoxos é mais alvissareiro pôr em ação uma didática filosófica mínima. A imagem síntese da atividade “filosófica mínima” é o dialogar a partir do enfrentamento investigativo e aprendente das questões de cada um em suas circunstâncias. Mas para engendrar tal ação aprendente é preciso estar imerso no pensar apropriador como partilha do que não encontra limites e nem proprietários e cobra- dores de impostos. Esta aprendizagem “filosófica mínima” não é autorizada por nenhuma entidade externa instituída que afirma saber o que é bom para que as coisas continuem sendo coisas. A autoridade que autoriza é um coletivo de vida ética radical e dante augusto galeffi 56 cuidado incondicional com o que constitui o mundo da vida em sua amplitude incomensurável e em sua unidade de comum-per- tencimento. Trata-se também de um “apelo”, um pedido de socorro, um grito, uma necessidade vital. Um “apelo” que Heidegger descreve com maestria como um pré-requisito da “presença”: Nada “mundano” pode determinar quem apela em seu modo de ser. Quem apela é a presença em sua estranhe- za, o ser-no-mundo originariamente lançado enquanto um não sentir-se em casa, o nu e cru “que” (a presença é) no nada do mundo. Quem apela também não é fami- liar ao impessoalmente-si-mesmo da cotidianidade − é algo como uma voz estranha. O que poderia ser mais estranho para o impessoal, perdido no “mundo” das múltiplas ocupações, do que o si-mesmo singularizado na estranheza de si e lançado no nada? (HEIDEGGER, 2012, p. 355-356). O “apelo” da didática filosófica mínima é a aprendizagem do pensar próprio e apropriadoseguindo o fluxo dialógico da atitude investigativa e aprendente radical no sentido do poder-ser mais próprio e apropriado. Um acontecimento que não para de sur- preender e de maravilhar os amantes do saber mais próprio. Um viver com sentido em seu único constelado: um “apelo” comum − pertencente − diversidade unida no que une transversalmente, perpassando todo objeto fixo, toda parede, qualquer muralha. Apelo para o imediatamente concreto no processo de forma- ção das subjetivações sociais assentadas na base bioquímica da matéria-energia vida. Compreendo a “presença” como o ser que cada humano é em seu mundo vivido e vivente. Memória, aten- didática filosófica mínima 57 ção e antecipação formam os vetores da “duração real” em cada “presença” − cada ser humano em seu contexto histórico, em suas circunstâncias, em sua vida finita. E o imediatamente concreto é o que cada ser humano é em seu existir fático, incorporado, pre- sente e compartilhado. O salto de natureza da didática filosófica mínima é o seu deslocamento radical do solo da tradição filosófica estratificada, tendo em vista a incorporação criadora de suas figuras a partir de vivências próprias e apropriadas do pensar comum a todos os seres humanos viventes. 59 3 O que pretendeu a “didática magna” e o que quer a “didática mínima” A palavra/conceito “didática” será em seguida elucidada em seu uso histórico. De modo geral, trata-se da “arte ou técnica de ensinar”. Todos entendem por didática “a arte de ensinar”, por- tanto, se diz que a didática é o campo do conhecimento de como ensinar para os outros uma determinada arte ou ciência. Sendo uma técnica, um modo de fazer, uma poética, uma produção de algum artefato material e/ou simbólico, a didática se constitui historicamente a partir da cultura grega, que usou o verbo dídaskó (ensinar, instruir) para significar o ensino, a instrução, derivando daí o didáskalos, o que é mestre da arte de ensinar, o precep- tor, o professor como aquele que professa uma doutrina, assim como o adjetivo didaskalikós, que qualifica o que é concernente ao ensino, como também o substantivo didaskalía significando a instrução e o ensino de algo, e ainda didaksis como a lição e o ensino já feito ou que se pode fazer seguindo o roteiro indicado pela escrita, e didaktikós como o que se encontra apto a ensinar ou o que é passível de ser ensinado e aprendido em referência aos fazeres e saberes humanos. A Didática, como a arte de ensinar, é uma técnica que requer um conhecimento do como fazer para que algo possa ser ensina- do. Ela, então, como arte de ensinar é o conjunto de recursos tec- dante augusto galeffi 60 nológicos (produzidos tecnicamente) utilizados para a eficiência do ensino de uma determinada arte ou ofício. Com a Didática compreendida como a “arte de transmitir conhecimentos” esta- mos diante do acervo culturalmente construído para o ensino dos saberes, técnicas e conhecimentos produzidos culturalmente pelos seres humanos ao longo de sua história social. Entretanto, esse é o sentido que a Didática vai assumir ape- nas na Idade Moderna, pois, antes disso, a arte de ensinar nunca se constituiu como um campo conceitualmente científico, como parte da pedagogia que passa a tratar dos preceitos científicos que orientam a atividade educativa com o intuito de seu êxito for- mativo. É quando a Didática é sistematizada como campo ge- ral do ensino de tudo o que pode ser ensinado para um maior número possível de pessoas. Então, a partir primacialmente de Comênio, com sua vasta obra pedagógica e com sua “Didáctica Magna” (1996), obra publicada em sua primeira edição em 1627 e reeditada em 1657, que é um “Tratado da Arte Universal de Ensinar Tudo a Todos”, constituiu-se o campo de uma Didática Geral como componente obrigatório de todo curso de formação pedagógica de professores e professoras de lá para cá. E de uma Didática Geral passa-se às didáticas aplicadas que atendem aos diversos campos do conhecimento e seu ensino. Desde o século XVII a Didática não parou de crescer e de estender-se para todas as áreas em que se requisita o ensino. E desde Comênio o recurso audiovisual começou a ser usado am- plamente, sobretudo na educação infantil, no ensino da língua materna e da escrita. Comênio não mereceu ser chamado de “o Bacon da pedagogia” ou “o Galileu da educação” sem razão, pois justamente ele inventa uma Didática Universal capaz de ensinar tudo para qualquer pessoa, a partir de sua língua local. Uma téc- didática filosófica mínima 61 nica de ensino que passou a ser adotada pelos países europeus preocupados com a instrução do povo, o que preconiza a consti- tuição dos Estados Modernos a partir de uma instrução pública para todos, homens e mulheres, ricos e pobres, que estabelecem a obrigatoriedade da Educação Elementar para todos sem exceção. Uma educação que se modula pelo ideal de homogeneidade dos conhecimentos humanos a serem transmitidos às gerações novas e que projeta o modelo da uniformidade, da ordem e da discipli- na, da severidade e do castigo ou prêmio, do controle dos corpos e das almas para que não se desviem do bem e da integridade, e possam servir pacificamente ao poder constituído de um Estado ou Nação ou Estado Nação. Assim, “ensinar tudo a todos” e de maneira uniforme pas- sa a ser o campo da Didática Geral como pré-requisito para a formação do educador ou pedagogo, o que proporcionou uma formação de professor homogeneizante, uniformizante, fechada em conteúdos previamente determinados pelos que ocupam a função de legisladores de determinado campo do ensino. Com sua intenção de constituição de uma “Ciência do Ensinar”, a Di- dática Moderna plasmou-se à luz do positivismo das Ciências da Natureza que contaminou o campo das humanidades com o ideal de objetividade científica ao modo das ciências experimentais e indutivas, que desenvolvem o mecanismo de replicação de um experimento. Perde-se de vista com este modelo a singularidade do ser humano, sua natureza sensível e afetiva, sua maneira de ser no mundo com outros. Supõe-se que uma técnica ostensiva de en- sino uniformizado dará conta da educação humana necessária à subsistência material e à existência espiritual, que afinal deve estar subordinada, como natureza finita, à infinitude da Inteligência dante augusto galeffi 62 Superior e transcendente que a tudo governa e determina. Um determinismo espiritual se projeta como modelo do ser humano moderno, racionalmente orientado para fins práticos e valores morais universais. Trata-se, assim, apenas de executar o plano de ensino geral e particular para que todos possam aprender e possam instruir-se sobre qualquer matéria ou campo técnico do conhecimento humano já edificado pelos que nos antecederam. Entretanto, essa concepção uniforme do ensino de conteú- dos construídos culturalmente a serem transmitidos com as tec- nologias disponíveis, deixou de valer para um mundo que passou a girar ao redor do conhecimento e da informação. Tudo agora é conhecimento e informação, e a educação necessária para dar conta dos problemas complexos derivados do próprio desenvolvi- mento humano requisita outros instrumentos didáticos para suas concretizações. Não se trata mais de “ensinar” ao modo dos sabe- res técnicos tradicionais e encerrados em metodologias da mera repetição de suas formulações proposicionais e assim linguistica- mente articuladas como “modelos ideias” a serem repetidos por todos de modo uniforme, na medida de sua eficácia comprovada pela experiência. Trata-se de um novo plano no qual a educação humana salta da uniformidade para a pluralidade, da homogeneidade para a heterogeneidade, da especialização para a generalidade ativa, a ge- neralidade necessária para se poder trabalhar em equipe, visando à resolução de problemas comuns ambientais, sociais e espiritu- ais. Não basta mais “transmitir” conhecimentos através de uma modelagem dos meios que podem ser replicados ourepetidos do mesmo modo como qualquer experimento científico. É preciso agora reintroduzir a natureza complexa da subjetivação humana para se pensar em uma educação radicalmente nova, que garanta didática filosófica mínima 63 o aprender qualquer técnica ou conhecimento a partir do desen- volvimento singular dos seres humanos. É preciso agora propor- cionar a aprendizagem efetiva de competências e habilidades para o saber-fazer, o saber-conhecer e pensar, o saber-viver-junto, o saber-ser em toda a sua completude e diversidade. Enfim, fazer aprender a pescar e não mais a simplesmente receber o peixe sem aprender propriamente a pescar. A saída da modelagem disciplinar do “ensinar” para a entrada da modelagem interdisciplinar e transdisciplinar do “aprender” vem requisitando uma nova Didática Geral, que deixa de ser pro- priamente a “arte de ensinar” e se torna primacialmente “a arte de aprender”. Entretanto, justiça seja feita, na modelagem do ensi- no uniforme e universal de determinados conteúdos selecionados estrategicamente, há uma inegável eficácia formativa, bastando- se que se evoque o modo como são organizados os conteúdos universais a serem transmitidos em cada disciplina do currículo escolar. A uniformidade permite a aprendizagem de mecanismos cognitivos que disparam a aprendizagem em cada caso, o que não se deve deixar de lado. Entretanto, é preciso que tais mecanis- mos didáticos e operatórios não reprimam a singularidade radial de cada ser humano aprendente − que precisa aprender para ser, para conhecer, para viver-junto, para fazer, que precisa “aprender a aprender” a ser, a pensar, a conviver e a fazer ciência, arte, ética, política, filosofia e ecologia como economia solidária etc. Ora, uma Didática do Aprender a Fazer é necessariamente uma Didática Filosófica Mínima, que também é uma Didática Lúdica. Eis a questão que queria colocar a partir da argumentação anterior, bem sintética por sinal, mas que pode ser aprofundada em outra ocasião. A partir do momento em que a Pedagogia para a educação no século XXI é uma teoriação da aprendizagem, a dante augusto galeffi 64 Didática deixa de ser prescritiva e normativa para se tornar trans- formativa no próprio ato pedagógico do fazer-aprender e não simplesmente do ensinar. E aqui cabe uma reflexão sobre o “ensinar” e sua transfor- mação para o “aprender” como “deixar que o aprendiz aprenda a aprender”. O ensinar deixou de ser ostensivo e uniforme para se transformar em “próprio e apropriado”. Quer dizer, ensinar agora significa deixar que o aprendiz aprenda a aprender de forma pró- pria e apropriada, levá-lo a aprender a aprender. Examinando o verbo “ensinar” em seu uso histórico pode- mos observar seu significado de “repassar a alguém ensinamen- tos sobre algo”, tendo uma conotação de doutrinamento e lição lecionada por um leitor. Assim, a lição recebida pelo aluno é pronunciada pelo lecionante, o leitor, o professor. Em sua forma latina insignare significa propriamente “pôr uma marca”, “distin- guir”, “assinalar”. Pois o verbo é in-signare, em que o prefixo “in” significa “no interior”, “em”, assumindo em português valor in- tensivo, indicando o movimento para dentro, como também de repouso e de permanência, de direção e de tendência. Transfor- ma-se em português no “en”, significando “em”, “a”, “sobre”, “su- perposição”, “aproximação”, como também “introdução”, “trans- formação” etc. E é também curioso como o “in” latino derive da raiz indo-europeia “en-”, significando “no interior de algo”, “em algum âmbito divisado”, tornando-se “em” antes de p e b. O que aqui me interessa é enfatizar o caráter incisivo, diretor, ativo do “en-sinar”, indicando o sentido de “colocar em”, “pôr em”, “penetrar em”, “meter em”, “marcar alguém”, por exemplo, com os signos do conhecimento de algum saber tradicional dado. É, assim, uma penetração em determinado âmbito ou lugar, um pe- netrar na alma do “aluno” dos sinais e signos do mundo cultivado didática filosófica mínima 65 e linguageiro. Uma introdução no sentido de uma penetração de algo no interior do aprendiz, um marcar a alma do apren- diz com as formas já formadas pela tradição cultural transmitida pedagogicamente (através dos métodos de en-sino). No sentido de penetração em um determinado espaço pode significar embolsar, emboscar, emprisionar, encaixar, encaminhar, encarcerar, enclausu- rar, engaiolar etc. O que de qualquer modo indica na direção do “controlar”, do “conter”, do “uniformizar”, do “padronizar”, do “modular” o exemplar como modelo a ser copiado. É também um cobrir com o manto da cultura cultivada o vazio das almas imberbes, novas, puras. É também um ir em direção a alguém, indicando uma aproximação, como encarar alguém, ou encostar em alguém. É também indicativo da aquisição de uma qualidade ou de um estado novo, de uma transformação. Pois quem aprende o que lhe é ensinado se transforma no que antes ainda não era. Assim, o en-sinar é também um tornar-se o que se é ou o converter alguém naquilo que ele tem que ser, ou mesmo o formar alguém a partir de uma forma ideal estabelecida e consolidada. O en-sinar como transformação refere-se ao poder dos signos cons- truídos pelos seres humanos, enfatizando o formar como superpo- sição e justaposição, portanto, como arranjos formativos que mo- dulam os modos de ser para a atuação no mundo racionalmente organizado. Neste sentido, pode indicar a colocação em excesso de algo, pois se pretende muitas vezes com o ensino encher de co- nhecimentos os estudantes sem a devida assimilação aprendente. E porque muitas vezes a ideia de superposição se liga à de penetração, vai indicar o prender ou firmar com os gestos, com as palavras, com as indicações, por exemplo. E por isto se pode ver o en-sinar como um encravar, um enganchar, um imprimir uma forma em alguém. Mas também pode significar o dar e o criar, e dante augusto galeffi 66 aí ser um enflorar, enfrutar, enfrutecer, isto é, levar a termo um desenvolvimento humano que alcance o seu enfrutecimento, o seu tornar-se fruto para a nutrição da vida e sua consumação. Todos esses sentidos do “en” de “ensino” reforçam uma ope- ração de formação humana a partir de modelos consagrados e es- tratificados historicamente. Considera-se, então, o ensino como a atividade primacial da educação humana, pois é preciso garantir aos presentes o acesso ao grande acervo espiritual da humanidade e a forma encontrada para se fazer isso foi o ensino concebido como processo de “transmissão” dos conhecimentos necessários à vida humana. Trata-se, também, do ato ou efeito de ensinar, como ensinamento do conjunto de conhecimentos a serem repas- sados, a lição a ser transmitida, a experiência adquirida na prática. E porque o “sino” de “ensino” deriva do elemento de com- posição sign – latino, querendo dizer “sinal, “marca distintiva”, “assinatura”, “selo”, “sino”, ele indica uma variedade de operações linguísticas referentes ao significar e à significação, como conferir, atribuir, selar, chancelar, marcar, ordenar, dispor, desenhar, tomar nota, registrar, descobrir, anular, reincidir, romper, violar, mostrar por sinais, anunciar, declarar, revelar algo significante, que se en- contra bem expresso, claro, ou referente à significação de algo, o indício, o sintoma, o significado de um acontecimento expresso em sinais, em palavras, em gestos. Desse modo, o amplo uso da palavra ensino sempre signifi- cou o repassar a alguém ensinamentos sobre algo ou sobre como fazer algo, doutrinar, lecionar, transmitir experiências práticas a alguém, instruir alguém por meio de exemplos, como também o sentido de tornar algo conhecido e familiar, fazer ficar sabendo algo a alguém, dar lições a alguém, mostrar com precisão, indicar, e até mesmo treinar um animal, adestrá-lo. didática filosófica mínima 67 O ensinar também se liga de modo privilegiado ao verbo “ex- plicar”. O “ensinar” também é um “explicar”, isto é, um tornarclaro ou compreensível (inteligível) aquilo que era antes obscuro e confuso, ambíguo e incerto. É também um fazer entender, um expor, um explanar como dar a conhecer a origem ou o motivo de algo a alguém, é um expressar, um significar, um manifestar, um interpretar o sentido de algo. Neste sentido, o ensinar se une ao aprender de forma inequívoca, pois um fazer entender é também um fazer aprender, na medida em que só quem entende o que está sendo exposto como conhecimento pode de fato dizer que aprendeu. Assim, o ensinar é o mesmo que fazer com que o aprendente aprenda o que está sendo assinalado, indicado, exposto no ensinar do ensinante. Portanto, ensinar é também deixar que o aprendiz aprenda por si mesmo o que lhe apetece e interessa, utilizando as orienta- ções, indicações, exposições e elucidações dadas pelo ensinante. E assim o “ensinar” muda de figura, deixando de ser um dispositivo de transmissão do saber e do conhecimento já dado para se tornar uma mediação cocriadora do conhecimento próprio e apropriado. Pois o que se ensina nesta perspectiva é o que pode ser aprendido por quem aprende. Portanto, só se ensina o que o aprendiz pode aprender de for- ma própria e apropriada, o que também requisita outra forma de avaliação e outra maneira de pensar inter e transdisciplinarmente o currículo e a formação que é mirada através dele como malha de formação para o fazer-aprender a ser, a pensar, a viver junto, a fazer. Examinando agora atentamente o verbo “aprender”, pode- mos propriamente falar em uma Didática Filosófica Mínima e em Práticas Pedagógicas lúdicas e criadoras. Trata-se de uma dante augusto galeffi 68 transfiguração da Didática Geral que agora se formula como ca- minho metodológico poemático-pedagógico, o que significa outra maneira de compreender a Didática agora concebida como poé- tica (técnica) do fazer-aprender. E como uma poética, não se trata mais de replicação de modelos exemplares ditados de fora para dentro das mentes individuais e dos corpos singulares, para que estes sejam marcados em suas almas vazias e puras e modelados de acordo com a norma padrão, a uniformidade. Afinal, as socieda- des humanas se diferenciam das outras espécies de animais sociais justamente porque estão abertas à criação de suas próprias formas de existência, não sendo a heterogênese um problema e sim a solução, sendo o grande problema o da referência efetivamente universal ao que pode o espírito humano realizar na expansão indefinida da sua consciência cósmica. E não é fácil dizer algo assim na sociedade em que prevalece o instinto de rebanho e o instinto de domínio, porque o mundo efetivo, real, não é feito de ideais e sim de agenciamentos mate- riais e econômicos, portanto, vitais e necessários. Como ter que beber água potável e alimentar-se continuamente, ter, portanto, que prover a subsistência com o suor do corpo. Tomo, então, em exame o verbo aprender para que se con- figure o âmbito de uma didática filosófica mínima, como arte de fazer aprender em todos os sentidos e direções, como poética do fazer-aprender. E isto para que se possa pensar com propriedade os sentidos, significados e significantes de práticas pedagógicas radicalmente criadoras. Todos sabem como no sentido mais comum e geral, apren- der é o mesmo que adquirir conhecimento de uma determinada arte ou ciência produzida pelo ser humano. Isto significa que só se aprende a partir de estudo sistemático, continuado, rumina- didática filosófica mínima 69 do, ponderado, estimado etc. Só se aprende aquilo que se estuda com satisfação e motivação. Assim, aprender é passar a ter melhor compreensão de um determinado setor da atividade produtiva humana, especialmente pelo uso da intuição, da sensibilidade e da vivência, portanto, pela apropriação do conhecimento que se estuda de modo a incorporá-lo como conhecimento próprio e apropriado. O verbo aprender deriva do latim apprendo, apprendere, con- tendo o elemento de composição prend-, antepositivo do verbo praehendo, prendere, que significa agarrar, tomar, segurar, prender, apanhar em flagrante, surpreender, atingir, apoderar-se de, chegar a algum fim almejado, apreender, compreender. Portanto, aprender vem primeiramente de prender, segurar, agarrar, o que indica uma ação apropriativa, correspondendo à atualização do dispositivo sociolinguítico e neuropsíquico da pessoa humana que aprende. Pois aprender é um agarrar, um compreender, um surpreender, um empoderar-se do conhecimento tornando-o próprio e apro- priado. Trata-se do “meu” e do “seu” e do “nosso” conhecimento humano e não de um conhecimento abstrato, desencarnado, va- zio de existência fática. Um ponto importante é que se trata de um aprender de carne e osso, um aprender finito, um aprender sendo na vida que passa. Não é um aprender para tipos ideais e excelência comprovada, e sim um aprender que significa um tornar-se humano em sua abertura ontológica, para além dos limites estabelecidos pela razão tecno- científica. Pois que se trata de um aprender para o pleno exercício da vidaviventevivida, da vida no tempo da urgência que é sempre o agora, o instante que passa cinematicamente entre o nascer e o morrer humano, e da vida no tempo do ontem e do amanhã. É tudo uma só unidade, pois o ontem de cada um e o amanhã e depois se dante augusto galeffi 70 dobram e se conjugam para formar o acontecimento do instante que passa, se transforma e como nasce, morre igualmente. Aprender, então, é o foco da didática filosófica mínima. E sendo uma didática filosófica ela também só se realiza quando o aprendiz se torna mestre daquilo que aprendeu. Ora, o filosófico aqui se mostra em sua constituição dialogante e em sua função espiritual mais refinada. O filosófico qualifica a didática como caminho para a aprendizagem criadora singular, heterogênea no florescimento de singularidades plurais, diversas. Pois quem não aprendeu a brincar como pode aprender a aprender qualquer téc- nica ou ciência? O “a-” de aprender é um morfema protético, como pode ter o sentido do “ad-” latino, significando em direção a, aproximação. Quer dizer, o “a-” de “a-prender” indica “em direção à compre- ensão apropriadora”, o agarrar, o pegar para si, o prender e fixar em si mesmo o que foi apreendido em um processo formativo concreto, vivido, experienciado, ruminado, assimilado. Aprender alguma coisa é também apreender mentalmente, abarcar profun- damente, compreender, captar, apanhar, pegar, fazer apreensão de, inquietar-se, tomar posse por direito, confiscar. O aprender é uma apreensão dinâmica de processos cognitivos e afetivos/sensíveis, mentais e corporais simultaneamente. Não se apreende nenhum conhecimento próprio sem sua devida incorporação lúdica. E aqui o lúdico se apresenta como pano de fundo ou ethos apro- priador do ato de aprender alguma ciência ou arte (técnica) de sa- ber-fazer. Pois todo saber-fazer é um “jogar” no sentido dialógico do termo, um “estar lançado” na aventura do aprender infinito. E todo “jogar” é um conhecer. Por estar jogado no mundo já forma- do previamente, o ser humano dispõe da liberdade de poder ser aquilo que ainda não é, mas está sendo. didática filosófica mínima 71 O “jogar” dialógico, através do discurso, da palavra dita e redita, é provavelmente a origem do próprio conhecimento. E neste sentido o “jogar” se associa ao ócio do espírito sem o qual nenhum conhecimento próprio e apropriado é possível. E o que aqui pode parecer uma apologia despropositada do lúdico como origem de todo conhecimento humano, é uma constatação fun- damental para se redesenhar a Didática do fazer aprender como caminho da formação humana para a sua maioridade espiritual e sua ação consequente no mundo de sua vida, com corresponsabi- lidade, altivez e liberdade de tornar-se aquilo que cada um pode ser no êxito transformativo de seu projeto ontológico. Com a didática filosófica mínima, o lúdico bate à nossa por- ta, convidando-nosa jogar o jogo da vidavividavivente, o jogo dobrado do nascer e do morrer, do ser e do não-ser, do aparecer e do desaparecer. É o jogo que prefigura o agir no jogar dos jo- gadores. Porque fazemos parte do jogo da vida, aprendemos a jogar vivendo, e só se aprende vivendo. Quem joga está na vida como jogo a ser ainda jogado, ou melhor, como jogo continuado, aberto, em devir, advindo. Pois o lúdico ao revelar-se como sendo referente ao jogo, ao divertimento e à recreação mostra uma di- ferença fundamental do espírito humano em relação aos demais entes viventes. O ser humano é um ser vivo capaz de brincar, de divertir-se, de jogar recreativamente para o bel prazer do corpo e da alma. Trata-se de um traço primordial da condição humana aberta para a aprendizagem do conhecimento do bem e do mal, do verdadei- ro e do falso, do belo e do feio. É no jogar o jogo do ser-sendo no mundo e com o mundo dos outros que acontece a saga humana em sua evolução espiritual. Uma evolução expansiva em direção à plenitude vivente, ao amor incondicional dos que efetivamen- dante augusto galeffi 72 te aprenderam a amar, ou melhor, aprenderam a ser, a pensar, a viver-junto e a fazer, aprenderam a aprender: a tornar próprio e apropriado o que inicialmente é impessoal e genérico, ausente e inalcançável. Pois só o que se pode alcançar se pode aprender e ninguém nunca aprende ou aprendeu o que é inalcançável, o que se encontra além da sensibilidade e do entendimento. E é no jogo do aprender que se aprende a aprender a brincar, divertir-se, usufruir do ócio do espírito para sorver e degustar o conhecí- vel oferecido como conhecimento humano ao alcance de todo e qualquer ser humano devidamente transformado para realizar em si mesmo a apropriação singular dos conhecimentos sem os quais a vida humana não teria sentido. É jogando que se aprende a conhecer, jogando o jogo dialógico de perguntas e respostas. O lúdico inevitavelmente está associado à infância, pois se sabe como o trabalho da criança é o jogo e como a criança só aprende quando joga o jogo pelo jogo. O prazer e a erótica da infância estão no jogar, no poder jogar e no saber jogar. E o jogar é desde sempre um aprender as regras de determinado contexto cultural no qual se pratica uma ação lúdica que pode ter fins variados, como premiar os mais aptos em determinado esporte ou arte de entretenimento, representar o sagrado e o oculto, manifestar um tipo de relação de poder discursivo sobre os incultos (jogo de poder político fundado no poder econômico). É no jogar e brincar que surge o ethos da seriedade genuína. Pois não há maior seriedade do que aquela da criança ao jogar. Aprende-se a ser sério brincando. Por associar-se à infância, o lúdico se mostra como a dispo- sição do espírito humano para aprender sobre si, sobre o mundo, sobre o outro em uma inclinação radical para a liberdade de ser: a abertura para o radicalmente novo, mas sempre feito de preexis- tências e modelagens construídas coletivamente por indivíduos didática filosófica mínima 73 singulares. A infância humana mostrou-se ao entendimento hu- mano apenas na modernidade e só mereceu a atenção devida dos estudiosos da pedagogia quando se tornou necessário educar as crianças para que se tornem adultos instruídos na vida correta. Sendo o começo de todo desenvolvimento humano, a infân- cia constitui o adulto do mesmo modo que os pais constituem os filhos. O mundo da infância nunca abandona o adulto, mas o adulto abandona o mundo da infância quando esta não lhe traz boas recordações. E quem como criança não se enamorou do brincar nunca aprenderá a aprender a aprender. Pois só aprende a aprender quem se enamora do que está sendo apreendido pela vivência apropriadora: a ingenuidade radical. Então, uma didática filosófica mínima é uma arte de fazer aprender no jogo mesmo do aprender. É uma Didática criadora de meios apropriados para fazer o aprendiz aprender. Todos os meios imagináveis e ainda inimagináveis podem ser usados por um mediador / educador /professor / pedagogo para favorecer a aprendizagem do aprendiz. E isto sem que haja desvio da inten- cionalidade do que se quer fazer aprender. Assim, todos os meios didáticos lúdicos podem ser usados por qualquer professor em qualquer área do conhecimento, quando o seu objetivo é fazer aprender o aprendiz. Então, o professor de matemática pode usar de táticas lúdicas para favorecer a atenção de seus aprendizes, sem que em nenhum momento se afaste do seu objeto precípuo de aprendizagem. Isto se aplica a qualquer caso. Todos podem usar de recursos lúdicos e eróticos quando não percam de vista a efe- tiva aprendizagem do aprendiz em um determinado campo do conhecimento. Assim, as práticas pedagógicas inovadoras estão aprendendo a incorporar o espírito lúdico para favorecer o enamoramento dante augusto galeffi 74 do aprendiz, que é sua motivação efetiva para a aprendizagem de alguma técnica ou área do conhecimento humano já consolidado de forma própria e apropriada e não há limites para a experimen- tação didática inovadora, pois, quando se é rigoroso no fazer e no aprender a saber fazer com que o aprendiz aprenda, tudo o que se pode usar como técnica didática é um saber-fazer poemático- -pedagógico, o saber fazer que, ao fazer, inventa o próprio modo apropriado de fazer, imitando com isso a ação criadora do espírito em sua ludicidade primeva, infantil. Por isto, para que se aprenda é preciso tornar-se criança que só aprende quando brinca e quan- do joga aprende o jogo do aprender. Tornar-se como a criança é abrir-se ao encantamento do aprender com sentido, pois apren- der sem sentido não gera sentido algum. Portanto, nenhuma técnica didática tem finalidade em si mesma, pois ela é sempre um meio artificial para o alcance de determinados fins aprendentes. Para tornar atrativo um assunto distante da realidade dos aprendentes todo recurso tecnológico é bem-vindo. Mas se o uso ostensivo das TIC não tiver por fina- lidade a afetiva e concreta aprendizagem do aprendiz, toda ludi- cidade será desvio, toda brincadeira será imprópria, todo jogar será em vão. E para tornar pertinente o uso da Didática Lúdica é preciso fazer do lúdico o meio a partir do qual se pode fazer o aprendiz começar a aprender um determinado assunto, uma específica técnica, uma consistente ciência. Agora que uma didática filosófica mínima é apresentada em sua função precípua de fazer o aprendiz aprender, toda a poesia e toda a arte entram na ciranda do fazer aprender de modo po- emático-pedagógico, quer dizer, de modo criador e radicalmente novo, sendo todo novo formado a partir de preexistências fun- damentais. Daí que a radicalidade do aprender pressupõe o jogar didática filosófica mínima 75 também no sentido do surpreendente, o imprevisível, o inespe- rado. Assim se pode aprender jogando o jogo do espírito criador. Porque como diz Huizinga, “reconhecer o jogo é, forçosamente, reconhecer o espírito, pois o jogo, seja qual for sua essência, não é material” (1996, p. 6). Sendo o jogar uma condição espiritual do ser humano todo aprender e fazer aprender é um jogar e um deixar jogar criador. E porque o jogo e o lúdico não são opostos à seriedade é preciso sempre reafirmar toda seriedade do educar humano pela leveza do agir criador brincante. Porque afinal a partir da dação erótica do conhecimento lúdico todos os sentidos finitos se abrem para o consistente amor que não cessa de surpreender e de encher a alma de admiração e alegria serena e jovial. A didática filosófica mínima é por constituição lúdica e ocio- sa. Sua ludicidade vem da erótica do conhecer e ser. Sua ociosi- dade vem do legado do mundo imaginífico primordial celebra- do, cantado e dançado ao modo museal. Pois as Musas ao serem geradas pelo amor ardente de Zeus e Mnemósine foram criadas para cantar e louvar para sempre os bem-aventurados protetores e protetoras do esplendor do que ocaso não conhece, mas esqueci- mentoconhece: um despertar sempre desconhecido. 77 4 Considerações sobre a crise de paradigma na globalização contemporânea: a revolução da educação em curso A didática filosófica mínima aqui proposta não atende ao re- gime disciplinar da educação formal moderna e contemporânea. Ela é um contrassenso na ótica disciplinar, não se afina minima- mente com o instituído como modelagem da formação humana em curso. É uma provocação ao instituído na direção da ação ins- tituinte de outras maneiras de ser no mundo com outros a partir da formação, ou melhor, da transformação humana criadora. Vivemos inevitavelmente uma crise de paradigma que se re- flete de modo privilegiado no âmbito da educação, porque está em causa o modelo de formação em vigor que não mais dá conta da complexidade cognitiva da sociedade contemporânea do co- nhecimento e da informação. As coisas mudaram segundo um processo intensivo que tem início com a formulação e êxito da ciência moderna associada ao mercantilismo e capitalismo. Desde o século XV da era cristã o mundo humano vem conhecendo uma quantidade de efeitos produzidos pela instru- mentalização do conhecimento científico, que proporcionou o dante augusto galeffi 78 ciclo dos descobrimentos e colonização do novo mundo. Quanta barbárie em nome da civilização europeia florescente! Quantos desvarios e atrocidades, assassinatos e expropriações de povos e ambientes devastados! Quantos foram mortos no Novo Mundo em nome do enriquecimento europeu? O Novo Mundo e sua totalidade triecológica (ambiental, so- cial e espiritual, compreendendo a riqueza do solo, as florestas e rios, os animais, incluídos os humanos e sua vida espiritual) foram tomados de assalto e cultivados segundo o imperialismo dos colo- nizadores. Assassinatos, escravidão e submissão dos possuídos for- maram a moral colonizada como imagem e semelhança da matriz cristã europeia: senhores e escravos, fortes e fracos, ricos e pobres. A barbárie europeia, entretanto, não é um privilégio da Idade Moderna, pois marca a vida das civilizações que floresceram com a multiplicação humana a partir de 10.000 a.C., aproximada- mente, alcançando a sua configuração imperial com as sociedades burocráticas urbanas dos vales férteis do Oriente Médio e da Áfri- ca por volta do IV milênio a.C. O ciclo das primeiras civilizações históricas é a incorporação violenta do princípio do mais forte contra os mais fracos. E a força se constitui como instrumento de guerra entre personalidades vaidosas distintas e centralizadoras, uma força prepotente, imperativa e despótica. Os ciclos de paz e prosperidade são como momentos de repouso do ímpeto bélico primevo. Guerra e paz são os opostos complementares como ex- pressão da própria natureza formadora de todo o universo. Como se toda a Natureza e seus universos paralelos fossem filhas da luta, da guerra, da discórdia. E tudo sendo causado pela luta, guerra e discórdia, a figura do vencedor se impõe como modelo do mais ambicioso e impetuoso em sua vontade de domínio. Uma con- creta “imitação” da luta dos deuses pelo poder do Universo. didática filosófica mínima 79 Como sair desse círculo infernal em que tudo se resume à luta do bem contra o mal, da luz contra as trevas, da vida contra a morte? Como transformar a natureza bélica primal da compe- tição entre humanos, já por excesso de seres humanos habitando regiões férteis, em uma natureza racional, razoável em sua condu- ção consciente de si, do outro e do mundo? Estabeleço aqui um salto de natureza na ordem do discurso. Consiste em ir direto às coisas que nos afetam e nos constituem como momentos de subjetivação no ato de retrover ou ver por meio de um distanciamento epistemológico radical. E isto através da cinestesia do pensar as próprias coisas, e que revela o âmbito em que se pode pensar o mundo da vida de maneira própria e apropriada, de modo semelhante ao como se pode aprender a navegar, simplesmente navegando e pensando o navegado, o na- vegável e o inavegável. O salto de natureza assinalado deixa de lado a representação intelectual da subjetividade transcendental para incluir-se no flu- xo intencional da subjetividade transcendental como um flores- cimento de si próprio e “suas/nossas” circunstâncias. Assim, não intenciono estender-me sobre o tema do poder para não perder o foco da presente tese, que é a de apresentar o pensamento de uma didática filosófica mínima. O argumento reunido quer descrever o processo da edu- cação formal que se constituiu na modernidade para atender à demanda de um mundo tecnicamente competitivo e cada vez mais bélico nas relações comerciais entre os países. A educação formal instituída para todos pelos Estados modernos tem dupla identidade. Uma diz respeito ao controle e agenciamento coletivo homogêneo, tendo em vista a identidade nacional, e a outra, ao mundo do trabalho e da produção industrial. O caráter erudito dante augusto galeffi 80 da educação formal só alcança consistência disciplinar valorizada nos estados democráticos e laicos pela admissão dos valores hu- manistas de modelagem clássica, renascentista e iluminista. Mas ainda se trata de um ideal de transmissão homogênea do acervo de conhecimentos das diversas áreas disciplinares. E tudo modu- lado por uma regulação de séries e conteúdos com gradual acrés- cimo de complicação, no sentido do excesso e do faz de conta que se aprendeu alguma coisa de modo apropriador. E tudo regado a provas e testes que não testam e não provam além do que está previamente definido como certo e como errado. A instituição da educação disciplinar e conteudista obrigató- ria é um êxito da racionalidade técnica camuflada de iluminismo intelectual. Trata-se de um modelo de educação que atende ao su- posto evolucionismo social que prima pela seleção dos mais aptos ao mundo do trabalho e suas estratificações hierárquicas. Um modelo que realiza o plano de exclusão dos menos favorecidos socialmen- te, considerados incapazes, com déficits cognitivos positivamente comprovados. Um modelo marcado pela competição dos mais ca- pazes ao exercício do poder e pelo controle dos corpos livres e quase “naturais”, como se somente alguns fossem inteligentes e a maioria apenas massa de manobra como o gado de abate. Como justificar, à luz da racionalidade operante vital, o pla- no de desenvolvimento humano de maximização e expansão em movimento insustentável? Como justificar uma educação pública que não educa e só perpetua a desigualdade social e cognitiva não atendendo aos princípios magnos da constituição democrática do país? Por que não se tem a coragem de realizar uma transforma- ção radical da educação pública obrigatória a partir de um novo paradigma epistemológico de inclusão radical de tudo em tudo e de otimização dos recursos vitais disponíveis? didática filosófica mínima 81 Com a mudança de paradigma em curso temos diante a emergência de uma nova consciência humana planetária que pode mobilizar para a formação humana trieticamente sustentável. O paradigma disciplinar moderno dá lugar ao paradigma interdis- ciplinar e transdisciplinar pós-moderno. Mas esta mudança não se dá automaticamente. Ela só é possível pelo engendramento de um desenvolvimento humano que realiza o princípio do cuidado triético, e que precisa singularizar-se na multiplicidade vital sem perder-se na fragmentação. A questão agora mira o protagonismo humano em todos os processos vitais de criação, manutenção e transformação do mundo vivo. Um protagonismo que não aceita mais o princípio da competição e da exclusão dos perdedores. Um protagonismo para todos, porque uma educação pública de qualidade haverá necessariamente de formar os seres humanos para uma participação ativa na vida política, pelo aprender a ou- vir, a falar, a ler, a escrever o mundo de modo próprio e apropria- do, sempre único, sempre outro de si além de si, sempre público. O que uma educação de qualidade tem que garantir é o ple- no desenvolvimentode cada um em sua singularidade e diferença radical em relação aos outros. Ela não tem que homogeneizar a formação com a “transmissão” de conteúdos obrigatórios, como se o conhecimento humano dependesse de acúmulo para processar sua posse cognitiva. Uma inverdade, porque aquilo que se “ensina” não faz ninguém aprender algo propriamente, porque só se apren- de propriamente quando o sentido do aprender está no próprio ser querer ser mais. E é o que ocorre no sistema de “ensino” vigente. Os que aprendem já estão focados em interesses próprios, e apren- dem porque estudam com inteligência e ócio, e não por obrigação e dever. Os que não aprendem são os que não foram tocados por nada, e não se sentem aptos à vida de papagaios. dante augusto galeffi 82 A questão é que o sistema aulista não dá conta de uma apren- dizagem fundada na singularidade de cada caso e suas circuns- tâncias. A formação em vigor concebe a escola como o lugar da disciplina e enclausuramento dos corpos desejantes que devem subjugar-se ao princípio instituído da exclusão, discriminação e competição evolucionista, em que só os educados devidamente na arte de computar, falar, ler, escrever e criar o mundo são mere- cedores de promoção e reconhecimento. Mas por que a maioria esmagadora não alcança êxito com o sistema vigente de “ensino”? Por que são comprovadamente incapazes e inferiores? No novo paradigma que se desenha a partir da grande crise de valores vivida pela humanidade global não há como excluir ninguém do processo aprendente radical. Não há incapazes e sim seres humanos “encobertos” por interdições simbólicas e mate- riais. Aliá, hoje se proclama uma “educação inclusiva” como se a inclusão pudesse ser resolvida pela presença de uma disciplina de inclusão e por decreto. Ora, a inclusão é necessariamente um ato afetivo de profunda responsabilidade pelo ser de cada um em seu “encobrimento” on- tológico. A inclusão precisa estar incluída nas relações interpessoais afetivas e não se pode realmente incluir quando se cumpre apenas a Lei. Passa a ser uma “falsa” inclusão quando a inclusão se torna mero depósito de corpos diferenciados e fora da norma. Cuidar do outro é dar-se ao desabrochar do seu ser consciente/inconsciente de si em comum-responsabilidade. Pois quem aprende se torna res- ponsável pelo poder do que aprendeu. Aprender, assim, é empode- rar-se3 no cuidar radical de si mesmo em seu mundo. 3 O verbo empoderar não tem ainda registro nos principais dicionários da língua portuguesa. Trata-se de um neologismo cunhado para exprimir o ato de tornar-se potente em si mesmo. Analisando a etimologia da palavra didática filosófica mínima 83 O novo paradigma nasceu do paradoxo da insustentabilida- de do modo de produção que rege o mundo, pela ampliação da consciência de comum-pertencimento e comum-responsabilida- de decorrente do desenvolvimento cognitivo/afetivo do espíri- to humano curador. É um paradoxo justamente porque vigora um modo de produção insustentável e desigual e paralelamente emerge e se desencobre uma consciência curadora radical em to- dos os cantos e recantos do planeta. Um contrassenso porque o encontramos os elementos de composição “em-” e “pod-”. O prefixo “em” é uma variação de “en-”, por sua vez derivado do prefixo latino “in-”, sig- nificando “em, a, sobre; superposição; aproximação; introdução; transfor- mação etc.” O “in-” por sua vez é derivado da raiz indo-europeia “en”, significando “no interior de; em”, que à frente de vocábulos iniciados por “p” e “b” se usa “em-”. Portanto, o “em-” de empoderar indica as ideias de: 1) “movimento sobre; justaposição”; 2) “penetração em determinado espaço; meter ou colocar em alguma coisa ou lugar”, daí o sentido de em- boscar, encaminhar, encaixar, enclausurar, engaiolar etc.”; 3) por extensão do sentido anterior, “cobrir com”, daí encapuzar etc.”; 4) “aproximação; em direção a”; 5) “aquisição de uma qualidade ou estado novo; transformação”, em verbos com a noção de “tornar-se”, ou “converter em”, ou “dar forma de”; 6) “transformação” ligando-se à ideia de “superposição, justaposição” em verbos com a noção de “formar”; 7) “movimento sobre, justaposição”, derivando o sentido de “colocação em excesso”; 8) “superposição” ligando- se à ideia de “penetração”, a noção de “prender ou firmar com”; 9) “dar ou criar”; 10) em substantivos, a noção de “ato ou efeito de”; 11) nos adjetivos, mantém-se as noções referentes aos verbos dos quais derivam, por exemplo “empoderado”, referindo-se ao poder inerente a alguém que o possui. Em relação ao elemento de composição “pod-”, é um derivado do verbo latino possum, potes, potui, posse, dando a ideia de “poder, ser capaz de”, sendo a conjugação de possum proveniente da contaminação do verbo poteo, potére, que deu o tema do perfectum, potùi, o do particípio presente, potens e da locução composta do adjetivo potis ‘senhor, possuidor’ e do verbo sum ‘ser, existir’. (HOUAISS, 2004). Portanto “empoderar-se” é algo como possuir o ser no existir de maneira própria e apropriada, realizar o poder ser mais pró- prio, ou ainda ser-poder-sendo. dante augusto galeffi 84 que domina é a estupidez e o descuidado radical, a negligência com o que deve ser cuidado cordialmente, afetivamente e não apenas formalmente. Por ser um paradigma diferente daquele moderno seu senti- do não é a objetividade cega e nem a subjetividade romantizada, porque lida com a contradição e procura o diálogo como meio de conexão afetiva entre diferentes seres humanos, encontrando, en- tão, um fundamento afetivo para a convivência pacífica e cuida- dosa das pessoas em relação ao todo conjuntural do mundo como cosmos − totalidade vivente. Pode-se até dizer, complementando, que o Dasein, o ser que nós mesmos somos, é um ser-com-cosmos: o mundo se tornou cósmico e sua abrangência mundana se fez cósmica. O mundo se tornou do tamanho do cosmos. O referencial de localização existencial de cada ser humano agora se vê projetado no âmbito de um pertencimento comum cósmico e de uma comum responsabilidade com tudo e com to- dos os entes reunidos, humanos e não humanos. O eixo ético e o eixo estético giram criativamente na construção de novos mun- dos trieticamente sustentáveis. A política tem a afetividade como a superfície a partir da qual algo se edifica, sendo uma governança do bem comum na comunidade partilhada dos comuns e respon- sáveis curadores da vida instante. O paradigma em construção tem recebido muitos nomes. Basarab Nicolescu (2014) o batizou de paradigma cosmoderno, querendo com isso chamar a atenção para o fato de hoje o pós- moderno ter-se tornado cósmico. Assim, é um paradigma que projeta uma nova ciência da natureza a partir do olhar da comple- xidade e das relações de implicação recíproca entre as partes de um todo. O paradigma cosmoderno de Nicolescu exprime o espí- rito de superação dos obstáculos construídos pela razão moder- didática filosófica mínima 85 na, abrindo-se para o acolhimento dos saberes tradicionais e da inclusão do conhecimento em todo conhecimento: a inclusão da subjetividade (processos de subjetivação). O predomínio da realidade física em relação à realidade es- piritual, graças ao êxito da ciência física com seu operador ma- temático, que então define os limites da objetividade científica, estabelece a crença na “verdade científica” e a refutação das “ver- dades subjetivas”. A instituição do paradigma racionalista moder- no estabelece um fosso entre as ciências da natureza e as ciências do espírito. E mesmo as ciências do espírito tentaram imitar a modelagem epistemológica da objetividade em suas formulações. Mas como medir sentimentos, volições, juízos e pensamentos? Como determinar a objetividade dos atos morais, das poéticas artísticas e da fé religiosa? Como objetivar o que não é ao modo de objetos espaciais? Há também o chamado paradigma da complexidade, mesmo sendo a complexidade avessa à ideia de um único modelo univer- sal. Uma dasformulações mais abrangentes do pensamento da complexidade encontra-se nas obras de Edgar Morin, sobretudo a obra escrita juntamente com Jean-Louis Le Moigne, “A inteli- gência da complexidade” (MORIN; LE MOIGNE, 2000). No capítulo 2 deste livro, Morin trata da “Epistemologia da comple- xidade” procurando superar o horizonte da monológica identitá- ria do paradigma da simplicidade. Falando dos desafios da com- plexidade ele provoca: Desse modo, a complexidade é desafio e não solução. Existem três desafios maiores, simultâneos e frequente- mente ligados, que são lançados pela complexidade. dante augusto galeffi 86 1 – Como reunir. É o desafio próprio da inteligibilida- de e da compreensão em situação de complexidade, visto que intelligere significa “entreligar”, e compre- ender, “aprender juntamente”. • reunir o acontecimento, o elemento, a informa- ção ao contexto; eventualmente reunir entre eles os contextos diversos; • reunir o parcial ao global e ligar o global ao par- cial, segundo a exigência já formulada há mais de três séculos por Pascal: “Todas as coisas sendo causadas e causadoras, ajudadas e ajudantes, me- diatas e imediatas, e todas se sustentando por um laço natural e insensível que liga as mais afastadas e as mais diferentes, eu julgo impossível conhecer as partes sem conhecer o todo, não mais do que conhecer o todo sem conhecer as partes”; • reunir o um ao múltiplo, o universal ao singular, a autonomia à dependência; • reunir o elemento organizado à organização e reunir a organização àquilo que ela organiza; • reunir a ordem, a desordem e a organização, re- conhecendo inteiramente seus antagonismos; • reunir o separado e o inseparável, o descontínuo e o contínuo, o indivíduo à espécie, o indiví- duo à sociedade. No mundo revelado pela física quântica, o inseparável não deve ocultar, mas fa- zer reencarar o separado que perde sua evidência e se torna problema. O problema da complexi- dade é não substituir a separabilidade pela inse- parabilidade, mas inseri-las uma na outra; didática filosófica mínima 87 • reunir aquilo que é antagônico ou contraditório desde quando o antagonismo ou a contradição apareçam como complementares; • reunir a lógica e aquilo que ultrapassa a lógica; • reunir a observação ao observador, a concepção ao conceituador, o conhecimento ao conhece- dor, – ou seja, conceber o complexus (aquilo que é te- cido conjuntamente) nas organizações e entre os organizadores, nos indivíduos, entre indivíduos, entre indivíduos e sociedades, entre sociedades, – ou seja, restituir as relações, as interdependên- cias, as articulações, as solidariedades, as organi- zações, as totalidades, – ou seja, colocar-se em condição de tratar a com- plexidade organizacional, a complexidade viva, a complexidade humana (bioantropopsicossócio- -histórica). 2 – Como tratar as incertezas? 3 – Como realçar o desafio lógico? Como tratar os pa- radoxos e as antinomias que surgem no processo de investigação racional? Como aceitar as contradições ou antagonismos lógicos? Como reuni-los? Como manter a lógica transgredindo-a completamente? Como integrar a indissolubilidade? O problema não é tanto abrir as fronteiras entre as disciplinas como transformar aquilo que gera essas fronteiras. (Vê-se aqui a diferença de natureza com a compli- cação: a complicação é como uma meada que po- dante augusto galeffi 88 deria ser desenrolada se o operador dispusesse de suficiente sutileza nos seus meios de observação e de análise, paciência suficiente e habilidade, o que permitiria reencontrar o fio correto dos elementos simples e das noções simples; a complexidade re- quer uma outra forma de pensamento para articu- lar e organizar os conhecimentos.) (MORIN; LE MOIGNE, 2000, p.134-135). Essa transcrição é perfeita para caracterizar o paradigma da complexidade e seus desafios concretos. Os desafios apontam para outro horizonte de formação humana, pois a complexidade exige um desenvolvimento humano com maiores desafios e ris- cos no atendimento de uma consciência cosmológica emergente. Não se trata de eliminar a contradição e sim de incluí-la na di- nâmica dialógica da vida instante. Não se trata de substituir uma crença no mundo por outra e sim de realizar a transformação humana para a plenitude vivente. O cuidado se revela, assim, como o caminho metodológico de toda a complexidade cognitiva e informacional da cultura humana planetária. Daí a importância do “aprender” como verbo regente da educação dos indivíduos e sociedades contemporâneas. Trata-se de constituir e construir uma Epistemologia do Edu- car Transdisciplinar, como confirmação de que é preciso introduzir os operadores pragmáticos oriundos de um campo científico, que inclua todos os saberes e práticas humanas sem hierarquias. Neste caso, as hierarquias se revelam como dispositivos de poder insti- tuídos política e socialmente, mas não correspondem a leis está- ticas e incontornáveis. Mesmo hierarquizando em seus modos de acoplamento, ao modo dos organismos vivos, na natureza o que é mais valorizado com acréscimo de poder está sempre a serviço da didática filosófica mínima 89 transformatividade criadora. É no plano do uso do poder político que a hierarquia se estabelece e se impõe naturalizando-se. A natureza em sua multiplicidade de sistemas de sistemas não hierarquiza nada. A hierarquia vem do instinto da vida em seu campo de ação inteligente. E tudo o que constituí os orga- nismos vivos é necessariamente inteligente, o que não quer dizer que a inteligência aqui considerada seja apenas do tipo humano. Tudo o que se encontra sendo no vasto multiverso criador possui inteligência própria e capaz de acoplamentos e replicações gené- ticos e “meméticos” diferenciados e únicos. Cada caso de uma série é sempre um caso único daquela série que pode sempre ser replicado em sua gênese vital. E os acoplamentos vitais são sem- pre multidependentes e autopoéticos. No mundo da cultura o “meme”4 é portador de informação cultural que pode ser atualizada e traduzida em conhecimento. E como o “meme” é o equivalente ao “gene” na genética, ele é 4 Meme é uma palavra/conceito criada em 1976 por Richard Dawkins no seu bestseller O Gene Egoísta e é para a memória o análogo do gene na ge- nética, a sua unidade mínima. O meme é considerado uma unidade de informação que se multiplica de cérebro em cérebro ou entre locais onde a informação é armazenada (livros, computadores etc.). Em relação à sua funcionalidade, o meme é uma unidade de evolução cultural que tem a propriedade da autopropagação. Os memes podem ser identificados como fenômenos mentais, ideias, partes de ideias, línguas, códigos culturais, sons, desenhos, capacidades, valores estéticos, éticos e políticos, ou qualquer ou- tra coisa do gênero que possa ser aprendida facilmente e transmitida como unidade autônoma. A palavra “memética” deriva de “meme” e significa o estudo dos modelos evolutivos da transferência da informação. Sendo que “memética” deriva da palavra grega “mimesis”, indicando o processo imitativo do mundo cultural e técnico (poético, produtivo). Para Richard Dawkins os “memes” são replicadores de comportamentos, portanto, são os vetores do mundo da cultura, da informação, da tradução e da construção do conhecimento. dante augusto galeffi 90 replicado através das ações humanas corriqueiras, propagando-se como um vírus. Bem, trata-se de uma teoria do mundo que pro- cura meios para expressar as especificidades da produção cultural humana em relação ao mundo em estado dito natural. De qualquer modo no mundo globalizado contemporâneo a replicação cultural se vê submetida a critérios de controle que falam em nome da qualidade, que garante o sistema de marcas e marketing de seu produto, em uma manipulação do gosto pú- blico pela indução de consumo de certas marcas via publicidade. Um fenômeno da estetização dos produtos culturais que ganham status diferenciados segundo a posiçãode consumo que ocupam. Mas a ideia do “meme” não deixa de aderir aos acontecimentos como descritor criador de novos agenciamentos culturais com- plexos, apesar de também impor um plano de redução de toda a cultura como tendo que ter uma estrutura evolutiva similar àque- la do mundo genético. A escola instituída também é um meme, mas que no caso replica o que já se encontra desafinado em relação ao tempo pre- sente, produzindo um efeito de desperdício ontológico genera- lizado e até mesmo criminoso. E para mudar a modelagem da escola é preciso reformular os seus fundamentos epistemológicos e axiológicos, éticos, estéticos e políticos. É preciso transformar o ser humano na direção de seu cuidado triético. O cuidado se faz mediação para a formação de seres humanos bem-amados, desejados, cuidados. Na modelagem da escola na visada da complexidade se pode operar de modo adequado os três postulados da metodologia da transdisciplinaridade formulados por Basarab Nicolescu: didática filosófica mínima 91 1. Há, na Natureza e no nosso conhecimento da Natu- reza, diferente níveis de Realidade e, corresponden- temente, diferentes níveis de percepção. 2. A passagem de um nível de Realidade para outro é assegurada pela lógica do terceiro incluído. 3. A estrutura da totalidade dos níveis de Realidade ou percepção é uma estrutura complexa: cada nível é o que é porque todos os níveis existem ao mesmo tempo (NICOLESCU, 2002, p. 45). Tais postulados são condizentes com a nova estruturação complexa do conhecimento e são aderentes ao novo plano da educação que se projeta em possibilidades, a partir de uma mu- dança de mentalidade diante da Natureza em sua exuberância criadora, mantenedora e transformadora ao longo de suas eras e gêneses cósmicas. Eles apontam para o caminho operativo da transformação humana necessária para o alcance de uma vida plena para todos e não apenas para alguns. O que requisita uma construção social nova, radicalmente plantada nas coisas mesmas, que são os afetos e cognições humanas. Assim, diante do paradigma da complexidade a educação hu- mana não mais é pensada como disciplinar, o que muda tudo, desde o espaço escolar ao comportamento escolar necessário à aprendizagem própria e apropriada de cada ser humano em sua singularidade irrepetível. É, então, urgente compreender que se faz necessário reformular o paradigma da educação em vigor des- de suas raízes. Para esta transformação necessita-se de uma episte- mologia que forje os instrumentos operadores da transformação, uma epistemologia do educar polilógica, transdisciplinar. Esta epistemologia já tem um amplo acervo de ferramentas nas for- mulações da epistemologia da complexidade, compreendendo-se dante augusto galeffi 92 aí todas as teoriações que superam o paradigma moderno bipolar e monológico. Para a configuração acional da didática filosófica mínima pro- posta é preciso investigar de que modo realizar a mudança pa- radigmática necessária. Então, a quem cabe realizar a mudança, fazer “o que se diz” no plano ideacional como transformação da educação disciplinar ainda imperante na maior parte do mundo e no Brasil? Designo com a expressão “o que se diz” toda a produção e difusão discursiva humana, que também se dá no campo da transformação da educação humana, e com a expressão “o que se faz”, o campo dos acontecimentos de valorização da cultura e da educação em ato. O “a ser feito” aponta necessariamente para o devir da educação mundial e nacional, sempre dependente do que se faz agora, neste nosso tempo-espaço de existência coletiva. Isto para estabelecer uma compreensão do estado da arte na edu- cação disciplinar nacional. O campo do “que se diz” abarca também toda a legislação vigente sobre a educação formal, assim como os planos, parâ- metros e diretrizes disponíveis, pois o que se diz é também parte integrante do que se faz, configurando-se como campo dos acon- tecimentos em curso, referente à fenomenologia humana em seu processo em ato. Por exemplo, se quisermos compreender porque a educação nacional é ainda disciplinar e moldada pelo paradigma monoló- gico moderno é suficiente analisarmos a LDB, as Diretrizes e os Parâmetros Curriculares Nacionais, os Planos de Educação e seus textos correspondentes. São discursos escritos que estão necessa- riamente no plano do que se diz, mas também são vetores tensi- vos para “o que fazer” e se assemelham ao projeto de uma edifica- didática filosófica mínima 93 ção. O projeto é tanto uma concepção quanto uma especificação do como a edificação deve ser concretizada com segurança. Mas o que se projeta como Lei, Diretrizes, Parâmetros e Planos per- manece um virtual, um campo de possibilidades e ações. A efeti- vidade de tudo isso é o que se faz a partir de todo esse horizonte configurado e povoado de discursos e teorizações normativas. E em geral o que se diz permanece apartado do que se faz no plano concreto, o que inviabiliza qualquer mudança efetiva no sistema da educação. Será importante, entretanto, observarmos três instâncias fun- damentais para percebermos a crise de paradigmas enraizada em toda parte: o Estado, a Escola e a Sociedade. Assim, o papel do Estado, da Escola e da Sociedade na valorização de um novo pla- no da educação humana oscila entre o que se diz e o que se faz, entre virtualidades e acontecimentos. Rapidamente, vamos espiar um pouco cada instância implicada na valorização da educação desejada tendo como horizonte uma didática filosófica mínima, procurando compreender o papel de cada instância na perpetu- ação de uma educação ineficiente e na transformação desejada. O Estado tem papéis múltiplos nos planos legislativo, judici- ário e executivo. Dispõe dos instrumentos apropriados para esta- belecer a Lei, a jurisprudência e a execução e funcionamento do sistema educacional nacional. No Brasil há a Lei, a jurisprudência e o aparelhamento executivo para a realização do Plano Nacional da Educação (PNE), implicando em uma unificação da educação nacional cada vez mais homogênea e controlada. A LDB vigente foi inspirada no espírito do Documento para a Educação do século XXI encampado pela UNESCO, que enfa- tiza o “aprender” e não mais o “ensinar” (DELORS, 2004). En- tretanto, manteve o verbo “ensinar” como carro chefe do projeto dante augusto galeffi 94 educacional nacional. Por que se manteve o “verbo ensinar” e não se utilizou o verbo “aprender” como principal tarefa da educação básica e superior? A própria LDB vigente já se encontra desalinhada com o pro- jeto de educação mundial para o século XXI desde o início, o que a torna obsoleta em relação às emergências metacognitivas da so- ciedade do conhecimento e da informação contemporânea. Para mostrar as consequências da inversão realizada pelos legisladores da LDB, que trocam o verbo “aprender” pelo “ensinar” como car- ro chefe da educação nacional, significa enclausurar o profissional da educação ao âmbito do “ensinar” conteúdos predeterminados e homogêneos, a partir do livro didático em seu monologismo imperante. O professor é aqui determinado como aquele que dá aulas dos conteúdos predeterminados nacionalmente. O profes- sor é um “repetidor” de fórmulas prontas e consagradas oficial- mente. Como contraponto, na didática filosófica mínima não há mais «o professor» e sim o dialogante mediador, coconstrutor do conhecimento e não o “repetidor”. Na modelagem disciplinar moderna, o profissional da educa- ção não é um produtor do conhecimento e sim um reprodutor. Com o verbo ensinar a educação nacional abdica de um profissio- nal da educação construtor do conhecimento, autônomo, inven- tivo, inovador em sua ação coletiva. Confirma uma competência fundamental do ser educador (o profissional da educação, assim como médico é chamado o profissional da medicina): o ser aulista – saber dar aulas bem, “passar” os conteúdos predeterminados para em seguida aplicar provas e aferir a retenção da repetição realizada. Tudoo que a didática filosófica mínima quer evitar a todo custo. Todo o sistema da educação nacional tem o “ensinar” como tarefa. Parece que os legisladores da LDB estavam diante de um didática filosófica mínima 95 mundo em transformação acelerada e com a cabeça na educa- ção dos séculos XIX e XX. Mas, de qualquer modo, atenderam ao texto da Carta Magna que se refere à Educação obrigatória como “sistema de ensino”. Entretanto, caberia uma ementa cons- titucional, caso a cabeça dos legisladores estivesse afinada com as emergências do século XXI, muito diferentes de tudo o que se conhecia até então, na última década do século XX. Vejamos os efeitos imediatos: a incapacidade do sistema de educação em realizar a educação necessária para se viver e so- breviver na sociedade do conhecimento globalizado, do controle e da eficiência, da mais-valia reinventada em qualquer atividade humana, desde que se torne mercadoria, se possa vender. Se no plano do Estado como está formulado textualmente o educador é um repassador de conteúdos e um aulista, a sua valorização se resume ao plano quantitativo, mesmo presumindo a educação continuada também do educador e os incentivos para sua con- tínua formação. Mas o horizonte de formação continua sendo aquele dos séculos XIX e XX: o educador como funcionário da transmissão do conhecimento. Outro indício da falência do sistema vigente é a realização de “provas” para aferição do conhecimento adquirido pela repetição. Deveria ser o contrário: o educador como construtor/inventor do conhecimento em parceria com os aprendentes. O educador deveria saber construir o conhecimento a partir de cada caso de aprendizagem. O que pressupõe uma autonomia construída na aprendizagem incorporada. Mas não! O educador deve ser o “profissional” no manuseio das técnicas pedagógicas de ensinança e não de aprendência. A prova toma o lugar do horizonte final da educação: estuda-se para fazer provas e não para se aprender a aprender. dante augusto galeffi 96 Então, a valorização do profissional da educação por parte do Estado tem em mira a modelagem de um profissional que saiba dar boas aulas, fazer boas provas, classificar os estudantes conforme seu êxito nos exames, saber separar, excluir etc. Trata-se aqui de suspeitar “das boas intenções” do Estado em relação à va- lorização do educador, pois permanece uma hierarquização base- ada na meritocracia objetivamente técnica, linear, cumulativa. O Estado, no que tange ao educador, não julga o mérito acadêmico de sua qualidade de educador/pesquisador, não tem a tarefa de realizar o reconhecimento do valor e sim a afirmação da função social do educador, que deve “saber dar boas aulas e fazer boas provas”. Isso afirma de modo subjacente uma negação da auto- nomia radical do educador, devendo este contentar-se em ser um “eficiente reprodutor” dos conteúdos impostos uniformemente. Mas onde se pensa chegar agindo-se assim? Para que o Estado mude o seu plano paradigmático em re- lação à valorização da educação, precisa formular uma nova Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional. Uma Lei que fun- damente a educação para a aprendizagem do conhecimento de modo criativo, aberto, inovador. Tendo a coragem de orientar para o desfazimento da educação disciplinar fundada no ensi- no para a construção de uma educação da aprendizagem própria e apropriada. Nesta possibilidade, a valorização do educador na instância do Estado sofreria uma torção radical, passando a ser o educador o “mestre do fazer-aprender” e não mais do ensinar. Isto muda tudo, o que é um risco abissal. No paradigma emergente, o educador passar a ser um coadjuvante, um coautor da formação significante de cada edu- cando em particular, de todos os educandos em comum. Um educador que aprende a construir o conhecimento a partir das didática filosófica mínima 97 circunstâncias e emergências do contexto de vida dos educandos tendo diante todo o acervo material e imaterial da humanidade. Um arquiteto de aprendizagens próprias e apropriadas. Um faze- dor de sentidos com sentido. Não, o professor está agora ainda projetado para contentar-se em “passar os conhecimentos”, um aulista cumpridor dos pro- gramas nacionais para o aferimento em provas da aprendizagem. Nada mais excludente e nocivo, antieconômico. Quando o que se precisa é de emancipação através de uma educação criadora, e não repetidora do fracasso e do desperdício ontológico, ao se jo- gar fora todo aquele que não se enquadrou ao mundo do castigo e do prêmio, ao mundo “dos outros” e não “ao meu mundo” (o mundo próprio de cada singularidade). Na instância do Estado a valorização do educador resume-se ao compromisso em garantir salários considerados justos, incen- tivando a qualificação continuada do educador. Mas, para que continuar qualificando o educador como aulista e aplicador de provas e testes, se o mundo atual gira em torno do conhecimento apropriador, operador, transformador? E por que o Estado, nas instâncias federal, estadual e muni- cipal, propaga um sistema de educação comprovadamente falido, ineficaz, impróprio, pois produz uma massa de analfabetos fun- cionais incompreensível? E o Estado insiste em reduzir a edu- cação ao ensino e acha que insistindo em uma escola do século passado vai conseguir erradicar o analfabetismo geral. Mas como? Valorizando o professor repetidor e reificando um sistema disci- plinar falido? E como é fazer diferente? O papel do Estado deveria ser aquele de garantir uma educa- ção qualificada e afinada com o tempo atual, utilizando todos os seus diagnósticos negativos para a construção de estratégias que dante augusto galeffi 98 afrontem o problema grave de que a maioria das escolas públicas são depósitos de lixo cognitivo e afetivo. Então, para que servem os diagnósticos se os verdadeiros problemas não são resolvidos satisfatoriamente? O controle do Estado dos processos educativos passou a ser primacialmente apenas cobrança e punição, acentuando a enor- me incapacidade do sistema de realizar a formação desejada. E qual é a formação desejada? No âmbito do que se diz a formação desejada é ampla e bela de ver, ouvir e tocar. No âmbito do que se faz não se sabe ain- da fazer de outro modo, educar através de outras formas mais apropriadas para fazer florescer uma educação de qualidade para todos. Para uma tamanha tarefa requer-se outro profissional da educação: um coconstrutor do conhecimento apropriador, em- poderador da autonomia compartilhada, comum-responsável em relação ao que é comum. Potencializador do poder-ser mais próprio de cada educando em sua singularidade irredutível. En- tretanto, a educação do educador aí instituída está marcada pela disciplinaridade, quando o que se requer é o trabalho interdisci- plinar com aspirações a transdisciplinar. No sistema vigente, o educador vai ser valorizado generica- mente como um repassador de conteúdos na maioria das vezes sem contextualização e sem levar em conta o tempo e a forma diferente como cada um aprende. O que se vê, de forma genera- lizada, é a homogeneização do que se deve aprender no ensino, não para de fato apossar-se daquele conhecimento, mas para sim- plesmente repetir as respostas prontas. E assim se fazem provas e o horizonte da educação formalizada se restringe ao fim da com- petição e exclusão dos considerados incapazes. O desperdício de recursos humanos é incomensurável pela insistência em operar didática filosófica mínima 99 um sistema que não realiza o seu papel formador no caminho da emancipação humana global. Se o Estado propaga ainda uma política educacional calcada na disciplina e no ensino de conteúdos, e por isso mesmo apenas requisita que o educador seja bem formado como aulista, qual outra instância, senão a escola é o âmbito no qual os educadores mostram o seu valor na ação pedagógica efetiva, sendo o âm- bito de valorização qualitativa principal do educador? O papel da Escola na valorização do educadoré central neste contexto investigativo. Pois, assim como o médico será avaliado pelo seu exercício médico, o educador será avaliado em seu fazer peda- gógico. A Escola é o campo de realização do valor do educador (profissional da educação). O papel da Escola na valorização do educador ultrapassa o âmbito do que se diz para cravar-se no âm- bito do que se faz. Trata-se da valorização singular de cada educador em sua própria ação pedagógica. O plano aqui não é mais genérico e impessoal como aquele que cabe ao Estado, pois a valorização do educador corresponde ao êxito ou fracasso de sua ação pedagó- gica no espaço escolar. E esse é apenas um aspecto da valorização do educador pela Escola. E talvez o mais importante seja pro- curar compreender como a Escola valoriza os seus protagonistas (educadores, funcionários, estudantes, comunidade implicada) a partir de seu Projeto Político-Pedagógico. Ora, mas o que é um Projeto Político Pedagógico? Não seria o instrumento operativo para a autonomia escolar? E por que as Escolas em sua maioria não fazem de seus Planos Pedagógicos instrumentos de transformação e qualificação da educação criati- va, emancipatória? Em projetos disciplinares, como é valorizado o educador? dante augusto galeffi 100 A escola teria o papel de garantir ao educador autonomia em seu exercício criador de transformação continuada. Mas para isto o seu Projeto Pedagógico deve definir o valor do educador em seu exercício de autonomia partilhada. Sim, porque a partilha é a garantia da abundância para todos e não apenas para alguns poucos e supostamente privilegiados. O que preserva o educador de tornar-se vítima de sua própria ignorância é sua própria atitu- de aprendente, investigativa, interrogante, aberta ao radicalmente novo. O educador hoje é chamado a ser um cientista e um artis- ta da formação criadora simultaneamente. Um cientista, porque sem ciência nada se pode fazer para romper o círculo do dogma e da fé cega, constituindo-se de uma racionalidade dialógica apro- priadora. Cabe-lhe mediar processos de aprendizagem e não o papel de predeterminar o que deve ser repetido pelo educando. É também um artista, porque no exercício do aprender polilógico o que se aprende já se constitui em si um agir criador, um fazer que, ao fazer, inventa o próprio modo de fazer e reaprende a fazer desfazendo, e a desfazer fazendo o desfazimento que é um reco- meçar tudo do início. A Escola vai valorizar o educador quando definir para o educador o papel de mediador amplamente preparado para fa- zer-aprender o aprendente a aprender a aprender: ser, pensar, vi- ver-com, realizar. Ora, a valorização se faz em base a valores. O educador aulista será valorizado em um regime de organização disciplinar muito mais pela sua capacidade de “fazer como manda o figurino” do que o de fazer fora do previsto. Ele não será valori- zado pela sua potência criadora e sim pela sua capacidade repro- dutora, passiva, porque no final das contas ele não sai do “texto” predeterminado, não lhe é dada autonomia para tal, por medo da didática filosófica mínima 101 perda do controle regulador genérico, impessoal, inafetivo. É na Escola que o educador pode ser valorizado em sua efetividade de “coconstrutor do conhecimento”. Pela escola se forma a educação obrigatória. Mas, e quando ela não dá conta do recado? Não con- segue fazer-aprender o educando genérico, como fica o valor do educador? Valor de um fracassado? De um profissional menor? O papel da escola na valorização do educador está na de- pendência do seu efetivo Projeto Pedagógico emancipador, ne- cessariamente integrado à comunidade envolvida. É preciso que a escola tenha um estatuto de autonomia pedagógica a partir de seus membros e promova o protagonismo de seus agentes (fun- cionários, educadores, educandos, comunidade). Para tanto, a Escola tem que fundar a sua gestão democrática a partir de den- tro, envolvendo todos em um projeto comum interdependente e interpessoal. O educador aqui aparece como um profissional al- tamente qualificado para colaborar em um projeto de construção de uma Escola em que cada um é corresponsável em tudo o que se diz e o que se faz. O Educador precisa ser um investigador/criador próprio e apropriado para ser valorizado na sociedade cognitiva contempo- rânea. Permanecendo apenas um aulista tenderá a continuar ven- do o seu trabalho submetido a um regime de escravidão passiva, cujo horizonte de desenvolvimento é desalentador para qualquer um. Assim, o papel da Escola na valorização do Educador é exer- cido a partir do seu Projeto. O que significa reconhecer como a maioria dos atuais educadores da rede pública não encontra o meio efetivo para exercer a sua autonomia pedagógica em con- sonância com o projeto comum do qual faz parte. Primeiro por- que a sua formação foi disciplinar e ele não sabe fazer diferente, dante augusto galeffi 102 não aprendeu a investigar e sim a repetir conteúdos sem a devida apropriação construtiva. O conhecimento se constrói na investi- gação aprendente. Infelizmente mantém-se ainda a exclusividade da formação para a pesquisa na formação superior, que também tem sua de- finição mestra a partir do verbo “ensinar”. O aprendizado para a pesquisa se faz com pesquisa e não com “manuais de pesquisa” a serem ensinados homogeneamente e cobrados em exames e pro- vas. E por que o educador não é valorizado como agente criador autônomo pela escola? Ora, se a escola não é emancipada em seu próprio fundamento e estatuto, como poderá valorizar o educa- dor além de aulista – dador de aulas? Apresenta-se, então, a necessidade de uma valorização do educador como agente criador do processo formativo humano, além da disciplinaridade imperante. Para o surgimento da valorização do educador como agente criador é imperativo uma radical transformação da escola. Mas a escola hoje em quase todos os seus casos, a escola pública, pri- macialmente, vive cativa dos dispositivos administrativos que impõem uma regulação cartorial passando por cima de sua au- tonomia pedagógica em poder instituir os meios necessários para a formação de escolas-comunidades de pesquisa e aprendizagem. Laboratórios avançados de formação humana afetivamente cons- tituída. Afinal, que ser humano a escola está formando com seus dispositivos seculares? Um educador, uma educadora da sociedade do conhecimen- to e da aprendizagem são agentes criadores do como fazer apren- der a aprender aprendendo − de como fazer o aprendiz aprender em sua singularidade aprendente. O educador como mediador didática filosófica mínima 103 semiótico complexo, perpassado pelos afetos que afetam e criam as condições favoráveis para deixar que o aprendiz aprenda a partir do que lhe apetece aprender como tarefa investigativa. Que revolu- ção se faz no agir aprendente radical! A revolução dos corpos desejantes famintos de conhecimen- to liberador do estado de indigência ontológica dos ainda oprimi- dos, os pobres, os carentes dos meios de desenvolvimento de uma vida comum-pertencente e livremente criada. Falando agora da instância social, é preciso redizer que a so- ciedade somos todos nós e tantos outros. É ela que através de seus dispositivos e hábitos cria os seus valores. A escola é um duplo da sociedade, por ser ela mesma uma agremiação societária. A socie- dade instituída e bem situada social e economicamente valoriza o educador segundo seus valores. Quem paga quer garantir para os filhos a melhor educação dentro do que é oferecido no mercado de escolas com seus regimes aulistas. E como a sociedade é forma- da de múltiplas associações, o papel da sociedade na valorização do educador se torna multifacetado e atendendo a diferentes pro- jetos educacionais, desde os empresariais até os comunitários. Há diferentes setores sociais que formulam políticas para a educação. Um regime democrático permite o trânsito de interesses diversos, expressões de grupos sociais organizados. Mas asociedade também se encontra em crise, ela que vai sendo formada pelos moldes de suas instituições. É uma crise geral de valores. Hoje a sociedade se tornou o ente simbólico Mundo. A globalização alcança com aceleração os mais recôndi- tos lugares da Terra. Em nosso imaginário a Terra já é afigurada como um corpo único, graças às próteses de visão que ampliaram o tamanho do universo para o macro e para o micro. dante augusto galeffi 104 Hoje a sociedade-mundo se vê transpassada pelo controle. Parece que a racionalidade técnica reina em seu triunfo de mani- pulação da natureza. Os sistemas de controle penetram em todos os âmbitos da atividade humana. Vive-se em um mundo virtuali- zado em que o real se expande em suas variantes e limites. O con- trole social que antes era feito pela moral agora está nas mãos de tecnólogos e organizações. As estatísticas apresentam tendências de fenômenos sociais investigados. Os dispositivos de controle impõem modelagens morais predeterminadas. Com o objetivo de servir de diagnóstico para a intervenção nos setores sociais que não alcançam suas metas, todo dispositivo de controle atua como via de mão dupla. Por um lado procura homogeneizar seus dis- positivos produzindo efeitos de homogeneização nos corpos sub- metidos ao controle. Mas por outro lado todo controle encontra a sua contraparte no “fora de controle”. E é no “fora de controle” que se abrem as fendas para a transformação inesperada, impre- vista, desconhecida. É um paradoxo. A sociedade global é um paradoxo. Vive da contradição e da oposição produzindo a ilusão da previsibilidade e do controle. Olhando mais de perto, tudo está fora do controle da razão humana e o imponderável se faz materializado de mui- tas maneiras. Na complexidade da sociedade contemporânea o educador aulista vê a sua atuação ser superada pela maquinação telemática, pois a informação de todas as áreas se encontra dispo- nível para acesso direto na web. Quando detinha de certo modo a informação de sua área de conhecimento, fazia sentido ser aulista. Mas, e agora o que lhe resta fazer? Transformar-se, redesenhar- se em sua competência profissional? Mas como deixar de lado o mundo tão consistente da escola aulista? Como fazer diferente se só se aprendeu a fazer igual? didática filosófica mínima 105 Entretanto, muitos já sabem fazer diferente e fazem, sobretu- do, nas mais extremas condições de indigência social. E por que a sociedade estabelecida tem mais dificuldade de mudar de hábitos do que a sociedade pobre? O cerne da questão se encontra em uma encruzilhada, e as sociedades precisam decidir entre uma mudança paradigmática radical e uma perpetuação de dispositivos caducos de formação social. A sociedade-mundo tem o imperativo da aprendizagem do conhecimento como motor das novas dinâmicas produtivas. Para esta sociedade mundo o educador precisa estar na ponta da ciência, da arte e da filosofia como protagonista de ações criado- ras, pois os que neste mundo telemático se limitam a copiar o que os mais espertos produzem não geram a potência para sair da servidão involuntária e voluntária. A sociedade dominante e governante valoriza o educador em sua função genérica de ser um agente das transformações tendo sido formado para formar os outros. Mas o educador permanece à sombra de outros profissionais em relação ao que podem ganhar com o seu trabalho. Se o educador passar a ser formado como agenciador cognitivo complexo e não simplesmente como aulis- ta sua valorização social se equiparará ao de outros profissionais como médicos, engenheiros, políticos e juízes. Trata-se apenas de um horizonte ainda virtual para a realidade do educador aí ins- tituída, dominante. Mas é um horizonte que valoriza para cima o profissional da educação requisitado pelo mundo globalizado e pela revolução cultural em curso. Uma revolução ambígua e para- doxal, pois tanto a globalização pode significar a territorialização de organizações multinacionais como também pode indicar para o acréscimo de potência da consciência humana fundada no cui- dado incondicional ao mundo da vida. Uma grande tarefa para o dante augusto galeffi 106 ser humano deixar de ser negligente e inconsequente em relação a si, ao outro e ao mundo. O fato é que o educador aulista não será valorizado pela so- ciedade do conhecimento com o que oferece como competência. Mas para que algo assim se faça outra formação do educador se faz imperante. Também porque a sociedade só muda através da educação, o educador somente será valorizado de forma justa pela sociedade quando realizar um papel relevante na formação huma- na descolada dos valores e regulações dos séculos passados. Isto requer a construção de uma sociedade solidária, colabo- rativa, sustentável, movida por uma ética e uma estética da dife- rença e da conjugação das diferenças em uma unidade múltipla. Hoje a sociedade valoriza o educador como um técnico do ensi- no. E por isso mesmo sua valorização é vista como secundária, descartável, facilmente substituível. Um profissional que para ter uma condição econômica um pouco melhor trabalha o dobro do que poderia trabalhar. A sociedade ainda não conhece o educador do século XXI por- que ele tem que ser construído. Ela só aprendeu a valorizar o educa- dor como “professor”, aquele que professa uma crença sobre deter- minada área do conhecimento. O educador do século XXI, como mediador cognitivo complexo, requisita uma formação altamente abrangente, sobretudo porque ele vai mediar o desenvolvimento de seres humanos singulares, únicos em suas florações. Antes lhe bastava o acumulo mnemônico de disciplinas que subsidiam os processos educativos, como sociologia, psicologia, filosofia, antro- pologia, estatística, administração escolar, prática docente etc. Os educadores estão sendo formados como se vivêssemos ainda no século da ilustração, das luzes da razão. As luzes da razão mostraram também as trevas e a incerteza, o caos e a desordem, didática filosófica mínima 107 e geraram também uma consciência diferenciada, que também considera o avesso dos discursos e ações humanas. E mostra que é preciso cuidar dos afetos, porque os seres humanos são afeti- vos antes de serem racionais. São animais, seres viventes, finitos, mortais. Agora a formação humana requer a apropriação do conheci- mento como ação criadora, uma apropriação que não considera mais a homogeneidade imposta em nome de uma pseudo-objeti- vidade. Ora, toda objetividade aferida ou afirmada é uma produ- ção de seres humanos, de subjetividades desejantes. A questão aqui é mais profunda e árdua do que se mostra em sua simplicidade. A época da educação disciplinar homogenei- zante e conteudista dá lugar à época da educação interdisciplinar, em que o conhecimento deve ser aprendido através de modos de fazer, e não modos de repetir. Isso desenha outro papel do educador, que agora se inscre- ve em uma rede de aprendizagem colaborativa, com a intenção de encontrar a melhor mediação aprendente para cada singulari- dade. Encerra-se a função da “aula” conteudista e inauguram-se comunidades de investigação que serão acompanhadas criterio- samente por um coletivo composto por diferentes especialidades profissionais no âmbito educacional. O educador mediador cognitivo complexo polilógico inaugura o ato de aprender como um problema permanente que sempre encontra metapontos de vista em que se ancorar, mas está ciente da dinâmica criadora da ciência, da arte e da filosofia. Possuin- do necessariamente uma especialidade, este educador é esperto no trabalho de conectividade da aprendizagem com o mundo da vida, agindo sempre em equipe. Aí a equipe é interdisciplinar, quer dizer, tem o diálogo como meio permanente de construção dante augusto galeffi 108 do conhecimento em construção em cada caso, em cada educan- do em particular. Mas como todos trabalham em grupos, há tam- bém nesta atenção à singularidade a intenção de compreendê-la sempreem relação com os outros. Aprende-se colaborativamente. Isso também desenha uma educação conectada com o pro- tagonismo de seus agentes. Educadores são cientistas e artistas da educação e não imitações reduzidas do que já foi criado pelos grandes senhores do saber esclarecido. Essa forma de valorização do educador que ainda está em gestação, o educador cientista, o educador filósofo, o educador artista, pressupõe uma transformação radical das relações de po- der. E é primacialmente uma microtransformação, uma micro- política educacional conectada com a macropolítica global sem deixar de lado o seu lugar próprio, seu meio de vida associada. Então podemos compreender a Declaração Universal dos Direitos Humanos e o espírito da Lei Magna de nosso país que afirma a igualdade e a liberdade como fundamentos de um estado de direito democrático, sendo dever de o Estado cuidar de todos os seus cidadãos de modo equânime, justo: saúde para todos, se- gurança para todos, educação para todos. Tudo para todos. Mas o sistema de educação vigente foi plasmado nos limites de uma razão instrumental e de uma política da seleção dos mais esper- tos, os supostamente mais inteligentes, sociedade de senhores e de servos, dividida entre os que mandam e os que obedecem. A modelagem da educação vigente é a geradora da exclusão escolar e do individualismo competitivo. É um sistema moldado para a formação de uma minoria governante e uma grande maioria governada. E até se usa do argumento que sustenta que o sistema escolar é na efetividade um sistema de seleção dos mais aptos para a produção desejada pelas organizações “doadoras” de progresso didática filosófica mínima 109 econômico renovado. Só que este sistema faliu e é preciso se ter a coragem para recomeçar a construção do educador valorizado so- cialmente por ser um qualificado arquiteto e designe cognitivo me- diador da aprendizagem singular e comum simultaneamente. O mediador é um parteiro de subjetivações. Importa a sua ação de mediador e não de aulista. Sendo necessário sistemati- zar o conhecimento de modo sempre rigoroso, mas cujo rigor não opera pela afirmação de objetividades matemáticas e sim pela apropriação subjetivante do conhecimento do conhecimento e do desconhecimento. A sistematização do ser educador mediador cognitivo complexo polilógico é sempre um ato singular e único. Seus operadores são epistemologicamente consistentes, porque fundados na investiga- ção radical dos sentidos humanos situados. O papel da sociedade na valorização do educador pode agora ser visto ao avesso, pois todo fundamento se encontra sem fundo. Ou melhor, o sem-fundamento funda o que tem fundamento na terra: matéria-energia-psíquica. E visto pelo avesso o papel da so- ciedade na valorização do educador é o de requerer um profissio- nal da educação altamente qualificado e especializado, pois há de mediar a aprendizagem efetiva de cada ser humano em formação, tudo fazendo para que o aprendiz aprenda ele também a aprender − um jogo de palavras que se tornou vazio pelo uso apenas evoca- tivo e não acional do sentido apropriador de aprender a aprender. Significa também compreender como as avaliações normati- vas dos desempenhos do sistema da educação nacional ao apontar uma falência do sistema através de índices, provas e indicadores deveriam servir para a proposição de ações que visem ao efetivo salto de natureza em relação ao que se tornou ineficiente, impo- tente, ineficaz dante augusto galeffi 110 O educador no novo paradigma não é, pois, um simples fun- cionário dos correios da informação, mas aquele que aprendeu a transformar a informação em conhecimento apropriador e por isso mesmo se encontra formado para mediar a formação dos apren- dizes, porque ele mesmo é um aprendiz-mestre, mestre-aprendiz. Sim, porque o conhecimento não é uma coisa que se pode aferrar e circunscrever como se faz com qualquer coisa percebida em sua forma singular. Ele é um movimento transformacional que cami- nha na abertura da complexidade, o que não exclui a simplicidade. Pelo contrário, pela complexidade a simplicidade é de novo afigu- rada como parte dialógica da complexidade. Uma crítica. Não percamos tempo precioso dando atenção linear aos objetivos projetados pelo PNE (Plano Nacional de Edu- cação) para a década 2014-2024, assim como a todos os planos municipais e mundiais se quisermos compreender o real estado de fatos e coisas da educação pública nacional. Será que não se percebe o agir de forma irracional ao querer insistir no que não resolve o déficit efetivo da educação porque eles apenas refletem diretrizes mundiais genéricas que permanecem no plano do que se diz? O papel do Estado em todas as suas instâncias governamen- tais é o de promover políticas de desenvolvimento humano de- mocrático, não criando obstáculos para que se faça o que se deve e pode fazer para erradicar a pobreza econômica e a miséria cog- nitiva até o limite extremo. O educador aparece como mediador imprescindível deste processo, sendo valorizado de modo equipa- rado ao médico e ao analista cognitivo. O Estado precisa fazer a sua parte que é a de garantir que se realize a inovação necessária, como ato criador, para o desenvolvimento de uma educação afi- nada com os desafios da sociedade do conhecimento, da informa- ção e da aprendizagem. didática filosófica mínima 111 A educação nacional projetada no PNE em nenhum mo- mento põe em questão a sua falência já previamente anunciada em seus próprios objetivos decenais. Ora, não se trata de se ima- ginar um progresso gradual em andamento, mas de encontrar os meios para o engendramento de uma outra modelagem edu- cacional assumida pelo Estado em seu projeto político maior. É dever do Estado fornecer todos os meios para a efetivação de uma educação excelente sem classificações partidárias ou qualquer for- ma de etnocentrismo. Aí entra o papel da escola na valorização do educador: o de promover a aprendizagem efetiva, contra tudo e todos os empeci- lhos e os produtores de obstáculos, burocratas da educação. A escola precisa deixar de ser o lugar do ensino de conteúdos para se tornar a usina formadora dos protagonistas da sociedade do conhecimento globalizada. Assim o educador será valorizado pela sua atividade criadora e cientificamente enraizada, mas agora uma ciência da complexidade e não mais uma ciência cega para os afetos humanos. O papel da sociedade na valorização do educador é o de ter se tornado uma sociedade do conhecimento e da aprendizagem que requisita um profissional altamente qualificado sem ser ge- neralista, um sabedor de tudo que não sabe nada. Pois não se trata de perder o foco da formação profissional específica esco- lhida por cada um e sim de ampliar o campo das competências e habilidades do trabalho em equipe, pois o interdisciplinar, como imperativo organizacional do mundo da produção capitalista, consiste em conectar as diversas especialidades em um todo co- mum através do diálogo, o que permite que os problemas sejam enfrentados coletivamente, pela afirmação de uma comunidade de valores cordialmente eleitos. dante augusto galeffi 112 O Estado precisa mudar, a escola precisa mudar e a sociedade precisa mudar para que não seja tenebroso o futuro que agora é cons- truído. A era do educador aulista se encontra encerrada. Cabe agora realizar o salto de natureza para que o educador se torne arquiteto de uma nova humanidade do conhecimento e da aprendizagem. Por que deveremos esperar que os colonizadores saiam na frente para que possamos imitá-los como até agora se vem fazendo? Por que não deixar de lado os compromissos partidários e pensar dire- tamente sobre as reais necessidades humanas na construção de uma sociedade-mundo sustentável e intensamente solidária? A intenção do diagnóstico anterior é a de revelar a insusten- tabilidade do sistema educacional vigente, projetando algumas linhas de fuga para a efetuação de um salto de natureza necessáriopara a realização de uma humanidade livre das agruras da vida previsível, concluída, acabada. É como acréscimo de potência que cabe o salto de natureza na regência das coisas que constituem os mundos da vida e os mundos vividos por seres humanos que podem ser-mais em relação não ao controle da natureza, mas em relação ao cuidado que cabe a cada ser humano diante do volume de sua consciência ética em relação à totalidade vivente. E é para um ser-curador que cabe uma didática filosófica míni- ma. Ela é mínima na referência linear conteudista, porque postula que os conteúdos a serem aprendidos são aqueles que podem ser inventados pela aprendizagem criadora. Isto não significa deixar de lado a tradição do conhecimento existente e sim mudar de plano de ação para o estabelecimento da apropriação do conhecimento construído e vital para a existência dos seres humanos sociais. Para estabelecer um plano de ação para o salto de natureza da educação, no próximo capítulo procurarei apresentar o plano / desenho metodológico da didática filosófica mínima, com a inten- ção de mostrar a sua natureza ética e estética própria e apropriada. 113 5 Didática filosófica mínima: desenho metodológico acional A didática que pode ser desenhada não é a didática filosófi- ca mínima. Qualquer desenho metodológico é por constituição cartográfico e fotográfico: descreve uma ação e congela como um fotograma um conjunto de ideias em movimento dialógico. Cada desenho é o resultado de uma vivência construída na imaginação e na teoriação – quero dizer, na teoria que é em si mesma uma ação poética, pois é um modo de fazer e processar o conhecimen- to como conascimento conjuntural. Vou direto ao âmbito acional da didática proposta. Trata-se da atitude aprendente radical, o que também chamo de atitude filosófica. Como atitude, é uma disposição ao conhecimento radi- cal, interrogante, dialógico, polilógico. Um saber fazer aprenden- te que mira sempre o que pode ser elucidado em uma investigação como construção do conhecimento. Trata-se de proporcionar ao aprendiz um contato direto com o próprio pensar interrogante, como modo ou caminho para o equacionamento e resolução de problemas vividos. Esta é uma atitude também epistemológica, dante augusto galeffi 114 porque visa estabelecer desde o início da formação o sentido re- fletido de conhecimento científico, sem perder de vista as outras formas de conhecimento além do científico. Nesse âmbito, pratica-se um estado de atenção e cuidado com o campo da experiência formativa. A aparente improvisa- ção inconsequente, vazia, é no desvelamento o modo criador de aprender. Pois só se improvisa tendo em base escalas conhecidas, como no caso da música e, ao se improvisar, põe-se em ato o acervo de uma formação humana em curso. E porque não se tra- ta de iniciar apresentando já os conteúdos predefinidos de cada atividade formativa, todo início será sempre a atitude aprendente/ filosófica radical. Quero dizer, todo início seguirá sempre inician- do o modo aprendente radical através do diálogo interrogante. O revelado é que a atitude aprendente radical – atitude filosó- fica – não será limitada a um ciclo do desenvolvimento humano e nem muito menos a um campo disciplinar específico disputando com outros campos disciplinares seu espaço vital. Neste sentido, a atitude filosófica é aqui compreendida como a disposição huma- na que consiste em querer conhecer para ser-mais. Um espanto! É também um espanto porque não há nenhum ser humano que possa ser excluído do movimento trans-formador projeta- do, o que também confirma a atitude filosófica como o ethos do aprender em todas as idades e em todos os momentos de um florescimento aprendente. A atitude filosófica compreendida como atitude aprendente radical constitui o ethos da ética da didática filosófica mínima que atravessa todos os planos e ciclos do florescimento humano sin- gular conjugado, portanto, próprio e apropriado. E sendo a atitu- de filosófica o modo de ser aprendente radical, ela sustenta a todo didática filosófica mínima 115 e qualquer aprendizagem possível, conectando-se com diferentes campos do conhecimento a partir de uma unidade plural distri- buída nas habilidades e competências do aprender a ouvir-ver- cheirar-degustar-tocar; aprender a falar, aprender a ler, aprender a escrever, aprender a aprender. Assim, com a didática filosófica mínima aprende-se tudo e se pode usar qualquer meio técnico e instrumental para a realização do saber-fazer aprender a ser em sentido polilógico. E porque a atitude filosófica é o ato aprendente radical, tudo o que se pode aprender se aprende pela atitude aprendente radi- cal. E se pode aprender tudo o que é aprendível: o mundo em sua totalidade visível e invisível em seus diferentes níveis de Rea- lidade e em suas diferentes formas de percepção. E são muitos os mundos, os seres do mundo e suas obras. São muitos os conhe- cimentos disponíveis e suas linguagens próprias e apropriadas, porque cada área do conhecimento hoje existente é o resultado de inumeráveis processos históricos e culturais, havendo sempre em cada caso uma diferença radical e um mundo constelado comum. Assim, não cabem limites predeterminados à aprendizagem humana e nem muito menos o desenvolvimento dos educandos seguirá nenhum modelo ideal porque está em jogo o aconteci- mento/florescimento de seres humanos singulares e únicos e não corpos escravos para serem manipulados por forças externas e alie- nantes do poder ser de cada ser em sua unicidade. Uma unidade que não é uma polarização e sim uma reunião dos antagonismos. Reunião que é tecida dialogicamente. Trata-se, assim, do meio dialógico interrogante como o “caminho” da aprendizagem de si. Portanto, tudo pode ser aprendido na didática filosófica mínima. Só o que não pode ser aprendido é o indesejável, porque não se pode aprender fora do mundo desejante da vida, apesar de se po- dante augusto galeffi 116 der replicar o indesejável do mundo da vida como algo inevitável. O que muda com o movimento acional da didática propos- ta não são as coisas já construídas e conquistadas pela humani- dade e sim o modo como se pode lidar com as coisas mesmas, diretamente e sem que seja necessária nenhuma autorização de supostos superiores externos e modelos ideais. E isto porque a autorização será sempre resultante de uma construção dialógica e comunitárias entre os aprendizes envolvidos e nunca um ato isolado de indivíduos especiais e intocáveis. Nesse sentido, com a didática filosófica mínima não se quer saber menos e sim saber propriamente de cada campo de conhe- cimento estudado de modo próprio e apropriado. Significa dizer que o sentido de se estudar algo importante do acervo cognitivo humano não é o seu domínio mnemônico e operativo nos estrei- tos limites do «certo» e do «errado», porque cabe compreender tudo o que se torna objeto intencional de uma investigação con- creta, vivida, a respeito de fenômenos importantes e vitais que cabe aprender comunitariamente. Assim, toda aprendizagem é modo em ato de construção do conhecimento, o que sempre re- quisita o fazer inventivo que se inventa ao ser feito e que ao ser feito inventa o modo de fazer. Isso porque não cabe mais educar para acumular conheci- mentos pela memória, na medida em que dispomos hoje de ex- cepcionais próteses de memória e quase tudo o que se conhece se encontra informado na web, sendo a informação disponível para todos. Neste sentido, não adianta aprender conteúdos abstratos das diversas disciplinas representantes das distintas e especializa- das áreas do conhecimento, e sim a operar esses mananciais de informação, pelo uso inteligente das próteses disponíveis no mer- cado telemático. Assim, o importante não é aprender conteúdos didática filosófica mínima 117 e sim aprender a ler criativamente os conteúdos de determinado campo do conhecimento, e isto não para confirmar a retenção mecânica de um conhecimento atravésde provas e sim para per- mitir compreender o campo do que se aprende de modo inteli- gente, inventivo e aberto ao imprevisível ato aprendente dialógi- co, polilógico, multilógico, interlógico, translógico. Passou o tempo da ilustração em que os ilustres tinham que saber tudo de memória e tinham que responder tudo de modo preciso sem titubear para garantir a permanência no campo dos ilustres ilustrados. Hoje tal lustre não serve para nada, pois im- porta saber investigar a informação para transformá-la em co- nhecimento. E isto se faz tendo-se aprendido a ler o mundo de maneira poemático-pedagógica. Quero dizer, se faz através de uma atitude poética que também é aprendente – daí o poemático-pe- dagógico: ato aprendente que ao aprender inventa o próprio modo de aprender. E se a didática filosófica mínima está aberta à totalidade do conhecimento em seus diferentes regimes de signos e sentidos, significa que o que se pode aprender se pode saber fazer propria- mente. O que também confere uma inevitável variação de tipos humanos aprendentes, e se pode também deixar ser o desejo cog- nitivo de cada um em seu devir apropriador, e acolher as escolhas dos diferentes e únicos seres humanos em formação. E o que dizer, então, do esforço que se deve realizar para alcançar a grandeza intelectual do legado cognitivo da humanida- de? Não se correrá o risco de se cair na inércia da espontaneidade natural humana e acabar produzindo uma formação capenga de leitura e operação do mundo e incapaz de fazer frente aos mais avançados operadores cognitivos complexos? Como seria, por exemplo, a formação de um profissional de qualquer área? Ele dante augusto galeffi 118 não teria que se submeter a provas escritas do seu saber para ser qualificado, segundo protocolos fechados? Mesmo para o âmbito da formação profissional estrita a di- dática filosófica mínima pode ser a atitude aprendente radical dian- te do que é preciso aprender para ser, por exemplo, médico, en- genheiro naval, juiz etc. Isto porque hoje o mundo do trabalho tornou-se cognitivo-operativo, sendo preciso aprender sempre o necessariamente criador para se chegar a exercer uma profis- são qualquer. Significa, então, que não há saída: ou se aprende a aprender os operadores pragmáticos de uma determinada pro- fissão ou não se poderá alcançar o seu exercício de modo pleno. E aqui não há meio de comparação entre seres humanos dis- tintos e todos ficam incluídos em seus modos de ser próprios e apropriados. Mas, como seria uma educação criadora em um mundo da competição e dominado pela mais-valia dos bens ma- teriais e imateriais disponíveis? Ela não seria uma espécie de an- tídoto contra o vírus letal da ignorância de si-outro-cosmo que impera no mundo insustentável vigente, hegemônico? Sem desatenção, uma didática filosófica mínima não visa a outro fim senão o de realizar uma ampla transformação huma- na na direção do acolhimento do cuidado triético incontornável entre todos os seres viventes. E por isso ela se desfaz de todo lixo cognitivo e de todo desamor afetivo, para dispor-se à afetividade aprendente inegociável. E ao desfazer-se do desnecessário, deixa ser o que quer aprender, aprender sempre por ele mesmo o que pode ser aprendido e partilhado. A partilha projeta o caminho dialógico como o meio comum para tudo o que se quer e se pode aprender. E cada um será um es- pecialista em seu campo de atuação desejante. Também para dizer que não se trata de anular toda atividade escolar e sim confirmar didática filosófica mínima 119 ser a didática filosófica mínima uma atividade aprendente radical. E põe radical nisso! E por isso ela é também poemático-pedagógica: é uma atividade criadora produtora de conhecimento próprio e apropriado, portanto, conhecimento singular compartilhado. Na didática filosófica mínima há também a compreensão de ações poemático-pedagógicas no fazer-aprender qualquer coisa que podem ser descritas como estações de ciclos aprendentes comuns ao desenvolvimento humano. Já havia concebido no livro/tese O ser-sendo da Filosofia três âmbitos poemático-pedagógicos que se pode associar à três idades: primeridade, secundidade e terce- ridade. Falei, então, de poiésis de primeridade, de secundidade e de terceridade referindo-me à compreensão de que toda apren- dizagem humana é circular e de que é em sua circularidade que a aprendizagem de primeira, segunda e terceira idade se realiza como estações de uma saga comum-pertencente em movimento transformativo. Pois cada ser humano ao iniciar sua saga cogni- tiva/existencial vai sempre buscar o que emociona, e procurará voltar ao início de sua emoção fundamental ao final de cada ciclo ou estação. Uma poética (poiésis) de secundidade, então, seria aquela em que o ciclo volta ao seu início, como as estações do ano e os ponteiros andantes dos relógios. Uma ilustração. Cada etapa da vida humana tem a sua pró- pria configuração. Infância, adolescência, maturidade e trans- formação entrópica são momentos comuns na vida de todos os seres vivos. Então, há que diferenciar os diversos momentos do processo formativo nos ciclos vitais de cada um em sua concretu- de. É, então, clarividente que o modo de florescimento humano segue uma dinâmica própria e apropriada, sendo cada caso neces- sariamente diferente e único. Assim, os limites entre a infância, a adolescência, a maturidade e o encolhimento vital não são nunca dante augusto galeffi 120 identificáveis exatamente, porque não há exatidão no transcurso da vida, apenas há aproximações. Portanto, observando e cuidan- do de cada caso singular será possível reconhecer a «mudança de pele» dos seres humanos: cada qual no seu tempo próprio e apro- priado. Será isto viável? Mas, de que modo operar um processo formativo tendo como método aprendente uma didática filosófica mínima sem perder de vista que o ser humano é aquele que pode se perder por negligência e descuidado do seu poder ser próprio e apropriado? A questão agora é pragmática e diz respeito à efetiva proprie- dade formativa da didática desenhada. Como fazer-aprender o aprendiz para florescer na plenitude vivente? É possível formar a todos para que realizem uma vida com sentido? Ou é mesmo inevitável tudo como tem-se mostrado até agora, apenas poucos convidados para a ceia dos deuses? O que esperar de uma huma- nidade que abdica do seu lugar na assembleia cósmica? E que lugar é esse, ser predador ou ser curador? Ora, o caminho aprendente que pode ser seguido é dialó- gico. O diálogo é o próprio caminho da formatividade humana curadora. É o método por excelência do filosofar como caminho investigativo, seja este caminho matemático, físico, químico, bio- lógico, sociológico, antropológico, geográfico, histórico, artístico etc. Porque se trata de um caminho comum a todos os humanos que podem ser propriamente no se tornarem curadores triéticos. Até mesmo observando a história da educação nas sociedades humanas ao longo do tempo pode-se identificar toda a tecnologia didática que foi sendo conquistada e passada adiante. Inclusive é possível ver com acuidade o descompasso da educação disciplinar vigente em relação às tarefas que se apresentam ao ser humano da idade cibernética, para que seja possível propagar a vida espiritual didática filosófica mínima 121 para além de todo mecanicismo e determinismo imperante. É uma questão de decisão, o que determina um corte, uma ruptura com o quadro ideológico disponível e hegemônico. O que está em questão é de fato a liberdade humana como condição para uma vida sábia: uma vida doada ao florescimento e fenecimento do vivente e suas metamorfoses inumeráveis. Pelo diálogo, que também é um poliálogo, tudo pode ser aprendido com sentido próprio e apropriado. Então, o método mínimo operado é o diálogo interrogante. Ora, aprende-se a pen- sar quando se chega a querer saber por encantamento do saber. O saber tem sabor, e assim sabe o que foi saboreado. Saborear é pensar o saboreado:apreciá-lo, retê-lo, deixá-lo ir. E o pensar não é uma exclusividade de nenhum campo disciplinar instituí- do. Assim, o desenho metodológico da didática filosófica mínima prefigura o âmbito da aprendizagem humana em todas as suas frentes e instâncias não sendo possível localizá-la em um campo disciplinar específico. Nesse sentido, ela é uma didática para todos e em todos os estágios e estações da vida. Qualquer um pode praticá-la sempre, em qualquer momento de sua vida, porque ela é a atitude apren- dente radical do pensar próprio e apropriado no limite de cada um. Assim, tudo se pode aprender quando faz sentido e o que está posto como regra do mercado profissional deve começar a mudar a partir do momento em que cada um aprenda a cuidar-se nas relações com os outros e com o mundo. É um sonho muito ideal o que se desenha como método do fazer-aprender o que se deseja como mais-vida compartilhada. É claro, é muito mais uma provocação interrogante do que uma crença em uma forma de identidade nova e proclamando por antecipação o caminho a seguir. Como já disse, a didática filosófica mínima que pode ser dante augusto galeffi 122 seguida não é a didática filosófica mínima, pois cada caso é único e irrepetível em sua floração fenomenal. E porque não pode ser seguida não significa que não possa ser praticada por qualquer um, em qualquer lugar, seja entre ami- gos, seja entre inimigos, seja em espaços de formação profissional, seja na ágora virtual/atual de toda comunicação em rede e de toda rede social. A prática visada, assim, é o movimento dialógico/ polilógico da construção social do conhecimento próprio e apro- priado. Deste modo, não significa deixar de aprender tudo o que as humanidades históricas já conquistaram e sim saber aprender a construir o conhecimento colaborativo, não sendo necessário que cada um saiba de tudo e sim que saiba reconhecer as conexões da rede e saiba como cada um tem a sua própria especialidade a partir de sua diferença radical. A diferença radical é o que define o corte acional da didáti- ca filosófica mínima. Nada há para ser “ensinado” e sim para ser “aprendido” dialogicamente. E para que aconteça o aprender, to- dos os meios “didáticos” (poéticos, técnicos) podem ser utilizados e experimentados, sendo que cada caso tem a sua singularidade radical, não cabendo nenhuma aprendizagem fechada, porque não é um treinamento de certas habilidades e sim uma ativida- de aprendente permanente. Claro que haverá sempre protocolos, mas não há modelos protocolares fechados, acéfalos, mecânicos. E porque a diferença é o elástico propulsor da aprendizagem, não cabe eleger nenhuma diferença como a diferente da diferença, porque não há hierarquias e procedimentos regulados e normati- zados a priori em um processo aprendente poemático-pedagógico. Seria um contrassenso se esta didática pudesse ser aplicada ao campo pedagógico como uma receita de bolo, como em geral se faz na educação instituída vigente. Seria um contrassenso modu- didática filosófica mínima 123 lar a aprendizagem de alguém a partir de cortes externos e mo- delos estáticos, porque a didática mínima quer justamente que o aprendiz aprenda a partir de seu próprio ser no mundo com outros. Assim, no desenho acional da didática mínima muitas são as entradas e as saídas, muitas são as estradas e as sendas e muitos são os mundos compartilhados, interculturais, transdialógicos. E porque tudo permanece no aberto, nunca há o encerramento do movimento aprendente e sim momentos de repouso e renovação. Mas, então, como se dá o movimento dialógico / polilógico aprendente fora do modelo de ensinança imperante? A questão fala do risco de abandonar a disciplinarização dos saberes pela posse de um método aprendente fora do controle da previsão e da repetição modelar. E por isso, só a concretização do método (caminho) da didática filosófica mínima poderá confirmar a sua propriedade formativa e criadora, o que não significa esperar re- conhecimento de tal possibilidade da parte dos que defendem a disciplinaridade como caminho normal da educação de todos, mesmo alcançando tão poucos. Ora, o ser humano precisa aprender a ouvir, a falar, a ler, a calcular e a escrever simultaneamente e assim continuar indefini- damente, para sempre. Quando se aprende ouve-se, fala-se, lê-se, calcula-se e escreve-se o que está sendo aprendido. Portanto, não se trata de propor uma inatividade geral e sim de fazer da ativi- dade aprendente uma ação criadora em ato. Assim, não se nega o processo de formação da pessoa humana que deve saber ouvir, falar, ler, calcular e escrever e sim o modo como se quer impor a aprendizagem de tais competências, pelo uso de uma modelagem homogeneizante, abstrata, dada a priori¸ como se algo pudesse ser dado a priori além das condições constitutivas da existência dante augusto galeffi 124 concreta e vital. Portanto, com a didática filosófica mínima tudo o que se pode aprender se aprende pelo fazer aprendente. Assim, o que não falta são atividades para alimentar a dinâmica aprendente que só se faz pela investigação radical de tudo o que pode ser conhecido em favor da transformatividade humana para o cuidado triético cosmológico. Não há mais a cena da aula em que um professor “passa” conteúdos fechados para serem assimilados sem a diges- tão do pensamento interrogante, porque cada ato aprendente será um momento investigativo radical. A própria ciência se vê contemplada com esta didática porque importa fazer aprender a construir conhecimentos e a aprofundar potencialidades cria- doras insuspeitadas. Tudo visando à sustentabilidade triética: o mundo para espíritos livres e cuidadosos. E por que não? O horizonte delineado se configura utópico: é um “não lu- gar”, um “lugar imaginário”, um virtual que se atualiza apenas como vivência imaginária? Sim, é um não lugar, no sentido de um deslocamento que não se fixa em um território configurado, porque são todos os lugares reunidos pela regência de um movi- mento criador transversal em devir. Significa, também, que não há lugares privilegiados para onde mirar o curso da navegação e que se tem a esperança de alcançar um dia como a “terra dos bem-aventurados”. A utopia sendo um não-lugar não é algo que se possa alcançar um dia e sim um lugar imaginário criado como aspiração do que pode se realizar plenamente. A utopia é um virtual que pode se realizar plenamente e para tanto não se repre- senta como sendo “isso” ou “aquilo”, mas projeta um saber que sabe que toda apresentação utópica é poética da alma criadora em querer ser-mais e ser plenamente. Utopia é poesia que desoculta o velado e provoca deslocamentos vitais de lugares entrevados. didática filosófica mínima 125 A didática filosófica mínima, além de utópica, é também he- terotópica: projeta-se na alteridade, no outro, no diferente. Ela é o lugar do outro, da diferença e do diálogo / poliálogo da diver- sidade unida pela diferença. O seu não-lugar é o seu deslocamen- to poético no florescimento de singularidades imprevisíveis. Pois imaginar que um só lugar é comum a todos é perder de vista que todo lugar é também um não-lugar porque todo lugar é sempre percebido por alguém como este ou aquele. Assim, não há ne- nhum lugar imaginário a ser alcançado por todos e sim o lugar que se faz ultrapassagem de toda representação monoforme e mo- nológica. Utópico e heterotópico é o diálogo/poliálogo interro- gante, quando não faz sentido algum predeterminar para o outro o lugar do seu desejo e de sua pulsão interrogante. E pelo diálogo/ poliálogo se aprende que o importante não é o lugar imaginário e/ou o lugar da alteridade e sim o não-lugar da relação conjuntiva em que não há disputa ideológica por lugares ideais e sim modos de ser-mais em que a diferença se reúne na comunhão de todos os não-lugares. E porque não há lugares privilegiados para onde ir, o que importa é seguir sendo para além de todo lugar já vivido, já consumado, já passado.Então, o desenho metodológico da didática filosófica mínima exprime os traços de uma revolução radical da vida humana que requisita uma atitude aprendente radical. Uma atitude que não aceita o princípio da exclusão e se guia pela dialógica inclusiva criadora e curadora dos seus próprios efeitos. E se a atitude apren- dente radical é o «caminho» da didática filosófica mínima tudo o que se pode aprender se aprende em relação às coisas mesmas em uma operação sempre mais compartilhada e conjugada coletiva- mente. Como, então, todos os conteúdos que fazem parte do acer- dante augusto galeffi 126 vo cognitivo da humanidade serão trabalhados em uma didática filosófica mínima? Ora, serão trabalhados de modo superlativo, porque toda atividade formativa é atividade aprendente e não acumuladora de informação não transformada em conhecimento apropriador-curador. Porque é preciso aprender a escutar, a ver, a falar, a ler e a escrever o mundo vivido e vivente em sua abran- gência comum-pertencente. Então, não se defende a negação da apreensão de conteúdos e sim o modo de operar os conhecimen- tos de maneira própria e apropriada, sem perder o sentido cola- borativo da construção do conhecimento. E porque não está em causa a negação do grande acervo ima- terial e material da humanidade importa aprender tudo o que nos rodeia como mundo-cosmo e nos conforma, mas nunca para reter na memória informações já armazenadas nas memórias vir- tuais disponíveis, é preciso estudar muito mais do que no regime disciplinar, com a diferença de que cada estudo é parte integrante de um projeto pessoal em construção dialógica e polilógica. En- tão, não se trata de oferecer “menos” em termos de conteúdo e sim de oferecer “mais” no sentido de sua apropriação inteligente e inventiva, porque é preciso aprender muitas coisas e sempre de modo desejante e lúdico, fascinante e apaixonado. E porque tan- tas pessoas não alcançam o encantamento do aprender? Será que não são capazes, ou os meios empregados para a aprendizagem são impróprios? Constato a impropriedade dos meios aprendentes aí dispo- níveis e lanço o desafio de uma mudança radical da educação humana para que seja possível sair da idade do ferro dominante em todo o mundo. E para esta saída é preciso acolher a revolução em curso que não será regida por nenhum centro hegemônico e por nenhuma mente exclusiva ou ideologia programática. Morin didática filosófica mínima 127 referindo-se à revolução em curso diz: A revolução não depende mais de um operador principal (o partido, o proletariado), de uma ação principal (a tomada de poder), de um núcleo social principal (os meios de pro- dução); ela necessita de uma multiplicidade de mudanças / transformações/revoluções simultaneamente autônomas e interdependentes, e em todos os domínios (incluindo o do pensamento) (MORIN, 2012, p. 51). A revolução em curso, portanto, é acêntrica e não é movida por nenhuma organização ideológica partidária e parcial, porque não depende da decisão de alguns privilegiados e sim da matu- ração espiritual da humanidade em suas variedades culturais. Trata-se muito mais de uma pressão gerada pelo ímpeto da vida desejante de mais-vida e mais cuidado triético. Uma pressão que clama por justiça e equidade, inclusão de tudo em tudo na gestão do projeto ontológico de cada um em tudo com todos. Para permitir uma mais evidente compreensão da didática filosófica mínima em sua ação aprendente radical, vou usar de al- gumas cenas imaginadas e aqui esboçadas. As cenas atendem aos diferentes momentos do florescimento humano, correspondendo ao processo da aprendizagem infantil e fundamental (poética/poi- ésis de primeridade), da aprendizagem média (poética/poiésis de secundidade) e da aprendizagem profissional continuada (poética/ poiésis de terceridade). dante augusto galeffi 128 Cena 1 – Poética/poiésis de primeridade • Como fazer-aprender crianças de zero a sete anos de idade? Em primeiro lugar nada será imposto, mas tudo será posto. O que é importante fazer-aprender de zero a sete anos? • Tudo é objeto de atenção para a criança em seu mundo pro- tegido pelos adultos. Tantas são as atividades aprendentes que podem deixar cada um ser em seu primeiro florescimento úni- co. • Sem programas para serem cumpridos, mas com programas para serem vividos. • Muita falação e escutação. Tudo é tempo livre e lúdico e o jogo não é realizado nos intervalos das atividades sérias, não haven- do separação entre recreio e atividade. • Não há “dever de casa”. Não há tempo para “deveres”, pois a educação infantil é integral do início ao fim. • A ação aprendente é contínua e a escola é o jardim da infância: a casa sem teto e sem paredes. • A escutação é a principal atividade dos mediadores (educado- res). Os exemplos são sempre oportunidades dialógicas. • Nada é feito sem sentido apropriador. • Tudo tem sentido quando há atenção espontânea. • Como fazer? • O como fazer é o fazer aprendente em seu ato mesmo de aprender. • O falar tem lugar privilegiado no jardim. É um jardim falante. Também é dançante e musical, cantante, encenante. • Todo fazer aprendente é experiência sempre nova e nunca re- petição. • Toda repetição é digestão da experiência. • Tudo é movimento de investigação, de descoberta e invenção. didática filosófica mínima 129 • Não há nada para corrigir e sim para deixar ser. • A alfabetização é vivencial e afetiva, e o prazer das primeiras letras nunca será interrompido pela obrigação e pela castração. • É tudo primeira idade e sua duração. • Arte, ciência, filosofia com crianças são atividades de encan- tamento e não de controle. Nunca serão “ensinadas”, serão sempre aprendidas. • O tempo é sempre o de cada um, não cabendo controles abs- tratos e sim acompanhamentos atitudinais, habituais, sempre no tempo de cada um. • A estimativa da primeridade de zero a sete anos é condizente com o processo de maturação do organismo humano, que aos sete anos alcança um salto de natureza no desenho evolutivo contido no código genético (DNA). • Mas também a poética de primeridade não é exclusiva da ida- de infantil. Em cada ato aprendente há sempre uma primeri- dade, uma secundidade e uma terceridade. • Do ponto de vista da formação do educador a poética de prime- ridade é sempre o portal do maravilhamento e da mais profunda alegria criadora: cada ser no mundo é o acontecimento único do florescimento criador inteligente e sensível simultaneamente. • E cada um será o que pode ser em seu desejo aprendente ra- dical. • Mas como despertar o desejo aprendente radical se nem se- quer se sabe reconhecer tal desejo? Cena 2 – Poética/poiésis de secundidade • Como fazer-aprender crianças-adolescentes sem perder de vis- ta o desejo aprendente? • Simplesmente não oferecendo aulas homogêneas e sim ativi- dades de investigação permanente, sem necessidade de provas dante augusto galeffi 130 e testes, mas com acompanhamentos sistemáticos de projetos investigativos produzidos e compartilhados. • O aprender a escrever, a falar, a escutar é um ato realizado em todos os temas vivenciados. • As competências e habilidades objetivadas para cada estação do caminho único de cada um são alcançadas em ações ope- rantes e não abstratas e genéricas. • O calcular e o projetar são atividades permanentes e transver- sais. • O pensar consequente é comum a todos. • Não há atividades isoladas, enclausuradas em disciplinas mo- nológicas. • Todos os saberes e fazeres aprendidos estão inter-relacionados com todos os campos cognitivos e seus conteúdos. • Como não há ciclos de aulas disciplinares, todos os temas são tratados interdisciplinarmente. • O acontecimento de alguma aula específica tem a intenção vi- vencial dialógica de banquete no aprofundamento de questões proeminentes. Não há avaliações isoladas, não faz sentido. • A avaliação é polilógica, polifônica, polissêmica, serve para es- timar o valor e não como instrumento de seleção, classificação eexclusão. As antigas disciplinas são agora campos inter-rela- cionados sem a perda de suas especificidades. • E cada aprendiz já vai definindo melhor o seu desejo de apro- fundamento, o seu campo de especialização. • Não faz sentido, assim, aprender tudo de tudo sem que este seja o desejo de alguém. • Mas faz sentido aprender a ler e a traduzir códigos e regimes de signos distintos. • Os especialistas serão formados de modo metacognitivo e didática filosófica mínima 131 atenderão às suas aptidões e escolhas deliberadas. • Ser especialista em algum campo determinado não obscurece a metacognição em seu âmbito conector da totalidade vivente em cada singularidade. • Ser especialista em qualquer atividade só caracteriza um saber- fazer próprio e apropriado condizente com o florescimento do projeto ontológico de cada um. • Muitas, também, podem ser as especialidades, pois qualquer pessoa pode saber-fazer com maestria várias atividades, sobre- tudo porque não se valoriza a competição e sim a competência apropriadora reconhecida, assim como se reconhece facilmen- te o talento de jogadores de futebol, e os “olheiros” sabem dizer quem leva jeito. • Assim também pode ser o reconhecimento das aptidões de cada um e suas habilidades e competências. • Pois, por exemplo, quem é competente em matemática não precisa provar em uma prova isolada que sabe matemática, pois já terá provado ao longo do seu percurso ontológico esta competência e habilidade. Cena 3 – Poética/poiésis de terceridade • Como fazer-aprender adolescentes/adultos sem que os seus projetos ontológicos sejam prejudicados por desatenção e des- cuidado? • A idade adulta é na verdade uma transição e não um término. Sair da adolescência para a idade adulta não encontra nenhu- ma métrica precisa para sua passagem. Afinal, adolescência é a idade inventada na modernidade e muito mais representa o estado de adoecimento ontológico em virtude do mundo que se descortina diante de cada um em seu florescimento onto- dante augusto galeffi 132 genético. • Na poiésis de terceridade o ser humano é protagonista de sua aventura vivente. Participará de equipes de trabalho e sua for- mação profissional se dará em atividade da profissão escolhida. • Todo estudo será escolha de cada um, que formará o seu cur- rículo segundo suas necessidades e interesses. • O percurso formativo de terceridade de cada educando se dará por co-orientação colegiada e sua avaliação se fará em seu pró- prio trabalho e produção do conhecimento. • Do ponto de vista acadêmico, a formação de terceridade ini- cia na graduação e culmina no doutorado e na continuidade formativa. • Na poética de terceridade a didática filosófica mínima é o ca- minho próprio e apropriado de cada um, suposto que cada um saiba amplamente pensar com propriedade apropriadora. • A apropriação aprendente de terceridade é metacognitiva es- tabelecendo relações da parte com o todo, do todo com as partes. • A metacognição é alcançada pelo florescimento do pensar apropriador, que a tudo reúne em um âmbito comum – auto- nomia e dependência como opostos complementares. • Na terceridade a aprendência segue o ímpeto da criação autô- noma/dependente singular. Cada um é único em sua poiésis de florescimento em ato. • Não se para nunca de aprender. E o que se aprende deixa o saber-fazer ser. • Uma poiésis de terceridade repete em si ciclos de primeridade e de secundidade. Assim como uma poiésis de primeridade e de secundidade tem sempre momentos de terceridade. • O que diferencia uma poiésis da outra é o momento existen- didática filosófica mínima 133 cial do florescimento de cada um, pois há sempre o tempo entre um momento e outro, e o tempo é a duração vital de cada ser no mundo com. As cenas apresentadas são um exercício de imaginação que não pretende senão esboçar caminhos da didática filosófica mí- nima no âmbito de sua atitude aprendente radical e cocriadora, sem a pretensão de fechar nada, mas com a intenção de provocar bastante para a possibilidade de outros modos de fazer florescer o ser humano. Um florescimento que é um aprender a pensar de modo próprio e apropriado, e em que a atitude filosófica é a ati- tude aprendente radical e não se confunde com a gloriosa história da filosofia ocidental, mas também não a ignora. Pelo contrá- rio, abre-se a frente de apropriação criadora em que o devir não responde mais à representação, porque se tornou acontecimento conjugado e partilhado pelos curadores coletivos. Enfatizo, então, a identidade e diferença no desenho meto- dológico da didática filosófica mínima. O conceito e as represen- tações sociais de Identidade comumente usuais correspondem a uma ideia vaga e abstrata que pressupõe a permanência de um si-mesmo relativo a cada ente em sua realidade fática. Assim, cada “coisa” pertencente ao mundo da vida e representado pela lingua- gem humana teria sua própria identidade “imutável”. Cada coisa é o que é, e sendo alguma coisa não pode não-ser. A máxima de Parmênides, “O Ser é, o não-Ser não é”, ense- jou a ideia de identidade no âmbito da filosofia grega e permeou a filosofia ocidental em todos os seus momentos. Pode-se dizer que a maior parte da filosofia ocidental é Filosofia da Identidade. Uma identidade metafísica que supõe a permanência de uma es- sência ideal como garantia da racionalidade discursiva e explicati- va inerente ao ser humano racional. Assim, o princípio de identi- dante augusto galeffi 134 dade certifica a universalidade do uso racional da alma humana, afirmando o primado da “coisa em si” por trás das aparências enganosas dos sentidos. Portanto, afirma um Ser perene acima de toda contingência e mutabilidade. No âmbito da linguagem ordinária, todos usam a expressão identidade em seus atos locucionários e elocucionários, e por- que é usual para todos, cada falante tem a sua própria ideia de identidade, que é na verdade uma ideia coletiva, um preconceito construído nas relações humanas concretas e históricas acerca do que é a essência da identidade na vida humana social. Sim, há um sentido concreto de identidade que está além dessa representação filosófica e metafísica do que seja identidade. Cada ser humano é uma identidade própria e a rigor, tudo o que pode ser divisado e nomeado por cada um de nós, tem sua identidade própria, pois tudo o que é distinto, único, se destaca e aparece para o nosso perceber de modo distinto e “solto de” das outras coisas que compõem a paisagem intencional. Há, assim, um sentido concreto de identidade que é onto- lógico e que remete aos processos cognitivos e linguísticos de identificação e distinção das coisas. Cada ser humano, portanto, é sempre um ser idêntico a si mesmo. Um ser que se percebe a partir de um nome próprio e que se reconhece nele. Ora, o sentido ontológico e concreto de identidade não re- mete ao conceito filosófico de identidade como uma ideia pura, e sim ao fato de cada ser humano ser distinto e único em rela- ção aos outros seres humanos e às demais “coisas” ao alcance do perceber humano, mesmo na hipótese da replicação genética tão presente e operante na cultura telemática contemporânea. E esse sentido concreto de identidade se apresenta em con- textos existenciais e culturais singulares, o que requer que se pen- didática filosófica mínima 135 se a identidade não como entidade fixa e determinista, mas como sendo a resultante de processos vitais intra, inter e transubjetivos complexos e dinâmicos, flutuantes e mutantes. A identidade, assim, é um valor prático construído nos processos de vida efetiva, constituindo um núcleo de referência distinto em cada ser humano singular. É, assim, um signo de reconhecimento ontológico, mas que está fundado na novidade radical de cada ser humano e suas circunstâncias. Deste modo, o sentido de identidade remete à radical diferença que cada ser humano é em seu projeto ontológico único. E se uma Filosofia da Identidade faz acreditar em umaes- sência imutável do ser dos entes, e leva isso às consequências de uma política da exclusão e da seleção aristocrática dos melhores e poucos contra os piores e muitos, ela é uma ideologia do poder hegemônico de alguns que não estão interessados em comparti- lhar a singularidade com todos e muitos. Assim, a ideia de unidade subjacente às filosofias da identida- de deixa de lado a heterogênese da unidade que se realiza em cada ser humano concreto, e concebe a unidade como homogeneidade absoluta e não como singularidade heterogenética absoluta. Portanto, toda identidade é signo de uma diferença, de uma variação única no âmbito do acontecimento vital de seres huma- nos. Isto não nega uma unidade de referência comum, mas nega a homogeneidade dos estados ontológicos concretos: afirma as superfícies do ser aparente em seu existir mundano. No âmbito ontológico tudo é explosão de singularidades. Tudo é Diferença. Mas toda diferença é também repetição, replicação, perpetuação do que nunca é o mesmo, apenas parece ser, porque tudo o que se encontra sendo é uma metamorfose ambulante. Tudo só é sen- do. Um modo de dizer que tudo é diferença replicante. Cada ser humano é uma identidade diferente. dante augusto galeffi 136 Estou aqui configurando o que se pode chamar de Filosofia da Diferença como pano de fundo da didática filosófica mínima em contraposição à Filosofia da Identidade. E, sinceramente, não se trata de apenas repetir a Filosofia da Diferença francesa, sobre- tudo aquela de Deleuze e Guattari, ou de Derrida, e sim de uma afirmação da Diferença própria e apropriada, o que não encontra referência no passado estático da memória histórica, mas se mo- dela a partir do mais arcaico, do mais aberto, do mais abrangente. Isso significa a assunção de uma política da Diferença que é uma ética e uma estética da diversidade equânime, sem cen- tros, gênios exclusivos, proprietários e mandatários. Uma autên- tica anarquia, ou mais propriamente, uma autarquia que é uma multidocracia ou multiautarquia: o governo de cada um por si mesmo. Claro, sempre em relação ao todo conjuntural em que cada um é em sua duração singular. Mas cada um tem que ser ele mesmo em sua transformatividade continuada. Uma Filosofia da Diferença é agora uma filosofia própria e apropriada: ela não diz mais do passado glorioso, mas monta nele para seguir adiante sua criação singular, que é uma identidade na diferença, ou uma identidade da diferença. Temos aqui o sentido forte da didática filosófica mínima. A abordagem filosófica que me interessa como problematiza- ção filosófica radical e contextual é uma Filosofia da Diferença. O que muda, então, com esta inversão? Muda o ponto de fuga que agora se liberta da citação e empreende seu caminho próprio e apropriado: transfigura o passado no presente emergente projetan- do-o em seu próprio vir a ser. Uma filosofia da diferença que passa pela inversão não está mais limitada a citar os grandes feitos da fi- losofia ocidental, mas se encontra implicada na criação de mundos contextualizados na singularidade de cada ser e suas circunstâncias. didática filosófica mínima 137 Se em nossa língua há expressões poéticas tão sublimes, faço uma homenagem ao poeta universal Manoel de Barros, nos fal- ta como comunidade linguística lusófona a confirmação de um pensar autopoiético falante da língua de si e que seja também polilógico, contemple muitos regimes de sentido e os reúna em diálogo sem que nenhum deixe de ser o que é e se submeta ao Outro absorvente e subjugador. Quero realizar uma inversão no contexto da aprendizagem do pensar e passo a afirmar a Diferença no lugar da Identidade e a Identidade da Diferença: o reconhecimento e acolhida das singularidades. Isto de certo modo abre o horizonte deste ques- tionamento para uma criação de pensamento unido à sensibili- dade radical do que se encontra na premência de ser para deixar de ser no mundo. Eis a essência humana: um ser transformante e impermanente. Pela Diferença se é chamados a olhar para si mesmo e redimensionar o devir finito. Pela Diferença a finitude é a ocasião da infinitude, pois cada gesto nascido da ânsia do ser-mais quer perdurar para sempre como o mesmo. Eis também aqui o fundo identitário do discurso da diferença que se faz na inversão, que é também uma inversão harmônica: segue também um cânone próprio, sua própria regra e lei. Assim, pensar a inversão filosófica no contexto da formação humana desejada é pensar a saída da Filosofia da Representação para a filosofia do devir criado-criador. De certo modo, esta inver- são catapulta quem a realiza para além da cidadela da filosofia oci- dental e quase obriga a ter que chamá-la com outros nomes. Nomes que sejam condizentes às experiências singulares dos que se põem a caminho de sua própria autocriação consciente da consciência e da inconsciência em estados de ser efêmeros e impermanentes, apesar de sempre singularmente unidos no mesmo um que é tudo! dante augusto galeffi 138 Portanto, assumir a inversão no contexto da didática filosó- fica mínima é decidir por um pensamento próprio, apropriado e apropriador aberto à infinita experiência do pensar como um acontecimento radicalmente novo. É preciso, então, procurar sa- ber como será possível criar uma filosofia própria e apropriada se não se começar por discernir o que é que no fundo importa saber para a realização de tal aspiração, o que nunca pode ser algo que se encontra em uma escola, em um determinado pensador, em uma corrente específica, em um livro. É algo muito mais radical e requer também a coragem para sair da caverna de Platão e encon- trar com ele no mundo das ideias e compreender que também ele foi um ser humano concreto e que se imortalizou no que deixou escrito. A inversão, desse modo, nos joga para o âmbito de uma ra- dical política da Diferença que é simultaneamente uma ética e uma estética da Diferença, uma afirmação das identidades em perpétua metamorfose pela afirmação de mais-vida. Bem, são algumas tensões que apresento na expectativa de potencializar a atualização de atitudes filosóficas radicalmente novas, únicas e singulares, e que estas não necessitem das analo- gias das comparações, mesmo sem deixar de lado a livre inspira- ção que realmente reúne o passado, o presente e o futuro em cada acontecimento em que se afirma a diferença de cada identidade mutante. Hoje sou poeta, amanhã posso tornar-me filósofo, de- pois de amanhã posso fazer-me místico. Qual é mesmo a minha identidade? A Inversão metafísica me jogou no turbilhão criador de uma filosofia polilógica, própria, apropriada e apropriadora, transdis- ciplinar, multirreferencial, crioula, aberta, flexível, despojada, anônima, coletiva. A questão é que a política da diferença aqui didática filosófica mínima 139 afirmada não quer saber de homogeneidades e de regulações e controles previsíveis. A vida do espírito é justamente o contrário do cálculo e da previsão, é vida em duração como acontecimen- to em fluxo. É vida que acaba, mas perpetuada na singularidade radical do agir criador anônimo, porém sempre engajado em seu ser mais vida sendo: novidade sempre radical – salto de natureza! 141 6 Em síntese: a didática filosófica mínima como caminho interrogante em devir ético e estético A didática filosófica mínima oportunizou tudo o que aqui foi escrito como uma interrogação pensante literofilosófica. Também uma aproximação necessária entre a poética escrita e o trabalho conceitual próprio e apropriado. Uma ruptura com a crença de uma diferença essencial entre a literatura e a filosofia escrita. Aliás, o gênero literofilosófico foi criado por Platão na escrita de seus diálogos. Nascia a literatura filosófica intencionando o filoso- far, o questionar, o investigar. Mas a literatura se afasta da filosofia quando esta se torna uma investigação contra toda ilusão fabula- dora e poética. Uma mentira, porque o próprio Platão usa conti- nuamentede estratégias cognitivas miméticas para levar adiante a experiência de uma investigação da “verdade” de algo examinado discursivamente. Penso que a era da filosofia ocidental tão gloriosa e também impotente diante da agonia humana dará lugar ao movimento de liberação do pensamento próprio e apropriado, e todo ser huma- dante augusto galeffi 142 no comum poderá aprender a pensar de maneira autônoma e in- ventiva, desde que encontre condições favoráveis de acolhimen- to e cuidado triético e possa tornar-se um curador em primeiro lugar de si mesmo, mas também do outro e do cosmo sempre novidadeiro. A insustentabilidade atual do sistema humano em confronto com a ecologia ambiental, social e mental produz a igualmente insustentável crise de valores fazendo-se premente reconfigurar todos os horizontes existenciais para que seja possível um flores- cimento humano trieticamente sustentável. Neste sentido, não se trata de uma escolha arbitrária e que pode ser adiada indefinida- mente, porque é uma emergência vital inadiável. Mudar o modo de vida triético é uma questão de vida ou morte para o sistema autopoiético planetário, e o ser humano, por suas propriedades inteligentes, é aquele a quem cabe agir e produzir de modo cura- dor e não depredador do seu mundo vital. Assim, faz-se urgente a transformação do sistema educacional instituído para que seja possível o florescimento da inteligência coletiva curadora de um modo de ser trieticamente sustentável. E para isto é preciso cuidar de todos sem exceção, lutando contra toda opressão geradora de descuidado e negligência ontológica. Então, a compreensão da falência do sistema educacional vigente me abriu o campo intuitivo da didática filosófica mínima aqui ex- posta e defendida. Acolho, então, o filosófico como atitude apren- dente radical e postulo um novo horizonte da trans-formação hu- mana em que a aprendizagem do pensar próprio e apropriado é a prioridade de toda educação. Inclusive, há algum tempo tenho procurado substituir o substantivo “educação” pelo verbo “edu- car”, destacando com isso a ação criadora de todo acontecimento trans-formativo liberador do poder ser mais próprio do sermundo. didática filosófica mínima 143 com. Um endereço virtual/atual que encontra guarida em cada existência concreta em seu clamor de mais-vida e mais cuidado abrangente, triético. Procurei com esta tese desconstruir toda a minha sedimenta- ção cognitiva, me pondo à prova em relação ao salto de natureza que se mostrou imperativo para a saída humana de sua obstru- ção ontológica crônica. Não me arrependo de ter posto em ação uma didática filosófica mínima como caminho aprendente radical para todos e em todas as estações do florescimento vital. Por ter perdido a acuidade visual não li o cartaz na entrada do caminho seguido que alertava: “Cuidado, não é permitido pensar de modo próprio e apropriado”. A pouca visão me protegeu de abdicar de mim mesmo na saga interrogante radical. Ao modo do poeta sigo cantando a saga que o coração faz ecoar em sua intrepidez dese- jante de vida sábia partilhada e curadora. Posso dizer o quanto foi divertido escrever esta tese e ao final fico com o sentimento de ter apenas arranhado a superfície da intuição que me abriu o horizonte da saga poemático-pedagógica que me fez inventar a didática filosófica mínima como uma mora- da poética para espíritos livres e curadores da insustentabilidade triética. Um beijo no devir sempre outro que ama o saber que cuida do sabido e do por saber para mais cuidar. A consideração em favor de uma didática filosófica mínima atende ao imperativo da vida sustentável e compreende com cla- reza meridiana o “fim” da educação pública disciplinar e a abertu- ra confusa e opaca, incerta e trêmula da educação transdisciplinar. Esta abertura distribui as forças isoladas em uma regência poli- fônica e polilógica, fazendo girar o eixo do florescimento huma- no para o âmbito do cuidado incondicional da vida inteligente e sensível. O transdisciplinar afirma o “fim” do disciplinar, no dante augusto galeffi 144 sentido de um salto de natureza em relação aos limites da racio- nalidade moderna monológica ainda hegemônica. Então, a trans- disciplinaridade pertence ao âmbito da complexidade e se afasta da disciplinaridade realizando um efetivo “salto de natureza” e não apenas de grau. Observando mais atentamente a disciplinaridade tem suas gradações, que vão da “multidisciplinaridade” à “interdisciplina- ridade” passando pela “pluridisciplinaridade”. Trata-se de uma es- cala que apresenta graus distintos de complexidade, mas que não apresenta nenhum “salto de natureza”. A transdisciplinaridade é um salto de natureza em relação ao paradigma monológico mo- derno, porque ultrapassa largamente o horizonte epistemológico em que predomina uma objetividade não examinada, ingênua e imperial, introduzindo os postulados basilares de “diferente níveis de Realidade e de percepção”, da “lógica do terceiro incluído” e da “complexidade de tudo”. Este salto reintroduz a subjetividade no interior do conhecimento da natureza, estabelecendo a dialo- gia como caminho metodológico para a reunificação de todos os saberes dispersos pelo processo de fragmentação da racionalidade monológica. Então, o horizonte transdisciplinar aqui destacado não diz respeito ao modismo epistemológico “pós-moderno” e sim à ur- gência de se construir caminhos do florescimento humano que realizem amplamente o salto de natureza que projeta o ser hu- mano para o seu mais radical sentido: tornar-se curador triéti- co na saga poemático-pedagógica infinita do espírito doador de sabedoria polilógica. Portanto, faz-se urgente conceber e realizar uma educação além da disciplinaridade, sobretudo porque ficou revelada a superação do modo de ser predador por elevação da consciência da consciência e da inconsciência do ente-espécie hu- didática filosófica mínima 145 manidade. Uma humanidade que aspira pelo ser curador inven- tor de mundos poeticamente habitáveis, porque o dom do viver em abundância é nutrido pelo seio farto da mãe e pelo canto do pai encantado pelo esplendor do devir criador. Mas para isto é preciso educar o ser humano para que aprenda a ser comum-per- tencente e comum-responsável em cada instante e ato de sua vida finita. E sem medo do fim, o que se faz presente é a coragem de deixar ser a plenitude vivente, favorecendo a transformação radical do indivíduo, da sociedade, da espécie e da humanidade. Concordando com Morin (2012), a humanidade é o novo termo no processo de desenvolvimento da natureza própria do homo. Assim, este desenvolvimento se mostra polilógico, tetralógico, compreendendo o âmbito da complexidade existencial em que indivíduo, sociedade, espécie e humanidade formam o campo de todo sentido conjuntural. Pois tudo é resultante de interações e relações de campos de força em movimento e nada há para ser desperdiçado, mesmo os corpos mortos têm o seu lugar na trans- formatividade criadora. O caminho percorrido é ético e estético como encontro do ethos com o pathos em uma dança entrelaçada de subidas e desci- das em giros concêntricos e discêntricos, formando deslocamen- tos espiralados e flamejantes. E o riso corre solto e a gargalhada protege contra a suposta sapiência de algum ego transcendental impessoal, porque o saber nunca é pessoal apesar de poder ser próprio e apropriado. Uma repetição que serve como ritornello poético-musical. Só uma questão de estilo, de corte, de dobra. O mais é silêncio e escuta do “sem-fundamento”: tudo é um! Referências COMÉNIO, João Amós. Didactica Magna. Tratado da Arte Universal de ensinar tudo a todos. 2.ed. Lisboa: Fundação Ca- louste Gulbenkian, 1996. DELORS, Jaques (org.). Educação. Um tesouro a descobrir. Relatório para a UNESCO da Comissão Internacional sobre Educação para o século XXI. 9.ed. São Paulo: Cortez; Brasília: MEC-UNESCO, 2004. DICIONÁRIO HOUAISS DA LÍNGUA PORTUGUESA. Rio de Janeiro: Objetiva,2001. GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método. Traços funda- mentais de uma hermenêutica filosófica. 2.ed. Petrópolis: Vozes, 1998. GALEFFI, Dante Augusto. O ser-sendo da filosofia. Uma compreensão poemático-pedagógica para o fazer-aprender filo- sofia. Salvador: EDUFBA, 2001. HEIDEGGER, Martin. Ser e tempo. 4.ed. Petrópolis: Vozes, 2009. HOUAISS, Antonio. Dicionário eletrônico da Língua Portu- guesa. São Paulo: Objetiva, 2004. dante augusto galeffi 148 HUIZINGA, Johan. Homo Ludens. 4.ed. São Paulo: Perspec- tiva, 1996. HUSSERL, Edmund. A crise das ciências europeias e a feno- menologia transcendental. 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Golden Plaza, s/702 Parque Bela Vista – Brotas – Salvador-Bahia CEP 41.275-000 – Telefax: (0xx)71-3452-0210 E-mail: quarteto.livros@compos.com.br www.editoraquarteto.com.br DIDÁTICA FILOSÓFICA MÍNIMA Ética do fazer-aprender a pensar de modo próprio e apropriado como educar transdisciplinar D ID Á T IC A F IL O SÓ FI C A M ÍN IM A D an te A ug us to G al ef fi A tese que examinamos, hoje, 23 de novembro de 2015, é fruto da maturidade docente das atividades desenvolvidas em 18 anos, na nossa querida Faced, a Faculdade de Educação da Ufba. Justifica que considera oportuno realizar um esforço comedido para expor o seu posicionamento diante do ensino de filosofia na educação básica nacional. Se a educação é geralmente o capítulo final na vida da maioria dos filósofos, no professor Dante a compreensão com o fenômeno pedagógico é uma preocupação inicial no seu percurso filosófico. O professor Dante trata da Didática como docente que é de Didática e Práxis Pedagógica em Filosofia I e II. Prossegue na sua reflexão filosófica, no seu pensar fenome- nológico. Na compreensão da tese, nas suas derivações conceituais e metodológicas, concebe também o mínimo como o inevitável, como condição do pensar. A didática filosófica mínima não é uma filosofia de escola, mas sim filosofia como diálogo intercultural em ato. Ao ler toda essa digressão filosófica, na cogita- ção do que se percebe e é percebido, como será para o aluno a percepção da Didática Filosófica Mínima? O texto deixa evidente que se trata de uma utopia, sobretudo os últimos capítulos. Não há mais o professor e sim o dialogante mediador, co-construtor do conhecimento e não o “repetidor”. É toda uma filosofia que Dante prevê. Em face de uma construção tão valiosa, acho que deveríamos fazer um projeto experimental com essas ideias para enriquecer o que foi formulado. Prof. Dr. Edivaldo Boaventura (Texto extraído e adaptado do Parecer escrito e lido por ocasião da banca de defesa da tese defendida pelo Prof. Dante Galeffi como requisi- to para a progressão à classe de Professor Titular da UFBA) Dante Augusto Galeffi Professor Titular da Universidade Federal da Bahia (Faculdade de Educação, UFBA), Doutor em Educação (Filosofia da Educação, UFBA, 1999), Mestre em Arquitetura e Urbanismo (Teoria, História e Crítica do Restauro, UFBA, 1994), Estudos de Pós-Graduação, Università degli Studi di Roma, Corso di Specializazione per lo Studio ed il Restauro dei Monumenti, 1980-1982, 1989), Graduado em Arquitetura e Urbanismo, UFBA, 1979); Professor perma- nente do Doutorado Multi-institucional e Multidisciplinar em Difusão do Conhecimento (DMMDC-UFBA/UNEB/IFBA/UEFS/LNCC/ SENAI CIMATEC), Coordenador da Linha de Pesquisa 1 ― Cognição, Linguagem e Constru- ção do Conhecimento/ DMMDC, líder do Grupo de Pesquisa "Epistemologia do Educar e Práticas Pedagógicas", pesquisador e escritor de temas de Filosofia da Educação, Aprendizagem Filosófica própria e apropriada, Formação do Educador Transdisciplinar, Estética, Ética, Hermenêutica, Fenomenologia, Transdiscipli- naridade, Espiritualidade, Difusão do Conheci- mento, Teoriação Polilógica e Teoria da Complexidade. dgaleffi@uol.com.br | galeffid@gmail.com http://lattes.cnpq.br/2133155712300731 DIDÁTICA FILOSÓFICA MÍNIMA Dante Augusto Galeffi Eis um ponto capital da didática filosófica mínima, não se trata de fornecer ao aprendiz tudo o que já foi dito e feito em relação ao mundo das "teorias de mundos", e sim o de fazer com que aprenda pela dialógica e polilógica a manter-se atento às coisas mesmas, atenção ao seu estado de ser-com, a partir de sua singularidade radical. O mínimo quer justamente ir direto ao ponto de decisão para o salto de natureza necessário para se poder falar e realizar o filosofar em sua propriedade dialógica radical, em que não faz sentido polarizar, hierarquizar, impor pensamentos que devem ser imitados pelos aprendentes, e sim deixar vir à superfície o pensar próprio e apropriado de cada um. 978.85.8005.125.4