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HISTÓRIA DA ARQUITETURA E URBANISMO III - ARQUITETURA E URBANISMO RENASCENTISTAS - Sílvia Eidt Monteiro 1 Noções preliminares A história da Arquitetura e do Urbanismo no período de transição entre a arquitetura medieval para a chamada arquitetura da renascença ou renascentista revela a recusa de um modo de vida e de todo um pensamento do Antigo Regime. Era preciso se distanciar do sentido de Idade das Trevas para um novo mundo, um renascimento propriamente dito, o que reitera o reconhecimento do Renascimento, ou Renascença, como um movimento intelectual e artístico originado da Itália nos séculos XIV e XVI. Tal movimento logo se espalharia para outros lugares da Itália, além de Florença, e também por toda a Europa, atingindo sobremaneira a França, Reino Unido, Alemanha, Rússia, assim como o Leste Europeu, guardadas suas particularidades. Mais especificamente, com o renascimento há uma mudança na concepção do homem e da natureza, em que o pensamento científico, político e cultural, incluindo as artes, passam a redirecionar a visão de mundo e do próprio homem. A Antiguidade Clássica é revisitada – a arte passa a se referenciar nos modelos clássicos e uma visão humanista/antropocêntrica e individualista começa a operar novas concepções. Deste modo, damos início à unidade, partindo para uma reflexão sobre o renascimento italiano, suas influências na arquitetura por meio das artes e do pensamento daquilo que viria a ser moderno. 2 Renascimento italiano e a arquitetura Sobre o renascimento italiano, a concepção historiográfica que se tornou clássica por meio de um dos primeiros trabalhos reconhecidos pelos acadêmicos foi do historiador Jacob Burckhardt, publicada no livro A cultura do Renascimento na Itália (1867). Neste sentido, é dado aos italianos, e sobretudo ao pintor e arquiteto Giorgio Vasari (1511-1574), certo pioneirismo do renascimento das artes italianas, passando direcionar, de certa maneira, os juízos críticos e estéticos do seu tempo e até posteriormente. Perceba, na imagem que segue, o estilo de Vasari e como ele influenciaria a geração de renascentistas com seus afrescos e ambientação na arquitetura da edificação em questão. Figura 1 - Afresco pintado por Giorgio Vasari na cúpula da catedral de Florença, ItáliaFonte: BlackMac, Shutterstock, 2020. Figura 2 - Outros enquadramentos do afresco pintado por Giorgio Vasari na cúpula da catedral de Florença, ItáliaFonte: wjarek; Zvonimir Atletic, Shutterstock, 2020. Veja, agora, outros enquadramentos dentro da cúpula da catedral de Santa Maria da Flor em Florença, na Itália, trazendo a dimensão da obra de arte e da arquitetura em composição ao fazer artístico. Trata-se de um projeto maior de arte e arquitetura renascentistas. Ao todo, são 3600 m2 de afrescos, que foram realizados por Giorgio Vasari e Federico Zuccari durante 1572 a 1579. Observa-se que as artes em geral, mas sobretudo a pintura, a escultura e a arquitetura, acompanham o novo pensamento e apresentam o novo no antigo, ou seja, é possível notar a grandiosidade, a suntuosidade e uma nova visão e desenho da relação humana com as coisas e com Deus. Um prenúncio do que viria a se desenvolver mais fortemente como uma arquitetura barroca no lugar do gótico. A imagem do homem se revigora e se redefine diante da grandiosidade divina em seu julgamento final. As cúpulas sobem para o alcance do céu; a luz do sol passa a adentrar as igrejas, catedrais, palácios e palacetes; as colunas ganham um formato à moda antiga, ou melhor, clássica. Mas, mais do que isso, como aponta Gombrich (1999, p. 151), A ideia de um renascimento associava-se na mente dos romanos à ideia de uma ressurreição da "grandeza de Roma". O período entre a idade clássica, para a qual voltavam os olhos com orgulho, e a nova era de renascença, que aguardavam com esperança, era meramente um melancólico interregno. "O Período Intermédio". Assim, a ideia de uma renascença foi responsável pela ideia de que o período interposto era uma Idade Média — e ainda usamos essa terminologia. Para além da arte gótica do período intermédio, como os renascentistas italianos (e os modernos) passaram a olhar e definir o período pós-queda do Império Romano até o renascimento (o ressurgir da cultura romana), começava-se a projetar monumentos, igrejas, palácios com características clássicas que seriam também encontradas em outros renascentistas além de Vasari, como: a harmonia dos elementos, o perfeccionismo nos detalhes, assim como no todo da obra, o equilíbrio, as cores, a proporcionalidade, estudos de anatomia na proporcionalidade das figuras humanas, simetria, perspectiva, conforme os parâmetros do ideal de beleza clássico e os novos métodos e técnicas empreendidos durante a renascença. A seguir, traremos um recorte sobre a arquitetura renascentista italiana, abordando alguns de seus mais destacados arquitetos-artistas por meio de textos e imagens, além de noções de conceitos e técnicas desenvolvidos para a arquitetura desse período. 2.1 Arquitetura renascentista italiana As obras de arte renascentistas, considerando as arquitetônicas, têm em Florença seu berço ainda no século XV. Por isso mesmo trouxemos para estes primeiros tópicos alguns exemplos de renomados pensadores, pintores, escultores e arquitetos do renascimento italiano. Entre eles, encontramos alguns dos maiores representantes da arte renascentista e também referências da arquitetura renascentista: Donatello, Michelangelo, Leonardo da Vinci, Masaccio e Brunelleschi. Este último elenca no rol de suas obras a Catedral de Florença, com ênfase na construção da cúpula da catedral, que apresenta um embasamento clássico da construção gótica, porém com inovação da nova tendência do classicismo (neoclassicismo) que se instaurara naquele momento histórico. Os italianos do século XIV acreditavam que a arte, ciência e erudição tinham florescido no período clássico, que todas essas coisas tinham sido destruídas pelos bárbaros do Norte e que lhes cumpria a missão de ajudar a reviver o glorioso passado e, portanto, a inaugurar uma nova era. Em nenhuma cidade esse sentimento de confiança e esperança era mais intenso do que em Florença, berço de Dante e de Giotto. Foi nessa próspera cidade de mercadores, nas primeiras décadas do século XV, que um grupo de artistas se dispôs deliberadamente a criar uma nova arte e a romper com as ideias do passado. O líder desse grupo de jovens artistas florentinos foi um arquiteto, Filippo Brunelleschi (1377- 1446). Brunelleschi estava empregado na conclusão da Catedral de Florença. (GOMBRICH, 1999, p. 152) Brunelleschi já trabalhava na construção do zimbório da abóbada da Catedral de Florença, que possuía um estilo gótico, contra o qual o jovem arquiteto se rebelou e passou a desenvolver novas técnicas construtivas que consolidaria um novo tempo para os projetos arquitetônicos de parte da Itália e depois se alastraria para outras localidades. Quando foi chamado a projetar novas igrejas ou outros edifícios, decidiu abandonar inteiramente o estilo tradicional e adotar o programa daqueles que ansiavam por um renascimento da grandeza romana. Consta que ele viajou para Roma e mediu as ruínas de templos e palácios, fazendo esboços de suas formas e ornamentos. Jamais foi sua intenção copiar literalmente esses antigos edifícios. Dificilmente eles poderiam ser adaptados às necessidades da Florença quatrocentista. O que Brunelleschi tinha em mira era a criação de um novo processo de construção, em que as formas da arquitetura clássica fossem livremente usadas para criar novos modos de harmonia e beleza. O que continua sendo o aspecto mais surpreendente da realização de Brunelleschi é o fato de ter realmente conseguido concretizar seu programa. Durante cerca de quinhentos anos, os arquitetos da Europa e das Américas seguiram em sua esteira. (GOMBRICH, 1999, p. 153, grifos nossos) Podemos observar nas figuras a seguir algumas características dessa obra de Brunelleschi, conforme mencionado por Gombrich, na suntuosidade, na combinação das colunas, pilastras e arcos, assimcomo nos pormenores encontrados desde a moldura da porta com frontão clássico até as cores internas que transmitem a sobriedade clássica, a leveza e a elegância ao mesmo tempo que trazem uma nova abordagem de perspectiva, representação e concepção de espaço. Figura 3 - Cúpula da catedral de Florença construída por Filippo BrunelleschiFonte: np92, Shutterstock, 2020. Figura 4 - Praça da catedral de Florença com a cúpula de Brunelleschi ao fundoFonte: arkanto, Shutterstock, 2020. Perceba as colunas, pilastras, em uma mistura de estilos e riqueza de detalhes que passaram a compor uma arquitetura renascentista italiana e que foi fruto de vários artistas e arquitetos. O centro histórico de Florença compõe-se da catedral de Florença com a cúpula de Brunelleschi, o campanário de Giotto e o batistério de Florença, Loggia del Bigallo. Se por um lado o renascimento italiano deu um novo sentido e forma às arquiteturas de obras maiores, por outro lado foram também observadas suas características em construções menores, por ter constituído uma nova visão de como construir e habitar, fortalecendo a autoria de novos arquitetos. Segundo Pereira (2000, p. 12), A prática profissional de arquitetura experimentou uma transformação drástica durante os séculos XV e XVI na Itália. A autoria de um projeto arquitetônico era até então atribuído a um certo número de pessoas envolvidas em empreendimentos construtivos de natureza pública e/ou monumental (tais como empresários, membros de conselhos comunais e corporações de ofícios, oficiais de igrejas, artistas e mestres construtores). Esse “corpo de construtores” se reunia periodicamente para orientar e supervisionar o trabalho do capomaestro que dirigia o canteiro de obras. Ao final do século XV, nota-se que alguns arquitetos já são reconhecidos como autores de projetos arquitetônicos (tais como Leon Alberti, Luciano Laurana, Guiliano de Sangallo e Francesco di Giorgio), sedimentando um processo que se havia iniciado anteriormente com Fillippo Brunelleschi. Ainda em Pereira (2000) encontramos a explicação para o reconhecimento dos projetos arquitetônicos com nova autoria e, assim, a valorização do próprio arquiteto, com indícios de um projeto de arquitetura que passava a adentrar outras instâncias da vida social pública e privada: Um certo número de fatores determinou essa transformação, dentre os quais podemos mencionar a crescente demanda por destreza tecnológica requerida em projetos monumentais, o aparecimento de novos programas de projeto exigidos pelo crescimento dos burgos italianos, o desenvolvimento de novas técnicas de representação gráfica para o projeto arquitetônico, a progressiva familiaridade de exclusividade dos arquitetos como peritos nas demandas específicas da arquitetura clássica e o surgimento de um mercado privado para a arquitetura independente do estado e da igreja. (PEREIRA, 2000, p. 12) O próprio termo palácio (palazzo) foi cunhado no século XIV para se referir às novas residências particulares que passaram a ser projetadas e conhecidas como construções menores na Itália, sobretudo em Florença, reiterando a nova concepção de moradia de uma burguesia próspera e sedenta de status quo em uma sociedade ainda dominada por ideias aristocráticas e com o poder centralizado no Estado e na Igreja. Por isso, também foi importante o passo dado pelos renascentistas no âmbito dos projetos arquitetônicos, sejam para os monumentos e grandes obras como para as pequenas construções que passariam a caracterizar o projeto urbanístico do período. Figura 5 - Palácio San Giorgio, Calábria, sul da ItáliaFonte: Aliaksandr Antanovich, Shutterstock, 2020. Na imagem, é possível perceber uma área arqueológica na Praça Ipogea Piazza. Observa-se ao fundo uma construção que passara a ser típica de construções menores no período renascentista, conforme apontou o autor o pesquisador Pereira (2000). Essa nova burguesia reacendia uma concepção do belo por meio de um renascimento de valores culturais e artísticos clássicos. Era preciso distinguir-se e projetar-se em uma sociedade que ainda carregava a rigidez de valores e imobilidade social do Antigo Regime. A burguesia nascente tinha o poder econômico, mas ainda precisava constituir o seu ideal de beleza e distinção social. Assim, as artes e a arquitetura também eram um projeto de novos tempos. 2.2 Características da arquitetura do renascimento A arquitetura do renascimento ou renascentista é, reconhecidamente, um projeto ocidental da sociedade europeia desenvolvida em princípios do século XIV até o início do século XVII. De modo geral, trata-se de um deliberado revival de elementos da cultura material e de uma visão de mundo dos gregos e romanos. Suas características mais singulares podem ser resumidas em: · Retomada dos modelos clássicos da antiguidade, porém sem visar à cópia integral, e sim uma reedição dos feitos artísticos e arquitetônicos com novos materiais, técnicas e tecnológicas mais atuais. · Uso de arcos semicirculares e cúpulas hemisféricas. · As colunas seguiam a ordenação em três tipos: a dórica, a jônica e a coríntia substituindo os então pilares medievais. Dentro da noção humanista, essas colunas carregavam uma simbologia: o pé da coluna representava o pé do homem, o corpo seria a coluna e a cabeça estaria no capitel. · Ênfase na simetria, preocupação com a proporção e geometrização das formas, calculado matematicamente. Nesse sentido, a busca era por beleza e perfeição, do equilíbrio e harmonia na ordenação dos elementos compostos nas partes e no todo da obra. · A perspectiva passa a ser um estudo e uma questão de ótica entre os renascentistas, tratado de forma teórica, inclusive. Observe a figura a seguir, que traz um desenho produzido para a capital jônica do arquiteto renascentista italiano Leon Battista Alberti. Ele se encontra na obra Dez Livros de Arquitetura, de 1480. Observam-se as referências clássicas em seu projeto. Figura 6 - Desenho arquitetônico de Leon Battista Alberti (1404-1472)Fonte: Everett Collection, Shutterstock, 2020. Figura 7 - Igreja de Santo André projetada pelo arquiteto Leon Battista Alberti em 1471 em Mantova, ItáliaFonte: AJ165; Shutterstock, Shutterstock, 2020. Agora, confira outras obras desse mesmo arquiteto italiano que apresentam detalhes internos e externos de suas construções. As figuras a seguir apresentam a parte frontal, entrada e interior da Igreja de Santo André projetada por Alberti. Os arcos, as colunas, as pilastras, a iluminação interna, as cores claras, o uso do dourado já apontavam para a nova configuração arquitetônica do período. Ao serem observados pelo lado externo, os edifícios parecem mais simples ou rústicos do que geralmente é encontrado em seu interior, tanto do ponto de vista arquitetônico em relação às proporções das formas, intercalações das pilastras, posicionamentos das colunas, sobreposições das colunas, frontões da entrada para os internos, mas também o interior era contemplado geralmente com artes e elementos decorativos que engrandeciam a obra. Isso tudo apresentava um novo estilo e fazer artísticos na busca do belo e perfeito, seja nas pinturas e/ou esculturas. Quanto às colunas internas, era possível observar a mesma disposição apresentada nas características da arquitetura renascentista: primeiro as colunas dóricas, as jônicas e as coríntias, finalizadas por arcos ou triângulos (geralmente os frontões), dependendo do projeto. No entorno das igrejas, por exemplo, já começavam a configurar esse novo estilo arquitetônico, ambientando-se ao conceito e contexto da obra. A seguir, apresentamos a Basílica de Santa Maria Novella, uma das igrejas mais importantes de Florença. Chama a atenção o entorno já com características renascentistas de tendências clássicas, com um processo de urbanização na mesma linha estilística. Figura 8 - Basílica de Santa Maria Novella, projetada por Leon Battista AlbertiFonte: EnricoAliberti ItalyPhoto, Shutterstock, 2020. Nessa linha de pensamento, encontramos um raciocínio que corrobora com o exposto e reitera umaconceituação acerca do período do renascimento italiano para a arquitetura, especificamente no que se refere aos princípios arquitetônicos do período em análise. Segundo Lima (2008, p. 6, grifos nossos), Vitrúvio via na natureza a fonte de inspiração para a arquitetura. Esta visão, baseada nas regras e proporções da matemática e da geometria euclidiana, foi adotada por Alberti e manifestou-se no seu tratado de arquitetura. Esta nova forma de difusão do conhecimento, diferente do conhecimento oral medieval, favoreceu à percepção da arquitetura como ciência. O tratado de arquitetura podia transmitir mais que regras de construção. Aliás, o tratado deveria ser algo muito mais complexo que apenas materiais e técnicas construtivas, abordando desde a casa até a cidade. A visão vitruviana de que há princípios racionais que devem basear o pensamento arquitetônico, levou Alberti a considerar a matemática e a geometria como a base dos “princípios do desenho” na arquitetura. Surge, exatamente neste período, a diferenciação entre construção e arquitetura. A ideia de que há algo além da matéria e que pousa no campo estético. Esta é uma nova maneira de se perceber o mundo, que, em verdade, é produto das forças sociais. A separação entre construção e arquitetura surgia de maneira conceitual a partir de então, colaborando para concretização e conceituação de uma complexa teorização da arquitetura. Em suma, essas características estilísticas e os elementos da composição renascentista são fontes de inspiração e críticas ainda hoje. A crítica ao academicismo e ao neoclassicismo, mas, sobretudo ao formalismo e à arte como imitação será muito explorada na modernidade e pós-modernidade. De todo modo, não dá para desconsiderar o legado arquitetônico renascentista e as obras desses jovens arquitetos, bem seus estudos no campo da arquitetura e no processo de formalização acadêmica da área. 3 Nem tudo o que reluz é ouro, mas pode ser belo! Conforme temos estudado, os italianos fizeram ressurgir ideias, pensamentos e certa nostalgia de outros tempos, sobretudo da antiguidade clássica romana. No entanto, conquistaram adeptos em outras localidades com a audácia e empreendimentos renascentistas, conforme é apresentado por Gombrich (1999, p. 234, grifos nossos): As grandes realizações e invenções dos mestres italianos da Renascença causaram profunda impressão nos povos ao norte dos Alpes. Quem estava interessado no renascimento do saber acostumara-se a voltar os olhos para a Itália, onde a sabedoria e os tesouros da antiguidade clássica estavam sendo descobertos. Sabemos muito bem que, em arte, não podemos falar de progresso na acepção em que falamos do progresso do saber. Uma obra de arte gótica pode ser tão grande quanto uma obra da Renascença. Não obstante, talvez seja natural que para as pessoas desse tempo, que entraram em contato com as obras-primas do Sul, sua própria arte tenha parecido subitamente obsoleta e grosseira. Foram três as realizações tangíveis dos mestres italianos para as quais eles podiam apontar. Uma foi a descoberta da perspectiva científica, a segunda o conhecimento de anatomia — e, concomitantemente, a representação perfeita do belo corpo humano — e, em terceiro lugar, o conhecimento das formas clássicas de construção, as quais pareciam simbolizar, para as pessoas desse período, tudo o que era digno e belo. Convém ressaltar um fato bem lembrado pelo historiador da arte ao se referir da dificuldade inicial dos arquitetos em relação à assimilação das mudanças no campo das ideias e das artes empreendidas pelos renascentistas italianos, principalmente em outras localidades habituadas com a forma de projetar e construir anterior, conforme já mencionado ao tratar da construção da cúpula da Catedral de Florença pelo próprio arquiteto e escultor Filippo Brunelleschi. Os arquitetos eram, talvez, os que estavam em posição mais difícil. O sistema gótico, a que eles estavam acostumados, e a ressurreição de antigos edifícios são, pelo menos em teoria, profundamente lógicos e consistentes, mas tão diferentes entre si, na finalidade e no espírito, quanto é possível a dois estilos serem-no. Portanto, transcorreu muito tempo antes que a nova moda em construção fosse adotada ao norte dos Alpes. Quando isso ocorreu, foi com frequência pelas solicitações insistentes de príncipes e nobres que tinham visitado a Itália e queriam estar atualizados. Mesmo assim, os arquitetos só condescenderam muito superficialmente com as exigências do novo estilo. Demonstraram seu trato com as novas ideias colocando uma coluna aqui e um friso ali – por outras palavras, adicionando algumas formas clássicas ao seu vasto repertório de motivos decorativos. Na maioria dos casos, o corpo do edifício permanecia inteiramente inalterado. Existem igrejas na França, Inglaterra e Alemanha em que os pilares de sustentação da abóbada foram superficialmente convertidos em colunas, por se lhe afixarem capitéis, ou em que as janelas góticas se apresentam completas com seus característicos rendilhados, mas o arco ogival deu lugar a um arco redondo. (GOMBRICH, 1999, p. 234) Vale observar o interesse dos nobres com a novidade e o constrangimento dos arquitetos com as técnicas construtivas e com a nova estética. Porém foi esse conflito, também, que gerou mais estudos e criação de novos modos de conceber e construir. De qualquer modo, a estrutura da construção gótica com fachadas e adornos clássicos foi um método bastante comum no período de transição da arquitetura dita medieval para a renascentista com conceito clássica e depois neoclássica. Sendo assim, ainda que, conforme menciona Gombrich (1999, p. 235), um artista italiano seja adepto à perfeição das regras clássicas, com certeza desaprovaria tal “arranjo arquitetônico”, porém “se não as avaliarmos por qualquer padrão acadêmico pedantesco, poderemos frequentemente admirar a engenhosidade e a finura com que esses estilos incongruentes foram combinados.” Contudo, o mesmo historiador confirma que há “claustros regulares sustentados por fantásticas colunas em forma de garrafa, castelos repletos de torreões e botaréus, mas adornados com detalhes clássicos, residências citadinas cujos frontões e empenas apresentam frisos e estátuas à maneira clássica” (GOMBRICH, 1999, p. 235) . Se por um lado os artistas da renascença buscavam a perfeição e a quebra dos paradigmas da obra medieval como um todo, buscando a simetria, perspectiva, iluminação, beleza na forma e na técnica, representando o real e a natureza, assim como o homem em seu mais ínfimo detalhe, por outro, jovens artistas iniciaram um movimento, no século XVI, de buscar a superação da perfeição dos seus mestres, criando inovação “à sua maneira”. A seguir, abordaremos o maneirismo como uma crítica à produção artística italiana e como o início de uma tendência barroca nas artes e arquitetura. 3.1 Maneirismo O maneirismo é uma forma mais atual de olhar para a produção artística italiana, sobretudo, do século XVI, entre o final do chamado Alto Renascimento e o que daria lugar a uma nova tendência artística e arquitetônica que tomaria a Europa e as Américas – o barroco. O termo se desdobra do que Giorgio Vasari chamou de maniera para designar certa leveza e sofisticação renascentistas em contraposição ao feito anteriormente. Lembrando que uma característica dos artistas e arquitetos renascentistas era a de conceituar e publicar seus estudos e desenhos, formalizando o seu feito de forma a deixar o legado de suas obras não só materialmente, mas academicamente também. Entretanto, a noção carrega uma carga pejorativa, principalmente quando os modernos olham para a retomada do classicismo de forma crítica, pois uma arte imitativa seria considerada menor pelos novos criativos modernos. Assim, o maneirismo é apontado por Argan (1999) como uma “fase de crise”. Também Gombrich (1999) apresenta uma interpretação das artes, artistas e arquitetos do período e esclarece mais alguns pontos do que se tornara o movimento maneirista: Pareciam argumentar que essas criações eram realmenteperfeitas – mas a perfeição não é eternamente interessante. Uma vez familiarizados com ela, deixa de causar qualquer excitação estética. Assim, visava-se agora o surpreendente, o inesperado, o insólito. É claro, havia algo ligeiramente falso nessa obsessão dos jovens artistas por superarem os mestres clássicos – o que levou até os melhores dentre eles a experiências estranhas e sofisticadas. Mas, de um certo modo, esses esforços frenéticos para fazer melhor eram, na verdade, o maior tributo que poderiam render ao gênio dos artistas mais velhos. Não fora o próprio Leonardo quem dissera: "É um mísero discípulo aquele que não for capaz de suplantar o seu mestre"? (GOMBRICH, 1999, p. 248, grifos nossos) Um exemplo típico do estilo maneirista que iniciara no período é o do arquiteto Zuccari, conforme figura a seguir. Figura 9 - Detalhe de porta e janela em fachada maneirista estilo Renascença de Palazzo Zuccari em Roma, ItáliaFonte: JOTAQUI, Shutterstock, 2020. Ainda que se manteve o quadrado para compor o projeto e a construção, a face contrariava o estilo e estética renascentistas, algo que foi propositadamente implantado pelos maneiristas. Se a porta e a janela com face de Zuccari demonstravam certo capricho e audácia por parte do pintor-arquiteto, mostrava, também, a busca de uma maior liberdade expressiva, algo que já se tinha referências no próprio Michelangelo (GOMBRICH, 1999). Um filme clássico sobre a história de Michelangelo Buonarroti é o Agonia e Êxtase (The agony and the ecstasy, EUA/Itália, 1965), dirigido por Carol Reed, baseado na obra de Irving Stone, roteirizado por Phillip Dunne. Apesar de ser um filme antigo, apresenta o conflito de Michelangelo em relação à obra na Capela Sistina, encomendada pela Igreja. No conflito, aparece o momento histórico e a rebeldia do artista com o seu tempo, ressaltando como a arte também estava ligada à política e ao mercado das artes. Em uma capela simples aparentemente, o artista imprimiu um dos maiores legados da arte dos nossos tempos. Vale a pena assistir. Dentre as características mais comuns dessa tendência que ficou conhecida como uma fase de crítica à arte e arquitetura renascentistas, culminam um certo desprezo pela proporção, racionalidade e equilíbrio das obras apoiadas no classicismo. Porém, pode ser entendida como um desdobramento próprio da arte renascentista, uma vez que cultivava aspectos dela, como elegância, beleza e iniciava uma fase de ornamentação e enunciação do gosto aristocrático, com a indicação de valores subjetivos e aspectos emocionais, sendo mais do que uma regularidade ou harmonia das figuras e/ou objetos. Alguns artistas, como El Greco, por exemplo, passaram a enfatizar figuras alongadas, às vezes desproporcionais e com ausência de perspectiva, diferentemente da visão hierarquizada e sem proporção da pintura medievalista, mas deliberadamente contra a perspectiva “realista” almejada pelos renascentistas, como se fosse possível pintar o real. A grande questão é que sempre haverá um ponto de referência e, na obra de arte, essa visão será sempre a do artista, porém nem sempre o espectador olhará pelo mesmo ângulo do criador. Essa será uma questão teórica abordada na modernidade, principalmente no século XX. Outro aspecto que se passou a observar nas obras dos maneiristas foi o uso de contrastes acentuados, incluindo as cores, os tons, os temas na composição, ou melhor, a exploração da realidade X imaginação aparece no lugar de uma arte representativa/imitativa da natureza ou realidade. Essa própria tensão construída nas obras de alguns jovens artistas maneiristas já era a bandeira desse movimento estético que recairia sobre o barroco e depois no rococó, que exarceberá os aspectos ornamentais e decorativos nos palácios dos burgueses e aristocratas. Ainda outros artistas se destacaram dentro do maneirismo fora da Itália, mais especificamente El Greco na Espanha, conforme já mencionado, conhecido por suas figuras alongadas e pintadas com cores frias, causando estranheza e mudando o conceito de perspectiva renascentista na pintura da época. Já o maneirismo francês teve seu auge ligado à Escola de Fontainebleau na primeira metade do século XVI. O que se nota com o maneirismo é que se inicia um processo de projetos de interiores, de decoração. Tanto que o maneirista Rosso projetou e desenvolveu a decoração da Grande Galeria Real do Palácio de Fontainebleau, por exemplo. No campo da arquitetura, o maneirismo italiano teve como adepto Giulio Romano, que decorou o Palazzo del Tè da corte de Federico Gonzaga, em Mântua, Itália, nas primeiras décadas do século XVI. Figura 10 - Palazzo del Tè, Mântua, ItáliaFonte: Paolo Perina, Shutterstock, 2020. Outro italiano que foi responsável por vários projetos no período do maneirismo foi Andrea Palladio, entre eles igrejas, monumentos e palácios. Entre suas obras, encontram-se: a Igreja de San Giorgio Maggiori em Veneza; o Teatro Olímpico e a Villa La Rotonda em Vicenza; a Villa Barbaro em Maser; palácios em várias localidades da Itália, entre outras obras. O arquiteto teve a maior parte de seus projetos concluídos a partir da segunda metade do século XVI. A seguir, abordaremos um pouco do projeto urbanístico da renascença. 4 O processo de urbanização no período renascentista Assim como o pensamento e os valores, o anseio por um novo jeito de morar também entrou na pauta do renascimento. Desse modo, o espaço também passou por uma geometrização, ou seja, uma mudança significativa da perspectiva do morar, do aparentar, do gosto. Um novo conceito, uma racionalização do espaço, um novo jeito de morar foi vislumbrado a partir do ideário e experiências racionais renascentistas. Como escreve Berriel (2004, p. 46, grifo nosso): O Renascimento sintetizou um grande experimento de racionalização da vida humana. Para construir a sua sorte e o destino da humanidade, os homens daquela época fixaram normas de conduta e quiseram regulamentar cada aspecto da vida prática. A lógica desta ideia levou à construção de critérios universalmente válidos para cada atividade, com normas, regras e códigos: surgiram assim os tratados sobre o perfeito cortesão, sobre o perfeito ministro, sobre o perfeito homem do mundo. Essa necessidade de impor uma racionalidade à vida individual e coletiva, inevitavelmente, chegou ao urbanismo renascentista. Diferentemente da aparente desorganização e falta de planejamento reinante nas cidades medievais, os renascentistas idealizaram cidades utópicas em que tudo funcionaria perfeitamente em seu devido lugar. Observou-se o início de um pensamento sobre a cidade que seria organizadamente bela e prospera, conforme pretendiam a nobreza europeia desejosa de poder que ostentava essa mudança. Contudo, para que fosse possível chegar a essa cidade, era preciso empreender outras mudanças, inclusive nos modos de pensar, ser e viver. Surgiram desses projetos de um novo urbanismo exímios construtores e arquitetos do então quattrocento dispostos a criar um estilo arquitetônico mais racional e geometrizado para as cidades e moradas. Assim, o renascimento traz um novo conceito de urbanização centrada na constituição de uma identidade construtiva e urbanística desse homem racional que busca uma nova identidade. Segundo Berriel (2004, p. 46), na concepção renascentista, “a cidade é o espelho e a dimensão do homem”. Teóricos passaram a pensar a cidade, arquitetos teorizam e idealizam a cidade dos sonhos. Um desses teóricos foi o arquiteto e Leon Battista Alberti, que escreveu sobre uma cidade mais social, pensando, inclusive, em bairros e ruas planejados e asilos para as pessoas mais pobres. Outro teórico foi Leonardo da Vinci, que pensou a cidade perfeita, ou ainda a cidade planificada de Antonio Avelino, que pensou até na educação das crianças pobres em colégios especiais. De modo geral, pode-se dizer que dois tipos de construções foram projetados e efetivados no período, começando na Itália e se espalhando para outras regiões: o palácio e a villa (PEREIRA, 2000). 4.1 Palácios Os palácios passam a representaruma nova edificação que não é nem uma fortaleza feudal, nem uma casa de um nobre ou homem rico, sendo considerados intermediários entre o conceito medieval e o renascentista. Feitos com blocos de pedra maciça, nem sempre ostentavam na parte exterior o luxo e beleza dos seus interiores e de seus pátios internos. Essa edificação foi muito ostentada pelos nobres e pelos mercadores afortunados do renascimento. Figura 11 - A cidade de Vicenza, Itália Figura 12 - Villa Barbaro projetado por Andrea Palladio, 1560, em Maser de Treviso, ItáliaFonte: Boerescu, Shutterstock, 2020. Figura 13 - Villa Almerico Capra Valmarana ou La Rotonda, projetada pelo arquiteto Andrea Palladio, Veneza, ItáliaFonte: kamienczanka, Shutterstock, 2020. Alguns desses palácios nas cidades italianas, além de moradia, constituíam-se em estabelecimentos comerciais, sobretudo os dos mercadores. Geralmente, nesses casos, o térreo abrigava lojas ou armazéns, e o primeiro andar a morada propriamente dita. 4.2 Villas O sentido da villa pode ser entendido como uma adaptação da antiga domus romana, ou seja, eram as casas urbanas de famílias abastadas baseadas na antiga habitação romana. Nelas, havia amplos terraços, galerias, jardins planejados, sendo geralmente casas muito luxuosas dependendo da situação econômica, política e social dos proprietários. Na antiga Roma, eram as residências urbanas dos patrícios. Esse tipo de construção também ressurge na cidade renascentista, com direito aos átrios com colunas e estátuas clássicas. O que se observa é que o projeto de urbanismo tentou criar um novo conceito de cidade e modificar a estética da habitação, agora mais centrada no indivíduo e na busca de valores antropocêntricos da Antiguidade Clássica, contrapondo-se à cidade medieval desorganizada e sem os valores que se desejavam implantar na época. REFERÊNCIAS AGONIA e Êxtase. Direção: Carol Reed; roteirização: Phillip Dunne. EUA/Itália, 1965, col.,138 min. ARGAN, G. C. Clássico anticlássico: o Renascimento de Brunelleschi a Bruegel. São Paulo: Companhia das Letras, 1999. BERRIEL, C. E. O. Cidades utópicas do Renascimento. In: Cienc. Cult. 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