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ATENÇÃO INTEGRAL À SAÚDE DO TRABALHADOR UNIASSELVI-PÓS Autoria: Luciane Eloisa Brandt Benazzi Indaial - 2020 1ª Edição CENTRO UNIVERSITÁRIO LEONARDO DA VINCI Rodovia BR 470, Km 71, no 1.040, Bairro Benedito Cx. P. 191 - 89.130-000 – INDAIAL/SC Fone Fax: (47) 3281-9000/3281-9090 Reitor: Prof. Hermínio Kloch Diretor UNIASSELVI-PÓS: Prof. Carlos Fabiano Fistarol Equipe Multidisciplinar da Pós-Graduação EAD: Carlos Fabiano Fistarol Ilana Gunilda Gerber Cavichioli Jóice Gadotti Consatti Norberto Siegel Julia dos Santos Ariana Monique Dalri Marcelo Bucci Revisão Gramatical: Equipe Produção de Materiais Diagramação e Capa: Centro Universitário Leonardo da Vinci – UNIASSELVI Copyright © UNIASSELVI 2020 Ficha catalográfica elaborada na fonte pela Biblioteca Dante Alighieri UNIASSELVI – Indaial. Impresso por: B456a Benazzi, Luciane Eloisa Brandt Atenção integral à saúde do trabalhador. / Luciane Eloisa Brandt Benazzi. – Indaial: UNIASSELVI, 2020. 220 p.; il. ISBN 978-65-5646-152-6 ISBN Digital 978-65-5646-153-3 1. Saúde e trabalho. - Brasil. Centro Universitário Leonardo Da Vinci. CDD 613.62 Sumário APRESENTAÇÃO ............................................................................5 CAPÍTULO 1 Relação entre Trabalho, Saúde e Adoecimento .......................7 CAPÍTULO 2 A Saúde do Trabalhador no contexto do Sistema Único de Saúde ........................................................................................77 CAPÍTULO 3 Assistência À Saúde do Trabalhador .....................................151 APRESENTAÇÃO Prezado pós-graduando! Você iniciará a disciplina Atenção Integral à Saúde do Trabalhador e este material didático, o qual foi elaborado com muita dedicação, aborda assuntos pertinentes à temática Saúde do Trabalhador, considerando a transversalidade entre saúde e trabalho como um dos determinantes do processo saúde-doença e das condições de vida. Cabe ressaltar que o trabalho, além de ser fonte de renda, ocupa papel primordial na vida do ser humano, e a saúde do trabalhador, enquanto campo de conhecimento, está voltada a analisar, avaliar e interceder na imbricada relação entre a saúde e o mundo do trabalho. No Brasil, a Saúde do Trabalhador constitui um campo da Saúde Coletiva e da Saúde Pública e, portanto, é interdisciplinar e multiprofissional. Nesta perspectiva, a atenção integral à saúde dos trabalhadores, de forma conceitual, viabiliza ações de promoção, proteção, vigilância da saúde, assistência e reabilitação nos mais distintos níveis de atenção e gestão no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS), em articulação intra e intersetorial (MATTOS et al., 2019, p. 3). Assim, a disciplina tem como objetivo principal qualificar diferentes profissionais para atuar com a temática Saúde do Trabalhador, a fim de promover a atenção integral aos agravos e problemas de saúde relacionados ao trabalho, colocando você em contato com aspectos históricos e teóricos, com as políticas públicas de saúde do trabalhador e com a discussão sobre os aspectos mais relevantes relacionados à saúde desta população. Os conteúdos apresentados visam instrumentalizar você, profissional de saúde, a ter um olhar mais crítico, refinado e reflexivo sobre as múltiplas dimensões da Saúde do Trabalhador no Brasil, contribuindo para a melhoria da qualidade de vida do trabalhador, garantindo, desta forma, o seu direito à saúde. O processo de construção deste livro está desenhado em três capítulos, a saber: o Capítulo 1, denominado Relação entre Trabalho, Saúde e Adoecimento, de caráter mais geral, apresenta o percurso histórico e conceitual da área da saúde do trabalhador necessário para a compreensão da relação entre trabalho e saúde. Assim, está formado por três tópicos: Aspectos históricos e conceituais sobre trabalho e saúde do trabalhador; Principais agravos à saúde do trabalhador no Brasil; e Atenção à saúde mental do trabalhador. O conteúdo do Capítulo 2 se concentra nos principais componentes das políticas públicas de saúde do trabalhador e sua relação com o Sistema Único de Saúde (SUS), tendo sido denominado de “A Saúde do Trabalhador no contexto do Sistema Único de Saúde”, composto por três tópicos: Políticas Públicas em Saúde do Trabalhador; RENAST E CEREST e Saúde dos trabalhadores da área da saúde. Já o Capítulo 3, designado “Assistência à Saúde do Trabalhador”, é dividido em três tópicos: Vigilância em saúde do trabalhador; Saúde do trabalhador na Atenção Básica; e Promoção da Saúde e Qualidade de vida: interfaces com a Saúde do Trabalhador. Como se pode observar, os conteúdos são amplos, bastante teóricos e o material foi elaborado de forma que possibilite um estudo mais dinâmico e prazeroso, utilizando referencial teórico diversificado e atualizado. Faz-se necessário esclarecer que será utilizada sempre a noção de trabalhadores contemplando sua dimensão de gênero, como trabalha dores e trabalhadoras. No decorrer da disciplina, você será convidado a assistir e analisar filmes e documentários, acessar sites, bem como ler artigos científicos pertinentes e complementares aos temas desenvolvidos. É de suma importância que você explore sua rotina de estudo, atendendo às demandas da disciplina, o que inclui a participação nos fóruns e atividades de ensino disponibilizadas ao final de cada tópico. Esperamos que os conteúdos aqui tratados sejam úteis, que você incorpore no seu fazer diário todo este aprendizado e que seu estudo seja bastante produtivo. Bons estudos e vá em frente! Professora Luciane Eloisa Brandt Benazzi. CAPÍTULO 1 RELAÇÃO ENTRE TRABALHO, SAÚDE E ADOECIMENTO A partir da perspectiva do saber-fazer, neste capítulo você terá os seguintes objetivos de aprendizagem: proporcionar uma visão global e abrangente sobre o mundo do trabalho, oferecendo elementos conceituais acerca da noção de trabalho no contexto contemporâneo e as implicações do processo de trabalho sobre a saúde física e mental do trabalhador, a fi m de estimular um olhar crítico e refl exivo, possibilitando o reconhecimento da centralidade do trabalho na vida do ser humano e sua relação com a saúde e o adoecimento; estabelecer associação entre processo de trabalho, ambiente laboral e a saúde dos trabalhadores; oportunizar conhecimentos abrangentes relacionados ao mundo do trabalho, oferecendo elementos conceituais acerca da noção de trabalho no contexto contemporâneo e as implicações para as intervenções relacionadas à saúde; conhecer a evolução histórica e conceitual da medicina do trabalho, saúde ocupacional e saúde do trabalhador; compreender a estruturação do campo da saúde do trabalhador no Brasil; identifi car os principais agravos relacionados à saúde do trabalhador e suas relações com o processo saúde-doença; reconhecer os principais agravos à saúde mental que acometem de modo mais frequente a população trabalhadora e seus fatores desencadeantes, objetivando auxiliar os profi ssionais da área da saúde no combate ao fenômeno do crescimento dos transtornos mentais. 8 Atenção InteGral À Saúde do Trabalhador 9 RELAÇÃO ENTRE TRABALHO, SAÚDE E ADOECIMENTO Capítulo 1 1 CONTEXTUALIZAÇÃO Os temas relacionados a este capítulo serão apresentados em três tópicos, contemplando os aspectos históricos e conceituais sobre trabalho e saúde do trabalhador, em seguida, sobre os principais agravos à saúde do trabalhador no Brasil e, na sequência, serão tecidas considerações sobre a atenção à saúde mental do trabalhador. Desta forma, é importante relembrarmos que o trabalho tem papel preponderante na vida humana, se tornando cada vez mais central, sendo que esta centralidade, por vezes, pode trazer consequências paradoxais para a integridade física, social e psíquica do trabalhador, se constituindo como eminente determinante no processo saúde-doença. Além disso, a maneira como desenvolvemosas atividades laborais, o modo como o trabalho é realizado, seja ele qual for, é denominado de processo de trabalho. O trabalho é essencial para a sobrevivência, além de ser fator de inclusão social e reconhecimento. Possui duplo sentido, ou seja, proporciona satisfação, prazer, contentamento, estruturando o processo de identidade das pessoas, contribuindo para o desenvolvimento da sociedade, porém pode ser fonte inesgotável de adoecimento, produzindo enfermidades que comprometem a saúde do trabalhador. Assim, o nexo entre trabalho, saúde e adoecimento é histórico, evidenciado desde Hipócrates (400 a.C.), considerado pai da medicina, passando por Ramazzini (1700), considerado precursor da medicina do trabalho, por muitos estudiosos, até chegar aos dias atuais com Mendes, Dias, Minayo-Gomez e Thedim-Costa, Vasconcellos, dentre outros estudiosos. O mundo do trabalho, nas últimas décadas, sofreu inúmeras transformações, avanços e alguns retrocessos na conquista de direitos sociais e trabalhistas, tornando-se complexo, multifacetado e dinâmico. Sob esse prisma, novas formas de ver e de fazer o trabalho foram se moldando, se confi gurando à realidade e se adaptando às exigências da modernidade. Já o campo da Saúde do Trabalhador, tema central da disciplina, é interdisciplinar, pois reúne estudos e práticas da saúde pública, dos setores sindicais e acadêmicos visando compreender os determinantes sociais do processo saúde-doença, os quais estão relacionados ao trabalho, bem como é interinstitucional por ser construído por atores de lugares sociais diversos e congruentes a objetivos comuns. 10 Atenção InteGral À Saúde do Trabalhador Portanto, falar em saúde do trabalhador e atenção integral a sua saúde implica se envolver na saúde pública, na prática médica e na de outras profi ssões da área da saúde e na saúde coletiva, abrangendo temas amplos e multidimensionais como trabalho, trabalhador, ambiente, tecnologia, saúde, doença, processo saúde-doença, dentre outros. Não se pode deixar de reconhecer o caráter psicossocial do trabalho, pois é parte integrante da estrutura psíquica do homem por ser algo importante na vida, podendo ser uma fonte de saúde ou de doença, dependendo de como ocorre o processo de interação entre o trabalhador e o trabalho. Assim, cabe aos profi ssionais que atuam no campo da saúde do trabalhador conhecer as conexões entre os processos de trabalho, saúde e adoecimento, dentro da perspectiva de múltiplos olhares. Ao longo deste capítulo, trataremos da dimensão trabalho, importante no processo saúde-doença, procurando aproximá-lo das principais questões do campo da saúde do trabalhador, apresentando conceitos e características marcantes do mundo do trabalho, bem como serão abordados os principais agravos físicos e mentais mais comumente encontrados nos trabalhadores brasileiros. Dessa forma, este capítulo oferece a você elementos conceituais e teóricos que podem auxiliar o seu entendimento sobre essa temática tão heterogênea que é a saúde do trabalhador. Após essa breve contextualização, iniciaremos abordando o trabalho e a saúde do trabalhador considerando os aspectos históricos e conceituais. Deste modo, esperamos que você aproveite bem os conteúdos apresentados e participe das atividades propostas. 2 ASPECTOS HISTÓRICOS E CONCEITUAIS SOBRE TRABALHO E SAÚDE DO TRABALHADOR Inicialmente, se faz necessário esclarecer que não se pretende esgotar temas tão complexos como são os aspectos históricos e conceituais, tampouco trazer informações exaustivas sobre a relação trabalho e saúde humana. Nosso intuito é apresentar algumas considerações relevantes, objetivando a pluralização do seu olhar para que você identifi que as linhas de força que conformaram o campo das relações trabalho e saúde no passado, refl etindo, assim, sobre a 11 RELAÇÃO ENTRE TRABALHO, SAÚDE E ADOECIMENTO Capítulo 1 estrutura produtiva e seus efeitos sobre os saberes e as práticas na saúde do trabalhador. Para isso, serão referenciados alguns conceitos, bem como apresentada parte da história da instauração do campo da relação saúde e trabalho, com exposição sucinta das mudanças no mundo do trabalho para situar a Saúde do trabalhador no cenário atual. Desta forma, como primeira aproximação com o tema, convidamos você a refl etir sobre: • O que você entende por trabalho? • Qual a importância que o trabalho tem na sua vida? Agora que você já refl etiu, é importante revisitar o mundo do trabalho para que se possa compreender o processo de reestruturação produtiva que ocorreu ao longo dos últimos séculos, o qual gerou transformações signifi cativas na forma de trabalhar e de viver. 2.1 O MUNDO DO TRABALHO Vamos viajar no tempo para entender um pouco sobre o mundo do trabalho e sua ressignifi cação? Primeiramente, é oportuno destacar que a palavra “trabalho” tem sua origem etimológica no latim tripalium (tri = três e palium = madeira ou pau), que inicialmente era um instrumento utilizado na lavoura para a cultura de cereais e que mais tarde passou a ser um instrumento de tortura (DUTRA-THOMÉ; KOLLER, 2014), conforme se pode visualizar na fi gura a seguir, tendo como signifi cado principal castigo, sofrimento, esforço para alcançar ou conseguir algo, de acordo com diversos autores. 12 Atenção InteGral À Saúde do Trabalhador FIGURA 1 – TRIPALIUM FONTE: <https://pt.slideshare.net/dionatanmoura/chega- de-trabalhar>. Acesso em: 2 fev. 2020. Contudo, a palavra trabalho nem sempre foi designada como algo terrível ou como martírio, haja vista que em japonês, hataraku, signifi ca “trabalhar e dar conforto ao próximo”, conforme comprova a história. Portanto, o termo “trabalho” varia de acordo com o contexto cultural a que o ser humano está inserido, apresentando signifi cados distintos. É oportuno frisar que mesmo antes de ser associado à tortura, trabalhar signifi cava perder a liberdade, pois para os gregos, o trabalho manual e físico era desempenhado pelos escravos, sendo considerado humilhante. Em contrapartida, consideravam o trabalho intelectual digno dos seres livres e racionais (ROSSATO, 2001). Portanto, é lícito supor que o trabalho é tão antigo quanto o homem, uma vez que para o homem primitivo, o trabalho era apenas para a sua sobrevivência. A expressão bíblica “ganharás o pão com o suor do teu rosto” nos remete a uma compreensão do trabalho como sofrimento, esforço, expiação e castigo, corroborando com o signifi cado de tripalium e reiterando que o trabalho é coexistente ao homem. Na Idade Média, São Tomás de Aquino afi rma que tanto o trabalho físico como o intelectual se equivalem, embora ainda nessa época predomine a visão grega. E é na Renascença que o trabalho se torna prolongamento do homem, pois é por meio dele que o homem se torna criador, sendo que a satisfação vem do trabalho, o qual tem valor em si. Entretanto, com a Reforma Protestante, o trabalho passa por profunda mudança, uma vez que é visto como caminho para a salvação e a profi ssão vista como uma vocação (ROSSATO, 2001). A partir do século XVIII, o trabalho é visto como transformador da realidade e, para Marx, a essência do homem está no trabalho, pois é por meio dele que o homem transforma a si e a natureza. Segundo Dias (1994), coube a Marx 13 RELAÇÃO ENTRE TRABALHO, SAÚDE E ADOECIMENTO Capítulo 1 revolucionar a compreensão do papel do trabalho na vida do homem, sob a égide do capitalismo. Mas é com a Revolução Industrial, devido à expansão da industrialização, provocando mudanças sociais, em especial com a migração da zona rural para os centros de produção, que o mundo do trabalho se transverte drasticamente, enfatizando o trabalho e não o sujeito que realizava o trabalho (ROSSATO, 2001; DEJOUR, 1987). Convém destacar que, nesta época, as instalações das fábricas eram precárias e improvisadas, com ventilação e iluminação inadequadas, sem as mínimas condiçõesde higiene, pois não havia preocupação com a saúde e segurança do trabalhador. Ademais, a mão de obra era explorada, inclusive crianças eram utilizadas como trabalhadores dessas fábricas, devido ao valor salarial ser mais baixo, por terem agilidade e baixa estatura, facilitando a sua inserção para a limpeza das chaminés. A organização das primeiras fábricas proporcionou uma revolução social e econômica, bem como os primeiros acidentes de trabalho surgiram devido às precárias condições de trabalho e, conforme Dutra-Thomé e Koller (2014), o trabalho se personifi cou na fi gura do trabalhador. Para relaxar, que tal uma sessão de cinema? Não deixe de assistir ao fi lme Tempos Modernos, de Charles Chaplin. Disponível em: https://www.youtube.com/ watch?v=ieJ1_5y7fT8. FONTE: <https://fi lmow.com/tempos-modernos-t3597/>. Acesso em: 7 fev. 2020. 14 Atenção InteGral À Saúde do Trabalhador A virada ocorre quando o indivíduo tem a percepção de que a subsistência está embasada no trabalho e é graças a ele que pode satisfazer as suas necessidades materiais, ter uma vida mais digna, criar uma identidade, pertencer a um grupo/sociedade, bem como ter um propósito de vida e se realizar de forma profi ssional. O trabalho se tornou complexo no capitalismo contemporâneo, visto que existe uma dupla dimensão no processo de trabalho, que, segundo Antunes et al. (2009, p. 231), “ao mesmo tempo cria e subordina, emancipa e aliena, humaniza e degrada, oferece autonomia, mas gera sujeição, libera e escraviza”. O homo laborans, traçado por Arendt, sofreu mutação, ou seja, a sociedade do século XXI não é mais uma sociedade de obediência; o sujeito de obediência se transformou em sujeito de desempenho devido à terceirização da economia e o trabalhador se tornou o prisioneiro e o vigia, a vítima e o agressor (BYUNG- CHUL, 2015). O contexto laboral atual se encontra em ebulição, se caracteriza pelas tecnologias de ponta, pela inserção do trabalhador na era do conhecimento, requerendo habilidades e competência para lidar com um mundo complexo e instável. Ademais, os avanços tecnológicos, como a automatização, a robótica e a inteligência artifi cial, por exemplo, geram novos postos de trabalho, mas também extinguem alguns, bem como exigem a readaptação profi ssional. Dessa forma, do seu sentido originário, ou seja, de sofrimento e tormento, o trabalho evoluiu, mas ainda temos questões pendentes, uma dimensão de limitação, pressão e constrangimento que perdura por meio da noção de esforço, pois ele é realizado para os outros, com os outros, subordinado a um objetivo coletivo, sendo objeto de enfrentamentos e de confl itos. Neste momento, fazemos a você um convite para compreender o mundo do trabalho contemporâneo: assista ao documentário The True Cost (Direção Andrew Morgan) Parte 1 disponível em: https:// www.dailymotion.com/video/x3aztjb e Parte 2 disponível em: https:// www.dailymotion.com/video/x3aztjc. 15 RELAÇÃO ENTRE TRABALHO, SAÚDE E ADOECIMENTO Capítulo 1 Além da importância coletiva, o trabalho é uma atividade empreendida socialmente pelos sujeitos, é um aspecto relevante para o desenvolvimento humano, com signifi cado que perpassa distintos contextos históricos, econômicos e sociais e diferentes linhas teóricas. O trabalho, todavia, pode ser perigoso, insalubre, assim como pode ser uma fonte de exclusão para aquele que não o consegue. Mundialmente, tem-se altos índices de desemprego, milhares de trabalhadores informais e inúmeras pessoas em escravidão moderna. De acordo com a Organização Internacional do Trabalho (OIT, 2017), 40 milhões de pessoas no mundo vivem em regime de escravidão moderna. No Brasil, esse cenário não é diferente, em especial no que se refere ao trabalho escravo contemporâneo. Dados do sistema informatizado do Ministério Público do Trabalho (MPT) informam que 45.028 trabalhadores foram resgatados em condições análogas à de escravo, entre 2003 e 2018, e que em 2019 houve 1.213 denúncias em todo o país (BRASIL, 2019a). Para contextualizar e exemplifi car o acima citado, assista ao documentário Precisão, lançado em janeiro de 2020, em parceria com a Organização Internacional do Trabalho (OIT) e o Ministério Público do Trabalho (MPT), o qual retrata as histórias de vida de pessoas resgatadas de condições análogas à de trabalho escravo. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=IGK_m8VKNsM. Outro ponto a refl etir é que existe um número extremamente elevado de pessoas que cumprem longas jornadas de trabalho ou duplas/triplas jornadas, o surgimento de novas modalidades de trabalho como: autônomo, parcial, domiciliar (home offi ce), temporário e terceirizado, alterando a saúde do trabalhador. Sem esquecer, é claro, de um contingente de pessoas que morrem em virtude dos acidentes de trabalho e de doenças ocupacionais. Em decorrência da competitividade e da globalização, as empresas no intuito da redução de custos acabam mudando seus processos gerenciais, intensifi cando o trabalho por meio do aumento da jornada, do ritmo acelerado e do acúmulo de funções de seus colaboradores, bem como a redução do quadro funcional. Congruente a isso, há a fl exibilização das legislações, por parte 16 Atenção InteGral À Saúde do Trabalhador governamental, em busca de mais competitividade para o país, reduzindo os direitos do trabalhador para atrair novos investimentos e incentivar a criação de novos empregos. Não se pode deixar de mencionar a Lei nº 13.429/2017, que institucionalizou a “terceirização irrestrita”, a qual agravou o acelerado e devastador processo de precarização do trabalho e de desproteção social, assim como a Lei nº 13.467/2017, a qual institucionalizou o ‘desmanche’ da legislação trabalhista, atacando os princípios fundamentais que caracterizam o “trabalho decente” e o “trabalho seguro e saudável”. Mais recentemente, tem-se a Lei nº 13.846/2019, anunciada como medida para combater supostas irregularidades na concessão de benefícios previdenciários, constituindo, na verdade, em um perverso instrumento para eliminar ‘direitos previdenciários’, acidentários e de prestação continuada, como muito bem exposto por Mendes (2019). Desse modo, todas essas transformações têm impactos sobre a saúde dos trabalhadores, em especial num país de dimensões e desigualdades como o Brasil, onde as formas antigas e modernas de trabalhar coabitam o mesmo espaço. Mas, quem são os trabalhadores? Trabalhadores (as) são todos (as), homens e mulheres que trabalham na área urbana ou rural, independentemente da forma de inserção no mercado de trabalho, formal ou informal, de seu vínculo empregatício, público ou privado, assalariado, autônomo, avulso, temporário, cooperativado, aprendiz, estagiário, doméstico, aposentado e mesmo os desempregados (BRASIL, 2012, s.p.). Partindo desse conceito, Mendes (2019) elucida que a ampliação e a universalização não são meramente semânticas ou teóricas e sim que estão no cerne da universalização dos direitos à saúde e ao seu acesso, rompendo com as delimitações formais vinculadas ao trabalhador com carteira assinada, contribuinte da Previdência Social. E quantos são os trabalhadores no Brasil? De acordo com dados divulgados no fi nal de 2019, pelo IBGE por meio da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD), a força de trabalho está estimada em 93,4 milhões de brasileiros, sendo que destes, 38,4 milhões estão atuando na informalidade (BRASIL, 2020). Face ao exposto, podemos dizer que as relações entre trabalho e saúde formam um mosaico, coexistindo situações heterogêneas de trabalho, o qual é 17 RELAÇÃO ENTRE TRABALHO, SAÚDE E ADOECIMENTO Capítulo 1 caracterizado por distintas formas organizacionais e de gestão, incorporações de tecnologias variadas e de múltiplos contratos trabalhistas, refl etindo, dessa forma, sobre o modo de vida do trabalhador, pois ao mesmo tempo que o trabalho é edifi cante,é determi nante para a produção de condições de saúde e adoecimento. Por fi m, infere-se que o trabalho, ao longo da história, passou (e continuará passando) por metamorfoses tanto em seu modo de ser entendido como em decorrência das variações tecnológicas, tendo sido interpretado como castigo e sofrimento, valorizado como vocação, fonte de salvação até chegar nos moldes de precarização ou uberização, como alguns denominam, carregando polo negativo e positivo, com mutabilidade de sua signifi cação e representação para a sociedade, contribuindo para o desenvolvimento do indivíduo. Convém ressaltar que, sobre essa temática, poderíamos discorrer muito mais, no entanto, nosso intuito foi apenas apresentar algumas considerações relevantes a fi m de contextualizar. A partir desse pano de fundo, seguiremos para o próximo tema. 2.2 DA MEDICINA DO TRABALHO À SAÚDE DO TRABALHADOR: MOMENTO HISTÓRICO E CONCEITUAL Agora que você já conheceu um pouco sobre o mundo do trabalho, vamos contextualizar as principais concepções teóricas e metodológicas em termos de saúde no âmbito das relações laborais – a Medicina do Trabalho, a Saúde Ocupacional e a Saúde do Trabalhador. Serão discutidos a trajetória histórica como campo do conhecimento, as mudanças ocorridas, os fatores que impulsionaram tais mudanças e a visão contemporânea de saúde do trabalhador. 18 Atenção InteGral À Saúde do Trabalhador De antemão, cabe esclarecer que existem diferenças entre Medicina do Trabalho, Saúde Ocupacional e Saúde do Trabalhador, apresentando campos ideológicos específi cos, com determinações históricas concretas e, portanto, tais diferenças não são meramente semânticas, conforme Vasconcellos (2011). Vamos aprofundar a compreensão sobre o desenvolvimento dessas três nomenclaturas da área da saúde no trabalho e vermos as diferenças? Iniciaremos pela Medicina do Trabalho. 2.2.1 Medicina do Trabalho De acordo com o clássico Hunter‘s Diseases of Occupations, o primeiro serviço médico em um local de trabalho é 1789, sendo que o Dr. Peter Holland era médico de uma indústria têxtil, em Quarry Bank (Inglaterra), havendo registros clínicos das suas consultas desde 1804 (MURRAY, 1987, p. 113 apud HENRIQUES, 2004). No entanto, coube à cidade de Leeds, a qual era o grande centro algodoeiro da Inglaterra, ser considerada “o berço da medicina do trabalho”, tendo como protagonista o Dr. Robert Backer, médico particular do empresário do setor têxtil Robert Dernham, que o aconselhou a criar um serviço médico na sua fábrica, instaurando-se, assim, o primeiro modelo de atenção à saúde do trabalhador, centrado na atividade médica (HENRIQUES, 2004; MENDES; DIAS, 1991). Os serviços de Medicina do Trabalho logo se espalharam por outros países para controlar e atrelar o trabalhador e sua família à indústria e, posteriormente, esse modelo se expandiu para países de industrialização tardia como o Brasil (MENDES; DIAS, 1991). Fundamentada nesses dados, a medicina do trabalho tem seu surgimento na primeira metade do século XIX, na Inglaterra, no contexto da Revolução Industrial, haja vista a crescente demanda pela força de trabalho, a qual era vendida pelo trabalhador para a empresa em que ele estava inserido. Vale relembrar que com o advento da Revolução Industrial, os trabalhadores (homens, mulheres, jovens e crianças) se submetiam a um processo acelerado e desumano de produção, com jornadas de trabalho extenuantes, em espaços inadequados e aglomerados, o que propiciava a proliferação de doenças infectocontagiosas, além da periculosidade das máquinas que mutilavam e, em muitas ocasiões, levavam à morte (MENDES; DIAS, 1991; MINAYO-GOMEZ; THEDIM-COSTA, 1997). 19 RELAÇÃO ENTRE TRABALHO, SAÚDE E ADOECIMENTO Capítulo 1 Evidentemente, segundo Henriques (2004), não se poderia denominar como medicina do trabalho, pois, nesta época, os serviços ofertados eram de forma curativa e individualizada, objetivando o diagnóstico e tratamento da doença, dentro do local de trabalho, com abordagem da clínica geral, sem interferir nos fatores causais. Não obstante, o serviço prestado ao trabalhador era de extrema importância, tendo em vista que não havia garantido o direito à saúde aos trabalhadores. Na época, o objetivo da medicina do trabalho era assegurar a continuidade e reprodução do processo de produção industrial que estava sendo ameaçado pelas condições de trabalho insalubres a que os trabalhadores estavam submetidos. Para tanto, a inserção de um médico no interior da fábrica representava um esforço, por parte do empresário, em identifi car os processos danosos à saúde dos trabalhadores, além de possibilitar uma rápida recuperação daqueles que estavam doentes, visando ao retorno à linha de produção o mais breve (MENDES; DIAS, 1991; MINAYO-GOMEZ; THEDIM-COSTA, 1997). Sob esse prisma, o médico era um mediador competente para os embates decorrentes entre os trabalhadores e o empresariado, uma vez que a ênfase era a doença do trabalhador, fazendo com que seu corpo funcionasse conforme a norma, adequando-o ao trabalho, reduzindo-o a um objeto, sem considerar sua vida fora do ambiente laboral. De acordo com Mendes e Dias (1991), a Medicina do Trabalho se constituiu como uma atividade médica, tendo sua prática dentro dos locais de trabalho, sendo que o médico, o qual era de confi ança do empresário, tinha a competência de controlar o absenteísmo, selecionar os trabalhadores hígidos conforme suas aptidões, recaindo sobre ele a responsabilidade dos problemas de saúde, ou seja, desresponsabilizando o empregador. Em síntese, pode-se dizer que não eram médicos do trabalho e sim médicos no trabalho. Diante desse cenário, a Medicina do Trabalho apresenta uma visão altamente biologicista, individualizada, fundada na concepção positivista e mecanicista de saúde e orientada pela unicausalidade, buscando os fatores causais das doenças e dos acidentes no espaço restrito da fábrica (MINAYO-GOMEZ; THEDIM- COSTA, 1997). Nesta acepção, segundo Cruz, Ferla e Lemos (2018), a preocupação com a saúde no trabalho tem sua gênese na medicina do trabalho, a qual tem um olhar direcionado ao diagnóstico e à medicalização do trabalhador, ou seja, numa linha de cuidado médico-centrada – o médico, protagonista da Medicina do Trabalho, tinha a incumbência de isolar riscos específi cos e medicalizar os trabalhadores. 20 Atenção InteGral À Saúde do Trabalhador No início do século XX, a Medicina do Trabalho permanecia estruturada na fi gura do médico do trabalho, o qual atuava sobre o trabalhador, sob a ótica da medicina do corpo, biológica e individual, com abordagem clínico-terapêutica, sendo que, no máximo, analisava o ambiente laboral e a ação patogênica de determinados agente. Eram desenvolvidas práticas assistenciais, tendo o trabalhador como objeto das ações, as quais estavam centralizadas no ambiente laboral (DIAS, 1994; DIAS; HOEFEL, 2005). Outra característica relevante da Medicina do Trabalho é referente à busca por efi ciência produtiva e pela infl uência da racionalidade econômica, proposta por Townsend, em 1943, quando relatou que a medicina do trabalho deve se ocupar com cada estágio da saúde do homem que opera uma máquina, desde a poeira industrial respirada por ele até a comida em sua marmita, uma vez que o objeto é manter o trabalhador com boa saúde e apto para o trabalho, com a máxima efi ciência (TOWNSEND, 1943). Após a Segunda Guerra Mundial, e com uma nova Revolução Industrial, a Medicina do Trabalho não estava mais atendendo às expectativas dos envolvidos, em especial dos trabalhadores, os quais demonstravam insatisfação, questionando sobre as condições insalubres a que eram submetidos, a respeito dos adoecimentos decorrentes do trabalho e em relação à forma como os serviços de medicina do trabalho estavam atuando, ou seja, centrada no adoecimento do trabalhador, necessitando, portanto, ganhar novos formatos, ampliandoseu espectro de ação. Nesse período, as relações entre trabalhadores e ambientes de trabalho foram intensifi cadas de forma negativa, assim como os próprios empresários começaram a perceber que as doenças ocasionadas pelo trabalho demandavam elevados custos, conforme Minayo-Gomes e Thedin-Costa (1997). É preciso destacar que a oferta dos serviços médicos aos trabalhadores se tornou uma preocupação no âmbito internacional, fazendo parte da agenda da Organização Internacional do Trabalho (OIT), criada em 1919, conforme Mendes e Dias (1991). Desse modo, a OIT, em 1953, por meio da Recomendação nº 97 (Proteção da Saúde dos Trabalhadores) apregoou a conformação de serviços médicos nas corporações, sendo considerada uma conquista para os trabalhadores, assim como, em 1959, apresentou a Recomendação nº 112 referente aos Serviços de Medicina do Trabalho de caráter privado. Nessa perspectiva, o modelo da Medicina do Trabalho e a prática dos Serviços de Medicina do Trabalho, devido as suas limitações e relativa impotência para intervir sobre os problemas de saúde ocasionados pelos processos de produção, prejudicaram a concretização das propostas previstas na Recomendação nº 112, 21 RELAÇÃO ENTRE TRABALHO, SAÚDE E ADOECIMENTO Capítulo 1 sendo necessário reavaliar e reestruturar o sistema vigente. Antes de prosseguirmos para a Saúde Ocupacional, que tal refl etirmos um pouco? A nomenclatura Medicina do Trabalho não traz o sujeito do trabalho, que é o trabalhador, assim como não se refere à saúde e sim ao termo medicina, que é uma ciência médica e que limita a atuação a um único profi ssional, o médico. Já o termo saúde, etimologicamente, signifi ca bem-estar, cura, conservação da vida, assim como amplia o espectro, abarcando outros profi ssionais, ou seja, profi ssionais da saúde. Seria, então, uma medicina do ambiente de trabalho e não do trabalhador? Essa refl exão servirá para que você entenda melhor a afi rmação inicial e compreenda melhor as diferentes nomeações que vêm sendo construídas no decorrer da história. Também é relevante apresentar a defi nição de Medicina do Trabalho dada pelo Glossário Temático de Saúde do Trabalhador do Mercosul: Disciplina das ciências médicas que se encarrega de avaliar, controlar, proteger e recuperar a saúde dos trabalhadores ameaçada pelas condições de trabalho e pelos fatores de risco presentes no ambiente laboral. Preocupava-se quase exclusivamente com atendimento médico. Conceitualmente, hoje, suas missões e funções se ampliaram e o termo foi substituído por Saúde Ocupacional (BRASIL, 2014, p. 38). 2.2.2 Saúde Ocupacional Como vimos anteriormente, o primeiro ciclo da Revolução Industrial ampliou a exploração da mão de obra, incorporando o trabalho da criança, jovem e mulher, aumentando o ganho dos empresários e, consequentemente, a degradação do trabalho. No início do século XX, em decorrência das duas guerras mundiais, novos problemas e necessidades de saúde no trabalho surgiram, ocasionados pelas 22 Atenção InteGral À Saúde do Trabalhador mudanças nos processos produtivos (DIAS; HOEFEL, 2005). Também ocorreu a implantação de modifi cações no processo de trabalho, com o fordismo (modelo de produção em massa, ou seja, linha de produção) e o taylorismo (fragmentação do processo de trabalho), os quais predominaram na maior parte da indústria capitalista, apresentando uma separação sistemática entre quem executa o trabalho e quem pensa. Esse novo arranjo do trabalho e seus desdobramentos acabaram por demonstrar que a Medicina do Trabalho era insufi ciente para intervir sobre os agravos à saúde decorrentes desses processos de produção, conforme Mendes e Dias (1991). Em virtude disso, surge a Saúde Ocupacional, tendo como principal estratégia a intervenção nos locais de trabalho por meio da atuação multiprofi ssional, com traços de interdisciplinaridade, com a fi nalidade de controlar os riscos ambientais e com ênfase na higiene industrial ou higiene do trabalho. Segundo Dias e Hoefel (2005), outros profi ssionais passaram a compor a equipe médica, evidenciando aspectos da segurança do trabalho, da higiene e da ergonomia, com abordagem multidisciplinar, ampliando o foco das ações de saúde, mas monopolizadas no ambiente de trabalho e atreladas aos parâmetros científi cos dos denominados “limites de tolerância”, mas mantendo o trabalhador como objeto das ações. A Saúde Ocupacional incorpora a teoria da multicausalidade, considerando que a doença é produzida por um conjunto de fatores de riscos, devendo ser avaliada pela clínica médica por meio de indicadores biológicos e ambientais, utilizando os fundamentos teóricos a partir do modelo da História Natural da Doença de Leavell & Clark , a qual se torna insufi ciente para relação entre o homem e o trabalho (MINAYO-GO MEZ; THEDIM-COSTA, 1997). Nesse sentido, a Saúde Ocupacional busca correlacionar o ambiente laboral com o corpo do trabalhador, analisando o adoecimento ou a lesão como multicausal por meio do olhar clínico e de indicadores de exposição, desconsiderando os aspectos culturais e biopsicossociais (CRUZ; FERLA; LEMOS, 2018). Vale realçar que devido à atuação de equipes multiprofi ssionais e à incorporação da teoria da multicausalidade, a centralidade na fi gura do médico já não era mais a marca principal do serviço. A Saúde Ocupacional introduziu modifi cações no campo da saúde, ampliou a atuação da Medicina do Trabalho que estava focada basicamente no tratamento do trabalhador doente, de forma individual, passando a avaliar grupos de 23 RELAÇÃO ENTRE TRABALHO, SAÚDE E ADOECIMENTO Capítulo 1 trabalhadores expostos e não expostos a agentes de riscos, buscando minimizar os impactos negativos do processo laboral, visando à prevenção no ambiente de trabalho e à saúde do trabalhador. De acordo com Cruz, Ferla e Lemos (2018), a Saúde Ocupacional está focada em procedimentos, diagnósticos e prevenção dos riscos no trabalho, pautada na Epidemiologia e numa linha de cuidado voltada ao administrativo medicalizante. De acordo com o Glossário Temático de Saúde do Trabalhador do Mercosul, Saúde Ocupacional é assim defi nida: Saúde Ocupacional é uma atividade multidisciplinar que procura promover um trabalho seguro e saudável, como bons ambientes e organizações, eliminando ou minimizando eventuais riscos, distribuindo os trabalhadores de maneira adequada às suas aptidões físicas e psicológicas, adaptando o trabalho ao homem, respaldando-se no aperfeiçoamento e na manutenção de sua capacidade de trabalho, promovendo maior grau de bem-estar físico, mental e social nos trabalhadores de todas as profi ssões. Ao mesmo tempo em que tenta habilitar os trabalhadores para terem vidas sociais e economicamente produtivas, enquanto contribuem efetivamente com o desenvolvimento sustentável, a saúde ambiental permite o enriquecimento humano e profi ssional no trabalho (BRASIL, 2014, p. 51). Na esteira das concepções, a transição da Medicina do Trabalho para a Saúde Ocupacional sofreu infl uência da área da Saúde Pública, a qual explorava a saúde do trabalho e suas especifi cidades, priorizando a prevenção e a proteção da saúde do trabalhador representando uma evolução em relação à concepção curativa da Medicina do Trabalho. Outrossim, as práticas da Saúde Ocupacional privilegiavam o uso de equipamentos de proteção individual, com ações voltadas ao trabalho seguro, responsabilizando o próprio trabalhador pelo acidente ou doença que porventura viesse ocorrer e, portanto, resultando em uma prevenção simbólica. Neste enfoque, a Saúde Ocupacional visava responder de forma científi ca e racional aos problemas de saúde instaurados pelos processos e ambientes de trabalho, assim como tentava quantifi car a reação ou resistência do trabalhador aos fatores de riscos ocupacionais/ambientais, por meio da Toxicologia e dos parâmetros preconizados como limites de tolerância.Assim, a Saúde Ocupacional, com ênfase na higiene industrial, tem por fi nalidade controlar os riscos ambientais, refl etindo a infl uência das escolas de saúde pública, sendo compreendida por Mendes e Dias (1991) como uma 24 Atenção InteGral À Saúde do Trabalhador atividade da Saúde Pública dirigida aos trabalhadores, sejam eles empregados de um estabelecimento, trabalhadores de uma região ou pertencentes a uma categoria profi ssional. Embora a Saúde Ocupacional tenha trazido novos olhares e novas perspectivas para a saúde do trabalhador, as práticas, apesar de ideologicamente mais avançadas, permaneciam as mesmas, ainda focada no aumento da produtividade, na conservação da força de trabalho e na redução dos custos relacionados à morbimortalidade no ambiente de trabalho, se mantendo na racionalidade mecanicista e positivista do modelo anterior, ou seja, da Medicina do Trabalho, conforme Mendes e Dias (1991). A confi guração da Saúde Ocupacional se limita a intervenções pontuais sobre os riscos mais marcantes, considerando conceitos de limites de exposição e de tolerância, não favorecendo a apreensão de outras formas nocivas do trabalho, bem como não permitindo investigações de outras determinações para os problemas pertinentes aos processos de trabalho (LACAZ, 2007). Nessa acepção, é plausível relacionar a Saúde Ocupacional a uma prática que se conforma por técnicas e conteúdos com as evidências científi cas, as quais têm como objetivo garantir trabalhadores saudáveis e produtivos para que a produção e/ou produtividade da empresa seja assegurada. O conceito da Saúde Ocupacional, com a nova visão do caráter histórico do processo saúde-doença, passou a ser criticado, visto que o trabalho era entendido apenas como um problema ambiental, em que o trabalhador estava exposto a agentes químicos, físicos, biológicos e psicológicos. Vale pontuar que, no fi nal dos anos 1960, novas mudanças sociais acontecem, sendo que questões trabalhistas começam a ser tratadas de uma nova forma, alicerçadas como direitos fundamentais dos trabalhadores. Atrelada a essas mudanças, se coloca em xeque o signifi cado do trabalho, o sentido da vida, os conceitos relativos ao trabalho, surgindo questionamentos e críticas ao modelo da Saúde Ocupacional, exigindo que os trabalhadores participassem de forma efetiva nas questões de saúde e segurança do trabalho. 2.2.3 Saúde do Trabalhador Na metade da década de 1960, mais especifi camente em maio de 1968, movimentos operários e estudantis parisiense marcaram a história, sendo decisivos, uma vez que questionamentos sobre o sentido da vida, o signifi cado 25 RELAÇÃO ENTRE TRABALHO, SAÚDE E ADOECIMENTO Capítulo 1 do trabalho na vida, o valor da liberdade, dentre outros, abalaram a confi ança do Estado, colocando em xeque o lado “místico e sagrado” do trabalho, fazendo com que a temática à saúde do trabalhador ganhasse reconhecimento entre os países industrializados. Nesse mesmo período, mais especifi camente entre 1967 e 1969, surge o Modelo Operário Italiano (MOI), confi gurado como a experiência de luta das questões de saúde relacionadas ao trabalho mais avançada, depois da pós- guerra, a qual infl uenciou a constituição da Saúde do Trabalhador. Devido ao avanço dos movimentos sociais, a participação dos trabalhadores nas questões de saúde e segurança no trabalho se intensifi cam, surgindo novas políticas sociais, mudanças signifi cativas na legislação trabalhista e, em especial, nas questões de saúde e segurança do trabalho, como no caso da Itália, que cria o Estatuto dos Trabalhadores, em maio de 1970, por meio da Lei nº 300 (MENDES; DIAS, 1991). Na perspectiva histórica é difícil precisar o momento exato do surgimento da área temática da saúde do trabalhador, sendo fi xado este tempo nos anos 1970, coincidindo com os movimentos sociais e com a formulação do modelo explicativo da determinação social do processo saúde-doença. Diante da organização capitalista do trabalho, a compreensão da relação entre saúde e trabalho se modifi ca, devido ao progressivo surgimento de acidentes, intoxicações, doenças e manifestações crônicas do desgaste dos trabalhadores, surgindo, então, a Saúde do Trabalhador, a partir dos questionamentos do caráter positivista e histórico do modelo médico tradicional provenientes de estudos da Medicina Preventiva, Medicina Social e da Saúde Pública (MINAYO-GOMEZ; THEDIM-COSTA, 1997). Assim, entende-se que a Saúde do Trabalhador é um o conjunto de conhecimentos provenientes de várias disciplinas, associado ao saber do trabalhador sobre seu ambiente laboral e suas vivências, que propõe intervenção nos ambientes de trabalho, além de uma nova prática de atenção à saúde dos trabalhadores, que perpassa a promoção, prevenção, cura e reabilitação, incluindo ações de vigilância epidemiológica e sanitária (NARDI, 1997). Nessa perspectiva, propõe uma visão mais ampliada do binômio trabalho- saúde em relação aos modelos anteriores, privilegiando, desta vez, o trabalhador como protagonista, contrapondo-se à Medicina do Trabalho e à Saúde Ocupacional em que este (o trabalhador) é um objeto-paciente da atuação de especialistas, conforme preceitua Nardi (1997), evidenciando a saúde do trabalho e não o trabalhador em si, conforme propõe a Saúde do Trabalhador. 26 Atenção InteGral À Saúde do Trabalhador Na Saúde do Trabalhador, o trabalhador é sujeito político coletivo, agente de transformação e não mais visto como paciente e objeto de intervenção profi ssional como na Saúde Ocupacional, de acordo com Minayo-Gomes (2011). Esse novo modelo reconhece como fundamental a participação efetiva dos trabalhadores nas ações de saúde, tendo como elemento central e diferenciador o trabalhador, reconhecido como sujeito social partícipe da organização do trabalho, bem como a determinação social do processo saúde-doença, além de ampliar o campo de atuação e investigação em comparação aos modelos anteriores. A Saúde do Trabalhador incorpora a lógica da Saúde Pública por meio da promoção da saúde, prevenção de riscos e participação do trabalhador em perspectiva coletiva, surgindo como crítica à Medicina do Trabalho e Saúde Ocupacional, em especial ao modelo trabalhista-previdenciário ligado a ambas concepções, com a fi nalidade de ultrapassar as visões reducionistas de causa e efeito, amparada pela unicausalidade entre doença e agente (MENDES; DIAS, 1991; LACAZ, 2007). Conforme Porto e Almeida (2002), a Saúde do Trabalhador é um campo multiprofi ssional e interdisciplinar, envolvendo as ciências sociais e hu manas (psicologia, assistência social e sociologia); as ciências biomédicas (a clínica e suas especialidades, a medicina do trabalho e a toxicologia); e áreas tecnológicas (higiene e engenharia de segurança do trabalho, engenharia de produção e er- gonomia). A abordagem em Saúde do Trabalhador, que ainda está em construção, busca os agentes causais do adoecer e do óbito dos trabalhadores decorrentes dos processos de trabalho, bem como compreender os níveis de complexidade da relação saúde e trabalho, resgatando o lado humano do trabalho. Diante do exposto, infere-se que a Saúde do Trabalhador, por considerar o trabalho como fator determinante da saúde, busca o bem-estar, a qualidade de vida do trabalhador e integralidade do cuidado da saúde, embora possa provocar adoecimento e morte, não se limitando à prevenção ou ao enfrentamento dos problemas concernentes ao trabalho, mas assegurando melhores condições laborais por meio da promoção da saúde e do empoderamento do trabalhador. O Glossário Temático de Saúde do Trabalhador do Mercosul (BRASIL, 2014, p. 50-51) aborda a Saúde do Trabalhador da seguinte forma: Em muitos países, a população trabalhadora enfrenta os efeitos negativos provenientes das más condições de vida e de trabalho que favoreceram a aparição de um novo perfi l de exigências e múltiplos riscos; difíceis de detectar,eles 27 RELAÇÃO ENTRE TRABALHO, SAÚDE E ADOECIMENTO Capítulo 1 causam deterioração física e mental e, consequentemente, o aumento da mortalidade. É imprescindível, então, identifi car tais riscos, avaliá-los, monitorá-los, oferecer informação e apoio técnico a seu respeito e buscar os meios adequados para limitá-los e eliminá-los. Essa gestão deve ser analisada levando em conta o paradigma econômico e social existente em cada país (em determinado momento) e considerando também as 24 horas da vida do trabalhador, uma vez que seu trabalho determinará sua vida familiar, sua vida cultural, seu tempo livre etc. Devem ser incorporadas outras disciplinas ao tema, e os trabalhadores devem estar presentes, somando suas experiências acumuladas e sua opinião direta. Daí vem a necessidade de tratar a Saúde do Trabalhador como um conceito mais amplo, em vez de apenas “saúde no trabalho” ou “saúde ocupacional”. Vale lembrar que a Saúde do Trabalhador não surge com cunho substitutivo, pois a Saúde Ocupacional coexiste ainda hoje e, segundo Vasconcellos (2011), a diferença entre elas está presente na ideologia e aspectos culturais, econômicos, sociopolíticos, normativos e institucionais. Para Porto e Almeida (2002), um dos desafi os da Saúde do Tra balhador é a integração das ações com a Saúde Ambiental, se constituindo como um campo mais abrangente entre saúde, trabalho e ambiente. Para concluir, demarcadas as diferenças entre esses três modelos, se constata, a partir do percurso analítico, que a Medicina do Trabalho, a Saúde Ocupacional e a Saúde do Trabalhador são referenciais teórico-metodológicos e que não foram construídos de forma linear. Agora que você já conheceu os três modelos que historicamente têm orientado as práticas voltadas para as relações de saúde- trabalho no âmbito internacional, está na hora de compreender e conhecer a Saúde do Trabalhador no Brasil. 2.3 CONHECENDO A SAÚDE DO TRABALHADOR NO BRASIL Para uma melhor apreensão da conjuntura atual, vale traçar uma linha 28 Atenção InteGral À Saúde do Trabalhador histórica que demarque as principais fases relacionadas à evolução da saúde do trabalhador no Brasil até os dias de hoje. Em 1888/1889, a revolução burguesa nacional se inicia com a abolição da escravatura e a Proclamação da República, sendo que na primeira fase se tem os primeiros passos rumo à industrialização – com o cultivo do café – e como segunda fase, a crise do pacto oligárquico republicano, em 1930, à entrada nacional no capitalismo monopolista, com a ditadura militar. A partir desse processo é que no Brasil se pode falar na presença das classes (em formação) burguesa e trabalhadora, sendo que com o alvorecer da indústria brasileira é que se começa a pensar nas medidas de proteção social e de implantação dos modelos de Medicina do Trabalho/Saúde Ocupacional nas empresas. Contudo, como bem vimos anteriormente, basicamente, o conceito de Saúde do Trabalhador surgiu por intermédio do Movimento Operário Italiano (MOI), o qual refutava os padrões estabelecidos pela Medicina do Trabalho e Saúde Ocupacional, se concentrando no protagonismo do trabalhador como sujeito ativo no processo saúde/doença. Cabe salientar que o MOI infl uenciou várias iniciativas na saúde do trabalhador no Brasil, desde a articulação sindical em saúde (Comissão Intersindical de Saúde do Trabalhador – CISAT; Departamento Intersindical de Estudos de Saúde e dos Ambientes de Trabalho – DIESAT e do Instituto Nacional de Saúde no Trabalho da Central Única dos Trabalhadores – INST/CUT), perpassando pelo campo científi co, no âmbito da saúde coletiva, por meio das bases constitutivas da área de conhecimentos e práticas em saúde do trabalhador até as legislações e as ações da Vigilância em Saúde do Trabalhador (VISAT), conforme Stotz e Pina (2017). Um marco importante para a Saúde do Trabalhador foi a criação da Fundação Jorge Duprat Figueiredo de Segurança e Medicina do Trabalho (FUNDACENTRO), em 1966, a qual passou a realizar pesquisas e desenvolvimento de normas para regulação do trabalho. Em meio à crise econômica, social e política, no fi nal de década de 1960 e início dos anos 1970, e com a baixa efi cácia da medicina curativista e hospitalar, ocorre uma renovação na Saúde Pública com o movimento da Saúde Coletiva, compreendendo que o processo saúde-doença é determinado socialmente e que as formas de viver e de trabalhar geram benefícios e riscos individuais e coletivamente. 29 RELAÇÃO ENTRE TRABALHO, SAÚDE E ADOECIMENTO Capítulo 1 Na década de 1970, no Brasil, ocorre a normatização do trabalhador, impondo que os locais de trabalho contassem com equipes multidisciplinares, com avaliações dos riscos ambientais. Em 1972, por meio do Plano de Valorização do Trabalhador, via Portaria nº 3.237, se torna obrigatória a existência de serviços médicos, bem como os serviços de higiene e segurança em todas empresas com cem (100) ou mais funcionários. A exemplo do relatado, um fato importante é a publicação por meio da Portaria GM nº 3.214/1978, da Norma Regulamentadora 4 (NR 4), a qual normatiza os Serviços Especializados em Engenharia de Segurança e em Medicina do Trabalho (SESMT), com a fi nalidade de promover a saúde e proteger a integridade do trabalhador no local de trabalho (BRASIL, 1978). Vale salientar que essa portaria aprovou, na época, 28 Normas Regulamentadoras (NRs) do Ministério do Trabalho e Emprego, objetivando a proteção e segurança dos trabalhadores em diversos contextos produtivos e atividades específi cas, regulando as penalida des em caso de descumprimento destas. Atualmente, são 37 NRs vigentes que tratam de diversos assuntos relaciona dos ao trabalho. Para conhecer todas as NRs, acesse o endereço: https://enit. trabalho.gov.br/portal/index.php/seguranca-e-saude-no-trabalho/sst- menu/sst-normatizacao/sst-nr-portugues ?view = default. Convém pontuar que, sob a visão da Saúde Ocupacional no Brasil, as estruturas formais não cobriam os trabalhadores informais e que na ditadura militar (Estado coercitivo e autoritário), esse modelo atinge seu ápice de caráter excludente, vertical e reparador, fazendo com que os sindicatos questionassem o seu alcance limitado. Nesse contexto, as raízes da Saúde do Trabalhador, no Brasil, provêm do movimento da Medicina Social latino-americana, com infl uência da experiência operária italiana (MOI), ampliando o quadro elucidativo do processo saúde- doença, articulando-o com o trabalho, introduzindo práticas de atenção à saúde do trabalhador na Saúde Pública no âmago das propostas da Reforma Sanitária Brasileira. Faz-se importante ressaltar que, na década de 1980, várias lutas pela saúde ocorreram, dentre elas a do benzeno, tendo em vista a grande visibilidade por 30 Atenção InteGral À Saúde do Trabalhador conta do caso da Companhia Siderúrgica Paulista (Cosipa), em que mais de dois mil trabalhadores apresentaram quadro de leucopenia, sendo afastados de suas atividades laborais (REBOUÇAS et al., 1989). Nessa década, também, simultaneamente com os debates sobre a Reforma Sanitária brasileira, foi estimulada a criação de Programas de Saúde do Trabalhador (PST) nos serviços de saúde de algumas cidades brasileiras, os quais foram se multiplicando com o intuito de romper com o paradigma da saúde ocupacional clássica (VASCONCELLOS, 2011). Nessa perspectiva, os PST passaram a desenvolver ações, especialmente de vigilância de ambientes de trabalho, rompendo com as práticas vigentes, fazendo com que os trabalhadores assumissem o protagonismo na intervenção sobre a sua saúde. Historicamente, no Brasil, o conceito de Saúde do Trabalhador vem sendo discutido desde a Reforma Sanitária, organizando-se como movimento ao longo da década de 1980 e materializando-se no relatório da 8ª Conferência Nacional de Saúde (CNS), realizada em 1986 e considerada como marco da saúde pública, que culminouna instituição do Sistema Único de Saúde (SUS) pela Constituição Federal de 1988. Assim, somente com a realização, em 1986, da 1ª Conferência Nacional de Saúde dos Trabalhadores (CNST), a qual enfatizou a abordagem de três temas: 1) Diagnóstico de saúde e segurança dos trabalhadores; 2) Novas alternativas de atenção à saúde do trabalhador; 3) Política Nacional de Saúde e Segurança dos Trabalhadores (BRASIL, 1986a), como desdobramento proposto pela 8ª CNS, é que a expressão Saúde do Trabalhador (ST) ganhou contornos mais contundentes. Cabe mencionar que o Relatório Final da 1ª CNST se opôs à exploração/ dominação sofrida pelas “classes dominadas”, bem como trouxe elementos sobre a precarização do trabalho e a situação dos trabalhadores rurais e das mulheres, propondo medidas de fortalecimento da Vigilância em Saúde do Trabalhador (VISAT) e a construção de canais de interação com os sindicatos, trabalhando conjuntamente a outros setores, para garantir saneamento, transporte, habitação, dentre outros, para os trabalhadores, vislumbrando um novo horizonte a ser alcançado (BRASIL, 1986a). Em 1986, a Central Única dos Trabalhadores (CUT) tomou a frente de questões relacionadas à saúde, em especial com a criação do Instituto Nacional de Estudos e Ação Sindical sobre as Condições de Trabalho (ISACT). Desta forma, “ao restringir sua atuação a sindicatos fi liados à CUT, a luta pela saúde do trabalhador perdia uma oportunidade histórica de se ampliar nacionalmente” (GAZE; LEÃO; VASCONCELLOS, 2011, p. 317). 31 RELAÇÃO ENTRE TRABALHO, SAÚDE E ADOECIMENTO Capítulo 1 Nesse ínterim, a Saúde do Trabalhador foi apresentada na Constituição Federal de 1988, no Art. 200, inciso II, como uma das competências do SUS para “executar as ações de saúde do trabalhador” e “colaborar na proteção do meio ambiente nele compreendido o do trabalho” (BRASIL, 1988, p. 130). Em suma, a Constituição Federal garantiu a atenção integral à saúde para todos trabalhadores independentemente do tipo de vínculo que possuem no mercado de trabalho. Para Tambellini, Almeida e Camara (2013), a Saúde do Trabalhador pode ser dividida em dois momentos: a) o período de 1969 a 1979, tendo como foco a discussão da temática saúde nos meios acadêmicos e o surgimento, pela primeira vez, do debate da relação trabalho e saúde; b) o período de 1980 a 1988, caracterizado pelo debate da saúde do trabalhador no Movimento da Reforma Sanitária, bem como pela criação do Centro de Estudos e Saúde do Trabalhador e Ecologia Humana, sendo realizadas pesquisas interdisciplinares sobre produção-trabalho-saúde, buscando incluir a discussão saúde-trabalho e vida do trabalhador das fábricas. Na década de 1990, teve início a implantação do SUS após a promulgação da Lei Orgânica da Saúde (LOS) nº 8.080, de 19 de setembro de 1990, a qual defi ne a Saúde do Trabalhador como: um conjunto de atividades que se destina, através das ações de vigilância epidemiológica e vigilância sanitária, à promoção e proteção da saúde dos trabalhadores, assim como visa à recuperação e reabilitação da saúde dos trabalhadores submetidos aos riscos e agravos advindos das condições de trabalho (BRASIL, 1990, p. 1). Desse modo, a Lei Federal nº 8.080/90 regulamentou as competências no campo da saúde do trabalhador, considerando o trabalho como determinante e condicionante da saúde dessa população. Convém ressaltar que a atenção à saúde do trabalhador inserido no setor formal de trabalho, tradicionalmente, no Brasil, era atribuição dos Ministérios do Trabalho e da Previdência Social, sendo, posteriormente, incorporada ao organograma e práticas do Ministério da Saúde e aos níveis estaduais e municipais do SUS. Contudo, ao longo do período, a Saúde do Trabalhador tem sido colocada no âmbito da assistência ou da estrutura da vigilância, dependendo do formato institucional vigente, mas sempre avançando (DIAS; HOEFEL, 2005). De acordo com o Ministério da Saúde (BRASIL, 2018), a Saúde do Trabalhador é o campo da Saúde Pública que tem como objeto de estudo e intervenção as relações produção-consumo e o processo saúde-doença das pessoas e, em particular, dos (as) trabalhadores (as). 32 Atenção InteGral À Saúde do Trabalhador Na década de 1990, as ações para a saúde dos trabalhadores se expandiram, sendo que alguns programas de saúde do trabalhador (PST) se mantiveram e outros foram criados. Contudo, essas ações restringiram-se a uma prática assistencial, descaracterizando-se do foco original dos PST, fi cando isoladas e desarticuladas das demais ações do SUS. Em 1991, a Comissão Intersetorial de Saúde do Trabalhador (CIST), vinculada ao Conselho Nacional de Saúde, foi criada, tendo como tarefa concretizar o controle social no âmbito da Saúde do Trabalhador. Já em 1993, foi criado o Grupo Executivo Interministerial de Saúde do Trabalhador, na tentativa de articular os Ministérios da Previdência Social, do Trabalho e da Saúde, o que não alterou o cenário fragmentado da “Saúde do Trabalhador” (RIBEIRO; LEÃO; COUTINHO, 2013). Nesse contexto, em 1994, aconteceu a 2ª Conferência Nacional de Saúde do Trabalhador, com o tema “Construindo uma Política de Saúde do Trabalhador”, num clima bem diferente da 1ª CNST e com um discurso mais eclético (recuo à postura anticapitalista). No entanto, pôde-se destacar alguns pontos positivos, como a tentativa de organizar e adequar as ações de “Saúde do Trabalhador” diante ao SUS, em especial com a criação de Programas Municipais de Saúde do Trabalhador, a fi m da descentralização dos serviços, a proposta de criação de Centros de Referência, o poder de fi scalização aos sindicatos e instâncias do SUS dos ambientes e processos de trabalho e a contextualização do trabalho com a questão ambiental, além de não ter sido omitido o protagonismo do trabalhador. A 3ª Conferência Nacional de Saúde do Trabalhador, realizada após 10 anos da 2ª CNST, com o lema: “Trabalhar, sim! Adoecer, não!”, tendo como eixos principais a questão da integralidade e a transversalidade das ações; o desenvolvimento sustentável e o controle social. Além disso, teve como resolução a elaboração de protocolos de atenção à saúde do trabalhador, sendo defi nidos fl uxos de atendimento, bem como recomendações de que fossem instituídas comissões de saúde do trabalhador em cada local de trabalho, sendo eleitas pelos próprios trabalhadores, dentre outras resoluções (BRASIL, 2005). Contudo, para alguns estudiosos, mostrou-se repetitiva em relação à anterior, assim como foi considerada como um retrocesso à Saúde Ocupacional/Saúde do Trabalhador. Em 2014, a 4ª Conferência Nacional de Saúde do Trabalhador apresentou seu mote: “a saúde do trabalhador e da trabalhadora, direito de todos e todas e dever do Estado”, dando visibilidade à questão de gênero, por meio do termo “trabalhadora”, e como objetivo “propor diretrizes para a implementação da Política Nacional de Saúde do Trabalhador e da Trabalhadora – PNST”, sendo aprovadas 219 propostas (BRASIL, 2015). 33 RELAÇÃO ENTRE TRABALHO, SAÚDE E ADOECIMENTO Capítulo 1 Nas últimas décadas, consideráveis avanços ocorreram na normatização da proteção à saúde e segurança dos trabalhadores, no mundo e no Brasil, o qual conta com um amplo conjunto normativo, incluindo tratados internacionais e garantias constitucionais. O trabalhador brasileiro, na busca pela atenção a sua saúde, conta com diferentes espaços institucionais com objetivos e ações assistenciais diferenciadas, como: políticas públicas sociais e de saúde; organizações e sindicatos; planos de saúde e seguros suplementares; Normas Regulamentadoras (NRs) englobando principalmente os Serviços Especializados em Engenharia de Segurança e Medicina do Trabalho (SESMT), as Comissões Internas de Prevenção de Acidentes (CIPA), o Programa de Controle Médico de Saúde Ocupacional (PCMSO) e o Programa de Prevenção de Riscos Ambientais(PPRA); dentre outros. Noentanto, um dos contratempos do modelo legal normativo brasileiro envolvendo a saúde e segurança do trabalhador é que os métodos de prevenção de acidentes e das doenças relacionadas ao trabalho é estabelecida pela empresa, assim como a proteção do trabalhador, fi cando a cargo da gestão privada, ou seja, o SESMT e a CIPA são contratados da empresa. Após mais de 30 anos da promulgação da Constituição Federal, o campo da Saúde do Trabalhador no Brasil evoluiu, entretanto, com a reforma trabalhista e a lei da terceirização, recentemente decretadas, há, cada vez mais, a tendência de modifi cações relevantes nas relações de trabalho, impactando de forma negativa e intensa a saúde do trabalhador, devido à precarização do trabalho, assim como toda a organização coletiva dos trabalhadores, ou seja, Ministério do Trabalho, Justiça do Trabalho e Ministério Público do Trabalho, uma vez que a legislação trabalhista vigente amplia o poder das empresas, limitando e enfraquecendo a negociação coletiva dos trabalhadores (KREIN, 2018). Diante desse cenário, essas reformas concatenadas com as novas transições estruturais dos serviços e do setor produtivo, denominadas de “indústria 4.0”, vão de encontro a um dos principais pressupostos teórico-metodológicos do campo da Saúde do Trabalhador, que é a participação dos trabalhadores. 34 Atenção InteGral À Saúde do Trabalhador Mediante as considerações anteriores, é possível depreender que a participação ativa do trabalhador, como apregoa a Saúde do Trabalhador, ainda não se efetivou de fato em nosso país. Por fi m, cumpre esclarecer que essa retrospectiva referente à Saúde do Trabalhador no Brasil não se encerra por aqui, visto que durante os demais capítulos retomaremos esse tópico. Assim, chegamos ao fi nal desta seção, onde recuamos um pouco no tempo para nos apropriarmos sobre assuntos como: mundo do trabalho; medicina do trabalho; saúde ocupacional; saúde do trabalhador e saúde do trabalhador no contexto brasileiro. Agora, convidamos você a testar os conhecimentos adquiridos. 1) Com base na leitura e conhecimentos adquiridos até aqui, leia atentamente as afi rmativas e coloque “V” para as verdadeiras e “F” para as falsas. ( ) Diversos foram os fatos históricos que antecederam e contribuíram para o surgimento do campo da saúde do trabalhador no Brasil, dentre eles: o Movimento da Reforma Sanitária, a 1ª Conferência Nacional de Saúde dos Trabalhadores e a criação dos primeiros Programas de Saúde do Trabalhador. ( ) A palavra trabalho deriva de tripallium, palavra do grego que designa uma espécie de instrumento de tortura de três paus e, desse modo, o aspecto etimológico da palavra nos leva a associar trabalho à ideia de sofrimento. ( ) A saúde ocupacional possui uma proposta interdisciplinar, diferentemente da medicina do trabalho, procurando estabelecer uma relação entre o ambiente de trabalho e o corpo do trabalhador, adotando em sua prática a teoria da multicausalidade. ( ) Diante das mudanças vivenciadas no mundo trabalho, pode-se afi rmar que há, atualmente, um grande índice de desemprego, levando o trabalhador a buscar trabalhos temporários, parciais e precários como alternativa a sua sobrevivência, os quais trazem sérios prejuízos a sua condição de vida refl etindo diretamente a sua saúde. ( ) Tanto a Medicina do Trabalho quanto a Saúde Ocupacional são importantes para a preservação da vida e saúde dos trabalhadores, sendo criadas para atender a uma necessidade da produção, assim, em relação aos trabalhadores, elas conseguem 35 RELAÇÃO ENTRE TRABALHO, SAÚDE E ADOECIMENTO Capítulo 1 dar conta da complexidade existente na relação saúde-trabalho. ( ) A participação ativa do trabalhador no processo saúde-doença e não apenas como coadjuvante da atenção à saúde é o que distingue o modelo teórico da Saúde do Trabalhador dos demais modelos. ( ) A Constituição Federal de 1988 propiciou a legitimação do tema Saúde do Trabalhador, garantindo a todos os trabalhadores assalariados a atenção integral à saúde. Assinale a alternativa que apresenta a sequência CORRETA: a) ( ) V – F – V – V – F – V – F. b) ( ) V – F – F - V – F – V – V. c) ( ) F – F – V – V – V – F – F. d) ( ) V – V – F – F – V – F – V. e) ( ) V – V – V – V – V – V – V. 3 PRINCIPAIS AGRAVOS À SAÚDE DO TRABALHADOR NO BRASIL Nesta seção, serão abordados os principais agravos à saúde do trabalhador, mas antes disso é necessário transitar entre a relação do processo saúde-doença e o trabalho. 3.1 PROCESSO SAÚDE/DOENÇA E SUA RELAÇÃO COM O TRABALHO Para compreender o processo saúde/doença é essencial defi nir o conceito de saúde e de doença, mas sem fazer um detalhamento destes e sim enunciá-los para a compreensão do tema. Para você, o que é saúde? Já parou para pensar a respeito? 36 Atenção InteGral À Saúde do Trabalhador Durante muito tempo, entendia-se que saúde era sinônimo de ausência de doenças, sendo elas físicas ou mentais, e podemos dizer que ainda faz parte da compreensão de muitas pessoas, haja vista que é só perguntarmos por aí, como defi nem saúde, que ouviremos: saúde é não estar doente! Contudo, o conceito de saúde proposto pela Or ganização Mundial da Saúde (OMS), em 1947, “torna-a não só como ausência de doença, mas entende-a como um completo bem-estar físico, mental e social, rompendo com a concepção biomédica, anteriormente utilizada” (SOUZA E SILVA; SCHAIBER; MOTA, 2019, p. 2). Desta forma, esse conceito, o qual já foi ampliado pela OMS, permitiu que as dicotomias entre saúde e doença e corpo e mente fossem subjugadas. Em contrapartida, é utópico, inatingível, pois assumindo esse conceito, nenhum ser humano ou população será completamente saudável ou doente, uma vez que viverá, ao longo de sua existência, condições de saúde e de doença, consoante com suas condições de vida e de trabalho e suas potencialidades. Para melhor compreensão do termo saúde, é importante considerarmos algumas contribuições da fi siologia, da psicossomática e da psicopatologia do trabalho, conforme apresentadas por Dejours, Dessors e Desriaux (1993). A fi siologia assegura que o organismo está em constante processo de desequilíbrio e homeostase, buscando o equilíbrio por meio dos dispositivos de regulação do corpo, mas sem remeter saúde a um estado estável; a psicossomática estabelece que as causas afetivas e psíquicas são fatores desencadeantes de uma doença física; e a psicopatologia do trabalho informa que o trabalho e/ou a sua ausência pode trazer danos à saúde, podendo ser fonte de adoecimento ou não. O conceito de saúde utilizado nas políticas públicas de saúde e no SUS é o chamado Conceito Ampliado de Saúde: Em um sentido mais abrangente, a saúde é o resultante das condições de alimentação, educação, renda, meio ambiente, trabalho, transporte, emprego, lazer, liberdade, acesso a posse da terra e acesso aos serviços de saúde. É assim, acima de tudo, o resultado das formas de organização social de produção, as quais podem gerar desigualdades nos níveis de vida (BRASIL, 1986b, p. 4). Logo, considera que a saúde é infl uenciada por fatores condicionantes e determinantes, conceituando-a de maneira muito mais abrangente, levando em conta o fato de como o indivíduo vive, bem como suas condições de trabalho, materializando a saúde na vida das pessoas, colocando o trabalho em destaque. Fica patente que o trabalho (ou a sua ausência) é um dos determinantes da saúde e bem-estar do trabalhador e da sua família, uma vez que gera 37 RELAÇÃO ENTRE TRABALHO, SAÚDE E ADOECIMENTO Capítulo 1 renda, viabiliza condições materiais, permite inclusão social e tem dimensão humanizadora, que são importantes para a saúde, tendo efeito protetor e promotor da saúde. No entanto, o trabalho pode também agravar as iniquidades e a vulnerabilidade das pessoas, produzir degradação do ambiente e, sobretudo, causar sofrimento,mal-estar, adoecimento e morte dos trabalhadores. Para saber mais sobre saúde, indicamos o livro O que é Saúde?, autoria de Naomar de Almeida Filho. Editora Fiocruz, 2011. E a doença, o que é? O vocábulo “dolentia”, de origem latina, signifi ca dor, padecimento. Assim, doença pode ser considerada um conjunto de sinais e sintomas específi cos que alteram o estado normal de saúde, afetando o ser vivo. Na Antiguidade, supunha-se que a saúde era dádiva e a doença era castigo. Hipócrates, em seu tratado Ares, águas e lugares, considerado o primeiro tratado de Saúde Pública, correlacionava os sintomas através das observações (defi nição de quadro clínico), bem como relacionava a água, os ventos e os locais de moradia com a saúde e/ou a doença, considerando que o bem-estar ou mal- estar da pessoa estava sob a infl uência do ambiente, dos locais que frequentava e da alimentação. Para ele, a doença era resultante do desequilíbrio entre os humores corporais (sangue, bílis negra e amarela e linfa ou fl euma), os quais eram constantemente renovados pela comida ingerida e digerida. Séculos mais tarde, surge a teoria miasmática, que perdura até o século XIX, a qual depreende que as doenças eram resultantes de emanações resultantes do acúmulo de dejetos, consistindo na crença de que a doença era transmitida pela inspiração de “gases” de animais e dejetos em decomposição. Com a descoberta da microbiologia, a ciência avançou, assim como a medicina, tendo como pioneiros os cientistas Louis Pasteur e Robert Koch, os quais defenderam a teoria microbiana das doenças, tendo as bactérias como protagonistas de diversas doenças. A visão unicausal (para cada doença um agente etiológico) impera. Já a partir do século XX, identifi ca-se o predomínio da multicausalidade, atribuindo a gênese da doença a múltiplos fatores, os quais estão inter- relacionados em redes de causalidade, com ênfase nos condicionantes individuais. 38 Atenção InteGral À Saúde do Trabalhador Portanto, a doença, seu processo de desenvolvimento, suas causas e consequências, conquistam, desde os primórdios da civilização humana, o pensamento do homem no intuito de controlá-la ou evitá-la. O artigo O indivíduo, a sociedade e a doença: contexto, representação social e alguns debates na história das doenças complementa o tema e pode ser acessado em: http://www.revistas. usp.br/khronos/article/download/150982/149951. Agora que já tecemos comentários acerca da saúde e da doença, vamos adentrar no processo saúde/doença e sua imbricação com o trabalho. Primeiramente é relevante esclarecer que o termo processo saúde-doença é utilizado para fazer referência a todas as variáveis envolvidas na saúde e na doença, considerando que ambas estão interligadas e são resultados dos mesmos fatores, os quais são biopsicossociais, sendo que essa concepção permeia todas as políticas públicas de saúde. Assim, o processo saúde-doença é um fenômeno biológico e social que possui infl uências históricas, culturais, sociais e econômicas, o qual é infl uenciado pela produção e distribuição de riquezas pela sociedade e, portanto, é um processo dinâmico e coletivo, pois depende das relações estabelecidas entre os homens, grupos e sociedades, bem como das relações com o meio ambiente. Convidamos você a assistir ao vídeo Reaprendendo a olhar, o qual apresenta distintas formas de pensar e de promover a saúde. Disponível em: https://www.youtube.com/ watch?v=qnugCPV6m2o. Há muito tempo, a relação saúde-trabalho-doença vem sendo objeto de estudos por conta da sua relevância para o homem e para a sociedade. 39 RELAÇÃO ENTRE TRABALHO, SAÚDE E ADOECIMENTO Capítulo 1 O processo saúde-doença desencadeado pelo ambiente laboral requer uma ampla avaliação e carece de uma análise holística do indivíduo, pois muitas vezes o trabalhador pode estar doente sem apresentar sinais físicos de enfermidade, mas estar com sua saúde mental afetada. Cabe mencionar que para entender a relação existente entre a tríade saúde- doença-trabalho e melhorar as condições de vida e laborais do trabalhador, tem- se três formas de compreensão, as quais já foram evidenciadas anteriormente, ou seja, a Medicina do Trabalho (centrada no trabalhador doente), a Saúde Ocupacional (focada nos postos de trabalho) e a Saúde do Trabalhador (visando garantir a atenção integral ao trabalhador), conforme Codo e Jacques (2002). Assim, o conceito saúde, no campo do trabalho, se relaciona com a Medicina do Trabalho, buscando as etiologias das doenças e dos acidentes de trabalho em riscos específi cos e de modo isolado, com predomínio de atuação no efeito e não na causa (MINAYO-GOMES; THEDIM-COSTA, 1997). Evidencia-se, assim, que a meta principal é o bom funcionamento do processo de trabalho e não a prevenção da saúde do trabalhador. Como bem demonstrado em outros momentos do nosso texto, a articulação entre trabalho, saúde e doença dos trabalhadores tem sido objeto de estudo e refl exões, há séculos, tendo sido utilizadas diferentes lentes para olhar essa temática por parte de historiadores, médicos, fi lósofos, escritores e cientistas. O estabelecimento entre a relação saúde-doença-trabalho não é tarefa simples, pois envolve a história de vida e de trabalho do indivíduo. Além do mais, por mais que se pense a saúde na dimensão coletiva, é o ser humano que adoece e esse processo é específi co e de forma individualizada. Desse modo, a saúde e o adoecimento são experiências subjetivas, intuitivas, de difícil descrição e mensuração e, conforme Minayo-Gomes e Thedim-Costa (1997), os trabalhadores, via de regra, vinculam a saúde com a capacidade de poder trabalhar e a doença com a impossibilidade. Há que se considerar que é a descrição detalhada do ambiente e da situação de trabalho, assim como o relato por parte do trabalhador sobre a sua percepção quanto à infl uência do trabalho no seu processo de adoecimento, é primordial para estabelecer o nexo causal entre trabalho e doença. Ademais, é fundamental a contemplação de técnicas (questionários, entrevistas, teste etc.), observações do contexto e estudos epidemiológicos para a corroboração dessa relação. O processo saúde-doença no âmbito do trabalho é mutável, assumindo formas históricas, pois os agentes causadores das doenças relacionadas ao trabalho e dos acidentes de trabalho são problemas sociais decursivos do 40 Atenção InteGral À Saúde do Trabalhador ambiente, da organização e das relações sociais de trabalho. Nessa direção, o trabalho é um dos determinantes do processo saúde-doença, podendo signifi car saúde e equilíbrio físico e mental ou causar sofrimento e adoecimento advindos da exposição às condições de trabalho defi cientes e à organização do trabalho inadequada, as quais são permeadas por fatores de riscos ocupacionais. Outro aspecto que merece atenção é o princípio da bidirecionalidade pessoa- ambiente, pois se relacionam e se infl uenciam de forma recíproca e contínua, tendo em vista que não existe trabalhador sem meio ambiente de trabalho e não há meio ambiente de trabalho sem trabalhador. Portanto, seria leviano acreditar que somente o ambiente exerce infl uências positivas e negativas sobre a pessoa sem receber infl uência desta (ALMEIDA, 2013). Além disso, o trabalhador tem papel fora do seu ambiente laboral, isto é, há interação com outras dimensões que infl uenciarão o seu processo saúde-doença, assim como um ambiente familiar desarmônico pode ser prejudicial para o ambiente laboral e/ou um ambiente de trabalho desequilibrado poderá infl uenciar a vida familiar do trabalhador. Para ampliar seus conhecimentos, acesse a Cartilha Adoecimento ocupacional: um mal invisível e silencioso, disponível em: https://enit.trabalho.gov.br/portal/images/Cartilhas/Cartilha- doencas-ocupacionais.pdf. Antes de discorrermos sobre os agravos relacionados ao trabalho, é necessário recordarmos brevemente sobre os riscos ocupacionais.
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