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Prévia do material em texto

PAULO SÉRGIO RAPOSO DA SILVA 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
VALDETÁRIO CARNEIRO: 
a múltipla face da condição humana 
 
 
 
 
 
 
 
Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa 
de Pós-Graduação em Educação do Centro de 
Educação da Universidade Federal do Rio Grande do 
Norte, como requisito parcial para a obtenção do 
título de Mestre em Educação. 
 
Orientadora: Profa. Dra. Josineide Silveira de Oliveira 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
NATAL/RN 
2022 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
Universidade Federal do Rio Grande do Norte - UFRN 
Sistema de Bibliotecas - SISBI 
Catalogação de Publicação na Fonte. UFRN - Biblioteca Central Zila Mamede 
 Silva, Paulo Sérgio Raposo da. 
 Valdetário Carneiro: a múltipla face da condição humana / Paulo Sérgio Raposo 
da Silva. - 2022. 
 148 f.: il. 
 
 Dissertação (mestrado) - Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Centro 
de Educação, Programa de Pós-Graduação em Educação, Natal, RN, 2022. 
 Orientadora: Profa. Dra. Josineide Silveira de Oliveira. 
 
 1. Valdetário Carneiro - Dissertação. 2. Estigma - Dissertação. 3. Ética da 
compreensão - Dissertação. 4. Ciências da complexidade - Dissertação. I. Oliveira, 
Josineide Silveira de. II. Título. 
 
 
RN/UF/BCZM CDU 37:316 
 
 
 Elaborado por Ana Cristina Cavalcanti Tinôco - CRB-15/262 
 
 
 
 
 
 
Autorizo a reprodução e divulgação total ou parcial deste trabalho, 
por qualquer meio convencional ou eletrônico, para fins de estudo e pesquisa, 
desde que citada a fonte. 
 
 
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Educação do 
Centro de Educação e ao Grupo de Estudos da Complexidade da Universidade 
Federal do Rio Grande do Norte como exigência parcial para obtenção do título de 
Mestre em Educação. 
 
 
 
VALDETÁRIO CARNEIRO: 
a múltipla face da condição humana 
 
 
Aprovada em: 22/02/2022. 
 
 
 
 
BANCA EXAMINADORA: 
 
 
 
Profa. Dra. Josineide Silveira de Oliveira – Orientadora 
Universidade Federal do Rio Grande do Norte 
 
 
 
Profa. Dra. Maria da Conceição Xavier de Almeida – Examinadora titular interna 
Universidade Federal do Rio Grande do Norte 
 
 
 
Prof. Dr. João Bosco Filho – Examinador titular externo 
Universidade do Estado do Rio Grande do Norte 
 
 
 
Prof. Dr. Fagner Torres de França – Examinador suplente interno 
Universidade Federal do Rio Grande do Norte 
 
 
 
Prof. Dr. Renato Pereira de Figueiredo – Examinador suplente externo 
Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
Dedico a Burunga, meu tio, que sempre lançou suas pequenas 
redes para pescar o oceano, até cansar e nos deixar sem que 
pudéssemos ajudá-lo a voltar à praia para se encantar pelas 
coisas miúdas. 
 
AGRADECIMENTOS 
 À minha mãe, Kátia Maria Raposo, que sobreviveu e sobrevive de cabeça 
erguida aos mais duros golpes da vida. Ela é a maior razão de eu tentar ser melhor e 
buscar lugares ainda mais altos, não por ambição, mas para vê-la sorrir e ter a 
certeza de que tudo aquilo que um dia ela sonhou acerca de mim e da minha irmã 
aconteceu. Nunca conheci alguém que tivesse a fé, a força, o talento, a coragem, a 
determinação, a bondade e o senso de humor afinadíssimo que minha mãe tem e 
sempre teve. Devoto minha vida à sua. Se sou algo de bom para alguém ou se fui 
durante todos meus anos, mãe, foi porque a senhora sempre esteve aqui e em todos 
os cantos segurando todas as pontas, mesmo estando no teu limite. Eu te assistiria 
em qualquer palco com lágrimas nos olhos de ver diante de mim uma heroína 
anônima, uma força da natureza. 
 A Franklin Felipe Raposo (In memoriam), que além de tio foi meu pai no 
momento exato em que precisei. Com ele, acompanhando seus passos, observando 
seu modo de tratar as pessoas, seu modo de lidar e resolver problemas, aprendi 
sobre inteligência, simpatia, divertimento, disciplina, honestidade e disposição ao 
trabalho. Jamais esquecerei as nossas conversas e daquele último abraço tão forte e 
duradouro, sem nenhuma palavra, naquela noite que parecia ser só mais uma dentre 
tantas, mas era a nossa despedida. Nesse derradeiro encontro, mesmo que 
silencioso, tudo foi dito e as marcas dos teus braços, titio, não ficaram e não ficarão 
apenas no meu corpo. 
 À Alice Ariela Lopes, minha namorada, que dividiu meses, dias, horas e 
minutos de medo, de incertezas, de pavor, de insegurança, de pessimismo, de uma 
total incapacidade de controlar ansiedades e pressas com o sorriso mais lindo que 
conheci e a fé mais singela e genuína que já presenciei. Ela, que costuma falar o 
quanto sou capaz e grande, nem imagina o quanto me faz maior e quanto sua 
grandeza discreta serve àqueles de quem ela cuida. A mulher que Alice se tornou 
nunca deixou de ser menina: é uma adulta que não se adulterou mantendo dentro de 
si intacta a garota que sonhava com princesas, sem perceber, sem se tornar infantil, 
sem ser boba, em uma espécie de mistura do sublime com a liberdade de ser dona 
das próprias vontades. Sem seu amor, sem sua companhia, sem seu cuidado, sem 
sua beleza, eu não teria redescoberto o paraíso. 
 
À minha orientadora, Josineide Silveira de Oliveira, que me acolheu, que me 
incluiu em lugares aos quais eu não teria acesso por conta própria, que me emprestou 
sua paciência para controlar minhas pressas, que me recebeu em sua casa, em pé, 
em frente à porta aberta, semelhante a quem aguarda alguém que estava longe e 
fazia falta. Naquele dia, eu estava muito longe, distante demais para dar conta do que 
parecia impossível. Sem você, sem tuas ideias, sem tuas provocações e sem teu 
rigor, eu teria desistido, eu teria errado muito mais, eu teria ficado pelo caminho. Por ti 
e Silvan, nutro um amor próximo, mas tão próximo de um filho por seus pais, que às 
vezes penso que os afetos são iguais. Foi também por você, Josi, que fiz o máximo 
que estava ao meu alcance para entregar uma boa pesquisa e um bom texto, porque, 
em todos os momentos em que pensei em desistir e admitir que um mestrado era 
coisa para gente diferente de mim, a lembrança da tua aposta e do teu acolhimento 
me impediam e faziam eu acreditar. Acreditei, resisti, reexisti. 
 À Ceiça Almeida, que foi absolutamente precisa ao nomear os movimentos de 
transição pelos quais Josineide e eu passamos, depois que ingressei no Grupo de 
Estudos da Complexidade (GRECOM) e para concluir esta dissertação. Ceiça não é 
apenas a coordenadora do grupo; ela é a chama que mantém viva, resistente e 
pulsante a poesia necessária para fazer frente à prosa, por vezes cacofônica, de 
trabalhos científicos distantes da dura realidade de pessoas feitas de carne e osso, 
transpassadas por incertezas e questionamentos. Sim, Conceição Almeida, trocamos 
a morte pela vida e isso fez com que eu fosse bem mais longe e chegasse mais perto 
de horizontes que pareciam inalcançáveis. Se eu soubesse como fazer e tivesse a 
precisão necessária, escreveria poemas e canções para ti; tocaria e cantaria as tuas 
músicas preferidas a fim de te ver sorrir, quantas vezes fossem necessárias para 
trocar lágrimas amargas por alegrias contagiantes. 
 A João Bosco Filho, que, ainda na graduação, foi o primeiro a me ver e 
transformar uma formação sem grandes pretensões em um trampolim para novos e 
maiores saltos. Bosco, teus elogios, teu cuidado com as palavras para não dizer que 
eu tinha escrito bobagem e sido ingênuo demais em nossos trabalhos foram decisivos 
para eu querer, poder e ser mais do que estava previsto e vaticinado por alguns que 
desacreditavam de algum potencial que tenho, mas não sabia identificar. Hoje, sei, e 
você responsável direto por isso. A ti, eu reputo e reputarei vitórias acadêmicas, 
 
porque fomos e ainda somos cúmplices. Que teus dias sejam longos e que os bons 
vinhos sempre estejamsobre tua mesa, rodeada por teus amores. 
Ao GRECOM, por me permitir fazer ciências que dançam, ciências que têm voz 
audível e compreensível, sabor, gestos, silhuetas, sons e melodias. Compor o grupo 
me flutuar sem transformar em privilégios experiências que foram essenciais. Se 
dependesse de mim, eu estaria naquela nossa sala todos os dias ao longo desses 
dois anos de pesquisa, só para ver e ouvir mais, ver alto e ouvir colorido. Conheci 
pessoalmente poucos, porém aqueles que se achegaram foram responsáveis por me 
erguer quando eu estive caído e atribuir a mim um valor que nunca me pertenceu 
verdadeiramente. A essas pessoas, eu ainda precisarei escrever cartas. Sim, cartas, 
para que, quando eles e elas tocarem no papel, suas mãos toquem nas minhas. 
Artemisa Andrade e Manoel Romão, vocês serão os primeiros a receber. Para ti, 
Artemisa, eu quero dizer que arte não está apenas no teu nome, mas em tudo que 
você é. A você, Romão, eu quero dizer que nossas conversas e mensagens foram os 
primeiros atos a me dar a sensação de que seria possível chegar até aqui. Aos dois e 
à Laissa, que é quase nossa também, eu quero ser capaz dizer que os amo no mais 
bonito dos tons. 
A Waldney de Souza Rodrigues Costa, meu professor na graduação, por ter 
sido o primeiro a quem recorri para tirar dúvidas sobre um processo seletivo em nível 
de mestrado, por ter me atendido acerca disso com fina atenção e por sempre ter 
pensado em mim e me convidado para participar de mesas redondas, debates e 
trabalhos para os quais eu não tinha a qualificação completa e adequada, mas que 
serviram para eu amadurecer e perceber as fragilidades da minha formação. Waldney 
é um exemplo. Sua perspicácia é tão evidente quanto seu senso crítico apurado, o 
que faz do seu pensamento ser tão ousado quanto suas proposições. Aprendo com 
seu empenho e sua capacidade. 
A Fagner Torres de França, pela revisão sofisticada e criteriosa do texto, pela 
paciência que demonstrou ter comigo quando enviei incontáveis e-mails e mensagens 
para fazer ajustes que antes não estavam claros, mas ele atendeu a todos os meus 
chamados com muita gentileza. Fagner é um daqueles intelectuais para os quais 
olhamos e desejamos seguir os mesmos passos, e eu me sinto muito honrado em 
conhecer um pouco do seu itinerário acadêmico, do seu trabalho e da sua inserção na 
 
academia, de modo que, dado seu rigor e seu refinado preparo, ser lido por ele é 
tanto melhor quanto vergonhoso, para alguém como eu que só está começando. 
 À Ginevra Benevides Gurgel e à Aguinalda Fernandes Benevides, por terem 
me recebido em Caraúbas e terem feito a minha estadia um tempo para renovar a 
confiança de que daria certo e conseguiríamos contar um pouco da história de suas 
famílias, dos seus dramas e angústias. Sentar para conversar com vocês foi como me 
acomodar em uma poltrona de uma sala de cinema e ver um filme passar de tão 
visceral que foi o relato de cada uma e de todos aqueles aos quais vocês me 
apresentaram. Reviver o passado ou relembrar dores e mágoas que persistem não é 
fácil para ninguém. Mesmo assim tive total liberdade para conhecer a intimidade e as 
emoções guardadas que só o olho no olho, que só o sentar, o estar ao lado pode 
transparecer. Este trabalho foi escrito a muitas mãos, e vocês duas, juntamente a 
seus familiares, são co-autoras. 
 Ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico Tecnológico (CNPq), por 
ter fornecido as condições básicas e necessárias para que, ao longo dos dois anos de 
pesquisa, eu pudesse ter dedicação total às leituras, à escrita, aos custos inerentes a 
deslocamento e manutenção da conexão à internet no cenário de aulas virtuais, 
mesmo em tempos tão difíceis e agravados por um governo que desde seu início 
operou contra o pensamento crítico e contra a autonomia das universidades públicas. 
Diante de todos vocês, faço reverência e sou capaz de defendê-los com minha 
vida, afinal essa vida não é, não foi e nunca será feita só por mim; eu sou porque, 
para mim, vocês foram primeiro e me salvaram, sustentaram e abrilhantaram. Garanto 
dar o meu melhor sempre para, à distância ou não, notadamente ou não, 
corresponder a tudo que fizeram e continuam a fazer por minha trajetória. Obrigado. 
 
 
“Sonho que se sonha só 
É só um sonho que se sonha só 
Mas sonho que se sonha junto é realidade.” 
(Raul Seixas) 
 
 
Na memória do povo do sertão 
Vive o nome imortal de Valdetário 
Um rapaz que sofreu injustiçado 
Revoltou-se virando bandoleiro, 
Ganhou fama entre o povo brasileiro 
Por ter sido um tirano fabricado. 
 
Ficará para sempre relembrado 
Num sangrento e terrível itinerário, 
Deixou rastros de dor no seu fadário 
Despediu-se da vida num caixão, 
Na memória do povo do sertão 
Vive o nome imortal de Valdetário. 
 
Sertanejo que é filho da coragem 
Não mataram seu sonho de lutar, 
Planejava fugir para mudar 
Dando brilho de novo a sua imagem. 
Nunca fez ao Estado vassalagem 
Era ao mesmo bastante refratário, 
Sem querer tem destaque legendário 
Hoje o mundo o compara a Lampião, 
Na memória do povo do sertão 
Vive o nome imortal de Valdetário. 
 
(Marciano Medeiros) 
 
 
 
 
 
 
RESUMO 
Natural de Caraúbas, Rio Grande do Norte, Valdetário Carneiro (1959-2003) tornou-
se um dos nomes mais conhecidos no Estado, como precursor do chamado “Novo 
Cangaço”, um tipo de crime organizado caracterizado por sitiar cidades interioranas e 
saquear suas agências bancárias. Como método, esta dissertação assume um 
caráter descritivo ao detalhar dados biográficos e fatos por meio de matérias 
jornalísticas, entrevistas com biógrafos, familiares e alguns moradores das terras 
caraubenses. A base teórica da pesquisa são as Ciências da Complexidade, pelas 
quais se concebe a consciência das contradições como fundamento importante na 
compreensão dos fenômenos sociais e condição imprescindível para uma educação 
capaz de produzir um conhecimento pertinente. Para além da sua ficha criminal, 
existe a figura de um homem que suplanta estigmas e revela a complexidade do viver 
nos seus múltiplos pertencimentos. Valdetário, o estrategista marginal, fez da vida um 
palco no qual encenou um drama multifacetado e constituiu uma dessas expressões 
que, embora trágica, carregou significados profundos sobre o que somos e podemos 
ser enquanto humanos, assim como demonstrou aspectos políticos, sociológicos e 
culturais de uma época. Desse modo, o presente trabalho tem como propósito 
ultrapassar estudos bibliográficos insulares e avançar no sentido de, ao falar sobre a 
vida de um homem significativo em diferentes direções para sua cidade e Estado, 
contribuir na compreensão da historiografia do Oeste Potiguar e sobre seus modos de 
organização social das relações e do pensamento. 
Palavras-chave: Valdetário Carneiro. Estigma. Ética da compreensão. Ciências da 
Complexidade. 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
ABSTRACT 
Born in Caraúbas, Rio Grande do Norte, Valdetário Carneiro (1959-2003) became one 
of the best known names in the state, as a precursor of the so-called "Novo Cangaço", 
a type of organized crime characterized by besieging inland towns and looting their 
bank branches. As a method, this dissertation assumes a descriptive character by 
detailing biographical data and facts through journalistic articles, interviews with 
biographers, family members and some residents of the Caraubense lands. The 
theoretical basis of the research is the Complexity Sciences, by which the awareness 
of contradictions is conceived as an important foundation for the understanding of 
social phenomena, and an indispensable condition for an education capable of 
producing pertinent knowledge. Beyond his criminal record, there is the figure of a 
man who overcomes stigmas and reveals the complexity of living in his multiple 
belongings. Valdetário, the marginal strategist, turned life into a stage on which he 
staged a multifaceteddrama and constituted one of those expressions that, although 
tragic, carried deep meanings about what we are and can be as humans, as well as 
demonstrated political, sociological, and cultural aspects of an era. In this way, the 
present work aims to go beyond insular bibliographical studies and to advance in the 
sense that, by talking about the life of a man significant in different directions for his 
city and State, to contribute to the understanding of the historiography of the Potiguar 
West and about its modes of social organization of relations and thought. 
Keywords: Valdetário Carneiro. Stigma. Ethics of understanding. Sciences of 
Complexity. 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
LISTA DE FIGURAS 
Figura 1: fachada da Câmara Municipal da cidade de Caraúbas.....................................25 
Figura 2: Valdetário aos 15 anos, com a motocicleta que ganhou de presente..........30 
Figura 3: à direita, Valdetário em sua oficina trabalhando com mecânica..................31 
Figura 4: da esquerda à direita, Aguinalda, sua filha ainda bebê e Valdetário.................33 
Figura 5: Valdetário em idade adulta.............................................................................34 
Figura 6: à esquerda, Valdetário fabricando seus caminhões artesanais.........................37 
 
Figura 7: Valdetário, no presídio, sobre um dos caminhões feitos por ele..................38 
 
Figura 8: um dos caminhões fabricados por Valdetário e enviados a seu filho...........39 
 
Figura 9: ex-prefeito de Caraúbas sobre sua relação com Valdetário......................................58 
 
Figura 10: capa de jornal que reproduz as controvérsias em torno de Valdetário...........61 
 
Figura 11: delegado responsável pelas investigações e Silvana Alves.......................64 
 
Figura 12: capa da Gazeta do Oeste da edição que repercutiu o assassinato..............66 
 
Figura 13: capa de Jornal sobre as entrevistas de Valdetário.........................................68 
 
Figura 14: primos de Valdetário que sofreram e sofrem com os preconceitos............80 
 
Figura 15: reportagem sobre as discriminações contra Ivna Benevides.....................81 
 
Figura 16: à direita, Valdetário à frente do desfile cívico.............................................97 
Figura 17: Valdetário ao lado esquerdo de uma imagem de São Francisco.............101 
 
Figura 18: reprodução da matéria impressa sobre a fuga do presídio......................115 
Figura 19: entrada de Macau rodeada por águas........................................................117 
Figura 20: parte da multidão que acompanhou o velório de Valdetário.....................122 
Figura 21: reportagem sobre a tentativa de criar um fã clube para Valdetário...........126 
Figura 22: reportagem sobre a proibição de guardar arquivos sobre Valdetário........127 
 
Figura 23: reportagem sobre a legião de fãs que Valdetário angariou......................130 
 
Figura 24: o autor e ao fundo Maria da Graça Rêgo iniciando seu ritual...................131 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
SUMÁRIO 
 
1. INTRODUÇÃO ................................................................................................ ........15 
2. UM HOMEM E UMA HISTÓRIA DE DESCAMINHOS ............................................ 24 
2. 1. A resposta radical à injustiça e o desejo de vingança...........................................40 
2. 2. O outro lado de um roteiro que não foi apenas triste............................................51 
3. A CONDIÇÃO HUMANA ENTRE EXTREMOS: DESAFIO PARA O BEM-
PENSAR....................................................................................................................... ..67 
 3. 1.O estigma como incompreensão da complexidade humana................................ .74 
3. 2. Pensar bem para compreender melhor................................................................ .84 
4. A VIDA COMO PALCO E A FAMA: EXERCÍCIOS DE ADMIRAÇÃO ................... 95 
4. 1. A espetacularização da coragem........................................................................112 
4. 2. Sucesso de público e crítica...............................................................................120 
5. CONCLUSÃO... DE UM TEXTO, NÃO DE UMA HISTÓRIA...................................136 
6. REFERÊNCIAS...................................................................................................... ..139 
ANEXOS......................................................................................................................142 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
15 
 
 
1. INTRODUÇÃO 
 
História de um homem é sempre mal contada, 
porque a pessoa é, em todo o tempo, ainda 
nascente. Ninguém segue uma única vida. 
Todos se multiplicam em diversos e 
transmutáveis homens. 
(Mia Couto) 
 
Contar a história de vida de alguém que, por causa dos seus atos, inscreveu-
se na historiografia de um lugar e descrever algo que não havia sido notado ou 
registrado para apresentá-lo ao público exige, necessariamente, o exercício de 
rememorar e recontar. A tarefa carrega em si o risco de se transformar em um 
revisionismo histórico e biográfico estéril que no afã de confirmar ou infirmar 
opiniões pode esconder a multiplicidade da pessoa humana e a natureza ambígua 
de determinados fenômenos socioculturais produzidos por essa mesma 
multiplicidade que, por definição, não cabe em apenas um tipo de registro e 
demanda uma gramática que conceba contradições e paradoxos como partes 
indissociáveis das coisas que se apresentam e sobre as quais se decide falar. 
Embora tenham seu valor e remetam a verdades coerentes com aquilo que 
de fato aconteceu, as obviedades e as classificações convencionais circunscrevem 
seus objetos e seus temas aos limites do seu próprio repertório discursivo e 
interpretativo, de modo a tornar seus parâmetros inamovíveis e inviabilizar qualquer 
tentativa de leitura que opere a partir de outras perspectivas, o que redunda em uma 
percepção fragmentada, incapaz de contemplar a dinamicidade das relações e as 
muitas feições que os sujeitos, as circunstâncias, os fatos e as histórias de vida 
podem ter. É justamente por isso que se contentar com o óbvio consiste em aderir à 
parte como se esta fosse o todo, deixando de fora dados de realidades vividas que 
não deveriam ser ignorados. 
No entanto, quando rememoramos e nos dispomos a recontar uma história, 
temos a chance de ir além, de ampliar horizontes, revirar informações, mobilizar 
atores, reposicionar quadros de referência para pôr em cena perspectivas cuja 
inserção pode remodelar contornos sedimentados pelo tempo. Ao elucidar detalhes 
para os quais as atenções não se voltam, essa abordagem confronta os discursos 
hegemônicos de autopreservação da ordem moral, discursiva ou social comum que, 
16 
 
 
no mais das vezes, se fundamenta em verdades parciais que se consolidam a partir 
daquilo que está dado na superfície das experiências e que reproduz somente aquilo 
que a maioria já sabe ou consegue ver, a despeito da vivência mesma das pessoas 
e das suas memórias acerca de eventos passados significativos. É o que acontece 
com a trajetória de Valdetário Carneiro, um dos nomes mais conhecidos no Estado 
do Rio Grande do Norte (RN). 
Nascido em Caraúbas, no Oeste Potiguar, Valdetário marcou uma época ao 
se tornar um dos bandidos mais iconográficos e temidos do Estado e da região 
Nordeste do país, juntamente com o bando que chefiou nos assaltos a banco e na 
prática de pistolagem pelas cidades interioranas. Apesar de ter se notabilizado 
dessa maneira, antes de ter se tornado inimigo da polícia e da segurança pública, 
ele foi um mecânico exemplar que cultivou, durante boa parte dos seus 44 anos, 
uma vida pacata, longe das disputas de poder político nas quais a sua família e as 
rivais estavam implicadas: nunca concorreu a nenhum cargo público, casou, teve 
filhos, montouo próprio negócio, estabeleceu laços de amizade e ganhou o 
reconhecimento como melhor profissional da região. 
Amante das artes, sonhou em ser ator de teatro e sempre teve as 
celebridades da cultura nacional e internacional como símbolos maiores para 
referenciar sua vida, suas vontades, sua maneira de ser e agir, até que uma 
sucessão de acusações de roubo lhe foi imputada, interrompendo seus sonhos. As 
autorias desses primeiros crimes nunca foram devidamente responsabilizadas e os 
dias pacíficos do caraubense como um cidadão respeitável foram drasticamente 
interrompidos por aquelas acusações que tinham relação com rixas políticas e 
tensões familiares que o rondavam, de modo que, tendo sido preso, precisou lidar 
com a vergonha e a humilhação pública, o extremo oposto da experiência que havia 
desejado para si e estava conquistando com seu trabalho. 
Após ser condenado judicialmente, ter cumprido sua pena e, a partir de então, 
enfrentar o estigma de ex-presidiário, Valdetário não conseguiu retomar suas 
atividades e restabelecer o convívio comunitário de antes da sua prisão. Essa 
situação cevou um desejo de vingança contra seus acusadores e detratores que se 
desdobrou em incursões criminosas de grande alcance e repercussão. O que 
parecia ser apenas mais um caso local de injustiça contra um homem pobre sem 
notoriedade tornou-se o evento deflagrador de um motim cujo alcance mobilizaria as 
forças de segurança federais. Esse alcance tinha razões bastante específicas, afinal, 
17 
 
 
quando rompeu com a legalidade, o mecânico optou por não ser um bandido 
qualquer: seus arrojados assaltos a banco, sua maquinaria de ponta, seu portentoso 
arsenal bélico, suas ações cinematográficas, a escolha de alvos que simbolizavam 
autoridade e poder testemunhavam sobre sua busca por se afirmar como singular. 
Apesar de ter figurado na lista policial dos cinco criminosos mais perigosos do 
Estado, entre a segunda metade da década de 90 e a primeira metade dos anos 
2000 como pioneiro daquilo que viria a ser chamado de “Novo Cangaço”, Valdetário 
tornou-se causa de uma efervescência cultural e simbólica que o vincula aos 
grandes vultos do sertão nordestino brasileiro. Mesmo depois do seu assassinato, 
no ano de 2003, ele ainda é lembrado pela mídia e seu nome povoa os imaginários 
através de narrativas populares que lhe dizem respeito e por causa da sua história 
dramática que inspira empatia, respeito, fascínio e narrativas orais dos mais 
variados gêneros. Com determinada frequência, os noticiários retomam seu legado, 
vinculando-o a crimes e criminosos do presente, tornando Valdetário uma presença 
permanente. 
Aliás, enquanto esteve vivo, Valdetário foi constantemente objeto de 
especulações e dúvidas, sobretudo por causa dos rumores, boatos e histórias que 
circulavam a seu respeito e chegavam tanto a Caraúbas como a outras cidades. Ele, 
que não assaltava por assaltar, que tinha alvos e interesses muito bem definidos, 
protagonizou cenas, encontros e conversas intrigantes que apontam para um modo 
de existência, para uma ética, que não se detém aos limites das conclusões policiais 
e do jornalismo investigativo sobre seus erros e suas escolhas. 
À medida que façanhas extraordinárias eram feitas por ele e sua quadrilha, 
crescia tanto o medo quanto a curiosidade e a admiração pela capacidade de 
enfrentamento, pela autodeterminação, pela coragem e pela altivez demonstrada por 
alguém que houvera sido injustiçado, em uma espécie de sublimação dos juízos que 
expõe o triunfo da vida sobre a moral e da experiência sobre normatização das 
condutas. Sua fama, portanto, foi se constituindo a partir da correlação de forças 
entre o que era praticado, suas aparições ambíguas e o que os espectadores 
concluíam acerca da sua biografia acidentada e da abordagem midiática. 
Não por acaso, sendo impedido de ser o ator que sempre quis ser, Valdetário 
fez da vida o palco em que pôde representar as qualidades das personagens que 
tanto admirou e que compunham sua identidade, seus desejos, suas disposições. 
18 
 
 
Em busca de alcançar as estrelas que admirava, desafiou o perigo, desdenhou dos 
limites, contrapôs os ordenamentos e instituiu um caminho para si que o fez se 
reencontrar com a verve artística antes atacada pelas contingências que o fizeram 
abandonar sua profissão, que destruíram as possibilidades de fazer teatro para ser 
tantos quantos ele desejava ser. Sua escolha pela espetacularização dos atos 
testemunhava sobre isso. 
Como uma personagem trágica que extrapolou os limites do permitido, 
Valdetário Carneiro não foi e não é um exemplo a ser seguido, mas uma figura 
pequena e vulgar tampouco pode sê-lo, afinal, incorporou dramas da existência e 
enfrentou dilemas humanos que dizem respeito à vida em sociedade e ao confronto 
com poderes estabelecidos que fazem seus jogos e enredam as pessoas em 
armadilhas das quais não conseguem se desvencilhar sem uma tomada de posição 
potente que faça frente às forças que tentam subjugá-las. Foi o que ele fez, e o 
sertão nordestino, que antes havia presenciado o surgimento de Lampião, viu 
ressurgir a mesma irrupção de coragem e valentia que transformou o Cangaço em 
objeto de amor e ódio, repulsa e excitação, pares ambíguos que se coadunam para 
complexificar aqueles que encarnam radicalmente o desafio de existir. 
A história de Valdetário, marcada por erros e acertos, remete-nos à prodigiosa 
multidimensionalidade da pessoa humana que se desnuda tanto pelos fenômenos 
mais expressivos quanto nas dobras do cotidiano, nas experiências mais comuns e 
rotineiras, nas suas maneiras de se afirmar no mundo por meio das suas 
preferências, do seu estilo, da estética que lhe apraz, das fantasias que lhe 
encantam e que lhe movem. Conforme sustenta Edgar Morin (2011), deve fazer 
parte de uma educação produtora de conhecimentos pertinentes ensinar a condição 
humana que carrega em si o uno e o múltiplo, a obediência e a transgressão, 
personalidades virtuais e uma infinidade de personagens quiméricos na sua 
coexistência no real e no imaginário (MORIN, 2018a), de maneira que o problema da 
compreensão tornou-se crucial para os humanos (MORIN, 2011), por isso deve ser 
uma das finalidades da educação no sentido mais amplo do termo. 
Problematizar o fenômeno da condição humana é facilitar a solidariedade 
intelectual e moral da humanidade, abrir-se ao diverso, compor um labirinto de 
múltiplas e incertas entradas que pede para abrirmos mão do horizonte das 
verdades unitárias, da obsessão pela explicação e exatidão, para, então, podermos 
ter uma compreensão de nossas formas de ser e viver no que elas têm de mais 
19 
 
 
substancial e primeiro: o paradoxo (ALMEIDA, 2017). É no cerne do paradoxo, como 
operador cognitivo que expressa emergências não previsíveis e reordena 
permanentemente aquilo que é da ordem estrutural, que devemos problematizar a 
múltipla face da condição humana (ALMEIDA, 2017, p. 144), por isso que a biografia 
de Valdetário, enquanto um itinerário de muitas faces, coloca-se como um tema por 
meio do qual é possível compreender aquilo que há de fundamental na experiência 
de ser humano. 
É nesse sentido que o drama de um homem serve como uma tela de 
exposição onde o humano se mostra no seu limite e se reencontra com suas 
potencialidades, debilidades, seu inacabamento, seus acasos, como se fosse um 
filme no qual os espectadores se reconhecem. Nesse roteiro, contracenam o 
humano sob estresse contínuo, imaginários marginais, a perecibilidade de nossas 
certezas morais, a autodeterminação criativa dos sujeitos, a possibilidade de soltar-
se das pré-determinações e a incerteza como princípio ativo das relações humanas 
que não se reduzem aos códigos de conduta que regem a ordem social. Trata-se, 
pois, de pensar a vida por meio de uma biografia, o humano através de um homem, 
reafirmando a unidade comum que há entretodos. 
Existem três chaves de leitura para compreender o humano a partir dessa 
história. São elas: a ética do sujeito, a chamada autoética, identificada na 
autoafirmação do homem Valdetário influenciado por seus ídolos e sonhos, movido 
por seus amores e as escolhas específicas dos alvos contra os quais decidiu se 
insurgir; a ética da sociedade, representada pelo estigma, pelas normas e coerções 
preconceituosas; e, por fim, a ética da compreensão, necessária para a devida 
autopercepção que pode coibir excessos e arrogâncias sobre a espécie que somos 
e contribuir para pensar, agir e compreender melhor as pessoas e a própria 
convivência social. 
Essas éticas são identificadas e descritas a partir das propostas de Edgar 
Morin (2003; 2017), portanto, têm como principal base teórica o Pensamento 
Complexo, que integra as contradições em vez de eliminá-las e considera que uma 
mesma coisa oferece diferentes ângulos de leitura e interpretação que não se 
anulam, o que permite uma percepção mais ampla dos temas e dos sujeitos sobre 
os quais a reflexão se debruça para, então, conceber as coisas na sua diversidade 
fundamental e admitir que elas não se limitam a ser obrigatoriamente isso ou aquilo; 
20 
 
 
podem ser, a um só tempo, isso e aquilo, ou seja, podem conter duas verdades que, 
embora diferentes, são complementares e devem ser ditas, se o que se pretende é 
elaborar uma descrição mais próxima da realidade estuda ou pensada. 
Três livros biográficos foram consultados e serviram como ponto de partida 
para conhecer e estabelecer contatos com sujeitos que conhecem para além das 
crônicas policiais e fizeram parte, direta ou indiretamente, da vida de Valdetário: A 
saga Benevides Carneiro: a história da família mais diversificada do RN (2010), de 
Dudé Viana, primo do caraubense; Valdetário Carneiro: a essência da bala (2013), 
dos jornalistas Rafael Barbosa e Paulo Nascimento; e Família, sonhos e lutas de 
Valdetário Carneiro (2019), escrito em formato de cordel, que fora lançado na 
Câmara Municipal de Caraúbas e até hoje é fonte de consulta, leitura e distribuição 
entre os conterrâneos que se reportam ao texto de conhecida identificação regional 
para narrar suas memórias sobre o que ocorreu. Essas obras situam o leitor no 
universo político, cultural e familiar daquela que até hoje é a maior e mais importante 
epopeia do oeste potiguar. 
No primeiro ano de pesquisa, este trabalho fez uso de crônicas jornalísticas 
da época na qual o caraubense atuou e de depois da sua morte, colheu 
depoimentos de familiares de primeiro grau e de seus biógrafos. Durante esse 
período, por causa das restrições e do distanciamento social impostos pela 
pandemia do SARS-CoV-2, o contato aconteceu por meio de e-mails, 
videochamadas e aplicativos de mensagens. As primeiras questões foram feitas 
através de questionários semiestruturados que se desdobraram em conversas mais 
espontâneas oriundas de dúvidas residuais acerca das respostas oferecidas nos 
questionários. Os contatos iniciais possibilitaram a criação de uma rede colaborativa 
a partir da qual cada pessoa consultada oferecia novas pistas. Desse modo, foi 
possível aproximar-se daqueles que depois seriam conhecidos pessoalmente. 
Com a flexibilização das normas de segurança contra o contágio e com o 
avanço da vacinação no país, foi possível viajar a Caraúbas e conversar com 
algumas pessoas a fim de obter um panorama mais diversificado da história e situar-
se melhor quanto às características da cidade, do povo e da cultura, além de poder 
presenciar as movimentações que até hoje acontecem em torno do túmulo do 
personagem, fazendo do local um ponto de referência no cemitério da cidade. Fiquei 
hospedado por três dias na casa de uma das primas de Valdetário, Ginevra Gurgel 
Benevides, que me apresentou outros primos, Aguinalda Fernandes, uma das suas 
21 
 
 
viúvas e mãe de dois dos seus filhos, além de vizinhos e caraubenses que 
compartilharam suas memórias e suas percepções de um tempo e de uma pessoa 
que se tornara inesquecível para todos eles, levando em consideração que os 
bandidos pertencem mais à história recordada do que à história oficial dos livros 
escrita pelos homens justos (HOBSBAWM, 2017). 
Em Caraúbas, presenciei demonstrações de respeito e de memória afetiva 
que se mesclam com os tabus que perpassam o tema do banditismo e a pessoa de 
Valdetário, fazendo com que quem narra oscile entre a coragem e a hesitação em 
revelar detalhes e assim se comprometer. Mesmo assim, colhi seus depoimentos, 
transitei por lugares marcantes da história e ouvi relatos que, embora reticentes e 
imprecisos quanto a especificidades, são as crônicas de que se servem aquelas 
pessoas para contar a história da sua cidade e de um homem que a marcou 
definitivamente. Estando com eles, pude aferir, confirmar e ampliar dados que estão 
nas biografias escritas e conhecer algumas nuances omitidas; tive acesso a 
materiais de arquivo pessoal que expõem detalhes do itinerário de Valdetário, tais 
como recortes de jornais que a família guarda como uma espécie de memorial para 
contar sua própria versão dos fatos, além de fotos da intimidade que ajudam a 
compreender o homem por trás dos seus crimes. 
Tomando essas fontes como referências para descrição dos detalhes 
biográficos e concordando que descrever é, segundo Bruno Latour (2006), estar 
atento aos estados concretos das coisas, esta dissertação assume um caráter 
descritivo e ocupa-se de relatar episódios marcantes e acontecimentos decisivos 
que marcaram a trajetória da sua personagem principal, para que pela própria 
descrição e pelo próprio percurso biográfico a pessoa de Valdetário, na sua 
multiplicidade, apareça com os conteúdos próprios da existência humana, 
bipolarizada entre sapiens e demens (MORIN, 1975; 2012a), que pode ser 
observada em detalhe a partir do seu caso. Dividido em três capítulos, este texto 
busca abranger a biografia de um homem desde seu nascimento até sua morte, 
destacando seus feitos mais notórios e alguns de seus encontros com pessoas 
simples, responsáveis por tê-lo tornado um ícone folclórico-regional. 
A partir da leitura daquelas biografias e das conversações com seus parentes, 
o primeiro capítulo dedica-se a detalhar dados biográficos de Valdetário e da sua 
família, relatando eventos que foram importantes para ambos, nomeando figuras 
que compuseram a história e contribuíram para o desenrolar dos acontecimentos 
22 
 
 
que deram causa à virada radical de conduta do mecânico caraubense. 
Apresentamos fotos de diferentes fases da vida do mecânico, depoimentos de 
familiares e algumas das narrativas mais conhecidos na cidade do oeste potiguar, 
que contribuem para que a biografia de um dos seus mais famosos filhos não seja 
caracterizada apenas pelo drama e pela tragédia, de modo que, descrevendo esses 
detalhes, pretendemos apresentar um panorama geral das circunstâncias políticas, 
sociais e culturais da época em que os eventos se sucederam. 
No segundo capítulo, sustento que aquela virada ocorreu justamente como 
manifestação daquilo que Edgar Morin (2012a) nomeia “Complexo de Adão”, traço 
indelével da constituição humana que é definida pelos duplos sapiens-demens, 
opostos que coabitam uma mesma pessoa e fazem oscilar entre a racionalidade e o 
delírio, entre a ordem e a desordem, entre a estabilidade e a instabilidade, entre a 
realidade e a fantasia, produzindo, a partir de uma mesma base, diferentes modos 
de ser que não se anulam; pelo contrário, alternam-se e tornam-se fontes de 
criatividade, ou seja, fontes de geração do novo, do inusitado, do surpreendente, do 
espantoso. Com isso, tendo como referência Howard Becker (2008) e Erving 
Goffman (2019), discutimos o papel do estigma como um tipo de controle social que, 
embora baseado em preocupações morais legítimas, torna-se tanto incapaz de 
compreender a complexidade da pessoahumana como difusor de preconceitos que 
a ignora. Ao realizar essa discussão, defendemos que é preciso reeducar a moral e 
o pensamento por meio de uma ética fundada nas Ciências da Complexidade. 
Já no terceiro no capítulo,há a relação dos ídolos de Valdetário Carneiro e a 
apresentação dos aspectos, feitos e ideais desses famosos que seduziam o 
caraubense e serviram como inspiração para a espetacularização dos seus atos. 
Seus principais ídolos foram Che Guevara, Raul Seixas e Ayrton Senna. Essas 
estrelas foram decisivas na construção da personalidade performática que 
Valdetário criou e pela qual se tornou reconhecido ao ter feito da vida um palco de 
onde pôde reivindicar um tipo de protagonismo que o permitia se soltar das pré-
determinações e deixar livre sua vontade de representar papéis que o elevaram 
acima da banalidade. 
Para essa análise, foi considerado o processo de projeção-identificação 
(MORIN, 1989) que há entre as estrelas e seus fãs, assim como a produção pela 
cultura de massas de mitos e formas expressivas condicionadoras da integração do 
público consumidor à realidade social (MORIN, 2018b), em diálogo com as 
23 
 
 
teorizações de Chris Rojek (2008) para explorar a relação de simbiose entre alguém 
que tornou a própria vida um meio para consumar e reafirmar seu ímpeto pelas 
artes, transformando em ações diretas e reais aquilo que havia sido produto da 
fantasia e objeto de sonhos que foram interrompidos pelas contingências e pelas 
disputas de poder regionais que redundaram em desmandos e violência. 
Por causa disso, mostrando alguns recortes da obra daqueles astros, 
identificamos alguns pontos de contato entre Valdetário e aquilo que foi feito e dito 
pelos artistas que fizeram sua cabeça, bem como discutimos o fenômeno de 
projeção-identificação que, além de ter feito parte da sua jornada, repetiu-se 
posteriormente naqueles que vieram a ser seus admiradores e fãs, para, desse 
modo, mostrar movimentos que são próprios de existir atravessado por 
ambivalências e poros por meio dos quais passam tintas que fazem da pessoa 
humana um caleidoscópio. 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
24 
 
 
2. UM HOMEM E UMA HISTÓRIA FEITA DE DESCAMINHOS 
Eu sou eu e minha circunstância, e se não 
salvo a ela, não me salvo a mim. 
(Ortega y Gasset) 
 
Quem anda no trilho é trem de ferro. Sou 
água que corre entre pedras - liberdade caça 
jeito. 
(Manoel de Barros) 
 
José Valdetário Benevides (ou apenas Val, para amigos e familiares), nasceu 
no dia 7 de março de 1959, na cidade de Caraúbas, localizada a pouco mais de 
300km da capital do Rio Grande do Norte. Filho único do casal Luiz Cândido 
Benevides e Antônia Amabília de Paiva, foi também o mais sonhado e pedido aos 
céus, porque sua mãe, antes de tê-lo concebido, houvera sofrido seis abortos e 
decidido que aquela era a última tentativa. Concluir uma gravidez e gerar uma 
criança era a maior das graças que aquele casal poderia alcançar depois de tanto 
sofrimento. O menino José chegou como uma dádiva e seu nascimento significou 
um milagre, já que, para seus pais católicos, foi fruto de uma promessa feita a São 
Francisco de Assis. 
Fazia parte dos votos vestir o garoto com a indumentária do santo e não 
cortar seu cabelo durante seus 7 primeiros anos. As vestes e a promessa não foram 
bem recebidas por Val, que sentia vergonha de usar aquelas vestimentas. Durante a 
infância, por causa dessa vergonha, o menino passa a ser conhecido pela timidez e 
retraimento. Vê-lo brincar com os amigos e primos torna-se uma cena rara. Seu 
entretimento é montar os próprios carrinhos de brinquedo, feitos de grandes latas de 
querosene ou madeira. Desse modo, aliás, começa sua paixão pelos automóveis, 
que guardará enquanto esteve vivo, na profissão que aprendeu, quando se tornou 
um fora da lei e até o fim da vida, juntamente com seu encanto pela interpretação 
teatral e a admiração pelos grandes nomes da cultura local, nacional e internacional. 
A vergonha das roupas e do cabelo longo, além de fazê-lo tímido, também o 
impede de ter uma boa relação escolar, já que passa a ser alvo de chacota e de 
inúmeros apelidos criados por seus colegas. Os cabelos longos, que carregou até 
início da juventude, e a memória do incômodo que sentia ao usar aquelas 
25 
 
 
vestimentas faz seu rendimento na escola e sua frequência caírem. Tudo isso 
acrescido ao fato de Valdetário ter perdido o pai quando ainda tinha 3 anos de idade, 
em 19/10/1962. Sem a referência paterna, seu tio Antonino Benevides Carneiro, 
chefe e porta-voz da família Carneiro, tornou-se a maior das referências da sua 
infância como exemplo de hombridade e honradez, sobretudo pelo destaque político 
e a notoriedade que conquistou na cidade. 
Comerciante simples e homem do povo, Antonino Benevides Carneiro foi 
duas vezes vereador da cidade, sempre em primeiro lugar na contagem dos votos. 
Por seus serviços prestados, tornou-se uma referência e fez o nome da família 
compor o rol das famílias mais importantes e conhecidas do lugar. Típico sertanejo 
do século XX, nascido em 10 de maio de 1918, foi um homem que prezou pela 
honra masculina e pelo cumprimento da palavra dada. Reconhecido como alguém 
dotado de um senso de justiça apurado, conquistou respeito e logo se tornou uma 
espécie de liderança comunitária à qual os caraubenses recorriam para tratar suas 
dificuldades diárias. Hoje, inclusive, a Câmara Municipal da cidade carrega seu 
nome e imortaliza sua história, tamanha a sua importância local conquistada por seu 
engajamento político. 
 
Figura 1: fachada da Câmara Municipal da cidade de Caraúbas 
 
Fonte: acervo do autor (2021). 
Antonino Carneiro morreu em 17 de outubro de 1967, em confronto armado 
com o recém nomeado delegado da cidade, Aderson Adriano Pires, com quem 
mantinha uma boa relação de intimidade. A amizade entre os dois foi 
constantemente posta à prova por inimigos políticos de Antonino, que passaram a 
26 
 
 
espalhar pela cidade rumores a fim de causar contendas entre aqueles que eram 
considerados os homens mais valentes da região. Mesmo havendo inúmeras 
tentativas de abalar a relação dos dois, a amizade permaneceu firme, até um deslize 
do filho mais velho do Benevides Carneiro que, fiando-se no prestígio do pai e 
sabendo da amizade que este nutria com o delegado da cidade, desrespeitou a 
ordem do prefeito para não entrar no açude com carroças e animais, já que aquele 
lugar era a fonte de abastecimento de Caraúbas que sofria com a falta de um 
sistema hídrico básico. 
A polícia, que havia sido incumbida de fiscalizar o local e o delegado, 
tomaram conhecimento do fato, mas Aderson não comunicou a seu amigo Antonino 
que, se tivesse sabido, pelo histórico de austeridade com os familiares (VIANA, 
2010), teria repreendido e corrigido o rapaz para evitar que ele não voltasse a 
transgredir as normas e mantivesse seu sobrenome distante de problemas ou de 
questões embaraçosas. Por não ter sido avisado e ter considerado que isso havia 
sido uma traição, Antonino rompeu os laços de amizade e deflagrou o conflito 
armado contra aquele que havia sido seu companheiro mais fiel, o que satisfez os 
adversários do vereador, pois, a partir da sua morte, teriam mais espaço e 
oportunidades para levar a cabo seus projetos de poder. 
Mesmo com a morte do seu principal membro, a família Benevides Carneiro 
permaneceria sendo uma das mais respeitadas na região, e o interesse pela política 
não desapareceria. Luiz Benevides Carneiro, conhecido como “Doutor Benevides”, 
em função da respeitabilidade conquistada por sua inteligência e capacidade de 
liderança, assume o lugar de seu tio na chefia da família. Nascido em Felipe Guerra, 
foi criado praticamente como um filho de Antonino e tornou-se comerciante bem-
sucedido sendo proprietário de uma fábrica de cerâmica de nome “Comercial Irmãos 
Benevides LTDA”, que empregaria partedos familiares para conduzir os caminhões 
da fábrica. Tornou-se, além de empresário importante na região, exemplo para todos 
seus parentes, inclusive Valdetário, de quem era primo. 
Em que pese já ocupar um lugar de destaque tanto na cidade quanto na 
região, Doutor Benevides, semelhantemente a seu tio Antonino, desejava fazer 
política e decidir os rumos de Caraúbas. Seu maior objetivo era ser prefeito da 
cidade para levar adiante o legado que havia herdado e para implementar os 
projetos de modernização que sonhava para o município, como a melhoria no 
abastecimento de água potável para a população. O desejo torna-se um projeto e os 
27 
 
 
planos para conseguir alcançar a prefeitura passam a ser conhecidos por todos e 
alianças foram sendo feitas no decorrer do tempo. A família Benevides Carneiro, no 
entanto, contava com a resistência e a perseguição de Nero Fernandes, o então 
presidente da Câmara Municipal, que também queria ser prefeito, e concebia Doutor 
Benevides como seu maior rival na corrida eleitoral, já que Doutor gozava de amplo 
prestígio. 
Conforme relata a edição do dia 30 de janeiro de 1998 do Diário de Natal, 
jornal impresso de amplo alcance no Estado, Nero utilizava do seu poder como 
presidente da Câmara para perseguir os Carneiro, utilizando a polícia para intimidá-
los. A situação tornava-se cada vez mais insustentável e a disputa entre eles 
desproporcional, levando em consideração a posição que o vereador Nero ocupava. 
Em 1981, o vereador é assassinado e os Benevides Carneiro tornam-se os 
principais suspeitos. Cada vez mais acirrada, a briga deixou de ser entre indivíduos 
para tornar-se uma celeuma familiar. Os Fernandes e os Carneiro passaram a ser 
inimigos mortais, advindo dessa rixa atentados e execuções que dizimaria membros 
de uma e de outra família. Mesmo em meio a um clima de violência, Doutor Carneiro 
prega paz entre as famílias e segue desejando ser prefeito da cidade, para desgosto 
dos seus concorrentes. 
Para alcançar seu objetivo, coliga-se à campanha para prefeito do então 
candidato pelo Partido do Movimento Democrático Brasileiro (PMDB) Raimundo 
Amorim Fernandes, conhecido como Zimar Fernandes, que, apesar do sobrenome, 
não era parente de Nero, mas sim seu inimigo. Dadas as dificuldades financeiras 
pelas quais a campanha passava e a necessidade de ter a seu dispor dinheiro para 
alavancar o projeto dos dois, Doutor Benevides planeja aquele que passaria a ser 
chamado “O assalto dos 94 milhões”, que é “uma espécie de marco simbólico da 
criminalidade violenta no interior do Nordeste” (LOPES JÚNIOR, 2006, p. 361), por 
causa da alta quantia subtraída e da maneira como ocorreu. 
 Corria o ano de 1982, por volta das 16h do dia 18 de maio, quando criminosos 
fortemente armados de fuzis e metralhadoras interceptaram, entre os municípios de 
Caraúbas e Olho d’Água dos Borges, um automóvel conduzido por um bancário e 
dois seguranças do já extinto Banco Econômico, para o pagamento de trabalhadores 
alistados no Programa de Emergência Contra as Secas, do Governo Federal, no 
município de Umarizal. Maurício Benevides Carneiro, João Benevides Carneiro, 
Sidney Ferreira e José Ferreira da Costa, os executores da intercepção, 
28 
 
 
empreendem uma troca de tiros intensa e os seguranças não resistem a ação, 
abandonam o carro com o dinheiro e fogem pela mata das margens da RN-117. 
Doutor Benevides esperava o retorno dos homens no Sítio Recanto, nas 
proximidades de Caraúbas. 
Como o assalto teve grande repercussão, o grupo julga por bem não injetar 
os valores rapidamente na campanha. Por precaução e estratégia, o dinheiro ficou 
circulando entre diferentes endereços, enquanto a polícia conduzia as investigações. 
Dividido em porções menores, que ficariam sob a tutela dos mentores e dos 
executores do assalto, o valor transitava de um lugar para outro, de uma 
propriedade à outra da família e de parentes em pequenos malotes. Passado o 
tempo, e com o impacto do assalto reduzido, o valor enfim é utilizado e o grupo 
consegue eleger Zimar, cujo compromisso firmado era tornar Doutor Benevides o 
seu sucessor ao final do seu mandato, que durou entre os anos de 1983 e 1988. 
Em uma reviravolta política e uma afronta ao pacto firmado entre os homens, 
Zimar Fernandes não cumpriu sua parte no plano e naquele pleito municipal apoiou 
o médico Marinaldo Holanda, mesmo tendo participado do planejamento da ação 
criminosa para concretizar o assalto e tendo sido beneficiado pelo dinheiro roubado. 
O que, então, seria somente a traição de um parceiro político foi a quebra definitiva 
de qualquer respeito que os Benevides Carneiro poderiam ter pelos Fernandes, a 
quebra absoluta do pacto de confiança e paz entre eles, como declama os versos 
(MEDEIROS, 2019a, p. 46): 
 
Dessa maneira cresceu 
Entre os Carneiro e os Fernandes, 
Surgiu amplo sofrimento, 
Raiva, cobrança e lamento, 
O monstro da desavença: 
Aumentou a malquerença. 
A fúria virou doença. 
 
Após o desentendimento, que redundaria em uma rixa letal para ambos os 
lados, Doutor tenta sua própria candidatura e perde por uma margem pequena de 
votos, na eleição municipal de 1988, para a tranquilidade da família Fernandes. 
Entretanto, o ódio entre eles permanecia efetivo, o que provocou tentativas de 
homicídio contra Doutor Benevides e contra Zimar, fazendo o entrevero entre os 
grupos perdurar na cidade até os dois terem parentes perseguidos e, por fim, 
29 
 
 
mortos, vítimas de pistolagem e tramas que culminaram na dissolução daquele que 
havia se tornado o maior embate familiar da cidade, até hoje relembrado e 
confirmado pelos moradores do lugar que presenciaram os conflitos, as trocas de 
farpas, as acusações mútuas, as antipatias e as discussões públicas. 
Tanto a memória de Antonino Benevides Carneiro quanto esses fatos e essas 
disputas foram tornando a família Benevides Carneiro uma das mais importantes de 
Caraúbas. Seus membros começaram a ser conhecidos, sua relação com o roubo 
dos 94 milhões começou a ser motivo de falatório e sua busca por posição política 
reconhecida cada vez mais, em cada ato ou em cada colocação feita por um dos 
seus membros. Justamente por isso ela passa a ser alvo de conflitos constantes 
com outras famílias, igualmente interessadas pelo poder municipal. Os Carneiro, 
desde o assalto e daquele ato de Zimar — que foi tratado como uma traição 
imperdoável — passaram a compor um grupo de destaque na cidade e nunca mais 
gozaria da tranquilidade do anonimato. 
Valdetário, entretanto, vive a maior parte dos seus anos longe desses 
conflitos. Na condição de filho único, vê-se obrigado a trabalhar e ajudar nos custos 
da casa. No início da juventude, já afastado dos estudos, foi conduzido por sua 
paixão pelos automóveis à mecânica. O primeiro contato aconteceu em virtude de 
um presente que sua mãe, Antônia Amibília, deu a seu filho: uma motocicleta. 
Curioso e detalhista, ele passou a montar e desmontar a moto por conta própria 
desenvolvendo grande habilidade no manuseio das peças e na compreensão do 
funcionamento da máquina. Durante esse período, seu deslumbramento pela 
mecânica e pelo automobilismo, assim como seu talento para essa profissão 
começam a ficar evidentes e chamar a atenção até mesmo dos seus parentes. 
Por causa do seu autodidatismo na mecânica, ainda no fim dos anos de 1970, 
consegue seu primeiro emprego com Raimundo de Tica, um parente que era ferreiro 
em Caraúbas e ocupava-se dos serviços mais simples da cidade. A oficina de 
Raimundo tratava de consertar carroças, carrocerias de caminhões e tratores de 
trabalhadores rurais e viajantes que passavam pela cidade. Mesmo fazendo o que 
gostava, Valdetário passa pouco tempo trabalhando nessa ferraria, porque tratava 
de peças mais rústicas e do trato de veículos mais antigos, enquanto o jovem 
demonstrava maiores ambições e interesses em máquinas mais sofisticadas. 
 
30Figura 2: Valdetário, aos 15 anos, com a motocicleta que ganhou de presente. 
 
Fonte: acervo da família 
 
Em 1980, ele decidiu montar seu próprio negócio: em frente à sua casa, 
constrói um pequeno vão de madeira coberto com palhas de coqueiro, onde passa a 
fazer, inicialmente, os consertos de carros. Depois, dedica-se também ao cuidado da 
lanternagem, pintura e mecânica dos mais variados modelos e tipos de veículos 
motorizados. Seu perfeccionismo e sua habilidade, acrescida de uma notável 
capacidade de concentração, fazem seus serviços se destacarem ao ponto da fama 
de melhor mecânico da região começar a se propagar e ganhar cada vez mais razão 
de ser. Quando os amigos chegavam à oficina de Valdetário, raramente eram 
cobrados pelo serviço prestado. A profissão virou tanto um prazer quanto uma 
obsessão, o que era perceptível pelas várias vezes em que dormiu em sua oficina 
ou varou noites concluindo serviços pendentes (BARBOSA; NASCIMENTO, 2013). 
Sua dedicação fez seu negócio crescer significativamente. 
 Com o dinheiro que conseguiu se dedicando dessa maneira, Valdetário 
comprou um terreno que também ficava em frente à casa da mãe, onde morava. 
Desfaz sua construção de madeira e constrói um pequeno prédio, onde instala uma 
oficina maior, com capacidade de atender mais pessoas e receber mais demandas. 
Por isso decide contratar um ajudante. Convida um vizinho para ajudá-lo: Ionaldo de 
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Oliveira que, tempos depois, montaria sua própria oficina e compartilharia serviços 
com Val. Ainda com o lucro do seu trabalho bem-feito, consegue construir a própria 
casa. Com o passar do tempo, começa a adquirir carros quebrados para consertar, 
usar ou vender pelo deleite que manusear aquelas máquinas lhe trazia. 
 
Figura 3: à direita, Valdetário em sua oficina trabalhando com mecânica 
 
 
 
Fonte: acervo da família 
 
Nessa mesma época, Val conhece a primeira namorada. Na passagem de um 
circo pela cidade, Valdetário se encanta por uma das dançarinas do espetáculo que 
fazia questão de assistir: uma mulher negra chamada Marli Nascimento, nascida em 
Ceará-Mirim/RN. Foi um amor à primeira vista, tão intenso a ponto de José 
Valtedário sequestrar a moça para que pudessem morar juntos e casar. Inicialmente, 
dadas as dificuldades financeiras, o casal vai morar na casa de um amigo, onde 
passariam os primeiros dias de um namoro que se transformaria em união estável 
logo que puderam alugar e manter uma casa. A relação gerou os três primeiros 
filhos de Valdetário: Tetsumi Kitayama, Francisco Valdetário e José Valtemberg. 
As crianças não foram registradas com o sobrenome da mãe; foram 
registradas somente com o "Benevides" de Valdetário que, por causa de um erro no 
registro de nascimento do seu pai, não carrega oficialmente o sobrenome “Carneiro”, 
32 
 
 
com o qual ficaria conhecido no Estado. O romance durou por volta de quatro anos, 
período em que Val seguia a carreira na sua oficina ganhando ainda mais destaque 
na região; até que, no final de 1983, já separado de Marli, é preso pela primeira vez. 
Acusado de ter roubado uma bomba hidráulica da fazenda de João Amorim, nos 
arredores de Caraúbas, ele é capturado e passa pela vergonha pública de ser visto 
e tratado como um criminoso, naquela que seria a sua primeira experiência com a 
injustiça e a vergonha pública. 
Naquele tempo, em Caraúbas, quando uma viatura policial conduzia algum 
preso à Delegacia de Polícia, os rapazes e principalmente as moças que moravam 
nas proximidades do prédio, no centro da cidade, corriam para ver quem a polícia 
havia prendido. Não foi diferente com Valdetário que, enquanto ia sendo levado 
algemado, também ia sendo visto com olhos de desconfiança e surpresa. Dentro da 
cela, o único contato externo que tinha era por meio de uma janela gradeada que 
estava voltada para uma casa, quase que parede com parede. Foi por entre as 
brechas das grades que ele iniciou a paquera com Aguinalda Fernandes (conhecida 
como Neta), à época com 19 anos de idade, aquela que seria a única mulher com a 
qual ele casaria no civil. Ficou recluso pelo período de três dias, mas foi solto logo 
em seguida por falta de provas. O próprio fazendeiro vítima do furto, que era seu 
amigo, o inocenta. 
Depois de Valdetário ganhar a liberdade, inicia às escondidas o namoro com 
Aguinalda, que se mantém por pouquíssimo tempo, pois não tinha o apoio dos 
parentes da jovem. Em meio à desaprovação dos familiares, após 13 dias de 
namoro, Neta foge com Valdetário para a casa de um amigo em comum, conhecido 
na região como “Nilson da Caçamba". Eles permanecem por dois dias abrigados no 
local vivendo um romance tórrido, até que um dos tios da moça descobre o lugar 
onde estão, vai até lá e a leva de volta para a casa, posto que, para sua família, 
namorar um homem que havia sido preso, que já era pai de três filhos, que já havia 
morando junto de outra mulher e que tinha passagem pela polícia constituía um 
absurdo e um problema a ser evitado em defesa da reputação da moça e dos seus. 
 A desconfiança dos familiares de Aguinalda, sobretudo do seu pai, Manoel 
Lúcio Fernandes, com o genro, dura pouco tempo, porque, pouco a pouco, depois 
que Val começa a frequentar a casa dos pais da namorada, ganha a confiança da 
sua família. Passada essa primeira impressão ruim, o matrimônio é firmado no dia 7 
de fevereiro de 1984, no cartório central de Caraúbas, mesmo ano em que nasce o 
33 
 
 
primeiro filho do casal, Luiz Cândido Benevides Neto, cuja semelhança física com o 
pai é, desde seus primeiros anos, ressaltada por todos que os conhecem. Pouco 
depois, Neta e Val tornam-se pais de uma menina, Layanna Benevides, única filha 
do mecânico, por quem ele cultivaria um zelo imenso e o compromisso de protegê-la 
dos riscos aos quais, como pai, imaginava que uma garota poderia estar exposta. 
Antes de tudo mudar e ele tornar-se quem se tornou, Valdetário sempre 
preferiu batizar os filhos com Aguinalda somente com o sobrenome Benevides para 
não haver qualquer tipo de contratempo com a família inimiga, e tudo caminhou bem 
assim: distante das rixas políticas e familiares, durante toda a segunda metade da 
década de 1980. Por isso Luiz Neto e Layanna, tal como aconteceu com os irmãos 
mais velhos Tetsumi, Francisco e José, não carregam o sobrenome da mãe, porque, 
no caso do "Fernandes", a omissão servia para evitar que os filhos não carregassem 
a marca da família que, naquele momento, travava um conflito político na cidade 
com os Benevides Carneiro. 
Figura 4: da esquerda à direita, Aguinalda, sua filha ainda bebê e Valdetário 
 
Fonte: acervo da família 
 
Em razão de todas as atenções da polícia estarem voltadas à Caraúbas e 
redondezas, as aparições de Valdetário na cidade eram raras. Segundo declaração 
34 
 
 
do seu primo Sanderson Benevides (informação verbal)1, o amor pelos filhos e o 
zelo que nutria por sua caçula, que tratava como uma princesa intocável, eram uma 
das razões que faziam Val aparecer para acompanhar o crescimento da 
adolescente, aconselhá-la e exercer a autoridade de pai, exigindo, por exemplo, que 
ela cumprisse horários e não ficasse até muito tarde nas ruas ou nos passeios com 
suas amigas, o que também o ajudava a acompanhar o desenvolvimento da menina 
e mostrar para todos da cidade que, mesmo procurado e foragido, ele permanecia 
presente de modo inesperado. Seu primo diz que ele aparecia de surpresa, nos dias 
mais banais e nos horários mais improváveis, deixando todos boquiabertos. Era 
como se ele não conseguisse se desligar totalmente da vida que havia construído 
antes e do seu lugar de origem. 
Figura 5: Valdetário em idade adulta 
 
 
 
Fonte: acervo da família 
 
Afora essa necessidade de exercer seu papel de pai, Sanderson insiste 
(informação verbal) que por inúmeras vezes Val apareceu na cidade à luz do dia, 
como quem gostasse de desafiar o perigo. É o que realmentese pode deduzir a 
partir de um episódio bastante peculiar protagonizado por seu primo com um dos 
 
1 Depoimento concedido por Sanderson Benevides Gurgel, em Caraúbas, em novembro de 2021. 
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amigos de seu parente. Era uma manhã comum de um dia qualquer da semana. 
Caraúbas estava em estado de alerta e as polícias locais e regionais em vigilância 
total na tentativa de prender o homem que as desafiava de todas as maneiras 
possíveis e que insistia em passar por sua cidade e viver pelas proximidades. 
Valdetário estaciona sua caminhonete no posto de combustível localizado na 
entrada da cidade, onde do outro lado da rua guarnições costumavam ficar em 
vigília. O frentista, amigo de Sanderson, aproxima-se do carro para perguntar ao 
motorista quanto queria de abastecimento. Ao chegar perto, reconhece Valdetário e 
se assusta com as armas que vê dentro do carro. 
Com medo de um possível confronto entre a polícia e Valdetário Carneiro, 
que o deixaria no meio do fogo cruzado, mas também com medo do 
estabelecimento ser assaltado e ele, juntamente com seus colegas, passarem por 
momentos de horror, o funcionário do posto quase não conclui sua pergunta e, 
trêmulo, pergunta o que aquele homem queria, já oferecendo a quantia que estava 
em seus bolsos a fim de evitar qualquer tipo de violência, ao que Val responde 
sorrindo: “não tenha medo, cabra. Eu só quero que você encha o tanque”. Ainda 
tremendo, o frentista atende ao pedido. Ao concluir o abastecimento, o atendente 
afasta-se do carro e não retorna ao lado do motorista. Então, Valdetário pergunta: 
“quanto deu, amigo véi?”. O homem responde e prontamente ouve: “venha, pegue o 
dinheiro”. Sem entender muito bem o que estava acontecendo, ele recebe o 
pagamento e a caminhonete se vai. Até hoje, essa é uma história com a qual 
Sanderson e seu amigo se divertem. 
Abril de 1991 representa um marco em sua história. O mecânico é preso pela 
polícia junto com os primos Aguinaldo Benevides Carneiro (o “Galego”) e João 
Carneiro, conhecido como “Branquinho”. A acusação é de que o trio havia roubado 
uma Ford Pampa na cidade de São Bento, no interior da Paraíba. João, que já tinha 
passagem pela polícia, consegue fugir da prisão. Val e Aguinaldo não têm a mesma 
sorte. A dupla é pega pelo tenente da Polícia Militar Washington Gabriel Pires, então 
delegado de Caraúbas. Valdetário estava em sua oficina e seu primo, que era 
bugueiro em Natal/RN, descansava com a família na cidade. Os dois são 
algemados, colocados na carroceria de uma caminhonete e expostos por toda a 
cidade, insultados aos gritos pelos policiais que exclamavam a quem pudesse ouvir 
que ali, na viatura, estavam os dois mais novos ladrões da família Carneiro. 
36 
 
 
A vergonha pública atinge a honra dos dois e os marcam de maneira 
incontornável, sobretudo pelo fato da cidade ser pequena e todos conhecerem uns 
aos outros. O veículo roubado pertencia ao fazendeiro Geraldo Francisco dos 
Santos, que confirma que os Carneiro são os responsáveis pelo assalto do qual 
seriam inocentados judicialmente apenas em fevereiro de 2013, mesmo a Pampa 
tendo sido encontrada com Sueldo Ribeiro Vasconcelos, em Aracati, no Ceará, que 
confessa o crime. Apesar de negar a participação, da falta de evidências e de o 
culpado confessar o crime, o passado da família Benevides pesava sobre os ombros 
dos homens que haviam sido humilhados publicamente. 
 Em que pese a confissão de Sueldo, os humilhados são levados a julgamento 
na Paraíba. Condenado a sete anos e seis meses de reclusão em regime fechado, 
Valdetário permanece preso na Casa de Detenção de Campina Grande, cumprindo 
pena pelo delito que negou ter cometido e participado. Após um ano e sete meses 
na cadeia, no dia 6 de novembro de 1992, Val e Galego são levados para uma 
audiência na mesma cidade onde havia ocorrido o crime. Quando retornam para a 
unidade prisional em Campina Grande, são resgatados por seus primos. Os dois 
conseguem escapar da guarnição policial. Valdetário acaba sendo recapturado no 
dia seguinte à fuga, enquanto Galego consegue fugir. 
 Durante o tempo em que ficou preso, Val não deixou de lado a paixão pelos 
carros. Passava o tempo dentro do presídio confeccionando carros e caminhões de 
madeira para serem vendidos do lado de fora dos muros da Casa de Detenção e 
para enviar de presente a seus filhos e entes queridos. Era a demonstração da sua 
antropoética capaz de fazê-lo ligar, segundo Morin (2017, p. 159), seu espírito aos 
“segredos da infância (curiosidade, surpresa), os segredos da adolescência 
(aspiração a outra vida), os segredos da maturidade (responsabilidade), os segredos 
da velhice (experiência, serenidade)” e de viver, tanto quanto fosse possível, de 
amor e poesia, de arte e criação, mesmo que em um ambiente inóspito como um 
presídio. 
Submetido àquela situação completamente desfavorável, Valdetário continuou 
sendo o jovem autodidata que desmontava e montava sua motocicleta; permaneceu 
sendo o mecânico e o apaixonado por carros que sempre foi; saiu da prosa pesada 
e monocromática ao estado poético, passou do terrível ao formidável para resistir à 
crueldade do mundo que o subjugava. Separado dos seus amores e da vida que 
havia construído, criou e foi o artesão que, com sua artesania, permaneceu 
37 
 
 
conectado ao que lhe trazia esperança e o fazia sobreviver, mantendo a 
“racionalidade no ardor da paixão, a paixão no coração da racionalidade, a 
sabedoria na loucura” (MORIN, 2017, p. 159). Sendo assim, como todo bom artesão, 
ele expôs, com maestria e magnitude, a criatividade — essa dádiva maior da 
condição humana (ALMEIDA, 2017, p. 161). 
 
Figura 6: à esquerda, Valdetário fabricando seus caminhões artesanais 
 
 
 
Fonte: acervo da família 
 
 
Foi preciso criar para suportar a saudade dilacerante, foi preciso conferir 
cores ao que era cinza para suportar a distância, foi preciso criar outro mundo para 
suportar aquele para o qual ele havia sido empurrado. Estar preso em outro Estado 
significava ter muitas dificuldades para conseguir coisas básicas para sobreviver no 
sistema prisional, o que fez Val contrair dívidas e piorar ainda mais sua situação. 
Entretanto, como demonstra a carta que escreveu a Neta durante esse período2, 
essas complicações não conseguiam apagar o amor, a memória, a lembrança, a 
falta dos seus que ele apaziguava escrevendo sobre seu amar, criando e dando 
formas ao informe por causa desse amar que precisava ser dito em função da dor 
pela ausência, da nostalgia pelo reencontro e para reaproximá-lo de quem lhe 
faltava, já que cartas de amor são escritas “para que mãos separadas se toquem ao 
tocarem a mesma folha de papel” (ALVES, 2013, p. 43). 
 
2 A carta integral consta no anexo B. 
38 
 
 
Sua habilidade na fabricação desses caminhões e a riqueza de detalhes que 
empregava no seu acabamento, mesmo com poucos recursos à disposição, por ser 
um presidiário, chamavam bastante a atenção tanto no interior da cadeia quanto do 
lado de fora para aqueles que viam e compravam o material, justamente pelo 
esmero e sofisticação que eram indiscutíveis. O mecânico, que já havia comprovado 
uma capacidade profissional extraordinária com carros de verdade, naquelas 
circunstâncias demonstrou ter um talento especial, um tato delicado e uma 
inteligência para o sensível que evidenciava sua versatilidade, típica do humano que 
possui “multiplicidade e inúmeras potencialidades mesmo permanecendo um 
indivíduo sujeito único” (MORIN, 2012a, p. 95). Ele viu o que estava à sua volta e 
transformou o bruto em belo3. 
 
Figura 7: Valdetário, no presídio, sobre um dos caminhões feitos por ele 
 
 
 
Fonte: acervo da família 
 
Esse não era um fazer qualquer; era a expressão dos afetos mais sinceros de 
Valdetário, expressão da sua necessidade de reorganizar-se em meio aquele estado 
de coisas e manter-se equilibrado em meio à mais desestabilizadoradas situações, 
já que “a criação nasce do encontro entre o caos genésico das profundezas 
psicoafetivas e a pequena chama da consciência” (MORIN, 2012a, p. 126). Hoje, 
mesmo depois da sua morte, essa sua potência permanece viva e expressiva no 
 
3 No anexo C há fotos de diversos ângulos do brinquedo, que demonstra mais dos seus detalhes. 
39 
 
 
artefato da foto acima que é preservado pelo irmão de Aguinalda, Manoel Lúcio 
Fernandes, conhecido como Juninho de Duquinha. Estar diante dessa obra, produto 
do amor paterno que não podia se consumar por causa da distância que separava 
pai e filho, consiste em presenciar o ato criativo como de fato ele o é: “um jogo que 
se realiza a partir de uma aptidão organizadora (competência), que catalisa em 
mensagem, ideia, forma, tema musical o que era apenas tumulto, ruído e cacofonia” 
(MORIN, 2012a, p. 126). 
 
 Figura 8: um dos caminhões fabricados por Valdetário e enviados a seu filho 
 
 
 
Fonte: acervo do autor (2021) 
 
 Aquilo que era impossível dizer olhando nos olhos do garoto, aquilo que era 
impossível traduzir em termos adequados, que era difícil de comunicar, que era 
difícil de fazer ouvir, estava dito nas linhas cuidadosas, nas sutilezas, na 
sensibilidade de um brinquedo carregado de significados e sentidos por ser e conter 
as impressões digitais de quem na verdade queria marcá-las pelo tempo que fosse 
possível no menino que receberia o presente e em tantos outros que poderiam 
testemunhar a possibilidade de emanar beleza de onde muitos presumiam haver 
somente a contravenção, o erro, o crime. Enquanto permanecer preservado, o 
caminhão servirá como um lembrete de que seu criador, em que pese tudo que 
depõe contra ele, também soube desenhar o sublime, entregar-se à arte, ao 
sensível, à beleza. 
O bom comportamento na cadeia e o cumprimento dos pré-requisitos para tal, 
Valdetário progride para o regime semiaberto nos meses seguintes, quando ainda 
faltavam três anos para o final da pena. Em 17/10/1995, o condenado é transferido 
40 
 
 
para a Cadeia Pública de Caraúbas. Porém, ao voltar à sua casa, Valdetário 
encontra um cenário desolador. Para pagar um advogado e manter a família, sua 
mãe havia vendido a casa onde ele morava e o local onde funcionava a oficina 
mecânica, além de alguns de seus objetos pessoais de valor afetivo imenso. Sem 
recursos, Val vai morar na casa do sogro junto com Neta, Luiz Neto e Layanna, ao 
lado da delegacia local, onde Valdetário passa suas noites, em cumprimento do 
regime semiaberto para o qual havia progredido. 
Durante o dia, segue tentando exercer a atividade de mecânico como pode, 
tendo de lidar com todas as suspeitas que o rondavam e com a pecha de ser um ex-
presidiário explorada ao máximo pelos adversários da sua família, que procuravam 
vencê-la pela perseguição pessoal de qualquer parente que oferecesse mínima 
razão para isso. Dessa vez, a oficina é montada em um prédio cedido por um 
conhecido da família, Francisco das Chagas Teixeira. O primeiro serviço que 
conseguiu depois dessa nova etapa foi o conserto de uma caminhonete pertencente 
a Licurgo Fernandes. Com isso, seguiu tentando recolocar-se socialmente e voltar a 
ter seus rendimentos para sustentar Neta e os filhos, mas a sombra da condenação 
e o fato de ainda estar pagando sua pena atrapalham a retomada completa da vida 
como era. 
 Segundo registram Barbosa e Nascimento (2013, p. 57), pouco mais de um 
ano após voltar para Caraúbas Valdetário é convidado por Elinaldo Simião Pereira 
para fazer um assalto. A vítima era Ademos Ferreira, dono da AFICEL, uma 
empresa industrial de beneficiamento de castanha localizada em Mossoró/RN. 
Valdetário nega o convite, tendo em vista que Ademos era amigo íntimo de vários 
membros da família Benevides Carneiro. Mesmo assim, Elinaldo Pereira, junto com 
outros homens, rouba mais de R$ 10 mil e um carro da usina. Ao retornar para 
Caraúbas, o Simião Pereira espalhou boatos de que Val seria o responsável pelo 
roubo em Mossoró, e novamente o caraubense viu-se frente à injustiça, o que o faria 
sair da inércia. 
 
 
2. 1 – A resposta radical à injustiça e o desejo de vingança 
 
 O homem sereno e sem histórico de desavenças, de origem simples e 
trabalhador, resolve se vingar na tentativa de conter seus acusadores e enfim ficar 
41 
 
 
livre das acusações e implicâncias. Sai à procura dos assaltantes da indústria de 
Mossoró e os encontra, fazendo com que devolvam o dinheiro e o carro roubado, 
que mesmo desmontado é entregue para o proprietário Ademos. A partir de então, 
dedica-se a retornar ao passado que o atormentava e cobrar dos seus acusadores o 
preço que ele havia pagado com a liberdade. Com seu primo Galego, viaja a São 
Bento em busca de Geraldo Francisco, o dono da Ford Pampa que havia sido objeto 
da sua condenação seis anos antes, para matá-lo, e consegue encontrá-lo. 
Assassina Geraldo e Antônio dos Santos Batista, funcionário da fazenda. 
 A partir desse momento de vingança, o caraubense abandona todas as suas 
tentativas de retomar a vida que tinha antes e envereda pelo crime, tendo as 
agências bancárias dos interiores dos Estados como principais alvos, e passa a ter 
uma vida errante e de constantes fugas. Além de seu primo Galego, outros primos, 
parceiros de cela e amigos se integram ao bando para formar uma quadrilha que 
seria reconhecida como precursora disto que, por causa da origem nordestinae da 
admiração pelos cangaceiros dos seus membros, passou a ser chamado pela 
imprensa e pelas forças policiais de “O Novo Cangaço”, um tipo de crime organizado 
que se especializaria em sitiar cidades interioranas para saquear altas quantias em 
dinheiro das agências bancárias dos municípios e arredores. 
 
Os assaltos foram sendo efetuados e o bando liderado por Valdetário 
tinha ordens expressas para roubar somente “bancos”, que nenhum 
animal ou outro objeto poderia ser tirado dos “pobres”, ele não 
permitia essa covardia. Assaltava agora como forma de manter a 
estrutura bélica e a síntese de sobrevivência (GURGEL, 2012, p. 22). 
 
Mesmo que não se desse conta do que estava inaugurando e da proporção 
que isso tomaria, Valdetário permanece firme na sua busca por satisfazer o 
sentimento de indignação que o tomava por completo. Aguinalda Neta segue o 
marido nessa rotina de risco sempre iminente nas cidades do interior nordestino. A 
esposa passa a integrar o bando sem, no entanto, participar diretamente dos 
assaltos, porque o marido não permitia que ela se tornasse culpada daquilo que ele 
fazia. Enquanto os assaltos aconteciam, Neta, a exemplo das outras companheiras 
dos demais componentes do bando, ficava escondida nos pontos de apoio 
escolhidos que, geralmente, eram fazendas ou sítios de regiões próximas às cidades 
onde atuariam. Para isso, tanto Valdetário quanto Aguinalda precisam se afastar dos 
filhos, que passam a ficar aos cuidados dos avós maternos. 
42 
 
 
 Ao ser questionada sobre esse período, Aguinalda Fernandes declarou 
(informação verbal)4 que, quando eles estavam juntos escondidos e sem o bando 
atuar, tudo funcionava na mais perfeita normalidade e parecia que a vida era como 
havia sido antes: Valdetário seguia sendo o mesmo homem discreto, introspectivo, 
de poucas palavras e fascinado por carros. Passava seus dias no esconderijo 
ouvindo suas músicas e seus cantores preferidos, semelhante ao que acontecia na 
sua oficina, acompanhando obcecadamente as corridas de Fórmula 1 e trabalhado 
no reparo e manutenção dos carros que ele e seus subordinados utilizavam para 
cruzar Estados e municípios do sertão nordestino, de modo que nem de longe 
assemelhava-se com o homem de autoridade inquestionável, responsável por 
comandar uma quadrilha tão organizada. Estar com sua esposa e longe da sua vida 
errante equivalia a ter e ser de volta aquele que havia se perdido em seus desvios. 
Todavia, enquanto cresciam e começavama tomar consciência dos fatos, 
Luiz Neto e Layanna precisavam lidar com inúmeras informações sobre quem era o 
pai que, pouco a pouco, foi se tornando o maior inimigo da polícia e a maior 
preocupação para a segurança pública da região. Ao ser questionada sobre as 
dificuldades desse período, Aguinalda confessou (informação verbal) que o mais 
difícil realmente foi permanecer distante dos filhos e vê-los lidar com as dificuldades 
de serem criados pelos avós em meio a tantas notícias ruins e rumores que 
chegavam a eles. Val e Aguinalda, mesmo em meio às turbulências da vida fugidia 
que adotaram, encontravam meios para visitar as crianças e vivenciar a experiência 
de serem pais nos esconderijos ou nas fazendas e sítios próximos onde se 
refugiavam. Essa, que era uma demonstração de carinho, também era o ponto 
vulnerável do casal, que se expunham ao perigo de ser capturado. 
À medida que o tempo passava, o nome Valdetário Carneiro começava a se 
espalhar por todo o Rio Grande do Norte e região Nordeste, o que tornava essa 
rotina de pausas na fuga para encontrar a família cada vez mais difícil. Histórias 
acerca dos seus feitos começaram a circular e narrativas orais difundiram-se com a 
mesma velocidade. Inúmeros assaltos em pequenas cidades de estados como 
Pernambuco, Paraíba, Ceará e Piauí, mesmo sem as autorias confirmadas, 
começam a ser atribuídos àquele que despontava no cenário, o que, tanto para 
quem ouvia as narrativas quanto para quem tentava combater o bando, aumentava 
 
4 Entrevista concedida por Aguinalda Fernandes Benevides. Entrevistador: Paulo Sérgio Raposo da 
Silva. Caraúbas, 2021. Arquivo mp3 (30 min.). 
43 
 
 
o poder de ação do bando e dificultava o trabalho de inteligência das polícias para 
prendê-lo. 
Pouco a pouco ele também vai ganhando ares de onipresença pelo 
Nordeste inteiro. Relatos de que ele estava na região Oeste Potiguar 
em um dia e no outro já estaria praticando um assalto no interior do 
Piauí tornam-se comuns. No entanto, Valdetário ficava nas fazendas 
acompanhando através das emissoras de rádio as notícias dos 
assaltos dos quais era acusado sem ter cometido, enquanto 
descansava com a mulher e os amigos (BARBOSA; NASCIMENTO, 
2013, p. 66). 
 
Em 10 de dezembro de 1998, Val sofre o primeiro golpe dilacerante na sua 
recém iniciada carreira criminosa: sua companheira Neta é presa no Ceará. Mesmo 
sem participações diretas nos assaltos devidamente comprovada, ela é apontada 
como cúmplice nos crimes do marido. Trazida para o RN, permanece em reclusão 
durante um ano, deixando o casal sem margem para qualquer contato. Era, de fato, 
um ponto de inflexão na sua corrida para fazer valer o desejo de vingança que o 
consumia ao ponto de fazê-lo agir radicalmente, desde quando começou a fazer 
justiça com as próprias mãos. 
 A prisão foi tão dolorosa e decisiva que o fez mudar para a cidade de 
Monteiro, na Paraíba, e manter-se no anonimato, sem registros de crimes ou de 
confusões. Nessa cidade, apresenta-se como caminhoneiro e adota um novo nome 
de posse de um RG falso: José Valdetário Benevides passa a se apresentar como 
José Saraiva da Fonseca, o "Saraiva". Ninguém da cidade o reconhece. Isso ajuda 
para que ele pudesse ficar ali sem ser incomodado. É como Saraiva que, no início 
de 1999, ele conhece Maria Silvana Alves, uma jovem de 17 anos que viria a ser a 
mãe do seu sexto filho, Erikles Gabriel. O primeiro encontro dos dois acontece em 
uma festa na zona rural de Monteiro. Valdetário se apaixona por Silvana, que era 
noiva de outro rapaz, mas cedeu ao cortejo e às cantadas do homem que lhe 
parecia irresistível, dando início a um romance tão intenso que a faria romper o 
noivado para viver essa nova paixão. 
Apaixonado, Valdetário também começou a fazer planos de se fixar na cidade 
montando uma madeireira. Bastante decidido, chegou a comprar um caminhão e 
alugar um imóvel onde funcionaria o empreendimento, o que não se realizaria por 
completo, já que, na condição de chefe da quadrilha, permanece ligado às ações do 
bando, fazendo viagens constantes para acertar detalhes dos novos crimes. Em 
meio a tantas viagens, Silvana começou a desconfiar do namorado e decidiu 
44 
 
 
acompanhá-lo na sua próxima viagem. Estratégico, ele cria situações para despistar 
sua companheira com passeios e uma rotina de viagens menos intensas, o que não 
demoraria muito tempo para mudar, já que suas demandas e o risco de seus 
companheiros se dispersarem ou serem capturados sem a sua liderança o 
preocupavam. As ditas viagens a trabalho voltam a se intensificar e despertar 
novamente a sensação de que havia algo errado. 
A quadrilha permanecia atuando e Val seguia comandando suas ações. 
Enquanto mantinha-se distante da suspeita pública em Monteiro, seu nome corria 
todo o Nordeste. Além dos assaltos que aterrorizava a todos, a guerra contra a 
família Simião Pereira passou a ser prioridade. Além de ser composta por membros 
que ocupavam profissões honrosas, essa família era formada por agropecuaristas e 
fazendeiros de destaque na cidade, com alto poder aquisitivo e ampla influência na 
região oeste do Estado. Contudo, também era controversa, pois sabia-se que alguns 
dos seus membros praticavam negócios espúrios que iam desde roubo de gado à 
tomada de propriedades de pequenos agricultores, passando por práticas de 
pistolagem e execução de desafetos ou quem oferecesse algum tipo de resistência a 
seus assédios, relativizados ou sequer investigados. 
Dotados de relativa impunidade e de recursos suficientes para financiar 
projetos de poder bem maiores que os dos grupos locais, eles decidem concorrer a 
cargos políticos em Caraúbas, o que os colocaria definitivamente em rota de colisão 
com os Benevides Carneiro, que sempre lutaram por ocupar os espaços de 
governança da cidade para dar continuidade ao legado de Antonino Carneiro. Não 
bastasse o fato de Valdetário nunca ter perdoado Elinaldo daquela acusação de 
roubo à usina de beneficiamento de castanha, que o insultou sobremaneira, João 
Simião Pereira, médico da cidade, acusa o bando de Val de ser o responsável pelos 
roubos de vacas e bois que estavam aumentando nas propriedades rurais de 
Caraúbas e dos municípios próximos. A acusação foi intolerável. 
Não havia nenhuma prova da participação dos Carneiro nessa questão e 
nenhum ponto de ligação entre aquele tipo de roubo e os alvos bem definidos da 
quadrilha montado por Valdetário Carneiro. Essa era mais uma maneira encontrada 
pelo médico João Pereira para salvaguardar a idoneidade do seu grupo familiar que, 
sim, tinha histórico com aqueles tipos de crimes e precisava manter-se acima de 
qualquer suspeita a fim de alcançar seus objetivos eleitorais, que passava por atingir 
seus concorrentes atacando aqueles que eram, do ponto de vista da reputação, os 
45 
 
 
mais vulneráveis. Estabelecia-se, assim, uma rivalidade que, tal como aconteceu 
com os Fernandes, custaria um preço alto demais para ambos os lados, fazendo a 
convivência e o ambiente serem absolutamente sofríveis, como faz saber o poeta 
(MEDEIROS, 2019a, p. 12): 
 
Li que Valdetário teve 
Felicidade e tristeza, 
Contemplou amor e ódio, 
Viu trevas da dureza. 
Jogou lágrimas pelo chão 
Igualmente aos Simião 
Sofreu com toda certeza. 
 
Não era do feitio de Valdetário atuar contra pessoas comuns da região. 
Conhecido pela boa relação que mantinha com os pequenos proprietários de terra 
do interior, aquele boato levantado por João Pereira, além de ser uma afronta, 
também constituía um absurdo do ponto de vista do histórico de ações 
empreendidas pelo bando chefiado por Val. Irritado, ele insiste em negar o 
envolvimento nesses casos por saber quem estava por trás dos crimes. Para ele, 
estava claro que o responsável por tudo aquilo era o próprio João Pereira, apontado 
como responsável por comandar outra quadrilha de saqueadores que atuava na 
região e intimidava pecuaristase agricultores. A injustiça praticada ganha maiores 
contornos para se transformar em uma ofensa imperdoável e eleger João o mais 
novo inimigo mortal. 
 A cada acusação de roubo, o ódio contra os Simião Pereira aumentava e as 
ameaças de vingança começam a ser ainda mais frequentes. A antipatia entre as 
famílias torna-se cada vez mais incontornável. Com a intermediação de Luiz 
Benevides Carneiro, então chefe da Família Carneiro, e com a promessa da parte de 
João de cessar com as acusações e com aquela implicância sem justificativa com 
Valdetário, a batalha entre os grupos tem uma trégua. O acordo, entretanto, dura 
pouco tempo, pois Val e seu bando descobrem a existência de um informante de 
João Pereira, próximo à porteira de um sítio na zona rural de Caraúbas, onde a 
quadrilha costumava se esconder. O informante tinha ordens para avisar à polícia 
sempre que percebesse no local a presença daqueles. Era a traição que marcaria o 
fim da paz antes conquistada, que desembocaria em assassinatos e tentativas de 
assassinatos de ambos os lados e na intimidadora, que se tornou pública, ameaça 
de Valdetário: “para cada Carneiro morto, dez Simião serão assassinados”. 
46 
 
 
Com a ajuda desse informante, a polícia ganha um forte aliado na busca 
daquele que parecia impossível de se prender, até que, em uma das perseguições, 
Val é preso junto com o ex-policial militar Manoel Haroldo Florêncio de Moraes, o 
mais novo integrante da quadrilha de assaltantes a banco, que havia atuado com 
João Pereira nos roubos de gado e sabia da inocência do seu mais novo chefe. O 
militar havia escolhido integrar o bando rival porque se sentia traído pelo seu antigo 
chefe, porque este o havia desamparado durante sua permanência na cadeia meses 
antes. Sem saber que Valdetário e Haroldo estavam juntos na mesma cela, na 
extinta Penitenciária João Chaves, o médico liga para o antigo comparsa a fim de 
propor a realização de um novo crime: a execução de Val. 
O acordo prévio era de que se retornasse à ligação às 16h do mesmo dia em 
que houve o contato, para acertar os valores que seriam pagos e os detalhes da 
morte, mas Haroldo estava decidido a manter-se fiel a seu novo chefe, com quem 
havia combinado que quem atenderia a ligação seria o alvo da encomenda. No 
horário marcado, Valdetário fica a postos para atender a chamada no lugar do ex-
policial e ouve o plano do próprio mandante sem se identificar. Concluída a 
conversa, Valdetário Carneiro se apresenta e o jura de morte. Pouco tempo depois, 
Val é resgatado por sua quadrilha durante uma viagem para uma audiência judicial 
em Caraúbas. 
No dia 23 de dezembro de 1999, escrevem Barbosa e Nascimento (2013), o 
médico é assassinado juntamente com uma enfermeira auxiliar. Os dois 
conversavam na porta de casa, em frente a praça São Sebastião, quando um carro 
conduzido por Valdetário, exímio motorista, e mais dois homens, passa pelo local e 
dispara, atingindo João, então com 46 anos de idade, com 38 disparos de armas de 
grosso calibre, como fuzil AR-15 e metralhadora. O médico morre no local. A auxiliar, 
à época com 36 anos de idade, ainda é levada para o Hospital Regional Tarcísio 
Maia, em Mossoró, mas não resiste aos ferimentos e vai a óbito no dia seguinte. Ao 
ser preso em Pernambuco algum tempo depois, Francimar Carneiro, primo e braço 
direito de Valdetário, assume a coautoria do assassinato praticado por ele, seu 
primo, e o ex-militar Manoel Haroldo, agora com mais confiança entre os chefes da 
quadrilha. 
Em 24 de julho de 2003, o programa Linha Direta, telejornal investigativo-
policial da cadeia nacional da Rede Globo, detentor de grandes índices de audiência 
durante a primeira década dos anos 2000, dedicou-se a retratar a história de 
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Valdetário e esse homicídio. Durante os 23 minutos e 53 segundos da edição, hoje 
disponível no YouTube5, não há nenhum relato das ambiguidades que envolviam, e 
ainda envolvem, o bandido, tampouco alusões aos causos que delineiam outros 
lados de uma mesma história. As falas escolhidas e levadas ao ar foram de 
representantes das forças de segurança do Estado e do comprometedor Elinaldo 
Simião, o pivô da rivalidade sangrenta que se instituiu ente as duas famílias, que em 
sua entrevista transpareceu estar acima de qualquer suspeita. 
Nenhum integrante da família Benevides Carneiro foi convidado a falar, 
nenhum amigo, nenhum conhecido ou cliente daquele respeitado mecânico de 
antes; ninguém que pudessem dizer pelo criminoso aquilo que seus crimes 
impediam que ele dissesse, não em sua defesa ou para legitimar o que ele fazia, 
mas para acentuar que aquela biografia não cabia nas crônicas policiais ou 
jornalístico-policiais. Era uma linha direta com os preconceitos e as categorias de 
acusação mobilizadas pela moral hegemônica, não com a complexidade dos fatos e 
com a multiplicidade da pessoa humana que um criminoso permanece sendo. Nessa 
edição, Valdetário é descrito como chefe de uma quadrilha de alta periculosidade, 
que deixa rastro de morte, destruição e sangue por onde passa, impondo a lei do 
silêncio e do medo, sobretudo no que diz respeito à manutenção do seu próprio 
poder, imagem que seria construída ao longo de todo o programa. 
Ao reconstituir seus passos, o programa faz uma rápida menção ao homem 
Val que, antes de ser acusado injustamente do roubo da pampa e ser preso, era 
exemplar, dado às boas condutas, sem histórico de brigas ou confusões. A menção 
é rápida, típica de quem queria fazer daquela fase um hiato entre o que viria depois. 
Logo em seguida, por volta de 1 minuto e 38 segundos do programa, como que 
utilizando de uma conjunção adversativa biográfica, o apresentador, Domingos 
Meirelles, lança as bases para a sucessão de imagens e recortes que viriam em 
seguida para reforçar a vileza do mecânico e da sua família: “a família de Valdetário, 
os Benevides Carneiro, era famosa na região por uma série de crimes”. Quais 
crimes? Que passado? Com essa formulação genérica, tudo que dizia respeito à 
família condensava-se sobre aquele que fez de tudo para permanecer distante de 
um passado sangrento, enquanto mantinha às escondidas as grandes questões 
sociológicas suscitadas pelo caso. 
 
5 Link para acesso à íntegra da edição: https://www.youtube.com/watch?v=UR6Jt_vWqac. 
https://www.youtube.com/watch?v=UR6Jt_vWqac
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Sem especificar os crimes, sem historicizar os conflitos, sem o cuidado de 
preservar aqueles que nenhuma relação tinha com o passado e o presente errante, 
o apresentador deu as senhas para transformar uma família em quadrilha e cerrou 
as grades por trás das quais pretendia-se colocar Val. Foragido, ele era só mais um 
dentre tantos que poderiam surgir do pressuposto clã de delinquentes. Encurralado 
pelos próprios crimes que havia cometido e pelo cerco estigmatizante que se formou 
em torno de sua família, sua condenação estava determinada antes mesmo do seu 
julgamento, seu destino escolhido antes mesmo de esmiuçar sua história, sua 
pessoa reduzida a seus erros antes de ser compreendida. A quadrilha, constituída 
por uma parcela da família, virou o seu todo, distorção que se perpetuaria pelo uso 
corrente no Estado da alcunha “O Bando dos Carneiros”. 
O semanário não existia para dar a palavra a todos, porque era da sua 
natureza reproduzir aquilo que Lopes Júnior (2006, p. 354) chama de “imagens da 
superfície”; existia, pois, para dar continuidade ao mais do mesmo e atiçar outras 
indignações naquele cuja trajetória havia sido retratada unilateralmente, já que, “na 
maior parte do tempo, rádio, TV, cinema, exibem máscaras ou fazem tagarelar, em 
vez de permitir ver os rostos e deixar falarem as vozes” (MORIN, 2003, p. 231). 
Essa, que é uma pobreza estrutural, também é uma incapacidade de ouvir, de 
qualificar as pautas, de complexificar conteúdos, de perceber o que não é óbvio, de 
constatar o que não fazia parte dos pressupostos,de descobrir o que se esconde 
por trás das poses e descobrir-se, pois “dar a palavra pode significar, isolada ou 
conjuntamente, dialogar, questionar, permitir dizer tudo” (MORIN, 2003, p. 231), o 
que drena o poder dos processos de estigmatização ao reintroduzir no debate as 
polaridades que o constitui como tal. 
Quando fazem esses apelos à sensibilidade moral pública, fazendo desta a 
base e a justificativa para sua vulgaridade, as redações servem para confirmar 
aquilo que é óbvio e que já é sabido, mas presta-se ao papel de ser uma máquina 
potente de criar, procriar e multiplicar estigmas e identidades deterioradas. Seria 
diferente se, em vez de investir nos imaginários da barbárie, fizesse a distinção entre 
a prática criminosa e a pessoa humana com vistas a condenar sumariamente o 
crime, não o humano que, bipolarizado entre luzes e sombras, habilidades e 
defeitos, pode a qualquer tempo mudar de via assim como mudou quando 
transgrediu. Não foi isso o que se viu naquela noite, e o cordelista reclama em seus 
versos (MEDEIROS, 2019, p. 76): 
49 
 
 
 
 
 
Naquele dois mil e três, 
Em vinte e quatro de julho, 
Grande barulho se fez. 
A sua história incompleta, 
Saiu no Linha Direta, 
Em milhares de tevês 
 
Falou Domingos Meirelles, 
Fazendo apresentação. 
A TV Globo mostrou 
Imagens do valentão 
Ninguém ouviu os Carneiro, 
Naquele programa inteiro 
Faltou muita informação. 
 
Se o que se busca é compreender quem ou o que somos, por que e movidos 
por quais afetos fazemos o que fazemos, não é razoável que seja assim, afinal 
“compreender um ser humano significa não reduzir sua pessoa à falta ou ao crime 
cometido e saber que ela tem possibilidade de recuperação” (MORIN, 2017, p. 127). 
O que se impõe é uma gramática que não tenha como primeira e única opção a 
punição; uma gramática que conduza à compreensão e tenha algo a dizer que não 
se restrinja à condenação sumária, ou seja, o que se impõe é a coexistência de uma 
noção apurada de justiça que se preocupe em ser devidamente aplicada e de um 
discernimento sofisticado da humanidade daquele que se tornou passível de uma 
pena, coabitado por nossos duplos. Isso pode evitar que nós ou outros, os 
julgadores, tornemo-nos implacáveis como implacáveis são aqueles que julgamos. 
 
Os humilhados, os odiados, as vítimas, não devem transformar-se 
nos que humilham, odeiam, oprimem. Eis o imperativo ético. Resta o 
caráter atroz do mal que se situa além do perdão e de todo castigo, o 
mal histórico que não cessa de devastar a história da humanidade. 
Esse é o desastre da condição humana. Quando as palavras 
"magnanimidade", "misericórdia", e "perdão" são esquecidas, 
ignoradas, e reclama-se um castigo que é vingança e aplicação da lei 
de talião, progride a nossa barbárie interior. [...] Favorecer a 
possibilidade de regeneração é mais do que nunca necessário neste 
mundo impiedoso. Há, na ética do perdão, uma ética da redenção. 
(MORIN, 2017, p. 132) [aspas do autor]. 
 
Entre uma vingança e outra, entre um desafeto e outro, o famigerado “bando 
dos Carneiros”, como passou a ser chamado em uma espécie de generalização que 
operava no sentido de implicar todos os parentes, segue levando temor à segurança 
das cidades assaltando bancos e interceptando carros-fortes. Seus feitos e seu 
50 
 
 
potencial bélico assustavam até mesmo as forças policiais federais que se 
percebiam frágeis ante aquele imenso poder de ataque que o grupo demonstrava e 
fazia questão de demonstrar nas emboscas e nos confrontos diretos. A partir de 
cada incursão e de cada aparição, Valdetário e seus homens conseguiam mostrar 
uma obstinação rara e mobilizar as atenções midiáticas e os aparatos de segurança 
locais, regionais e nacionais, como poucos haviam feito até aquele momento. O 
pânico generalizado passou a ser acompanhado de uma sensação de insegurança 
também generalizada, para quem viajava e morava no interior do Nordeste 
brasileiro. 
O que começou como uma vingança contra desafetos pessoais, com a 
projeção nacional ganhou maiores proporções, ampliando-se para a formação de 
uma quadrilha que direcionaria suas ações a todos aqueles que representavam o 
poder e os desafiariam como poucos haviam feito até então, pela ousadia, pelo 
poder de fogo dos membros, pelo ineditismo das suas emboscadas, por assaltos a 
grandes instituições financeiras e execuções que demonstravam sempre estar um 
passo à frente do trabalho de inteligência das polícias. Mas à medida que crescia e 
mantinha em curso o que havia extrapolado os limites das rivalidades familiares, foi 
se instituindo um movimento de dimensões políticas, sociais e culturais cuja 
extensão transformaria Valdetário Carneiro em um ícone envolto por enigmas que, 
instigados pelo sensacionalismo jornalístico, fariam seu nome povoar a imaginação 
popular. 
Ele, que precisou salvar a si salvando suas circunstâncias, que precisou 
encontrar jeito para ser livre, que fez das suas habilidades meios pelos quais pôde 
reagir à injustiça, mesmo que de modo reprovável, transformou a realidade que 
parecia incontornável, mudou o quadro que parecia inexorável, criou o próprio script, 
reposicionou as percepções, trocou os papeis que cada personagem deveria ocupar 
na tragédia que estava escrevendo, dirigindo e protagonizando com sua vida 
arredia, com sua revolta inveterada, com sua calamidade, com sua indignação 
dilacerante, seu suplício angustiante e seu destino lastimável. 
 
 
 
 
 
51 
 
 
2. 2 – O outro lado de um roteiro que não foi apenas triste 
 
Na contramão das informações que circulavam à exaustão, lendas 
começaram a se multiplicar sobre a quadrilha e principalmente sobre seu chefe, 
conferindo ao bando lugar no folclore do povo que, dividido entre o medo e a 
admiração, entre a objetividade das notícias e as fabulações possíveis a partir das 
crônicas do dia a dia que lhes chegavam, via-se diante de um caso de muitas faces. 
Caraúbas inteira ficava sabendo dos seus feitos pelo noticiário na mesma proporção 
que se proliferavam narrativas e causos de pessoas que, ao encontrar com Val, 
foram surpreendidas ao se depararem com um homem cordial e em nada parecido 
com aquele cuja reputação piorava a cada nova notícia e ação dos seus comparsas, 
o que fazia com que ele, Valdetário, começasse a se tornar uma figura enigmática, 
como se aquele que agia nas incursões criminosas fosse completamente outro nas 
relações interpessoais. 
Um desses casos é descrito por Paulo Nascimento e Rafael Barbosa (2013,p. 
19-20). É um causo famoso na cidade do oeste potiguar, protagonizado pelo 
bandoleiro e uma senhora de idade avançada que caminhava à beira da estrada 
sofrendo com o forte calor do sertão nordestino: 
 
— Tá indo pra onde, minha tia? 
— Caraúbas mesmo 
— Então suba aqui, que eu lhe dou carona. Tô indo pra lá também. 
— Ainda bem que o senhor me ajudou. Morro de medo de andar por 
aqui, por conta do tal de Valdetário. Tenho muito medo dele. 
— Qual a razão disso? 
 
 
Dentro de uma Silverado D-20, caminhonete preferida de Val e cuidada por 
ele nos mínimos detalhes, a passageira prossegue descrevendo algumas das 
façanhas aterrorizantes do “mais terrível filho” de Caraúbas, a fim de justificar seu 
pânico. A carona e toda a conversa se desenrolam sem que a idosa percebesse que 
seu benfeitor era, na verdade, aquele a quem ela, segundo os rumores e as notícias, 
mais deveria temer. Ao final da viagem, diz o relato, o motorista saca do bolso uma 
porção indefinida de dinheiro vivo, com cédulas de R$ 50, 00 e R$ 100, 00, e 
entrega à senhora que acabara de socorrer de uma caminhada desgastante, 
arrematando: 
 
52 
 
 
— Não tenha medo de Valdetário, não. Que esse homem sou eu e 
não faço nada do que já contaram para a senhora. 
 
 
 
 
 
 
 
Entre o motorista e sua carona, estava em curso a mais banal das 
normalidades e a manifestação de um múltiplo que era impensado. As impressõesà 
distância, as elaborações simplórias e as reações socialmente induzidas acerca das 
incursões de Valdetário como um facínora não combinavam com tudo isso. Como 
aquele homem generoso poderia ser tão vil, como diziam àquela senhora e como o 
noticiário induzia o pensamento coletivo, já que, além de bondoso, o homem foi 
cortês ao não ter esboçado nenhuma agressividade e nenhuma tentativa de se 
impor pela ameaça diante de uma descrição com o potencial de provocar seus 
ressentimentos e mágoas? 
 Ele até poderia ser tudo o que diziam, quando executava seus planos e seus 
assaltos, mas não era sempre aquele, porque outras forças confluíam para que o 
bandido não fosse apenas bandido e tivesse olhos para ver quem, à beira da 
estrada, precisava de compaixão. Munida das ferramentas que possibilitaria 
identificar logo que encontrasse o temível criminoso, aquela senhora foi incapaz de 
reconhecê-lo, pois aquilo que se realizava, a vida em fluxo contínuo, escapava às 
detecções superficiais que podem oferecer os moralismos do estigma. A realidade 
se sobrepôs à expectativa e Val, naquele encontro, voltou a ser um simples homem 
porque contra si havia apenas elucubrações que em tempo real não se 
confirmavam. 
No livro Causos de Caraúbas (GURGEL, 2017, p. 203-204), outro momento 
semelhante ao anterior. Ao invés de o destino ser Caraúbas e do passageiro ser 
uma senhora sem nome, que não esboça reação ao descobrir o nome do motorista 
benevolente, a personagem é um senhor chamado Manoel, a caminho do centro da 
cidade de Apodi/RN. Conforme Gurgel, Valdetário seguia viagem pela Zona Rural de 
Apodi quando, de repente, viu um senhor alquebrado acenar pedindo carona. 
Prontamente estaciona o carro, desce, abre a outra porta e facilita a entrada do 
senhor no veículo. Feito o embarque, os dois seguem viagem no frescor do ar-
condicionado do automóvel potente. Confortável e admirado com a caminhonete que 
para ele (acostumado ao mais simples) era um luxo, o passageiro puxa conversa: 
 
— O senhor vai pro Apodi? 
53 
 
 
— Vou sim. Vou tratar de negócios no banco. 
— O senhor tenha cuidado. Se vai tirar dinheiro no banco e andando 
nesse carrão, aqui por essas bandas, há muita gente perigosa por aí. 
Tem um tal de Valdetário Carneiro de muita fama na região que pode 
ser um grande risco, principalmente para quem é de fora. 
— Obrigado, eu vou ficar atento. E o senhor não tem medo de estar 
sozinho nessa beira de estrada? E se de repente lhe aparece o tal do 
Valdetário Carneiro? 
— Ele que venha! Um homem nasceu pra outro. 
 
 Chegando ao destino, o carona resolve fazer mais uma pergunta enquanto 
agradece o favor feito por aquele motorista de bom papo, aparência serena e acima 
de qualquer suspeita: 
 
— Obrigado por tudo, senhor. Vá com Deus. Mas como é mesmo o 
seu nome? 
— Eu sou Valdetário Carneiro. E o senhor, como se chama? 
— Eu sou o finado Manoel. 
 
Mesmo tendo o controle da situação, Valdetário não quis usar da sua posição 
para contrapor Manoel e conduziu a conversa a seu modo. Confortáveis, os dois 
homens estavam livres de amarras e a relação podia fluir sem as ressalvas abstratas 
da estigmatização. Eram de fato dois homens em prosa, não um homem e um 
bandido, um bandido e um homem; em última análise, era o fracasso do estigma. 
Nessas duas caronas, não se interpuseram o remorso, o desejo de vingança, 
possíveis ressentimentos contra uma cidade e uma região que em grande medida o 
havia rejeitado. Pelo contrário, houve o risível e um surpreendente contracenar de 
personagens que pelo contato direto foram levados a confrontar a imagem geral 
construída para Valdetário e o convívio com a pessoa, não mais com suposições. 
Val poderia ter aproveitar da situação, para justificar sua conduta e seus 
atentados terceirizando responsabilidades ou até mesmo imposto determinado 
autoritarismo que certamente lhe conferiria alguma sensação de poderio e grandeza. 
Não o fez e ainda manteve o anonimato em boa parte do tempo para não assustar, 
para não interromper a ajuda, para não atravessar a conversa. Ali, o homem das 
armas, apresentado como atroz, foi somente José Valdetário Benevides, o sertanejo 
54 
 
 
de boa prosa e de olhar atento a quem padecia sob o Sol do seu sertão, cujos 
sofrimentos ele conhecia de perto por tê-los experimentado. 
Duas narrativas, duas pessoas, um mesmo protagonista e dois finais 
semelhantes que falam sobre um homem surpreendente que, mesmo carregando 
nos ombros a culpa e o descrédito, escapava dos filtros e não se deixava capturar 
por instrumentos morais pré-estabelecidos; dois registros para recontar uma mesma 
história, escrever uma mesma vida, descrever uma mesma experiência, de sorte 
que, em contraposição ao que faz a estigmatização, com essas variações, o sujeito 
do desvio pode então ter a seu favor pontos de vista que se combinam a fim de dizer 
que ele, o desviante, não cabia nas delimitações da retidão absoluta. Duas cenas e 
um único ator dirigindo o próprio roteiro com aquelas coadjuvâncias circunstanciais. 
Com aquela senhora à beira da estrada e com o senhor Manoel a caminho de Apodi, 
Valdetário alargou as perspectivas e mobilizou aquilo que parecia sedimentado — 
sua identidade. 
Outro causo amplamente conhecido em Caraúbas diz que, ao invadir uma 
das agências bancárias com seus cúmplices, Valdetário Carneiro anuncia mais um 
assalto e ali demonstrará mais uma vez certa compaixão. Dentro do banco, havia 
um simples produtor rural que havia concluído uma venda de uma das suas vacas e 
precisava depositar dinheiro da venda. Nervoso com a situação, com a quantia em 
mãos pronta a ser entregue aos criminosos, o homem é surpreendido pelo chefe do 
bando que diz não querer fazer mal àquele trabalhador rural, pelo que ordena que o 
bancário do caixa receba a quantia, conclua o depósito e entregue o comprovante 
da conclusão ao depositante. Logo em seguida, exige do caixa que este repasse a 
ele os reais depositados, configurando o assalto à agência, não ao pequeno 
pecuarista que, desse modo, sairia sem prejuízo nenhum (BARBOSA; 
NASCIMENTO, 2013, p. 66). 
Os Caraubenses também têm conhecimento de outro episódio bastante 
peculiar (BARBOSA; NASCIMENTO, 2013, p. 71) que teria acontecido com um 
caminhoneiro, nas proximidades de Olho D’Água dos Borges/RN. Valdetário seguia 
caminho com seus comparsas. De repente, encontra o viajante à beira da estrada, 
com o veículo quebrado. O fora da lei, que não foi reconhecido pelo homem e que 
mantinha viva sua paixão por mecânica de automóveis, viajava em sua caminhonete 
com uma caixa de ferramentas que utilizava para urgências. Encosta o veículo, 
aproxima-se, inicia a conversa e oferece ajuda: 
55 
 
 
 
– Qual foi o problema, meu amigo? 
– O caminhão quebrou e não sei o que foi. 
– Posso tentar ajudar. 
 
 Habilidoso e excelente profissional que sempre foi, Val leva poucos minutos 
para identificar o problema e consertar o caminhão. Perguntado sobre quanto 
custava aquele serviço, dispensa o pagamento, mas estabelece uma condição: 
 
 
– Em qualquer lugar que você chegar diga que seu carro foi 
consertado por Valdetário Benevides. 
 
 
 O caminhoneiro cumpriu o combinado na primeira cidade que estacionou, 
ironicamente, Caraúbas. Aqueles que ouviram sua história quase não acreditaram 
no que ouviam e intervieram na história, informando ao homem quem era, ou havia 
se tornado, aquele homem que consertara seu caminhão. Ao ouvir o que diziam e 
avaliar o que aconteceu, ele quase não se conteve em pé por ter estado tão próximo 
àquele perigo do qual tomava conhecimento depois de tê-lo vivido. A verdade é que, 
em direções opostas e por razões diferentes, o episódio tornava incrédulos quem o 
viveu e quem passou a ouvir o relato do encontro, afinal, como poderia ser possível 
encontrar-se com um criminoso tido como absolutamente perigoso e não sofrer 
nenhum tipo de trauma, perda ou violência?Como o maior inimigo da segurança de 
todos poderia ser tão solícito? 
 Histórias como essas passaram a ser tão frequentes quanto a proliferação de 
acusações e notícias sobre aquele que, a cada nova aparição e cada novo crime, 
tornava-se o principal inimigo da segurança pública do Rio Grande do Norte e do 
Nordeste. Por onde quer que ele passasse, registros assustadores eram feitos 
acompanhados de narrativas intrigantes, provenientes desses encontros imprevistos 
que complexificavam sua imagem e abriam margem para que os observadores 
ficassem confusos acerca do que pensar sobre um homem que se mostrava 
implacável no crime e, ao mesmo tempo, solidário na rotina diária, no contato direto 
com as pessoas, como se precisasse mostrar e afirmar qualidades que seu percurso 
criminal obscurecia ou interditava ao grande público. Esses seus encontros e atos 
bondosos criavam as condições para a mitificação da sua identidade e do seu 
itinerário, que, paradoxalmente, logo se mostraria nobre em proporções equivalentes 
à aura de um homem inteiramente maléfico que as mídias veiculavam. 
56 
 
 
Importa menos descobrir se esses encontros de fato aconteceram ou se são 
produtos do imaginário popular do que se debruçar sobre que tipos de reações 
causam, sobre como ajudam a compor o imaginário das pessoas, como auxiliam na 
recontagem da própria história da cidade e do povo, que afetos alimentam, que 
aspectos da ordenação social revelam e incitam, como reverberam na região e quais 
impressões suscitam, porque aqueles causos dão causa a efervescências culturais, 
constroem símbolos, resistem ao tempo, povoam as memórias e embalam 
conversas. Ao contar e recontar esses encontros lendários, as pessoas revivem a 
história e a escrevem a seu próprio modo, regressam ao passado para trazê-lo ao 
presente e carregá-lo até ao futuro, de modo que, assim, reelaboram e perpetuam 
imagens que, uma vez transmitidas, podem ganhar novos traços e outras cores. 
Até hoje é comum ouvir na cidade relatos de um Valdetário completamente 
diferente daquele que aparecia nas suas intentonas. Ele costumava ajudar todos os 
pequenos agricultores, donos de sítios e propriedades onde se escondia com seu 
bando, distribuindo dinheiro aos que padeciam de alguma necessidade e 
viabilizando resoluções de problemas que aqueles mais pobres não conseguiam 
solucionar. As ajudas iam desde o fornecimento de mantimentos para custear a 
estadia dos seus homens ao pagamento de tratamentos médicos dos filhos doentes 
das pessoas, passando pelo pagamento de dívidas que elas tinham com credores 
dos mercadinhos locais e outros tipos de vendedores, de sorte que, apesar de ser 
completamente temerário em termos policiais e no que diz respeito às especulações 
do que seria capaz de fazer, ter aquele grupo hospedado em suas casas não era de 
todo um desprazer, depois que seu líder e seus liderados se ambientavam. 
Aos poucos, essa dicotomia entre o bandido dos grandes assaltos a bancos 
que não se curvava a ninguém e o caraubense que mantinha uma relação amistosa 
e solidária com as pessoas da sua região, distribuindo das riquezas que roubava 
para socorrer os que estavam em sofrimento foi crescendo, e o mistério em torno de 
quem era aquele homem e do que verdadeiramente ele era capaz de fazer ganhava 
o imaginário do povo que, a partir dessas ambiguidades, também foi formulando sua 
própria opinião sobre Val, estabelecendo um contraponto à narrativa predominante 
da mídia e à percepção geral dos demais. As lendas, os causos, as narrativas do 
povo sobre ele e seu carisma cativante narrados por aqueles que haviam tido a 
oportunidade de conhecê-lo pessoalmente enquanto fugia se multiplicavam na 
mesma proporção que o noticiário e suas ações concorriam para a criação da 
57 
 
 
imagem de um homem impiedoso, o que nunca se consolidou completamente entre 
os caraubenses. 
Esse paradoxo, que ainda perdura entre aqueles que falam sobre o assunto 
na cidade, era tão intrigante quanto as próprias artimanhas do bando. Na busca por 
entender isso, JH Primeira Edição fez uma série de reportagens para ouvir pessoas 
e personalidades que pudessem falar sobre suas percepções acerca daquela figura 
que escapava das classificações apressadas e que não cabia nos estereótipos, 
cujas ações haviam sido responsáveis por estabelecer um divisor de águas na 
região oeste do Estado. O interesse era identificar traços que pudessem ajudar a 
entender a mente e a pessoa por trás de toda a agitação causada. Uma das 
pessoas mais significativas entrevistadas foi o ex-prefeito Luiz Augusto da Cruz, no 
ano de 2009, que havia assumido o cargo por causa do assassinato do titular, 
Aguinaldo Pereira Simião, executado pelo bando de Valdetário. 
Nessa entrevista, mesmo tendo o destaque que tinha na cidade por ter 
ocupado o seu mais alto cargo e ter ciência do que Val havia feito a seu 
companheiro de mandato, justifica o motivo de tê-lo ajudado afirmando que ele era 
um homem cheio de qualidades e virtudes. Ao avançar na sua justificativa e sobre a 
experiência que teve ao ter de lidar com a quadrilha no auge das suas operações, 
Luiz Augusto conta mais duas histórias. A primeira diz respeito a uma tentativa de 
assalto que Valdetário Carneiro faria a única agência do Banco do Brasil na cidade 
de Caraúbas. Seria a segunda vez que o bando saquearia a agência. Ao ligar para o 
político a fim de avisar sobre o que pretendia fazer e pedir que ele não se 
deslocasse ao local naquele dia para não correr risco de ser ferido, Val recebe o 
apelo de Luiz para que ele não fizesse aquilo, pois, concretizado o segundo assalto, 
a superintendência do banco certamente retiraria a agência da cidade, o que 
acabaria prejudicando boa parte dos caraubenses, posto que aquele banco era a 
única fonte pagadora e recebedora do município. 
 
 
 
 
 
 
 
 
58 
 
 
Figura 9: ex-prefeito de Caraúbas sobre sua relação com Valdetário 
 
 
Fonte: JH Primeira Edição, n° 1.146, ano 4, 19/03/2009 
 
Transigente ao apelo e levando em consideração os argumentos do prefeito, 
Valdetário Carneiro desiste do plano sob a condição de receber a quantia de R$ 15 
mil que, além de servir para comprar combustível e alimentos que fariam sua 
quadrilha dar continuidade a suas empreitadas, era uma quantia inferior àquela que 
poderia ser subtraída do banco. O prefeito pagou e o assalto não ocorreu. A bem da 
verdade, angariar grandes quantias a fim de ostentar luxo ou riqueza não era o 
objetivo do chefe dos Carneiro. Segundo o ex-prefeito, o próprio Valdetário, a quem 
Luiz chamou de “espatifado” na mesma entrevista, costumava dizer que “dinheiro 
em suas mãos não durava dois dias”. Os grandes montantes assaltados estavam 
mais a serviço da sua empreitada obstinada contra o sistema que o havia 
massacrado e do socorro dos desfavorecidos do que da sua ganância. 
Luiz Augusto da Cruz ainda conta ao JH outro episódio entre ele e Val, no 
qual pôde constatar virtudes que o ex-prefeito passaria a reconhecer e admirar. Ele 
narra que alguns dos integrantes do bando estiveram nas mediações de Caraúbas 
em busca de carne para um churrasco que pretendiam fazer. Para conseguir, 
mataram dois bois e os conduziram mortos para o esconderijo onde os demais 
estavam alojados. Ao ver aqueles bois, Val estranhou e ligou ao prefeito a fim de 
obter detalhes sobre a quem pertenciam o gado e como havia ocorrido a ação. Luiz 
revela a Val que os bois pertenciam a um parente, pequeno pecuarista caraubense. 
Imediatamente, o chefe do bando ordena que um dos seus homens ressarcisse a 
59 
 
 
quantia correspondente aquele roubo a Luiz Augusto que, por sua vez, seria o 
responsável por devolver ao pecuarista prejudicado. A quantia, relata o ex-prefeito, 
foi muito generosa, afinal, diz Luiz, Valdetário “não aceitava que um pobre tivesse 
prejuízo”. 
Esse era e é o espectro em torno de Valdetário Carneiro e sua história.Os 
moradores da cidade, apesar das hesitações advindas dos tabus que envolvem o 
tema, não demoram a reconhecer que ele era realmente uma pessoa diferenciada, 
um fora da lei que oferecia mais riscos aos grandes e aos donos do poder do que a 
eles, caraubenses comuns, que foram seus vizinhos, seus conhecidos, seus amigos, 
seus clientes. A memória desses encontros, dessas atitudes de Val, desse bandido 
que mostrava não ser exatamente um perigo para aqueles que com ele conviviam, 
reavivada todas as vezes nas quais um novo causo vem à tona ou em que o 
jornalismo se detém a reportar mais do que uma folha corrida de crimes, foi e é 
responsável pela incapacidade de fazê-lo caber em uma única classificação. 
Havia, portanto, uma distância substancial entre o discurso moralizador e 
hegemônico, que reprovava as ações de Valdetário e da sua quadrilha, e as 
experiências que as pessoas mais simples haviam tido com eles. Val não se 
encaixava em nenhuma classificação unitária, isto é, qualquer tentativa de 
enclausurá-lo em uma categoria logo se mostrava em vão, pois era cada vez mais 
difícil esquadrinhar sua personalidade e torná-la estática. Ele movia-se, e com ele 
moviam-se e mudavam seus instintos, suas decisões, suas escolhas, seus modos 
de ser e aparecer ao público, tornando-o uma figura ambivalente para a opinião 
geral e para a compreensão mesma de quais eram suas reais intenções: queria só 
vingança ou tinha algo mais a dizer ou fazer pelos seus? 
Em seu polêmico livro Bandidos (2017), que inaugurou um novo ramo na 
historiografia ao se debruçar sobre o banditismo, Eric Hobsbawm apresenta e 
interpreta diversas personalidades de diferentes lugares e de variadas culturas do 
mundo que se notabilizaram através de crimes, mas, mesmo assim, passaram para 
a história como sujeitos representativos de uma causa ou de valores que 
conseguiram cativar as atenções, o imaginário e a respeitabilidade daqueles que 
representavam ou protegiam. O historiador inglês sustenta que são três os tipos de 
bandidos dessa natureza: os heróis, os vingadores e os líderes de uma revolução. 
Sua análise perpassa o lendário Robin Hood, a quem ele chama de “ladrão nobre”, 
por roubar dos ricos para distribuir aos pobres, até Lampião e os cangaceiros, 
60 
 
 
“homens que provam que até mesmo os fracos e pobres podem ser terríveis” 
(HOBSBAWM, 2017, p. 84), passando pelos expropriadores que roubavam para 
conquistar fundos aos revolucionários e às suas causas. 
O interessante, todavia, consiste em ler a história de Valdetário com as lentes 
do historiador inglês e perceber que o sertanejo caraubense não cabe 
exclusivamente em nenhum desses grupos, dado que tanto a vingança quanto a 
caridade compuseram seu percurso, fazendo-o ser um quarto para o qual a teoria 
deve se voltar para conceber essa mestiçagem e fazê-la ponto de partida para 
compreender a complexidade próprias de fenômenos que, em função da sua 
particularidade, prescindem da teoria, porque são fluxos contínuos e igualmente 
descontínuos de vida. 
É certo que “o banditismo desafia simultaneamente à ordem econômica, a 
social e a política, ao desafiar os que têm ou aspiram a ter o poder, a lei e o controle 
dos recursos” (HOBSBAWM, 2017, p. 21), e que não pode existir na ausência de 
ordens socioeconômicas e políticas que possam ser assim desafiadas, como 
existiam e podiam ser na Caraúbas daquela época. Valdetário Carneiro, por tudo 
que fez e pelo que representa para muitos dos que o conheceram de perto, está a 
meio caminho do herói e do vingador que se alternam nas suas relações com o 
poder e os poderosos, com seu povo e seus familiares, mas que não deixaram de 
proporcionar uma efervescência cultural, uma profusa cadeia de simbologias e 
identificações semelhantes àquelas que se multiplicaram, por exemplo, na literatura 
e no cinema através de Robin Hood, de Virgulino Ferreira da Silva e do Cangaço, 
como se esses acontecimentos se irmanassem na luta por encontrar um lugar no 
mundo e um modo para sobreviver e se desvencilhar dos próprios descaminhos. 
Trata-se de uma “auto-ética” (MORIN, 2017), que é uma arte de vida, uma arte 
para viver e, como tal, “não pode obedecer a uma regra estabelecida de uma vez 
por todas” (MORIN, 2017, p. 138), pois é uma autonomização em relação à moral 
hegemônica, às normas e às interdições da sociedade. É uma ampliação do próprio 
repertório moral, já que na moralidade tradicional a honra é determinada por aquelas 
normas e por aquelas interdições, enquanto que “na auto-ética a imagem de si é 
pessoal: é para si mesmo, em função das normas adotadas pessoalmente e, 
assumidas, que se deve preservar a honra” (MORIN, 2017, p. 99) que, uma vez 
maculada, Valdetário precisou reaver, sendo para uns aterrorizante e para outros 
admirável, além de ser o socorro necessário em momentos de desamparo, o que 
61 
 
 
intrigava e continuou a intrigar a todos que foram tomando ciência dessa sua 
variação: afinal, o que ou quem era Valdetário Carneiro? Devia ser temido ou 
respeitado? As dúvidas perduram e são reproduzidas pelas vozes que discursam 
sobre Val e as mentes que tentam entender seu legado. 
Figura 10: capa de jornal que reproduz as controvérsias em torno de Valdetário 
 
 
 
 Fonte: O Mossoroense, n° 16. 806, 23/11/2014 
 
O homem que roubava dos bancos e atentava contra os donos do poder era 
incapaz de perpetrar sofrimento aos que, como ele havia experimentado um dia, já 
sofriam demasiadamente pela pobreza, pelas condições precárias de vida, pela 
labuta extenuante ou pelo descaso público. Esse era outro tipo de ética 
demonstrada por Valdetário Carneiro: a ética do religar que opera no sentido de 
construir e manter uma ética da comunidade que, apesar de romper com as 
convenções morais, o mantinha vinculado a suas raízes, a seu povo, aos vivos que 
padeciam, naquilo que pode ser considerada uma ação moral que consiste em um 
“ato individual de religação; religação com um outro, religação com uma 
62 
 
 
comunidade, religação com uma sociedade e, no limite, religação com a espécie 
humana” (MORIN, 2017, p. 21). 
De acordo com Morin (2017), são três as fontes da ética: biológica, individual 
e social. Valdetário rompeu com esta última, da qual o ordenamento legal deriva, 
porém conservou e expressou a segunda dessas fontes à medida que se inscreveu 
em uma comunidade, em um nós, que o impulsionou à amizade e ao amor, levando-
o ao altruísmo, de modo que tudo aconteceu como se ele “comportasse um duplo 
software, um comandando o ‘para si’ e o outro comandando o ‘para nós’ ou ‘para o 
outro’; um comandando o egoísmo, o outro comandando o altruísmo” (MORIN, 2017, 
p. 20), comandos que nascem da autodeterminação do indivíduo-sujeito que, em 
virtude das circunstâncias que deve encarar, assume o controle de tudo que pode 
acerca do seu destino e constrói ele mesmo alternativas para poder situar-se, visto 
que “não existe piloto automático em ética, a qual sempre enfrentará escolha e 
aposta e sempre necessitará de uma estratégia” (MORIN, 2017, p. 159). 
Ainda que essa ética do indivíduo que elabora para si os estratagemas que 
permitirão resistir a crueldade do mundo, que assedia a todos e a cada um, desde 
os próprios erros até os abusos aos quais as pessoas são submetidas por outros, 
não se coadune com a ética da sociedade, sua aparição, suas reivindicações, seus 
conteúdos, as turbulências que pode causar são reveladoras do que pode o homem 
e de seus predicados por vezes domesticados e enclausurados demais para 
poderem se exprimir de outra forma que não seja pela revolta, pela subversão da 
ordem, pelo desconsiderar dos limites impostos pelos regimentos e pelas regras 
implacáveis que, na tentativa de extirpar o mal, apenas o desloca, tendo em vista 
que “o bem e o mal nem sempre são evidentes e, às vezes, são falsamente 
evidentes. Comportam incertezas e contradiçõesinternas, ou seja, complexidade 
ética” (MORIN, 2017, p. 58) para a qual uma moral inclemente não está preparada. 
Foi o que sobreveio a Valdetário. Ele, que oscilou de uma extremidade a 
outra, de um tipo de pessoa a outro, e sobre quem deveria pesar o rigor da lei, 
enquanto mostrava ser um humano na sua inteireza ambivalente, dotada de 
múltiplas capacidades de resistir ao que lhe era opressor, seguia desafiando a 
inteligência das forças de segurança, confrontando o aparato legal e expondo a 
fragilidade daqueles que elegeu como adversários ou que se tornaram inimigos 
inevitavelmente por tentarem impedir seus planos, de modo que parar aquele 
homem e pôr fim a sua carreira era um imperativo. As polícias militar, civil e federal 
63 
 
 
foram mobilizadas. Todos os instrumentos de investigação e de busca passaram a 
ser utilizados para prender o bando que despontava como um dos mais difíceis de 
encontrar, tanto pelo alto grau de organização quanto pelo poder de confronto que 
demonstrava em suas incursões. 
 Essa era uma percepção que Valdetário também tinha. Depois de uma vida 
de fugitivo intensamente errante, decide parar e refugiar-se no Estado do Maranhão 
com Silvana e o último filho, Gabriel, ainda de colo. Já havia conseguido dinheiro 
suficiente para viver tranquilamente sem se preocupar com o sustento dos dois 
(BARBOSA, NASCIMENTO, 2013). Antes de realizar o plano final, no início de 
novembro de 2003, os três refugiam-se no sítio Pau de Leite, na comunidade 
Serrote de Baixo, zona rural de Lucrécia/RN. Aquele lugar, o último refúgio escolhido 
para abandonar suas errâncias, seria o cenário para o desfecho de uma perseguição 
que, por uma questão de honra, interessava às forças responsáveis pela 
manutenção da ordem. A polícia se encarregaria da operação que mataria o homem 
e poria fim à rivalidade que havia ganhado contornos pessoais, isto é, corporativos. 
As circunstâncias da morte variam e as versões sobre os detalhes do cerco 
montado para capturar o fugitivo não são unívocas. Sabe-se, entretanto, que, 
próximo à data em que a fuga definitiva ao Maranhão aconteceria, pelo menos 5 
parentes receberam uma carta anônima de um suposto policial que dizia admirar a 
família, avisando sobre um plano em curso para matar Valdetário naquele lugar e 
que sua fuga deveria ocorrer o mais rápido possível (VIANA, 2010). A missiva, que 
continha os nomes dos envolvidos no planejamento, gera desconfiança, afinal 
poderia ser parte do estratagema para encontrá-lo e armar uma emboscada para 
descobrir quais familiares eram seus cúmplices. Além disso, o esconderijo era 
desconhecido por todos e não era possível avisá-lo do que estava sendo planejado. 
As versões convergem quanto a isso. No mais, divergem acerca da abordagem e 
sobre os detalhes do confronto, na madrugada do dia 10/12/2003. 
 23 policiais civis e militares foram destacados para a operação. Ao chegarem 
próximo ao sítio, por volta de 1km, desligam as viaturas e seguiram a pé. À medida 
que cercam a casa, preparam-se para um possível confronto que poderia ocorrer a 
qualquer momento. Ao perceber a movimentação, um cachorro que estava no 
alpendre late compulsivamente, acordando Valdetário, que questiona quem estava 
ali. Os agentes respondem dizendo ser a polícia e que ele estava cercado. De 
acordo com os relatos formais, Val reagiu a tiros, e os policiais responderam na 
64 
 
 
mesma proporção. A primeira versão, contada pelo delegado Ridagno Pequeno de 
Lima, responsável pela diligência, atesta que o homem, em vez de sair pela porta, 
pulou a janela e seguiu disparando, de modo a ser atingido no local e, ainda com 
vida, sem nada a dizer, foi socorrido e levado ao posto de saúde da cidade onde 
estava o sítio. 
 
Figura 11: delegado responsável pelas investigações e Silvana Alves 
 
 
 
Fonte: Jornal de Fato, Mossoró, edição de 17/12/2003 
 
A segunda versão, elaborada por Silvana Alves, documentada em livro 
(BARBOSA; NASCIMENTO, 2013, p. 140-141) e confirmada pelo laudo pericial 
testifica que o confronto de fato aconteceu, mas que foi mais longo do que fazia crer 
o depoimento de Ridagno e que a causa da morte foram três tiros que atingiram sua 
cabeça provocando um traumatismo craniano, informação antes omitida pelo 
delegado. Ela diz que, ao perceber a emboscada, Valdetário sai pela porta da frente 
disparando contra o pelotão com um fuzil em mãos. Durante o tiroteio, a mulher 
volta-se para seu filho na tentativa de protegê-lo com o próprio corpo. Enquanto 
atira, Val tenta fugir correndo casa a fora em busca de um lugar seguro. Ao vê-lo 
65 
 
 
correr, Silvana toma Gabriel nos braços e segue seu companheiro. Os tiros se 
intensificaram. Os agentes envolvidos insistiram e seguiram atirando até atingi-lo, o 
que provocou sua queda. Ao se aproximarem do homem atingido, mesmo rendido 
pelo ferimento e sem chance de revide, os policiais disparam os tiros que seriam os 
fatais. 
Silvana relatou que os policiais chegaram a apontar suas armas para ela e a 
criança. Isso assustou Valdetário que, ainda vivo, antes dos três tiros que o 
matariam, pediu clemência por sua mulher e filho se rendendo, disposto a se 
entregar sem complicações. Poupados, a namorada e o filho testemunharam a fúria 
policial desrespeitando o rito normal de uma prisão de um foragido. A ação, que a 
rigor deveria ser destinada à captura de um bandido na forma da lei, havia se 
tornado em uma trincheira de guerra para acertos de contas entre forças que há 
muito eram desafiadas pela ousadia daquele que, morto, serviria de prêmio ao 
Estado e às corporações que desde a irrupção de Valdetário foram constantemente 
desafiadas e expostas ao ridículo pela baixa capacidade de responder à altura o 
bando. 
As investigações foram concluídas sem que se chegasse a um resultado 
satisfatório à família Carneiro e aos moradores de Caraúbas, sobretudo porque as 
únicas pessoas que presenciaram e depuseram sobre o ocorrido estavam e estão 
em lados opostos e comprometidas demais com suas versões para serem tratadas 
como finais. As suspeitas persistem no tempo, assim como as dúvidas sobre o que 
de fato aconteceu naquela madrugada. Os jornais da época apresentaram as 
controvérsias, como pode ser visto nas manchetes destacadas, concluindo, 
inclusive, que sim, houve execução, assim como o fez a Gazeta do Oeste. Ambos os 
depoimentos confirmam que houve confronto, mas como este ocorreu e até que 
ponto permaneceu nos limites da legítima defesa continua um mistério, e as partes 
envolvidas, as mesmas que testemunharam o confronto, podem ser igualmente 
posta em suspeição por autopreservação de si e das suas narrativas. 
 
 
 
 
 
 
 
66 
 
 
Figura 12: capa da Gazeta do Oeste da edição que repercutiu o assassinato 
 
 
 
Fonte: Jornal Gazeta do Oeste, n° 6.475, ano 27, 11/12/2003. 
 
Couberam aos aplausos em massa ao corpo velado e à aclamação ao 
homem assassinado, que já havia se tornado símbolo para alguns e querido por 
muitos, as últimas homenagens, o lamento, o estupor por ver derrotado, sob a égide 
da desconfiança, da crueldade e da deslealdade quem, apesar de ter mostrado 
arroubos de maldade, exibiu exemplos opostos de lealdade, bondade e hombridade. 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
67 
 
 
3. A CONDIÇÃO HUMANA ENTRE EXTREMOS: DESAFIO PARA O BEM-PENSAR 
 
Sou um dos fracos? Fraca que foi tomada por 
ritmo incessante e doido? Se eu fosse sólida 
e forte nem ao menos teria ouvido o ritmo? 
Não encontro resposta: sou. É isso apenas o 
que vem da vida. Mas sou o quê? A resposta 
é apenas: sou o quê. Embora às vezes grite: 
não quero mais ser eu!!! Mas eu me grudo a 
mim e inextricavelmente forma-se uma 
tessitura de vida. 
(Clarice Lispector) 
 
 
O homem é louco-sábio. A verdade humana 
comporta o erro. A ordem humana comporta a 
desordem. 
(Edgar Morin) 
 
Eu não queria ser o que fizeram de mim. 
(Valdetário Carneiro) 
 
A terceiraepígrafe deste capítulo é a transcrição da frase mais conhecida e 
reveladora de Valdetário Carneiro, dita em uma das muitas entrevistas que ele 
convocava pelo telefone a distância, principalmente com o falecido radialista e seu 
conterrâneo Otoniel Maia de Oliveira, que trabalhou a maior parte da sua carreira 
nos veículos de comunicação de Mossoró e destacou-se pela coragem de ouvir e 
emprestar seus microfones àquele que parecia tão inacessível quanto difícil de 
capturar6. Em Caraúbas e em toda a região oeste do Estado, por causa ao alvoroço 
que causava a cada fala pública, Val permanecia presente mesmo sem ser visto. 
Nas falas de Valdetário naquelas entrevistas, além de ameaças àqueles que 
continuavam a perseguir a ele e à família Carneiro, continham revelações e 
acusações feitas por ele mesmo contra seus adversários, que permaneciam 
desfrutando das suas liberdades apesar dos crimes e contravenções cometidos. 
Falar à rádio era a rara oportunidade de ser ouvido pelo maior número de pessoas 
possíveis, que só tinham acesso ao discurso oficial, e apresentar a própria versão de 
 
6 Quando da morte do jornalista em 2015, um jornal de Mossoró fez uma reportagem sobre a vida e o 
legado do comunicador, fazendo o devido destaque para as entrevistas exclusivas que ele conseguia 
realizar com Valdetário. Link para acesso à matéria: https://mossorohoje.com.br/noticias/4691-veja-
historia-do-radialista-e-vereador-otoniel-maia. 
https://mossorohoje.com.br/noticias/4691-veja-historia-do-radialista-e-vereador-otoniel-maia
https://mossorohoje.com.br/noticias/4691-veja-historia-do-radialista-e-vereador-otoniel-maia
68 
 
 
sua vida e dos fatos. À distância, o homem agitava a cidade, causava alvoroço, 
mostrava sua ousadia, sua inconfiscável autodeterminação, sua ausência de medo. 
 
Figura 13: capa de Jornal sobre as entrevistas de Valdetário 
 
Fonte: Gazeta do Oeste, n° 5.114, ano 23, 28/12/1999. 
 
Esse, que era o modo pelo qual o mecânico protegia a si daquilo que 
considerava difamações, também foi se constituindo como uma maneira para 
proteger a própria família, que se vulnerabilizava tanto por seu histórico quanto pela 
ascensão da quadrilha composta por alguns dos seus membros mais conhecidos, o 
que era o pretexto ideal para os inimigos dos Benevides Carneiro atacarem ou 
caluniarem desde os mais implicados às ações criminosas até àqueles que não 
tinham nenhuma participação no bando, naquela que seria uma ofensiva incessante 
para tornar os Carneiros absolutamente detestáveis, inviabilizando qualquer 
pretensão política. 
A confissão contida na célebre frase de Valdetário emerge desse contexto 
intricado e é a revelação de um homem às voltas consigo, com as consequências 
das suas escolhas, com suas culpas e vergonhas, mas também o lamento de 
69 
 
 
alguém que tinha consciência suficiente dos seus atos para entender que tudo o que 
havia acontecido não precisava ter sido como foi, por isso, pôde ter a lucidez para 
fazer sua autocrítica que, ao mesmo tempo em que atestava sua responsabilidade 
por seus erros, depunha contra os arranjos e as orquestrações que concorreram 
para a sequência de eventos disruptivos que foram se acumulando em sua 
trajetória: 
 
o desvio sobrevém sob o efeito de formidáveis correntes que se 
apoderam dos seres, de forças colossais que os envolvem e os 
desorientam como a aranha a sua pressa, e que conduzem 
insensivelmente os indivíduos aos extremos opostos de seu objetivo 
inicial (MORIN, 2013, p. 90). 
 
É preciso levar em consideração que “a luta fundamental da autocrítica é 
contra a autojustificação” (MORIN, 2017, p. 96), por isso constitui um erro crasso 
reduzir a vida do mecânico caraubense a seus crimes, porque, ao fazê-lo, ficam de 
fora os mais sutis (mas não menos profícuos) conteúdos da experiência de existir 
como humano. Val, que reconhece ter se tornado algo de muito ruim e elabora em 
público sua autoanálise crítica, trava também o combate contra a máquina cerebral 
que insistentemente opera para se inocentar, se legitimar e se promover na vida 
cotidiana e na vida pública, que “são feitas de autojustificações que se chocam 
cegamente entre elas” (MORIN, 2017, p. 96). 
Mesmo que movido pela raiva e pela obstinação de fazer frente a seus 
detratores, o caraubense que busca ter vez e voz para falar e denunciar é o mesmo 
que demonstra modéstia, autopercepção aguçada e senso de gravidade acerca dos 
seus feitos, de modo que os ouvintes podiam ouvir e presenciar alguém que, apesar 
de tudo, não havia perdido sua sensibilidade, sua humanidade e a consciência dos 
próprios erros. Sustentava ao mesmo tempo a imagem de homem frágil e imbatível. 
Era mais um contrassenso que aquele homem de difícil categorização oferecia ao 
debate e à opinião pública. 
Seus crimes falavam sobre sua criminalidade, não sobre sua humanidade; 
falavam da sua revolta, dos seus conflitos pessoais, das suas rixas e queixas, não 
de tudo que ele havia sido e do que passou a representar. Sua marginalidade era 
somente parte de um todo que foi se desvelando a cada passo, mas que não podia 
ser dissecado, porque ainda estava em reconstrução, ainda não havia se 
consumado, ainda não havia conseguido conjugar-se sendo plural. São as sutilezas 
70 
 
 
profundas do humano que se inscrevem na memória de um povo, e “é isso o que 
conta na vida: imprimir nossa maneira de ser no mundo” (ALMEIDA, 2016, p. 74). 
De um modo ou de outro, a contragosto ou não, pelas paixões avassaladoras, 
pelos filhos e amigos que o tiveram em alta conta por causa da grandeza com que 
sempre os tratou, até quando passou pelos piores momentos, pelas memórias que 
perduram e compõem a própria história de Caraúbas, pelo seu modo de reivindicar a 
honra e o respeito que lhe haviam sido tirados, pela maneira inédita com que se 
colocou à margem da lei, por seus paradoxos estimulantes, Valdetário imprimiu sua 
maneira de ser cravando seu nome para sempre na historiografia do Estado, 
suscitando afetos que resistem ao tempo e renovam-se cada vez que sua saga é 
narrada de uma geração à outra. 
O assaltante a que todos temiam e que impunha um pavor desmedido à 
segurança pública pelo que se noticiava tinha a capacidade de reconhecer seus 
defeitos, sua perversão e seu delírio por causa da cultura psíquica que sua 
autocrítica fez nascer, que convida “a estabelecer um diálogo entre as nossas 
múltiplas personalidades que se ignoram” (MORIN, 2017, p. 97). Esse é o ponto 
central do humano dual que se mostra a partir de Valdetário e denuncia a moral 
corrente como inclemente, já que “sempre quis ignorar que a duplicidade é um 
estado normal, constitutivo, e só quer reconhecê-la para condená-la” (MORIN, 2003, 
p. 139): 
 
a única moral que sobrevive à lucidez é aquela em que há conflito ou 
incompatibilidade de exigências, isto é, ao mesmo tempo uma moral 
sempre inacabada, enferma como o homem, e uma moral em 
problematização, em combate (interior, exterior), em movimento, 
como o homem (MORIN, 2003, p. 111). 
 
Para Conceição Almeida, que entende ser preciso redefinir permanentemente 
a condição humana para não a encerrar em clausuras conceituais, essa condição 
poderia ser compreendida como uma aventura marcada pela conjugação de três 
esferas: os determinismos, como aquilo que é da ordem do que está posto; as 
circunstâncias, como aquilo que nos é dado a experimentar na nossa história 
singular; e as escolhas, a arte estratégica de decidir entre determinismos e 
circunstâncias (ALMEIDA, 2017, p. 151). Ao colocar-se nessa aventura 
autonomizando-se e construindo seu próprio plano para decidir entre uma coisa e 
outra, Valdetário fez da sua jornada uma tela pela qual se pode apreciar, observar, 
71 
 
 
entender e criticar o humano, em cujas criações “há sempre a dupla pilotagem 
sapiens-demens no circuito bipolar” (MORIN, 2012a, p. 127). 
Ele, que não foi somente bandido e não foi somentevítima, que não foi 
apenas cruel, que não foi absolutamente virtuoso ou completamente mau, que 
oscilou entre um polo e outro, exprime com clareza a multiplicidade da espécie 
humana que se divide entre a ordem e a desordem, entre a loucura e a razão, entre 
a coerência e a ambiguidade, o equilíbrio e a desmedida, o acerto e o erro à medida 
que se situa e age no mundo. Sua violência lhe era tão própria quanto sua 
benevolência para com os desvalidos; seus rompantes de ódio lhes eram tão 
peculiares quanto sua parcimônia demonstrada em seus encontros fortuitos, de 
modo que essas antinomias partilhavam do mesmo “eu” chamado José Valdetário 
Benevides. 
Somos como o caraubense e ele é um dos nossos, partilhamos da mesma 
matéria constitutiva que possui suas gradações e suas maneiras de permanecerem 
escondidas, afinal, como lembra Edgar Morin, os germes das nossas loucuras estão 
escondidos em cada indivíduo, em cada sociedade, de modo que “o que nos 
diferencia dos outros é o maior ou menor controle, sublimação, dissimulação, 
transformação de nossa própria loucura” (MORIN, 2012a, p. 119). A rigor, o 
banditismo que é de todo repulsivo consiste em uma das várias manifestações 
daquilo que temos a oferecer, seja em estado concreto ou em potencial, pois “a 
realidade humana comporta, a despeito de qualquer consolo ou promessa de 
salvação, uma parte horrível que, embora mascarada, persiste” (MORIN, 2012a, p. 
125). Desse modo, “paremos de sonhar o homem, paremos de fazer do humanismo 
uma religião: assim, ele não seria apenas um narcisismo generalizado ou 
hipostasiado. O homem só é grande na consciência que ele tem da sua miséria” 
(COMTE-SPONVILLE, 2008, p. 326). Nas palavras de Morin, 
 
a agressividade é camuflada ou ativa em quase todas as nossas 
atitudes; a agressividade em relação ao outro que uma insignificância 
transforma em inimigo, agressividade em relação às coisas: 
gostamos de ver malhar o ferro, esmagar e triturar a matéria, e a 
conquista do mundo traz a marca da triunfante agressividade 
humana; agressividade em relação a nós mesmos enfim (MORIN, 
2003, p. 127). 
 
 Sendo assim, “aquilo que deve morrer é a autoidolatria do homem, 
admirando-se na imagem pomposa de sua própria racionalidade” (MORIN, 1975, p. 
72 
 
 
199) que constrói monumentos à justiça, à moral apropriada, ao justo, ao 
inquestionável, ao correto, à retidão que ele mesmo considerou como tal sem 
perceber que ele, o próprio construtor, padece de vulnerabilidades que não lhe 
permitem obedecer à risca as regras formuladas por si mesmo. Resta como tarefa a 
ser exercida permanentemente, porque as pessoas metamorfoseiam-se em ato 
contínuo, denunciar essas vulnerabilidades para que aquilo que é propriamente 
humano seja tratado como tal e para que suas construções, por mais racionais e 
lógicas que sejam, não prescindam da consciência de que foram feitas por mãos 
errantes e nem tampouco sejam sobrevalorizadas ao ponto de torná-las superiores e 
senhoras absolutas do seu próprio construtor vacilante, inapreensível por completo. 
Exatamente por isso e por não haver razão para se supor que somente 
aqueles que finalmente cometeram um ato desviante têm o impulso de fazê-lo é que 
“em vez de perguntar por que desviantes querem fazer coisas reprovadas, seria 
melhor que perguntássemos por que as pessoas convencionais não se deixam levar 
pelos impulsos desviantes que têm” (BECKER, 2008, p. 37), posto que, “pelo menos 
em fantasia, as pessoas são muito mais desviantes do que parecem” (BECKER, 
2008, p. 37). Pergunta reformulada, reformula-se também o problema do desvio e do 
erro incluindo em seu espectro aqueles cuja retidão os eleva à posição de juízes 
irrepreensíveis daqueles e das coisas que caem em desgraça, em um tipo de 
ingenuidade intelectual e intransigência ética que mais separa do que reúne, que 
mais afasta do que reintegra. 
 O criminoso a que muitos temiam como um facínora e que era cassado pelas 
polícias como um bárbaro, amou, gerou filhos, formou famílias, estabeleceu e 
reafirmou vínculos, implicou pessoas nas suas empreitadas e as defendeu, foi 
deixando marcas na memória afetiva daqueles que tiveram oportunidade de conviver 
consigo, viveu uma história paralela àquela que corria pelos vários cantos do Rio 
Grande do Norte. Ele foi aquele que se pode depreender dos seus crimes, mas 
também foi um outro tão marcante e memorável quanto o primeiro, sem deixar de 
ser humano, sem deixar de ser Valdetário, sem deixar de ter sua dignidade. 
O humanismo ingênuo fundamenta-se no duplo contrassenso humano e 
inumano (MORIN, 2003), sem se dar conta que essas classificações não refletem a 
realidade da experiência do homem complexo. Essa noção precisa ser o ponto de 
partida para uma “ética da compreensão” (MORIN, 2017, p. 200) que se desdobra 
em uma resistência à crueldade do mundo, da vida, da sociedade e à barbárie 
73 
 
 
humana que pode ser detectada naquele que erra, mas também naqueles que 
observam o erro, afinal, “uma justa indignação pode conduzir à injustiça que ela 
condena” (MORIN, 2003, p. 206), sobretudo porque “sapiens está em demens e 
demens está em sapiens, em yin e yang, um contendo o outro” (MORIN, 2012a, p. 
141): 
 
trata-se de um ser de uma afetividade imensa e instável, que sorri, ri, 
chora, um ser ansioso e angustiado, um ser gozador, embriagado, 
extático, violento, furioso, amante, um ser invadido pelo imaginário, 
um ser que conhece a morte e não pode acreditar nela, um ser que 
segrega o mito e a magia, um ser possuído pelos espíritos e pelos 
deuses, um ser que se alimenta de ilusões e quimeras, um ser 
subjetivo cujas relações com o mundo objetivo são sempre incertas, 
um ser submetido ao erro, ao devaneio, um ser híbrico que produz 
desordem (MORIN, 1975, p. 116). 
 
Somos um composto que, a exemplo da própria pessoa de Valdetário, não se 
reduz a um catálogo unitário; somos, assevera Almeida (2017, p. 148), um caso 
possível, um acontecimento chamado homem, uma forma de vida que atende pelo 
codinome de sapiens-sapiens-demens, pois assim se constituiu e assim pode ser de 
fato reconhecida pelo que possui de mais singular. É preciso afirmar e reafirmar 
essa condição para impor uma frente de pensamento que se oponha à face do 
homem escondida pelo “conceito tranquilizador e emoliente de sapiens” (MORIN, 
1975, p. 116), a fim de se contrapor ao reducionismo sociológico e ao moralismo 
implacável que suprime a humanidade de quem erra em função do seu erro. 
Na saga caraubense não há nada que seja estranho a nós mesmos e às 
nossas sociedades porosas; pode ser assustadora e negativamente impressionante, 
mas é um pouco de nós que se revela em cada tristeza causada, em cada desvio, 
em cada ato de coragem, em cada obstinação, em cada má-sorte, em cada atitude 
reprovável, em cada alegria imprevista, em cada surpresa agradável e inconcebível. 
A tragédia de vida de um homem comum contém amostras do drama ao qual todos 
outros estão expostos e são vulneráveis pelas contingências, pelas indeterminações 
do caminho, pela desorientação das pulsões, pela instabilidade das emoções, pelos 
registros psíquicos da humilhação no corpo, na alma, na memória. 
O homem que não queria ter se tornado quem se tornou depois de sofrer as 
dores de experimentar tantas situações-limite foi o mesmo que, ao ter de responder 
ao que se impusera para lhe suprimir, mostrou recursos para sobressair-se. Por 
mais contestáveis que esses recursos possam ter sido, e foram, eles não deixam de 
74 
 
 
ser expressões da sua múltipla humanidade, da sua busca por encontrar em seu 
próprio repertório alternativas, saídas, ideias, métodos para reencontrar sua 
dignidade, e encontrou na potência de ser um duplo, como o são todos os homens. 
Tratá-lo meramente como um bandido e condená-lo ao ostracismo inclemente 
satisfaz as demandas sociais e morais que regem a convivialidade ao destinar ao 
criminososua punição, porém evidencia a pobreza da percepção e a incapacidade 
de enxergar naquilo que é aparentemente desprezível as digitais da espécie, o que é 
um tipo de tolice, haja vista que “a sabedoria da vida deve assumir a loucura da vida, 
que deve integrar a racionalidade numa louca sabedoria” (MORIN, 2017, p. 137). 
Essa sabedoria “só pode ser concebida como produto de uma dialógica em 
yinyang, entre razão e loucura. Exige a união da ética da compreensão com a ética 
da poesia e a união da poesia com a autoética” (MORIN, 2017, p. 141). O contrário 
disso são as certezas generalizantes — por isso enganosas — fornecidas pelo 
aparato moral do qual as convenções se valem para classificar práticas, pessoas, 
grupos, comunidades e experiências destoantes que emergem das relações 
mesmas constituídas por seres como nós, híbridos, dúbios, instáveis, resultado de 
entrechoques de emoções, afetos, memórias e vontades que nem sempre 
caminham na mesma direção e costumam mudar de percurso a qualquer momento. 
Dentre esses aparatos, o processo de estigmatização é um engodo exemplar. 
 
 
3. 1 – O estigma como incompreensão da complexidade humana 
 
O estigma, enquanto uma marca que sinaliza determinadas práticas e 
indivíduos como inabilitados para aceitação social (GOFFMAN, 2019), certamente é 
o recurso mais utilizado, direta ou indiretamente, consciente ou inconscientemente, 
para fazer prevalecer as ordens vigentes e os regulamentos institucionais. Seu uso é 
a resposta que a normalidade referendada pelas convenções oferece à disfunção; é 
a outra face da admiração, a revanche da moral pública contra aquilo que pode 
representar perigo a própria regularidade das relações e contra aqueles que se 
desviam dessa regularidade. Quando se estigmatiza alguém, uma coisa ou uma 
prática, quem o faz parte do conjunto de valores que confere à maioria a posição 
ideal e a sensação confortante de pertencimento comunitário. 
75 
 
 
Uma vez impregnado desses valores, o sujeito passa a ser imagem-espelho 
do que deve ou não ser feito, e a construir suas aversões tendo sua posição como 
modelo para julgar os demais. Seu rigor passará a ser autocentrado e seu olhar para 
o outro intransigente, porque, no limite, o que está em causa é a proteção e 
manutenção daquele conjunto de valores aos quais cada um se apegou para 
alcançar o posto de aceitável, de modo que lançar uma pecha sobre alguém 
corresponde a marcá-lo para ser um de fora, para ser um a quem será vedado o 
direito de desfrutar de direitos e possibilidades cultivados por aqueles que ocupam o 
lugar privilegiado daqueles que não se desviaram das normas. Isso ocorre a partir 
de uma lógica que se retroalimenta do orgulho de fazer parte do grupo privilegiado e 
do autoengano de considerar que seu arcabouço moral é a única e suficiente régua 
para compreender adequadamente o humano. 
Não é, porque “não podemos escapar da dialógica sapiens-demens, pela qual 
se tece a condição humana” (MORIN, 2012a, p. 154), e qualquer tentativa de 
compreensão que parta de um parâmetro unilateral ignora essa dialógica que se 
desvela de variadas maneiras, em diferentes momentos, a partir de condicionantes 
que nem sempre são as mesmas. O estigma opera por generalizações, as quais os 
sujeitos devem se adaptar a despeito da complexidade que lhes é inata e induz 
variáveis cujas dimensões são compridas demais para caber em um conceito, que “é 
um pensamento morto, já que ele é, por definição, pensamento classificado” 
(BACHELARD, 1974, p. 88) que, ao ter de lidar com o elemento vivo ou com aquilo 
que se move e muda, perde sua eficácia à medida que permanece estático. 
O homem é, sustenta Bachelard (2009, p. 140), “um ser a imaginar”, pois é 
aberto. como abertas são suas possibilidades de ser segundo os duplos que nele 
operam. Tentar classificá-lo unitariamente e tornar essa classificação definitiva, seja 
por quais razões forem, implica em colocar-se à disposição para construir cercas 
mal-acabadas, por cujos espaços entre um arame farpado e outro passarão o que 
essas mesmas cercas não podem delimitar por completo, afinal, defende Morin 
(2003), o “eu” é um mosaico, uma arquitetura sobre a qual só poderemos ter uma 
noção mais próxima da realidade se estivermos dispostos a desfazer delimitações, 
refazer, amplificar, apurar nosso olhar para enfim ver outros ângulos das nossas 
muitas colagens, o que é impossível à estigmatização. 
A estigmatização produz imagens que mantêm os estigmatizados 
circunscritos aos traços definidos a priori, como se as realidades e as 
76 
 
 
personalidades não fossem fluídas. Ao funcionar dessa maneira, circunscreve os 
campos de visão para que estes atuem exclusivamente a partir da lógica da aversão 
àquilo que foi rotulado, produzindo uma espécie de relação entre imóveis que não 
admite qualquer manifestação dissonante daquilo que se projetou de antemão sobre 
alguém. Seu erro e sua arrogância são a fonte da sua incompreensão da 
complexidade do homem multifacetado e da sua escandalosa limitação acerca das 
relações humanas. É, para todos os efeitos, um mal-pensar que, mesmo tendo 
razões para se voltar contra algo ou alguém, só consegue captar o superficial e suas 
trivialidades. 
Por mais que Valdetário tivesse um modus operandi suficientemente 
conhecido e suas alças de mira fossem igualmente conhecidas, era impossível 
cristalizá-lo e ter de si uma fotografia que fosse perene, pois o fator surpresa, mais 
do que uma estratégia para realizar crimes, foi se estabelecendo como um modo de 
voltar a ser parte de Caraúbas, como uma forma de reagir a cada encontro, a cada 
pedido, a cada apelo, a cada pessoa que conhecia ou cruzava pelo caminho. Todos 
sabiam sobre o assaltante que tinha uma vingança em curso, mas quase ninguém 
tinha certeza do que poderia acontecer se, por um acaso, cruzasse com ele pelas 
estradas, pelas ruas da cidade, pelos sítios e fazendas onde se refugiava com seus 
cúmplices. 
À medida que foi se dando a conhecer em seus encontros fortuitos com 
pessoas comuns, deixou de impor todo o medo que o noticiário despertava ao se 
reportar a seus atentados engenhosos. Não tinha como ser diferente, haja vista que 
“permanece em nós um fervilhar de personalidades em estado larvar que não 
conseguem se cristalizar; personalidades imaginárias de nossas fantasias que são 
como ectoplasmas de nosso ego” (MORIN, 2012a, p. 92-93). Malgrado, porém, o 
estigma é uma força propulsora de fragmentação, divisão, afastamento, isolamento 
e exclusão, o que reforça sua função nociva e expõe sua fragilidade, sua disposição 
a degenerar as relações interpessoais. 
Ora, entre a estereotipia dos rótulos e a pessoa desviante rotulada não deve 
haver somente o julgamento, a separação, a interdição; é preciso que o erro e o 
errante, antes de serem reclusos do meio para manter intacto o funcionamento 
normal do mundo, seja compreendido para ser reconhecido como um de nós, como 
alguém que padece das nossas instabilidades, que deixou de ser correto sem deixar 
de ser humano. Essa é uma ética, primeiro, para si e, depois, para outros; uma 
77 
 
 
socio-ética, ou seja, uma ética para pensar e conviver melhor. Como tal, “opõe-se a 
todas as exclusões de grupos, índex, anátemas, excomunhões que excluem o 
desviante da comunidade e, enfim, ao desprezo que exclui o outro da espécie 
humana” (MORIN, 2017, p. 105). 
 
Ao invés, então, de pensar num continuum de relações, com o 
tratamento categórico e encobridor num extremo da escala e o 
tratamento particularístico e aberto no outro, talvez seja melhor 
pensar em várias estruturas nas quais os contatos se produzem e se 
estabilizam - rua com pessoas estranhas, as relações de serviço 
superficiais, o lugar de trabalho, a vizinhança, o cenário doméstico - 
e ver que, em cada caso, é provável que ocorram discrepâncias 
características entre a identidade social virtual e a identidade socialreal (GOFFMAN, 2019, p. 65). 
 
Essas várias estruturas sobre as quais fala Goffman são canais, passagens, 
grutas por onde os indivíduos se deslocam e, ao se deslocarem, entranham-se do 
pó do terreno em que passaram, deixando os traços do seu corpo que se moveu 
pelas aberturas que foram modeladas pelo próprio movimento e abriu espaços cujas 
espessuras serão constantemente remodeladas por outros corpos e outros 
movimentos. As passagens, canais e fissuras podem até estarem fixados, mas os 
movimentos, por sua própria natureza, seguem ritmos ditados pela própria 
inconstância do humano. Haverá, certamente, regularidades simétricas. Entretanto, 
são tão relativas quanto podem ser os contatos com as brechas. Enquanto se faz 
esse trânsito, aqueles que se movem resvalam, tocam, deixam marcas. Ao resvalar, 
os adesivos que lhes fixaram perdem aderência, como perderam com Valdetário. 
Conforme Erving Goffman (2019), quando se imputa a um sujeito atributos 
que são esperados, prioritariamente imaginados e não identificados pessoalmente, 
constrói-se uma “identidade social virtual” impulsionada por um retrospecto que 
focaliza apenas nos caracteres que servem para confirmar a imputação inicial, 
diferentemente da “identidade social real”, resultado da convergência entre o caráter 
e os atributos vistos em ato. Por natureza, o primeiro tipo de identidade é dado ao 
equívoco e ao preconceito, enquanto o segundo emerge do contato direto com a 
realidade experimentada. José Valdetário Benevides e sua família, mesmo havendo 
motivos para supor coisas ruins a partir do histórico dos dois, foram vítimas do 
primeiro tipo que é tanto uma maneira amesquinhada de conceber as experiências e 
seus sujeitos quanto um engano que induz à manipulação da opinião: 
 
78 
 
 
por definição, é claro, acreditamos que alguém com um estigma não 
seja completamente humano. Com base nisso, fazemos vários tipos 
de discriminações, através das quais efetivamente, e muitas vezes 
sem pensar, reduzimos suas chances de vida: construímos uma 
teoria do estigma; uma ideologia para explicar a sua inferioridade e 
dar conta do perigo que ela representa, racionalizando algumas 
vezes uma animosidade baseada em outras diferenças. [...] 
Tendemos a inferir uma série de imperfeições a partir da imperfeição 
original e, ao mesmo tempo, a imputar ao interessado alguns 
atributos desejáveis mas não desejados (GOFFMAN, 2019, p. 15). 
 
Entre o estereótipo de criminoso cruel e seus atributos reais havia uma 
distância considerável omitida pelo processo de estigmatização. Não obstante, essa 
distância, as diferenças entre o Valdetário Carneiro dos jornais ou da TV e o Val de 
solidariedade e fino trato, consolidavam-se e passavam a ser cada vez mais 
percebidas, palpáveis, impossíveis de ignorar. No mais das vezes, nos dias mais 
corriqueiros, a vida concreta de um homem que não queria ser o que fizeram de si 
foi se sobrepondo à concepção moral que deu causa ao estigma que o proscreveu, 
mostrando que viver é mais importante que conceituar, que se relacionar é mais 
potente que estabelecer cortes diferenciais que separa os justos dos injustos, que 
ver a si no outro é melhor que comprimir a humanidade daquele que se desviou 
apenas por causa do seu desvio, afinal “o papel dos normais e o papel dos 
estigmatizados são parte do mesmo complexo, recortes do mesmo tecido-padrão” 
(GOFFMAN, 2019, p. 141): 
 
o estigmatizado e o normal são parte um do outro; se alguém se 
pode mostrar vulnerável, outros também o podem. Porque ao imputar 
identidades aos indivíduos, desacreditáveis ou não, o conjunto social 
mais amplo e seus habitantes, de uma certa forma, se 
comprometeram, mostrando-se como tolos (GOFFMAN, 2019, p. 
146). 
 
Tendo isso em mente, precisamos de uma ética complexa, de uma ética da 
compreensão que é também uma ética da autopercepção, para que os sujeitos se 
vejam em outros, para que concebam seus duplos modos de ser e existir, suas 
consonâncias e dissonâncias, seus acertos e seus erros.Essa tomada de posição 
diante do que parece absolutamente determinado, volta-se contra o curto repertório 
de adjetivos que visões maniqueístas revelam ao sustentar que só se pode ser isso 
ou aquilo, quando, em última instância, as pessoas e as coisas podem ser isso e 
aquilo simultaneamente, por isso exigem outra gramática, que corresponda à 
exuberância de conteúdos que falam sobre quem e o que somos. 
79 
 
 
Apostar na identidade virtual construída pelos valores que organizam as 
relações sociais somente porque ela é produto desses mesmos valores consiste em 
uma cegueira que leva ao preconceito. Ao receber o rótulo de desviante, a pessoa 
“será identificada primeiro como desviante, antes que outras identificações sejam 
feitas” (BECKER, 2008, p. 44), o que a tornará menor do que ela de fato é e pode 
ser em outros momentos, posto que “o ato de rotular, tal como praticado por 
empreendedores morais, embora importante, não pode ser concebido como a única 
explicação para o que os pretensos desviantes fazem” (BECKER, 2008, p. 180). 
Tal impossibilidade é responsável por gerar a inaptidão para compreender as 
ambivalências de um homem que foi, a um só tempo, um criminoso que deveria ser 
responsabilizado na forma da lei e uma pessoa de carisma que foi conquistando a 
simpatia daqueles que, mesmo abundantemente informados da sua criminalidade 
pelas mídias, puderam conhecer e experimentar aquilo que foi impossível para 
aqueles que se satisfizeram com as informações gerais do moralismo que cobra a 
punição sem compreensão, que exige a imolação do pecador sem a possibilidade de 
remissão, que confunde fúria com austeridade, senso de justiça com inclemência, 
indignação com ódio e autodefesa com eliminação sumária do outro, a despeito de 
qualquer equilíbrio e possibilidade de pensar diferente a fim de criar alternativas que 
não redundem em lançar pechas e agir movido por elas. 
 Não foi isso que aconteceu com Valdetário e os Carneiros. Ele vivo, foi 
subjugado por esse moralismo em função dos seus crimes, o mesmo moralismo que 
também se voltou contra sua família cuja reputação, apesar de ser tão diversa 
quanto qualquer outra, foi sendo deteriorada pelos rótulos, pelas suspeitas 
constantes, pela perseguição dos adversários políticos de sempre que, a partir do 
momento em que Val foi apontado como um dos maiores bandidos do RN, se 
fortaleceram, ganharam reforço e mais elementos para acirrar a guerra que já havia 
derramado sangue demais para subsistir, de modo que aquilo que era um 
empreendimento pessoal de apenas alguns dos membros dos Benevides Carneiro 
logo foi transformado em algo parecido como um negócio familiar que incluía a 
todos, indistintamente. 
 
 
 
 
 
 
 
 
80 
 
 
Figura 14: primos de Valdetário que sofreram e sofrem com os preconceitos 
 
 
 
Fonte: capa do JH Primeira Edição, N° 1.144, ano 4, 17/03/2009. 
 
Tios e tias, primos e primas de primeiro e segundo grau, seus filhos, suas 
companheiras e ex-esposas padeceram toda sorte de suspeições em função do 
sobrenome que carregavam. Pessoas no início da vida, no começo das carreiras, na 
busca por se colocar no mercado de trabalho ou na própria comunidade foram 
sendo tratadas como bandidas ou suspeitas a priori apenas pelo vínculo de sangue 
que, stricto sensu, em nada podia desaboná-las, tornando-as parte uma casta 
inferior ou detestável. Esse, que passou a ser um sofrimento de inocentes, tornou-se 
um jogo de um perdedor apenas, do qual os grupos rivais se beneficiaram para 
desenrolar suas tramas tão comprometedoras quanto às dos Carneiro. 
Havia uma razão para isso, pois a estigmatização não é um processo 
ingênuo, já que “as identidades social e pessoal são parte, antes de mais nada, dos 
interesses e definições de outras pessoas em relação ao indivíduo cuja identidade 
está em questão” (GOFFMAN, 2019, p. 116). Nesse caso, a preservação da 
normalidadee a busca por coesão social, estimuladas pela moral convencional, que 
81 
 
 
classifica e define para então rotular, assumiu um lado da disputa, recrudescendo 
ainda mais as discriminações que rondavam a família desde o famoso roubo dos 94 
milhões que também havia sido uma incursão de um grupo restrito. Portanto, ao 
invés de instaurar e conservar a ordem pela exclusão daquilo que considerou 
marginal, essa moral do estigma cerrou fileiras que, em última instância, operaram 
para haver ainda mais intrigas, inimizades, confusões e rancores. 
Essas são as conclusões que se podem tirar dessa entrevista concedida por 
familiares que nunca participaram de nenhum ato da quadrilha chefiada por Val, 
parentes de idade já avançada e outros mais jovens que sentiram na pele as 
dificuldades impostas por uma moral que generaliza por comodidade e não sabe 
distinguir sem excluir. Para esses primos, ter de lidar com essa marca que os 
macula mesmo depois da morte de Valdetário e da dissolução da quadrilha por ele 
organizada, era e continua sendo a persistência da injustiça contra uma família que 
também foi alvo de traições, perseguições e homicídios nunca apurados e nem 
tampouco desvendados pelos órgãos competentes. Sempre foram eles que tiveram 
de elaborar suas próprias defesas e resolver por si aquilo pelo que nenhuma 
autoridade se importava. 
 
Figura 15: reportagem sobre as discriminações contra Ivna Benevides 
 
 
Fonte: JH Primeira Edição, N° 1.145, ano 4, 18/03/2009. 
 
A prima de segundo grau de Valdetário, Ivna Mara Barreto Benevides Gurgel, 
que à época ainda era universitária, relata o quanto foi difícil em sala de aula 
colocar-se como uma aluna em pé de igualdade moral com os demais, só por causa 
82 
 
 
do seu parentesco. Ao estudarem e discutirem sobre questões legais e éticas no 
âmbito do direito, tornar sua família um estudo de caso era costume dos colegas que 
a viam e a tratavam com ressalvas sem qualquer motivo objetivo. Sob esse estresse, 
ela aprendeu que ter o sobrenome Benevides Carneiro era sinônimo de dificuldades, 
por isso precisou impor-se e reclamar para si a respeitabilidade que lhe cabia, 
esforçando-se para ser a melhor aluna da sua turma e fazer com perfeição aquilo 
que a academia propunha, o que a fez, ironicamente, ocupar um lugar que para 
muitos não lhe pertencia, ao estagiar no 1º Distrito Policial de Mossoró. 
Depois de estagiar e graduar-se, Ivna, ainda tendo de enfrentar preconceitos 
fora da universidade, consegue se colocar socialmente e cumprir suas atividades, 
como operadora do Direito. Aos poucos venceu as barreiras impostas pela 
estigmatização e exerceu sua profissão com o mesmo zelo que a impulsionou a 
querer ser a melhor aluna da turma, o que foi desfazendo mal-entendidos e 
permitindo que ascendesse na carreira, chegando ao cargo de diretora da Cadeia 
Pública de Caraúbas, contra todas as expectativas dos mais céticos e daqueles que 
ainda conservavam ressalvas em relação a ela e sua família. Essas ressalvas nunca 
foram dissolvidas por completo, porém, Ivna Mara insiste em comprovar, onde quer 
que atue, o valor que julga ter e pôde manifestar enquanto dirigiu uma instituição tão 
importante quanto aquela7. 
Outro caso bastante peculiar é o da também prima Ginevra Benevides 
(conhecida como Gina). Ela, que reside na mesma casa onde cresceu com os pais 
já falecidos, relatou (informação verbal)8 que por inúmeras vezes, em busca de 
provas que ligassem seus parentes ao banco, que os vinculassem ao roubo dos 94 
milhões ou que pudessem ajudar a descobrir o paradeiro de Valdetário, a polícia 
invadiu sua casa sem mandado de busca e interrogou seus irmãos e todos que 
podiam sobre essas provas que nunca foram encontradas no local. Para ela, sua 
casa se tornou um memorial de lembranças ruins, e Caraúbas um lugar que lhe traz 
mais incômodo do que tranquilidade, por tudo que viu seus parentes passarem e 
pelas incontáveis mortes que presenciou ou de que tomou conhecimento em virtude 
dos confrontos entre os Benevides Carneiro, os Fernandes e os Simião Pereira. 
 
7 Atualmente, Ivna mora em Caraúbas, juntamente com seu pai, e foi contatada e ouvida para 
detalhar mais sobre sua história de superação, mas, alegando razões pessoais, preferiu que apenas 
isto que foi descrito neste trabalho e o que foi propagado jornais, fosse publicizado. 
 
8 Depoimento concedido por Ginevra Gurgel Benevides, em Caraúbas, em novembro de 2021. 
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Gina, que é professora de formação e já há um bom tempo é coordenadora 
pedagógica na escola na qual trabalha, sente que seu município se transformou de 
fato em um grande arquivo pelo qual é inevitável caminhar sem ser tomada por 
alguma lembrança ruim, mesmo que por um pequeno espaço de tempo. Para chegar 
aonde chegou, principalmente nos primeiros anos do surgimento do fenômeno 
Valdetário Carneiro, a professora padeceu das mesmas dificuldades de sua prima 
Ivna, sofreu ao ver seus pais idosos padecerem pela vergonha imposta pela 
discriminação e teve que procurar ser a melhor no que se dispôs a fazer para 
desconstruir a identidade virtual que, pelo estigma, haviam instituído. 
Mesmo que seja resultado das melhores intenções morais, que seja uma 
síntese dos valores nobres cultivados socialmente e que busque preservar os 
corretos dos incorretos pelo distanciamento, a autodefesa do estigma não é razoável 
por três lições que saltam aos olhos na saga caraubense: primeira, ela pode 
funcionar como um capital beligerante contra quem se pretende exterminar; 
segunda, ignora a multiplicidade da pessoa humana e reduz a qualidade dessa 
pessoa à rigidez da observância inerrante das leis, de modo a se constituir como um 
tipo de violência simbólica que, além de intransigente, mostra-se débil por não 
enxergar por sobre os muros da sua própria arrogância conceitual; e terceira, a 
estigmatização causa sofrimento aos indivíduos, pois os coisifica em defesa das 
prerrogativas inflexíveis da plena adaptação aos padrões de comportamento aos 
quais reverenciam e pelos quais definem a si e aos outros sem o benefício da 
dúvida, pois “o normal e o estigmatizado não são pessoas, e sim perspectivas que 
são geradas em situações sociais durante os contatos mistos, em virtude de normas 
não cumpridas que provavelmente atuam sobre o encontro” (GOFFMAN, 2019, p. 
148-149). 
Dito de outra maneira, o considerado normal, que tende à rotulação, não trata 
e não se relaciona com o estigmatizado como uma pessoa, e sim com um objeto de 
suas expectativas, elucubrações e suposições. Por isso que, em vez de estar aberto 
a descobertas fora do seu esquadro, e até mesmo negá-las, constrói hologramas 
que poderá projetar e manejar ao bel-prazer das certezas a que chegou 
apressadamente e pelas quais fará de um tudo para confirmar, custe o preço que 
for, afinal, o que estará em questão e, no limite, em risco, é sua posição agradável 
de ser um igual aos demais, um de dentro contra quem não haverá hostilidades. 
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Esse é um jogo de poder que busca mais poder demolindo a reputação do 
adversário, um jogo em que o vencedor desfruta dos louros da vitória sem 
autocorreção, sem a necessária severidade consigo, sem notar seus abusos, suas 
petulâncias, seus deslizes, posto que um atributo que estigmatiza alguém, assevera 
Goffman (2019), pode confirmar a normalidade de outrem. Desse modo, a rotulação 
age como uma força reativa para conservar ilesas as convenções e o prestígio 
daqueles que se beneficiam em decorrência do sofrimento do outro que deve ser 
aniquilado para que a posição prestigiosa siga intacta. Quanto mais dispostos a 
rejeitar sem diálogo, detestar sem conhecer, definir sem revisar, perseguir sem 
entender, separar sem diferenciar, maiores os graus de cegueira, ignorância, 
obscurantismo, impiedade e intolerância. 
Não é bom que seja assim e urge pensar melhor, politizar o pensamento, 
propor,pôr em perspectiva inclusive aquilo que já está dado como certo, afinal “a 
moral é uma iluminação que precisa ser iluminada pela inteligência, e a inteligência 
é uma iluminação que precisa ser iluminada pela moral” (MORIN, 2013, p. 108). 
Mais do que se voltar contra a inclemência típica da estigmatização, que se 
retroalimenta da autossatisfação moral de não ser como aqueles que erram, essa 
politização consiste em conceber o problema humano tal como ele se apresenta e 
admitir para ensinar sobre sua complexidade, seu policentrismo, suas bifurcações, 
suas identidades hibridas, suas antinomias simultâneas e suas contradições 
insolúveis, o que traz de volta à ética da compreensão que exige uma ética para o 
pensamento que o reeduque, fazendo com que o lugar de juiz de todas as coisas 
seja constrangedor demais para ser minimamente confortável. 
 
 
3. 2 – Pensar bem para compreender melhor 
 
Em linhas gerais, o estigma é, concomitantemente, um instrumento de 
manipulação das identidades e uma demonstração de pobreza do pensamento que 
se aferra aos postulados da moral que o orienta para submeter-se a esses mesmos 
postulados afastando qualquer possibilidade de reelaboração ou mudança em 
direção do novo, de discursos alternativos (que não é o mesmo que discursos de 
absolvição), de sofisticação da abordagem que não se satisfaça com o óbvio ou com 
aquilo que se apresenta como autoevidente. Pobre e com um repertório diminuto, 
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essa forma de pensar é consequente e exageradamente idealista e reducionista, 
porque reduz o homem a um ideário que é tanto mais pertinente quanto maiores 
forem as forças que funcionarem para o reafirmar constantemente, como se tudo 
devesse caber na sua concepção de mundo, e aquilo que destoa só pudesse ser 
uma dentre várias coisas possíveis, ou seja, um de fora. 
Essa é a incompreensão no seu estado mais bruto, e pior: voltada para o que 
temos de mais importante a discernir — o que ou quem realmente somos e podemos 
ser. Cumpre pensar diferente, pois compreender ao invés de estigmatizar, além de 
um ato ético de reintegração necessário para acolher e entender expressões do 
gênero humano,fornece outros termos para os debates e para as abordagens 
daquilo que se insurge e se torna emergente. Por isso mesmo exige uma gramática 
da diversidade para as relações que inove nos seus substantivos e ouse nos 
adjetivos para expandir os repertórios e, quando for necessário, modificá-los sem 
melindre, contra os intentos estigmatizantes monossilábicos e supressores da 
humanidade do outro, afinal as morais estigmatizantes e a definição dos papéis 
sociais a partir das suas próprias ideias diretivas são amesquinhadas demais para 
qualquer tipo de alargamento ético imprescindível. 
Isso, que pode ser entendido como uma permissividade irrestrita pelas 
posições mais conservadoras ou um flerte com a impunidade, consiste na 
maturidade da consciência, no aprimoramento do olhar, no desenvolvimento de 
virtudes, de sentimentos nobres, de generosidade, de benignidade, visto que 
“compreender não é inocentar nem se abster de julgar e de agir, mas reconhecer 
que os autores de infâmias ou de faltas também são seres humanos” (MORIN, 2017, 
p. 121), o que é uma frente de batalha fundamental contra a crueldade que nos 
espreita e seduz desde nós mesmos e vaza para incidir negativamente sobre nossas 
relações, nossa maneira de ser e perceber quem e o que está à nossa volta: 
a incompreensão está na fonte de todos os males humanos. A 
compreensão está presente no que há de melhor no homem. A 
tragédia humana não é somente a morte, mas também o que vem da 
incompreensão. Nossa barbárie não se reduz à incompreensão, mas 
a comporta. A incompreensão alimenta a barbárie nas relações 
humanas e na civilização. Enquanto permanecemos como somos, 
continuaremos bárbaros e mergulhados na barbárie (MORIN, 2017, 
p. 123). 
 
86 
 
 
Quanto maiores forem as atrocidades praticadas, maior será a necessidade 
de compreender suas nuances e ainda mais complexa será a resposta que 
deveremos dar, maior e mais amplo será seu alcance, melhor e maior será sua 
capacidade de enfrentar e tratar tabus que, mesmo silenciados, nos afetam direta ou 
indiretamente. O estigma existe para impedir qualquer movimento que não seja de 
confirmação dos pressupostos gerais e tradicionais a partir dos quais cada cidadão, 
cada sociedade organiza e situa suas noções de certo e errado, como se, para 
sobreviver, as condutas ajustadas precisassem se afirmar a partir da exclusão, do 
banimento, da negação de quem caiu em desajuste, o que é um desatino, já que 
“toda concepção que quer escapar do caos, ou seja, chegar à ordem pura, à razão 
pura, ou à moral pura, torna-se delírio racionalizador” (MORIN, 2003, p. 190). 
 Ao ter se tornado um dos homens mais temidos e mais difíceis de confrontar, 
Valdetário revirou de ponta-cabeça a região oeste do RN e boa parte do Nordeste 
como poucos haviam feito até à sua insurgência. Em certa medida, a postura 
refratária da maioria se justificava, mas não era justo que isso se estendesse para 
todos que, mesmo que remotamente, tinham alguma relação com ele que, como 
todos nós, foi o resultado de contradições estruturais, as mesmas contradições que 
transformaram em dilema ter de escolher entre a trama atropelada que haviam 
escrito por e para ele, sem nenhuma resistência, ou criar seu próprio script tendo de 
confrontar o ordenamento, tanto o legal quanto o social, que no primeiro momento 
foram omissos a seu respeito e, por isso, coparticipes de uma tragédia que foi do 
âmbito pessoal ao coletivo. 
Val, que escolheu escrever sua própria peça para deixar de ser marionete de 
um teatro montado pelos outros, saiu da condição de acuado, de vítima das 
orquestrações dos rivais, da posição de defesa à de ataque que, embora condenável 
por sua ilegalidade, o transformou em um ícone que, nas dobras do cotidiano, no dia 
a dia, nos instantes que não foram registrados na sua ficha policial, construiu a cada 
momento uma relação de simpatia com seu povo, uma sociabilidade que, apesar de 
participar de uma concorrência desigual com a moralidade, a seu tempo mostraria 
ter uma potência humana e simbólica que não se intimidaria ante seu caráter 
marginal e o poderio da institucionalidade responsável por sua proscrição. 
Valdetário foi uma antítese às teses do seu tempo ao confundir a lógica da 
legalidade, desrespeitar as regras de civilidade e mesmo assim conquistar 
consideração. Ele marcou seu nome nas memórias ao ponto de ser impossível falar 
87 
 
 
da sua biografia sem incorrer no risco de relatar apenas parte de uma aventura que, 
semelhante à de tantos outros bandidos icônicos e paradoxais na história das 
culturas mundo afora, desde os mais queridos aos mais temidos, faz parte de um 
“registro dos símbolos daqueles fatores teoricamente controláveis, mas na prática 
descontrolados, que moldam o mundo dos pobres” (HOBSBAWM, 2017, p. 
169).Tendo assumido o papel de indomável na sua atuação e antagônico à ordem, 
Valdetário Carneiro “abriu fendas, proporcionando à posteridade uma observação do 
quanto uma época possui elementos tão infinitamente contraditórios” (DANTAS, 
2005, p. 311) para serem aceitos pacífica e definitivamente da boca de qualquer um 
que narre essa epopeia. 
Aquilo que as polícias registravam e faziam saber sobre ele era somente 
parte de uma experiência que também estava se consolidando fora dos registros 
formais e que logo reclamaria seu espaço, de sorte que lá onde o império da lei, da 
moral inquestionável e da coesão poderia impor-se para determinar que tipo de 
opiniões todos deveriam ter acerca de alguém que havia cometido graves crimes, no 
interior mesmo do seu funcionamento, na dinâmica das suas imposições, surge o 
inesperado, surge uma realidade poderosa de várias faces que expõe, senão a 
derrota, a precariedade do estigma, a efemeridadede resumir a pessoa a seus 
acertos e erros, a perecibilidade de tentar fazer prevalecer a ferro e fogo as 
convenções sociais. 
A estabilidade dessas convenções, consentida por seres instáveis como nós, 
equivale a de um malabarista apresentando-se em cima de uma cadeira de uma 
perna só. A decência para a qual somos educados é uma corda frouxa que cede e 
faz cair, por vezes sem dar sinais de que está prestes a se romper. Assim, o que se 
coloca é o compromisso de pensar, propor e vivenciar nas nossas muitas relações 
uma moral da diversidade, uma moral que trate a loucura e a contradição como um 
problema central do homem, não apenas seu dejeto ou sua doença (MORIN, 2011), 
abandonando sua visão unilateral das coisas, pois, vale insistir nesse ponto por ser 
decisivo para o bem-pensar e um melhor compreender, “o ser humano é complexo e 
traz em si, de modo bipolarizado, caracteres antagonistas: sapiens e demens, faber 
e ludens, empiricus e imaginarius, economicus e consumans, prosaicus e poeticus” 
(MORIN, 2011, p. 52): 
cada qual contém em si galáxias de sonhos e de fantasmas, 
impulsos de desejos e amores insatisfeitos, abismos de desgraças, 
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imensidões de indiferença gélida, queimações de astro em fogo, 
acessos de ódio, desregramentos, lampejos de lucidez, tormentas 
dementes (MORIN, 2011, p. 52). 
 
Valdetário interpretou, incorporou, experimentou essas que são igualmente as 
nossas variações. As manchetes policiais e o reducionismo moralista o viram e em 
larga escala ainda o veem como um delinquente irrecuperável, que tem atrás de si 
um rastro de sangue e de maldade infindável. Não veem e não reconhecem, 
contudo, que, por mais que em dada proporção ele tenha assumido essa 
personalidade das manchetes, colocou à nossa disposição um quadro onde expôs 
as imperfeições que dizemos ter, mas nem sempre as temos ao alcance de uma 
mão. Ele foi o lembrete de que homens e mulheres são suscetíveis à decadência e 
que essa suscetibilidade, aliada à autoavaliação, são caminhos de conscientização 
para o bem-viver, pois qualquer crítica deve ser precedida da autocrítica. 
De fato, reeducar nossas morais empedernidas e estigmatizantes é um dever 
que só pode se consumar se também elaborarmos uma autoética capaz de implicar 
os sujeitos em seus juízos de valor e identificar seus exageros nas suas imposições 
de regras, já que “é, antes de tudo, uma ética de si para si que desemboca 
naturalmente numa ética para o outro” (MORIN, 2017, p. 93), ou seja, uma postura 
que parte primeiro de si para depois ocupar-se dos demais, o que passa, antes de 
tudo, por uma reforma da maneira de pensar, por uma recolocação dessa maneira 
que ofereça resistência contra a solidez do estabelecido para abrir espaço ao 
incompreendido que tem sobre o que falar, por isso que essa autonomização da 
ética 
exige, ao mesmo tempo, "trabalhar pelo pensar bem” e "pelo pensar-
se bem": a integração do observador na sua observação, o retorno 
sobre si mesmo para se objetivar, compreender-se corrigir-se, o que 
constitui, simultaneamente, um princípio de pensamento e uma 
necessidade de ética (MORIN, 2017, p. 93) [aspas do autor]. 
 
 Como a condição humana deve ser o objeto essencial de todo ensino 
(MORIN, 2011), onde quer que o pensamento se estabeleça como produtor de 
conhecimentos e formador de opinião deve operar no sentido de servir à 
compreensão a partir daquilo que se mostra no diferente que, por maiores que 
sejam suas estranhezas e culpas, carrega consigo a humanidade que não é 
exclusividade daqueles que caminham no acerto. O ser humano é a um só tempo 
singular e múltiplo, tem a seu dispor um repertório de ser e agir bem maior do que 
89 
 
 
pode prever as réguas de comportamento. Entre o permitido, o possível e o proibido 
existem poros por onde cada um pode passar, de modo que “compreender o 
humano é compreender sua unidade na diversidade, sua diversidade na unidade. É 
preciso conceber a unidade do múltiplo e a multiplicidade do uno” (MORIN, 2011, p. 
50): 
no âmbito das instituições educacionais, e ao lado de uma aposta 
ativa na emergência de um novo estilo de conceber o mundo, é 
crucial reacender a memória de nossa condição humana mestiça e 
marcada pela diversidade. Por meio de várias estratégias de ensino, 
e em todos os níveis de formação científica, é importante relembrar 
insistentemente que somos pó das estrelas, uma matéria que se 
tornou viva, sujeitos com histórias singulares. Que a diversidade é o 
patrimônio maior da cultura humana; que somos o único animal que 
sonha acordado e que constrói utopias. Que somos marcados pelo 
inacabamento, portanto, nada está dado em definitivo (ALMEIDA, 
2017, p. 196). 
 
 O humano “é furado como gruyère, múltiplo como colônia de pólipos, aberto 
como corredor. Toda educação social visa a calafetar os orifícios, cingir a 
multiplicidade, condenar a maior parte das aberturas” (MORIN, 2003, p. 169), 
quando, porém, deveria ser uma atitude reflexiva em permanente construção e 
reconstrução para concernir às demandas dessas nossas aberturas constitutivas 
que são, por natureza, campos da dúvida e da imprevisibilidade. Por isso mesmo, 
desafiam a cognição, que não precisa ter a exatidão como seu único fim, porque 
“conhecer e pensar não é chegar a uma verdade absolutamente certa, mas dialogar 
com a incerteza” (MORIN, 2018a, p. 59) que é, por sua vez, um ponto de partida 
para alcançar maiores verdades, cuja descoberta só pode acontecer pelos conflitos 
e pela provocação que a habilidade e a imprecisão podem causar à inteligência. 
a demência do sapiens é a insuficiência e a ruptura dos controles, 
mas o gênio do sapiens é também não ser totalmente prisioneiro 
desses controles, nem do controle do ‘real’ (meio ambiente), nem do 
da lógica (o neocórtex), nem do código genético, nem do da cultura e 
da sociedade, e, ainda, o de poder controlar os controles um pelo 
outro (MORIN, 1975, p. 135). 
 
É menos compreender Valdetário em si para justificar ou explicar suas ações 
e mais compreender o que de nós estava à amostra nesse homem, o que das 
nossas capacidades e debilidades aparecem para denunciar nossa má-educação 
que se reproduz nas nossas intransigências, obstinações conceituais, indisposição 
ao diálogo, na obsessão por classificar tudo, para, quem sabe, substituir as 
90 
 
 
acusações impulsivas, o castigo inveterado, os aviltamentos, o xingatório, a 
verborragia justiceira e o enxovalhamento pelo comedimento, pela humildade, pela 
recusa do revide, pela tolerância e pela compaixão. 
 A bem da verdade, “a compreensão não desculpa nem acusa: pede que se 
evite a condenação peremptória, irremediável, como se nós mesmos nunca 
tivéssemos conhecido a fraqueza, nem cometido erros” (MORIN, 2011, p. 87), de 
modo que “a ética da compreensão pede que se argumente, que se refute em vez 
de excomungar e anatematizar” (MORIN, 2011, p. 87), isto é, pede que civilizemos 
nossas convicções, nossos juízos, nossos julgamentos, nos termos propostos por 
Morin: “a prática mental do autoexame permanente é necessária, já que a 
compreensão de nossas fraquezas ou faltas é a via para a compreensão das do 
outro” (MORIN, 2011, p. 87): 
 
se descobrimos que somos todos seres falíveis, frágeis, insuficientes, 
carentes, então podemos descobrir que todos necessitamos de 
mútua compreensão. O autoexame crítico permite que nos 
descentremos em relação a nós mesmos, por conseguinte, que 
reconheçamos e julguemos nosso egocentrismo (MORIN, 2011, p. 
87). 
 
Nesse sentido, vale salientar que “compreender é também aprender e 
reaprender incessantemente” (MORIN, 2011, p. 89), já que, assim como Valdetário 
demonstrou em vida, somos seres moventes para os quais nenhuma disciplina ou 
nenhum sistema de pensamento estanque pode prescrever suas determinações e 
ser sempre bem-sucedido. Ainda que não saibamos, estamos sempre um passo à 
frente das categorizações, porque estas,ao serem elaboradas, precisaram fixar-nos 
no tempo e no espaço, enquanto continuamos a viver, mudar, oscilar, a sermos 
vários mesmo sendo um, a ter impulsos desconhecidos, pulsões incontroláveis, 
emoções repentinas, frustrações inesperadas, vitórias ou derrotas que, por terem o 
poder de alterar o curso normal da vida de cada um, podem alterar aquilo que 
havíamos traçado de antemão e nos expulsar do lugar que ocupávamos, nos 
obrigando a construir um outro. Esse foi um de tantos ataques sofridos pelo 
mecânico José Valdetário. 
Perguntado sobre as ambivalências em torno de Valdetário e sobre o que 
achava do caraubense, Manoel Lúcio Fernandes Filho (conhecido como Juninho de 
Duquinha), atual secretário de Finanças de Caraúbas, testemunha acerca disso 
91 
 
 
(informação verbal)9: “quem conheceu e conviveu com Val sabe que ele era um 
homem calmo. Agora, diante de tudo que ele sofreu na vida, principalmente as 
perseguições, fez as pessoas conhecerem dois tipos de Valdetário”. Manoel Lúcio 
acrescenta: “Val era um homem do seu serviço, da sua casa, da sua família e 
amigos; mas foi vítima de injustiças, as quais levaram ele a entrar nesse mundo de 
fazer justiça com as próprias mãos”. Para Juninho, há uma relação direta entre as 
injustiças sofridas por seu cunhado e o que ele veio a se tornar. O secretário 
percebe a existência de dois Valdetários e não o reduz à sua criminalidade. Manoel, 
que conviveu com o esposo da sua irmã antes e depois do homem ter se tornado 
aquele que ele não queria ser, garante que Val, mesmo na condição de foragido, 
mostrava não ter mudado nada. 
Outra fala abrange essa mesma dupla-face de Valdetário Carneiro. Paulo 
Vitor Nascimento, um dos seus biógrafos, declarou (informação verbal)10: “considero 
que durante a vida Valdetário foi a amálgama de várias condições. Um personagem 
de várias matizes, algo um tanto quanto cinza”. Nascimento prefere enxergar o 
caraubense “como um ser humano, digno de nota por ser, de certa maneira, o avatar 
de muitos aspectos importantes da história recente do Rio Grande do Norte, seja 
política, social ou de segurança pública”. É o olhar que dispensa os estereótipos e, 
justamente por isso, consegue enxergar além do comum. Esse olhar faz justiça a 
amplitude daquilo que o homem de Caraúbas que, como ator do grande teatro do 
mundo que fez para si, “funciona como uma espécie de necessidade para que o 
microcosmo nordestino permaneça completo, pronto para acionar seus obrigatórios 
e eternos mecanismos sob os carrilhões do tempo” (DANTAS, 2005, p. 310): 
 
 
longe de se vincular a qualquer projeto político ou ideológico 
justificador das suas ações, parece muito mais deter no seu 
entourage um espectro de índices configuradores de um produto 
imaginal transmitindo-se nas intrincadas malhas da vida em 
sociedade (sem que ninguém perceba), no qual se encontram os 
alicerces de signos fundantes de uma ressonância arquetípica 
(DANTAS, 2005, p. 310). 
 
Foi essa força para enfrentar potestades e para representar símbolos que 
configuram o imaginário que fez Rafael Barbosa e Paulo Vitor se interessarem pela 
figura. De acordo com o próprio Paulo, as façanhas de Valdetário e sua quadrilha 
 
9 Depoimento concedido por escrito e recebido por e-mail, em junho de 2021. 
10 Depoimento concedido por escrito e recebido por e-mail, em outubro de 2020. 
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fizeram parte de suas adolescências, de modo que era impossível não ficar vidrado 
no rádio ou na televisão para saber qual teria sido a última aventura dos Carneiros. 
Estudá-los e transformar seus atos em um livro equivaleu a materializar as fantasias 
juvenis em uma coisa para qual tanto eles quanto vários outros que ouviram falar 
das artimanhas do homem fabuloso podem retornar sempre que quiserem. O livro-
reportagem (BARBOSA; NASCIMENTO, 2013) mais do que um registro jornalístico, 
se constitui em uma descrição do arquétipo que antes pertencia a duas 
imaginações. A partir da escrita e da publicação, o que pertencia a dois passou a 
pertencer a tantos quantos podem fantasiar com a história contada. 
Isso o estigma, as morais da ordem absoluta, os homens e as mulheres de 
bem, que se arvoram por ocupar esse posto, não conseguem admitir e cultivar, 
porque estão ocupados demais calculando e impondo as penas daqueles que 
flagraram em queda, sem se aperceberem que “sempre que denunciamos os 
‘canalhas’ é para camuflar em nós alguma fraqueza ou baixeza” (MORIN, 2003, p. 
40). Se a gramática das nossas relações sociais não nos disponibilizar outros termos 
que não sejam os do insulto contra quem agride a normalidade como Valdetário 
agrediu, nossa educação, formal ou informal, institucionalizada ou pessoal, falhou ao 
ensinar uma linguagem da brutalidade que, a pretexto de combater ou afastar os 
desviantes, direta ou indiretamente, multiplica a agressividade e desvela sua 
incompetência para descrever com mínima decência o humano que lhe confronta. 
Em busca de uma convivência que respeite a humanidade de todos, 
precisamos, desde a formação mais básica, enfrentar tabus e dizer o que somos 
“substituir um pensamento que isola e separa por um pensamento que distingue e 
une. [...] Substituir um pensamento disjuntivo e redutor por um pensamento do 
complexo, no sentido originário do termo complexus: o que é tecido junto” (MORIN, 
2018a, p. 89), para, em busca de uma atitude científica arejada e um tanto mais 
precisa, “rediscutir como hipóteses postulados tidos como indiscutíveis, imprimir 
importância a fatos concebidos como aleatórios pela ciência, refutar a ortodoxia e o 
maniqueísmo, pôr à luz nossas crenças fundamentais, exercitar a criatividade” 
(ALMEIDA, 2017, p. 223) Essa é uma estratégia para reintegrar aquilo que faz parte 
dos problemas estudados ou investigados, mas, arbitrariamente, foi marginalizado, 
abandonado, legado a segundo plano para não contrariar pré-concepções teórico-
conceituais. 
93 
 
 
Nós, que “somos educados para escolher sempre um e não muitos caminhos, 
um e não muitos amores, a andar sempre pela mesma rua, a se comportar sempre 
do mesmo jeito” (ALMEIDA, 2017, p. 206) para, assim, seguir uma pauta unitária 
que nos induz a um vocabulário monossilábico devemos, engajados na busca por 
construir melhores relações, “investir numa reorganização do conhecimento capaz 
de prover uma reforma na educação. Isso requer uma nova aliança entre cultura 
científica e cultura humanística, a reforma do pensamento e o exercício do diálogo” 
(ALMEIDA, 2017, p. 223), que é uma força de conjunção e uma via para 
conscientização pessoal e coletiva sobre nossa própria condição no mundo: 
abrir-se ao diálogo é abrir o duplo (e aleatório) processo: dialogar 
com o desconhecido até sentir-se semelhante a ele; dialogar com o 
semelhante até sentir-se desconhecido para si próprio. Abrir o 
diálogo é abrir a dialética do extremo próximo e do extremo distante, 
onde o distante se torna próximo e o próximo se torna distante, de 
onde poderia nascer a compreensão do outro; é simultaneamente 
reabrir a dialética do eu e do duplo (MORIN, 2003, p. 231) 
 
Sem que a maioria pudesse notar, havia na vida de Valdetário uma infinidade 
de dados e de material humano que apareceram para embaralhar as cartas e 
confundir o jogo que deveria ser de cartas marcadas. Aquele que seria seu ponto 
fraco — ser tanto sapiens quanto demens — também era seu ponto forte, como o é 
em todos nós que partilhamos da mesma natureza (MORIN, 2003). Da sua 
demência, da sua loucura, do seu delírio, da sua inconsequência, surgiram outro tipo 
de ser e outro modo de se relacionar com as pessoas, uma capacidade de reunir 
indignação e revolta sem perder a sensibilidade, potencial para fazer muito bem o 
que nunca havia sido feito por ele, o que lhe rendeu não apenas antecedentes 
criminais, mas um lugar no imaginário, no afeto, nas fantasias, na memória de um 
povo que encontrou no seu mais destemido conterrâneofascínio e inspiração. 
Val, que se tornara quem não queria ser e foi mais do que aquele que o 
fizeram ser, tornou-se um terceiro que, por sua culpa e pela implacabilidade da 
moral pública, não podia ser previsto por nenhum dos dois, em uma espécie de 
mestiçagem para a qual nosso universo vocabular, nossos regimes disciplinares e 
nossa reflexão deve se voltar a fim de aprender e se reformularem para terem o que 
dizer de importante sobre o humano, sobre sua condição, seus extremos, sua 
especificidade que vazam dos laboratórios, escapam dos gabinetes, surpreende e 
apresenta novas paisagens que somente fotografias em tempo real podem captar e 
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reproduzir com maior precisão, porque se trata do vivo, daquilo que tem voz e fala, 
pode falar inclusive que as conclusões a que se chegaram acerca de si estão 
equivocadas. 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
95 
 
 
4. A VIDA COMO PALCO E A FAMA: EXERCÍCIOS DE ADMIRAÇÃO 
A admiração é um vinho generoso para os 
espíritos nobres. 
(Auguste Rodin) 
 
Onde está a estrela, onde está o homem? 
Nós os procuramos na Terra, no que o 
homem tem de mais íntimo e de mais atual, 
duplas coordenadas que, abertas para 
análise, podem posteriormente permitir que 
se leia o mapa do céu das estrelas. 
(Edgar Morin) 
 
O sertanejo não admira o criminoso, mas o 
homem valente. 
(Câmara Cascudo) 
 
Em que pese ter se tornado um dos maiores criminosos da história do RN, 
Valdetário foi um homem que apreciou as artes e almejou o estrelato: desejou 
compor peças teatrais e ser mais do que um mecânico. O teatro, a música, símbolos 
culturais e da política nacional e internacional permearam sua imaginação desde 
muito jovem, fazendo com que ele nutrisse o sonho de ser ator por muito tempo. 
Esse seu sonho embalou suas escolhas e, posteriormente, deu a tônica das suas 
incursões com fortes apelos à espetacularização, o que restaria comprovado pelo 
seu modus operandi. Essa verve se revelou no seu período escolar, na Escola 
Estadual Professor Lourenço Gurgel, localizada no centro da cidade: o garoto Val 
não era um dentre outros alunos aplicados. Seu desempenho era irregular. Foi no 
desfile cívico de 07/09/1972, quando ainda tinha 13 anos, que apareceu o ardor 
pelas estrelas. 
Nesse desfile, Valdetário, interpretaria Tiradentes, o conhecido herói da 
Inconfidência Mineira, e com esse papel assumiria pela primeira vez o protagonismo 
que o faria vencer o acanhamento. Passar pelas ruas da cidade ornamentado, atrair 
os olhares, ter os seus minutos de destaque e a distinção era o triunfo da ousadia 
por meio da arte. Era o encontro de uma estrela recém-nascida com o estrelato, 
guardadas as devidas proporções de um evento escolar de um município 
relativamente pequeno. Como em toda cidade interiorana, as pessoas vinham às 
96 
 
 
suas portas para ver a banda passar e seus artistas mirins — filhos, sobrinhos e 
netos — darem o melhor de si para depois terem do que se orgulhar na cidade. O dia 
era especial para caraubenses, alunos e professores. 
Nada podia dar errado. Estava tudo pronto para o espetáculo. Contudo, todo 
o cuidado com o figurino, pensado nos mínimos detalhes, parecia que seria em vão, 
porque a peruca que seria utilizada para compor o ornamento pertencia à diocese 
para cobrir a cabeça da estátua de Bom Jesus dos Passos (Jesus Cristo) durante as 
conhecidas procissões de Nosso Senhor Morto, na Semana Santa. O pároco da 
época recusava-se a emprestar, pelo que tiveram que bolar um plano: a peruca e o 
crucifixo foram pegos escondidos e sem o consentimento do padre. Era um grande 
dia e Valdetário estava animado. Ali, diante de toda a cidade, diante de conhecidos, 
amigos e vizinhos aconteceria a inversão de uma postura que havia perdurado pelos 
sete anos da promessa e pelos anos seguintes: ele se orgulharia de ser visto e não 
temeria o que poderiam pensar acerca de si; encontrar-se-ia com a capacidade 
possibilitada pela arte de viver outras realidades. 
Na encenação ele caminhava com muita dificuldade e mal conseguia 
abrir os olhos. A alva (tosco roupão vestido pelos condenados) 
roçava os seus tornozelos, o baraço (a grossa corda da forca) 
rodeava-lhe o pescoço e ia até a mão do carrasco, dando-lhe a 
sensação horrível, que parecia ser ele mesmo o condenado. Os 
estudantes em grande quantidade, e as pessoas nas ruas de 
Caraúbas lembravam o povo que acompanhava a cada gesto do 
padecente na história real (VIANA, 2010, p. 165). 
 
Esse momento foi um divisor de águas para o jovem que, encenando, sentiu-
se à vontade e, em ato, reconheceu a potência do seu sonho. Ele, que antes era 
absolutamente introspectivo, teve a oportunidade de superar a timidez e, pela 
primeira vez, gostar de ser o centro das atenções. Estabelecia-se ali um encontro 
entre uma vida comum e uma saga que inspiraria o garoto a querer ser e fazer mais. 
Era o encontro definitivo entre o anonimato e a popularidade, entre a fantasia e o 
real; entre o brilho dos astros, que podia fazê-lo mudar de postura, e a penumbra da 
sua circunspecção que começava a se dissipar pelo envolvimento com uma história 
de luta e resistência. O menino de infância recatada e envergonhada soltava-se das 
amarras que o haviam feito refém do retraimento. 
Durante um longo período, Tiradentes permaneceu encantando o jovem José 
Valdetário Benevides. A história de resistência e enfrentamento do mártir brasileiro 
97 
 
 
alimentava sua imaginação e aquecia seu coração, como se os feitos heroicos e 
radicais dos quais ele tomou conhecimento na escola sobre a Inconfidência Mineira 
o inspirassem a ter a coragem de que sempre precisou para encarar a vida, seu 
visual, sua própria identidade, sua história. A fascinação só diminuiu quando José 
Valdetário, ainda na juventude, tomou conhecimento da bravura de Ernesto Rafael 
Guevara de la Serna (o Che Guevara, ou simplesmente Che), um dos três líderes da 
Revolução Cubana deflagrada na década de 1950, que ganhou notoriedade e 
passou a compor o rol dos grandes momentos geopolíticos mundiais. 
 
Figura 16: à direita, Valdetário à frente do desfile cívico 
 
Fonte: arquivo da Escola Estadual Prof. Lourenço Gurgel 
 
O jovem caraubense logo se interessou por aquela história de risco e 
aventura, perigos e utopias, dilemas e controvérsias. O fervor revolucionário, a 
coragem e o brio de Che cativaram o garoto de maneira tão singular que o fez 
desejar encenar uma peça de teatro (VIANA, 2010, p. 188) na qual pudesse 
representar o guerrilheiro e aproximar sua vida daquela ação e emoção de tomar as 
rédeas da história e fazê-la ganhar os contornos dos seus sonhos, como se 
quisesse comunicar algo sobre si, afinal, “a literatura, o teatro e o cinema fazem com 
que vejamos os indivíduos em sua singularidade e subjetividade, sua inserção social 
e histórica, suas paixões, amores, ódios, ambições e ciúmes” (MORIN, 2012b, p. 
12). Sempre que podia, o rapaz falava sobre o assunto e o segredava a seu primo 
98 
 
 
José Viana Ramalho, o Dudé Viana, cantor, compositor e autor, insistindo para que 
Dudé escrevesse para ele um texto para ser atuado. 
 O relacionamento de Dudé com Valdetário transcorreu dos seus 10 até seus 
25 anos. Por vezes, o mecânico confessou a seu primo que não gostava de estudar 
e que esse havia sido a razão pela qual havia abandonado a escola, pois a 
mecânica já o havia capturado e para ser um bom profissional nessa área os 
estudos formais não eram necessários, ao que seu primo retrucou dizendo que para 
ser um bom ator, desejo que permanecia vivo no jovem José, era necessário estudar 
muito. Foi então que ele falou que, sim, se fosse pela arte, se fosse para se tornar 
ator, voltaria a estudar para exercer o ofício artístico que o havia cativado tanto 
quanto à mecânica: “ele sempre falava de música e teatro dramático” (VIANA, 2010, 
p. 188). No livro queescreveu para contar a história da sua família, Viana descreve 
que em uma das conversas tidas com seu primo, ele disse: “eu gosto de rir... adoro 
comédia, mas o drama tem um quê na minha vida, que não sei explicar” (VIANA, 
2010, p. 188) 
Dudé Viana ainda relata que (informação verbal)11 alguns membros da família 
Benevides Carneiro admiravam Fidel Castro e Ernesto Che Guevara. Valdetário 
conheceu e passou a reverenciar os dois revolucionários a partir da veneração que 
seus tios e primos mais velhos nutriam, de sorte a considerar Che Guevara um 
exemplo de valentia e coragem dignas de respeito. Quando esteve preso, entre 10 
de janeiro de 1983 e 22 de novembro de 1984, acusado injustamente de ter 
participado do roubo dos 94 milhões, Dudé recebeu a visita do seu primo que, 
movido pela indignação e revolta de ver seu parente submetido àquela situação, 
demonstrou tristeza por perceber o quanto sua família estava sendo devassada por 
aquelas circunstâncias, pelas perseguições e prisões. 
Viana já viajava pelas cidades fazendo shows e apresentando espetáculos. 
Sempre que ele e Valdetário se encontravam em Caraúbas, por insistência de Val, 
falavam sobre os mesmos assuntos: artes, música e teatro, o que demonstrava a 
curiosidade, o interesse e a obsessão do jovem mecânico que se dividia entre o 
chão da oficina e o mundo artístico. Ao visitar Dudé na prisão, mesmo que ambos 
estivessem tristes por aquelas condições, falaram sobre o mesmo assunto. Curioso, 
Val questionou sobre detalhes da peça O Sol, o vento e a chuva, musical de autoria 
 
11 Depoimento concedido por escrito e recebido por e-mail, em março de 2021. 
99 
 
 
do primo apresentado no Rio de Janeiro, em meados da década de 1970. 
Interessava ao jovem mecânico saber sobre o processo de criação, sobre o que 
caracterizava um ator e quais segredos eram necessários descobrir para compor 
uma obra de arte. 
Foi ali, naquela visita, que ele reiterou sua paixão pelo mundo artístico e se 
declarou fã incondicional de Che Guevara e do cantor Raul Seixas (VIANA, 2010, p. 
165), duas personalidades controvesas, que fizeram das suas carreiras símbolos de 
ousadia e comprovações de que é possível ser mais a partir das próprias forças, que 
é possível enfrentar a ordem em nome dos próprios ideais, transpor aquilo que 
parece intransponível e apresentar alternativas para preferências, ideias, desejos, 
vontades, disposições, necessidades que não encontram canais adequados pelos 
quais se expressar ou não conseguem se estabelecer por terem de enfrentar um 
estado de coisas que suprime qualquer manifestação daquilo que escapa aos 
padrões normativos de conduta e de gosto. 
A importância de Che que, para o mundo atual, verifica-se por “osmose ou 
controle remoto” (CASTAÑEDA, 2006, p. 17) reside no período em que o guerrilheiro 
agiu alçando valores que tentou incorporar, que causam nostalgia para os de hoje e 
eram combustível para os do passado, que ouviam falar da sua impetuosidade: a 
igualdade, a solidariedade, a libertação individual e coletiva (CASTAÑEDA, 2006). 
Para Che Guevara, “em qualquer momento e em pequenas coisas, pode-se ser um 
grande revolucionário, se se luta contra a injustiça, contra as situações de opressão 
que as sociedades de classe e o capitalismo produzem” (PÉREZ, 2001, p. 14). Essa 
aura que perpassa sua imagem foi se projetando ao longo do tempo, chegando aos 
rincões do Brasil. Ainda que essas questões não se formulassem assim tão 
claramente a Valdetário, a bravura do revolucionário lhe despertava interesse. 
A famosa frase hay que endurecer, pero sin perder la ternura jamás12, 
atribuída a Guevara, que ecoou pelo mundo como um lema de batalha, servia dentre 
outras coisas como um traço de personalidade, como um princípio de vida seu e 
para aqueles que, ao tomarem ciência e assimilarem a frase, poderiam entender que 
é possível ser severo sem se deixar embrutecer, que é possível ser resistente sem 
ser impermeável, que é possível ser dois e não perder a própria identidade, que é 
possível lutar sem deixar de ser singelo, assim como Valdetário Carneiro foi. 
 
12 “É preciso endurecer, mas sem perder a ternura jamais”. 
100 
 
 
O grande legado de Che Guevara, que “hora aparece como um Jesus Cristo 
do século XX, hora como uma máquina fria de matar” (TEIXEIRA, 2009, p. 10), não 
foi político, mas humano (TAVARES, 2013, p. 13), por ter se tornado um “médico 
compromissado com uma causa” (COSTA, 2013, p. 65). Por mais criticável que seja, 
Che enfrentou estruturas de poder e organização social opressivas que de outro 
modo não seriam movidas e abaladas para dar causa a um novo, dar causa à 
realização do que se mostrava impossível e mostrar que pode haver alternativas 
àquilo que se impõe como intransponível. Ele foi uma demonstração de vigor e uma 
inspiração para seus espectadores, comunicando a estes que eles podem criar e 
recriar espaços, ampliar limites, ultrapassar fronteiras, serem mais fortes do que 
aquilo que os persegue com ferocidade e que podem instituir seu eu em 
circunstâncias hostis. 
Ernesto Guevara, assim como Valdetário, era um sapiens-demens, 
“onipresente e multifacetado, uma soma de muitos rostos” (TAVARES, 2013, p. 25). 
É precisamente nessa questão que os dois se encontram e se assemelham, em um 
tipo de correspondência cuja necessidade, por mais inconsciente que fosse a Val, 
revelou-se pela pronta veneração que o mecânico destinou àquele revolucionário 
que lhe oferecia paradigmas e conteúdos que inspiravam, ainda que no campo da 
imaginação, uma maneira de se colocar no mundo e viver, já que, como aponta 
Edgar Morin, “cada um se forma através de mil imitações. [...] A aptidão a imitar 
personagens manifesta-se tanto no teatro da vida quando na vida do teatro” 
(MORIN, 2012a, p. 91). 
O mecânico que foi bandido, o caraubense amedrontador que também foi 
carismático, podia ver, no médico argentino que foi guerrilheiro e mudou a história 
de Cuba, que somos grandes e intermitentes demais para se conformar a uma única 
função, a uma única divisão, a uma única trincheira, a uma única definição. Mesmo 
que seu sonho de interpretar nos palcos essa multidimensionalidade de ser e da 
vida não tenha se concretizado pelos atropelamentos do azar, ao olhar para Che e 
olhar para si, Valdetário encarnou os valores, a potência daquele que o arrebatara, 
em um lugar muito maior do que qualquer cenário, do que qualquer teatro, do que 
qualquer tablado: na sua própria existência, com todos os seus pesares; mas o 
drama, a tragédia não eram gêneros estranhos ao homem que, ainda jovem, já se 
sentia seduzido e assediado por eles. 
 
101 
 
 
Figura 17: Valdetário ao lado esquerdo de uma imagem de São Francisco 
 
 
 
Fonte: JH Primeira Edição, N° 1.146, ano 4, 19/03/2009 
 
Logo que suas empreitadas criminosas começaram a se tornar vultosas, e 
mais intensamente depois da sua morte, os jornais começaram a tentar descobrir 
quem era aquele homem. Aquele que era um sonho e um desejo particular de um 
jovem passou a ser tema das crônicas jornalísticas e das conversas entre as 
pessoas da cidade que lamentavam ver o menino sonhador se tornar tão violento. 
Pouco a pouco, enquanto sua biografia e seu perfil começaram a ser descritos, os 
caraubenses perceberam que não estavam diante apenas de uma história de 
horrores perpetrados por um suposto perverso contumaz; estavam, também, diante 
de uma fatalidade, de um desastre pessoal com o qual era possível ser empático. 
Sua vida, enfim, já não podia mais ser restringida às conclusões policiais. 
As estrelas frequentavam e ditavam o ritmo da vida do homem na sua oficina, 
lugar de consertos que segregava concertos da alma que confluíam com os duplos 
em ebulição daquele que foi por muito tempo um simples, anônimo e pacato 
cidadão. Para José Valdetário, Raul Seixas, seu cantor preferido, brilhava com tanto 
esplendor que era impossívelnão ser embalado e convencido por sua poesia. O 
roqueiro baiano, conhecido por sua excentricidade e por dar voz a gerações 
102 
 
 
rebeldes com suas propostas de vidas e mundos alternativos, era sua fixação, em 
uma cidade e em uma cultura sem predisposições ao rock. Ouvir Raul e adorá-lo 
nessas circunstâncias era sinal de uma singularidade e originalidade semelhantes 
justamente as do próprio Maluco Beleza que, baiano, fã de Elvis Presley, sonhou e 
realizou seu mundo. Dois homens e a mesma disposição à conquista e posse do 
imponderável. 
 Raul, “que soube deixar sua marca indelével no coração de cada um nós” 
(MEDEIROS, 2019b, p. 9), foi também um errático e, coincidentemente, morreu aos 
44 anos de idade, em 21/08/1989, quando ainda podia oferecer mais do seu 
repertório, que era mais do que musical. Sua pródiga criatividade, sua presença 
marcante, sua inteligência musical ganharam tamanho destaque e cresceu na 
imaginação do povo, fazendo-o de fato um dos ícones mais importantes da música 
brasileira, que até “mesmo suas falhas (os shows que abandonou ou que o corpo 
não segurou) e seus fracassos (seus discos de pouca inspiração, suas apropriações 
indébitas) são muitas vezes elevados à categoria de acertos indubitáveis” 
(MEDEIROS, 2019b, p. 10). 
Val era como Raul, que “alternou em quantidade parelha vícios e virtudes, 
perversidades e generosidade, grandeza e pusilanimidade” (MEDEIROS, 2019b, p. 
12), o que não os tornam menores ou maiores, mas evidencia uma vitalidade 
mestiça, desregrada, volátil e surpreendente, própria de um humano irredutível ao 
óbvio, à monotonia da percepção que, movida por maniqueísmos tacanhos, só 
consegue conceber as pessoas por uma única cartografia. Ao cantar e decantar um 
mundo que não era o seu, um mundo e um estilo de vida que estava fora do eixo do 
comum, Raulzito ofereceu a multidões chances de, pela melodia dos versos, 
vislumbrarem outras existências e fantasiarem, imaginarem, darem formas a essa 
imaginação. 
Seixas criou e recriou-se, inventou meios expressivos para reinventar-se, para 
situar-se e construir vias por onde os muitos que lhe habitavam podiam transitar, 
comunicar e sobreviver à própria ebulição que o movia e que o fez ser o que foi: 
 
a trajetória de Raul Seixas demonstrou na sua breve passagem por 
esse mundo que o ser tem várias vidas, desempenha diferentes 
papéis e vive a existência em parte de fantasias, em parte de ações. 
O seu cancioneiro e a sua poesia nos permite inserir e situar a 
condição humana no cosmo, na vida, na Terra e ao mesmo tempo, 
na cultura, na sociedade, na história, na estética. Como nenhum 
103 
 
 
outro compositor, foi produto e produtor de sua música, de sua obra, 
de sua vida. Foi criador e criatura da sua existência, da sua arte. 
Soube compreender e manusear como poucos o fato de ter 
consciência de sua própria consciência, característica fundamental 
da nossa condição e emergência extraordinária da mente humana. 
Talvez por isso, achava mais difícil fazer o próprio papel na vida do 
que encarnar outros personagens. Era mais difícil ser Raul Santos 
Seixas do que simplesmente Raul Seixas (MOURA, 2020, p. 49-50). 
 
 Valdetário foi um dentre tantos que, seduzido por essa ontologia instaurada 
pela poesia, encontrou nas letras de quem incorporava outros para reencontrar a si 
mesmo o diapasão capaz de equalizar sua dor por não ter conseguido ser o que 
sonhou e ao mesmo tempo ter se tornado aquilo que era objeto de repulsa pela 
maioria. Os vários mundos possíveis e a multiplicidade do ser a partir dessa mesma 
variedade cantada por Raul Seixas, que a seu modo mostrou ser perecível e pobre 
tornar absoluta somente uma das catalogações possíveis para alguém, foram as 
mensagens necessárias para Val lidar com as colisões entre seus sonhos de menino 
e seus erros de adulto, entre sua rotina comum distante dos assaltos e a adrenalina 
praticamente letal das suas ações, afinal, “a paixão musical substitui todas as formas 
de vida que não foram vividas e compensa no plano da experiência íntima as 
satisfações encerradas no círculo dos valores vitais” (CIORAN, 2014, p. 39). 
 Para o caraubense, a julgar pelas coisas as quais foi submetido por causa 
das rivalidades políticas e familiares que o circundaram, também se tornou mais 
difícil ser simplesmente José Valdetário Benevides do que Valdetário Carneiro. 
Sendo este último, mesmo que sobre ele pudesse e possa pesar a culpa e os juízos 
de valor condenatórios, Val conseguiu fazer com que as condições limitativas 
impostas pela existência em uma conjuntura de perseguição e implicância pelo 
poder fossem contornadas e reaver algum tipo de respeito, de controle sobre seu 
próprio destino, sobre sua história, sobre o que deveriam pensar acerca da sua 
identidade. 
Entretanto, assim como Raul Seixas, cuja poesia estava sempre afiada e 
pronta para dizer algo ao mundo (MOURA, 2020), Valdetário Carneiro estava 
sempre a perturbar aquilo que estava estabelecido, tanto por suas incursões quanto 
por sua personalidade de difícil classificação, que foi se delineando em cada uma 
das suas aparições e encontros com pessoas comuns. Ele ouviu do seu ídolo, 
cantou e aprendeu a ser uma metamorfose ambulante que aciona seus processos 
de mudanças a partir de cada necessidade, de cada experiência, de cada 
104 
 
 
interlocutor, de cada problema a ser resolvido e a partir de cada vez que é chamado 
a dizer a que veio ou quem de fato é. O músico e o mecânico, o ídolo e o fã, foram 
dois homens que precisaram compor e recompor para sobreviver às suas 
inadequações e sentirem-se vivos: o primeiro compôs com suas letras; o segundo, 
com sua vida. Ambos, porém, fizeram dos dilemas força motora para reagir e criar. 
A música foi para Raul Seixas um mecanismo para dizer a verdade 
ao poder e um veículo para expressar toda a sua criatividade e 
genialidade como marcadores da nossa condição demens. Sua 
poesia provocou e ainda provoca abalos sísmicos. A desordem 
estabelecida por sua música reforça a loucura como um elemento 
constitutivo da condição humana e a própria desordem como 
característica distintiva do nosso ser (MOURA, 2020, p. 128). 
 
Mais do que uma opção estética, portanto, o apego a Raul era uma 
identificação ética e ontológica, um modo de se colocar no mundo que havia 
encontrado seu correspondente e oportunizado a chance de se ver representado, 
uma tomada de posição para localizar-se e poder dizer, com palavras ou ações, o 
que era desejado, o que incomodava, o que não podia ser traduzido de outra 
maneira ou que nem sequer era possível nomear, o que compunha o ideário, os 
interesses e as volições daquele que se identificava com uma estrela que parecia 
consigo, posto que “quando se sofre vivendo, a necessidade de um mundo novo, 
distinto do que vivemos habitualmente, nasce de forma imperiosa para não diluirmos 
em um vazio interior. E esse mundo só a música pode trazê-lo” (CIORAN, 2014, p. 
39). 
O que parece simples mostra-se como um receptáculo-projetor dos sujeitos 
que mobilizam suas energias e envolvem-se com a vida cantada e transformada em 
poesia. Pela música, soam e ressoam as contradições humanas (ALMEIDA; 
KNOBBE, 2003, p. 141) que se traduzem nas letras e nas incursões daqueles que, 
como Valdetário e Raul, tornam seus paradoxos exponenciais ao ponto de se 
desdobrarem em questões públicas que passam a implicar a outros e falar sobre 
seus desafios, seus embates externos, seus conflitos internos, suas necessidades 
de expressão que não encontram facilmente os canais mais adequados de 
satisfação. Valdetário, assim como Raul, foi vários sendo apenas um, compondo 
“partituras complexas da condição humana onde estão constituídas a vida” 
(MOURA, 2020, p. 128). 
105 
 
 
O Raulzito que costumava dizer “sou um monte de coisas, partículas juntas 
que formam Raul Seixas” (SEIXAS. In: SOUZA 1993, p. 15), era a estrela, a 
celebridade,o astro que confessava e mostrava ao homem caraubense que ser 
possuído por muitos e não querer ser somente um não era um problema do seu fã; 
era um dilema seu e que, por isso, era possível lidar com esse mosaico que constitui 
a experiência humana aceitando-se como tal, querendo ser, e sendo, tudo ao 
mesmo tempo sem a necessidade de caber em uma única fôrma. Seixas e Val 
encontravam-se, pois, nessa necessidade de serem um ator que não quer parar e só 
interpretar um personagem (SEIXAS. In: SOUZA, 1993, p. 38). É assim que Raul se 
apresenta e se faz ouvir em um trecho da música Gita, escrita em parceria com 
Paulo Coelho, em 1974: 
Você pensa em mim toda hora 
Me come, me cospe, me deixa 
Talvez você não entenda 
Mas hoje eu vou lhe mostrar 
 
Eu sou a luz das estrelas 
Eu sou a cor do luar 
Eu sou as coisas da vida 
Eu sou o medo de amar 
 
Eu sou o medo do fraco 
A força da imaginação 
O blefe do jogador 
Eu sou, eu fui, eu vou 
 
 
Raul poderia ser quem quisesse, só não aceitava ser normal, enquadrar-se, 
manter-se dentro dos enquadramentos da banalidade. Reconhecia-se instável e 
declamava sua instabilidade para que todos pudessem ver sua humanidade na 
celebridade, de modo que, ao ouvirem, percebessem que suas estranhezas não 
eram tão exóticas assim. Confessando isso em canções, ele oferecia a seus 
ouvintes “uma válvula de escape diante dos acontecimentos da vida, dos infortúnios 
da existência e dos problemas gerados pela consciência do real” (MOURA, 2020, p. 
101). Cantou o sofrimento que também podia ser de Valdetário, em “Aquela Coisa”, 
do ano de 1983: 
 
Meu sofrimento é fruto do que me ensinaram a ser 
Sendo obrigado a fazer tudo mesmo sem querer 
Quando o passado morreu e você não enterrou 
 
106 
 
 
O sofrimento do vazio e da dor 
Ficam ciúmes, preconceito de amor... 
... Minha cabeça só pensa aquilo que ela aprendeu 
Por isso mesmo, eu não confio nela eu sou mais eu 
Sim... pra ser feliz e olhar as coisas como elas são 
Sem permitir da gente uma falsa conclusão 
Seguir somente a voz do seu coração... 
 
O “Maluco Beleza” não compôs somente poesia e instituiu um modo de ser; 
ele falou daquilo que mais interessava e sobre o que as palavras disponíveis para 
quem o ouvia eram incapazes de enunciar. Ouvindo e cantando Raul, Val podia 
transformar em poesia seus delírios errantes e decantar as dores que o 
atravessavam. Entre os dois havia em comum uma gramática musical e existencial, 
dotada de uma razoabilidade peculiar, afinal, “a sabedoria da vida deve assumir a 
loucura da vida, que deve integrar a racionalidade numa louca sabedoria” (MORIN, 
2017, p. 137). 
Além do encantamento pelo teatro e da enorme paixão por Raul Seixas, 
Valdetário era absolutamente deslumbrado pelo automobilismo, sobretudo pela 
Fórmula 1 (F1) e por aquele que se tornaria um ídolo nacional: Ayrton Senna. Ele 
sempre quis conhecer e ver de perto o evento, a magnitude daquelas máquinas cujo 
funcionamento ele mesmo, por causa do seu trabalho, conhecia suficientemente 
bem para se interessar por aquele espetáculo de ação e velocidade (BARBOSA; 
NASCIMENTO, 2013). Ir e presenciar a apoteose dos carros era, por um lado, uma 
realização pessoal, e, por outro lado, uma obsessão de quem era atraído pelas 
estrelas e seu brilho. Conforme Dudé Viana (informação verbal), foi através da 
carreira de Emerson Fittipaldi que Val se apaixonou pelo esporte. Com a ascensão 
de Senna, impulsionada pela cultura de massas, logo foi arrebatado por aquele 
piloto para o qual as limitações só estavam postas para serem ultrapassadas. 
 
Senna tinha o que precisava na Fórmula 1 de sua época: uma 
disciplina fantástica e a percepção de que estava num negócio que 
contém esporte. Além disso, conseguiu provocar a adoração do mito, 
sendo um padrão de doçura absoluta, de bondade, de capacidade de 
luta. E mais o estilo destemido. Tudo o que se espera de um ídolo e, 
junto com isso, uma visão comercial muito grande. Ele misturava 
tudo de uma maneira que era praticamente impossível saber onde 
terminava uma coisa e onde começava a outra (RODRIGUES, 2004, 
p.169). 
 
107 
 
 
Edgar Morin (2018b) chama esses novos famosos de “olimpianos”, em 
referência ao Monte Olimpo, local onde os gregos antigos acreditavam habitar os 
principais deuses a quem prestavam culto. Esses Olimpianos passam a se destacar 
por alguma característica pessoal que, ao ser identificada pelos meios de 
comunicação, será explorada para transformar seus portadores em ícones que logo 
se tornarão “modelos de cultura no sentido etnográfico do termo, isto é, modelos de 
vida” (MORIN, 2018b, p. 101), heróis-modelo que “realizam os fantasmas que os 
mortais não podem realizar, mas chamam os mortais para realizar o imaginário” 
(MORIN, 2018b, p. 101) no real, na medida do possível, em suas vidas comuns e a 
partir daquilo que são e possuem como qualidades de si, como se a projeção 
daquela imagem fantástica introjetasse uma certa energia vital em quem as aprecia 
por desejar ser como elas são e fazerem o que elas fazem: 
 
os novos olimpianos são, simultaneamente, magnetizados no 
imaginário e no real, simultaneamente ideais e inimitáveis e modelos 
imitáveis; sua dupla natureza é análoga à dupla natureza teológica 
do herói-deus da religião cristã: olimpianas e olimpianos são sobre-
humanos no papel que encarnam, humanos na existência privada 
que levam. A imprensa de massa, ao mesmo tempo que investe os 
olimpianos de um papel mitológico, mergulha em suas vidas privadas 
a fim de extrair delas a substância humana que permite a 
identificação (MORIN, 2018b, p. 101) 
 
Ainda bem pequeno, Ayrton demonstrou paixão pelo automobilismo e tudo 
que envolvia os carros, desde sua bem-sucedida carreira nas competições de kart, 
nas quais foi por diversas vezes e por diferentes categorias campeão, até o auge na 
F1, passando pelas divisões de base. Era obstinado por vencer e ser o melhor das 
pistas. Tanto que, no início, quando precisou se afastar das corridas para 
administrar uma loja de materiais de construção do pai, aquele que havia sido 
entusiasta de primeira hora do talento do filho para competir, sua relação familiar se 
deteriorou ao ponto de desistir da administração da loja e retornar às pistas 
exclamando para todos da sua casa que “ninguém mandou me colocar sentado num 
kart quando eu era pequeno. Experimentei, gostei, e agora não peçam jamais para 
eu desistir. É a minha vida!” (RODRIGUES, 2004, p. 61), e era mesmo: 
 
todos os elementos que comporiam sua reputação na F1 já estavam 
presentes naquele mundinho amador, juvenil e improvisado do kart. 
Ayrton passou a ser conhecido por ser fechado e introvertido fora das 
pistas e extremamente técnico e competitivo dentro delas. Era 
108 
 
 
educado com todos, mas parecia educado até demais e falava o 
tempo inteiro em questões de motor e desempenho. Sempre tentava 
fazer as curvas mais rápido que os outros, e as fotos de suas 
atuações no kart mostram que ele as fazia quase de lado, no limite 
da força centrífuga (PIZA, 2003, p. 18). 
 
Assim como Valdetário, que sozinho aprendeu o funcionamento dos 
automóveis e a manipular suas peças, pela intuição, pelo tato, pelo magnetismo 
existente entre ele e as máquinas, “Senna mapeava o comportamento do carro a 
cada instante e a cada circunstância” (PIZA, 2003, p. 25), o que, a contento, fez com 
que ele desenvolvesse o hábito (que seria uma das suas marcas registradas) de, 
antes das corridas, percorrer todo o traçado da pista a pé a fim de verificar cada uma 
de suas peculiaridades, como se quisesse aferir a compatibilidade entre aquilo que 
ele já havia mapeado e os desafios que esse mapeamento logo precisaria enfrentar. 
Dedicados e estrategistas, o caraubense e o piloto paulistano foram homens que 
aguçaram seus talentos passando pelas provas mais ferrenhas que poderiam existir. 
Essa relação com as corridas e com o maior astro brasileirodo automobilismo 
aprimorava sua profissão e fazia com que ele se esmerasse ainda mais naquilo que 
se dedicava, enquanto o desejo de ir a Interlagos e assistir presencialmente aquilo 
para o que ele havia devotado a vida persistia, estimulando o mecânico. Por tanto 
apego e admiração, tornou-se reconhecidamente o melhor profissional da região e 
fez da sua oficina uma referência no conserto, na manutenção e correção dos 
problemas automobilísticos. Havia até mesmo quem se deslocasse de outros 
municípios só para ser atendido por seus serviços e usufruir da sua destreza com os 
carros. O que não pôde ser alcançado completamente foi sendo consumado 
parcialmente diariamente. A excelência das pistas com que sonhava acordado fez 
surgir um exímio e engenhoso especialista, com razão, afinal “as celebridades 
simultaneamente encarnam tipos sociais e proporcionam modelos de papéis” 
(ROJEK, 2008, p. 19). 
Quando soube da morte de Aryton Senna, naquele 01/05/1994, enquanto 
disputava o Grande Prêmio de San Marino, no Autódromo Enzo e Dino Ferrari, 
em Ímola, na Itália, Valdetário chorou copiosamente, relata Aguinalda Fernandes 
(informação verbal), declarando posteriormente que nunca mais a F1 seria a 
mesma, e que não teria mais sentido assistir aos grandes prêmios, tamanha a dor 
que sentira por perder a figura que o inspirava tanto. Aquele fatídico dia, em que o 
https://pt.wikipedia.org/wiki/Grande_Pr%C3%AAmio_de_San_Marino_de_1994_(F%C3%B3rmula_1)
https://pt.wikipedia.org/wiki/Aut%C3%B3dromo_Enzo_e_Dino_Ferrari
https://pt.wikipedia.org/wiki/%C3%8Dmola
https://pt.wikipedia.org/wiki/It%C3%A1lia
109 
 
 
Brasil inteiro mais uma vez pararia para apreciar os espetáculos do gênio das pistas, 
transformou-se em uma data de luto, comovendo toda uma nação: “era domingo de 
sol e feriado do Trabalho no Brasil, e o relato do hospital chegaria no horário do 
almoço. O dia, a semana, o mês não teria outro assunto” (PIZA, 2003, p. 114). 
A perda do ídolo e do objeto dos seus sonhos, porém, não seria suficiente 
para apagar a chama que já havia sido acesa no coração de Val. Para essa 
constatação, basta observar como ele realizava seus assaltos, sempre dotado de 
carros ultra potentes, roubados dos grandes fazendeiros ou de figuras de alto poder 
aquisitivo, e alcançavam velocidades extraordinárias. Os registros (BARBOSA; 
NASCIMENTO, 2013), inclusive visuais, atestam que a maioria desses automóveis 
usados pela quadrilha era formada por modelos 4x4 importados, picapes e 
caminhonetes que, por mais preparadas para enfrentar rotas difíceis que já fossem, 
ainda contavam com incrementos adicionados pelo próprio Valdetário, a fim de 
tornar seu maquinário imbatível e muito acima da média, especialmente em 
comparação com modelos de mesma marca e fabricante. 
 As rodovias acidentadas do interior do Nordeste, o relevo dificultoso da 
caatinga, as estradas de areia e barro, a vegetação espinhosa, os matagais pelos 
quais a quadrilha empreitava suas fugas equivaliam às pistas de corrida e 
competição que Valdetário Carneiro nunca pôde conhecer. Competir na velocidade 
com as forças de segurança equiparava-se a concorrer com os pilotos que ele só viu 
pela televisão. As pequenas cidades que presenciaram a passagem desses veículos 
pujantes, acostumadas ao passar rotineiro das horas no interior, transformaram-se 
em grandes autódromos para todo tipo de excitação, nisso que, em virtude da sua 
suntuosidade, tornava-se um acontecimento inesquecível, à maneira de um Grande 
Prêmio de Fórmula 1. O homem que havia sido impedido de viver o sonho de ser 
ator, fez da vida o seu palco movido pelas estrelas que faziam seus olhos brilharem: 
 
as celebridades oferecem afirmações peculiarmente fortes de 
pertencimento, reconhecimento e sentido em meio às vidas de seu 
público, vidas que de outro modo poderiam ser pungentemente 
experimentadas como de baixo desempenho, anticlimáticas ou 
subclinicamente deprimentes (ROJEK, 2008, p. 58). 
 
Típico da cultura de massa, onde a vida é aquela que “conhece a liberdade, 
não a liberdade política, mas a liberdade antropológica, na qual o homem não está 
mais à mercê da norma social: a lei” (MORIN, 2018b, p. 105), de modo que viver não 
110 
 
 
é apenas mais intenso, é outra experiência, uma experiência de expansão de si. 
Valdetário Carneiro, que não pôde presenciar a velocidade alucinante dos carros em 
Interlagos, que não liderou nenhum movimento revolucionário como Tiradentes e 
Che Guevara, que não cantava e não tinha o pedestal de Raul, transferiu a coragem, 
o espírito de liderança e autodeterminação dessas personalidades à marginalidade 
para a qual foi empurrado e da qual fez uso para reivindicar o respeito dos outros. 
Fez ser realidade o que era produto do seu desejo, mostrou a factibilidade do novo 
cogito proposto por Bachelard (2009, p. 140): “eu sonho o mundo; logo, o mundo 
existe tal como eu sonho”. 
O tema da liberdade se apresenta através das janelas diariamente 
abertas da tela, do vídeo, do jornal, como evasão onírica ou mítica 
fora do mundo civilizado, fechado, burocratizado. É a esse título que 
existe relação profunda entre o tema do rei e o do vagabundo, o 
tema do fora da lei e o do taitiano, entre o estado natural e a gangue. 
Ao mesmo tempo, porém, o tema da liberdade se inscreve no grande 
conflito entre o Homem e o Interdito. Qualquer que seja a saída 
desse conflito, e mesmo que o homem finalmente seja vencido ou 
domesticado pela lei, a revolta antropológica contra a regra social — 
o conflito fundamental do indivíduo e da sociedade — é colocada, e 
as energias do homem são empregadas nesse combate (MORIN, 
2018b, p. 107-108). 
 
Valdetário transformou-se em autor-ator da própria história quando incorporou 
esse outro seu que matava e assaltava, quando, mesmo praticando coisas ruins, 
espalhou rastros de bondade, quando decidiu ser o criminoso e não apenas mais 
um, quando não contradisse ninguém no momento em que acoplaram a seu nome o 
sobrenome “Carneiro”, que já havia se tornado uma pecha e ele tentou reverter, 
quando mobilizou as atenções para um caso de injustiça jamais reparada. Mesmo 
depois de ter se tornado o notório bandido que se tornou, ele manteve seus hábitos, 
distante das ostentações do seu próprio bando e indiferente à posse dos signos 
distintivos de riqueza que nunca o atraíram. Para ele, não importava fazer uso dos 
bens e dos lucros da sua atividade criminosa. Enquanto seu bando circulava nas 
famosas caminhonetes 4x4 importadas, o chefe preferia sua Chevrolet D-20, modelo 
considerado ultrapassado para a época. 
Tudo mudava quando resolvia entrar em ação. Era o momento das luzes se 
voltarem para seu espetáculo, e as vestimentas simples, o calção corriqueiro, as 
camisetas básicas acompanhadas de sandálias populares, pelos quais ele era 
reconhecido no cotidiano, davam lugar a calças jeans, camisas arrojadas e um par 
111 
 
 
de botas que impelia o ator à sua personagem demencial e conferia-lhe uma 
aparência completamente diferente. A mudança de figurino, mais do que uma mera 
troca de roupa, constituía um processo de estetização do sujeito para o empoderar. 
Mudar de trajes equivalia, pois, a mudar de atitude, como quem busca a coragem 
onde ela não pôde ser encontrada de antemão, como quem, ao vestir-se diferente, 
investia-se dos poderes olimpianos para feitos extraordinários. 
Paramentado da sua indumentária e investido desses poderes, Valdetário 
cruzava Estados, atravessava cidades, desbravava o sertão e o tornava seu pela 
intrepidez demonstrada. Seu nome ganhou status à medida que começou a circular 
nos registros policiais e jornalísticos. A partir da sua aparição, de modo drástico, 
todos poderiam saber que um jovem mecânico do interior havia sido vítima da 
inabilidade e da impostura sócio-político-culturais das confabulações dos poderosos, 
como pensa e afirma categoricamente Marciano Medeiros (informação verbal)13:“não tenho dúvida de afirmar que Valdetário Carneiro foi uma grande vítima do 
Estado Brasileiro”. 
Seu empoderamento foi completo, e era preciso ser assim para que seus 
planos ambiciosos pudessem se consumar. Ele escolheu e montou os melhores 
carros para atuar, apropriou-se do armamento mais potente que poderia, indo de 
metralhadoras semiautomáticas a pistolas de uso exclusivo das forças armadas 
brasileiras e fuzis, incluindo um M-16, usado exclusivamente pelo exército norte-
americano, enviado em ônibus interestaduais da cidade de São Paulo (GUERRA, 
2009). Também não teria escolhido os bancos, “símbolos do poder impessoal do 
dinheiro” (HOBSBAWM, 2017, p. 144) que determina os termos das relações sociais, 
para desafiar o sistema; não teria optado pela espetacularização dos seus feitos, 
não feito questão de atrair os holofotes, não teria sido, por fim, um homem que 
marcaria uma época e cravaria seu nome nos anais da história de um Estado, de 
uma região e de um país apenas por ser ele mesmo, desproporcionalmente audaz e 
controverso. Foi assim que ele, um sertanejo comum, transformou sonho em 
realidade. 
Parecido com o anarquista e assaltante espanhol Francesc Sabaté Llopart, 
que “percorria as fazendas das montanhas como mecânico ambulante e reparador 
de tudo quanto precisasse de conserto” (HOBSBAWM, 2017, p. 151), Valdetário 
 
13 Depoimento concedido por escrito e recebido por e-mail, em setembro de 2020. 
112 
 
 
Carneiro “roubava bancos não apenas para conseguir dinheiro, mas como um 
toureiro enfrenta touros — para demonstrar coragem” (HOBSBAWM, 2017, p. 160). 
Para o caraubense, dado seu histórico de ações espetaculares e sua forma inédita 
de disputar com as polícias, o que realmente valia era antes o exemplo de ação do 
que seus efeitos, tendo em vista que, sabendo da sua superioridade de ataque 
“conseguir dinheiro com o risco da própria vida equivalia, num certo sentido moral, a 
pagar por ele. Caminhar sempre em direção à polícia era não só uma correta tática 
psicológica, como também a maneira de agir do herói” (HOBSBAWM, 2017, p. 161). 
A fama com que sonhara o jovem rapaz enfim havia sido conquistada e, a 
partir de então, seria impossível para caraubenses e norte-rio-grandenses se 
desvencilharem do seu sucesso proibido, subversivo e dramático. Coube à vida e 
aos seus atores, sem que o soubessem, compor e recompor os roteiros, montar e 
remontar os cenários, decidir quais coadjuvâncias seriam decisivas e o final de uma 
biografia que foi uma saga, de uma epopeia que foi uma tragédia, de uma história 
que continua viva em Caraúbas e no Rio Grande do Norte. Ainda que tentassem e 
tentem, era e é impossível evitar falar de uma experiência e de um tempo em que 
houve um sertanejo comum que, a seu modo, conseguiu fazer frente a tudo e a 
todos que eram maiores e que se empenharam em diminuí-lo ou enfrentá-lo. 
 
4. 1 – A espetacularização da coragem 
Os primeiros anos da década de 2000 são considerados o auge da quadrilha 
que em pouco mais de dois anos realizou sete sucessivos assaltos a várias 
instituições no RN. A sequência foi tão aleatória quanto bem encadeada, seguindo o 
mesmo padrão de sitiar as cidades e fazer os pequenos efetivos policiais locais de 
refém: em 17 de janeiro de 2002, o alvo foi o Banco do Brasil (BB) de São Miguel do 
Oeste; em 17 de fevereiro do mesmo ano, os Correios de Barra de Maxaranguape; 
em 27 de fevereiro, o BB de João Câmara; em 6 de março, uma agência do mesmo 
banco e os Correios de Touros, onde o bando, após os policiais terem se rendido, ao 
invés de executá-los, atiraram em direção ao chão obrigando os agentes a pular e a 
dançar (BARBOSA; NASCIMENTO, 2013), nesse que é um causo que tem sua 
veracidade questionada como lenda, mas que é lembrado com risos por quem o 
conta. E continua: em 13 de maio de 2002, o BB de Santana dos Matos, em 3 de 
113 
 
 
junho os Correios de Poço Branco, e em 4 de junho de 2002 o mais famoso dos 
assaltos, que saqueou ao mesmo tempo as três únicas agências bancárias da 
cidade de Macau14. 
 Até aquele momento, esse tipo de prática criminosa ostensiva e muito bem 
arquitetada era completamente desconhecido no Rio Grande do Norte. Ver as 
cidades sendo invadidas por uma fila de carros carregando uma porção de homens 
com armas à mostra e impondo terror com requintes de sarcasmo e ironia era uma 
novidade para a qual a inteligência e as possibilidades de contenção municipal e 
estadual não estavam preparadas. Sempre vestidos como se fossem a uma guerra, 
de coturno e macacões parecidos com aqueles usados por petroleiros, o bando 
sabia exatamente o que fazer chegando aos municípios, cada qual com sua função 
pré-estabelecida e um alvo a ser contido ou vigiado, com a ordem do chefe de não 
matar ninguém que primeiro não os tenha tentado executar. Os planos eram 
infalíveis e seu mentor, participante direto, totalmente focado na concretização 
impecável do que deveria ser feito. Rápidas e perspicazes, as incursões eram tão 
eficientes que não sobrava tempo para que o apoio das polícias de cidades vizinhas 
chegasse. 
 Sempre comandado por Valdetário, os roteiros que seus homens seguiam 
pareciam ter saído de um filme de ação, tanto pela escolha ousada de assaltar à luz 
do dia, com os rostos de fora, instituições relativamente seguras e adaptadas para 
evitar roubos, quanto pelas atitudes surpreendentes que o chefe e seus 
comandados tinham. Era tudo muito inédito e espetacular demais para não ser 
irrevogavelmente notório. O homem que um dia havia se encantado pela aventura, 
que havia sido capturado pela adrenalina, que havia sido seduzido pela encenação 
fazia desses ingredientes a substância dos seus atentados. Para ele, nada podia ser 
pequeno e passar despercebido: tudo devia ganhar notoriedade e deixar o recado 
de que, a partir do momento em que se fazia conhecer, teriam de lidar com alguém 
fora de série que tratava empecilhos como estimulantes. O poder e os poderosos 
agora teriam um que os afrontaria, quando não em pé de igualdade, superiormente. 
São incontáveis os casos e narrativas a que se pode ter acesso ouvindo os 
caraubenses, lendo os jornais da época e consultando registros que, uns mais 
precisos e factíveis que outros, desenham esses mesmos traços de uma ousadia 
 
14 Em 30/09/2008, a Federação Nacional dos Policiais Federais (FENAPEF) lançou em seu site uma 
matéria sobre o bando e esses assaltos. Link para acesso: https://fenapef.org.br/17608/. 
https://fenapef.org.br/17608/
114 
 
 
espetacularizada por Valdetário Carneiro e os seus cúmplices. Três exemplos se 
destacam: a fuga do presídio de segurança máxima de Alcaçuz, na madrugada de 
05 de novembro de 2000; o assalto aos únicos bancos da cidade de Macau, distante 
177km de Caraúbas, e a confissão espontânea em uma rádio do assassinato do 
médico João Simião Pereira. Juntos, esses três episódios projetaram a imagem de 
Valdetário, midiática e popularmente, aumentando o grau de preocupação social 
com aquilo que estava a se desenrolar diante de todos e havia se inscrito de uma 
vez por todas na ordem das demandas públicas urgentes. 
Logo depois do assassinato de João Pereira e da enfermeira Walquíria 
Batista Dantas que o acompanhava, ainda no ano de 1999, quando as investigações 
nem sequer haviam sido concluídas, Valdetário, que havia se habituado a dar 
entrevistas às rádios do oeste potiguar para desfazer mentiras a seu respeito sobre 
crimes que lhe imputavam e não haviam sido praticados por ele, liga15para uma 
delas e confessa o crime ao vivo, impondo-se e fazendo ameaças ao restante da 
família Simião Pereira, com a ressalva de que o único de caráter dentre todos os 
parentes do médico assassinado era Agnaldo Simião Pereira, à época prefeito de 
Caraúbas. A morte causou comoção na cidade e o velório seguido do sepultamento 
foi acompanhado por uma multidão emocionada. 
Em 08/06/2000, o prefeito, cujahonra havia sido exaltada, concede uma 
entrevista a então chamada TV Cabugi, afiliada da Rede Globo no Estado, 
apaziguando os ânimos e tentando uma trégua daquela disputa familiar, informando, 
aliás, que irá controlar qualquer tentativa de revide. Não obstante, faz um apelo: “eu 
quero que o caso seja esclarecido, se possível trazer a Polícia Federal”. Seis meses 
depois da confissão, o mentor do crime é preso na cidade de Monteiro, na Paraíba. 
Val, que estranhamente estava desarmado e absolutamente vulnerável ao lado de 
Silvana, não esboça reação. Despreparado para o confronto, nem de longe parece 
com aquele criminoso da rádio, dos relatos e dos crimes praticados. Presos ele e 
seu braço direito, o primo Cimar Carneiro, são conduzidos à Penitenciária Estadual 
Dr. Francisco Nogueira Fernandes, mais conhecida como Presídio de Alcaçuz, na 
cidade de Nísia Floresta/RN. 
Considerado um presídio de segurança máxima, Alcaçuz seria palco para 
mais um dos atos cinematográficos do personagem Valdetário Carneiro e de seu 
 
15 O áudio da ligação foi reproduzido por aquela mesma edição do Programa Linha Direta. 
115 
 
 
bando. Entre 15 e 16 homens, em duas caminhonetes Ford Ranger e uma Chevrolet 
Silverado, com duas escadas que transpassavam os muros da cadeia (uma lançada 
para o lado interior de Alcaçuz e outra mantida do lado de fora), armados de 
metralhadoras giratórias, Fuzis AR-15, pistolas e granadas, rendem a vigília policial 
que estava de serviço e, além de resgatar o seu chefe e primo, dão causa para a 
fuga de outros 28 a 30 apenados, transformando radicalmente a rotina daquele lugar 
e causando uma convulsão entre os presidiários que não conseguiram escapar, que 
logo trataram de utilizar isso como pretexto para uma rebelião que seria reportada 
pelos principais veículos de comunicação estaduais como resultado direto da ação 
perpetrada pelos Carneiro. 
 
Figura 18: reprodução da matéria impressa sobre a fuga do presídio 
 
Fonte: Jornal Tribuna do Norte, edição online de 20/01/2012 
 
O ineditismo da ação, que mais uma vez demonstrava a alta capacidade de 
articulação da quadrilha e sua audácia, aliado à insatisfação explosiva dos presos 
remanescentes, compunha a pauta dos periódicos impressos, televisivos e 
radiofônicos. Até aquele dia, essa fuga havia sido a maior e mais engenhosa já 
registrada no RN. Quando houve uma superior e precisou descrevê-la, no ano de 
2012, o Jornal Tribuna do Norte, famoso no Estado por sua enorme tiragem, 
116 
 
 
reproduziu uma foto16 da sua versão impressa que havia relatado detalhes daquela 
que se tornara o parâmetro para avaliar as insuspeitáveis fragilidades do presídio 
mais seguro da época. Aquele passado e aquela incursão não poderiam ser 
esquecidos porque haviam sido tão espantosos quanto marcantes. 
Essa foi, dentre tantas outras, uma maneira de que Valdetário fez uso para 
demonstrar que o máximo do Estado era próximo do mínimo em comparação com 
sua capacidade estratégica, para deter sua determinação e sua organização 
criminosa, semelhantemente ao que ele demonstrou ao assaltar as três agências 
bancárias de Macau, tomando não apenas as agências de sobressalto, mas toda 
cidade que, atônita, parou diante daquelas cenas e contracenas de um filme de ação 
que incluía os macauenses no elenco sem que eles houvessem esperado ou pedido. 
A Terra do Sal, por algumas horas, passaria a ser a Terra da Estupefação de 
testemunhar o que nunca havia sido visto por seus olhos na vida real. 
Tudo parecia seguir a mais plena normalidade no início da tarde do dia 
04/06/2002, até as famosas caminhonetes potentes invadirem a cidade cuja entrada 
também era a saída. Eram mais de 15 homens dos Carneiros que chegavam para 
impor um roteiro que nunca mais seria esquecido. Os relatos dão conta de que, ao 
se aproximarem dos bancos, os criminosos dispararam para o alto diversas vezes. 
Os alvos dos assaltos eram o Banco do Brasil, a Caixa Econômica Federal e o 
Banco do Nordeste, este, inclusive, preservou em suas paredes as marcas de dois 
tiros daqueles disparados, que por algum tempo seriam os únicos vestígios do 
atentado. Com as armas potentes de sempre, os assaltantes conseguiram render a 
todos e roubar as agências-alvo, no mais ousado dos assaltos que já haviam feito e 
de que se tem conhecimento. 
Estima-se um prejuízo de R$ 500 mil reais, quantia nunca confirmada de fato. 
O assalto, que fez alguns reféns, transcorria dentro do combinado, sem vítimas 
fatais ou baleados. Com as esquinas e a entrada-saída sitiada e vigiada por seus 
homens, nada podia sair fora do roteiro; até que uma viatura, ocupada por dois 
delegados da Polícia Civil, um agente e um sargento da Polícia Militar, surgiu e, sem 
saber da magnitude do esquema montado, reagiu atirando a esmo na tentativa de 
abater os assaltantes. Foi o erro que não poderiam ter cometido, porque, ao tentar 
matar os homens de Valdetário, esses mesmos homens passariam a ter liberdade 
 
16 Link para acesso à matéria: http://www.tribunadonorte.com.br/noticia/fuga-e-a-maior-da-historia-de-
alcacuz/209577. 
http://www.tribunadonorte.com.br/noticia/fuga-e-a-maior-da-historia-de-alcacuz/209577
http://www.tribunadonorte.com.br/noticia/fuga-e-a-maior-da-historia-de-alcacuz/209577
117 
 
 
para contra-atacar como quisesse. Aconteceu: houve confronto com rajadas de tiros 
espalhafatosas, que deixaram a cidade em pânico. O delegado regional Antônio 
Teixeira dos Santos Júnior foi ferido no braço e no rosto, enquanto o outro delegado 
que conduzia a viatura, Róbson Luiz de Medeiros Lira, foi morto. Por causa disso, a 
rixa entre “Os Carneiro” e as forças policiais acirrou-se cada vez mais, naquele que 
se constituiria um ataque tanto à segurança pública quanto à corporação. 
 
Figura 19: entrada de Macau rodeada por águas 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
Fonte: www.google.com.br 
 
Completados 10 anos do assalto, a Tribuna do Norte fez uma matéria17 inteira 
sobre o crime que, nas palavras de Marcos Antônio da Silva, um dos entrevistados 
pelo jornal, “foi coisa de cinema”, e, segundo as elaborações do mentor disso tudo, 
era para ser mesmo, porque era necessário ser espetacular, era necessário mostrar 
que aquele homem, uma vez humilhado, agora podia subjugar e ele mesmo impor 
 
17 Link para acesso à matéria: http://www.tribunadonorte.com.br/noticia/grande-assalto-completa-10-
anos/221846. 
http://www.google.com.br/
http://www.tribunadonorte.com.br/noticia/grande-assalto-completa-10-anos/221846
http://www.tribunadonorte.com.br/noticia/grande-assalto-completa-10-anos/221846
118 
 
 
suas vontades. “O grande assalto”, como classificou a Tribuna, tinha a audácia em 
sua raiz, afinal sitiar uma cidade sem rotas de fugas alternativas, rodeada por água e 
mar, implicava em tornar o evitável em meta, o impossível em possível para quem, 
tomado pela desmedida, estava obstinado a fazer-se insubstituível naquilo a que se 
propusera a fim de dizer a que veio e o que haviam feito da sua vida impondo-lhe 
pagar o preço de ser vítima de sucessivas injustiças amargas. 
As três incursões revelam um só e mesmo traço: a necessidade de ser 
notório. No limiar da queda, na iminência de ser pego ou de ter seus planos 
frustrados por um erro de cálculo ou por uma contingência qualquer, Valdetário fazia 
questão de ser visto e cravar seu nome ao medir forças com aquilo que se impunha 
e superava a possibilidade de outros transgressores. Ao medir suas forças, tinha a 
oportunidade de mostrar seu predomínio; tornava-se ele mesmo dono e regente de 
si, indo ao extremo e arriscando a própria integridade física em uma jornada de 
delinquência, mas de autoafirmação radical e busca de alguma respeitabilidade, já 
que todas haviam lhe sido retiradas com suas prisões injustas de antes. Com 
propósito, portanto, ele se distanciava dos comuns e colocava-se na lista dos 
excepcionais, vistoque não bastava transgredir; era-lhe necessário transgredir com 
sofisticação a fim de transformar seus assaltos em acontecimentos memoráveis. 
A confissão pública do assassinato não era necessária; Macau, cidade 
praticamente ilhada, não precisava ser uma escolha, posto que o risco de que tudo 
desse errado era grande pelas características da cidade, e a derrubada da 
reputação de segurança máxima de Alcaçuz poderia ter sido aos moldes 
rudimentares em que as fugas aconteciam naquele tempo, escavando túneis ou 
coisas do gênero, sem confronto armado. Não, para ele não bastava ser 
imperceptível; era preciso cinematografar e alcançar os pícaros do seu Monte 
Olimpo. As cenas deviam ganhar as manchetes, deviam circular entre o maior 
número de pessoas possível, deviam registrar que o homem pacifico de outrora, 
submisso a duras penas sem culpa, agora era o responsável por dar as cartas em 
um jogo do qual havia se cansado de ser somente uma peça, por isso reivindicou o 
papel de jogador. Se esse jogador não deveria ter existido pelas dores que causou, 
o jogo muito menos, afinal, este último acionou o primeiro. Que os juízos 
sobrevenham a ambos. 
119 
 
 
Seja como fosse, Valdetário Carneiro opunha-se ao nivelamento por baixo da 
sua personalidade e das coisas que fazia, porque havia feito a personificação de um 
outro uma performatização que, como tal, deveria ocupar os lugares mais altos e 
receber o devido destaque pelas audiências. O lugar-comum ocupado pelos demais 
já não satisfazia seu gênio, cujo objetivo passava por voltar a ter um nome que 
remetesse a qualidades, ainda que estas fossem enviesadas como foram, mas isso 
tendia a ser relativizado, já que, “até certo ponto, o desejo de celebridade é uma 
refutação das convenções sociais” (ROJEK, 2008, p. 160), que transforma seus 
agentes em algo semelhante à figura arquetípica do anti-herói cujo compromisso de 
“explorar um estado de coisas na sociedade percebido como insatisfatório” (ROJEK, 
2008, p. 172) o conduz a um patamar de representar aspirações e frustrações as 
quais seu oposto, o herói, não corresponde. 
Como símbolos de uma luta nem sempre nomeada ou com permissão para se 
mostrar, bandidos com forte representação cultural e simbólica como Valdetário se 
tornam colocam-se à frente de inconformismos que dificilmente identificam canais 
por onde podem dizer que existem e precisam de respostas, encarnam revoltas que 
nem sempre têm objeto claramente definido, reagem a males que nem sempre 
vencerão. No entanto, estão presentes e são facilmente percebidos pela experiência 
concreta de cada sujeito em seu contexto, em sua comunidade, nos seus 
empreendimentos. Com efeito, tornam-se ilustres marginais de uma indignação 
difusa que encontra na rebeldia pessoal de alguns o solo fértil para germinação de 
narrativas e processos de simpatia que antes não puderam ser traduzidos: 
todo mundo sabe, por experiência, o que significa ser tratado 
injustamente por pessoas e instituições, e os pobres, os fracos e os 
desvalidos sabem disso melhor do que ninguém. E, na medida em 
que o mito do bandido representa não só liberdade, heroísmo e o 
sonho de justiça para todos, mas representa também, de modo mais 
especial, a rebelião da pessoa contra a injustiça de que é objeto (a 
correção de minhas injustiças pessoais), perdura a ideia do justiceiro 
pessoal, principalmente entre os que carecem das organizações 
coletivas que são a principal linha de defesa contra tais injustiças 
(HOBSBAWM, 2017, p. 218). 
 
Ao transgredir e recusar as convencionalidades, o transgressor tanto 
denuncia quanto é aclamado por denunciar aquilo contra o que as pessoas não 
tinham condições, instrumentos ou recursos para se insurgirem, estabelecendo-se 
como um tipo especial que escancara a face suspeita do heroísmo convencional, 
120 
 
 
desde sempre reverenciado, caminhando paralelamente, de modo que sua 
notabilidade e fama passam a ser inversamente proporcionais ao resplendor 
daqueles ou daquilo que heroicizaram a partir dos valores e da moral vigente, de 
modo que a transgressão, especialmente a transgressão de Valdetário, que quis o 
sucesso, foi “um caminho tentado e testado na aquisição de notoriedade. Ela 
permite ao indivíduo carente de realização conquistar o reconhecimento da mídia e o 
status público como personalidade singular ou engrandecida” (ROJEK, 2008, p. 
183). Nesse ponto convergem o demens de Valdetário e seu ardor pela 
representação artística. Um não pode ser entendido sem o outro, porque se 
complementam. 
Bandido, herói ou anti-herói, seja qual for a definição que as conveniências, 
os compromissos, as determinações morais, a imaginação, a fantasia, o afeto, o 
envolvimento pessoal com o mecânico que fez de uma vida trivial uma aventura 
irreverente, marcada pela eletrizante e pelo perigo sempre iminente sem afastar-se 
da brandura, da amorosidade, da afabilidade, do cuidado e da suavidade com as 
quais conquistou amores extasiantes, amigos e carinho, será inútil detê-lo a 
qualquer uma dessas classificações, suprimir sua humanidade e negar que, mesmo 
sob todas as críticas que se possa fazer e sob a égide da criminalidade, ele reluziu 
como seus ídolos e triunfou sobre as amarras construindo pontes com sua gente. 
 
 
4. 2 – Sucesso de público e crítica 
Para Chris Rojek (2008), há três tipos de celebridades: a conferida, aquela 
que é herdada pela linhagem da qual se faz parte; a adquirida, que é o resultado do 
reconhecimento público destinado a um alguém merecedor de honorabilidade por 
possuir raros dotes e habilidades singulares, e a celebridade atribuída que não tem 
relação exclusivamente com os talentos e habilidades do sujeito, mas acontece pela 
concentrada representação de um indivíduo como digno de nota ou excepcional por 
intermediários culturais. Valdetário foi e é um misto dos dois últimos tipos, afinal 
passou a ser reconhecido e reportado por boa parte da imprensa como um agente 
extraordinário do crime, dotado de qualidades que o faziam superior aos demais, de 
sorte a inspirar tanto tremor quanto curiosidade simpática nos espectadores. 
121 
 
 
Dividindo opiniões e produzindo emoções distintas, Val construiu sua carreira 
a partir da ambiguidade e, desse modo, conseguiu atrair as atenções de todos, para 
repelir ou para buscar proximidade. Ele cometeu barbaridades e isso por si deveria 
provocar as óbvias reações repulsivas, mas o mecânico com sonho de ser 
celebridade, contrariando as expectativas, encontrou quem apreciasse e fosse 
cativado precisamente por causa das mesmas razões, como se os crimes e as 
contravenções praticadas não tivessem força suficiente para atenuar o 
deslumbramento e a fetichização da sua pessoa, e não tinham mesmo. Livres de 
culpa e burlando os tabus, os duplos de outras pessoas encontravam-se com o 
duplo do bandido e podiam comunicar-se para fortalecerem-se mutuamente. 
 O homem de crimes espetaculares tinha seus fãs, aqueles cujo olhar se 
voltava para outras coisas que não apenas o lado sombrio de alguém que 
confrontou a lei e os poderes que pareciam grandes demais para serem enfrentados 
por qualquer pessoa. Ao aclamar o fora da lei, seus admiradores não aclamavam a 
transgressão em si, como se quisessem fazer o mesmo e optassem pela desordem, 
mas, sim, a pessoa que se determinou “a bancar o preço dos que não repetem o 
refrão dos atores sociais encenando os mesmos takes sem se dar conta do insosso 
e do insalubre que é ser como um no interior do todo” (DANTAS, 2005, p. 310). A 
veneração era direcionada à sua altivez, ao seu destemor, à sua intrepidez, a seu 
desassombro que de certa maneira, a exemplo dos deuses do Olimpo e das estrelas 
olimpianas, erguia acima dos mortais aquele que um dia havia sido apenas um 
mecânico. 
Essa adoração a virtudes que são no mais das vezes raras, aliada à simpatia 
que ele continuava tendo do seu povo, fez com que o velório e sepultamentode 
Valdetário, realizado no dia 11/12/2003, atraísse uma multidão, o que foi relatado e 
acabou sendo destaque na edição do dia 12/12/2003 de um dos jornalísticos da TV 
Cabugi, que cravou serem por volta de 10 mil pessoas acompanhando e vendo a 
passagem do caixão pelas ruas da cidade (VIANA, 2010). Era a maior das 
demonstrações de carinho que poderiam dar a quem causou tantos conflitos e 
instabilidades locais e regionais. A morte de José Valdetário Benevides embaralhou 
os papéis ao ponto de não haver mais a linha divisória entre o filho da dona Toinha e 
o marginal de vida fugidia, em um município que já havia aprendido a conviver com 
sua presença sempre tácita e iminente. 
 
122 
 
 
Durante o cortejo, até a entrada no cemitério, na medida em que o 
enterro passava nas ruas, os curiosos nas calçadas observavam e 
expressavam um sentimento de tristeza. No momento de enterrar o 
corpo, muitos choravam no último adeus a Valdetário (GURGEL, 
2012, p. 25). 
 
A cidade relativamente pequena presenciou aquele que se tornou um evento 
cuja importância atraiu os diversos jornais do Estado, curiosos, as mulheres que Val 
havia amado, parentes, amigos, admiradores, conhecedores da história, a própria 
polícia que acompanhou o ritual na tentativa de capturar qualquer um dos 
componentes do bando que pudessem comparecer para prestar suas últimas 
homenagens. O homem que havia se colocado à margem da lei era, também, o 
mecânico caraubense de inteligência singular que tinha uma história, uma relação 
com seu lugar, um vínculo afetivo com seu povo, razões para ter se tornado o que 
se tornou e a partir disso conquistar a empatia dos demais. 
 
Figura 20: parte da multidão que acompanhou o velório de Valdetário 
 
Fonte: acervo da família 
 
Naquela quinta-feira do dia 11 de dezembro, Caraúbas parou para 
acompanhar o desfecho de uma história de alguém que havia cravado seu nome e 
sua história na memória coletiva daquele povo, alguém cujos feitos agitaram a 
pequena cidade do oeste potiguar de maneira extraordinária, apesar da sua 
123 
 
 
tragicidade. Ali, naquelas ruas por onde o caixão passou, as pessoas se 
acotovelavam para presenciar aquilo que por muito tempo pareceu impossível de 
acontecer e ao mesmo tempo prestar solidariedade à família. De fato, aquele não 
era somente o fim de um bandido, mas o término de uma saga com a qual a cidade 
e a região estavam envolvidas demais para não se comoverem em alguma medida. 
Se o caderno18 de presença ao velório, assinado por mais de 2 mil pessoas que sem 
medo de represarias fizeram questão de vincular seus nomes em homenagem a 
Valdetário, serve como mais evidência da comoção que sua partida causou, deduz-
se que naquele conglomerado de pessoas que ocupou as ruas do município e fez 
daquele dia um marco havia muitos e tantos que sentiam, choravam e lastimavam a 
sua partida. 
De fato, aquela quinta-feira mudou completamente o dia e abalou toda a 
região do oeste e alto-oeste do Estado, repercutindo e tomando de sobressalto 
inclusive pessoas da capital. Toda a mídia se dirigiu ao local. Todos os veículos de 
comunicação queriam registrar aquele que se tornaria um momento histórico no RN. 
Tamanho foi o acontecimento que, antes de chegar à Caraúbas, houve apelos para 
que o corpo passasse por Mossoró e ali pudesse receber homenagens daqueles 
que conheciam o drama de um sertanejo comum. Os mossorenses queriam 
testemunhar de perto aquele que se tornara o acontecimento da semana, do mês e 
do ano para todos aqueles que viveram a experiência de conviver com a imagem, 
com a imposição, com o simbolismo cultural que Valdetário havia demonstrado, 
retirando do pouco que lhe estava ao alcance, mecanismos, estratégias, formas 
expressivas e de se impor para resistir à persecução dos outros e aos embaraços 
criados por ele mesmo, como o fez o Rei do Cangaço: 
 
Foi velado em Mossoró 
Chegou grande multidão, 
Sem dar espaço a ninguém. 
E Caraúbas também. 
Por ser temido e estimado, 
Permaneceu relembrado, 
Muita gente lhe quer bem. 
 
Marcou presença na missa 
 
18 O caderno possui mais de 25 páginas assinadas e algumas destas, por amostragem, constam 
intercaladas no anexo D, ou seja, pulando de uma numeração à outra até depois da milésima 
assinatura, que foi de onde a família parou de enumerar por não conseguir acompanhar o ritmo 
daqueles que chegavam à igreja para ver o corpo e prestavam suas condolências assinando. 
124 
 
 
Dona Marli Nascimento, 
Com Aguinalda Fernandes 
Silvana também chegou, 
Dividiu o sofrimento. 
Comovida observou, 
Aquele sepultamento. 
 
O cortejo em Caraúbas 
Prosseguiu silencioso, 
No meio dos visitantes, 
Tinha muito curioso. 
E seu corpo num caixão 
Despediu-se do sertão, 
Nesse desfecho escabroso. 
 
[...] 
 
A fama dele cresceu 
Na memória popular. 
Virou tipo um Lampião 
No cenário potiguar. 
Entre os ritos da vingança, 
Ao devolver a matança 
Não conseguiu escapar. 
(MEDEIROS, 2019a, p. 83-84) 
 
Para os mais reticentes e para a própria força de segurança, ver tanta 
comoção diante daquele que seria um inimigo da sociedade, foi um espanto. O que 
essas pessoas ainda não podiam prever, o que não estava na pauta e contrariava a 
lógica foi o surgimento de duas mulheres desconhecidas pelos caraubenses que, 
durante o sepultamento de Val, em um ato de reconhecimento de algo de esplendor 
naquele para o qual parecia haver somente objeções, no mais absoluto 
contrassenso e na mais arriscada das aparições públicas que naquele dia alguém 
podia fazer, cantaram as glórias do fora da lei. Vestidas com camisetas estampadas 
com o rosto do homem mais temido da região e, por vários, tido como abominável 
elas insistiam em montar um fã-clube para celebrar seus feitos e mostrar uma 
grandeza imperceptível àqueles que já haviam concluído que Val não merecia 
nenhum tipo de homenagem. Nas camisetas, a foto e a mensagem “nós te 
admiramos muito”. 
Esse, que era um “exercício de admiração” (CIORAN, 2011) a alguém que, tal 
como as estrelas do cinema, mitologizara-se por suas façanhas cinematográficas e 
cuja imagem servia como projeção-identificação (MORIN, 1989; 2014) para produzir 
novos sentimentos sobre o mundo e sobre a vida, para comunicar certas verdades 
125 
 
 
sobre ele e sobre nós que estavam ocultas. É importante destacar que, por causa de 
toda repercussão e toda agitação causada por Valdetário e seus homens, todos ali 
sabiam dos seus erros e que não estavam a velar e sepultar um inocente. 
Todavia, muitos tinham olhos para ver além do que as imagens dominantes 
permitiam e aproximar-se daquele corpo, daquela morte, daquele evento com a pré-
disposição de quem verdadeiramente havia entendido os motivos pelos quais ele 
havia feito tudo que fez, pois na “mais banal das projeções em outrem — do tipo ‘eu 
me ponho no lugar dele’ — é uma identificação de ‘eu’ a ‘ele’ que facilita e atrai a 
identificação de ‘ele a ‘mim’: ‘ele’ se tornou assimilável” (MORIN, 2014, p. 111). Ao 
ser, revelam seus mais sinceros sentimentos, seus afetos, sua autenticidade, que já 
não precisa de licenças para se interpor contra o estigma: 
 
o complexo projeção-identificação comanda todos os fenômenos 
psicológicos ditos subjetivos, ou seja, que traem ou deformam a 
realidade objetiva das coisas, ou que se situam deliberadamente fora 
dessa realidade (estados de alma, devaneios). Ele comanda também 
— sob sua forma antropocosmomórfica — o complexo dos 
fenômenos mágicos: o duplo, a analogia, a metamorfose (MORIN, 
2014, p. 111). 
 
Jailma Lima Cavalcante e Telma Araújo deslocaram-se de Mossoró, distante 
pouco mais de 75km de Caraúbas, decididas a convocar a todos que, como elas, 
estariam dispostos a venerar aquele cujas realizações foram acima da média. O fã-
clube detinha toda a aparência de uma organização bem-feita, com telefone fixo 
(317-2319) em um tempo de acessos relativamente limitados a celular (8817-3493). 
Ao irem àquelecortejo, elas não tiveram que superar apenas a distância entre as 
cidades, mas a incerteza de como seriam recebidas e o alvoroço de uma cidade e 
de uma região que testemunhava, ao menos supostamente, o fim de um ciclo de 
terror e, de certa forma, podiam comemorar e sentirem-se aliviadas. Jailma e Telma 
eram os contragostos daquela sensação de dever cumprido e de segurança 
reestabelecida. 
Em que pese ter recebido o apoio da família, já ali, durante a cerimônia 
fúnebre, a ideia das jovens foi descartada e sofreu reprimendas, tanto da justiça e da 
polícia como apologia ao crime quanto de caraubenses que viram na proposta uma 
certa dose de desatino. Mudaram de endereço e abandonaram publicamente a ideia. 
Desde então, não se tem notícia de seus paradeiros e nem mesmo os familiares de 
Val sabem dizer onde as mulheres moram. Mesmo sumindo e desistindo do grupo 
126 
 
 
que queriam formar, ao registrarem na história seus planos, aquelas mulheres 
comprovaram que sobre um mesmo fenômeno humano, mesmo que tudo pareça 
conspirar em direção de uma única percepção, pode haver contrários coexistentes 
que testificarão sobre a impossibilidade de esgotar qualquer que seja a obra humana 
em uma narrativa fechada e definitiva. 
 
Figura 21: reportagem sobre a tentativa de criar um fã clube para Valdetário 
 
Fonte: Jornal Gazeta do Oeste, n° 6.476, Ano 27, 12/12/2003. 
 
 
A história de Manoel Marques de Araújo, morador da cidade de Jucurutu/RN, 
a 77km da cidade de Caraúbas, compõe mais um exemplo de projeção-identificação 
que coincide com uma participação afetiva (MORIN, 2014). À época da morte e 
depois, quando Val já havia se tornado um mito, Manoel se destacou por sua 
profunda admiração ao caraubense. O problema surgiu quando a polícia do 
município, no ano de 2011, descobriu que o homem mantinha em sua casa um 
arquivo pessoal contendo livros e fotos sobre o bandido caraubense. Com a 
descoberta, todo o material pessoal de Manoel foi apreendido e recolhido para o 
cartório da Delegacia de Polícia Civil (DPC) de Jucurutu, ainda naquele ano. Os 
relatos dão conta que, no dia da apreensão, os policiais invadiram a residência 
localizada no Centro de Jucurutu em busca de armas e provas referentes a uma 
127 
 
 
denúncia anônima de que, na sua casa, uma dupla se preparava para fazer um 
assalto na região. 
 
Figura 22: reportagem sobre a proibição de guardar arquivos sobre Valdetário 
 
 
 
 Fonte: Jornal Gazeta do Oeste, edição de 02/10/2011. 
 
A denúncia não se confirmou e o arquivo de Manoel, que era composto por 
um quadro com a foto de Valdetário com a data de nascimento e morte em uma 
moldura e pelo livro A saga Benevides Carneiro: a história da família mais 
diversificada do RN (VIANA, 2010), foi então confiscado, e o que foi tratado como 
fanatismo era, na verdade, a expressão do humano em busca de identificação ao 
projetar sobre um ícone seus anseios; era o homem multifacetado dando amostras 
de quem é e como ressignifica os dados da realidade para encontrar sentido e 
apresentar outros significados para as coisas com as quais se identifica e a partir 
das quais constrói suas iconografias. Por isso, o confisco era, mesmo que em vão, o 
trabalho da moralização sobre a espontaneidade, o trabalho da racionalidade contra 
a fantasia, o trabalho do medo contra a imaginação, o trabalho da rigidez contra a 
fluência do imaginário. 
128 
 
 
Ali, tendo sua casa vasculhada pela polícia e mantendo sua posição de 
admirador, Manoel Marques tornava-se mais uma amostra de que as convenções 
prescritivas não têm o domínio sobre todas as coisas e que seus produtos, tais como 
as leis, coíbem, mas não garantem a regulação absoluta das opiniões, das escolhas 
e das decisões, o que revela sua limitação e a prevalência da liberdade da qual a 
múltipla face da condição humana goza. Esse é o desafio que se apresenta, quando 
se está diante de um desencadeamento de eventos controversos que superam as 
aparências e apelam a sentidos e sensibilidades incensuráveis. 
Como alguém que se colocou à margem da lei e foi uma celebridade sem 
glamour, que plasmou o brilho das estrelas em sua vida, Valdetário deixou de ser 
somente um pistoleiro e assaltante de bancos para tornar-se objeto de uma relação 
que escapa aos limites da racionalização moralista e da legalidade ferrenha, para 
conduzir as atenções a caminhos e percepções menos óbvios, que necessariamente 
exigem do pensamento um trabalho de reelaboração ante um fenômeno 
controverso, mas tipicamente humano. Ao venerá-lo, apesar de seus atos, seus fãs 
e admiradores apresentam critérios diferentes para interpretação da pessoa e do 
fenômeno. Por causa disso, impõem a necessidade de uma gramática que, para 
existir, independe do que os domínios da moral têm a decretar a respeito do sujeito 
venerado ou daquilo que ele representa. O banditismo e o bandido, que deveriam 
ser repelidos por definição, são reelaborados para serem aceitos no interior das 
relações que tentam conspurcar. 
 Afastado dos domínios da moral e localizado onde não pode ser julgado a 
partir dos seus crimes, porque encontrado nas silhuetas do imaginário, o bandido 
agora pode ser visto e admirado em sua singularidade. Sua amoralidade cede lugar 
à virtuosidade identificada na sua capacidade de ser uma espécie de homem 
diferente dos demais e “buscador de lenitivos para as feridas e cultivador de ervas 
amargas no corpo” (DANTAS, 2005, p. 310). Aquilo que parecia despojado de 
qualquer valor, portanto, apresenta-se como uma experiência a partir da qual as 
pessoas ressignificam as experiências e atribuem importância a tudo mais que está 
à sua volta e demanda a elaboração de significados que não puderam ser 
formulados pelas vias convencionais ou que por estas foram suprimidas ou 
interditadas, mas que permaneciam tanto mais latentes quanto presentes. 
Ainda hoje, Valdetário Carneiro é um símbolo de coragem e destemor. Com 
suas ações, ganhou a notoriedade típica das estrelas que admirou e criou as 
129 
 
 
condições para que, em torno da sua imagem, criassem especulações e 
curiosidades, entusiasmo e veneração. A cidade de Caraúbas presenciou não 
apenas a insurgência de um fora da lei contumaz, que precisava ser contido; 
presenciou, com todas as implicações que isso pode ter, a recolocação da sua 
posição no discurso e na compreensão acerca de quem ele era. Valdetário, cujos 
crimes o fizeram ser motivo de pânico, também era o homem que, ao transformar a 
coragem em motor para suas empreitadas, encarnava virtudes e convidava à 
reverência: 
 
a coragem força o respeito. Fascínio perigoso, decerto (pois a 
coragem, moralmente falando, não prova nada), mas que se explica 
talvez pelo fato de que a coragem manifesta pelo menos uma 
disposição para furtar-se ao puro jogo dos instintos ou dos temores, 
digamos um domínio de si e de seu medo, disposição ou domínio de 
si que, sem serem sempre morais, são pelo menos a condição – não 
suficiente, mas necessária – de toda moralidade (COMTE-
SPOVILLE, 2016, p. 56). 
 
 Como experiência concreta de um valor, a coragem é o contrário da apatia, 
da preguiça, da frouxidão, da indiferença, e, por isso mesmo, “nada mais é que a 
vontade mais determinada e, diante do perigo ou do sofrimento, mais necessária” 
(COMTE-SPOVILLE, 2016, p. 59). Defronte de acusações que haviam destruído sua 
vida, Val acusou o golpe ao reagir como reagiu, mas revelou a disposição de não ser 
mero espectador do que faziam consigo. Era nessa disposição que residia a sua 
coragem e tornava seu nome uma insígnia para a qual as pessoas podiam olhar e 
reconhecer que estavam diante de alguém que não se deixava abater pelos 
percalços do destino fabricado ou imposto por outros, ao contrário do que a média 
faz ao aceitar os papéis que lhes imputam. 
O homem que precisou escalonar sua indignação para ser reconhecido, a 
partir do momentoem que se insurge e conquista simpatia à sua causa, traz à luz 
quem também carrega consigo vários que não se revelariam facilmente ou 
permaneceriam discretos se não houvesse alguém para os estimular a se manifestar 
por meio da aclamação daquele que exagerou, sem precisar fazer o que ele fez, 
defender seus erros e justificar seus crimes. Isso acontece a despeito da 
moralidade, mas não sem arcar com o ônus de atravessar seu caminho e desafiar 
seus postulados que permanecem vigorosos e prontos a condenar qualquer tipo de 
discordância dos seus fundamentos, desprezando que “a insuficiência profunda de 
130 
 
 
um discurso é que ele pretende ter totalidade e ter coerência e, mais cedo ou mais 
tarde, revela sua insuficiência e sua incoerência” (MORIN, 2003, p. 225). 
 
Figura 23: reportagem sobre a legião de fãs que Valdetário angariou 
 
 
 
Fonte: JH Primeira Edição, nº 1.143, ano 4, 16/03/2009 
 
Desde sua morte e sepultamento, o túmulo de Valdetário passou a ser um 
ponto de referência no cemitério de Caraúbas. Além daqueles que prestam 
homenagens e referenciam o lugar, viajantes, transeuntes e curiosos costumam 
visitar a sepultura que se tornou emblemática. Nenhum caso é tão expressivo 
quanto o da senhora Maria da Graça Fernandes (conhecida como Graça), 
enfermeira aposentada que, enquanto exercia a profissão, atendia e tratava dos 
ferimentos que Val contraia em suas fugas e ações. Como ela se tornou de 
confiança, sempre que ele se machucava mandava chamá-la para fazer os curativos 
necessários. Dessa relação profissional e quase que impositiva, porque era 
arriscado demais negar o pedido a Valdetário Carneiro, nasceu uma amizade que 
resistiu ao tempo, sobretudo depois que dona Maria da Graça sofreu ameaças de 
131 
 
 
morte dos Simião Pereira e o próprio Valdetário a defendeu como se a enfermeira 
fosse da sua família, informando que se algum mal sobreviesse à mulher ele 
cobraria a preço de sangue. 
Eu a conheci pessoalmente e por dois dias, 01/11 e 02/11/2021, acompanhei 
relativamente distante suas visitas, observei suas preces e sua devoção para não 
assustá-la. Reservada e receosa por não me conhecer, ela conversou muito pouco, 
mantendo-se arredia. Mesmo assim, revelou que desde 12/12/2003, o primeiro dia 
depois do enterro, vai aquele lugar e continuará a ir até não poder mais ou Deus a 
impedir. Continuou a falar e dizer o quanto detestava seu sobrenome por este ser o 
mesmo da primeira família que se voltou contra e atacou os Benevides Carneiro, 
pedindo para ser chamada apena por Graça. Ginevra Gurgel, prima de Valdetário, 
confirmou (informação verbal) isso acrescentando que Dona Graça, até em 
situações formais, costuma apresentar-se como Maria da Graça Rêgo, em 
deferência a Getúlio Rêgo, deputado estadual com quem mantém contato. 
 
Figura 24: o autor e ao fundo Maria da Graça Rêgo iniciando seu ritual 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
Fonte: acervo do autor (2021) 
 
Além das lembranças boas que cultiva do homem em vida, sobre as quais ela 
não fala com ninguém, Maria Rêgo ainda atribui a Valdetário Carneiro a cura de uma 
132 
 
 
dor insuportável que por muito tempo sentiu no joelho e dificultava sua ida ao 
cemitério. Garante que rezou para Val e as dores se foram, pelo que ela se tornou 
bastante grata e o que a fez mitificar mais do que já o fazia a imagem do 
caraubense, em uma espécie de “devoção marginal” (PEREIRA, 2005) que, por ter 
essa qualificação, independe da legitimação das autoridades religiosas e de outras 
pessoas. De todo modo, por conter todas essas características e por sua 
obstinação, o caso da enfermeira foi se consolidando em Caraúbas como 
manifestação de algo em torno do jocoso e do incompreensível, porém impossível 
de ignorar. 
 Realmente, para essas pessoas, Valdetário permanece vivo e atuante 
causando sensações, mobilizando seus valores, seus ideais, propósitos e a própria 
moral aqual estão submetidos e precisam preservar. Implicados no complexo 
projeção-identificação, envolvem-se afetivamente com aqueles ou com aquilo para o 
qual suas emoções se voltaram a partir das imagens que assimilaram, de modo que 
“a participação afetiva se estende, assim, dos seres às coisas, reconstituindo 
fetichismos, venerações e cultos. Uma ambivalência dialética liga os fenômenos do 
coração e os fetichismos” (MORIN, 2014, p. 114), fazendo funcionar “o pequeno 
cinema que nós temos na cabeça” (MORIN, 2014, p. 241), que alcança nossa 
poesia, que nos anima, que nos atiça, que nos entristece e nos afeta, tocando em 
nossos duplos, comunicando-se com eles, trazendo-os à baila. 
Sobre essas manifestações de afeto, houve e ainda há reações críticas que 
não conseguem conceber que uma mesma coisa pode ser experimentada de muitos 
modos. Por exemplo, questionado sobre as ambivalências em torno de Val e das 
diferentes percepções sobre ele, Vianney Gurgel, o autor do livro sobre os causos 
de Caraúbas, respondeu (informação verbal)19: “Valdetário não seria o primeiro fora 
da lei a ser romantizado e classificado como justiceiro. Foi assim também com 
Lampião [...]”. Mesmo que sem intenção, ao estabelecer a correlação com Lampião, 
Vianney revitaliza um signo ao qual estão atrelados processos de afirmação cultural 
e de projeção-identificação, que por causa dos afetos que mobiliza em espaços 
áridos como o sertão, “proporcionam um locus concreto para a nostalgia, um 
símbolo de virtude antiga e perdida” (HOBSBAWM, 2017, p. 166). 
 
19 Depoimento concedido por escrito e recebido por e-mail, em maio de 2021. 
133 
 
 
Assim, Gurgel confirma indiretamente que entre essas duas personagens 
nordestinas existe um cordão umbilical rompido pela distância temporal, mas 
existente e recorrente pelas condições mesmas que faz irromper nas pessoas ira, 
revolta, indignação e violência contra o estado de coisas que os tenta ofender, 
abolir, esmagar. Mesmo o cangaço tendo se tornado um movimento permeado por 
problemas sérios, tanto quanto o bando dos Carneiros, os atributos daqueles 
homens que se apresentaram estando acima do bem e do mal, confrontando as 
instâncias reguladoras dessas categorias, são reconhecidos como portadores de 
faculdades raras, dignas de reconhecimento, sobretudo em sociedades com 
características patriarcais que ainda padecem dos males regionais encontrados na 
época de Virgulino Ferreira e de seus homens. 
Lampião, o mais famoso bandoleiro do Nordeste, assim como Valdetário 
também o foi, era símbolo de uma valentia incomum e representante de uma luta 
que, diante dos poderes locais dos coronéis como senhores absolutos, poucos 
poderiam encabeçar. A partir da associação feita entre os dois, Val e os seus 
herdaram essas virtudes, como que em uma transferência antropofágica que 
acrescentaria ainda mais elementos míticos a ele e a sua quadrilha, porque, ao ter 
de lidar com os poderes locais, “os sertanejos formaram uma comunidade com 
padrões e valores sociais próprios e, por eles vão lutar, no momento em que sentem 
que são desrespeitados” (MACHADO, 1973, p. 145) nas suas vidas de labuta e 
dificuldades praticamente diárias em situação de pobreza, escassez ou 
esquecimento por parte do Estado. 
 
Para que a valentia justifique ainda melhor a aura popular na poética 
é preciso a existência do fator moral.Todos os cangaceiros são 
dados inicialmente como vítimas da injustiça. [...] O sertão distingue o 
cangaceiro do homem valente. Para ele a função criminosa é 
acidental. [...] O essencial é a coragem pessoal, o desassombro, a 
afoiteza, o arrojo de medir-se imediatamente contra um ou contra 
vinte (CASCUDO, 1968, p. 122). 
 
 
Lutar para ter de volta a honradez usurpada, mesmo que isso custe sangue, 
simboliza o triunfo da coragem do sertanejo que aprendeu a viver com pouco e 
sobreviver a escassez de recursos, tendo-lhe sobrado como valor inalienável aquilo 
que é imaterial e cuja pertençanão se pode subtrair sem o revide de quem batalha 
para proteger aquilo que lhe define, aquilo que lhe constitui, aquilo que lhe é motivo 
de orgulho, mesmo depois de perder tudo. Logicamente, esse modo de ser carrega 
134 
 
 
consigo perniciosidades que devem ser contidas, mas isso não impede que, ao 
surgir, a reação seja de todo condenada, pois ela não se manifesta meramente 
como uma transgressão gratuita, e sim como um grito de socorro,uma insurreição e 
uma ética necessárias. 
 
Uma boa explicação para o respeito e empatia das comunidades 
sertanejas pelos cangaceiros, apesar de qualquer mal que estes 
pudessem lhes causar, nos parece ser o da construção, consciente 
ou inconsciente, por parte dos marginais, de um "escudo ético", 
terminologia tão apropriada e tão bem elaborada por Frederico 
Pernambucano de Mello. Esse elemento "ético", em última instância, 
os diferenciaria de forma inequívoca dos bandidos comuns aos olhos 
da população. E teria ajudado a manter a imagem de justiceiros ao 
longo do tempo na região (PERICÁS, 2010, p. 39) [aspas do autor]. 
 
 Portanto, tal como acontece com Lampião, sobre Valdetário existem 
diferentes ângulos de leitura e termos possíveis, de sorte que, mais importante do 
que definir quais destes tem toda razão, cabe reafirmar, defender e mostrar que, ao 
surgirem, fenômenos desse tipo reintroduzem questões sociais, culturais e 
antropológicas para as quais não devemos dar de ombros, como se elas não fossem 
ressurgir pela mera indiferença. Elas ressurgirão e nos convocarão a pensar sobre 
elas. Resta saber o que pensaremos e trabalhar para que seja um bem-pensar, 
sabendo que ler essas questões com a perspectiva de que chegou a uma verdade 
final são tipos de ignorância e petulância disfarçados, que insistem em tornar 
hegemônica a versão que mais combina com sua concepção de mundo. O paradoxo 
insiste em ser o melhor lugar para se situar e captar o máximo de informações, de 
emoções, de opiniões, de vivências da experiência humana terrena, afinal somos 
nós quem reaparecemos quando as contradições reaparecem e são determinantes. 
Está nessa relação entre contraditórios, que mais cedo ou mais tarde 
reivindica para si seu lugar no debate e na reflexão, a pujança indenitária do 
banditismo interpretado pelo grupo chefiado por Valdetário Carneiro, a exemplo de 
tantos outros ao longo da história. Foi e tem sido assim com Lampião e os 
cangaceiros, Robin Hood e seu sucesso na literatura, no cinema, na memória 
transcultural de povos distintos. Não poderia ser diferente com Val, a repetição da 
mesma obstinação de fazer justiça por si e por aqueles cujos bens imateriais, a 
única e mais importante reserva de quem padece na escassez, são conspurcados. 
Das retas, ele fez curvas. Para o destino, traçou suas próprias veredas e marcou 
135 
 
 
seu tempo, fez história, fez a sua história, ao seu modo, assumindo e encarnando na 
vida seus sonhos e desejos. 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
136 
 
 
5. CONCLUSÃO... DE UM TEXTO, NÃO DE UMA HISTÓRIA 
 
 
E de uma vida inteira, por Deus, o que se 
salva às vezes é apenas o erro, e eu sei que 
não nos salvaremos enquanto nosso erro não 
nos for precioso. Meu erro é o meu espelho, 
onde vejo o que em silêncio eu fiz de um 
homem. Meu erro é o modo como vi a vida se 
abrir na sua carne e me espantei, e vi a 
matéria de vida, placenta e sangue, a lama 
viva. 
(Clarice Lispector) 
 
 
Escrever sobre Valdetário Carneiro é escrever sobre parte da história de 
Caraúbas, sobre suas relações políticas, suas relações de poder e sociais. É 
também escrever sobre conflitos que remontam a um passado arcaico do Nordeste 
brasileiro, caracterizado pela omissão do Estado e pela resolução violenta das suas 
antipatias, como demonstração de poder e como ato de resistência, bravura e 
sobrevivência. Sua biografia mistura-se à historiografia da sua cidade e do Rio 
Grande do Norte, fazendo com que ele ocupe a galeria das personalidades 
inesquecíveis do RN. Falar sobre ele, portanto, consiste em falar sobre um tempo e 
uma organização sócio-político-cultural que formou gerações e serve, mesmo em 
com tons de nostalgia, como referência para sertanejas e sertanejos que, em maior 
ou menor proporção, ainda precisam com as mesmas dificuldades daquele passado 
contra o qual era necessário insurgir-se de algum modo. 
 Não é meramente contar a história de um homem especificando seus dados 
biográficos, mas, sim, implicar na narrativa outros que compuseram a dinâmica dos 
fatos e ter a oportunidade de olhar para trás a fim de compreender os 
condicionamentos aos quais cada um estava submetido e por meio dos quais agiram 
como agiram, menos para determinar quais foram os culpados e quais são os 
inocentes, e mais refletir sobre as complexidades de existir em sociedade e ter que 
se adaptar a seus entraves. É, então, a chance de fazer uma radiografia que 
permitirá enxergar e tratar aquilo que era impossível antes pela fuligem do tempo ou 
pela impermeabilidade das certezas não revisadas, o que permite colocar em 
perspectiva as estruturas de comportamento e funcionamento das instituições da 
época, tendo em vista que estas, direta ou indiretamente, foram chamadas por 
Valdetário a se pronunciar e expor suas debilidades. 
137 
 
 
 Humano como todos que podem aproximar-se da sua trajetória, Valdetário, 
por meio das suas muitas faces, abriu janelas para observação de quem ou do que 
somos. Essas janelas nos colocam de cara com interdições e determinadas 
perplexidades, entretanto, se recusarmos pensar sobre cada um desses embaraços, 
estaremos recusando pensar sobre nós mesmos, o que nos suscetibilizará ao 
autoengano e ao consequente autoritarismo de dizer pelos outros o que eles são, 
tornando sua definição, por mais arbitrária que seja, a responsável por dizer tudo 
sobre alguém. Essa postura separa, exclui e, no limite, extermina. Contra isso, 
impõe-se uma ética da compreensão que parta de si para outro, que consiga ver em 
si o que está no outro, que prefira a circunspeção e a compostura ao 
extravasamento e à censura categórica. 
 Em ato, a vida de um homem errante insere-se como expressão da condição 
humana implicada em embaraços que essa mesma condição, instável e 
imperfectível, suscita; expressão marginal, mas não menos exuberante. O que no 
mais das vezes, para as audiências triviais, pode parecer um espetáculo de horrores 
é, na verdade, um recipiente de temas fundamentais que se desenvolvem e 
desnudam-se em experiências concretas, em relações de carne e osso, em eventos 
datados, em sujeitos nominados, em dilemas geograficamente situados. Valdetário e 
sua biografia são exemplos dessa profusão marginal que sobrevém e não se deixa 
exprimir pela vulgata daquilo que está dado, afinal as certezas e ditames sobre os 
quais se fundamentam a experiência social não são tão sólidos e infalíveis quanto 
parece, e o estigma, com sua cegueira atávica, nas mídias ou nas relações 
interpessoais mostra o quanto ainda estamos aquém, quando o assunto é a 
condição humana. 
Ao criar e atuar no palco que construiu para se apresentar havia outros com 
quem seu delírio criativo podia estabelecer conexões e simpatia, sem que para isso 
fosse necessário legitimar suas práticas. É que entre as mediações reguladas das 
relações existem demandas e vácuos cujas presenças são tão reais e pulsantes 
quanto são os reguladores que tentam alcançar a totalidade dos impulsos e das 
pulsões para modulá-los sempre. Dado que se trata de uma história de muitos lados 
e que pode ser vista a partir de diferentes ângulos, as formas de contá-la podem ser 
tão diversas quanto são suas nuances, fazendo com que esse seja um caso que, 
enquanto permanecer vivo no imaginário das pessoas de Caraúbas, não se esgotará 
e poderá ser legado a outras gerações que por sua vez poderão chegar aoutras 
138 
 
 
conclusões e apresentar outras perspectivas a partir de suas próprias sínteses e 
concepções de mundo, de modo a oferecer novas compreensões acerca de um 
fenômeno tão complexo como foi Valdetário Carneiro. 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
139 
 
 
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142 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
ANEXOS 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
143 
 
 
ANEXO A: folheto distribuído em Caraúbas convidando para homenagem à 
Antonino Benevides Carneiro na Câmara Municipal da cidade. 
 
 
144 
 
 
ANEXO B: carta escrita por Valdetário quando estava preso em Campina Grande 
 
145 
 
 
ANEXO C: detalhes por outros ângulos do caminhão feito por Valdetário a seu filho 
 
 
 
 
 
146 
 
 
ANEXO D: fotos por amostragem das páginas do caderno assinadas por aqueles 
que quiseram homenagear Valdetário em seu velório. 
 
147 
 
 
 
 
 
 
148 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
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	MACHADO, Maria Christina Russi da Matta.Aspectos do fenômeno do cangaço no Nordeste brasileiro (I). Revista de História, n. 93, São Paulo, p. 139-175, 1973a. Disponível em https://www.revistas.usp.br/revhistoria/article/view/131939/128084, acesso em 0...
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