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O NEOPAGANISMO EM TERRAS DE PIAGAS: EXPERIÊNCIAS NEOPAGÃS, ASPECTOS FORMADORES DO PIAGANISMO E A CONSTRUÇÃO DA VILA PAGÃ NO PIAUÍ (2007-2021) ANTONIO EMANUEL BATISTA DE SOUSA UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE PRÓ-REITORIA DE PÓS-GRADUAÇÃO CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA ÁREA DE CONCENTRAÇÃO: HISTÓRIA E ESPAÇOS LINHA DE PESQUISA: LINGUAGUENS, IDENTIDADES E ESPACIALIDADES O NEOPAGANISMO EM TERRAS DE PIAGAS: EXPERIÊNCIAS NEOPAGÃS, ASPECTOS FORMADORES DO PIAGANISMO E A CONSTRUÇÃO DA VILA PAGÃ NO PIAUÍ (2007-2021) ANTONIO EMANUEL BATISTA DE SOUSA NATAL-RN 2021 Universidade Federal do Rio Grande do Norte - UFRN Sistema de Bibliotecas - SISBI Catalogação de Publicação na Fonte. UFRN - Biblioteca Setorial do Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes - CCHLA Sousa, Antonio Emanuel Batista de. O neopaganismo em terras de piagas: experiências neopagãs, aspectos formadores do Piaganismo e a construção da Vila Pagã no Piauí (2007-2021) / Antonio Emanuel Batista de Sousa. - 2021. 188f.: il. Dissertação (mestrado) - Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes, Programa de Pós-Graduação em História, Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal, RN, 2022. Orientador: Prof. Dr. Sebastião Leal Ferreira Vargas Netto. 1. Neopaganismo - Dissertação. 2. Paganismo Piaga - Dissertação. 3. Ciberespaço - Dissertação. 4. Espaço Sagrado - Dissertação. 5. Vila Pagã - Dissertação. I. Vargas Netto, Sebastião Leal Ferreira. II. Título. RN/UF/BS-CCHLA CDU 94 Elaborado por Ana Luísa Lincka de Sousa - CRB-15/748 ANTONIO EMANUEL BATISTA DE SOUSA O NEOPAGANISMO EM TERRAS DE PIAGAS: EXPERIÊNCIAS NEOPAGÃS, ASPECTOS FORMADORES DO PIAGANISMO E A CONSTRUÇÃO DA VILA PAGÃ NO PIAUÍ (2007-2021) Dissertação apresentada como requisito parcial para obtenção do título de Mestre em História no Programa de Pós-Graduação em História; Área de Concentração em História e Espaços; Linha de Pesquisa: Linguagens, Identidades e Espacialidades; Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, sob a orientação do Prof. Dr. Sebastiao Leal Ferreira Vargas Netto. NATAL-RN 2021 ANTONIO EMANUEL BATISTA DE SOUSA O NEOPAGANISMO EM TERRAS DE PIAGAS: EXPERIÊNCIAS NEOPAGÃS, ASPECTOS FORMADORES DO PIAGANISMO E A CONSTRUÇÃO DA VILA PAGÃ NO PIAUÍ (2007-2021) Dissertação considerada aprovada para obtenção do título de Mestre em História no Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Rio Grande do Norte. BANCA EXAMINADORA _______________________________________________________ Prof. Dr. Sebastião Leal Ferreira Vargas Netto – UFRN (Orientador) _______________________________________________________ Prof. Dr. Magno Francisco de Jesus Santos – UFRN (Avaliador Interno) _______________________________________________________ Profa. Dra. Beatriz de Miranda Brusantin – UNICAMP (Avaliadora Externa) Natal, 02 de dezembro de 2021 DEDICATÓRIA A todos os contadores de “histórias de trancoso”. AGRADECIMENTOS A um Deus que estou cultivando, pelas oportunidades, por me conceder serenidade e discernimento para reconhecer situações e superar adversidades. A meu orientador que foi mais que um mestre, mas um amigo, sempre com muita paciência, cumplicidade e compreensão. A meu grande amigo Jardel, por todo apoio e motivação que me passou na condução desta pesquisa e, sobretudo, pela amizade, pelas conversas sobre as incertezas da vida, pelos filmes compartilhados, pelas cervejas bebidas, pelos jogos de cartas e dominó, noite adentro. Obrigado por tudo, meu amigo. A meu amigo Rafael Nolêto, que através desta pesquisa pude construir uma grande amizade. Por sempre ter andando lado a lado comigo na construção deste trabalho, por todo apoio, por toda ajuda e disponibilidade de sempre. Um exemplo de coragem e determinação para fazer acontecer o que acredita, foi uma honra construir uma pequena história sobre um pouco de sua trajetória de vida. As amizades que fiz em Natal. Em primeiro lugar, à Tamires, menina alegre e gentil, que já conhecia desde a graduação, mas só no mestrado tivemos a oportunidade de conceber uma singela relação de amizade. À Aressa, pela boa companhia, sempre com irreverência e leveza em um mundo acadêmico sisudo e cinza. À Kallyne, parceira de orientador e de tema de pesquisa, além de um grande ser humano, sempre solicita nas ocasiões que necessitei de ajuda. A meus amigos de moradia. A Douglas, um amigo, que, assim como eu, chegou em Natal com a coragem de encarar um curso de mestrado mesmo com tantos desafios. À Ingrid, pela pessoa maravilhosa que tive a oportunidade de conhecer melhor com a convivência, sempre com boas conversas e sorrisos. A minha família, a razão pelo qual eu batalho todos os dias, e por isso tive que encarar as distâncias físicas para seguir no sonho. Em especial, a minha mãe Lucia, meus irmãos Paulo e Mikaely, meu pai Luís Manoel, meu cunhado Júnior e meu sobrinho amado, José Davi. Como também a meu pai Manoel Filho pela ajuda financeira que me deu por todo este período. À Universidade Federal do Rio Grande do Norte, e, em especial, ao Programa de Pós- Graduação em História por promover a oportunidade de curso de mestrado nesta instituição renomada, assim como a todos os excelentes professores do curso que lançaram suas contribuições para esta pesquisa. A todos, meus agradecimentos e reconhecimento de que sem cada um de vocês esta imensa tarefa teria sido muito mais difícil. Vocês foram a certeza de que a pesquisa é individual, mas nunca sozinha. Obrigado! Todos os meus livros são simples tentativas de rodear e devassar um pouquinho o mistério cósmico, esta coisa movente, impossível, perturbante, rebelde a qualquer lógica, que é chamada realidade, que é a gente mesmo, o mundo, a vida. Antes o obscuro que é o óbvio, que o frouxo. Toda obra contém inevitável dose de mistificação. Toda mistificação contém boa dose de inevitável verdade. Precisamos também do obscuro. Guimarães Rosa RESUMO Este estudo analisa como foram construídas e instituídas determinadas relações espaciais oriundas de experiências socioreligiosas e históricas de neopagãos, em especial, os ―novos piagas‖, entre os anos de 2007 e 2021. Primeiramente, foi realizada uma breve abordagem historiográfica acerca da constituição da noção de neopaganismo, bem como discutiu-se a polissemia deste conceito, destacando suas temporalidades e relações de neopagãos com algumas espacialidades ao longo dos séculos XIX e XX. Situado o debate, sobretudo a partir de práticas provenientes do neopaganismo no Brasil, foram analisados aspectos relacionados às experiências e sociabilidades de neopagãos piauienses, tanto as que ocorreram presencialmente, quanto as que foram forjadas por meio dos ciberespaços. Utilizando diversos suportes documentais, produzidos principalmente pelo jornalista Rafael Nolêto, busquei compreender, também, como neopagãos piauienses fundamentaram e sistematizaram a vertente religiosa politeísta denominada de ―Paganismo Piaga‖ ou, simplesmente, ―Piaganismo‖, e, por seguinte, construíram uma Vila Pagã (localizada na zona rural do município de José de Freitas-PI),no qual foi instituída como um espaço sagrado. Para o desenvolvimento destas discussões, partiu-se, em cada capítulo, de algumas antinomias que atravessam o conceito de neopaganismo e questões a cerca das fundamentações e sistematizações do Paganismo Piaga, com o intuito de identificar aspectos que envolvem suas devidas temporalidades e as relações espaciais decorrentes. Palavras-chave: Neopaganismo; Paganismo Piaga; Ciberespaço; Espaço sagrado; Vila Pagã. . ABSTRACT This study analyzes how certain spatial relationships arising from socio-religious and historical experiences of neopagans were built and instituted, in particular, the "new piagas", between the years 2007 and 2021. Firstly, a brief historiographical approach was carried out on the constitution of the notion of neopaganism, as well as the polysemy of this concept was discussed, highlighting its temporalities and neopagan relations with some spatialities throughout the 19th and 20th centuries. Based on the debate, especially from practices originating from neopaganism in Brazil, aspects related to the experiences and sociability of Piauí neopagans were analyzed, both those that occurred in person and those that were forged through cyberspaces. Using various documental supports, produced mainly by the journalist Rafael Nolêto, I also sought to understand how Piauí neopagans founded and systematized the polytheistic religious strand called ―Piagan Paganism‖ or simply ―Piaganism‖, and, subsequently, built a Pagã Village. (located in the rural area of the municipality of José de Freitas-PI), in which it was established as a sacred space. For the development of these discussions, in each chapter, we started with some antinomies that cross the concept of neopaganism and questions about the foundations and systematization of Piaga Paganism, in order to identify aspects that involve its due temporalities and spatial relationships arising. Keywords: Neopaganism; Piaga Paganism; Cyberspace; Sacred space; Pagan Village. LISTA DE SIGLAS EMPI - Encontro Místico do Piauí............................................................................................17 ESPPI - Encontro Social de Pagãos do Piauí............................................................................66 13 LISTA DE IMAGENS Imagem 1: Vista Panorâmica da Vila Pagã, novembro de 2017..............................................18 Imagem 2: Primeira edição do então folhetim ―O Bruxo‖ lançada em março de 2007...........................................................................................................................................66 Imagem 3: Trigésima segunda edição do jornal ―O Bruxo‖, lançada em julho de 2009...........................................................................................................................................72 Imagem 4: Encontro ―Magia na ilha‖, com os bruxos Arnold e Rafael Nolêto, as bruxas Nelma, Naiane e Bianca............................................................................................................73 Imagem 5: Registro rupestre localizado no Parque Nacional de Sete Cidades – Piauí.........100 Imagem 6: Capa de livreto informativo acerca do Paganismo Piaga.....................................105 Imagem 7: Representação da Roda do Ano Piaga.................................................................114 Imagem 8: Estrutura detalhada (e mais atualizada) com as áreas construídas e projetadas na Vila Pagã.................................................................................................................................121 14 SUMÁRIO INTRODUÇÃO.......................................................................................................................15 CAPÍTULO I - “A busca de raízes no passado”: historicidades e espacialidades do neopaganismo............................................................................................................................30 1.1. Neopaganismo: uma breve abordagem sobre a polissemia do termo................................32 1.2. Gerald Brosseau Gardner: ―um bruxo de seu tempo‖ ....................................................40 1.3. A Wicca nas Américas: uma breve abordagem voltada para a sua circulação nos Estados Unidos e no Brasil.....................................................................................................................49 CAPÍTULO II - “Em pleno século XXI, no auge da civilização tecnológica, a magia continua em alta”: experiências neopagãs no Piauí................................................................60 2.1. “Levando conhecimento e magia aos seus leitores”: Jornal O Bruxo...........................63 2.2. ―Rádio Grito de Bruxa”: um podcast neopagão.............................................................78 2.3. “Bruxaria e neopaganismo na rede virtual”: a TV Mística..........................................85 CAPÍTULO III “Entusiastas do movimento de resgate”: fundamentos do Paganismo Piaga e a construção da Vila Pagã............................................................................................92 3.1. A invenção de uma tradição: o Piaganismo....................................................................96 3.2. A sistematização do Paganismo Piaga: mitologia, cultura popular e deuses ..............104 3.3. “Um tesouro místico no interior do Piauí”: a Vila Pagã.............................................119 CONSIDERAÇÕES FINAIS...............................................................................................128 FONTES.................................................................................................................................133 REFERÊNCIAS ...................................................................................................................134 ANEXOS................................................................................................................................140 15 INTRODUÇÃO “[...]o paganismo é um movimento cultural e religioso, composto por diversas formas de espiritualidades pagãs. Essas espiritualidades têm em comum 3 elementos: politeísmo, culto à natureza e aos ciclos naturais e culto à ancestralidade sagrada. 1 Rafael Nolêto 1 Entrevista com Rafael Noleto: bruxo piauiense, sacerdote pagão e idealizador do círculo piaga e da vila pagã. Disponível em: https://causosassustadoresdopiaui.wordpress.com/2017/03/26/entrevista-com-rafael-noleto- bruxo-piauiense-sacerdote-pagao-e-idealizador-do-circulo-piaga-e-da-vila-paga/. Acessado em: 28 de outubro de 2021. 16 O sistema religioso denominado de neopaganismo é uma tendência atribuída por estudiosos e adeptos para se referirem a uma variedade de vertentes religiosas politeístas contemporâneas, que, por sua vez, têm crescido bastante na Europa e nas Américas desde a segunda metade do século XX. A vertente mais influente e predominante é a Wicca, 2 também chamada de moderna bruxaria pagã, sistematizada a partir das concepções teóricas do inglês Gerald Brosseau Gardner. 3 Nesse contexto, o neopaganismo de vertente Wiccana foi pensado por Gerald Gardner como uma continuação de um eventual paganismo antigo europeu, adaptado às inquietações do mundo contemporâneo. Todavia, esse entendimento é alvo de questionamento sob duas hipóteses, principalmente no campo historiográfico, tanto no que diz respeito à possibilidade de existência de um paganismo definido e organizado em um período pré-cristão, como se realmente seria possível reconstruírem, ressignificarem ou mesmo resgatarem costumes e práticas religiosas que teriam sobrevivido na obscuridade porcentenas de anos na Europa. Em termos metodológicos específicos, os trabalhos antropológicos que aqui foram dialogados costumam tomar a primeira hipótese citada no parágrafo anterior não somente como possível, mas fundamental para o entendimento do conceito de neopaganismo. Isto posto, segundo a antropóloga Danieli Soares (2007) ―[...] a contemporaneidade possui novas formas de lidar com as manifestações em geral, sobretudo a partir da década de 1950, quando a bruxaria é adaptada para os ‗tempos modernos‘ e acaba ressurgindo com novas características e, desta forma, a Antiga Religião é ressignificada‖. 4 Neste seguimento, na historiografia, independentemente do questionamento se de fato existiu ou não uma ―Antiga Religião‖ a ser ressiginifacada, analisei a produção deste conceito dentro dos debates e visões de época em que o mesmo foi elaborado. O discurso comum entre adeptos das mais variadas vertentes que compõe o neopaganismo é fincado na ideia de que suas crenças estão promovendo ―[...] o ressurgimento na sociedade contemporânea de uma espiritualidade centrada na percepção da Terra como sagrada‖. 5 Portanto, como o neopaganismo é utilizado para designar diversas vertentes 2 BEZERRA, Karina Oliveira. Paganismo contemporâneo no Brasil: a magia da realidade. Tese (Doutorado) - Universidade Católica de Pernambuco. Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião. Doutorado em Ciências da Religião, 2019. 3 A Bruxaria contemporânea surge em 1950, na Inglaterra, fundada pelo funcionário público inglês Gerald Brosseau Gardner, que mais tarde veio se tornar o Pai da Bruxaria Moderna. Ver: ARAÚJO, Kallyne Fabiane Pequeno de. Wicca, religião e natureza: Bruxaria e espaços sagrados no Brasil. Dissertação de Mestrado - Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Programa de Pós-Graduação em História e Espaços, 2020, p. 48. 4 SOARES, Danieli Siqueira. Rituais contemporâneos e o neopaganismo brasileiro: o caso da Wicca. Dissertação de mestrado. Recife: UFPE, 2007, p. 52. 5 OLIVEIRA, Rosalira. Ouvindo uma Terra que fala: o renascimento do Paganismo e a Ecologia. São Paulo: Revista Nures, 2009, p. 02. 17 religiosas, algumas vivenciariam espiritualidades completamente atuais, enquanto outras vertentes buscariam, pretensamente, reconstruir, resgatar ou reviver aspectos e costumes religiosos como encontrados em fontes históricas, arqueológicas, folclóricas e literárias. Dessa forma, mesmo nos dias atuais, muitos grupos ainda se veem como uma espécie de herdeiros históricos de um suposto paganismo antigo. 6 É importante ressaltar que compreendo os aspectos decorrentes de experiências neopagãs contemporâneas como formas de construção de vertente religiosa e não de um possível resgate de tradições pagãs. Segundo a antropóloga Rosalira Soares (2009), ―[...] trata- se, portanto, de uma reconstrução baseada em diversas fontes (históricas, mitológicas, artísticas, etc.) associada a uma tentativa de adaptar uma religiosidade antiga às inquietações presentes na sociedade contemporânea‖ 7 , porém, não acredito na hipótese de que, de fato, seja possível até mesmo reconstruir tradições alegadamente milenares pela própria limitação que o tempo impõe sobre o acúmulo de experiências humanas. O que nos chega atualmente de conhecimento sobre culturas e sociedades pré-cristãs são, em sua maioria, características gerais de práticas e costumes, e não um detalhamento específico sobre determinada prática religiosa ou espiritual. Considerando o crescimento do número de adeptos do neopaganismo e o surgimento de novas vertentes religiosas politeístas em determinados países ocidentais e partindo do interesse particular nas discussões sobre história dos conceitos 8 , tradições inventadas 9 , ciberespaço 10 , cibercultura 11 , e espaço sagrado 12 , este estudo tem como problemática discutir sobre relações espaciais resultantes de experiências que envolvem o neopaganismo, sobretudo no Piauí, entre os anos de 2007 e 2021, com enfoque, em especial, para o Paganismo Piaga e a Vila Pagã, localizada no município de José de Freitas-PI. No entanto, antes de adentramos 6 Ressalta-se que não afirmo e nem defendo, aqui, que existiu de fato um ―Paganismo Antigo‖ organizado, definido e consolidado entre as mais diferentes culturas dos povos antigos onde hoje é a Europa Ocidental atual. Entendemos, portanto, que existiram diversas e variadas formas de crenças nas mais diferentes épocas, povos e localidades. O conceito de paganismo neste estudo é entendido como uma categoria geral que a Igreja Católica, desde a sua consolidação ainda no Império Romano, nomeou toda manifestação espiritual que não fosse cristã e logo mais foi retomado por intelectuais do século XIX e estudiosos do século XX como uma categoria para se pensar e definir um suposto passado religioso pré-cristão europeu. 7 OLIVEIRA, Rosalira. Ouvindo uma Terra que fala: o renascimento do Paganismo e a Ecologia. São Paulo: Revista Nures, 2009, p. 03. 8 KOSELLECK, R. Futuro Passado: Contribuição à semântica dos tempos históricos. Rio de Janeiro: Contraponto (PUC-Rio), 2006. 9 HOBSBAWN, Eric e RANGER, Terence. A Invenção das Tradições. – Tradução de Celina Cavalcante – Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1997. 10 FRONZA, Cristiane Guse. O ciberespaço como lugar de contracultura. Dissertação (mestrado). Universidade Federal de Mato Grosso. Instituto de linguagens. Programa de Pós-graduação em estudos de cultura contemporânea. 2014, p. 45. 11 LÉVY, Pierre. Cibercultura. São Paulo: Ed. 34, 1999. 12 ELIADE, Mircea. O sagrado e o profano. Trad. Rogério Fernandes. São Paulo: Martins Fontes, 1992 18 mais especificamente sobre o que seja o Paganismo Piaga ou Piaganismo e quais foram os seus desdobramentos, é importante destacar que os debates e experiências decorrentes do neopaganismo no Piauí ocorreram em um período em que a internet possibilitou muitos contatos entre iniciantes e simpatizantes. 13 De acordo com Rafael Nolêto (2020), jornalista, sacerdote Piaga e um dos fundadores da Vila Pagã, a internet foi e ainda é um espaço fértil para a sociabilidade entre neopagãos, pois foi ―[...] através de uma comunidade no Orkut, chamada ―Bruxaria/Wicca Teresina‖, que estabeleci contato com outros adeptos de diferentes caminhos da bruxaria‖. 14 Nesse sentido, através desse grupo foram promovidos os primeiros encontros públicos de neopagãos e simpatizantes em Teresina, em março de 2007, quando Rafael Nolêto participou pela primeira vez de um encontro neopagão, conhecido como ESP (Encontro Social Pagão). No primeiro encontro, Rafael Nolêto destaca que cerca de 13 pessoas estiveram presentes e que, ao longo de outros eventos, que geralmente aconteciam mensalmente ou a cada dois meses, a média de participantes era de 5 a 15 pessoas, ―[...] sendo que o maior número de pessoas foi na 10ª edição do Encontro Místico do Piauí (EMPI), em Teresina, realizado em 26 de outubro de 2008, contando com uma média de 40 pessoas‖. 15 O número de pessoas nos eventos variava bastante, pois a maioria das pessoas era apenas simpatizante ou curiosa. O período entre os anos de 2007 e 2012 foi marcado por diversas reuniões, produções de conteúdos e, mais especificamente, entre 2011 e 2012, por ―[...] reflexões pessoais sobre crenças e práticas minhas e de outros neopagãos de Teresina, vivenciamos juntos um processo de busca por uma identidade enquanto grupo‖. 16 Justamente pela falta de uma identidade ou de um eixo pelo qual pudessem ser reconhecidos, aquele grupo de jovens, paralelamente com a idealização da Vila Pagã, iniciaram um propósito de fortalecer vínculos e identidades, o qual desencadeou na formação do Círculo Piaga – grupo de estudos e práticas do que consideram ser uma ―herança pagã ancestral‖.17 Com isso, o Paganismo Piaga passou a se caracterizar como uma vertente neopagã baseada em estudos bibliográficos sobre neopaganismo, além de produções literárias e tradições tidas como folclóricas da região. Dessa forma, embora seja caracterizado também como um sistema religioso, o Paganismo Piaga é fundamentado em princípios filosóficos e 13 OSÓRIO, Andréa. Bruxas modernas na rede virtual: a internet como espaço de sociabilidade e disputas entre praticantes de Wicca no Brasil. In: Sociedade e Cultura. V.8, N.1, Jan/Jun, 2005. 14 NOLÊTO, Rafael. Entrevista concedida a Antônio Emanuel Batista de Sousa. Piauí, 27 de outubro de 2020. 15 Idem. 16 NOLÊTO, Rafael. Entrevista concedida a Antônio Emanuel Batista de Sousa. Piauí, 27 de outubro de 2020. 17 Idem. 19 culturais do neopaganismo em sua concepção mais geral por considerar a influência de diferentes panteões religiosos em sua estrutura. Desse modo, os adeptos desta crença se denominam ―Piagas‖, ―Pagãos Piagas‖ ou simplesmente ―Pagãos‖. A partir do envolvimento de Rafael Nolêto com outros neopagãos, como destacamos anteriormente, surgiu a oportunidade de se construir um espaço na zona rural do município de José de Freitas-PI, a partir de 2013, sendo mais adiante denominado de Vila Pagã, que, segundo seus membros, se tornaria um espaço de espiritualidade e conexão com a magia natural, configurando-se, atualmente, como uma colônia formada por adeptos dessa vertente religiosa, onde a consideram como um espaço sagrado. Em relação ao espaço da Vila Pagã, observemos a seguir a imagem 1: Possuindo templos, uma cantina, uma loja de livros, totens, artefatos, a Vila Pagã também dispõe de alguns outros lugares, como bosques temáticos, trilhas e montanhas. No entanto, o espaço nem sempre foi assim. De acordo com Rafael Nolêto, ―[...] para concretizar o projeto da Vila Pagã, por questões de logística, comecei a buscar uma área na zona rural, por ser possível encontrar locais mais amplos e mais próximos da natureza‖. 18 No processo de busca, o idealizador da Vila Pagã destaca que a meta estabelecida foi de achar um terreno de, no mínimo, 2 hectares, a, no máximo, 40 quilômetros de Teresina. Inicialmente, entre agosto 18 NOLÊTO, Rafael. Entrevista concedida a Antônio Emanuel Batista de Sousa. Piauí, 27 de outubro de 2020. Imagem 1: Vista Panorâmica da Vila Pagã, novembro de 2017 Fonte: instagram/vilapaga. Acessado em outubro de 2020. 20 e setembro de 2013, Rafael Nolêto adquiriu três hectares da propriedade em José de Freitas. A partir de então, foi comprando áreas vizinhas e ampliando a propriedade, até atingir uma área de 70.000 m² (7 hectares). Ainda em expansão, no ano de 2018, foi realizada a última modificação da Vila, com a aquisição de mais 2 hectares feitos por Eulália Rodrigues, integrante do Piaganismo. Atualmente, a Vila Pagã possui uma área comum de 90.000 m² (9 hectares), constituindo uma das maiores comunidades neopagãs – em território – do mundo, contando com um número de 8 membros autodeclarados neopagãos piagas e alguns simpatizantes, que, por sua vez, ―[...] pretendem resgatar o culto piaga, no qual consiste em uma espiritualidade que atenda às necessidades culturais, religiosas e sociais dos que corajosamente seguem nessa jornada em busca de reavivar o culto dos antigos deuses‖. 19 Desse modo, a pretensa releitura de tradições, através de saberes populares, literários e até científicos se fez com o intuito de ―resgatar‖ uma suposta herança ancestral sem tornarem-se adeptos de uma espiritualidade tida como ultrapassada e obsoleta para as necessidades do homem atual. Embora o grupo tenha esta pretensão de resgate sobre o culto Piaga, entendemos que releituras de conhecimentos, práticas e saberes feitas pelos neopagãos são formas de inventar tradições a partir de aspectos históricos, da cultura popular 20 e literários que fazem, somente, referência a supostos cultos ancestrais, e não uma forma de resgatá-los. Ainda no bojo das releituras, cabe ressaltar que os folhetos, mídias digitais, e os manuais de instrução de Rafael Nolêto tornam-se uma expressão da cultura religiosa do grupo em questão, no qual este é responsável pela produção de textos que informam sobre a narrativa desta pretensa religião ancestral e de um espaço (Vila Pagã) fundamental ao Piaganismo. Em linhas gerais, é importante discutir a respeito da historicidade do neopaganismo no Piauí e os seus desdobramentos com a criação e fundamentação da vertente religiosa Piaga e a construção da Vila Pagã, a fim de abordar sobre como ocorreu a sua formação, bem como buscando compreender quais são as práticas religiosas estabelecidas e como elas constituem um espaço religioso específico, em relação as religiosidades predominantes. Desse modo, partimos das reflexões sobre ―a questão do historiador‖, promovidas por Antoine Prost 19 NOLÊTO, Rafael. Caminhos Piagas: magia e ancestralidade do nordeste brasileiro. São Paulo: Clube dos Autores, p. 20, 2015. 20 Tomamos este conceito segundo a perspectiva de Ginzburg. Ver: GINZBURG, Carlo. O queijo e os vermes: o cotidiano e as ideias de um moleiro perseguido pela Inquisição. São Paulo: Cia. das Letras, 2006. 21 (2008), o qual afirma que é possível fazer história sobre tudo, pois é pela questão que se constrói o objeto histórico. 21 Acredito que este estudo contribui para futuros pesquisadores, pois aborda as relações temáticas entre história, espaço e religião, com o intuito de desenvolver uma pesquisa relativa à categoria de estudos sobre esoterismo na academia, 22 sobretudo por discutir a respeito das influências do neopaganismo no estado do Piauí. Além da relevância científica, estes temas, acima de tudo, são práticas sociais. O homem sempre produziu histórias e espaços, mesmo que não conhecessem formalmente uma ideia sistematizada acerca destes. Por outro lado, a religião sempre foi parte integrante da vida do homem, seja pela necessidade de entender ou questionar a vida. Em diversos países do Ocidente, a partir da segunda metade do século XX, ocorreram grandes mudanças culturais e comportamentais que partiram de grupos minoritários, pelas quais suas ações foram entendidas enquanto um movimento, este que foi denominado de ―Contracultura‖. Partindo da premissa de questionar os valores e ordens tradicionais, sobretudo no início da década de 1960, mobilizações com essa finalidade passaram a divulgar ideais libertários, tomada de consciência e transformação da conduta de jovens, que, quase de imediato, resultaram na expansão do debate sobre vários aspectos da vida (economia, sexualidade e religiosidade). 23 Antes da emergência contracultural, em meados da década de 1950, o contexto institucional permitiu o desenvolvimento de estudos universitários que subverteram e impulsionariam os debates sobre religião, que antes eram concentrados em institutos teológicos de tradição cristã. Dessa forma, entende-se que as instituições religiosas tradicionais já não conseguiam responder ou satisfazer alguns grupos e sujeitos, em relação a questões trazidas pelos dilemas que estavam surgindo naquele momento. À vista disso, as religiões tradicionais começaram a perder um pouco de sua influência social, na medida em que houveram a ascensão de novas espiritualidades, 24 quer dizer, a busca por novos modos de 21 PROST, Antoine. As questões do historiador. In: Doze Lições sobre a História. São Paulo: Autêntica, 2008, p. 75. 22 SILVA, Ana Rosa Cloclet da. CAMPOS, Marcelo Leandro de. O Esoterismo na Academia: uma análise do percurso histórico e historiográfico.Paralellus, Recife, v. 6, n. 13, p. 361-376, jul./dez. 2015. 23 A respeito da discussão, conferir o artigo de: SILVA, Eliane Moura da. Religião, Diversidade e Valores Culturais: conceitos teóricos e a educação para a Cidadania. Rever, Revista de Estudos da Religião Nº 2 / 2004 / pp. 1-14 ISSN 1677-1222. Disponível em: <https://www.pucsp.br/rever/rv2_2004/p_silva.pdf>. Acessado em: 20 de agosto de 2019. 24 A exemplo: as religiosidades orientais, a Wicca e Hare Krishna. A respeito do tema, ler o artigo: GUERRIERO, Silas. Caminhos e descaminhos da contracultura no Brasil: o caso do Movimento Hare Krishna. Revista Nures no 12. Núcleo de Estudos Religião e Sociedade – Pontifícia Universidade Católica – SP. https://www.pucsp.br/rever/rv2_2004/p_silva.pdf 22 se relacionar com o espiritual, partindo do ensejo contemporâneo de se contrapor às religiosidades majoritárias da sociedade. Essa coisa nova parece ser a busca por respostas espirituais aos dilemas dos homens e mulheres contemporâneos. Essa busca, associada a um desencanto com as religiões tradicionais, tem levado uma parcela considerável de pessoas a procurarem, não apenas no neopaganismo como também nas diferentes doutrinas orientais e no movimento da Nova Era, uma outra experiência religiosa. Sob esse aspecto, o crescimento destas formas de expressão religiosa pode ser interpretado como uma espécie de ―sinalizador‖, expressão de uma tentativa social mais ampla de contrabalançar as tendências majoritárias da nossa sociedade consumista e hiper- tecnológica, enfatizando valores como os vínculos comunitários, as relações interpessoais e a integração com a natureza. 25 Nessa perspectiva, suponho que a sociedade atual, da rápida inovação tecnológica e do consumismo intenso, produz relações cada vez mais distantes do ser humano com a natureza. É nesse aspecto que os debates que envolvem o neopaganismo enquanto um sistema religioso de cunho marcadamente alternativo frente às religiões predominantes no Ocidente, buscam estabelecer um discurso sobre conexão do homem com o meio ambiente, ou seja, outra maneira de encontrar respostas para dilemas espirituais presentes na atualidade. No entanto, compreende-se que a criação de diversas vertentes religiosas politeístas que vem ocorrendo, principalmente, desde a segunda metade do século XX, decorre também pelo fato da chamada desinstitucionalização do sagrado, que foi possibilitado pelo processo de secularização que o Ocidente vivencia desde o movimento iluminista, a partir do qual se continua experimentando esse ―encantamento no âmbito individual‖, 26 ocorrendo também coletivamente. Desse modo, a secularização possibilitou o questionamento e a oposição a valores religiosos institucionalizados pelas igrejas cristãs desde o iluminismo até os dias atuais. 27 A religião não é mais prerrogativa exclusiva das Igrejas. Decorrência do exílio do Sagrado é a privatização da religião. A secularização possibilitou o avanço do pluralismo e do trânsito religioso, uma vez que, não havendo mais amarras das instituições religiosas, o indivíduo pode manipular os bens simbólicos construindo seus arranjos religiosos sem medo de quebrar o eixo central onde está apoiado. Por isso, o que vemos hoje, não é uma profunda secularização na sociedade, mas uma permanência do encantamento no âmbito individual. 28 O pluralismo religioso não foi somente expandido para os indivíduos considerados cristãos, mas também para outras manifestações religiosas. Nesse sentido, o neopaganismo, enquanto sistema religioso que ganhou força com o movimento da contracultura foi Disponível em: <https://www.pucsp.br/revistanures/Revista12/nures12_silas.pdf>. Acessado em: 20 de agosto de 2019. 25 OLIVEIRA, Rosalira. Ouvindo uma Terra que fala: o renascimento do Paganismo e a Ecologia. São Paulo: Revista Nures, 2009, p. 02. 26 Expressão utilizada por Rubem Alves para definir o que poderíamos entender como um contínuo processo de secularização. 27 Lembrando que o processo de secularização do Cristianismo é a referência para se perceber a decorrência desses movimentos no recorte aqui analisado: a nível de Ocidente. 28 ALVES. Rubem, O que é religião? 7. Ed. São Paulo: Loyola, 2006, p. 66. https://www.pucsp.br/revistanures/Revista12/nures12_silas.pdf 23 desencadeado, sobremaneira, por questões referentes ao processo de secularização combinado com a crise de paradigmas tradicionais, isto é, ―[...] as poderosas ideologias, que tinham sido uma característica central da vida na maioria dos países ocidentais desde o final do século XIX estavam, já nos finais da década de 1950, começando a parecer opressivas e redundantes‖. 29 Os impactos na economia e sociedade ocidental, nesse período, propiciaram a valorização do individualismo e das coletividades minoritárias em detrimento das coletividades majoritárias, fato este que, contemporaneamente, ainda gera críticas a respeito das novas expressões religiosas. Muitas vezes as pessoas me perguntam se ‗isso‘ que eu estou pesquisando é uma religião, se é ritualizada ou é apenas uma brincadeira de adolescente que gosta de se vestir de preto. Acredito que perguntas como essa se devem a um certo desconhecimento sobre as formas de ritos e rituais presentes nas sociedades contemporâneas. 30 O desconhecimento, aqui, pode ser entendido a partir da contemporaneidade, que por sua vez traz novas e diferentes formas de lidar com os dilemas individuais e coletivos e, neste caso, com as manifestações religiosas neopagãs. De acordo com Martine Segalen (2002), 31 a ritualidade está a priori associada ao religioso por meio do sagrado. A partir disso e da afirmação de que as sociedades vivem sob o signo da racionalidade e da técnica, a autora indaga se há espaço para o ritual dentro da atualidade, considerando que ―[...] uma das principais características do rito é a sua plasticidade, a sua capacidade de ser polissêmico, de acomodar-se à mudança social‖. 32 Desta maneira, aspectos relacionados à religião e à espiritualidade, como os ritos e a sua relação com a natureza, têm impacto nas práticas e mudanças sociais, tanto no âmbito individual, como do coletivo, e, nesse seguimento, a religião se torna espaço de conflitos que determinam e constroem discursos. Como as opiniões religiosas não tem incidência unicamente sobre a busca de sentido para a existência, mas a têm igualmente sobre os comportamentos, ordenando toda a vida do homem crente, inclusive suas práticas sociais, as religiões também são lugares relevantes dos conflitos sociais. Assim sendo, o campo religioso é simultaneamente lugar, produto e fator ativo daqueles conflitos, e parece-me, pois, legítimo considerar a História religiosa como uma disciplina especifica, afirmada a sua legitimidade, há, não obstante, a necessidade de aclarar seu objeto. 33 29 FILHO, Celso Luiz Terzetti. A deusa não conhece fronteiras e fala todas as línguas: um estudo sobre a religião Wicca nos estados unidos e no brasil. Tese de Doutorado, Pontifica Universidade de São Paulo – PUC. São Paulo, 2016, p. 62. 30 SOARES, Danieli Siqueira. Rituais contemporâneos e o neopaganismo brasileiro: o caso da Wicca, 2007, p. 51. 31 SEGALEN, Martine. Ritos e rituais contemporâneos. Rio de Janeiro: Editora FGV. 2002. 32 Idem, p. 15. 33 GOMES, Francisco José Silva. História e Religião: A Religião como objeto da História. Rio de Janeiro. FAPERJ: Mauad, 2002, p. 17. 24 Situado nessa discussão, o Paganismo Piaga emergiu de uma série de estudos e práticas realizadas por um grupo de jovens em Teresina, por meio dos quais estes constituíram um seleto número depraticantes do neopaganismo no Piauí, tendo suas práticas registradas em meios de comunicação desde o início de 2007 – folhetins do ―Jornal O Bruxo‖. Fundado pelo jornalista e adepto do movimento neopagão piauiense, Rafael Nolêto, o jornal constava de registros dos encontros dos jovens pagãos piauienses, sendo estes momentos destinados às práticas religiosas baseadas, sobretudo, em ritos provenientes de correntes da Europa, tendo, como maior destaque, a prática da Wicca em Teresina. Contudo, ao longo dos anos, Rafael Nolêto e outros adeptos do neopaganismo começaram a idealizar uma nova vertente religiosa que acreditavam ser influenciada por tradições estrangeiras e pelo que consideravam ser o folclore 34 local. Por volta do ano de 2011, foram realizados estudos e reuniões para levantamento de produções bibliográficas e literárias que pudessem ―revelar‖ possíveis caminhos de práticas e cultos ancestrais, que, por sua vez, fossem necessários para sistematizarem determinada crença, isto é, partindo da necessidade de reinventar antigos cultos. Assim como a Wicca objetiva reconstituir os cultos antigos pré-cristãos, o Paganismo Piaga também buscou fincar sua crença na ideia de ancestralidade piauiense, considerando a influência de supostos costumes e saberes antigos. Os adeptos da vertente religiosa Piaga, apesar de construírem uma maneira de expressão religiosa no Piauí inserida na contemporaneidade, levantaram estudos arqueológicos e bibliográficos que, segundo estes, fundamentaram o Paganismo Piaga como uma manifestação religiosa ressignificada de supostos povos ancestrais que viviam na região do referido estado. Entre 2011 e 2012, a partir de reflexões pessoais sobre crenças e práticas minhas e de outros neopagãos de Teresina, vivenciamos juntos um processo de busca por uma identidade enquanto grupo. Antes disso, cada um tinha sua prática isolada e não tínhamos uma ―existência enquanto comunidade‖, justamente pela falta de uma identidade, de um eixo através do qual pudéssemos ser reconhecidos. Paralelamente com a idealização da Vila Pagã, com o propósito de fortalecer vínculos e identidades, começaram a surgir questionamentos e reflexões que desencadearam na 34 Quando citamos a expressão ―folclore‖ e seus derivados neste trabalho, estamos apontando o discurso de adeptos, de modo geral, do neopaganismo ao se referirem a práticas e saberes que, ambos pressupõe, serem muito antigos e assim, sobrevivendo no imaginário popular ao serem repassados por gerações através da oralidade e do ritual, podem ter seu conhecimento rememorado ou mesmo recuperado. Todavia, como se trata de uma perspectiva cara ao historiador, entendemos que o conceito ―folclore‖, como fonte de pesquisa, rompe com a ideia de que seja um conjunto de práticas culturais estáticas e imutáveis, como se pudessem ser dissociadas de transformações e tensões sociais. Desta maneira, a noção de folclore comumente difundida é a versão romanceada do que se caracterizaria enquanto traços da ―cultura popular‖, um conceito teórico-metodológico em constante discussão entre as ciências humanas e sociais aplicadas, que nos direciona a criticar a memória e as narrativas populares e sua tentativa de estabelecerem certa noção de antiguidade fincada à tradição, mas que, como qualquer outra prática cultural, não permanece imune às mudanças sócio-históricas. 25 formação do Círculo Piaga, grupo de estudos e práticas do que considerávamos ser nossa ―herança pagã ancestral‖. 35 O Paganismo Piaga, segundo seus membros, se constitui a partir de um resgate de práticas religiosas de antigos povos xamânicos que praticavam o culto solar nas terras onde hoje é o estado do Piauí. Nesse sentido, pretendo identificar os aspectos sociais e históricos que permitem a formulação desse discurso, bem como fomentaram a construção do espaço da Vila Pagã, que se constituiu enquanto um lócus para o Piaganismo, pois, como aponta Rafael Nolêto, ―[...] o diferencial da Vila Pagã no Piauí é que a gente não importa só tradições estrangeiras, mas também resgata as tradições da terra‖. 36 Como ponto de partida nesta pesquisa, utilizaremos a abordagem teórica de Reinhart Koselleck (2006), quando este escreve sobre as mudanças semânticas dos conceitos e as transformações que ocorrem na linguagem atualizada, ao considerar que os ―[...] acontecimentos históricos não são possíveis sem atos de linguagem, e as experiências que adquirimos a partir deles não podem ser transmitidas sem uma linguagem‖. 37 Nesse sentido, as contribuições do autor permitirá a realização de uma breve abordagem historiográfica acerca do advento da produção do conceito de neopaganismo e entendendo-o enquanto categoria histórica na definição de determinados sujeitos e práticas sociais em um período específico, assim como também a discutir a respeito da polissemia do conceito, destacando suas temporalidades e as relações dos neopagãos com algumas espacialidades ao longo dos séculos XIX e XX. Outros conceitos importantes para este trabalho são o de ciberespaço e cibercultura. Segundo Margaret Wertheim (2001), ―[...] a nova fronteira espacial não é o hiperespaço, mas o ciberespaço‖, 38 isto é, de maneira especialmente proeminente, o ciberespaço surgiu como um novo lugar para o convívio social, que possui salas de conversa, grupos de discussão, fóruns online, entre outros. Em relação a cibercultura, Pierre Lévy (1999) pontua que ―[...] ela expressa o surgimento de um novo universal, diferente das formas culturais que vieram antes dele, no sentido de que ele se constrói sobre a indeterminação de um sentido global qualquer‖. 39 Nesse sentido, no bojo dessas discussões, pretendo discorrer, especificamente, 35 NOLÊTO, Rafael. Entrevista concedida a Antônio Emanuel Batista de Sousa. Piauí, 27 de outubro de 2020. 36 PASSOS, Ceres. Piauí sedia 1º vila pagã da América Latina. O DIA, Teresina, 27 de janeiro de 2014. 37 4 KOSELLECK, Reinhart. Futuro passado: contribuição à semântica dos tempos históricos; tradução do original alemão Wilma Patrícia Maas, Carlos Almeida Pereira; revisão da tradução César Benjamin. Rio de Janeiro, RJ: Contraponto: Ed. PUC-Rio, 2006, p. 267. 38 WERTHEIM, Margaret. Uma história do espaço: de Dante à internet. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001, p. 162. 39 LÉVY, Pierre. Cibercultura. São Paulo: Editora 34, 1999, p. 15. 26 sobre as experiências e sociabilidades dos neopagãos teresinenses, tanto as que ocorreram presencialmente quanto as que foram forjadas por meio dos ciberespaços. No que diz respeito aos anseios dos neopagãos teresinenses em ―resgatar‖ uma suposta religião antiga, busco compreender, a partir do conceito de tradições inventadas, cunhado pelos historiadores Eric Hobsbawm e Terence Ranger (1997), como estes sujeitos fundamentaram e sistematizaram a vertente religiosa politeísta denominada de Paganismo Piaga. Nesse sentido, os autores problematizam o que se caracteriza uma tradição enquanto genuína e uma tradição enquanto inventada, mostrando que as tradições genuínas são as ―[...] que surgiram e que se tornam difíceis de localizar num período limitado de tempo – às vezes coisa de poucos anos apenas – e se estabeleceram com enorme rapidez‖ 40 ou seja, não existe a possibilidade de definir as origens históricas dessa tradição. Em outras palavras, entende-se aqui que o Paganismo Piaga é uma tradição inventada e caracterizada como um conjunto de regras, que se estabelecem por meio da repetição, podendo essas regras serem de natureza ritual ou simbólica, conseguindo situar a ideia de uma continuidade em relação ao passado. Todas essas discussões acerca da vertente religiosa Piaga partem, sobremaneira, do princípio da Vila Pagã ter sido construída enquanto um espaçosagrado. A respeito disso, o autor Mircea Eliade (1992) nos ajuda a entender como o espaço para o homem religioso apresenta rupturas e quebras, que não é um espaço homogêneo e que existem espaços sagrados e não-sagrados. No caso da vila, ela se estabelece enquanto um espaço sagrado criado, sendo este mágico e energético, pois protege quem está dentro de energias externas, tornando-o um lugar de proteção, e que fica inserido entre o mundo terreno e o mundo espiritual/mágico, tendo em vista a sua relação com a natureza. Além disso, Mircea Eliade contribui para uma análise a respeito do período das festividades religiosas, pois os Piagas acreditam que as suas festividades fazem parte da repetição de um evento sagrado, que tem sua origem nos primórdios de um passado mítico. As principais fontes utilizadas nesta pesquisa fazem parte ou do acervo próprio de Rafael Nolêto, como as edições do ―Jornal O Bruxo‖, ou de blogs digitais disponíveis na internet, a exemplo do podcast ―Rádio Grito de Bruxa‖ e a ―TV Mística‖, que também eram administrados por Rafael. Nesse sentido, assim como Fábio Almeida (2011), acredito que para os historiadores que buscam compreender o presente, não se pode ―[...] negligenciar as fontes digitais, pois isso significaria fechar os olhos para todo um novo conjunto de práticas, 40 HOBSBAWN, Eric e RANGER, Terence. A Invenção das Tradições. – Tradução de Celina Cavalcante – Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1997, p. 09. 27 atitudes, modos de pensamento e de valores contemporâneos‖. 41 Com isso, ao longo da pesquisa, as fontes digitais que selecionamos são diretamente ligadas ao Rafael Nolêto por indicar importantes caminhos para se entender as especificidades das experiências neopagãos no Piauí. Estes documentos digitais, documento este ―[...]de conteúdo tão variável quanto os registros da atividade humana possam permitir – codificado em sistema de dígitos binários, implicando na necessidade de uma máquina para intermediar o acesso às informações. Tal máquina é, na maioria das vezes, um computador 42 ‖, serão contextualizados em seu tempo e espaço, mas também articuladas com outras fontes que já são tradicionalmente aceitas pela disciplina histórica, a exemplo de imagens e entrevistas orais que foram concedidas por Rafael Nolêto, entre os anos de 2016 e 2021, e de Hérica Regina em 2020. Nesse seguimento, é preciso mencionar que a grande maioria do acervo documental utilizado na construção desta pesquisa foram produzidas ou salvaguardas por Rafael Nolêto. Não somente como um importante nome do neopaganismo piauiense, Rafael formou-se em jornalismo pela Universidade Estadual do Piauí em 2011 e em relações públicas em 2014, pela mesma instituição. À vista disso, consideramos que esse aspecto foi crucial para que o movimento pagão no Piauí diretamente ligado a Nolêto tomasse maior visibilidade, principalmente através de mídias digitais, a exemplo da criação de importantes sites para, estudos, contato e divulgação de eventos relacionados a encontros entre adeptos do neopaganismo no Piauí que ocorreram justamente nos anos em que o mesmo cursava sua graduação em jornalismo. Isto posto, as 55 edições do Jornal o Bruxo, que tiveram formato impresso apenas nas duas primeiras edições e logo passou a ser publicado em forma de blog até o ano de 2012, disponibilizadas a mim, por Rafael, exemplificam tanto os domínios de técnicas de alguém familiarizado com o oficio do jornalismo, principalmente em uma época em que a internet não tinha seu uso massificado entre a população brasileira, como também a tentativa do próprio de manter arquivado uma memória de si e dos encontros pagãos em Teresina, uma tentativa de manter possibilidades de produção de trabalhos científicos acerca de experiências neopagãs no Piauí, muito apoiada e incentivada pelo mesmo. Além das fontes mencionadas, as obras: ―Caminhos Piagas: magia e ancestralidade do nordeste brasileiro (2015)‖; ―A magia das Palmeiras: divindades da Mata de Cocais (2018)‖; e ―Deuses, encantados, espíritos e outros seres lendários do Piauí (2019)‖; escritas por Rafael Nolêto são utilizadas com o intuito de compreender melhor acerca dos conhecimentos e 41 ALMEIDA. Fábio Chang de. O historiador e as fontes digitais: uma visão acerca da internet como fonte primária para pesquisas históricas. AEDOS - Revista do Corpo Discente do PPG-História da UFRGS, v.3, n. 8, p. 9 -30, jan./jun. 2011, p. 12. 42 Idem. p. 17. 28 saberes dos ―novos piagas‖ e de como sistematizam a própria crença, o que me permite realizar uma abordagem a respeito de quais são as influências e os princípios que constituem o Piaganismo. Considerando todas as informações anteriores, no primeiro capítulo intitulado de ―‗A busca de raízes no passado‘: historicidades e espacialidades do neopaganismo‖, apresento uma narrativa sobre o conceito de neopaganismo, discutindo as suas bases de formação na Europa, nos Estados Unidos e no Brasil, isto é, busco realizar uma breve abordagem historiográfica sobre a formação deste enquanto categoria histórica, assim como também discutir a respeito da polissemia do conceito, destacando suas temporalidades e as relações dos neopagãos com algumas espacialidades ao longo dos séculos XIX e XX. Na esteira dessa discussão, pretende-se discorrer, no segundo capítulo, intitulado de ―‗Em pleno século XXI, no auge da civilização tecnológica, a magia continua em alta‘: experiências neopagãs no Piauí‖, especificamente sobre as experiências e sociabilidades dos neopagãos teresinenses, tanto as que ocorreram presencialmente quanto as que foram forjadas por meio dos ciberespaços. A finalidade é evidenciar que, em um primeiro momento, a internet foi uma importante ferramenta não só para conhecer ou difundir o neopaganismo, mas também para possibilitar a construção de uma cibercultura neopagã que os conectava frequentemente, seja entre os sujeitos do próprio grupo ou com outros neopagãos nos EUA e na Europa. Já nos encaminhamentos finais desta dissertação, no terceiro capítulo, intitulado de ―‗Entusiastas do movimento de resgate‘: fundamentos do Paganismo Piaga e a construção da Vila Pagã‖ pretende-se compreender, a partir dos anseios dos neopagãos teresinenses, como estes sujeitos fundamentaram e sistematizaram a vertente religiosa politeísta denominada de ―Paganismo Piaga‖ e como, por conseguinte, construíram e instituíram a Vila Pagã como um espaço sagrado. Ressalta-se, ainda, que foi preciso estender o recorte temporal por mais 1 ano, a princípio pensando entre os anos de 2007 e 2020, intervalo este em que havia sido produzidas a maioria das fontes analisadas na pesquisa, porém devido aos diversos contratempos surgidos com a pandemia global do Novo Coronavírus decretada pela OMS em março de 2020, originaram-se dificuldades de ir à campo como sugerida pelo orientador. Neste sentido, como o espaço físico da Vila Pagã se encontrou fechado a visitações neste período e com festivais religiosos restritos a seus membros, não foi possível a concretização de uma experiência empírica de imersão do pesquisador naquele ambiente sociorreligioso na qual pudesse contribuir de forma não somente objetiva acerca do detalhamento das características 29 peculiares da Vila Pagã e dos adeptos do Círculo Piaga através do olhar do próprio pesquisador como também nas impressões sensíveis que transcendem quaisquer limites impostos pelo método científico. Contudo, ainda no ano seguinte, foi solicitado novas imagens e entrevistas, mediantes questionários por email ao líder do círculo Piaga e outra adepta, a fim de sanar algumas lacunas ainda abertas na pesquisa, por isso a necessidade de estender mais 1 ano este recorte temporal, justificada pela situação extraordinária que omundo viveu neste período. 30 CAPÍTULO I “A BUSCA DE RAÍZES NO PASSADO”: 43 HISTORICIDADES E ESPACIALIDADES DO NEOPAGANISMO Os homens se parecem mais com sua época do que com seus pais. Proverbio Árabe 44 43 Expressão utilizada pelo historiador Janluis Duarte ao problematizar os discursos envolvendo as origens do neopaganismo. Consultar: DUARTE, Janluis. Os bruxos do século XX: Neopaganismo e invenção de tradições na Inglaterra do pós-Guerra. Dissertação de mestrado- Brasília: Universidade de Brasília, 2008, p. 16-17. 31 O fazer historiográfico, isto é, a construção de uma narrativa acerca do homem e de suas relações sociais e culturais, a partir dos indícios históricos de determinados períodos, sempre se apresenta ao historiador como uma prática desafiadora, sobretudo quando o objetivo é abordar a respeito de um tema multidisciplinar – a exemplo de uma religiosidade, seus adeptos e suas produções culturais e materiais –, que é discutido, inclusive, por outras áreas de pesquisas integradas às bases de estudos consolidados e que possuem os seus próprios modos de fazer, 45 ou seja, com metodologias e objetos de estudos diferenciados em relação aos que são utilizados nas pesquisas da área de História. Embora o ofício do historiador seja laborioso, acredito que analisar e discutir temas como o neopaganismo, a partir dos métodos e técnicas da historiografia, seja importante para pensarmos como as práticas das religiosidades, dos movimentos sociais ou as relações tecidas por homens e mulheres no cotidiano são mais ―parecidas com sua época do que com seus pais‖, pois, de acordo com Marc Bloch (2002), o ―[...] passado não é objeto de estudo da ciência‖ – lê-se ―ciência‖ como um termo equivalente à História –, mas, a História é a ―[...] ciência dos homens, ou melhor, dos homens no tempo‖. 46 Ao partirmos da epígrafe introdutória e das breves considerações de Marc Bloch (2002) acerca do ofício do historiador, podemos compreender que estudar, pesquisar e escrever a respeito de uma vertente religiosa, dos seus adeptos e de suas práticas à luz da História, nos desafia a ir além das percepções subjetivas ou coletivas dos indivíduos estudados, o que nos instiga a situar os sujeitos e as suas práticas em suas devidas temporalidades e espacialidades, para não ocorrer o risco de reforçar, por exemplo, a ideia de que seja possível resgatar alguma prática religiosa ou de que alguns sujeitos estão para além de seu tempo. Aparentemente, à primeira vista, pode ser que a associação do título com o subtítulo deste capítulo cause algum tipo de estranhamento ao leitor, pois, ―buscar raízes no passado‖, 47 nos remete à ideia de recuperar algo do outrora, que, por sua vez, revela uma contradição do termo neopaganismo, isto é, de que modo um ―novo paganismo‖ poderia ter como princípios 44 BLOCH, Marc L. Benjamin, Apologia da história, ou, O ofício de historiador. — Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2001, p. 51. 45 A exemplo do campo acadêmico multidisciplinar ―Pagan Studies‖, que é dedicado ao estudo do paganismo contemporâneo. Os estudos pagãos abrangem uma variedade de diferentes abordagens acadêmicas para estudar tais religiões, sobretudo com base na sociologia, antropologia, arqueologia, folclore e teologia. 46 BLOCH, Marc L. Benjamin, Apologia da história, ou, O ofício de historiador. — Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2001, p. 51. 47 Expressão utilizada pelo historiador Janluis Duarte ao problematizar os discursos envolvendo as origens do neopaganismo. Consultar: DUARTE, Janluis. Os bruxos do século XX: Neopaganismo e invenção de tradições na Inglaterra do pós-Guerra. Dissertação de mestrado- Brasília: Universidade de Brasília, 2008, p. 16-17. https://en.wikipedia.org/wiki/Modern_Paganism https://en.wikipedia.org/wiki/Modern_Paganism https://en.wikipedia.org/wiki/Sociology https://en.wikipedia.org/wiki/Anthropology https://en.wikipedia.org/wiki/Archaeology https://en.wikipedia.org/wiki/Theology 32 constituintes elementos significativos e iguais a de um passado europeu pagão pré-cristão? A meu ver, termos como recuperar, readquirir e resgatar, quando se trata do passado, só possuem utilidades, para os historiadores, a nível de análises e problematizações, pois como alguma cultura, religiosidade ou formas de cultos antigos poderiam ressurgir de forma intacta na contemporaneidade? É justamente a partir dessas questões que, a seguir, abordarei brevemente acerca das historicidades e espacialidades do neopaganismo – lê-se no plural por estar analisando um conceito polissêmico. 48 Antes disso, ressalta-se também que as discussões por vir não possuem a pretensão de abranger todas as questões relativas ao culto à natureza nas religiões neopagãs, em suas diferentes temporalidades, mas, tão somente, de expor, em concepções gerais, acerca de como o conceito de neopaganismo se relacionou com pautas religiosas e sociais importantes, sobretudo a partir da segunda metade do século XX. 1.1 Neopaganismo: uma breve abordagem sobre a polissemia do termo A partir das reflexões anteriores, alguns questionamentos voltados para esta pesquisa foram surgindo: O que é o neopaganismo? Um movimento político? Uma organização estritamente religiosa? Em que momento começou a ser sistematizado? Nesse sentido, para responder estas questões, devemos direcionar nosso olhar crítico aos anos que antecederam a década de 1960, período em que houve as primeiras tentativas de definição e sistematização do conceito de neopaganismo, que foram relacionadas a um passado europeu pagão pré- cristão. Da mesma forma, também daremos atenção aos anos e décadas seguintes a 1960, período importante para compreendermos os novos sentidos que foram constituindo a ideia de neopaganismo na contemporaneidade. Antes de adentrar ao assunto, ressalta-se que, mesmo nos dias atuais, o termo ainda é bastante genérico ao caracterizar ou definir as diferentes vertentes religiosas alternativas, esotéricas e ocultistas, que foram fundadas entre a segunda metade do século XIX e ao longo do século XX. As fundamentações filosóficas e políticas das diversas vertentes neopagãs se diferenciam, embora ambas possuam fatores motivadores comuns. À vista disto, é necessário analisar o conceito sob dois períodos históricos distintos: um que diz respeito às bases históricas de sua formação, ligadas aos movimentos românticos nacionalistas do século XIX; e outro, quando o termo ganha um corpo conceitual mais definido e que foi caracterizado não somente como um sistema religioso que abarca diferentes 48 KOSELLECK, R. Futuro Passado: Contribuição à semântica dos tempos históricos. Rio de Janeiro: Contraponto (PUC-Rio), 2006. 33 crenças, mas como um movimento político de afirmação identitária ligado ao paradigma da contracultura, que explodiu no ocidente durante a segunda metade do século XX, e às doutrinas filosóficas que inauguraram o movimento New Age. 49 De acordo o historiador Janluis Duarte (2013), ―[...] esse grupo heterogêneo de movimentos religiosos possui, no entanto, um processo de formação comum: determinadas mudanças identitárias ocorridas entre a elite cultural da Europa Ocidental no decorrer do século XIX, que levaram à contestação dos valores vigentes, diante de um mundo em rápida transformação‖. 50 Ou seja, nesse período, a Europa ainda vivenciava um contexto de consolidação de Estados Nacionais, com a unificação e expansão territorial e, portanto, a necessidade de validaçãode nação em seus mitos de origem em uma sociedade em rápida transformação. Tendo isso em vista, considero não ser descabido classificar o neopaganismo original como um movimento, antes de tudo, literário. Ele surgiu da pena de escritores que, movidos por ideais nacionalistas ou contestatórios, buscaram valorizar o folclore e os costumes de sua terra natal, ou ainda de uma antiguidade clássica profundamente romantizada. 51 Isto posto, é possível afirmar que as produções literárias românticas do século XIX, e seu contexto de produção, influenciaram determinados grupos de intelectuais a buscarem identificar, nos costumes e no que compreendiam enquanto folclore, certas raízes consideradas pagãs, como uma espécie de marcadores de identidade, para grupos dominados por outros povos no processo de unificação territorial, bem como para definir as origens míticas de sua nação, ou mesmo por reação à chamada alienação cultural desencadeada pela Revolução Industrial. Como aponta Néia (2017) ―[...] o gosto pelo exótico e o apego ao passado fortaleceram-se no Romantismo e estiveram no cerne dos primeiros movimentos protonacionalistas, fundamentais para os estudos posteriores a respeito do folclore‖ 52 , isto é, a própria tentativa de definição do que poderia ser considerado como conhecimento e prática folclórica passa a caminhar concomitante a esse contexto de afirmação identitária por parte de intelectuais românticos. Embora o amadorismo ainda prevalecesse em muitos dos folcloristas pioneiros, aos poucos foi delimitada uma definição para o folclore, não mais circunscrito unicamente a artefatos materiais, mas também preocupado com o registro de práticas 49 CAROZZI, Maria Julia. Nova Era: a autonomia como religião. In: CAROZZI, Maria Julia. (org.). A Nova Era no Mercosul. Petrópolis: Editora Vozes, 1999, p. 149-190. 50 DUARTE, Janluis. Reinventando tradições: representações e identidades da bruxaria neopagã no Brasil. 2013. 231 f., il. Tese (Doutorado em História) — Universidade de Brasília, Brasília, 2013, p. 12. 51 Idem. 52 NÉIA, V. H. S. O folclore e a escrita da História: a cultura popular como fonte. Resgate: Revista Interdisciplinar de Cultura, Campinas, SP, v. 25, n. 1, p. 203–226, 2017. DOI: 10.20396/resgate.v25i1.8648158. Disponível em: https://periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/index.php/resgate/article/view/8648158. Acesso em: 4 fev. 2022. 34 entendidas como tradicionais, coletivas e simbólicas. Esse âmbito incluiu os costumes, as crenças, as superstições, os aspectos linguísticos, as cerimônias, as narrativas e canções populares e diversos outros elementos daquilo que passou a ser associado à ideia de Volks (povo). Para além das questões literárias, históricas e estéticas, esse movimento também foi motivado por concepções políticas, muitas vezes em contraposição a hegemonias estrangeiras, como ocorreu na Alemanha e na Finlândia, por exemplo. [...] Assim, a visão cristalizada do folclore, tanto como área de pesquisa quanto como conjunto de práticas, aproximava-se das tentativas de construção de nacionalidades coesas e homogêneas, pouco afeitas à contestação. Ao longo da segunda metade dos Oitocentos, inicialmente na Europa, a busca pelas raízes nacionais e por vestígios da cultura popular aproximou-se do cientificismo positivista, reivindicando os métodos incipientes das Ciências Sociais. 53 Paralelo a esta definição de folclore, é importante observar, também, que houve a associação da noção de neopaganismo como religiosidade da natureza, seguindo uma tendência literária da época, ou seja, o Romantismo do século XIX, visto que, após o expressivo desenvolvimento do racionalismo, do ceticismo e do cientificismo que ocorreu a partir do Iluminismo no final do século XVIII, a crença na bruxaria foi retomada como uma alternativa para sanar a busca pelo retorno das emoções e preocupações humanas, do sentimento religioso e da magia. Logo, a compreensão do que caracterizaria um neopaganismo esteve relacionada ao movimento romancista do século XIX, que preconizava, inclusive, o entendimento de que o homem é parte importante da natureza. À vista disso, todo esse contexto de definição de concepções de folclore e neopaganismo vão ser preponderantes para o desencadear de debates envolvendo importantes intelectuais na Europa neste momento, e que vão contribuir de forma definitiva para, mais adiante, consolidar a noção de neopaganismo enquanto um sistema religioso. Na análise da obra The triumph of the Moon, do historiador britânico Ronald Hutton – especialista em estudos que envolvem neopaganismo e magia –, Janluis Duarte (2013) aponta que o termo ―neopagão‖ só começou a aparecer propriamente de fato no final do século XIX, em críticas às obras de intelectuais românticos ingleses, dentre os quais se destacam W. B. Yeats e Maud Gonne, acusados de defenderem abertamente a criação de uma religião celta reconstrucionista, abrangendo lendas galesas e magia. Porém, ―[...] o termo popularizou-se apenas a partir de 1967, com os artigos do psicólogo Timothy Zell – mais conhecido como Oberon Zell Ravenheart – criador da Church of All Worlds e editor da revista Green Egg, dedicada ao assunto, numa tentativa de nomear o movimento que ele mesmo ajudava a formar‖. 54 53 NÉIA, V. H. S. O folclore e a escrita da História: a cultura popular como fonte. Resgate: Revista Interdisciplinar de Cultura, Campinas, SP, v. 25, n. 1, p. 203–226, 2017, p. 204-205. 54 DUARTE, Janluis. Reinventando tradições: representações e identidades da bruxaria neopagã no Brasil. 2013. p. 13. 35 A partir de 1967, o termo ―neopagão‖ esteve tanto relacionado ao conjunto diversificado de crenças provenientes do movimento literário romântico do século XIX – que incentivava a valorização da cultura popular local, mesmo que de maneira romantizada –, assim como do paradigma contracultural de meados da década de 1960. Destaca-se ainda que as concepções acerca do neopaganismo no Romantismo ainda não eram imbuídas de significações políticas, pois ―[...] o Romantismo possuía ideias menos políticas e mais metafísicas, com base no entendimento de que o homem é parte importante da entidade natureza e da energia orgânica‖. 55 Em contrapartida, como veremos ao longo deste capítulo, após a década de 1960, alguns dos grupos já considerados neopagãos passaram a se associar a movimentos políticos, que foram incorporados à ideia de neopaganismo, isto é, conferindo mais significados e definições ao termo. Ressalta-se ainda que, durante o século XIX, a ideia do que viria a ser compreendido como neopaganismo passou pela influência de tradições herméticas durante o processo de sistematização das diferentes vertentes religiosas que o abrange, sendo este também um fato importante ao longo do século XX. Paralelamente à literatura, ou agindo de forma coerente com aquilo que escreviam os poetas, é preciso ressaltar que vários desses fizeram parte de outra importante influência para a formação do neopaganismo como forma religiosa: as diversas sociedades herméticas, especialmente as de cunho ocultista, que se multiplicaram na Europa da segunda metade do século XIX. 56 As sociedades secretas foram preponderantes para a criação de diferentes vertentes religiosas que viriam a definir e compor o neopaganismo enquanto categoria, embora genérica, que abrangesse um conjunto de crenças de caráter religioso. Foi possível constatar esse aspecto devido ao fato de que diversas sociedades secretas surgiram nesse período, como a maçonaria, que não só defendiam serem continuadoras de tradições muito antigas, tendo sua origem indefinida ao pertencer a um tempo mítico e imemorial e, portanto, capazes de serem transmissoras de saberes secretos desse período, mas tambémpor suas reuniões serem de cunho marcadamente cerimonial, aceitando seus membros somente por rituais de iniciação. Surgiu na França a O.T.O – Ordo Templi Orientis – da qual participa um dos mais conhecidos ocultistas, Alphonse Constant ou Eliphas Lévi. Após sua morte, em 1875, o marquês Stanislau de Guainta proclama-se seu sucessor e reconstrói, em 1888, o Supremo Conselho da Ordem Cabalística da Rosa-Cruz. Em 1875, é fundada pela controversa personagem de Helena Petrovna Hahn – ou Mme. Blavatsky – a Sociedade Teosófica, construída sob a alegação de que as "verdades interiores" estão presentes em todas as religiões, mas foram deturpadas por "homens 55 SANTOS, Maria Clara Dunck. A contracultura do segundo pós-guerra: um estudo comparativo entre a poesia marginal de Jack Kerouac e Nicolas Behr. Dissertação de Mestrado - Universidade de Brasília. Programa de Pós-Graduação em Literatura, 2012, p. 43. 56 DUARTE, Janluis. Reinventando tradições: representações e identidades da bruxaria neopagã no Brasil. 2013, p. 14. 36 imperfeitos" que tentaram traduzir o conhecimento divino. Seus ensinamentos remetem diretamente ao posterior surgimento da New-Age, ao afirmar que os conhecimentos esotéricos são consistentes com as recentes descobertas da ciência. 57 A estrutura religiosa dessas sociedades secretas foi importante para que diferentes doutrinas, mais adiante, surgissem com base nelas, principalmente por dois motivos: (1) afirmavam ser percussores de tradições antigas pré-cristãs; e (2) possuíam ritos de iniciação definidos. As doutrinas posteriores, influenciadas por essas sociedades ocultistas, assumiram esses padrões. Diante disso, no cerne dessas sociedades secretas emergiu um personagem que veio influenciar a noção de neopaganismo no século XX, como um sistema de crenças definido com características comuns, o controverso e polêmico Aleister Crowley. Aleister Crowley, ou Edward Alexander Crowley, surgiu como uma figura de notoriedade em relação ao hermetismo e/ou ocultismo, a princípio, na Ordem Hermética da Aurora Dourada (Golden Dawne). 58 Após problemas com o criador da ordem da qual participava, em 1905, Crowley criou uma nova ordem, a Astrum Argentum, 59 que se estendeu pela Europa e pelos Estados Unidos durante a primeira metade do século XX. Expulso da Inglaterra em 1920, por conta de problemas com as autoridades da Sicília, em 1924, devido à fama de seus rituais orgiásticos, Crowley se tornou uma figura bastante polêmica na época. No entanto, depois de um pouco mais de duas décadas, ―[...] morreu na miséria, mas deixou uma vasta legião de seguidores de suas doutrinas heterodoxas, profundamente anticristãs e que misturavam elementos de diversas tradições religiosas antigas com os devaneios de seu autor‖. 60 Todavia, mesmo com a importante contribuição do contexto romântico para a busca de origens míticas de determinados grupos da Europa do século XIX, sem falar nas influências das tradições herméticas ocultistas surgidas paralelamente às tensões culturais e sociais, ainda herdadas da Formação dos Estados Nacionais europeus, e também da Revolução Industrial para estabelecer o neopaganismo como religião, é só a partir do surgimento de importantes 57 DUARTE, Janluis. Reinventando tradições: representações e identidades da bruxaria neopagã no Brasil. 2013. p. 16. 58 A Ordem Hermética da Aurora Dourada, conhecida também como Ordem Hermética do Áureo Alvorecer, foi uma sociedade secreta que surgiu na Inglaterra em 1888, a qual reunia várias vertentes do esoterismo, e cujas ramificações encontram-se ativas até os dias de hoje. De acordo com Karina Bezerra (2019), a Aurora Dourada foi ―[...] o ápice da glória do renascer ocultista do século XIX, que sintetizou um vasto corpo de material desconexo e disperso em um todo coerente, prático e eficiente, coisa que não pode ser dita de qualquer outra ordem ocultista de que tenhamos conhecimento naquele tempo ou a partir de então‖. Ver em: BEZERRA, Karina Oliveira. Paganismo contemporâneo no Brasil: a magia da realidade, 2019, p. 50. 59 Astrum Argentum é uma ordem ocultista fundada por Aleister Crowley e George Cecil Jones em 1907, dedicada à evolução espiritual através da "lei de Thelema", herdeira direta da estrutura da famosa ordem Golden Dawn, operante entre os séculos XIX e XX. 60 MIZANZUK, Ivan Alexander. “Faze o que tu queres”: as noções de ética e moral nos escritos de Aleister Crowley em sua thelema sob a luz da sociologia sensível de Michel Maffesoli. (Mestrado em Ciências da Religião), São Paulo, 2010, p. 38. https://pt.wikipedia.org/wiki/Sociedade_secreta https://pt.wikipedia.org/wiki/Inglaterra https://pt.wikipedia.org/wiki/Esoterismo https://pt.wikipedia.org/wiki/S%C3%A9culo_XIX https://pt.wikipedia.org/wiki/Ocultismo https://pt.wikipedia.org/wiki/Aleister_Crowley https://pt.wikipedia.org/wiki/George_Cecil_Jones https://pt.wikipedia.org/wiki/1907 https://pt.wikipedia.org/wiki/Thelema https://pt.wikipedia.org/wiki/Ordem_Herm%C3%A9tica_da_Aurora_Dourada https://pt.wikipedia.org/wiki/Ordem_Herm%C3%A9tica_da_Aurora_Dourada 37 trabalhos antropológicos e folcloristas que houve uma definitiva ligação ―[...] entre as ideias neopagãs e a efetiva fundação de religiões neopagãs‖. 61 Em concepções gerais, os trabalhos antropológicos e folcloristas defendiam que as antigas marcas culturais, ou mesmo tradições religiosas, teriam sobrevivido na obscuridade e resistido ao longo dos séculos na Europa mesmo com a dominação Cristã. Entre os trabalhos mais importantes, podemos destacar os livros: ―Aradia, o evangelho das bruxas‖, de Charles Leland; 62 ―Ramo Dourado‖, de Sir James G. Frazer; 63 e ―O culto das bruxas na Europa Ocidental‖, de Margaret Murray. 64 Para entendermos a relevante contribuição de ―Aradia, o evangelho das bruxas‖, é preciso direcionar um pouco de nosso olhar para a vida de seu autor. Charles Leland, norte-americano que viveu boa parte de sua vida na Europa, além de jornalista, foi um folclorista que, desde sua época de estudante, demonstrou grande interesse pelo ocultismo e neoplatonismo, tendo sido também defensor de posicionamentos políticos considerados radicais. Do interesse de Charles Leland pelo ocultismo e cultura popular, combinados com seu ativismo político, nasceu uma das obras mais importantes para o surgimento do neopaganismo como religião: ―Aradia, o evangelho das bruxas‖, publicada originalmente em 1899. Na obra, nos é apresentado um conjunto de textos presumidamente sagrados das stregha (bruxas, curandeiras) italianas, combinados com comentários de sua própria autoria. Esses textos narram como Diana, considerada a deusa-mãe, provém ao mundo sua filha Aradia, para que se torne a primeira das bruxas e desta forma instruir suas aprendizes. Tal visão da bruxaria como uma força de resistência política não era nova. Já estava presente na obra clássica A Feiticeira de Jules Michelet, de quem, aliás, Leland era leitor ávido. O que havia de novidade na obra de Leland era a sua alegação de ter encontrado uma sobrevivência deste ―culto da bruxaria‖ entre as stregha, culto este que teria sido grandemente perseguido pela Igreja Católica, mas sobrevivido em segredo no seio das famílias praticantes, através da tradição oral. 65 Mesmo com seu livro repleto de comentários de sua autoria, no que diz respeito a transcrição de textos considerados sagrados, como sortilégios e encantamentos, seu trabalho recorre, pela primeira vez, a uma ideia de um culto antigo pré-cristão que ainda permanecia vivo, no qual, por sua vez, as bruxas seriam as sacerdotisas, descrevendo-as em seus ritos e 61 DUARTE, Janluis. Reinventando tradições: representações e identidades da bruxaria
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