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PAULO SÉRGIO RAPOSO DA SILVA VALDETÁRIO CARNEIRO: a múltipla face da condição humana Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Educação do Centro de Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, como requisito parcial para a obtenção do título de Mestre em Educação. Orientadora: Profa. Dra. Josineide Silveira de Oliveira NATAL/RN 2022 Universidade Federal do Rio Grande do Norte - UFRN Sistema de Bibliotecas - SISBI Catalogação de Publicação na Fonte. UFRN - Biblioteca Central Zila Mamede Silva, Paulo Sérgio Raposo da. Valdetário Carneiro: a múltipla face da condição humana / Paulo Sérgio Raposo da Silva. - 2022. 148 f.: il. Dissertação (mestrado) - Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Centro de Educação, Programa de Pós-Graduação em Educação, Natal, RN, 2022. Orientadora: Profa. Dra. Josineide Silveira de Oliveira. 1. Valdetário Carneiro - Dissertação. 2. Estigma - Dissertação. 3. Ética da compreensão - Dissertação. 4. Ciências da complexidade - Dissertação. I. Oliveira, Josineide Silveira de. II. Título. RN/UF/BCZM CDU 37:316 Elaborado por Ana Cristina Cavalcanti Tinôco - CRB-15/262 Autorizo a reprodução e divulgação total ou parcial deste trabalho, por qualquer meio convencional ou eletrônico, para fins de estudo e pesquisa, desde que citada a fonte. Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Educação do Centro de Educação e ao Grupo de Estudos da Complexidade da Universidade Federal do Rio Grande do Norte como exigência parcial para obtenção do título de Mestre em Educação. VALDETÁRIO CARNEIRO: a múltipla face da condição humana Aprovada em: 22/02/2022. BANCA EXAMINADORA: Profa. Dra. Josineide Silveira de Oliveira – Orientadora Universidade Federal do Rio Grande do Norte Profa. Dra. Maria da Conceição Xavier de Almeida – Examinadora titular interna Universidade Federal do Rio Grande do Norte Prof. Dr. João Bosco Filho – Examinador titular externo Universidade do Estado do Rio Grande do Norte Prof. Dr. Fagner Torres de França – Examinador suplente interno Universidade Federal do Rio Grande do Norte Prof. Dr. Renato Pereira de Figueiredo – Examinador suplente externo Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia Dedico a Burunga, meu tio, que sempre lançou suas pequenas redes para pescar o oceano, até cansar e nos deixar sem que pudéssemos ajudá-lo a voltar à praia para se encantar pelas coisas miúdas. AGRADECIMENTOS À minha mãe, Kátia Maria Raposo, que sobreviveu e sobrevive de cabeça erguida aos mais duros golpes da vida. Ela é a maior razão de eu tentar ser melhor e buscar lugares ainda mais altos, não por ambição, mas para vê-la sorrir e ter a certeza de que tudo aquilo que um dia ela sonhou acerca de mim e da minha irmã aconteceu. Nunca conheci alguém que tivesse a fé, a força, o talento, a coragem, a determinação, a bondade e o senso de humor afinadíssimo que minha mãe tem e sempre teve. Devoto minha vida à sua. Se sou algo de bom para alguém ou se fui durante todos meus anos, mãe, foi porque a senhora sempre esteve aqui e em todos os cantos segurando todas as pontas, mesmo estando no teu limite. Eu te assistiria em qualquer palco com lágrimas nos olhos de ver diante de mim uma heroína anônima, uma força da natureza. A Franklin Felipe Raposo (In memoriam), que além de tio foi meu pai no momento exato em que precisei. Com ele, acompanhando seus passos, observando seu modo de tratar as pessoas, seu modo de lidar e resolver problemas, aprendi sobre inteligência, simpatia, divertimento, disciplina, honestidade e disposição ao trabalho. Jamais esquecerei as nossas conversas e daquele último abraço tão forte e duradouro, sem nenhuma palavra, naquela noite que parecia ser só mais uma dentre tantas, mas era a nossa despedida. Nesse derradeiro encontro, mesmo que silencioso, tudo foi dito e as marcas dos teus braços, titio, não ficaram e não ficarão apenas no meu corpo. À Alice Ariela Lopes, minha namorada, que dividiu meses, dias, horas e minutos de medo, de incertezas, de pavor, de insegurança, de pessimismo, de uma total incapacidade de controlar ansiedades e pressas com o sorriso mais lindo que conheci e a fé mais singela e genuína que já presenciei. Ela, que costuma falar o quanto sou capaz e grande, nem imagina o quanto me faz maior e quanto sua grandeza discreta serve àqueles de quem ela cuida. A mulher que Alice se tornou nunca deixou de ser menina: é uma adulta que não se adulterou mantendo dentro de si intacta a garota que sonhava com princesas, sem perceber, sem se tornar infantil, sem ser boba, em uma espécie de mistura do sublime com a liberdade de ser dona das próprias vontades. Sem seu amor, sem sua companhia, sem seu cuidado, sem sua beleza, eu não teria redescoberto o paraíso. À minha orientadora, Josineide Silveira de Oliveira, que me acolheu, que me incluiu em lugares aos quais eu não teria acesso por conta própria, que me emprestou sua paciência para controlar minhas pressas, que me recebeu em sua casa, em pé, em frente à porta aberta, semelhante a quem aguarda alguém que estava longe e fazia falta. Naquele dia, eu estava muito longe, distante demais para dar conta do que parecia impossível. Sem você, sem tuas ideias, sem tuas provocações e sem teu rigor, eu teria desistido, eu teria errado muito mais, eu teria ficado pelo caminho. Por ti e Silvan, nutro um amor próximo, mas tão próximo de um filho por seus pais, que às vezes penso que os afetos são iguais. Foi também por você, Josi, que fiz o máximo que estava ao meu alcance para entregar uma boa pesquisa e um bom texto, porque, em todos os momentos em que pensei em desistir e admitir que um mestrado era coisa para gente diferente de mim, a lembrança da tua aposta e do teu acolhimento me impediam e faziam eu acreditar. Acreditei, resisti, reexisti. À Ceiça Almeida, que foi absolutamente precisa ao nomear os movimentos de transição pelos quais Josineide e eu passamos, depois que ingressei no Grupo de Estudos da Complexidade (GRECOM) e para concluir esta dissertação. Ceiça não é apenas a coordenadora do grupo; ela é a chama que mantém viva, resistente e pulsante a poesia necessária para fazer frente à prosa, por vezes cacofônica, de trabalhos científicos distantes da dura realidade de pessoas feitas de carne e osso, transpassadas por incertezas e questionamentos. Sim, Conceição Almeida, trocamos a morte pela vida e isso fez com que eu fosse bem mais longe e chegasse mais perto de horizontes que pareciam inalcançáveis. Se eu soubesse como fazer e tivesse a precisão necessária, escreveria poemas e canções para ti; tocaria e cantaria as tuas músicas preferidas a fim de te ver sorrir, quantas vezes fossem necessárias para trocar lágrimas amargas por alegrias contagiantes. A João Bosco Filho, que, ainda na graduação, foi o primeiro a me ver e transformar uma formação sem grandes pretensões em um trampolim para novos e maiores saltos. Bosco, teus elogios, teu cuidado com as palavras para não dizer que eu tinha escrito bobagem e sido ingênuo demais em nossos trabalhos foram decisivos para eu querer, poder e ser mais do que estava previsto e vaticinado por alguns que desacreditavam de algum potencial que tenho, mas não sabia identificar. Hoje, sei, e você responsável direto por isso. A ti, eu reputo e reputarei vitórias acadêmicas, porque fomos e ainda somos cúmplices. Que teus dias sejam longos e que os bons vinhos sempre estejamsobre tua mesa, rodeada por teus amores. Ao GRECOM, por me permitir fazer ciências que dançam, ciências que têm voz audível e compreensível, sabor, gestos, silhuetas, sons e melodias. Compor o grupo me flutuar sem transformar em privilégios experiências que foram essenciais. Se dependesse de mim, eu estaria naquela nossa sala todos os dias ao longo desses dois anos de pesquisa, só para ver e ouvir mais, ver alto e ouvir colorido. Conheci pessoalmente poucos, porém aqueles que se achegaram foram responsáveis por me erguer quando eu estive caído e atribuir a mim um valor que nunca me pertenceu verdadeiramente. A essas pessoas, eu ainda precisarei escrever cartas. Sim, cartas, para que, quando eles e elas tocarem no papel, suas mãos toquem nas minhas. Artemisa Andrade e Manoel Romão, vocês serão os primeiros a receber. Para ti, Artemisa, eu quero dizer que arte não está apenas no teu nome, mas em tudo que você é. A você, Romão, eu quero dizer que nossas conversas e mensagens foram os primeiros atos a me dar a sensação de que seria possível chegar até aqui. Aos dois e à Laissa, que é quase nossa também, eu quero ser capaz dizer que os amo no mais bonito dos tons. A Waldney de Souza Rodrigues Costa, meu professor na graduação, por ter sido o primeiro a quem recorri para tirar dúvidas sobre um processo seletivo em nível de mestrado, por ter me atendido acerca disso com fina atenção e por sempre ter pensado em mim e me convidado para participar de mesas redondas, debates e trabalhos para os quais eu não tinha a qualificação completa e adequada, mas que serviram para eu amadurecer e perceber as fragilidades da minha formação. Waldney é um exemplo. Sua perspicácia é tão evidente quanto seu senso crítico apurado, o que faz do seu pensamento ser tão ousado quanto suas proposições. Aprendo com seu empenho e sua capacidade. A Fagner Torres de França, pela revisão sofisticada e criteriosa do texto, pela paciência que demonstrou ter comigo quando enviei incontáveis e-mails e mensagens para fazer ajustes que antes não estavam claros, mas ele atendeu a todos os meus chamados com muita gentileza. Fagner é um daqueles intelectuais para os quais olhamos e desejamos seguir os mesmos passos, e eu me sinto muito honrado em conhecer um pouco do seu itinerário acadêmico, do seu trabalho e da sua inserção na academia, de modo que, dado seu rigor e seu refinado preparo, ser lido por ele é tanto melhor quanto vergonhoso, para alguém como eu que só está começando. À Ginevra Benevides Gurgel e à Aguinalda Fernandes Benevides, por terem me recebido em Caraúbas e terem feito a minha estadia um tempo para renovar a confiança de que daria certo e conseguiríamos contar um pouco da história de suas famílias, dos seus dramas e angústias. Sentar para conversar com vocês foi como me acomodar em uma poltrona de uma sala de cinema e ver um filme passar de tão visceral que foi o relato de cada uma e de todos aqueles aos quais vocês me apresentaram. Reviver o passado ou relembrar dores e mágoas que persistem não é fácil para ninguém. Mesmo assim tive total liberdade para conhecer a intimidade e as emoções guardadas que só o olho no olho, que só o sentar, o estar ao lado pode transparecer. Este trabalho foi escrito a muitas mãos, e vocês duas, juntamente a seus familiares, são co-autoras. Ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico Tecnológico (CNPq), por ter fornecido as condições básicas e necessárias para que, ao longo dos dois anos de pesquisa, eu pudesse ter dedicação total às leituras, à escrita, aos custos inerentes a deslocamento e manutenção da conexão à internet no cenário de aulas virtuais, mesmo em tempos tão difíceis e agravados por um governo que desde seu início operou contra o pensamento crítico e contra a autonomia das universidades públicas. Diante de todos vocês, faço reverência e sou capaz de defendê-los com minha vida, afinal essa vida não é, não foi e nunca será feita só por mim; eu sou porque, para mim, vocês foram primeiro e me salvaram, sustentaram e abrilhantaram. Garanto dar o meu melhor sempre para, à distância ou não, notadamente ou não, corresponder a tudo que fizeram e continuam a fazer por minha trajetória. Obrigado. “Sonho que se sonha só É só um sonho que se sonha só Mas sonho que se sonha junto é realidade.” (Raul Seixas) Na memória do povo do sertão Vive o nome imortal de Valdetário Um rapaz que sofreu injustiçado Revoltou-se virando bandoleiro, Ganhou fama entre o povo brasileiro Por ter sido um tirano fabricado. Ficará para sempre relembrado Num sangrento e terrível itinerário, Deixou rastros de dor no seu fadário Despediu-se da vida num caixão, Na memória do povo do sertão Vive o nome imortal de Valdetário. Sertanejo que é filho da coragem Não mataram seu sonho de lutar, Planejava fugir para mudar Dando brilho de novo a sua imagem. Nunca fez ao Estado vassalagem Era ao mesmo bastante refratário, Sem querer tem destaque legendário Hoje o mundo o compara a Lampião, Na memória do povo do sertão Vive o nome imortal de Valdetário. (Marciano Medeiros) RESUMO Natural de Caraúbas, Rio Grande do Norte, Valdetário Carneiro (1959-2003) tornou- se um dos nomes mais conhecidos no Estado, como precursor do chamado “Novo Cangaço”, um tipo de crime organizado caracterizado por sitiar cidades interioranas e saquear suas agências bancárias. Como método, esta dissertação assume um caráter descritivo ao detalhar dados biográficos e fatos por meio de matérias jornalísticas, entrevistas com biógrafos, familiares e alguns moradores das terras caraubenses. A base teórica da pesquisa são as Ciências da Complexidade, pelas quais se concebe a consciência das contradições como fundamento importante na compreensão dos fenômenos sociais e condição imprescindível para uma educação capaz de produzir um conhecimento pertinente. Para além da sua ficha criminal, existe a figura de um homem que suplanta estigmas e revela a complexidade do viver nos seus múltiplos pertencimentos. Valdetário, o estrategista marginal, fez da vida um palco no qual encenou um drama multifacetado e constituiu uma dessas expressões que, embora trágica, carregou significados profundos sobre o que somos e podemos ser enquanto humanos, assim como demonstrou aspectos políticos, sociológicos e culturais de uma época. Desse modo, o presente trabalho tem como propósito ultrapassar estudos bibliográficos insulares e avançar no sentido de, ao falar sobre a vida de um homem significativo em diferentes direções para sua cidade e Estado, contribuir na compreensão da historiografia do Oeste Potiguar e sobre seus modos de organização social das relações e do pensamento. Palavras-chave: Valdetário Carneiro. Estigma. Ética da compreensão. Ciências da Complexidade. ABSTRACT Born in Caraúbas, Rio Grande do Norte, Valdetário Carneiro (1959-2003) became one of the best known names in the state, as a precursor of the so-called "Novo Cangaço", a type of organized crime characterized by besieging inland towns and looting their bank branches. As a method, this dissertation assumes a descriptive character by detailing biographical data and facts through journalistic articles, interviews with biographers, family members and some residents of the Caraubense lands. The theoretical basis of the research is the Complexity Sciences, by which the awareness of contradictions is conceived as an important foundation for the understanding of social phenomena, and an indispensable condition for an education capable of producing pertinent knowledge. Beyond his criminal record, there is the figure of a man who overcomes stigmas and reveals the complexity of living in his multiple belongings. Valdetário, the marginal strategist, turned life into a stage on which he staged a multifaceteddrama and constituted one of those expressions that, although tragic, carried deep meanings about what we are and can be as humans, as well as demonstrated political, sociological, and cultural aspects of an era. In this way, the present work aims to go beyond insular bibliographical studies and to advance in the sense that, by talking about the life of a man significant in different directions for his city and State, to contribute to the understanding of the historiography of the Potiguar West and about its modes of social organization of relations and thought. Keywords: Valdetário Carneiro. Stigma. Ethics of understanding. Sciences of Complexity. LISTA DE FIGURAS Figura 1: fachada da Câmara Municipal da cidade de Caraúbas.....................................25 Figura 2: Valdetário aos 15 anos, com a motocicleta que ganhou de presente..........30 Figura 3: à direita, Valdetário em sua oficina trabalhando com mecânica..................31 Figura 4: da esquerda à direita, Aguinalda, sua filha ainda bebê e Valdetário.................33 Figura 5: Valdetário em idade adulta.............................................................................34 Figura 6: à esquerda, Valdetário fabricando seus caminhões artesanais.........................37 Figura 7: Valdetário, no presídio, sobre um dos caminhões feitos por ele..................38 Figura 8: um dos caminhões fabricados por Valdetário e enviados a seu filho...........39 Figura 9: ex-prefeito de Caraúbas sobre sua relação com Valdetário......................................58 Figura 10: capa de jornal que reproduz as controvérsias em torno de Valdetário...........61 Figura 11: delegado responsável pelas investigações e Silvana Alves.......................64 Figura 12: capa da Gazeta do Oeste da edição que repercutiu o assassinato..............66 Figura 13: capa de Jornal sobre as entrevistas de Valdetário.........................................68 Figura 14: primos de Valdetário que sofreram e sofrem com os preconceitos............80 Figura 15: reportagem sobre as discriminações contra Ivna Benevides.....................81 Figura 16: à direita, Valdetário à frente do desfile cívico.............................................97 Figura 17: Valdetário ao lado esquerdo de uma imagem de São Francisco.............101 Figura 18: reprodução da matéria impressa sobre a fuga do presídio......................115 Figura 19: entrada de Macau rodeada por águas........................................................117 Figura 20: parte da multidão que acompanhou o velório de Valdetário.....................122 Figura 21: reportagem sobre a tentativa de criar um fã clube para Valdetário...........126 Figura 22: reportagem sobre a proibição de guardar arquivos sobre Valdetário........127 Figura 23: reportagem sobre a legião de fãs que Valdetário angariou......................130 Figura 24: o autor e ao fundo Maria da Graça Rêgo iniciando seu ritual...................131 SUMÁRIO 1. INTRODUÇÃO ................................................................................................ ........15 2. UM HOMEM E UMA HISTÓRIA DE DESCAMINHOS ............................................ 24 2. 1. A resposta radical à injustiça e o desejo de vingança...........................................40 2. 2. O outro lado de um roteiro que não foi apenas triste............................................51 3. A CONDIÇÃO HUMANA ENTRE EXTREMOS: DESAFIO PARA O BEM- PENSAR....................................................................................................................... ..67 3. 1.O estigma como incompreensão da complexidade humana................................ .74 3. 2. Pensar bem para compreender melhor................................................................ .84 4. A VIDA COMO PALCO E A FAMA: EXERCÍCIOS DE ADMIRAÇÃO ................... 95 4. 1. A espetacularização da coragem........................................................................112 4. 2. Sucesso de público e crítica...............................................................................120 5. CONCLUSÃO... DE UM TEXTO, NÃO DE UMA HISTÓRIA...................................136 6. REFERÊNCIAS...................................................................................................... ..139 ANEXOS......................................................................................................................142 15 1. INTRODUÇÃO História de um homem é sempre mal contada, porque a pessoa é, em todo o tempo, ainda nascente. Ninguém segue uma única vida. Todos se multiplicam em diversos e transmutáveis homens. (Mia Couto) Contar a história de vida de alguém que, por causa dos seus atos, inscreveu- se na historiografia de um lugar e descrever algo que não havia sido notado ou registrado para apresentá-lo ao público exige, necessariamente, o exercício de rememorar e recontar. A tarefa carrega em si o risco de se transformar em um revisionismo histórico e biográfico estéril que no afã de confirmar ou infirmar opiniões pode esconder a multiplicidade da pessoa humana e a natureza ambígua de determinados fenômenos socioculturais produzidos por essa mesma multiplicidade que, por definição, não cabe em apenas um tipo de registro e demanda uma gramática que conceba contradições e paradoxos como partes indissociáveis das coisas que se apresentam e sobre as quais se decide falar. Embora tenham seu valor e remetam a verdades coerentes com aquilo que de fato aconteceu, as obviedades e as classificações convencionais circunscrevem seus objetos e seus temas aos limites do seu próprio repertório discursivo e interpretativo, de modo a tornar seus parâmetros inamovíveis e inviabilizar qualquer tentativa de leitura que opere a partir de outras perspectivas, o que redunda em uma percepção fragmentada, incapaz de contemplar a dinamicidade das relações e as muitas feições que os sujeitos, as circunstâncias, os fatos e as histórias de vida podem ter. É justamente por isso que se contentar com o óbvio consiste em aderir à parte como se esta fosse o todo, deixando de fora dados de realidades vividas que não deveriam ser ignorados. No entanto, quando rememoramos e nos dispomos a recontar uma história, temos a chance de ir além, de ampliar horizontes, revirar informações, mobilizar atores, reposicionar quadros de referência para pôr em cena perspectivas cuja inserção pode remodelar contornos sedimentados pelo tempo. Ao elucidar detalhes para os quais as atenções não se voltam, essa abordagem confronta os discursos hegemônicos de autopreservação da ordem moral, discursiva ou social comum que, 16 no mais das vezes, se fundamenta em verdades parciais que se consolidam a partir daquilo que está dado na superfície das experiências e que reproduz somente aquilo que a maioria já sabe ou consegue ver, a despeito da vivência mesma das pessoas e das suas memórias acerca de eventos passados significativos. É o que acontece com a trajetória de Valdetário Carneiro, um dos nomes mais conhecidos no Estado do Rio Grande do Norte (RN). Nascido em Caraúbas, no Oeste Potiguar, Valdetário marcou uma época ao se tornar um dos bandidos mais iconográficos e temidos do Estado e da região Nordeste do país, juntamente com o bando que chefiou nos assaltos a banco e na prática de pistolagem pelas cidades interioranas. Apesar de ter se notabilizado dessa maneira, antes de ter se tornado inimigo da polícia e da segurança pública, ele foi um mecânico exemplar que cultivou, durante boa parte dos seus 44 anos, uma vida pacata, longe das disputas de poder político nas quais a sua família e as rivais estavam implicadas: nunca concorreu a nenhum cargo público, casou, teve filhos, montouo próprio negócio, estabeleceu laços de amizade e ganhou o reconhecimento como melhor profissional da região. Amante das artes, sonhou em ser ator de teatro e sempre teve as celebridades da cultura nacional e internacional como símbolos maiores para referenciar sua vida, suas vontades, sua maneira de ser e agir, até que uma sucessão de acusações de roubo lhe foi imputada, interrompendo seus sonhos. As autorias desses primeiros crimes nunca foram devidamente responsabilizadas e os dias pacíficos do caraubense como um cidadão respeitável foram drasticamente interrompidos por aquelas acusações que tinham relação com rixas políticas e tensões familiares que o rondavam, de modo que, tendo sido preso, precisou lidar com a vergonha e a humilhação pública, o extremo oposto da experiência que havia desejado para si e estava conquistando com seu trabalho. Após ser condenado judicialmente, ter cumprido sua pena e, a partir de então, enfrentar o estigma de ex-presidiário, Valdetário não conseguiu retomar suas atividades e restabelecer o convívio comunitário de antes da sua prisão. Essa situação cevou um desejo de vingança contra seus acusadores e detratores que se desdobrou em incursões criminosas de grande alcance e repercussão. O que parecia ser apenas mais um caso local de injustiça contra um homem pobre sem notoriedade tornou-se o evento deflagrador de um motim cujo alcance mobilizaria as forças de segurança federais. Esse alcance tinha razões bastante específicas, afinal, 17 quando rompeu com a legalidade, o mecânico optou por não ser um bandido qualquer: seus arrojados assaltos a banco, sua maquinaria de ponta, seu portentoso arsenal bélico, suas ações cinematográficas, a escolha de alvos que simbolizavam autoridade e poder testemunhavam sobre sua busca por se afirmar como singular. Apesar de ter figurado na lista policial dos cinco criminosos mais perigosos do Estado, entre a segunda metade da década de 90 e a primeira metade dos anos 2000 como pioneiro daquilo que viria a ser chamado de “Novo Cangaço”, Valdetário tornou-se causa de uma efervescência cultural e simbólica que o vincula aos grandes vultos do sertão nordestino brasileiro. Mesmo depois do seu assassinato, no ano de 2003, ele ainda é lembrado pela mídia e seu nome povoa os imaginários através de narrativas populares que lhe dizem respeito e por causa da sua história dramática que inspira empatia, respeito, fascínio e narrativas orais dos mais variados gêneros. Com determinada frequência, os noticiários retomam seu legado, vinculando-o a crimes e criminosos do presente, tornando Valdetário uma presença permanente. Aliás, enquanto esteve vivo, Valdetário foi constantemente objeto de especulações e dúvidas, sobretudo por causa dos rumores, boatos e histórias que circulavam a seu respeito e chegavam tanto a Caraúbas como a outras cidades. Ele, que não assaltava por assaltar, que tinha alvos e interesses muito bem definidos, protagonizou cenas, encontros e conversas intrigantes que apontam para um modo de existência, para uma ética, que não se detém aos limites das conclusões policiais e do jornalismo investigativo sobre seus erros e suas escolhas. À medida que façanhas extraordinárias eram feitas por ele e sua quadrilha, crescia tanto o medo quanto a curiosidade e a admiração pela capacidade de enfrentamento, pela autodeterminação, pela coragem e pela altivez demonstrada por alguém que houvera sido injustiçado, em uma espécie de sublimação dos juízos que expõe o triunfo da vida sobre a moral e da experiência sobre normatização das condutas. Sua fama, portanto, foi se constituindo a partir da correlação de forças entre o que era praticado, suas aparições ambíguas e o que os espectadores concluíam acerca da sua biografia acidentada e da abordagem midiática. Não por acaso, sendo impedido de ser o ator que sempre quis ser, Valdetário fez da vida o palco em que pôde representar as qualidades das personagens que tanto admirou e que compunham sua identidade, seus desejos, suas disposições. 18 Em busca de alcançar as estrelas que admirava, desafiou o perigo, desdenhou dos limites, contrapôs os ordenamentos e instituiu um caminho para si que o fez se reencontrar com a verve artística antes atacada pelas contingências que o fizeram abandonar sua profissão, que destruíram as possibilidades de fazer teatro para ser tantos quantos ele desejava ser. Sua escolha pela espetacularização dos atos testemunhava sobre isso. Como uma personagem trágica que extrapolou os limites do permitido, Valdetário Carneiro não foi e não é um exemplo a ser seguido, mas uma figura pequena e vulgar tampouco pode sê-lo, afinal, incorporou dramas da existência e enfrentou dilemas humanos que dizem respeito à vida em sociedade e ao confronto com poderes estabelecidos que fazem seus jogos e enredam as pessoas em armadilhas das quais não conseguem se desvencilhar sem uma tomada de posição potente que faça frente às forças que tentam subjugá-las. Foi o que ele fez, e o sertão nordestino, que antes havia presenciado o surgimento de Lampião, viu ressurgir a mesma irrupção de coragem e valentia que transformou o Cangaço em objeto de amor e ódio, repulsa e excitação, pares ambíguos que se coadunam para complexificar aqueles que encarnam radicalmente o desafio de existir. A história de Valdetário, marcada por erros e acertos, remete-nos à prodigiosa multidimensionalidade da pessoa humana que se desnuda tanto pelos fenômenos mais expressivos quanto nas dobras do cotidiano, nas experiências mais comuns e rotineiras, nas suas maneiras de se afirmar no mundo por meio das suas preferências, do seu estilo, da estética que lhe apraz, das fantasias que lhe encantam e que lhe movem. Conforme sustenta Edgar Morin (2011), deve fazer parte de uma educação produtora de conhecimentos pertinentes ensinar a condição humana que carrega em si o uno e o múltiplo, a obediência e a transgressão, personalidades virtuais e uma infinidade de personagens quiméricos na sua coexistência no real e no imaginário (MORIN, 2018a), de maneira que o problema da compreensão tornou-se crucial para os humanos (MORIN, 2011), por isso deve ser uma das finalidades da educação no sentido mais amplo do termo. Problematizar o fenômeno da condição humana é facilitar a solidariedade intelectual e moral da humanidade, abrir-se ao diverso, compor um labirinto de múltiplas e incertas entradas que pede para abrirmos mão do horizonte das verdades unitárias, da obsessão pela explicação e exatidão, para, então, podermos ter uma compreensão de nossas formas de ser e viver no que elas têm de mais 19 substancial e primeiro: o paradoxo (ALMEIDA, 2017). É no cerne do paradoxo, como operador cognitivo que expressa emergências não previsíveis e reordena permanentemente aquilo que é da ordem estrutural, que devemos problematizar a múltipla face da condição humana (ALMEIDA, 2017, p. 144), por isso que a biografia de Valdetário, enquanto um itinerário de muitas faces, coloca-se como um tema por meio do qual é possível compreender aquilo que há de fundamental na experiência de ser humano. É nesse sentido que o drama de um homem serve como uma tela de exposição onde o humano se mostra no seu limite e se reencontra com suas potencialidades, debilidades, seu inacabamento, seus acasos, como se fosse um filme no qual os espectadores se reconhecem. Nesse roteiro, contracenam o humano sob estresse contínuo, imaginários marginais, a perecibilidade de nossas certezas morais, a autodeterminação criativa dos sujeitos, a possibilidade de soltar- se das pré-determinações e a incerteza como princípio ativo das relações humanas que não se reduzem aos códigos de conduta que regem a ordem social. Trata-se, pois, de pensar a vida por meio de uma biografia, o humano através de um homem, reafirmando a unidade comum que há entretodos. Existem três chaves de leitura para compreender o humano a partir dessa história. São elas: a ética do sujeito, a chamada autoética, identificada na autoafirmação do homem Valdetário influenciado por seus ídolos e sonhos, movido por seus amores e as escolhas específicas dos alvos contra os quais decidiu se insurgir; a ética da sociedade, representada pelo estigma, pelas normas e coerções preconceituosas; e, por fim, a ética da compreensão, necessária para a devida autopercepção que pode coibir excessos e arrogâncias sobre a espécie que somos e contribuir para pensar, agir e compreender melhor as pessoas e a própria convivência social. Essas éticas são identificadas e descritas a partir das propostas de Edgar Morin (2003; 2017), portanto, têm como principal base teórica o Pensamento Complexo, que integra as contradições em vez de eliminá-las e considera que uma mesma coisa oferece diferentes ângulos de leitura e interpretação que não se anulam, o que permite uma percepção mais ampla dos temas e dos sujeitos sobre os quais a reflexão se debruça para, então, conceber as coisas na sua diversidade fundamental e admitir que elas não se limitam a ser obrigatoriamente isso ou aquilo; 20 podem ser, a um só tempo, isso e aquilo, ou seja, podem conter duas verdades que, embora diferentes, são complementares e devem ser ditas, se o que se pretende é elaborar uma descrição mais próxima da realidade estuda ou pensada. Três livros biográficos foram consultados e serviram como ponto de partida para conhecer e estabelecer contatos com sujeitos que conhecem para além das crônicas policiais e fizeram parte, direta ou indiretamente, da vida de Valdetário: A saga Benevides Carneiro: a história da família mais diversificada do RN (2010), de Dudé Viana, primo do caraubense; Valdetário Carneiro: a essência da bala (2013), dos jornalistas Rafael Barbosa e Paulo Nascimento; e Família, sonhos e lutas de Valdetário Carneiro (2019), escrito em formato de cordel, que fora lançado na Câmara Municipal de Caraúbas e até hoje é fonte de consulta, leitura e distribuição entre os conterrâneos que se reportam ao texto de conhecida identificação regional para narrar suas memórias sobre o que ocorreu. Essas obras situam o leitor no universo político, cultural e familiar daquela que até hoje é a maior e mais importante epopeia do oeste potiguar. No primeiro ano de pesquisa, este trabalho fez uso de crônicas jornalísticas da época na qual o caraubense atuou e de depois da sua morte, colheu depoimentos de familiares de primeiro grau e de seus biógrafos. Durante esse período, por causa das restrições e do distanciamento social impostos pela pandemia do SARS-CoV-2, o contato aconteceu por meio de e-mails, videochamadas e aplicativos de mensagens. As primeiras questões foram feitas através de questionários semiestruturados que se desdobraram em conversas mais espontâneas oriundas de dúvidas residuais acerca das respostas oferecidas nos questionários. Os contatos iniciais possibilitaram a criação de uma rede colaborativa a partir da qual cada pessoa consultada oferecia novas pistas. Desse modo, foi possível aproximar-se daqueles que depois seriam conhecidos pessoalmente. Com a flexibilização das normas de segurança contra o contágio e com o avanço da vacinação no país, foi possível viajar a Caraúbas e conversar com algumas pessoas a fim de obter um panorama mais diversificado da história e situar- se melhor quanto às características da cidade, do povo e da cultura, além de poder presenciar as movimentações que até hoje acontecem em torno do túmulo do personagem, fazendo do local um ponto de referência no cemitério da cidade. Fiquei hospedado por três dias na casa de uma das primas de Valdetário, Ginevra Gurgel Benevides, que me apresentou outros primos, Aguinalda Fernandes, uma das suas 21 viúvas e mãe de dois dos seus filhos, além de vizinhos e caraubenses que compartilharam suas memórias e suas percepções de um tempo e de uma pessoa que se tornara inesquecível para todos eles, levando em consideração que os bandidos pertencem mais à história recordada do que à história oficial dos livros escrita pelos homens justos (HOBSBAWM, 2017). Em Caraúbas, presenciei demonstrações de respeito e de memória afetiva que se mesclam com os tabus que perpassam o tema do banditismo e a pessoa de Valdetário, fazendo com que quem narra oscile entre a coragem e a hesitação em revelar detalhes e assim se comprometer. Mesmo assim, colhi seus depoimentos, transitei por lugares marcantes da história e ouvi relatos que, embora reticentes e imprecisos quanto a especificidades, são as crônicas de que se servem aquelas pessoas para contar a história da sua cidade e de um homem que a marcou definitivamente. Estando com eles, pude aferir, confirmar e ampliar dados que estão nas biografias escritas e conhecer algumas nuances omitidas; tive acesso a materiais de arquivo pessoal que expõem detalhes do itinerário de Valdetário, tais como recortes de jornais que a família guarda como uma espécie de memorial para contar sua própria versão dos fatos, além de fotos da intimidade que ajudam a compreender o homem por trás dos seus crimes. Tomando essas fontes como referências para descrição dos detalhes biográficos e concordando que descrever é, segundo Bruno Latour (2006), estar atento aos estados concretos das coisas, esta dissertação assume um caráter descritivo e ocupa-se de relatar episódios marcantes e acontecimentos decisivos que marcaram a trajetória da sua personagem principal, para que pela própria descrição e pelo próprio percurso biográfico a pessoa de Valdetário, na sua multiplicidade, apareça com os conteúdos próprios da existência humana, bipolarizada entre sapiens e demens (MORIN, 1975; 2012a), que pode ser observada em detalhe a partir do seu caso. Dividido em três capítulos, este texto busca abranger a biografia de um homem desde seu nascimento até sua morte, destacando seus feitos mais notórios e alguns de seus encontros com pessoas simples, responsáveis por tê-lo tornado um ícone folclórico-regional. A partir da leitura daquelas biografias e das conversações com seus parentes, o primeiro capítulo dedica-se a detalhar dados biográficos de Valdetário e da sua família, relatando eventos que foram importantes para ambos, nomeando figuras que compuseram a história e contribuíram para o desenrolar dos acontecimentos 22 que deram causa à virada radical de conduta do mecânico caraubense. Apresentamos fotos de diferentes fases da vida do mecânico, depoimentos de familiares e algumas das narrativas mais conhecidos na cidade do oeste potiguar, que contribuem para que a biografia de um dos seus mais famosos filhos não seja caracterizada apenas pelo drama e pela tragédia, de modo que, descrevendo esses detalhes, pretendemos apresentar um panorama geral das circunstâncias políticas, sociais e culturais da época em que os eventos se sucederam. No segundo capítulo, sustento que aquela virada ocorreu justamente como manifestação daquilo que Edgar Morin (2012a) nomeia “Complexo de Adão”, traço indelével da constituição humana que é definida pelos duplos sapiens-demens, opostos que coabitam uma mesma pessoa e fazem oscilar entre a racionalidade e o delírio, entre a ordem e a desordem, entre a estabilidade e a instabilidade, entre a realidade e a fantasia, produzindo, a partir de uma mesma base, diferentes modos de ser que não se anulam; pelo contrário, alternam-se e tornam-se fontes de criatividade, ou seja, fontes de geração do novo, do inusitado, do surpreendente, do espantoso. Com isso, tendo como referência Howard Becker (2008) e Erving Goffman (2019), discutimos o papel do estigma como um tipo de controle social que, embora baseado em preocupações morais legítimas, torna-se tanto incapaz de compreender a complexidade da pessoahumana como difusor de preconceitos que a ignora. Ao realizar essa discussão, defendemos que é preciso reeducar a moral e o pensamento por meio de uma ética fundada nas Ciências da Complexidade. Já no terceiro no capítulo,há a relação dos ídolos de Valdetário Carneiro e a apresentação dos aspectos, feitos e ideais desses famosos que seduziam o caraubense e serviram como inspiração para a espetacularização dos seus atos. Seus principais ídolos foram Che Guevara, Raul Seixas e Ayrton Senna. Essas estrelas foram decisivas na construção da personalidade performática que Valdetário criou e pela qual se tornou reconhecido ao ter feito da vida um palco de onde pôde reivindicar um tipo de protagonismo que o permitia se soltar das pré- determinações e deixar livre sua vontade de representar papéis que o elevaram acima da banalidade. Para essa análise, foi considerado o processo de projeção-identificação (MORIN, 1989) que há entre as estrelas e seus fãs, assim como a produção pela cultura de massas de mitos e formas expressivas condicionadoras da integração do público consumidor à realidade social (MORIN, 2018b), em diálogo com as 23 teorizações de Chris Rojek (2008) para explorar a relação de simbiose entre alguém que tornou a própria vida um meio para consumar e reafirmar seu ímpeto pelas artes, transformando em ações diretas e reais aquilo que havia sido produto da fantasia e objeto de sonhos que foram interrompidos pelas contingências e pelas disputas de poder regionais que redundaram em desmandos e violência. Por causa disso, mostrando alguns recortes da obra daqueles astros, identificamos alguns pontos de contato entre Valdetário e aquilo que foi feito e dito pelos artistas que fizeram sua cabeça, bem como discutimos o fenômeno de projeção-identificação que, além de ter feito parte da sua jornada, repetiu-se posteriormente naqueles que vieram a ser seus admiradores e fãs, para, desse modo, mostrar movimentos que são próprios de existir atravessado por ambivalências e poros por meio dos quais passam tintas que fazem da pessoa humana um caleidoscópio. 24 2. UM HOMEM E UMA HISTÓRIA FEITA DE DESCAMINHOS Eu sou eu e minha circunstância, e se não salvo a ela, não me salvo a mim. (Ortega y Gasset) Quem anda no trilho é trem de ferro. Sou água que corre entre pedras - liberdade caça jeito. (Manoel de Barros) José Valdetário Benevides (ou apenas Val, para amigos e familiares), nasceu no dia 7 de março de 1959, na cidade de Caraúbas, localizada a pouco mais de 300km da capital do Rio Grande do Norte. Filho único do casal Luiz Cândido Benevides e Antônia Amabília de Paiva, foi também o mais sonhado e pedido aos céus, porque sua mãe, antes de tê-lo concebido, houvera sofrido seis abortos e decidido que aquela era a última tentativa. Concluir uma gravidez e gerar uma criança era a maior das graças que aquele casal poderia alcançar depois de tanto sofrimento. O menino José chegou como uma dádiva e seu nascimento significou um milagre, já que, para seus pais católicos, foi fruto de uma promessa feita a São Francisco de Assis. Fazia parte dos votos vestir o garoto com a indumentária do santo e não cortar seu cabelo durante seus 7 primeiros anos. As vestes e a promessa não foram bem recebidas por Val, que sentia vergonha de usar aquelas vestimentas. Durante a infância, por causa dessa vergonha, o menino passa a ser conhecido pela timidez e retraimento. Vê-lo brincar com os amigos e primos torna-se uma cena rara. Seu entretimento é montar os próprios carrinhos de brinquedo, feitos de grandes latas de querosene ou madeira. Desse modo, aliás, começa sua paixão pelos automóveis, que guardará enquanto esteve vivo, na profissão que aprendeu, quando se tornou um fora da lei e até o fim da vida, juntamente com seu encanto pela interpretação teatral e a admiração pelos grandes nomes da cultura local, nacional e internacional. A vergonha das roupas e do cabelo longo, além de fazê-lo tímido, também o impede de ter uma boa relação escolar, já que passa a ser alvo de chacota e de inúmeros apelidos criados por seus colegas. Os cabelos longos, que carregou até início da juventude, e a memória do incômodo que sentia ao usar aquelas 25 vestimentas faz seu rendimento na escola e sua frequência caírem. Tudo isso acrescido ao fato de Valdetário ter perdido o pai quando ainda tinha 3 anos de idade, em 19/10/1962. Sem a referência paterna, seu tio Antonino Benevides Carneiro, chefe e porta-voz da família Carneiro, tornou-se a maior das referências da sua infância como exemplo de hombridade e honradez, sobretudo pelo destaque político e a notoriedade que conquistou na cidade. Comerciante simples e homem do povo, Antonino Benevides Carneiro foi duas vezes vereador da cidade, sempre em primeiro lugar na contagem dos votos. Por seus serviços prestados, tornou-se uma referência e fez o nome da família compor o rol das famílias mais importantes e conhecidas do lugar. Típico sertanejo do século XX, nascido em 10 de maio de 1918, foi um homem que prezou pela honra masculina e pelo cumprimento da palavra dada. Reconhecido como alguém dotado de um senso de justiça apurado, conquistou respeito e logo se tornou uma espécie de liderança comunitária à qual os caraubenses recorriam para tratar suas dificuldades diárias. Hoje, inclusive, a Câmara Municipal da cidade carrega seu nome e imortaliza sua história, tamanha a sua importância local conquistada por seu engajamento político. Figura 1: fachada da Câmara Municipal da cidade de Caraúbas Fonte: acervo do autor (2021). Antonino Carneiro morreu em 17 de outubro de 1967, em confronto armado com o recém nomeado delegado da cidade, Aderson Adriano Pires, com quem mantinha uma boa relação de intimidade. A amizade entre os dois foi constantemente posta à prova por inimigos políticos de Antonino, que passaram a 26 espalhar pela cidade rumores a fim de causar contendas entre aqueles que eram considerados os homens mais valentes da região. Mesmo havendo inúmeras tentativas de abalar a relação dos dois, a amizade permaneceu firme, até um deslize do filho mais velho do Benevides Carneiro que, fiando-se no prestígio do pai e sabendo da amizade que este nutria com o delegado da cidade, desrespeitou a ordem do prefeito para não entrar no açude com carroças e animais, já que aquele lugar era a fonte de abastecimento de Caraúbas que sofria com a falta de um sistema hídrico básico. A polícia, que havia sido incumbida de fiscalizar o local e o delegado, tomaram conhecimento do fato, mas Aderson não comunicou a seu amigo Antonino que, se tivesse sabido, pelo histórico de austeridade com os familiares (VIANA, 2010), teria repreendido e corrigido o rapaz para evitar que ele não voltasse a transgredir as normas e mantivesse seu sobrenome distante de problemas ou de questões embaraçosas. Por não ter sido avisado e ter considerado que isso havia sido uma traição, Antonino rompeu os laços de amizade e deflagrou o conflito armado contra aquele que havia sido seu companheiro mais fiel, o que satisfez os adversários do vereador, pois, a partir da sua morte, teriam mais espaço e oportunidades para levar a cabo seus projetos de poder. Mesmo com a morte do seu principal membro, a família Benevides Carneiro permaneceria sendo uma das mais respeitadas na região, e o interesse pela política não desapareceria. Luiz Benevides Carneiro, conhecido como “Doutor Benevides”, em função da respeitabilidade conquistada por sua inteligência e capacidade de liderança, assume o lugar de seu tio na chefia da família. Nascido em Felipe Guerra, foi criado praticamente como um filho de Antonino e tornou-se comerciante bem- sucedido sendo proprietário de uma fábrica de cerâmica de nome “Comercial Irmãos Benevides LTDA”, que empregaria partedos familiares para conduzir os caminhões da fábrica. Tornou-se, além de empresário importante na região, exemplo para todos seus parentes, inclusive Valdetário, de quem era primo. Em que pese já ocupar um lugar de destaque tanto na cidade quanto na região, Doutor Benevides, semelhantemente a seu tio Antonino, desejava fazer política e decidir os rumos de Caraúbas. Seu maior objetivo era ser prefeito da cidade para levar adiante o legado que havia herdado e para implementar os projetos de modernização que sonhava para o município, como a melhoria no abastecimento de água potável para a população. O desejo torna-se um projeto e os 27 planos para conseguir alcançar a prefeitura passam a ser conhecidos por todos e alianças foram sendo feitas no decorrer do tempo. A família Benevides Carneiro, no entanto, contava com a resistência e a perseguição de Nero Fernandes, o então presidente da Câmara Municipal, que também queria ser prefeito, e concebia Doutor Benevides como seu maior rival na corrida eleitoral, já que Doutor gozava de amplo prestígio. Conforme relata a edição do dia 30 de janeiro de 1998 do Diário de Natal, jornal impresso de amplo alcance no Estado, Nero utilizava do seu poder como presidente da Câmara para perseguir os Carneiro, utilizando a polícia para intimidá- los. A situação tornava-se cada vez mais insustentável e a disputa entre eles desproporcional, levando em consideração a posição que o vereador Nero ocupava. Em 1981, o vereador é assassinado e os Benevides Carneiro tornam-se os principais suspeitos. Cada vez mais acirrada, a briga deixou de ser entre indivíduos para tornar-se uma celeuma familiar. Os Fernandes e os Carneiro passaram a ser inimigos mortais, advindo dessa rixa atentados e execuções que dizimaria membros de uma e de outra família. Mesmo em meio a um clima de violência, Doutor Carneiro prega paz entre as famílias e segue desejando ser prefeito da cidade, para desgosto dos seus concorrentes. Para alcançar seu objetivo, coliga-se à campanha para prefeito do então candidato pelo Partido do Movimento Democrático Brasileiro (PMDB) Raimundo Amorim Fernandes, conhecido como Zimar Fernandes, que, apesar do sobrenome, não era parente de Nero, mas sim seu inimigo. Dadas as dificuldades financeiras pelas quais a campanha passava e a necessidade de ter a seu dispor dinheiro para alavancar o projeto dos dois, Doutor Benevides planeja aquele que passaria a ser chamado “O assalto dos 94 milhões”, que é “uma espécie de marco simbólico da criminalidade violenta no interior do Nordeste” (LOPES JÚNIOR, 2006, p. 361), por causa da alta quantia subtraída e da maneira como ocorreu. Corria o ano de 1982, por volta das 16h do dia 18 de maio, quando criminosos fortemente armados de fuzis e metralhadoras interceptaram, entre os municípios de Caraúbas e Olho d’Água dos Borges, um automóvel conduzido por um bancário e dois seguranças do já extinto Banco Econômico, para o pagamento de trabalhadores alistados no Programa de Emergência Contra as Secas, do Governo Federal, no município de Umarizal. Maurício Benevides Carneiro, João Benevides Carneiro, Sidney Ferreira e José Ferreira da Costa, os executores da intercepção, 28 empreendem uma troca de tiros intensa e os seguranças não resistem a ação, abandonam o carro com o dinheiro e fogem pela mata das margens da RN-117. Doutor Benevides esperava o retorno dos homens no Sítio Recanto, nas proximidades de Caraúbas. Como o assalto teve grande repercussão, o grupo julga por bem não injetar os valores rapidamente na campanha. Por precaução e estratégia, o dinheiro ficou circulando entre diferentes endereços, enquanto a polícia conduzia as investigações. Dividido em porções menores, que ficariam sob a tutela dos mentores e dos executores do assalto, o valor transitava de um lugar para outro, de uma propriedade à outra da família e de parentes em pequenos malotes. Passado o tempo, e com o impacto do assalto reduzido, o valor enfim é utilizado e o grupo consegue eleger Zimar, cujo compromisso firmado era tornar Doutor Benevides o seu sucessor ao final do seu mandato, que durou entre os anos de 1983 e 1988. Em uma reviravolta política e uma afronta ao pacto firmado entre os homens, Zimar Fernandes não cumpriu sua parte no plano e naquele pleito municipal apoiou o médico Marinaldo Holanda, mesmo tendo participado do planejamento da ação criminosa para concretizar o assalto e tendo sido beneficiado pelo dinheiro roubado. O que, então, seria somente a traição de um parceiro político foi a quebra definitiva de qualquer respeito que os Benevides Carneiro poderiam ter pelos Fernandes, a quebra absoluta do pacto de confiança e paz entre eles, como declama os versos (MEDEIROS, 2019a, p. 46): Dessa maneira cresceu Entre os Carneiro e os Fernandes, Surgiu amplo sofrimento, Raiva, cobrança e lamento, O monstro da desavença: Aumentou a malquerença. A fúria virou doença. Após o desentendimento, que redundaria em uma rixa letal para ambos os lados, Doutor tenta sua própria candidatura e perde por uma margem pequena de votos, na eleição municipal de 1988, para a tranquilidade da família Fernandes. Entretanto, o ódio entre eles permanecia efetivo, o que provocou tentativas de homicídio contra Doutor Benevides e contra Zimar, fazendo o entrevero entre os grupos perdurar na cidade até os dois terem parentes perseguidos e, por fim, 29 mortos, vítimas de pistolagem e tramas que culminaram na dissolução daquele que havia se tornado o maior embate familiar da cidade, até hoje relembrado e confirmado pelos moradores do lugar que presenciaram os conflitos, as trocas de farpas, as acusações mútuas, as antipatias e as discussões públicas. Tanto a memória de Antonino Benevides Carneiro quanto esses fatos e essas disputas foram tornando a família Benevides Carneiro uma das mais importantes de Caraúbas. Seus membros começaram a ser conhecidos, sua relação com o roubo dos 94 milhões começou a ser motivo de falatório e sua busca por posição política reconhecida cada vez mais, em cada ato ou em cada colocação feita por um dos seus membros. Justamente por isso ela passa a ser alvo de conflitos constantes com outras famílias, igualmente interessadas pelo poder municipal. Os Carneiro, desde o assalto e daquele ato de Zimar — que foi tratado como uma traição imperdoável — passaram a compor um grupo de destaque na cidade e nunca mais gozaria da tranquilidade do anonimato. Valdetário, entretanto, vive a maior parte dos seus anos longe desses conflitos. Na condição de filho único, vê-se obrigado a trabalhar e ajudar nos custos da casa. No início da juventude, já afastado dos estudos, foi conduzido por sua paixão pelos automóveis à mecânica. O primeiro contato aconteceu em virtude de um presente que sua mãe, Antônia Amibília, deu a seu filho: uma motocicleta. Curioso e detalhista, ele passou a montar e desmontar a moto por conta própria desenvolvendo grande habilidade no manuseio das peças e na compreensão do funcionamento da máquina. Durante esse período, seu deslumbramento pela mecânica e pelo automobilismo, assim como seu talento para essa profissão começam a ficar evidentes e chamar a atenção até mesmo dos seus parentes. Por causa do seu autodidatismo na mecânica, ainda no fim dos anos de 1970, consegue seu primeiro emprego com Raimundo de Tica, um parente que era ferreiro em Caraúbas e ocupava-se dos serviços mais simples da cidade. A oficina de Raimundo tratava de consertar carroças, carrocerias de caminhões e tratores de trabalhadores rurais e viajantes que passavam pela cidade. Mesmo fazendo o que gostava, Valdetário passa pouco tempo trabalhando nessa ferraria, porque tratava de peças mais rústicas e do trato de veículos mais antigos, enquanto o jovem demonstrava maiores ambições e interesses em máquinas mais sofisticadas. 30Figura 2: Valdetário, aos 15 anos, com a motocicleta que ganhou de presente. Fonte: acervo da família Em 1980, ele decidiu montar seu próprio negócio: em frente à sua casa, constrói um pequeno vão de madeira coberto com palhas de coqueiro, onde passa a fazer, inicialmente, os consertos de carros. Depois, dedica-se também ao cuidado da lanternagem, pintura e mecânica dos mais variados modelos e tipos de veículos motorizados. Seu perfeccionismo e sua habilidade, acrescida de uma notável capacidade de concentração, fazem seus serviços se destacarem ao ponto da fama de melhor mecânico da região começar a se propagar e ganhar cada vez mais razão de ser. Quando os amigos chegavam à oficina de Valdetário, raramente eram cobrados pelo serviço prestado. A profissão virou tanto um prazer quanto uma obsessão, o que era perceptível pelas várias vezes em que dormiu em sua oficina ou varou noites concluindo serviços pendentes (BARBOSA; NASCIMENTO, 2013). Sua dedicação fez seu negócio crescer significativamente. Com o dinheiro que conseguiu se dedicando dessa maneira, Valdetário comprou um terreno que também ficava em frente à casa da mãe, onde morava. Desfaz sua construção de madeira e constrói um pequeno prédio, onde instala uma oficina maior, com capacidade de atender mais pessoas e receber mais demandas. Por isso decide contratar um ajudante. Convida um vizinho para ajudá-lo: Ionaldo de 31 Oliveira que, tempos depois, montaria sua própria oficina e compartilharia serviços com Val. Ainda com o lucro do seu trabalho bem-feito, consegue construir a própria casa. Com o passar do tempo, começa a adquirir carros quebrados para consertar, usar ou vender pelo deleite que manusear aquelas máquinas lhe trazia. Figura 3: à direita, Valdetário em sua oficina trabalhando com mecânica Fonte: acervo da família Nessa mesma época, Val conhece a primeira namorada. Na passagem de um circo pela cidade, Valdetário se encanta por uma das dançarinas do espetáculo que fazia questão de assistir: uma mulher negra chamada Marli Nascimento, nascida em Ceará-Mirim/RN. Foi um amor à primeira vista, tão intenso a ponto de José Valtedário sequestrar a moça para que pudessem morar juntos e casar. Inicialmente, dadas as dificuldades financeiras, o casal vai morar na casa de um amigo, onde passariam os primeiros dias de um namoro que se transformaria em união estável logo que puderam alugar e manter uma casa. A relação gerou os três primeiros filhos de Valdetário: Tetsumi Kitayama, Francisco Valdetário e José Valtemberg. As crianças não foram registradas com o sobrenome da mãe; foram registradas somente com o "Benevides" de Valdetário que, por causa de um erro no registro de nascimento do seu pai, não carrega oficialmente o sobrenome “Carneiro”, 32 com o qual ficaria conhecido no Estado. O romance durou por volta de quatro anos, período em que Val seguia a carreira na sua oficina ganhando ainda mais destaque na região; até que, no final de 1983, já separado de Marli, é preso pela primeira vez. Acusado de ter roubado uma bomba hidráulica da fazenda de João Amorim, nos arredores de Caraúbas, ele é capturado e passa pela vergonha pública de ser visto e tratado como um criminoso, naquela que seria a sua primeira experiência com a injustiça e a vergonha pública. Naquele tempo, em Caraúbas, quando uma viatura policial conduzia algum preso à Delegacia de Polícia, os rapazes e principalmente as moças que moravam nas proximidades do prédio, no centro da cidade, corriam para ver quem a polícia havia prendido. Não foi diferente com Valdetário que, enquanto ia sendo levado algemado, também ia sendo visto com olhos de desconfiança e surpresa. Dentro da cela, o único contato externo que tinha era por meio de uma janela gradeada que estava voltada para uma casa, quase que parede com parede. Foi por entre as brechas das grades que ele iniciou a paquera com Aguinalda Fernandes (conhecida como Neta), à época com 19 anos de idade, aquela que seria a única mulher com a qual ele casaria no civil. Ficou recluso pelo período de três dias, mas foi solto logo em seguida por falta de provas. O próprio fazendeiro vítima do furto, que era seu amigo, o inocenta. Depois de Valdetário ganhar a liberdade, inicia às escondidas o namoro com Aguinalda, que se mantém por pouquíssimo tempo, pois não tinha o apoio dos parentes da jovem. Em meio à desaprovação dos familiares, após 13 dias de namoro, Neta foge com Valdetário para a casa de um amigo em comum, conhecido na região como “Nilson da Caçamba". Eles permanecem por dois dias abrigados no local vivendo um romance tórrido, até que um dos tios da moça descobre o lugar onde estão, vai até lá e a leva de volta para a casa, posto que, para sua família, namorar um homem que havia sido preso, que já era pai de três filhos, que já havia morando junto de outra mulher e que tinha passagem pela polícia constituía um absurdo e um problema a ser evitado em defesa da reputação da moça e dos seus. A desconfiança dos familiares de Aguinalda, sobretudo do seu pai, Manoel Lúcio Fernandes, com o genro, dura pouco tempo, porque, pouco a pouco, depois que Val começa a frequentar a casa dos pais da namorada, ganha a confiança da sua família. Passada essa primeira impressão ruim, o matrimônio é firmado no dia 7 de fevereiro de 1984, no cartório central de Caraúbas, mesmo ano em que nasce o 33 primeiro filho do casal, Luiz Cândido Benevides Neto, cuja semelhança física com o pai é, desde seus primeiros anos, ressaltada por todos que os conhecem. Pouco depois, Neta e Val tornam-se pais de uma menina, Layanna Benevides, única filha do mecânico, por quem ele cultivaria um zelo imenso e o compromisso de protegê-la dos riscos aos quais, como pai, imaginava que uma garota poderia estar exposta. Antes de tudo mudar e ele tornar-se quem se tornou, Valdetário sempre preferiu batizar os filhos com Aguinalda somente com o sobrenome Benevides para não haver qualquer tipo de contratempo com a família inimiga, e tudo caminhou bem assim: distante das rixas políticas e familiares, durante toda a segunda metade da década de 1980. Por isso Luiz Neto e Layanna, tal como aconteceu com os irmãos mais velhos Tetsumi, Francisco e José, não carregam o sobrenome da mãe, porque, no caso do "Fernandes", a omissão servia para evitar que os filhos não carregassem a marca da família que, naquele momento, travava um conflito político na cidade com os Benevides Carneiro. Figura 4: da esquerda à direita, Aguinalda, sua filha ainda bebê e Valdetário Fonte: acervo da família Em razão de todas as atenções da polícia estarem voltadas à Caraúbas e redondezas, as aparições de Valdetário na cidade eram raras. Segundo declaração 34 do seu primo Sanderson Benevides (informação verbal)1, o amor pelos filhos e o zelo que nutria por sua caçula, que tratava como uma princesa intocável, eram uma das razões que faziam Val aparecer para acompanhar o crescimento da adolescente, aconselhá-la e exercer a autoridade de pai, exigindo, por exemplo, que ela cumprisse horários e não ficasse até muito tarde nas ruas ou nos passeios com suas amigas, o que também o ajudava a acompanhar o desenvolvimento da menina e mostrar para todos da cidade que, mesmo procurado e foragido, ele permanecia presente de modo inesperado. Seu primo diz que ele aparecia de surpresa, nos dias mais banais e nos horários mais improváveis, deixando todos boquiabertos. Era como se ele não conseguisse se desligar totalmente da vida que havia construído antes e do seu lugar de origem. Figura 5: Valdetário em idade adulta Fonte: acervo da família Afora essa necessidade de exercer seu papel de pai, Sanderson insiste (informação verbal) que por inúmeras vezes Val apareceu na cidade à luz do dia, como quem gostasse de desafiar o perigo. É o que realmentese pode deduzir a partir de um episódio bastante peculiar protagonizado por seu primo com um dos 1 Depoimento concedido por Sanderson Benevides Gurgel, em Caraúbas, em novembro de 2021. 35 amigos de seu parente. Era uma manhã comum de um dia qualquer da semana. Caraúbas estava em estado de alerta e as polícias locais e regionais em vigilância total na tentativa de prender o homem que as desafiava de todas as maneiras possíveis e que insistia em passar por sua cidade e viver pelas proximidades. Valdetário estaciona sua caminhonete no posto de combustível localizado na entrada da cidade, onde do outro lado da rua guarnições costumavam ficar em vigília. O frentista, amigo de Sanderson, aproxima-se do carro para perguntar ao motorista quanto queria de abastecimento. Ao chegar perto, reconhece Valdetário e se assusta com as armas que vê dentro do carro. Com medo de um possível confronto entre a polícia e Valdetário Carneiro, que o deixaria no meio do fogo cruzado, mas também com medo do estabelecimento ser assaltado e ele, juntamente com seus colegas, passarem por momentos de horror, o funcionário do posto quase não conclui sua pergunta e, trêmulo, pergunta o que aquele homem queria, já oferecendo a quantia que estava em seus bolsos a fim de evitar qualquer tipo de violência, ao que Val responde sorrindo: “não tenha medo, cabra. Eu só quero que você encha o tanque”. Ainda tremendo, o frentista atende ao pedido. Ao concluir o abastecimento, o atendente afasta-se do carro e não retorna ao lado do motorista. Então, Valdetário pergunta: “quanto deu, amigo véi?”. O homem responde e prontamente ouve: “venha, pegue o dinheiro”. Sem entender muito bem o que estava acontecendo, ele recebe o pagamento e a caminhonete se vai. Até hoje, essa é uma história com a qual Sanderson e seu amigo se divertem. Abril de 1991 representa um marco em sua história. O mecânico é preso pela polícia junto com os primos Aguinaldo Benevides Carneiro (o “Galego”) e João Carneiro, conhecido como “Branquinho”. A acusação é de que o trio havia roubado uma Ford Pampa na cidade de São Bento, no interior da Paraíba. João, que já tinha passagem pela polícia, consegue fugir da prisão. Val e Aguinaldo não têm a mesma sorte. A dupla é pega pelo tenente da Polícia Militar Washington Gabriel Pires, então delegado de Caraúbas. Valdetário estava em sua oficina e seu primo, que era bugueiro em Natal/RN, descansava com a família na cidade. Os dois são algemados, colocados na carroceria de uma caminhonete e expostos por toda a cidade, insultados aos gritos pelos policiais que exclamavam a quem pudesse ouvir que ali, na viatura, estavam os dois mais novos ladrões da família Carneiro. 36 A vergonha pública atinge a honra dos dois e os marcam de maneira incontornável, sobretudo pelo fato da cidade ser pequena e todos conhecerem uns aos outros. O veículo roubado pertencia ao fazendeiro Geraldo Francisco dos Santos, que confirma que os Carneiro são os responsáveis pelo assalto do qual seriam inocentados judicialmente apenas em fevereiro de 2013, mesmo a Pampa tendo sido encontrada com Sueldo Ribeiro Vasconcelos, em Aracati, no Ceará, que confessa o crime. Apesar de negar a participação, da falta de evidências e de o culpado confessar o crime, o passado da família Benevides pesava sobre os ombros dos homens que haviam sido humilhados publicamente. Em que pese a confissão de Sueldo, os humilhados são levados a julgamento na Paraíba. Condenado a sete anos e seis meses de reclusão em regime fechado, Valdetário permanece preso na Casa de Detenção de Campina Grande, cumprindo pena pelo delito que negou ter cometido e participado. Após um ano e sete meses na cadeia, no dia 6 de novembro de 1992, Val e Galego são levados para uma audiência na mesma cidade onde havia ocorrido o crime. Quando retornam para a unidade prisional em Campina Grande, são resgatados por seus primos. Os dois conseguem escapar da guarnição policial. Valdetário acaba sendo recapturado no dia seguinte à fuga, enquanto Galego consegue fugir. Durante o tempo em que ficou preso, Val não deixou de lado a paixão pelos carros. Passava o tempo dentro do presídio confeccionando carros e caminhões de madeira para serem vendidos do lado de fora dos muros da Casa de Detenção e para enviar de presente a seus filhos e entes queridos. Era a demonstração da sua antropoética capaz de fazê-lo ligar, segundo Morin (2017, p. 159), seu espírito aos “segredos da infância (curiosidade, surpresa), os segredos da adolescência (aspiração a outra vida), os segredos da maturidade (responsabilidade), os segredos da velhice (experiência, serenidade)” e de viver, tanto quanto fosse possível, de amor e poesia, de arte e criação, mesmo que em um ambiente inóspito como um presídio. Submetido àquela situação completamente desfavorável, Valdetário continuou sendo o jovem autodidata que desmontava e montava sua motocicleta; permaneceu sendo o mecânico e o apaixonado por carros que sempre foi; saiu da prosa pesada e monocromática ao estado poético, passou do terrível ao formidável para resistir à crueldade do mundo que o subjugava. Separado dos seus amores e da vida que havia construído, criou e foi o artesão que, com sua artesania, permaneceu 37 conectado ao que lhe trazia esperança e o fazia sobreviver, mantendo a “racionalidade no ardor da paixão, a paixão no coração da racionalidade, a sabedoria na loucura” (MORIN, 2017, p. 159). Sendo assim, como todo bom artesão, ele expôs, com maestria e magnitude, a criatividade — essa dádiva maior da condição humana (ALMEIDA, 2017, p. 161). Figura 6: à esquerda, Valdetário fabricando seus caminhões artesanais Fonte: acervo da família Foi preciso criar para suportar a saudade dilacerante, foi preciso conferir cores ao que era cinza para suportar a distância, foi preciso criar outro mundo para suportar aquele para o qual ele havia sido empurrado. Estar preso em outro Estado significava ter muitas dificuldades para conseguir coisas básicas para sobreviver no sistema prisional, o que fez Val contrair dívidas e piorar ainda mais sua situação. Entretanto, como demonstra a carta que escreveu a Neta durante esse período2, essas complicações não conseguiam apagar o amor, a memória, a lembrança, a falta dos seus que ele apaziguava escrevendo sobre seu amar, criando e dando formas ao informe por causa desse amar que precisava ser dito em função da dor pela ausência, da nostalgia pelo reencontro e para reaproximá-lo de quem lhe faltava, já que cartas de amor são escritas “para que mãos separadas se toquem ao tocarem a mesma folha de papel” (ALVES, 2013, p. 43). 2 A carta integral consta no anexo B. 38 Sua habilidade na fabricação desses caminhões e a riqueza de detalhes que empregava no seu acabamento, mesmo com poucos recursos à disposição, por ser um presidiário, chamavam bastante a atenção tanto no interior da cadeia quanto do lado de fora para aqueles que viam e compravam o material, justamente pelo esmero e sofisticação que eram indiscutíveis. O mecânico, que já havia comprovado uma capacidade profissional extraordinária com carros de verdade, naquelas circunstâncias demonstrou ter um talento especial, um tato delicado e uma inteligência para o sensível que evidenciava sua versatilidade, típica do humano que possui “multiplicidade e inúmeras potencialidades mesmo permanecendo um indivíduo sujeito único” (MORIN, 2012a, p. 95). Ele viu o que estava à sua volta e transformou o bruto em belo3. Figura 7: Valdetário, no presídio, sobre um dos caminhões feitos por ele Fonte: acervo da família Esse não era um fazer qualquer; era a expressão dos afetos mais sinceros de Valdetário, expressão da sua necessidade de reorganizar-se em meio aquele estado de coisas e manter-se equilibrado em meio à mais desestabilizadoradas situações, já que “a criação nasce do encontro entre o caos genésico das profundezas psicoafetivas e a pequena chama da consciência” (MORIN, 2012a, p. 126). Hoje, mesmo depois da sua morte, essa sua potência permanece viva e expressiva no 3 No anexo C há fotos de diversos ângulos do brinquedo, que demonstra mais dos seus detalhes. 39 artefato da foto acima que é preservado pelo irmão de Aguinalda, Manoel Lúcio Fernandes, conhecido como Juninho de Duquinha. Estar diante dessa obra, produto do amor paterno que não podia se consumar por causa da distância que separava pai e filho, consiste em presenciar o ato criativo como de fato ele o é: “um jogo que se realiza a partir de uma aptidão organizadora (competência), que catalisa em mensagem, ideia, forma, tema musical o que era apenas tumulto, ruído e cacofonia” (MORIN, 2012a, p. 126). Figura 8: um dos caminhões fabricados por Valdetário e enviados a seu filho Fonte: acervo do autor (2021) Aquilo que era impossível dizer olhando nos olhos do garoto, aquilo que era impossível traduzir em termos adequados, que era difícil de comunicar, que era difícil de fazer ouvir, estava dito nas linhas cuidadosas, nas sutilezas, na sensibilidade de um brinquedo carregado de significados e sentidos por ser e conter as impressões digitais de quem na verdade queria marcá-las pelo tempo que fosse possível no menino que receberia o presente e em tantos outros que poderiam testemunhar a possibilidade de emanar beleza de onde muitos presumiam haver somente a contravenção, o erro, o crime. Enquanto permanecer preservado, o caminhão servirá como um lembrete de que seu criador, em que pese tudo que depõe contra ele, também soube desenhar o sublime, entregar-se à arte, ao sensível, à beleza. O bom comportamento na cadeia e o cumprimento dos pré-requisitos para tal, Valdetário progride para o regime semiaberto nos meses seguintes, quando ainda faltavam três anos para o final da pena. Em 17/10/1995, o condenado é transferido 40 para a Cadeia Pública de Caraúbas. Porém, ao voltar à sua casa, Valdetário encontra um cenário desolador. Para pagar um advogado e manter a família, sua mãe havia vendido a casa onde ele morava e o local onde funcionava a oficina mecânica, além de alguns de seus objetos pessoais de valor afetivo imenso. Sem recursos, Val vai morar na casa do sogro junto com Neta, Luiz Neto e Layanna, ao lado da delegacia local, onde Valdetário passa suas noites, em cumprimento do regime semiaberto para o qual havia progredido. Durante o dia, segue tentando exercer a atividade de mecânico como pode, tendo de lidar com todas as suspeitas que o rondavam e com a pecha de ser um ex- presidiário explorada ao máximo pelos adversários da sua família, que procuravam vencê-la pela perseguição pessoal de qualquer parente que oferecesse mínima razão para isso. Dessa vez, a oficina é montada em um prédio cedido por um conhecido da família, Francisco das Chagas Teixeira. O primeiro serviço que conseguiu depois dessa nova etapa foi o conserto de uma caminhonete pertencente a Licurgo Fernandes. Com isso, seguiu tentando recolocar-se socialmente e voltar a ter seus rendimentos para sustentar Neta e os filhos, mas a sombra da condenação e o fato de ainda estar pagando sua pena atrapalham a retomada completa da vida como era. Segundo registram Barbosa e Nascimento (2013, p. 57), pouco mais de um ano após voltar para Caraúbas Valdetário é convidado por Elinaldo Simião Pereira para fazer um assalto. A vítima era Ademos Ferreira, dono da AFICEL, uma empresa industrial de beneficiamento de castanha localizada em Mossoró/RN. Valdetário nega o convite, tendo em vista que Ademos era amigo íntimo de vários membros da família Benevides Carneiro. Mesmo assim, Elinaldo Pereira, junto com outros homens, rouba mais de R$ 10 mil e um carro da usina. Ao retornar para Caraúbas, o Simião Pereira espalhou boatos de que Val seria o responsável pelo roubo em Mossoró, e novamente o caraubense viu-se frente à injustiça, o que o faria sair da inércia. 2. 1 – A resposta radical à injustiça e o desejo de vingança O homem sereno e sem histórico de desavenças, de origem simples e trabalhador, resolve se vingar na tentativa de conter seus acusadores e enfim ficar 41 livre das acusações e implicâncias. Sai à procura dos assaltantes da indústria de Mossoró e os encontra, fazendo com que devolvam o dinheiro e o carro roubado, que mesmo desmontado é entregue para o proprietário Ademos. A partir de então, dedica-se a retornar ao passado que o atormentava e cobrar dos seus acusadores o preço que ele havia pagado com a liberdade. Com seu primo Galego, viaja a São Bento em busca de Geraldo Francisco, o dono da Ford Pampa que havia sido objeto da sua condenação seis anos antes, para matá-lo, e consegue encontrá-lo. Assassina Geraldo e Antônio dos Santos Batista, funcionário da fazenda. A partir desse momento de vingança, o caraubense abandona todas as suas tentativas de retomar a vida que tinha antes e envereda pelo crime, tendo as agências bancárias dos interiores dos Estados como principais alvos, e passa a ter uma vida errante e de constantes fugas. Além de seu primo Galego, outros primos, parceiros de cela e amigos se integram ao bando para formar uma quadrilha que seria reconhecida como precursora disto que, por causa da origem nordestinae da admiração pelos cangaceiros dos seus membros, passou a ser chamado pela imprensa e pelas forças policiais de “O Novo Cangaço”, um tipo de crime organizado que se especializaria em sitiar cidades interioranas para saquear altas quantias em dinheiro das agências bancárias dos municípios e arredores. Os assaltos foram sendo efetuados e o bando liderado por Valdetário tinha ordens expressas para roubar somente “bancos”, que nenhum animal ou outro objeto poderia ser tirado dos “pobres”, ele não permitia essa covardia. Assaltava agora como forma de manter a estrutura bélica e a síntese de sobrevivência (GURGEL, 2012, p. 22). Mesmo que não se desse conta do que estava inaugurando e da proporção que isso tomaria, Valdetário permanece firme na sua busca por satisfazer o sentimento de indignação que o tomava por completo. Aguinalda Neta segue o marido nessa rotina de risco sempre iminente nas cidades do interior nordestino. A esposa passa a integrar o bando sem, no entanto, participar diretamente dos assaltos, porque o marido não permitia que ela se tornasse culpada daquilo que ele fazia. Enquanto os assaltos aconteciam, Neta, a exemplo das outras companheiras dos demais componentes do bando, ficava escondida nos pontos de apoio escolhidos que, geralmente, eram fazendas ou sítios de regiões próximas às cidades onde atuariam. Para isso, tanto Valdetário quanto Aguinalda precisam se afastar dos filhos, que passam a ficar aos cuidados dos avós maternos. 42 Ao ser questionada sobre esse período, Aguinalda Fernandes declarou (informação verbal)4 que, quando eles estavam juntos escondidos e sem o bando atuar, tudo funcionava na mais perfeita normalidade e parecia que a vida era como havia sido antes: Valdetário seguia sendo o mesmo homem discreto, introspectivo, de poucas palavras e fascinado por carros. Passava seus dias no esconderijo ouvindo suas músicas e seus cantores preferidos, semelhante ao que acontecia na sua oficina, acompanhando obcecadamente as corridas de Fórmula 1 e trabalhado no reparo e manutenção dos carros que ele e seus subordinados utilizavam para cruzar Estados e municípios do sertão nordestino, de modo que nem de longe assemelhava-se com o homem de autoridade inquestionável, responsável por comandar uma quadrilha tão organizada. Estar com sua esposa e longe da sua vida errante equivalia a ter e ser de volta aquele que havia se perdido em seus desvios. Todavia, enquanto cresciam e começavama tomar consciência dos fatos, Luiz Neto e Layanna precisavam lidar com inúmeras informações sobre quem era o pai que, pouco a pouco, foi se tornando o maior inimigo da polícia e a maior preocupação para a segurança pública da região. Ao ser questionada sobre as dificuldades desse período, Aguinalda confessou (informação verbal) que o mais difícil realmente foi permanecer distante dos filhos e vê-los lidar com as dificuldades de serem criados pelos avós em meio a tantas notícias ruins e rumores que chegavam a eles. Val e Aguinalda, mesmo em meio às turbulências da vida fugidia que adotaram, encontravam meios para visitar as crianças e vivenciar a experiência de serem pais nos esconderijos ou nas fazendas e sítios próximos onde se refugiavam. Essa, que era uma demonstração de carinho, também era o ponto vulnerável do casal, que se expunham ao perigo de ser capturado. À medida que o tempo passava, o nome Valdetário Carneiro começava a se espalhar por todo o Rio Grande do Norte e região Nordeste, o que tornava essa rotina de pausas na fuga para encontrar a família cada vez mais difícil. Histórias acerca dos seus feitos começaram a circular e narrativas orais difundiram-se com a mesma velocidade. Inúmeros assaltos em pequenas cidades de estados como Pernambuco, Paraíba, Ceará e Piauí, mesmo sem as autorias confirmadas, começam a ser atribuídos àquele que despontava no cenário, o que, tanto para quem ouvia as narrativas quanto para quem tentava combater o bando, aumentava 4 Entrevista concedida por Aguinalda Fernandes Benevides. Entrevistador: Paulo Sérgio Raposo da Silva. Caraúbas, 2021. Arquivo mp3 (30 min.). 43 o poder de ação do bando e dificultava o trabalho de inteligência das polícias para prendê-lo. Pouco a pouco ele também vai ganhando ares de onipresença pelo Nordeste inteiro. Relatos de que ele estava na região Oeste Potiguar em um dia e no outro já estaria praticando um assalto no interior do Piauí tornam-se comuns. No entanto, Valdetário ficava nas fazendas acompanhando através das emissoras de rádio as notícias dos assaltos dos quais era acusado sem ter cometido, enquanto descansava com a mulher e os amigos (BARBOSA; NASCIMENTO, 2013, p. 66). Em 10 de dezembro de 1998, Val sofre o primeiro golpe dilacerante na sua recém iniciada carreira criminosa: sua companheira Neta é presa no Ceará. Mesmo sem participações diretas nos assaltos devidamente comprovada, ela é apontada como cúmplice nos crimes do marido. Trazida para o RN, permanece em reclusão durante um ano, deixando o casal sem margem para qualquer contato. Era, de fato, um ponto de inflexão na sua corrida para fazer valer o desejo de vingança que o consumia ao ponto de fazê-lo agir radicalmente, desde quando começou a fazer justiça com as próprias mãos. A prisão foi tão dolorosa e decisiva que o fez mudar para a cidade de Monteiro, na Paraíba, e manter-se no anonimato, sem registros de crimes ou de confusões. Nessa cidade, apresenta-se como caminhoneiro e adota um novo nome de posse de um RG falso: José Valdetário Benevides passa a se apresentar como José Saraiva da Fonseca, o "Saraiva". Ninguém da cidade o reconhece. Isso ajuda para que ele pudesse ficar ali sem ser incomodado. É como Saraiva que, no início de 1999, ele conhece Maria Silvana Alves, uma jovem de 17 anos que viria a ser a mãe do seu sexto filho, Erikles Gabriel. O primeiro encontro dos dois acontece em uma festa na zona rural de Monteiro. Valdetário se apaixona por Silvana, que era noiva de outro rapaz, mas cedeu ao cortejo e às cantadas do homem que lhe parecia irresistível, dando início a um romance tão intenso que a faria romper o noivado para viver essa nova paixão. Apaixonado, Valdetário também começou a fazer planos de se fixar na cidade montando uma madeireira. Bastante decidido, chegou a comprar um caminhão e alugar um imóvel onde funcionaria o empreendimento, o que não se realizaria por completo, já que, na condição de chefe da quadrilha, permanece ligado às ações do bando, fazendo viagens constantes para acertar detalhes dos novos crimes. Em meio a tantas viagens, Silvana começou a desconfiar do namorado e decidiu 44 acompanhá-lo na sua próxima viagem. Estratégico, ele cria situações para despistar sua companheira com passeios e uma rotina de viagens menos intensas, o que não demoraria muito tempo para mudar, já que suas demandas e o risco de seus companheiros se dispersarem ou serem capturados sem a sua liderança o preocupavam. As ditas viagens a trabalho voltam a se intensificar e despertar novamente a sensação de que havia algo errado. A quadrilha permanecia atuando e Val seguia comandando suas ações. Enquanto mantinha-se distante da suspeita pública em Monteiro, seu nome corria todo o Nordeste. Além dos assaltos que aterrorizava a todos, a guerra contra a família Simião Pereira passou a ser prioridade. Além de ser composta por membros que ocupavam profissões honrosas, essa família era formada por agropecuaristas e fazendeiros de destaque na cidade, com alto poder aquisitivo e ampla influência na região oeste do Estado. Contudo, também era controversa, pois sabia-se que alguns dos seus membros praticavam negócios espúrios que iam desde roubo de gado à tomada de propriedades de pequenos agricultores, passando por práticas de pistolagem e execução de desafetos ou quem oferecesse algum tipo de resistência a seus assédios, relativizados ou sequer investigados. Dotados de relativa impunidade e de recursos suficientes para financiar projetos de poder bem maiores que os dos grupos locais, eles decidem concorrer a cargos políticos em Caraúbas, o que os colocaria definitivamente em rota de colisão com os Benevides Carneiro, que sempre lutaram por ocupar os espaços de governança da cidade para dar continuidade ao legado de Antonino Carneiro. Não bastasse o fato de Valdetário nunca ter perdoado Elinaldo daquela acusação de roubo à usina de beneficiamento de castanha, que o insultou sobremaneira, João Simião Pereira, médico da cidade, acusa o bando de Val de ser o responsável pelos roubos de vacas e bois que estavam aumentando nas propriedades rurais de Caraúbas e dos municípios próximos. A acusação foi intolerável. Não havia nenhuma prova da participação dos Carneiro nessa questão e nenhum ponto de ligação entre aquele tipo de roubo e os alvos bem definidos da quadrilha montado por Valdetário Carneiro. Essa era mais uma maneira encontrada pelo médico João Pereira para salvaguardar a idoneidade do seu grupo familiar que, sim, tinha histórico com aqueles tipos de crimes e precisava manter-se acima de qualquer suspeita a fim de alcançar seus objetivos eleitorais, que passava por atingir seus concorrentes atacando aqueles que eram, do ponto de vista da reputação, os 45 mais vulneráveis. Estabelecia-se, assim, uma rivalidade que, tal como aconteceu com os Fernandes, custaria um preço alto demais para ambos os lados, fazendo a convivência e o ambiente serem absolutamente sofríveis, como faz saber o poeta (MEDEIROS, 2019a, p. 12): Li que Valdetário teve Felicidade e tristeza, Contemplou amor e ódio, Viu trevas da dureza. Jogou lágrimas pelo chão Igualmente aos Simião Sofreu com toda certeza. Não era do feitio de Valdetário atuar contra pessoas comuns da região. Conhecido pela boa relação que mantinha com os pequenos proprietários de terra do interior, aquele boato levantado por João Pereira, além de ser uma afronta, também constituía um absurdo do ponto de vista do histórico de ações empreendidas pelo bando chefiado por Val. Irritado, ele insiste em negar o envolvimento nesses casos por saber quem estava por trás dos crimes. Para ele, estava claro que o responsável por tudo aquilo era o próprio João Pereira, apontado como responsável por comandar outra quadrilha de saqueadores que atuava na região e intimidava pecuaristase agricultores. A injustiça praticada ganha maiores contornos para se transformar em uma ofensa imperdoável e eleger João o mais novo inimigo mortal. A cada acusação de roubo, o ódio contra os Simião Pereira aumentava e as ameaças de vingança começam a ser ainda mais frequentes. A antipatia entre as famílias torna-se cada vez mais incontornável. Com a intermediação de Luiz Benevides Carneiro, então chefe da Família Carneiro, e com a promessa da parte de João de cessar com as acusações e com aquela implicância sem justificativa com Valdetário, a batalha entre os grupos tem uma trégua. O acordo, entretanto, dura pouco tempo, pois Val e seu bando descobrem a existência de um informante de João Pereira, próximo à porteira de um sítio na zona rural de Caraúbas, onde a quadrilha costumava se esconder. O informante tinha ordens para avisar à polícia sempre que percebesse no local a presença daqueles. Era a traição que marcaria o fim da paz antes conquistada, que desembocaria em assassinatos e tentativas de assassinatos de ambos os lados e na intimidadora, que se tornou pública, ameaça de Valdetário: “para cada Carneiro morto, dez Simião serão assassinados”. 46 Com a ajuda desse informante, a polícia ganha um forte aliado na busca daquele que parecia impossível de se prender, até que, em uma das perseguições, Val é preso junto com o ex-policial militar Manoel Haroldo Florêncio de Moraes, o mais novo integrante da quadrilha de assaltantes a banco, que havia atuado com João Pereira nos roubos de gado e sabia da inocência do seu mais novo chefe. O militar havia escolhido integrar o bando rival porque se sentia traído pelo seu antigo chefe, porque este o havia desamparado durante sua permanência na cadeia meses antes. Sem saber que Valdetário e Haroldo estavam juntos na mesma cela, na extinta Penitenciária João Chaves, o médico liga para o antigo comparsa a fim de propor a realização de um novo crime: a execução de Val. O acordo prévio era de que se retornasse à ligação às 16h do mesmo dia em que houve o contato, para acertar os valores que seriam pagos e os detalhes da morte, mas Haroldo estava decidido a manter-se fiel a seu novo chefe, com quem havia combinado que quem atenderia a ligação seria o alvo da encomenda. No horário marcado, Valdetário fica a postos para atender a chamada no lugar do ex- policial e ouve o plano do próprio mandante sem se identificar. Concluída a conversa, Valdetário Carneiro se apresenta e o jura de morte. Pouco tempo depois, Val é resgatado por sua quadrilha durante uma viagem para uma audiência judicial em Caraúbas. No dia 23 de dezembro de 1999, escrevem Barbosa e Nascimento (2013), o médico é assassinado juntamente com uma enfermeira auxiliar. Os dois conversavam na porta de casa, em frente a praça São Sebastião, quando um carro conduzido por Valdetário, exímio motorista, e mais dois homens, passa pelo local e dispara, atingindo João, então com 46 anos de idade, com 38 disparos de armas de grosso calibre, como fuzil AR-15 e metralhadora. O médico morre no local. A auxiliar, à época com 36 anos de idade, ainda é levada para o Hospital Regional Tarcísio Maia, em Mossoró, mas não resiste aos ferimentos e vai a óbito no dia seguinte. Ao ser preso em Pernambuco algum tempo depois, Francimar Carneiro, primo e braço direito de Valdetário, assume a coautoria do assassinato praticado por ele, seu primo, e o ex-militar Manoel Haroldo, agora com mais confiança entre os chefes da quadrilha. Em 24 de julho de 2003, o programa Linha Direta, telejornal investigativo- policial da cadeia nacional da Rede Globo, detentor de grandes índices de audiência durante a primeira década dos anos 2000, dedicou-se a retratar a história de 47 Valdetário e esse homicídio. Durante os 23 minutos e 53 segundos da edição, hoje disponível no YouTube5, não há nenhum relato das ambiguidades que envolviam, e ainda envolvem, o bandido, tampouco alusões aos causos que delineiam outros lados de uma mesma história. As falas escolhidas e levadas ao ar foram de representantes das forças de segurança do Estado e do comprometedor Elinaldo Simião, o pivô da rivalidade sangrenta que se instituiu ente as duas famílias, que em sua entrevista transpareceu estar acima de qualquer suspeita. Nenhum integrante da família Benevides Carneiro foi convidado a falar, nenhum amigo, nenhum conhecido ou cliente daquele respeitado mecânico de antes; ninguém que pudessem dizer pelo criminoso aquilo que seus crimes impediam que ele dissesse, não em sua defesa ou para legitimar o que ele fazia, mas para acentuar que aquela biografia não cabia nas crônicas policiais ou jornalístico-policiais. Era uma linha direta com os preconceitos e as categorias de acusação mobilizadas pela moral hegemônica, não com a complexidade dos fatos e com a multiplicidade da pessoa humana que um criminoso permanece sendo. Nessa edição, Valdetário é descrito como chefe de uma quadrilha de alta periculosidade, que deixa rastro de morte, destruição e sangue por onde passa, impondo a lei do silêncio e do medo, sobretudo no que diz respeito à manutenção do seu próprio poder, imagem que seria construída ao longo de todo o programa. Ao reconstituir seus passos, o programa faz uma rápida menção ao homem Val que, antes de ser acusado injustamente do roubo da pampa e ser preso, era exemplar, dado às boas condutas, sem histórico de brigas ou confusões. A menção é rápida, típica de quem queria fazer daquela fase um hiato entre o que viria depois. Logo em seguida, por volta de 1 minuto e 38 segundos do programa, como que utilizando de uma conjunção adversativa biográfica, o apresentador, Domingos Meirelles, lança as bases para a sucessão de imagens e recortes que viriam em seguida para reforçar a vileza do mecânico e da sua família: “a família de Valdetário, os Benevides Carneiro, era famosa na região por uma série de crimes”. Quais crimes? Que passado? Com essa formulação genérica, tudo que dizia respeito à família condensava-se sobre aquele que fez de tudo para permanecer distante de um passado sangrento, enquanto mantinha às escondidas as grandes questões sociológicas suscitadas pelo caso. 5 Link para acesso à íntegra da edição: https://www.youtube.com/watch?v=UR6Jt_vWqac. https://www.youtube.com/watch?v=UR6Jt_vWqac 48 Sem especificar os crimes, sem historicizar os conflitos, sem o cuidado de preservar aqueles que nenhuma relação tinha com o passado e o presente errante, o apresentador deu as senhas para transformar uma família em quadrilha e cerrou as grades por trás das quais pretendia-se colocar Val. Foragido, ele era só mais um dentre tantos que poderiam surgir do pressuposto clã de delinquentes. Encurralado pelos próprios crimes que havia cometido e pelo cerco estigmatizante que se formou em torno de sua família, sua condenação estava determinada antes mesmo do seu julgamento, seu destino escolhido antes mesmo de esmiuçar sua história, sua pessoa reduzida a seus erros antes de ser compreendida. A quadrilha, constituída por uma parcela da família, virou o seu todo, distorção que se perpetuaria pelo uso corrente no Estado da alcunha “O Bando dos Carneiros”. O semanário não existia para dar a palavra a todos, porque era da sua natureza reproduzir aquilo que Lopes Júnior (2006, p. 354) chama de “imagens da superfície”; existia, pois, para dar continuidade ao mais do mesmo e atiçar outras indignações naquele cuja trajetória havia sido retratada unilateralmente, já que, “na maior parte do tempo, rádio, TV, cinema, exibem máscaras ou fazem tagarelar, em vez de permitir ver os rostos e deixar falarem as vozes” (MORIN, 2003, p. 231). Essa, que é uma pobreza estrutural, também é uma incapacidade de ouvir, de qualificar as pautas, de complexificar conteúdos, de perceber o que não é óbvio, de constatar o que não fazia parte dos pressupostos,de descobrir o que se esconde por trás das poses e descobrir-se, pois “dar a palavra pode significar, isolada ou conjuntamente, dialogar, questionar, permitir dizer tudo” (MORIN, 2003, p. 231), o que drena o poder dos processos de estigmatização ao reintroduzir no debate as polaridades que o constitui como tal. Quando fazem esses apelos à sensibilidade moral pública, fazendo desta a base e a justificativa para sua vulgaridade, as redações servem para confirmar aquilo que é óbvio e que já é sabido, mas presta-se ao papel de ser uma máquina potente de criar, procriar e multiplicar estigmas e identidades deterioradas. Seria diferente se, em vez de investir nos imaginários da barbárie, fizesse a distinção entre a prática criminosa e a pessoa humana com vistas a condenar sumariamente o crime, não o humano que, bipolarizado entre luzes e sombras, habilidades e defeitos, pode a qualquer tempo mudar de via assim como mudou quando transgrediu. Não foi isso o que se viu naquela noite, e o cordelista reclama em seus versos (MEDEIROS, 2019, p. 76): 49 Naquele dois mil e três, Em vinte e quatro de julho, Grande barulho se fez. A sua história incompleta, Saiu no Linha Direta, Em milhares de tevês Falou Domingos Meirelles, Fazendo apresentação. A TV Globo mostrou Imagens do valentão Ninguém ouviu os Carneiro, Naquele programa inteiro Faltou muita informação. Se o que se busca é compreender quem ou o que somos, por que e movidos por quais afetos fazemos o que fazemos, não é razoável que seja assim, afinal “compreender um ser humano significa não reduzir sua pessoa à falta ou ao crime cometido e saber que ela tem possibilidade de recuperação” (MORIN, 2017, p. 127). O que se impõe é uma gramática que não tenha como primeira e única opção a punição; uma gramática que conduza à compreensão e tenha algo a dizer que não se restrinja à condenação sumária, ou seja, o que se impõe é a coexistência de uma noção apurada de justiça que se preocupe em ser devidamente aplicada e de um discernimento sofisticado da humanidade daquele que se tornou passível de uma pena, coabitado por nossos duplos. Isso pode evitar que nós ou outros, os julgadores, tornemo-nos implacáveis como implacáveis são aqueles que julgamos. Os humilhados, os odiados, as vítimas, não devem transformar-se nos que humilham, odeiam, oprimem. Eis o imperativo ético. Resta o caráter atroz do mal que se situa além do perdão e de todo castigo, o mal histórico que não cessa de devastar a história da humanidade. Esse é o desastre da condição humana. Quando as palavras "magnanimidade", "misericórdia", e "perdão" são esquecidas, ignoradas, e reclama-se um castigo que é vingança e aplicação da lei de talião, progride a nossa barbárie interior. [...] Favorecer a possibilidade de regeneração é mais do que nunca necessário neste mundo impiedoso. Há, na ética do perdão, uma ética da redenção. (MORIN, 2017, p. 132) [aspas do autor]. Entre uma vingança e outra, entre um desafeto e outro, o famigerado “bando dos Carneiros”, como passou a ser chamado em uma espécie de generalização que operava no sentido de implicar todos os parentes, segue levando temor à segurança das cidades assaltando bancos e interceptando carros-fortes. Seus feitos e seu 50 potencial bélico assustavam até mesmo as forças policiais federais que se percebiam frágeis ante aquele imenso poder de ataque que o grupo demonstrava e fazia questão de demonstrar nas emboscas e nos confrontos diretos. A partir de cada incursão e de cada aparição, Valdetário e seus homens conseguiam mostrar uma obstinação rara e mobilizar as atenções midiáticas e os aparatos de segurança locais, regionais e nacionais, como poucos haviam feito até aquele momento. O pânico generalizado passou a ser acompanhado de uma sensação de insegurança também generalizada, para quem viajava e morava no interior do Nordeste brasileiro. O que começou como uma vingança contra desafetos pessoais, com a projeção nacional ganhou maiores proporções, ampliando-se para a formação de uma quadrilha que direcionaria suas ações a todos aqueles que representavam o poder e os desafiariam como poucos haviam feito até então, pela ousadia, pelo poder de fogo dos membros, pelo ineditismo das suas emboscadas, por assaltos a grandes instituições financeiras e execuções que demonstravam sempre estar um passo à frente do trabalho de inteligência das polícias. Mas à medida que crescia e mantinha em curso o que havia extrapolado os limites das rivalidades familiares, foi se instituindo um movimento de dimensões políticas, sociais e culturais cuja extensão transformaria Valdetário Carneiro em um ícone envolto por enigmas que, instigados pelo sensacionalismo jornalístico, fariam seu nome povoar a imaginação popular. Ele, que precisou salvar a si salvando suas circunstâncias, que precisou encontrar jeito para ser livre, que fez das suas habilidades meios pelos quais pôde reagir à injustiça, mesmo que de modo reprovável, transformou a realidade que parecia incontornável, mudou o quadro que parecia inexorável, criou o próprio script, reposicionou as percepções, trocou os papeis que cada personagem deveria ocupar na tragédia que estava escrevendo, dirigindo e protagonizando com sua vida arredia, com sua revolta inveterada, com sua calamidade, com sua indignação dilacerante, seu suplício angustiante e seu destino lastimável. 51 2. 2 – O outro lado de um roteiro que não foi apenas triste Na contramão das informações que circulavam à exaustão, lendas começaram a se multiplicar sobre a quadrilha e principalmente sobre seu chefe, conferindo ao bando lugar no folclore do povo que, dividido entre o medo e a admiração, entre a objetividade das notícias e as fabulações possíveis a partir das crônicas do dia a dia que lhes chegavam, via-se diante de um caso de muitas faces. Caraúbas inteira ficava sabendo dos seus feitos pelo noticiário na mesma proporção que se proliferavam narrativas e causos de pessoas que, ao encontrar com Val, foram surpreendidas ao se depararem com um homem cordial e em nada parecido com aquele cuja reputação piorava a cada nova notícia e ação dos seus comparsas, o que fazia com que ele, Valdetário, começasse a se tornar uma figura enigmática, como se aquele que agia nas incursões criminosas fosse completamente outro nas relações interpessoais. Um desses casos é descrito por Paulo Nascimento e Rafael Barbosa (2013,p. 19-20). É um causo famoso na cidade do oeste potiguar, protagonizado pelo bandoleiro e uma senhora de idade avançada que caminhava à beira da estrada sofrendo com o forte calor do sertão nordestino: — Tá indo pra onde, minha tia? — Caraúbas mesmo — Então suba aqui, que eu lhe dou carona. Tô indo pra lá também. — Ainda bem que o senhor me ajudou. Morro de medo de andar por aqui, por conta do tal de Valdetário. Tenho muito medo dele. — Qual a razão disso? Dentro de uma Silverado D-20, caminhonete preferida de Val e cuidada por ele nos mínimos detalhes, a passageira prossegue descrevendo algumas das façanhas aterrorizantes do “mais terrível filho” de Caraúbas, a fim de justificar seu pânico. A carona e toda a conversa se desenrolam sem que a idosa percebesse que seu benfeitor era, na verdade, aquele a quem ela, segundo os rumores e as notícias, mais deveria temer. Ao final da viagem, diz o relato, o motorista saca do bolso uma porção indefinida de dinheiro vivo, com cédulas de R$ 50, 00 e R$ 100, 00, e entrega à senhora que acabara de socorrer de uma caminhada desgastante, arrematando: 52 — Não tenha medo de Valdetário, não. Que esse homem sou eu e não faço nada do que já contaram para a senhora. Entre o motorista e sua carona, estava em curso a mais banal das normalidades e a manifestação de um múltiplo que era impensado. As impressõesà distância, as elaborações simplórias e as reações socialmente induzidas acerca das incursões de Valdetário como um facínora não combinavam com tudo isso. Como aquele homem generoso poderia ser tão vil, como diziam àquela senhora e como o noticiário induzia o pensamento coletivo, já que, além de bondoso, o homem foi cortês ao não ter esboçado nenhuma agressividade e nenhuma tentativa de se impor pela ameaça diante de uma descrição com o potencial de provocar seus ressentimentos e mágoas? Ele até poderia ser tudo o que diziam, quando executava seus planos e seus assaltos, mas não era sempre aquele, porque outras forças confluíam para que o bandido não fosse apenas bandido e tivesse olhos para ver quem, à beira da estrada, precisava de compaixão. Munida das ferramentas que possibilitaria identificar logo que encontrasse o temível criminoso, aquela senhora foi incapaz de reconhecê-lo, pois aquilo que se realizava, a vida em fluxo contínuo, escapava às detecções superficiais que podem oferecer os moralismos do estigma. A realidade se sobrepôs à expectativa e Val, naquele encontro, voltou a ser um simples homem porque contra si havia apenas elucubrações que em tempo real não se confirmavam. No livro Causos de Caraúbas (GURGEL, 2017, p. 203-204), outro momento semelhante ao anterior. Ao invés de o destino ser Caraúbas e do passageiro ser uma senhora sem nome, que não esboça reação ao descobrir o nome do motorista benevolente, a personagem é um senhor chamado Manoel, a caminho do centro da cidade de Apodi/RN. Conforme Gurgel, Valdetário seguia viagem pela Zona Rural de Apodi quando, de repente, viu um senhor alquebrado acenar pedindo carona. Prontamente estaciona o carro, desce, abre a outra porta e facilita a entrada do senhor no veículo. Feito o embarque, os dois seguem viagem no frescor do ar- condicionado do automóvel potente. Confortável e admirado com a caminhonete que para ele (acostumado ao mais simples) era um luxo, o passageiro puxa conversa: — O senhor vai pro Apodi? 53 — Vou sim. Vou tratar de negócios no banco. — O senhor tenha cuidado. Se vai tirar dinheiro no banco e andando nesse carrão, aqui por essas bandas, há muita gente perigosa por aí. Tem um tal de Valdetário Carneiro de muita fama na região que pode ser um grande risco, principalmente para quem é de fora. — Obrigado, eu vou ficar atento. E o senhor não tem medo de estar sozinho nessa beira de estrada? E se de repente lhe aparece o tal do Valdetário Carneiro? — Ele que venha! Um homem nasceu pra outro. Chegando ao destino, o carona resolve fazer mais uma pergunta enquanto agradece o favor feito por aquele motorista de bom papo, aparência serena e acima de qualquer suspeita: — Obrigado por tudo, senhor. Vá com Deus. Mas como é mesmo o seu nome? — Eu sou Valdetário Carneiro. E o senhor, como se chama? — Eu sou o finado Manoel. Mesmo tendo o controle da situação, Valdetário não quis usar da sua posição para contrapor Manoel e conduziu a conversa a seu modo. Confortáveis, os dois homens estavam livres de amarras e a relação podia fluir sem as ressalvas abstratas da estigmatização. Eram de fato dois homens em prosa, não um homem e um bandido, um bandido e um homem; em última análise, era o fracasso do estigma. Nessas duas caronas, não se interpuseram o remorso, o desejo de vingança, possíveis ressentimentos contra uma cidade e uma região que em grande medida o havia rejeitado. Pelo contrário, houve o risível e um surpreendente contracenar de personagens que pelo contato direto foram levados a confrontar a imagem geral construída para Valdetário e o convívio com a pessoa, não mais com suposições. Val poderia ter aproveitar da situação, para justificar sua conduta e seus atentados terceirizando responsabilidades ou até mesmo imposto determinado autoritarismo que certamente lhe conferiria alguma sensação de poderio e grandeza. Não o fez e ainda manteve o anonimato em boa parte do tempo para não assustar, para não interromper a ajuda, para não atravessar a conversa. Ali, o homem das armas, apresentado como atroz, foi somente José Valdetário Benevides, o sertanejo 54 de boa prosa e de olhar atento a quem padecia sob o Sol do seu sertão, cujos sofrimentos ele conhecia de perto por tê-los experimentado. Duas narrativas, duas pessoas, um mesmo protagonista e dois finais semelhantes que falam sobre um homem surpreendente que, mesmo carregando nos ombros a culpa e o descrédito, escapava dos filtros e não se deixava capturar por instrumentos morais pré-estabelecidos; dois registros para recontar uma mesma história, escrever uma mesma vida, descrever uma mesma experiência, de sorte que, em contraposição ao que faz a estigmatização, com essas variações, o sujeito do desvio pode então ter a seu favor pontos de vista que se combinam a fim de dizer que ele, o desviante, não cabia nas delimitações da retidão absoluta. Duas cenas e um único ator dirigindo o próprio roteiro com aquelas coadjuvâncias circunstanciais. Com aquela senhora à beira da estrada e com o senhor Manoel a caminho de Apodi, Valdetário alargou as perspectivas e mobilizou aquilo que parecia sedimentado — sua identidade. Outro causo amplamente conhecido em Caraúbas diz que, ao invadir uma das agências bancárias com seus cúmplices, Valdetário Carneiro anuncia mais um assalto e ali demonstrará mais uma vez certa compaixão. Dentro do banco, havia um simples produtor rural que havia concluído uma venda de uma das suas vacas e precisava depositar dinheiro da venda. Nervoso com a situação, com a quantia em mãos pronta a ser entregue aos criminosos, o homem é surpreendido pelo chefe do bando que diz não querer fazer mal àquele trabalhador rural, pelo que ordena que o bancário do caixa receba a quantia, conclua o depósito e entregue o comprovante da conclusão ao depositante. Logo em seguida, exige do caixa que este repasse a ele os reais depositados, configurando o assalto à agência, não ao pequeno pecuarista que, desse modo, sairia sem prejuízo nenhum (BARBOSA; NASCIMENTO, 2013, p. 66). Os Caraubenses também têm conhecimento de outro episódio bastante peculiar (BARBOSA; NASCIMENTO, 2013, p. 71) que teria acontecido com um caminhoneiro, nas proximidades de Olho D’Água dos Borges/RN. Valdetário seguia caminho com seus comparsas. De repente, encontra o viajante à beira da estrada, com o veículo quebrado. O fora da lei, que não foi reconhecido pelo homem e que mantinha viva sua paixão por mecânica de automóveis, viajava em sua caminhonete com uma caixa de ferramentas que utilizava para urgências. Encosta o veículo, aproxima-se, inicia a conversa e oferece ajuda: 55 – Qual foi o problema, meu amigo? – O caminhão quebrou e não sei o que foi. – Posso tentar ajudar. Habilidoso e excelente profissional que sempre foi, Val leva poucos minutos para identificar o problema e consertar o caminhão. Perguntado sobre quanto custava aquele serviço, dispensa o pagamento, mas estabelece uma condição: – Em qualquer lugar que você chegar diga que seu carro foi consertado por Valdetário Benevides. O caminhoneiro cumpriu o combinado na primeira cidade que estacionou, ironicamente, Caraúbas. Aqueles que ouviram sua história quase não acreditaram no que ouviam e intervieram na história, informando ao homem quem era, ou havia se tornado, aquele homem que consertara seu caminhão. Ao ouvir o que diziam e avaliar o que aconteceu, ele quase não se conteve em pé por ter estado tão próximo àquele perigo do qual tomava conhecimento depois de tê-lo vivido. A verdade é que, em direções opostas e por razões diferentes, o episódio tornava incrédulos quem o viveu e quem passou a ouvir o relato do encontro, afinal, como poderia ser possível encontrar-se com um criminoso tido como absolutamente perigoso e não sofrer nenhum tipo de trauma, perda ou violência?Como o maior inimigo da segurança de todos poderia ser tão solícito? Histórias como essas passaram a ser tão frequentes quanto a proliferação de acusações e notícias sobre aquele que, a cada nova aparição e cada novo crime, tornava-se o principal inimigo da segurança pública do Rio Grande do Norte e do Nordeste. Por onde quer que ele passasse, registros assustadores eram feitos acompanhados de narrativas intrigantes, provenientes desses encontros imprevistos que complexificavam sua imagem e abriam margem para que os observadores ficassem confusos acerca do que pensar sobre um homem que se mostrava implacável no crime e, ao mesmo tempo, solidário na rotina diária, no contato direto com as pessoas, como se precisasse mostrar e afirmar qualidades que seu percurso criminal obscurecia ou interditava ao grande público. Esses seus encontros e atos bondosos criavam as condições para a mitificação da sua identidade e do seu itinerário, que, paradoxalmente, logo se mostraria nobre em proporções equivalentes à aura de um homem inteiramente maléfico que as mídias veiculavam. 56 Importa menos descobrir se esses encontros de fato aconteceram ou se são produtos do imaginário popular do que se debruçar sobre que tipos de reações causam, sobre como ajudam a compor o imaginário das pessoas, como auxiliam na recontagem da própria história da cidade e do povo, que afetos alimentam, que aspectos da ordenação social revelam e incitam, como reverberam na região e quais impressões suscitam, porque aqueles causos dão causa a efervescências culturais, constroem símbolos, resistem ao tempo, povoam as memórias e embalam conversas. Ao contar e recontar esses encontros lendários, as pessoas revivem a história e a escrevem a seu próprio modo, regressam ao passado para trazê-lo ao presente e carregá-lo até ao futuro, de modo que, assim, reelaboram e perpetuam imagens que, uma vez transmitidas, podem ganhar novos traços e outras cores. Até hoje é comum ouvir na cidade relatos de um Valdetário completamente diferente daquele que aparecia nas suas intentonas. Ele costumava ajudar todos os pequenos agricultores, donos de sítios e propriedades onde se escondia com seu bando, distribuindo dinheiro aos que padeciam de alguma necessidade e viabilizando resoluções de problemas que aqueles mais pobres não conseguiam solucionar. As ajudas iam desde o fornecimento de mantimentos para custear a estadia dos seus homens ao pagamento de tratamentos médicos dos filhos doentes das pessoas, passando pelo pagamento de dívidas que elas tinham com credores dos mercadinhos locais e outros tipos de vendedores, de sorte que, apesar de ser completamente temerário em termos policiais e no que diz respeito às especulações do que seria capaz de fazer, ter aquele grupo hospedado em suas casas não era de todo um desprazer, depois que seu líder e seus liderados se ambientavam. Aos poucos, essa dicotomia entre o bandido dos grandes assaltos a bancos que não se curvava a ninguém e o caraubense que mantinha uma relação amistosa e solidária com as pessoas da sua região, distribuindo das riquezas que roubava para socorrer os que estavam em sofrimento foi crescendo, e o mistério em torno de quem era aquele homem e do que verdadeiramente ele era capaz de fazer ganhava o imaginário do povo que, a partir dessas ambiguidades, também foi formulando sua própria opinião sobre Val, estabelecendo um contraponto à narrativa predominante da mídia e à percepção geral dos demais. As lendas, os causos, as narrativas do povo sobre ele e seu carisma cativante narrados por aqueles que haviam tido a oportunidade de conhecê-lo pessoalmente enquanto fugia se multiplicavam na mesma proporção que o noticiário e suas ações concorriam para a criação da 57 imagem de um homem impiedoso, o que nunca se consolidou completamente entre os caraubenses. Esse paradoxo, que ainda perdura entre aqueles que falam sobre o assunto na cidade, era tão intrigante quanto as próprias artimanhas do bando. Na busca por entender isso, JH Primeira Edição fez uma série de reportagens para ouvir pessoas e personalidades que pudessem falar sobre suas percepções acerca daquela figura que escapava das classificações apressadas e que não cabia nos estereótipos, cujas ações haviam sido responsáveis por estabelecer um divisor de águas na região oeste do Estado. O interesse era identificar traços que pudessem ajudar a entender a mente e a pessoa por trás de toda a agitação causada. Uma das pessoas mais significativas entrevistadas foi o ex-prefeito Luiz Augusto da Cruz, no ano de 2009, que havia assumido o cargo por causa do assassinato do titular, Aguinaldo Pereira Simião, executado pelo bando de Valdetário. Nessa entrevista, mesmo tendo o destaque que tinha na cidade por ter ocupado o seu mais alto cargo e ter ciência do que Val havia feito a seu companheiro de mandato, justifica o motivo de tê-lo ajudado afirmando que ele era um homem cheio de qualidades e virtudes. Ao avançar na sua justificativa e sobre a experiência que teve ao ter de lidar com a quadrilha no auge das suas operações, Luiz Augusto conta mais duas histórias. A primeira diz respeito a uma tentativa de assalto que Valdetário Carneiro faria a única agência do Banco do Brasil na cidade de Caraúbas. Seria a segunda vez que o bando saquearia a agência. Ao ligar para o político a fim de avisar sobre o que pretendia fazer e pedir que ele não se deslocasse ao local naquele dia para não correr risco de ser ferido, Val recebe o apelo de Luiz para que ele não fizesse aquilo, pois, concretizado o segundo assalto, a superintendência do banco certamente retiraria a agência da cidade, o que acabaria prejudicando boa parte dos caraubenses, posto que aquele banco era a única fonte pagadora e recebedora do município. 58 Figura 9: ex-prefeito de Caraúbas sobre sua relação com Valdetário Fonte: JH Primeira Edição, n° 1.146, ano 4, 19/03/2009 Transigente ao apelo e levando em consideração os argumentos do prefeito, Valdetário Carneiro desiste do plano sob a condição de receber a quantia de R$ 15 mil que, além de servir para comprar combustível e alimentos que fariam sua quadrilha dar continuidade a suas empreitadas, era uma quantia inferior àquela que poderia ser subtraída do banco. O prefeito pagou e o assalto não ocorreu. A bem da verdade, angariar grandes quantias a fim de ostentar luxo ou riqueza não era o objetivo do chefe dos Carneiro. Segundo o ex-prefeito, o próprio Valdetário, a quem Luiz chamou de “espatifado” na mesma entrevista, costumava dizer que “dinheiro em suas mãos não durava dois dias”. Os grandes montantes assaltados estavam mais a serviço da sua empreitada obstinada contra o sistema que o havia massacrado e do socorro dos desfavorecidos do que da sua ganância. Luiz Augusto da Cruz ainda conta ao JH outro episódio entre ele e Val, no qual pôde constatar virtudes que o ex-prefeito passaria a reconhecer e admirar. Ele narra que alguns dos integrantes do bando estiveram nas mediações de Caraúbas em busca de carne para um churrasco que pretendiam fazer. Para conseguir, mataram dois bois e os conduziram mortos para o esconderijo onde os demais estavam alojados. Ao ver aqueles bois, Val estranhou e ligou ao prefeito a fim de obter detalhes sobre a quem pertenciam o gado e como havia ocorrido a ação. Luiz revela a Val que os bois pertenciam a um parente, pequeno pecuarista caraubense. Imediatamente, o chefe do bando ordena que um dos seus homens ressarcisse a 59 quantia correspondente aquele roubo a Luiz Augusto que, por sua vez, seria o responsável por devolver ao pecuarista prejudicado. A quantia, relata o ex-prefeito, foi muito generosa, afinal, diz Luiz, Valdetário “não aceitava que um pobre tivesse prejuízo”. Esse era e é o espectro em torno de Valdetário Carneiro e sua história.Os moradores da cidade, apesar das hesitações advindas dos tabus que envolvem o tema, não demoram a reconhecer que ele era realmente uma pessoa diferenciada, um fora da lei que oferecia mais riscos aos grandes e aos donos do poder do que a eles, caraubenses comuns, que foram seus vizinhos, seus conhecidos, seus amigos, seus clientes. A memória desses encontros, dessas atitudes de Val, desse bandido que mostrava não ser exatamente um perigo para aqueles que com ele conviviam, reavivada todas as vezes nas quais um novo causo vem à tona ou em que o jornalismo se detém a reportar mais do que uma folha corrida de crimes, foi e é responsável pela incapacidade de fazê-lo caber em uma única classificação. Havia, portanto, uma distância substancial entre o discurso moralizador e hegemônico, que reprovava as ações de Valdetário e da sua quadrilha, e as experiências que as pessoas mais simples haviam tido com eles. Val não se encaixava em nenhuma classificação unitária, isto é, qualquer tentativa de enclausurá-lo em uma categoria logo se mostrava em vão, pois era cada vez mais difícil esquadrinhar sua personalidade e torná-la estática. Ele movia-se, e com ele moviam-se e mudavam seus instintos, suas decisões, suas escolhas, seus modos de ser e aparecer ao público, tornando-o uma figura ambivalente para a opinião geral e para a compreensão mesma de quais eram suas reais intenções: queria só vingança ou tinha algo mais a dizer ou fazer pelos seus? Em seu polêmico livro Bandidos (2017), que inaugurou um novo ramo na historiografia ao se debruçar sobre o banditismo, Eric Hobsbawm apresenta e interpreta diversas personalidades de diferentes lugares e de variadas culturas do mundo que se notabilizaram através de crimes, mas, mesmo assim, passaram para a história como sujeitos representativos de uma causa ou de valores que conseguiram cativar as atenções, o imaginário e a respeitabilidade daqueles que representavam ou protegiam. O historiador inglês sustenta que são três os tipos de bandidos dessa natureza: os heróis, os vingadores e os líderes de uma revolução. Sua análise perpassa o lendário Robin Hood, a quem ele chama de “ladrão nobre”, por roubar dos ricos para distribuir aos pobres, até Lampião e os cangaceiros, 60 “homens que provam que até mesmo os fracos e pobres podem ser terríveis” (HOBSBAWM, 2017, p. 84), passando pelos expropriadores que roubavam para conquistar fundos aos revolucionários e às suas causas. O interessante, todavia, consiste em ler a história de Valdetário com as lentes do historiador inglês e perceber que o sertanejo caraubense não cabe exclusivamente em nenhum desses grupos, dado que tanto a vingança quanto a caridade compuseram seu percurso, fazendo-o ser um quarto para o qual a teoria deve se voltar para conceber essa mestiçagem e fazê-la ponto de partida para compreender a complexidade próprias de fenômenos que, em função da sua particularidade, prescindem da teoria, porque são fluxos contínuos e igualmente descontínuos de vida. É certo que “o banditismo desafia simultaneamente à ordem econômica, a social e a política, ao desafiar os que têm ou aspiram a ter o poder, a lei e o controle dos recursos” (HOBSBAWM, 2017, p. 21), e que não pode existir na ausência de ordens socioeconômicas e políticas que possam ser assim desafiadas, como existiam e podiam ser na Caraúbas daquela época. Valdetário Carneiro, por tudo que fez e pelo que representa para muitos dos que o conheceram de perto, está a meio caminho do herói e do vingador que se alternam nas suas relações com o poder e os poderosos, com seu povo e seus familiares, mas que não deixaram de proporcionar uma efervescência cultural, uma profusa cadeia de simbologias e identificações semelhantes àquelas que se multiplicaram, por exemplo, na literatura e no cinema através de Robin Hood, de Virgulino Ferreira da Silva e do Cangaço, como se esses acontecimentos se irmanassem na luta por encontrar um lugar no mundo e um modo para sobreviver e se desvencilhar dos próprios descaminhos. Trata-se de uma “auto-ética” (MORIN, 2017), que é uma arte de vida, uma arte para viver e, como tal, “não pode obedecer a uma regra estabelecida de uma vez por todas” (MORIN, 2017, p. 138), pois é uma autonomização em relação à moral hegemônica, às normas e às interdições da sociedade. É uma ampliação do próprio repertório moral, já que na moralidade tradicional a honra é determinada por aquelas normas e por aquelas interdições, enquanto que “na auto-ética a imagem de si é pessoal: é para si mesmo, em função das normas adotadas pessoalmente e, assumidas, que se deve preservar a honra” (MORIN, 2017, p. 99) que, uma vez maculada, Valdetário precisou reaver, sendo para uns aterrorizante e para outros admirável, além de ser o socorro necessário em momentos de desamparo, o que 61 intrigava e continuou a intrigar a todos que foram tomando ciência dessa sua variação: afinal, o que ou quem era Valdetário Carneiro? Devia ser temido ou respeitado? As dúvidas perduram e são reproduzidas pelas vozes que discursam sobre Val e as mentes que tentam entender seu legado. Figura 10: capa de jornal que reproduz as controvérsias em torno de Valdetário Fonte: O Mossoroense, n° 16. 806, 23/11/2014 O homem que roubava dos bancos e atentava contra os donos do poder era incapaz de perpetrar sofrimento aos que, como ele havia experimentado um dia, já sofriam demasiadamente pela pobreza, pelas condições precárias de vida, pela labuta extenuante ou pelo descaso público. Esse era outro tipo de ética demonstrada por Valdetário Carneiro: a ética do religar que opera no sentido de construir e manter uma ética da comunidade que, apesar de romper com as convenções morais, o mantinha vinculado a suas raízes, a seu povo, aos vivos que padeciam, naquilo que pode ser considerada uma ação moral que consiste em um “ato individual de religação; religação com um outro, religação com uma 62 comunidade, religação com uma sociedade e, no limite, religação com a espécie humana” (MORIN, 2017, p. 21). De acordo com Morin (2017), são três as fontes da ética: biológica, individual e social. Valdetário rompeu com esta última, da qual o ordenamento legal deriva, porém conservou e expressou a segunda dessas fontes à medida que se inscreveu em uma comunidade, em um nós, que o impulsionou à amizade e ao amor, levando- o ao altruísmo, de modo que tudo aconteceu como se ele “comportasse um duplo software, um comandando o ‘para si’ e o outro comandando o ‘para nós’ ou ‘para o outro’; um comandando o egoísmo, o outro comandando o altruísmo” (MORIN, 2017, p. 20), comandos que nascem da autodeterminação do indivíduo-sujeito que, em virtude das circunstâncias que deve encarar, assume o controle de tudo que pode acerca do seu destino e constrói ele mesmo alternativas para poder situar-se, visto que “não existe piloto automático em ética, a qual sempre enfrentará escolha e aposta e sempre necessitará de uma estratégia” (MORIN, 2017, p. 159). Ainda que essa ética do indivíduo que elabora para si os estratagemas que permitirão resistir a crueldade do mundo, que assedia a todos e a cada um, desde os próprios erros até os abusos aos quais as pessoas são submetidas por outros, não se coadune com a ética da sociedade, sua aparição, suas reivindicações, seus conteúdos, as turbulências que pode causar são reveladoras do que pode o homem e de seus predicados por vezes domesticados e enclausurados demais para poderem se exprimir de outra forma que não seja pela revolta, pela subversão da ordem, pelo desconsiderar dos limites impostos pelos regimentos e pelas regras implacáveis que, na tentativa de extirpar o mal, apenas o desloca, tendo em vista que “o bem e o mal nem sempre são evidentes e, às vezes, são falsamente evidentes. Comportam incertezas e contradiçõesinternas, ou seja, complexidade ética” (MORIN, 2017, p. 58) para a qual uma moral inclemente não está preparada. Foi o que sobreveio a Valdetário. Ele, que oscilou de uma extremidade a outra, de um tipo de pessoa a outro, e sobre quem deveria pesar o rigor da lei, enquanto mostrava ser um humano na sua inteireza ambivalente, dotada de múltiplas capacidades de resistir ao que lhe era opressor, seguia desafiando a inteligência das forças de segurança, confrontando o aparato legal e expondo a fragilidade daqueles que elegeu como adversários ou que se tornaram inimigos inevitavelmente por tentarem impedir seus planos, de modo que parar aquele homem e pôr fim a sua carreira era um imperativo. As polícias militar, civil e federal 63 foram mobilizadas. Todos os instrumentos de investigação e de busca passaram a ser utilizados para prender o bando que despontava como um dos mais difíceis de encontrar, tanto pelo alto grau de organização quanto pelo poder de confronto que demonstrava em suas incursões. Essa era uma percepção que Valdetário também tinha. Depois de uma vida de fugitivo intensamente errante, decide parar e refugiar-se no Estado do Maranhão com Silvana e o último filho, Gabriel, ainda de colo. Já havia conseguido dinheiro suficiente para viver tranquilamente sem se preocupar com o sustento dos dois (BARBOSA, NASCIMENTO, 2013). Antes de realizar o plano final, no início de novembro de 2003, os três refugiam-se no sítio Pau de Leite, na comunidade Serrote de Baixo, zona rural de Lucrécia/RN. Aquele lugar, o último refúgio escolhido para abandonar suas errâncias, seria o cenário para o desfecho de uma perseguição que, por uma questão de honra, interessava às forças responsáveis pela manutenção da ordem. A polícia se encarregaria da operação que mataria o homem e poria fim à rivalidade que havia ganhado contornos pessoais, isto é, corporativos. As circunstâncias da morte variam e as versões sobre os detalhes do cerco montado para capturar o fugitivo não são unívocas. Sabe-se, entretanto, que, próximo à data em que a fuga definitiva ao Maranhão aconteceria, pelo menos 5 parentes receberam uma carta anônima de um suposto policial que dizia admirar a família, avisando sobre um plano em curso para matar Valdetário naquele lugar e que sua fuga deveria ocorrer o mais rápido possível (VIANA, 2010). A missiva, que continha os nomes dos envolvidos no planejamento, gera desconfiança, afinal poderia ser parte do estratagema para encontrá-lo e armar uma emboscada para descobrir quais familiares eram seus cúmplices. Além disso, o esconderijo era desconhecido por todos e não era possível avisá-lo do que estava sendo planejado. As versões convergem quanto a isso. No mais, divergem acerca da abordagem e sobre os detalhes do confronto, na madrugada do dia 10/12/2003. 23 policiais civis e militares foram destacados para a operação. Ao chegarem próximo ao sítio, por volta de 1km, desligam as viaturas e seguiram a pé. À medida que cercam a casa, preparam-se para um possível confronto que poderia ocorrer a qualquer momento. Ao perceber a movimentação, um cachorro que estava no alpendre late compulsivamente, acordando Valdetário, que questiona quem estava ali. Os agentes respondem dizendo ser a polícia e que ele estava cercado. De acordo com os relatos formais, Val reagiu a tiros, e os policiais responderam na 64 mesma proporção. A primeira versão, contada pelo delegado Ridagno Pequeno de Lima, responsável pela diligência, atesta que o homem, em vez de sair pela porta, pulou a janela e seguiu disparando, de modo a ser atingido no local e, ainda com vida, sem nada a dizer, foi socorrido e levado ao posto de saúde da cidade onde estava o sítio. Figura 11: delegado responsável pelas investigações e Silvana Alves Fonte: Jornal de Fato, Mossoró, edição de 17/12/2003 A segunda versão, elaborada por Silvana Alves, documentada em livro (BARBOSA; NASCIMENTO, 2013, p. 140-141) e confirmada pelo laudo pericial testifica que o confronto de fato aconteceu, mas que foi mais longo do que fazia crer o depoimento de Ridagno e que a causa da morte foram três tiros que atingiram sua cabeça provocando um traumatismo craniano, informação antes omitida pelo delegado. Ela diz que, ao perceber a emboscada, Valdetário sai pela porta da frente disparando contra o pelotão com um fuzil em mãos. Durante o tiroteio, a mulher volta-se para seu filho na tentativa de protegê-lo com o próprio corpo. Enquanto atira, Val tenta fugir correndo casa a fora em busca de um lugar seguro. Ao vê-lo 65 correr, Silvana toma Gabriel nos braços e segue seu companheiro. Os tiros se intensificaram. Os agentes envolvidos insistiram e seguiram atirando até atingi-lo, o que provocou sua queda. Ao se aproximarem do homem atingido, mesmo rendido pelo ferimento e sem chance de revide, os policiais disparam os tiros que seriam os fatais. Silvana relatou que os policiais chegaram a apontar suas armas para ela e a criança. Isso assustou Valdetário que, ainda vivo, antes dos três tiros que o matariam, pediu clemência por sua mulher e filho se rendendo, disposto a se entregar sem complicações. Poupados, a namorada e o filho testemunharam a fúria policial desrespeitando o rito normal de uma prisão de um foragido. A ação, que a rigor deveria ser destinada à captura de um bandido na forma da lei, havia se tornado em uma trincheira de guerra para acertos de contas entre forças que há muito eram desafiadas pela ousadia daquele que, morto, serviria de prêmio ao Estado e às corporações que desde a irrupção de Valdetário foram constantemente desafiadas e expostas ao ridículo pela baixa capacidade de responder à altura o bando. As investigações foram concluídas sem que se chegasse a um resultado satisfatório à família Carneiro e aos moradores de Caraúbas, sobretudo porque as únicas pessoas que presenciaram e depuseram sobre o ocorrido estavam e estão em lados opostos e comprometidas demais com suas versões para serem tratadas como finais. As suspeitas persistem no tempo, assim como as dúvidas sobre o que de fato aconteceu naquela madrugada. Os jornais da época apresentaram as controvérsias, como pode ser visto nas manchetes destacadas, concluindo, inclusive, que sim, houve execução, assim como o fez a Gazeta do Oeste. Ambos os depoimentos confirmam que houve confronto, mas como este ocorreu e até que ponto permaneceu nos limites da legítima defesa continua um mistério, e as partes envolvidas, as mesmas que testemunharam o confronto, podem ser igualmente posta em suspeição por autopreservação de si e das suas narrativas. 66 Figura 12: capa da Gazeta do Oeste da edição que repercutiu o assassinato Fonte: Jornal Gazeta do Oeste, n° 6.475, ano 27, 11/12/2003. Couberam aos aplausos em massa ao corpo velado e à aclamação ao homem assassinado, que já havia se tornado símbolo para alguns e querido por muitos, as últimas homenagens, o lamento, o estupor por ver derrotado, sob a égide da desconfiança, da crueldade e da deslealdade quem, apesar de ter mostrado arroubos de maldade, exibiu exemplos opostos de lealdade, bondade e hombridade. 67 3. A CONDIÇÃO HUMANA ENTRE EXTREMOS: DESAFIO PARA O BEM-PENSAR Sou um dos fracos? Fraca que foi tomada por ritmo incessante e doido? Se eu fosse sólida e forte nem ao menos teria ouvido o ritmo? Não encontro resposta: sou. É isso apenas o que vem da vida. Mas sou o quê? A resposta é apenas: sou o quê. Embora às vezes grite: não quero mais ser eu!!! Mas eu me grudo a mim e inextricavelmente forma-se uma tessitura de vida. (Clarice Lispector) O homem é louco-sábio. A verdade humana comporta o erro. A ordem humana comporta a desordem. (Edgar Morin) Eu não queria ser o que fizeram de mim. (Valdetário Carneiro) A terceiraepígrafe deste capítulo é a transcrição da frase mais conhecida e reveladora de Valdetário Carneiro, dita em uma das muitas entrevistas que ele convocava pelo telefone a distância, principalmente com o falecido radialista e seu conterrâneo Otoniel Maia de Oliveira, que trabalhou a maior parte da sua carreira nos veículos de comunicação de Mossoró e destacou-se pela coragem de ouvir e emprestar seus microfones àquele que parecia tão inacessível quanto difícil de capturar6. Em Caraúbas e em toda a região oeste do Estado, por causa ao alvoroço que causava a cada fala pública, Val permanecia presente mesmo sem ser visto. Nas falas de Valdetário naquelas entrevistas, além de ameaças àqueles que continuavam a perseguir a ele e à família Carneiro, continham revelações e acusações feitas por ele mesmo contra seus adversários, que permaneciam desfrutando das suas liberdades apesar dos crimes e contravenções cometidos. Falar à rádio era a rara oportunidade de ser ouvido pelo maior número de pessoas possíveis, que só tinham acesso ao discurso oficial, e apresentar a própria versão de 6 Quando da morte do jornalista em 2015, um jornal de Mossoró fez uma reportagem sobre a vida e o legado do comunicador, fazendo o devido destaque para as entrevistas exclusivas que ele conseguia realizar com Valdetário. Link para acesso à matéria: https://mossorohoje.com.br/noticias/4691-veja- historia-do-radialista-e-vereador-otoniel-maia. https://mossorohoje.com.br/noticias/4691-veja-historia-do-radialista-e-vereador-otoniel-maia https://mossorohoje.com.br/noticias/4691-veja-historia-do-radialista-e-vereador-otoniel-maia 68 sua vida e dos fatos. À distância, o homem agitava a cidade, causava alvoroço, mostrava sua ousadia, sua inconfiscável autodeterminação, sua ausência de medo. Figura 13: capa de Jornal sobre as entrevistas de Valdetário Fonte: Gazeta do Oeste, n° 5.114, ano 23, 28/12/1999. Esse, que era o modo pelo qual o mecânico protegia a si daquilo que considerava difamações, também foi se constituindo como uma maneira para proteger a própria família, que se vulnerabilizava tanto por seu histórico quanto pela ascensão da quadrilha composta por alguns dos seus membros mais conhecidos, o que era o pretexto ideal para os inimigos dos Benevides Carneiro atacarem ou caluniarem desde os mais implicados às ações criminosas até àqueles que não tinham nenhuma participação no bando, naquela que seria uma ofensiva incessante para tornar os Carneiros absolutamente detestáveis, inviabilizando qualquer pretensão política. A confissão contida na célebre frase de Valdetário emerge desse contexto intricado e é a revelação de um homem às voltas consigo, com as consequências das suas escolhas, com suas culpas e vergonhas, mas também o lamento de 69 alguém que tinha consciência suficiente dos seus atos para entender que tudo o que havia acontecido não precisava ter sido como foi, por isso, pôde ter a lucidez para fazer sua autocrítica que, ao mesmo tempo em que atestava sua responsabilidade por seus erros, depunha contra os arranjos e as orquestrações que concorreram para a sequência de eventos disruptivos que foram se acumulando em sua trajetória: o desvio sobrevém sob o efeito de formidáveis correntes que se apoderam dos seres, de forças colossais que os envolvem e os desorientam como a aranha a sua pressa, e que conduzem insensivelmente os indivíduos aos extremos opostos de seu objetivo inicial (MORIN, 2013, p. 90). É preciso levar em consideração que “a luta fundamental da autocrítica é contra a autojustificação” (MORIN, 2017, p. 96), por isso constitui um erro crasso reduzir a vida do mecânico caraubense a seus crimes, porque, ao fazê-lo, ficam de fora os mais sutis (mas não menos profícuos) conteúdos da experiência de existir como humano. Val, que reconhece ter se tornado algo de muito ruim e elabora em público sua autoanálise crítica, trava também o combate contra a máquina cerebral que insistentemente opera para se inocentar, se legitimar e se promover na vida cotidiana e na vida pública, que “são feitas de autojustificações que se chocam cegamente entre elas” (MORIN, 2017, p. 96). Mesmo que movido pela raiva e pela obstinação de fazer frente a seus detratores, o caraubense que busca ter vez e voz para falar e denunciar é o mesmo que demonstra modéstia, autopercepção aguçada e senso de gravidade acerca dos seus feitos, de modo que os ouvintes podiam ouvir e presenciar alguém que, apesar de tudo, não havia perdido sua sensibilidade, sua humanidade e a consciência dos próprios erros. Sustentava ao mesmo tempo a imagem de homem frágil e imbatível. Era mais um contrassenso que aquele homem de difícil categorização oferecia ao debate e à opinião pública. Seus crimes falavam sobre sua criminalidade, não sobre sua humanidade; falavam da sua revolta, dos seus conflitos pessoais, das suas rixas e queixas, não de tudo que ele havia sido e do que passou a representar. Sua marginalidade era somente parte de um todo que foi se desvelando a cada passo, mas que não podia ser dissecado, porque ainda estava em reconstrução, ainda não havia se consumado, ainda não havia conseguido conjugar-se sendo plural. São as sutilezas 70 profundas do humano que se inscrevem na memória de um povo, e “é isso o que conta na vida: imprimir nossa maneira de ser no mundo” (ALMEIDA, 2016, p. 74). De um modo ou de outro, a contragosto ou não, pelas paixões avassaladoras, pelos filhos e amigos que o tiveram em alta conta por causa da grandeza com que sempre os tratou, até quando passou pelos piores momentos, pelas memórias que perduram e compõem a própria história de Caraúbas, pelo seu modo de reivindicar a honra e o respeito que lhe haviam sido tirados, pela maneira inédita com que se colocou à margem da lei, por seus paradoxos estimulantes, Valdetário imprimiu sua maneira de ser cravando seu nome para sempre na historiografia do Estado, suscitando afetos que resistem ao tempo e renovam-se cada vez que sua saga é narrada de uma geração à outra. O assaltante a que todos temiam e que impunha um pavor desmedido à segurança pública pelo que se noticiava tinha a capacidade de reconhecer seus defeitos, sua perversão e seu delírio por causa da cultura psíquica que sua autocrítica fez nascer, que convida “a estabelecer um diálogo entre as nossas múltiplas personalidades que se ignoram” (MORIN, 2017, p. 97). Esse é o ponto central do humano dual que se mostra a partir de Valdetário e denuncia a moral corrente como inclemente, já que “sempre quis ignorar que a duplicidade é um estado normal, constitutivo, e só quer reconhecê-la para condená-la” (MORIN, 2003, p. 139): a única moral que sobrevive à lucidez é aquela em que há conflito ou incompatibilidade de exigências, isto é, ao mesmo tempo uma moral sempre inacabada, enferma como o homem, e uma moral em problematização, em combate (interior, exterior), em movimento, como o homem (MORIN, 2003, p. 111). Para Conceição Almeida, que entende ser preciso redefinir permanentemente a condição humana para não a encerrar em clausuras conceituais, essa condição poderia ser compreendida como uma aventura marcada pela conjugação de três esferas: os determinismos, como aquilo que é da ordem do que está posto; as circunstâncias, como aquilo que nos é dado a experimentar na nossa história singular; e as escolhas, a arte estratégica de decidir entre determinismos e circunstâncias (ALMEIDA, 2017, p. 151). Ao colocar-se nessa aventura autonomizando-se e construindo seu próprio plano para decidir entre uma coisa e outra, Valdetário fez da sua jornada uma tela pela qual se pode apreciar, observar, 71 entender e criticar o humano, em cujas criações “há sempre a dupla pilotagem sapiens-demens no circuito bipolar” (MORIN, 2012a, p. 127). Ele, que não foi somente bandido e não foi somentevítima, que não foi apenas cruel, que não foi absolutamente virtuoso ou completamente mau, que oscilou entre um polo e outro, exprime com clareza a multiplicidade da espécie humana que se divide entre a ordem e a desordem, entre a loucura e a razão, entre a coerência e a ambiguidade, o equilíbrio e a desmedida, o acerto e o erro à medida que se situa e age no mundo. Sua violência lhe era tão própria quanto sua benevolência para com os desvalidos; seus rompantes de ódio lhes eram tão peculiares quanto sua parcimônia demonstrada em seus encontros fortuitos, de modo que essas antinomias partilhavam do mesmo “eu” chamado José Valdetário Benevides. Somos como o caraubense e ele é um dos nossos, partilhamos da mesma matéria constitutiva que possui suas gradações e suas maneiras de permanecerem escondidas, afinal, como lembra Edgar Morin, os germes das nossas loucuras estão escondidos em cada indivíduo, em cada sociedade, de modo que “o que nos diferencia dos outros é o maior ou menor controle, sublimação, dissimulação, transformação de nossa própria loucura” (MORIN, 2012a, p. 119). A rigor, o banditismo que é de todo repulsivo consiste em uma das várias manifestações daquilo que temos a oferecer, seja em estado concreto ou em potencial, pois “a realidade humana comporta, a despeito de qualquer consolo ou promessa de salvação, uma parte horrível que, embora mascarada, persiste” (MORIN, 2012a, p. 125). Desse modo, “paremos de sonhar o homem, paremos de fazer do humanismo uma religião: assim, ele não seria apenas um narcisismo generalizado ou hipostasiado. O homem só é grande na consciência que ele tem da sua miséria” (COMTE-SPONVILLE, 2008, p. 326). Nas palavras de Morin, a agressividade é camuflada ou ativa em quase todas as nossas atitudes; a agressividade em relação ao outro que uma insignificância transforma em inimigo, agressividade em relação às coisas: gostamos de ver malhar o ferro, esmagar e triturar a matéria, e a conquista do mundo traz a marca da triunfante agressividade humana; agressividade em relação a nós mesmos enfim (MORIN, 2003, p. 127). Sendo assim, “aquilo que deve morrer é a autoidolatria do homem, admirando-se na imagem pomposa de sua própria racionalidade” (MORIN, 1975, p. 72 199) que constrói monumentos à justiça, à moral apropriada, ao justo, ao inquestionável, ao correto, à retidão que ele mesmo considerou como tal sem perceber que ele, o próprio construtor, padece de vulnerabilidades que não lhe permitem obedecer à risca as regras formuladas por si mesmo. Resta como tarefa a ser exercida permanentemente, porque as pessoas metamorfoseiam-se em ato contínuo, denunciar essas vulnerabilidades para que aquilo que é propriamente humano seja tratado como tal e para que suas construções, por mais racionais e lógicas que sejam, não prescindam da consciência de que foram feitas por mãos errantes e nem tampouco sejam sobrevalorizadas ao ponto de torná-las superiores e senhoras absolutas do seu próprio construtor vacilante, inapreensível por completo. Exatamente por isso e por não haver razão para se supor que somente aqueles que finalmente cometeram um ato desviante têm o impulso de fazê-lo é que “em vez de perguntar por que desviantes querem fazer coisas reprovadas, seria melhor que perguntássemos por que as pessoas convencionais não se deixam levar pelos impulsos desviantes que têm” (BECKER, 2008, p. 37), posto que, “pelo menos em fantasia, as pessoas são muito mais desviantes do que parecem” (BECKER, 2008, p. 37). Pergunta reformulada, reformula-se também o problema do desvio e do erro incluindo em seu espectro aqueles cuja retidão os eleva à posição de juízes irrepreensíveis daqueles e das coisas que caem em desgraça, em um tipo de ingenuidade intelectual e intransigência ética que mais separa do que reúne, que mais afasta do que reintegra. O criminoso a que muitos temiam como um facínora e que era cassado pelas polícias como um bárbaro, amou, gerou filhos, formou famílias, estabeleceu e reafirmou vínculos, implicou pessoas nas suas empreitadas e as defendeu, foi deixando marcas na memória afetiva daqueles que tiveram oportunidade de conviver consigo, viveu uma história paralela àquela que corria pelos vários cantos do Rio Grande do Norte. Ele foi aquele que se pode depreender dos seus crimes, mas também foi um outro tão marcante e memorável quanto o primeiro, sem deixar de ser humano, sem deixar de ser Valdetário, sem deixar de ter sua dignidade. O humanismo ingênuo fundamenta-se no duplo contrassenso humano e inumano (MORIN, 2003), sem se dar conta que essas classificações não refletem a realidade da experiência do homem complexo. Essa noção precisa ser o ponto de partida para uma “ética da compreensão” (MORIN, 2017, p. 200) que se desdobra em uma resistência à crueldade do mundo, da vida, da sociedade e à barbárie 73 humana que pode ser detectada naquele que erra, mas também naqueles que observam o erro, afinal, “uma justa indignação pode conduzir à injustiça que ela condena” (MORIN, 2003, p. 206), sobretudo porque “sapiens está em demens e demens está em sapiens, em yin e yang, um contendo o outro” (MORIN, 2012a, p. 141): trata-se de um ser de uma afetividade imensa e instável, que sorri, ri, chora, um ser ansioso e angustiado, um ser gozador, embriagado, extático, violento, furioso, amante, um ser invadido pelo imaginário, um ser que conhece a morte e não pode acreditar nela, um ser que segrega o mito e a magia, um ser possuído pelos espíritos e pelos deuses, um ser que se alimenta de ilusões e quimeras, um ser subjetivo cujas relações com o mundo objetivo são sempre incertas, um ser submetido ao erro, ao devaneio, um ser híbrico que produz desordem (MORIN, 1975, p. 116). Somos um composto que, a exemplo da própria pessoa de Valdetário, não se reduz a um catálogo unitário; somos, assevera Almeida (2017, p. 148), um caso possível, um acontecimento chamado homem, uma forma de vida que atende pelo codinome de sapiens-sapiens-demens, pois assim se constituiu e assim pode ser de fato reconhecida pelo que possui de mais singular. É preciso afirmar e reafirmar essa condição para impor uma frente de pensamento que se oponha à face do homem escondida pelo “conceito tranquilizador e emoliente de sapiens” (MORIN, 1975, p. 116), a fim de se contrapor ao reducionismo sociológico e ao moralismo implacável que suprime a humanidade de quem erra em função do seu erro. Na saga caraubense não há nada que seja estranho a nós mesmos e às nossas sociedades porosas; pode ser assustadora e negativamente impressionante, mas é um pouco de nós que se revela em cada tristeza causada, em cada desvio, em cada ato de coragem, em cada obstinação, em cada má-sorte, em cada atitude reprovável, em cada alegria imprevista, em cada surpresa agradável e inconcebível. A tragédia de vida de um homem comum contém amostras do drama ao qual todos outros estão expostos e são vulneráveis pelas contingências, pelas indeterminações do caminho, pela desorientação das pulsões, pela instabilidade das emoções, pelos registros psíquicos da humilhação no corpo, na alma, na memória. O homem que não queria ter se tornado quem se tornou depois de sofrer as dores de experimentar tantas situações-limite foi o mesmo que, ao ter de responder ao que se impusera para lhe suprimir, mostrou recursos para sobressair-se. Por mais contestáveis que esses recursos possam ter sido, e foram, eles não deixam de 74 ser expressões da sua múltipla humanidade, da sua busca por encontrar em seu próprio repertório alternativas, saídas, ideias, métodos para reencontrar sua dignidade, e encontrou na potência de ser um duplo, como o são todos os homens. Tratá-lo meramente como um bandido e condená-lo ao ostracismo inclemente satisfaz as demandas sociais e morais que regem a convivialidade ao destinar ao criminososua punição, porém evidencia a pobreza da percepção e a incapacidade de enxergar naquilo que é aparentemente desprezível as digitais da espécie, o que é um tipo de tolice, haja vista que “a sabedoria da vida deve assumir a loucura da vida, que deve integrar a racionalidade numa louca sabedoria” (MORIN, 2017, p. 137). Essa sabedoria “só pode ser concebida como produto de uma dialógica em yinyang, entre razão e loucura. Exige a união da ética da compreensão com a ética da poesia e a união da poesia com a autoética” (MORIN, 2017, p. 141). O contrário disso são as certezas generalizantes — por isso enganosas — fornecidas pelo aparato moral do qual as convenções se valem para classificar práticas, pessoas, grupos, comunidades e experiências destoantes que emergem das relações mesmas constituídas por seres como nós, híbridos, dúbios, instáveis, resultado de entrechoques de emoções, afetos, memórias e vontades que nem sempre caminham na mesma direção e costumam mudar de percurso a qualquer momento. Dentre esses aparatos, o processo de estigmatização é um engodo exemplar. 3. 1 – O estigma como incompreensão da complexidade humana O estigma, enquanto uma marca que sinaliza determinadas práticas e indivíduos como inabilitados para aceitação social (GOFFMAN, 2019), certamente é o recurso mais utilizado, direta ou indiretamente, consciente ou inconscientemente, para fazer prevalecer as ordens vigentes e os regulamentos institucionais. Seu uso é a resposta que a normalidade referendada pelas convenções oferece à disfunção; é a outra face da admiração, a revanche da moral pública contra aquilo que pode representar perigo a própria regularidade das relações e contra aqueles que se desviam dessa regularidade. Quando se estigmatiza alguém, uma coisa ou uma prática, quem o faz parte do conjunto de valores que confere à maioria a posição ideal e a sensação confortante de pertencimento comunitário. 75 Uma vez impregnado desses valores, o sujeito passa a ser imagem-espelho do que deve ou não ser feito, e a construir suas aversões tendo sua posição como modelo para julgar os demais. Seu rigor passará a ser autocentrado e seu olhar para o outro intransigente, porque, no limite, o que está em causa é a proteção e manutenção daquele conjunto de valores aos quais cada um se apegou para alcançar o posto de aceitável, de modo que lançar uma pecha sobre alguém corresponde a marcá-lo para ser um de fora, para ser um a quem será vedado o direito de desfrutar de direitos e possibilidades cultivados por aqueles que ocupam o lugar privilegiado daqueles que não se desviaram das normas. Isso ocorre a partir de uma lógica que se retroalimenta do orgulho de fazer parte do grupo privilegiado e do autoengano de considerar que seu arcabouço moral é a única e suficiente régua para compreender adequadamente o humano. Não é, porque “não podemos escapar da dialógica sapiens-demens, pela qual se tece a condição humana” (MORIN, 2012a, p. 154), e qualquer tentativa de compreensão que parta de um parâmetro unilateral ignora essa dialógica que se desvela de variadas maneiras, em diferentes momentos, a partir de condicionantes que nem sempre são as mesmas. O estigma opera por generalizações, as quais os sujeitos devem se adaptar a despeito da complexidade que lhes é inata e induz variáveis cujas dimensões são compridas demais para caber em um conceito, que “é um pensamento morto, já que ele é, por definição, pensamento classificado” (BACHELARD, 1974, p. 88) que, ao ter de lidar com o elemento vivo ou com aquilo que se move e muda, perde sua eficácia à medida que permanece estático. O homem é, sustenta Bachelard (2009, p. 140), “um ser a imaginar”, pois é aberto. como abertas são suas possibilidades de ser segundo os duplos que nele operam. Tentar classificá-lo unitariamente e tornar essa classificação definitiva, seja por quais razões forem, implica em colocar-se à disposição para construir cercas mal-acabadas, por cujos espaços entre um arame farpado e outro passarão o que essas mesmas cercas não podem delimitar por completo, afinal, defende Morin (2003), o “eu” é um mosaico, uma arquitetura sobre a qual só poderemos ter uma noção mais próxima da realidade se estivermos dispostos a desfazer delimitações, refazer, amplificar, apurar nosso olhar para enfim ver outros ângulos das nossas muitas colagens, o que é impossível à estigmatização. A estigmatização produz imagens que mantêm os estigmatizados circunscritos aos traços definidos a priori, como se as realidades e as 76 personalidades não fossem fluídas. Ao funcionar dessa maneira, circunscreve os campos de visão para que estes atuem exclusivamente a partir da lógica da aversão àquilo que foi rotulado, produzindo uma espécie de relação entre imóveis que não admite qualquer manifestação dissonante daquilo que se projetou de antemão sobre alguém. Seu erro e sua arrogância são a fonte da sua incompreensão da complexidade do homem multifacetado e da sua escandalosa limitação acerca das relações humanas. É, para todos os efeitos, um mal-pensar que, mesmo tendo razões para se voltar contra algo ou alguém, só consegue captar o superficial e suas trivialidades. Por mais que Valdetário tivesse um modus operandi suficientemente conhecido e suas alças de mira fossem igualmente conhecidas, era impossível cristalizá-lo e ter de si uma fotografia que fosse perene, pois o fator surpresa, mais do que uma estratégia para realizar crimes, foi se estabelecendo como um modo de voltar a ser parte de Caraúbas, como uma forma de reagir a cada encontro, a cada pedido, a cada apelo, a cada pessoa que conhecia ou cruzava pelo caminho. Todos sabiam sobre o assaltante que tinha uma vingança em curso, mas quase ninguém tinha certeza do que poderia acontecer se, por um acaso, cruzasse com ele pelas estradas, pelas ruas da cidade, pelos sítios e fazendas onde se refugiava com seus cúmplices. À medida que foi se dando a conhecer em seus encontros fortuitos com pessoas comuns, deixou de impor todo o medo que o noticiário despertava ao se reportar a seus atentados engenhosos. Não tinha como ser diferente, haja vista que “permanece em nós um fervilhar de personalidades em estado larvar que não conseguem se cristalizar; personalidades imaginárias de nossas fantasias que são como ectoplasmas de nosso ego” (MORIN, 2012a, p. 92-93). Malgrado, porém, o estigma é uma força propulsora de fragmentação, divisão, afastamento, isolamento e exclusão, o que reforça sua função nociva e expõe sua fragilidade, sua disposição a degenerar as relações interpessoais. Ora, entre a estereotipia dos rótulos e a pessoa desviante rotulada não deve haver somente o julgamento, a separação, a interdição; é preciso que o erro e o errante, antes de serem reclusos do meio para manter intacto o funcionamento normal do mundo, seja compreendido para ser reconhecido como um de nós, como alguém que padece das nossas instabilidades, que deixou de ser correto sem deixar de ser humano. Essa é uma ética, primeiro, para si e, depois, para outros; uma 77 socio-ética, ou seja, uma ética para pensar e conviver melhor. Como tal, “opõe-se a todas as exclusões de grupos, índex, anátemas, excomunhões que excluem o desviante da comunidade e, enfim, ao desprezo que exclui o outro da espécie humana” (MORIN, 2017, p. 105). Ao invés, então, de pensar num continuum de relações, com o tratamento categórico e encobridor num extremo da escala e o tratamento particularístico e aberto no outro, talvez seja melhor pensar em várias estruturas nas quais os contatos se produzem e se estabilizam - rua com pessoas estranhas, as relações de serviço superficiais, o lugar de trabalho, a vizinhança, o cenário doméstico - e ver que, em cada caso, é provável que ocorram discrepâncias características entre a identidade social virtual e a identidade socialreal (GOFFMAN, 2019, p. 65). Essas várias estruturas sobre as quais fala Goffman são canais, passagens, grutas por onde os indivíduos se deslocam e, ao se deslocarem, entranham-se do pó do terreno em que passaram, deixando os traços do seu corpo que se moveu pelas aberturas que foram modeladas pelo próprio movimento e abriu espaços cujas espessuras serão constantemente remodeladas por outros corpos e outros movimentos. As passagens, canais e fissuras podem até estarem fixados, mas os movimentos, por sua própria natureza, seguem ritmos ditados pela própria inconstância do humano. Haverá, certamente, regularidades simétricas. Entretanto, são tão relativas quanto podem ser os contatos com as brechas. Enquanto se faz esse trânsito, aqueles que se movem resvalam, tocam, deixam marcas. Ao resvalar, os adesivos que lhes fixaram perdem aderência, como perderam com Valdetário. Conforme Erving Goffman (2019), quando se imputa a um sujeito atributos que são esperados, prioritariamente imaginados e não identificados pessoalmente, constrói-se uma “identidade social virtual” impulsionada por um retrospecto que focaliza apenas nos caracteres que servem para confirmar a imputação inicial, diferentemente da “identidade social real”, resultado da convergência entre o caráter e os atributos vistos em ato. Por natureza, o primeiro tipo de identidade é dado ao equívoco e ao preconceito, enquanto o segundo emerge do contato direto com a realidade experimentada. José Valdetário Benevides e sua família, mesmo havendo motivos para supor coisas ruins a partir do histórico dos dois, foram vítimas do primeiro tipo que é tanto uma maneira amesquinhada de conceber as experiências e seus sujeitos quanto um engano que induz à manipulação da opinião: 78 por definição, é claro, acreditamos que alguém com um estigma não seja completamente humano. Com base nisso, fazemos vários tipos de discriminações, através das quais efetivamente, e muitas vezes sem pensar, reduzimos suas chances de vida: construímos uma teoria do estigma; uma ideologia para explicar a sua inferioridade e dar conta do perigo que ela representa, racionalizando algumas vezes uma animosidade baseada em outras diferenças. [...] Tendemos a inferir uma série de imperfeições a partir da imperfeição original e, ao mesmo tempo, a imputar ao interessado alguns atributos desejáveis mas não desejados (GOFFMAN, 2019, p. 15). Entre o estereótipo de criminoso cruel e seus atributos reais havia uma distância considerável omitida pelo processo de estigmatização. Não obstante, essa distância, as diferenças entre o Valdetário Carneiro dos jornais ou da TV e o Val de solidariedade e fino trato, consolidavam-se e passavam a ser cada vez mais percebidas, palpáveis, impossíveis de ignorar. No mais das vezes, nos dias mais corriqueiros, a vida concreta de um homem que não queria ser o que fizeram de si foi se sobrepondo à concepção moral que deu causa ao estigma que o proscreveu, mostrando que viver é mais importante que conceituar, que se relacionar é mais potente que estabelecer cortes diferenciais que separa os justos dos injustos, que ver a si no outro é melhor que comprimir a humanidade daquele que se desviou apenas por causa do seu desvio, afinal “o papel dos normais e o papel dos estigmatizados são parte do mesmo complexo, recortes do mesmo tecido-padrão” (GOFFMAN, 2019, p. 141): o estigmatizado e o normal são parte um do outro; se alguém se pode mostrar vulnerável, outros também o podem. Porque ao imputar identidades aos indivíduos, desacreditáveis ou não, o conjunto social mais amplo e seus habitantes, de uma certa forma, se comprometeram, mostrando-se como tolos (GOFFMAN, 2019, p. 146). Tendo isso em mente, precisamos de uma ética complexa, de uma ética da compreensão que é também uma ética da autopercepção, para que os sujeitos se vejam em outros, para que concebam seus duplos modos de ser e existir, suas consonâncias e dissonâncias, seus acertos e seus erros.Essa tomada de posição diante do que parece absolutamente determinado, volta-se contra o curto repertório de adjetivos que visões maniqueístas revelam ao sustentar que só se pode ser isso ou aquilo, quando, em última instância, as pessoas e as coisas podem ser isso e aquilo simultaneamente, por isso exigem outra gramática, que corresponda à exuberância de conteúdos que falam sobre quem e o que somos. 79 Apostar na identidade virtual construída pelos valores que organizam as relações sociais somente porque ela é produto desses mesmos valores consiste em uma cegueira que leva ao preconceito. Ao receber o rótulo de desviante, a pessoa “será identificada primeiro como desviante, antes que outras identificações sejam feitas” (BECKER, 2008, p. 44), o que a tornará menor do que ela de fato é e pode ser em outros momentos, posto que “o ato de rotular, tal como praticado por empreendedores morais, embora importante, não pode ser concebido como a única explicação para o que os pretensos desviantes fazem” (BECKER, 2008, p. 180). Tal impossibilidade é responsável por gerar a inaptidão para compreender as ambivalências de um homem que foi, a um só tempo, um criminoso que deveria ser responsabilizado na forma da lei e uma pessoa de carisma que foi conquistando a simpatia daqueles que, mesmo abundantemente informados da sua criminalidade pelas mídias, puderam conhecer e experimentar aquilo que foi impossível para aqueles que se satisfizeram com as informações gerais do moralismo que cobra a punição sem compreensão, que exige a imolação do pecador sem a possibilidade de remissão, que confunde fúria com austeridade, senso de justiça com inclemência, indignação com ódio e autodefesa com eliminação sumária do outro, a despeito de qualquer equilíbrio e possibilidade de pensar diferente a fim de criar alternativas que não redundem em lançar pechas e agir movido por elas. Não foi isso que aconteceu com Valdetário e os Carneiros. Ele vivo, foi subjugado por esse moralismo em função dos seus crimes, o mesmo moralismo que também se voltou contra sua família cuja reputação, apesar de ser tão diversa quanto qualquer outra, foi sendo deteriorada pelos rótulos, pelas suspeitas constantes, pela perseguição dos adversários políticos de sempre que, a partir do momento em que Val foi apontado como um dos maiores bandidos do RN, se fortaleceram, ganharam reforço e mais elementos para acirrar a guerra que já havia derramado sangue demais para subsistir, de modo que aquilo que era um empreendimento pessoal de apenas alguns dos membros dos Benevides Carneiro logo foi transformado em algo parecido como um negócio familiar que incluía a todos, indistintamente. 80 Figura 14: primos de Valdetário que sofreram e sofrem com os preconceitos Fonte: capa do JH Primeira Edição, N° 1.144, ano 4, 17/03/2009. Tios e tias, primos e primas de primeiro e segundo grau, seus filhos, suas companheiras e ex-esposas padeceram toda sorte de suspeições em função do sobrenome que carregavam. Pessoas no início da vida, no começo das carreiras, na busca por se colocar no mercado de trabalho ou na própria comunidade foram sendo tratadas como bandidas ou suspeitas a priori apenas pelo vínculo de sangue que, stricto sensu, em nada podia desaboná-las, tornando-as parte uma casta inferior ou detestável. Esse, que passou a ser um sofrimento de inocentes, tornou-se um jogo de um perdedor apenas, do qual os grupos rivais se beneficiaram para desenrolar suas tramas tão comprometedoras quanto às dos Carneiro. Havia uma razão para isso, pois a estigmatização não é um processo ingênuo, já que “as identidades social e pessoal são parte, antes de mais nada, dos interesses e definições de outras pessoas em relação ao indivíduo cuja identidade está em questão” (GOFFMAN, 2019, p. 116). Nesse caso, a preservação da normalidadee a busca por coesão social, estimuladas pela moral convencional, que 81 classifica e define para então rotular, assumiu um lado da disputa, recrudescendo ainda mais as discriminações que rondavam a família desde o famoso roubo dos 94 milhões que também havia sido uma incursão de um grupo restrito. Portanto, ao invés de instaurar e conservar a ordem pela exclusão daquilo que considerou marginal, essa moral do estigma cerrou fileiras que, em última instância, operaram para haver ainda mais intrigas, inimizades, confusões e rancores. Essas são as conclusões que se podem tirar dessa entrevista concedida por familiares que nunca participaram de nenhum ato da quadrilha chefiada por Val, parentes de idade já avançada e outros mais jovens que sentiram na pele as dificuldades impostas por uma moral que generaliza por comodidade e não sabe distinguir sem excluir. Para esses primos, ter de lidar com essa marca que os macula mesmo depois da morte de Valdetário e da dissolução da quadrilha por ele organizada, era e continua sendo a persistência da injustiça contra uma família que também foi alvo de traições, perseguições e homicídios nunca apurados e nem tampouco desvendados pelos órgãos competentes. Sempre foram eles que tiveram de elaborar suas próprias defesas e resolver por si aquilo pelo que nenhuma autoridade se importava. Figura 15: reportagem sobre as discriminações contra Ivna Benevides Fonte: JH Primeira Edição, N° 1.145, ano 4, 18/03/2009. A prima de segundo grau de Valdetário, Ivna Mara Barreto Benevides Gurgel, que à época ainda era universitária, relata o quanto foi difícil em sala de aula colocar-se como uma aluna em pé de igualdade moral com os demais, só por causa 82 do seu parentesco. Ao estudarem e discutirem sobre questões legais e éticas no âmbito do direito, tornar sua família um estudo de caso era costume dos colegas que a viam e a tratavam com ressalvas sem qualquer motivo objetivo. Sob esse estresse, ela aprendeu que ter o sobrenome Benevides Carneiro era sinônimo de dificuldades, por isso precisou impor-se e reclamar para si a respeitabilidade que lhe cabia, esforçando-se para ser a melhor aluna da sua turma e fazer com perfeição aquilo que a academia propunha, o que a fez, ironicamente, ocupar um lugar que para muitos não lhe pertencia, ao estagiar no 1º Distrito Policial de Mossoró. Depois de estagiar e graduar-se, Ivna, ainda tendo de enfrentar preconceitos fora da universidade, consegue se colocar socialmente e cumprir suas atividades, como operadora do Direito. Aos poucos venceu as barreiras impostas pela estigmatização e exerceu sua profissão com o mesmo zelo que a impulsionou a querer ser a melhor aluna da turma, o que foi desfazendo mal-entendidos e permitindo que ascendesse na carreira, chegando ao cargo de diretora da Cadeia Pública de Caraúbas, contra todas as expectativas dos mais céticos e daqueles que ainda conservavam ressalvas em relação a ela e sua família. Essas ressalvas nunca foram dissolvidas por completo, porém, Ivna Mara insiste em comprovar, onde quer que atue, o valor que julga ter e pôde manifestar enquanto dirigiu uma instituição tão importante quanto aquela7. Outro caso bastante peculiar é o da também prima Ginevra Benevides (conhecida como Gina). Ela, que reside na mesma casa onde cresceu com os pais já falecidos, relatou (informação verbal)8 que por inúmeras vezes, em busca de provas que ligassem seus parentes ao banco, que os vinculassem ao roubo dos 94 milhões ou que pudessem ajudar a descobrir o paradeiro de Valdetário, a polícia invadiu sua casa sem mandado de busca e interrogou seus irmãos e todos que podiam sobre essas provas que nunca foram encontradas no local. Para ela, sua casa se tornou um memorial de lembranças ruins, e Caraúbas um lugar que lhe traz mais incômodo do que tranquilidade, por tudo que viu seus parentes passarem e pelas incontáveis mortes que presenciou ou de que tomou conhecimento em virtude dos confrontos entre os Benevides Carneiro, os Fernandes e os Simião Pereira. 7 Atualmente, Ivna mora em Caraúbas, juntamente com seu pai, e foi contatada e ouvida para detalhar mais sobre sua história de superação, mas, alegando razões pessoais, preferiu que apenas isto que foi descrito neste trabalho e o que foi propagado jornais, fosse publicizado. 8 Depoimento concedido por Ginevra Gurgel Benevides, em Caraúbas, em novembro de 2021. 83 Gina, que é professora de formação e já há um bom tempo é coordenadora pedagógica na escola na qual trabalha, sente que seu município se transformou de fato em um grande arquivo pelo qual é inevitável caminhar sem ser tomada por alguma lembrança ruim, mesmo que por um pequeno espaço de tempo. Para chegar aonde chegou, principalmente nos primeiros anos do surgimento do fenômeno Valdetário Carneiro, a professora padeceu das mesmas dificuldades de sua prima Ivna, sofreu ao ver seus pais idosos padecerem pela vergonha imposta pela discriminação e teve que procurar ser a melhor no que se dispôs a fazer para desconstruir a identidade virtual que, pelo estigma, haviam instituído. Mesmo que seja resultado das melhores intenções morais, que seja uma síntese dos valores nobres cultivados socialmente e que busque preservar os corretos dos incorretos pelo distanciamento, a autodefesa do estigma não é razoável por três lições que saltam aos olhos na saga caraubense: primeira, ela pode funcionar como um capital beligerante contra quem se pretende exterminar; segunda, ignora a multiplicidade da pessoa humana e reduz a qualidade dessa pessoa à rigidez da observância inerrante das leis, de modo a se constituir como um tipo de violência simbólica que, além de intransigente, mostra-se débil por não enxergar por sobre os muros da sua própria arrogância conceitual; e terceira, a estigmatização causa sofrimento aos indivíduos, pois os coisifica em defesa das prerrogativas inflexíveis da plena adaptação aos padrões de comportamento aos quais reverenciam e pelos quais definem a si e aos outros sem o benefício da dúvida, pois “o normal e o estigmatizado não são pessoas, e sim perspectivas que são geradas em situações sociais durante os contatos mistos, em virtude de normas não cumpridas que provavelmente atuam sobre o encontro” (GOFFMAN, 2019, p. 148-149). Dito de outra maneira, o considerado normal, que tende à rotulação, não trata e não se relaciona com o estigmatizado como uma pessoa, e sim com um objeto de suas expectativas, elucubrações e suposições. Por isso que, em vez de estar aberto a descobertas fora do seu esquadro, e até mesmo negá-las, constrói hologramas que poderá projetar e manejar ao bel-prazer das certezas a que chegou apressadamente e pelas quais fará de um tudo para confirmar, custe o preço que for, afinal, o que estará em questão e, no limite, em risco, é sua posição agradável de ser um igual aos demais, um de dentro contra quem não haverá hostilidades. 84 Esse é um jogo de poder que busca mais poder demolindo a reputação do adversário, um jogo em que o vencedor desfruta dos louros da vitória sem autocorreção, sem a necessária severidade consigo, sem notar seus abusos, suas petulâncias, seus deslizes, posto que um atributo que estigmatiza alguém, assevera Goffman (2019), pode confirmar a normalidade de outrem. Desse modo, a rotulação age como uma força reativa para conservar ilesas as convenções e o prestígio daqueles que se beneficiam em decorrência do sofrimento do outro que deve ser aniquilado para que a posição prestigiosa siga intacta. Quanto mais dispostos a rejeitar sem diálogo, detestar sem conhecer, definir sem revisar, perseguir sem entender, separar sem diferenciar, maiores os graus de cegueira, ignorância, obscurantismo, impiedade e intolerância. Não é bom que seja assim e urge pensar melhor, politizar o pensamento, propor,pôr em perspectiva inclusive aquilo que já está dado como certo, afinal “a moral é uma iluminação que precisa ser iluminada pela inteligência, e a inteligência é uma iluminação que precisa ser iluminada pela moral” (MORIN, 2013, p. 108). Mais do que se voltar contra a inclemência típica da estigmatização, que se retroalimenta da autossatisfação moral de não ser como aqueles que erram, essa politização consiste em conceber o problema humano tal como ele se apresenta e admitir para ensinar sobre sua complexidade, seu policentrismo, suas bifurcações, suas identidades hibridas, suas antinomias simultâneas e suas contradições insolúveis, o que traz de volta à ética da compreensão que exige uma ética para o pensamento que o reeduque, fazendo com que o lugar de juiz de todas as coisas seja constrangedor demais para ser minimamente confortável. 3. 2 – Pensar bem para compreender melhor Em linhas gerais, o estigma é, concomitantemente, um instrumento de manipulação das identidades e uma demonstração de pobreza do pensamento que se aferra aos postulados da moral que o orienta para submeter-se a esses mesmos postulados afastando qualquer possibilidade de reelaboração ou mudança em direção do novo, de discursos alternativos (que não é o mesmo que discursos de absolvição), de sofisticação da abordagem que não se satisfaça com o óbvio ou com aquilo que se apresenta como autoevidente. Pobre e com um repertório diminuto, 85 essa forma de pensar é consequente e exageradamente idealista e reducionista, porque reduz o homem a um ideário que é tanto mais pertinente quanto maiores forem as forças que funcionarem para o reafirmar constantemente, como se tudo devesse caber na sua concepção de mundo, e aquilo que destoa só pudesse ser uma dentre várias coisas possíveis, ou seja, um de fora. Essa é a incompreensão no seu estado mais bruto, e pior: voltada para o que temos de mais importante a discernir — o que ou quem realmente somos e podemos ser. Cumpre pensar diferente, pois compreender ao invés de estigmatizar, além de um ato ético de reintegração necessário para acolher e entender expressões do gênero humano,fornece outros termos para os debates e para as abordagens daquilo que se insurge e se torna emergente. Por isso mesmo exige uma gramática da diversidade para as relações que inove nos seus substantivos e ouse nos adjetivos para expandir os repertórios e, quando for necessário, modificá-los sem melindre, contra os intentos estigmatizantes monossilábicos e supressores da humanidade do outro, afinal as morais estigmatizantes e a definição dos papéis sociais a partir das suas próprias ideias diretivas são amesquinhadas demais para qualquer tipo de alargamento ético imprescindível. Isso, que pode ser entendido como uma permissividade irrestrita pelas posições mais conservadoras ou um flerte com a impunidade, consiste na maturidade da consciência, no aprimoramento do olhar, no desenvolvimento de virtudes, de sentimentos nobres, de generosidade, de benignidade, visto que “compreender não é inocentar nem se abster de julgar e de agir, mas reconhecer que os autores de infâmias ou de faltas também são seres humanos” (MORIN, 2017, p. 121), o que é uma frente de batalha fundamental contra a crueldade que nos espreita e seduz desde nós mesmos e vaza para incidir negativamente sobre nossas relações, nossa maneira de ser e perceber quem e o que está à nossa volta: a incompreensão está na fonte de todos os males humanos. A compreensão está presente no que há de melhor no homem. A tragédia humana não é somente a morte, mas também o que vem da incompreensão. Nossa barbárie não se reduz à incompreensão, mas a comporta. A incompreensão alimenta a barbárie nas relações humanas e na civilização. Enquanto permanecemos como somos, continuaremos bárbaros e mergulhados na barbárie (MORIN, 2017, p. 123). 86 Quanto maiores forem as atrocidades praticadas, maior será a necessidade de compreender suas nuances e ainda mais complexa será a resposta que deveremos dar, maior e mais amplo será seu alcance, melhor e maior será sua capacidade de enfrentar e tratar tabus que, mesmo silenciados, nos afetam direta ou indiretamente. O estigma existe para impedir qualquer movimento que não seja de confirmação dos pressupostos gerais e tradicionais a partir dos quais cada cidadão, cada sociedade organiza e situa suas noções de certo e errado, como se, para sobreviver, as condutas ajustadas precisassem se afirmar a partir da exclusão, do banimento, da negação de quem caiu em desajuste, o que é um desatino, já que “toda concepção que quer escapar do caos, ou seja, chegar à ordem pura, à razão pura, ou à moral pura, torna-se delírio racionalizador” (MORIN, 2003, p. 190). Ao ter se tornado um dos homens mais temidos e mais difíceis de confrontar, Valdetário revirou de ponta-cabeça a região oeste do RN e boa parte do Nordeste como poucos haviam feito até à sua insurgência. Em certa medida, a postura refratária da maioria se justificava, mas não era justo que isso se estendesse para todos que, mesmo que remotamente, tinham alguma relação com ele que, como todos nós, foi o resultado de contradições estruturais, as mesmas contradições que transformaram em dilema ter de escolher entre a trama atropelada que haviam escrito por e para ele, sem nenhuma resistência, ou criar seu próprio script tendo de confrontar o ordenamento, tanto o legal quanto o social, que no primeiro momento foram omissos a seu respeito e, por isso, coparticipes de uma tragédia que foi do âmbito pessoal ao coletivo. Val, que escolheu escrever sua própria peça para deixar de ser marionete de um teatro montado pelos outros, saiu da condição de acuado, de vítima das orquestrações dos rivais, da posição de defesa à de ataque que, embora condenável por sua ilegalidade, o transformou em um ícone que, nas dobras do cotidiano, no dia a dia, nos instantes que não foram registrados na sua ficha policial, construiu a cada momento uma relação de simpatia com seu povo, uma sociabilidade que, apesar de participar de uma concorrência desigual com a moralidade, a seu tempo mostraria ter uma potência humana e simbólica que não se intimidaria ante seu caráter marginal e o poderio da institucionalidade responsável por sua proscrição. Valdetário foi uma antítese às teses do seu tempo ao confundir a lógica da legalidade, desrespeitar as regras de civilidade e mesmo assim conquistar consideração. Ele marcou seu nome nas memórias ao ponto de ser impossível falar 87 da sua biografia sem incorrer no risco de relatar apenas parte de uma aventura que, semelhante à de tantos outros bandidos icônicos e paradoxais na história das culturas mundo afora, desde os mais queridos aos mais temidos, faz parte de um “registro dos símbolos daqueles fatores teoricamente controláveis, mas na prática descontrolados, que moldam o mundo dos pobres” (HOBSBAWM, 2017, p. 169).Tendo assumido o papel de indomável na sua atuação e antagônico à ordem, Valdetário Carneiro “abriu fendas, proporcionando à posteridade uma observação do quanto uma época possui elementos tão infinitamente contraditórios” (DANTAS, 2005, p. 311) para serem aceitos pacífica e definitivamente da boca de qualquer um que narre essa epopeia. Aquilo que as polícias registravam e faziam saber sobre ele era somente parte de uma experiência que também estava se consolidando fora dos registros formais e que logo reclamaria seu espaço, de sorte que lá onde o império da lei, da moral inquestionável e da coesão poderia impor-se para determinar que tipo de opiniões todos deveriam ter acerca de alguém que havia cometido graves crimes, no interior mesmo do seu funcionamento, na dinâmica das suas imposições, surge o inesperado, surge uma realidade poderosa de várias faces que expõe, senão a derrota, a precariedade do estigma, a efemeridadede resumir a pessoa a seus acertos e erros, a perecibilidade de tentar fazer prevalecer a ferro e fogo as convenções sociais. A estabilidade dessas convenções, consentida por seres instáveis como nós, equivale a de um malabarista apresentando-se em cima de uma cadeira de uma perna só. A decência para a qual somos educados é uma corda frouxa que cede e faz cair, por vezes sem dar sinais de que está prestes a se romper. Assim, o que se coloca é o compromisso de pensar, propor e vivenciar nas nossas muitas relações uma moral da diversidade, uma moral que trate a loucura e a contradição como um problema central do homem, não apenas seu dejeto ou sua doença (MORIN, 2011), abandonando sua visão unilateral das coisas, pois, vale insistir nesse ponto por ser decisivo para o bem-pensar e um melhor compreender, “o ser humano é complexo e traz em si, de modo bipolarizado, caracteres antagonistas: sapiens e demens, faber e ludens, empiricus e imaginarius, economicus e consumans, prosaicus e poeticus” (MORIN, 2011, p. 52): cada qual contém em si galáxias de sonhos e de fantasmas, impulsos de desejos e amores insatisfeitos, abismos de desgraças, 88 imensidões de indiferença gélida, queimações de astro em fogo, acessos de ódio, desregramentos, lampejos de lucidez, tormentas dementes (MORIN, 2011, p. 52). Valdetário interpretou, incorporou, experimentou essas que são igualmente as nossas variações. As manchetes policiais e o reducionismo moralista o viram e em larga escala ainda o veem como um delinquente irrecuperável, que tem atrás de si um rastro de sangue e de maldade infindável. Não veem e não reconhecem, contudo, que, por mais que em dada proporção ele tenha assumido essa personalidade das manchetes, colocou à nossa disposição um quadro onde expôs as imperfeições que dizemos ter, mas nem sempre as temos ao alcance de uma mão. Ele foi o lembrete de que homens e mulheres são suscetíveis à decadência e que essa suscetibilidade, aliada à autoavaliação, são caminhos de conscientização para o bem-viver, pois qualquer crítica deve ser precedida da autocrítica. De fato, reeducar nossas morais empedernidas e estigmatizantes é um dever que só pode se consumar se também elaborarmos uma autoética capaz de implicar os sujeitos em seus juízos de valor e identificar seus exageros nas suas imposições de regras, já que “é, antes de tudo, uma ética de si para si que desemboca naturalmente numa ética para o outro” (MORIN, 2017, p. 93), ou seja, uma postura que parte primeiro de si para depois ocupar-se dos demais, o que passa, antes de tudo, por uma reforma da maneira de pensar, por uma recolocação dessa maneira que ofereça resistência contra a solidez do estabelecido para abrir espaço ao incompreendido que tem sobre o que falar, por isso que essa autonomização da ética exige, ao mesmo tempo, "trabalhar pelo pensar bem” e "pelo pensar- se bem": a integração do observador na sua observação, o retorno sobre si mesmo para se objetivar, compreender-se corrigir-se, o que constitui, simultaneamente, um princípio de pensamento e uma necessidade de ética (MORIN, 2017, p. 93) [aspas do autor]. Como a condição humana deve ser o objeto essencial de todo ensino (MORIN, 2011), onde quer que o pensamento se estabeleça como produtor de conhecimentos e formador de opinião deve operar no sentido de servir à compreensão a partir daquilo que se mostra no diferente que, por maiores que sejam suas estranhezas e culpas, carrega consigo a humanidade que não é exclusividade daqueles que caminham no acerto. O ser humano é a um só tempo singular e múltiplo, tem a seu dispor um repertório de ser e agir bem maior do que 89 pode prever as réguas de comportamento. Entre o permitido, o possível e o proibido existem poros por onde cada um pode passar, de modo que “compreender o humano é compreender sua unidade na diversidade, sua diversidade na unidade. É preciso conceber a unidade do múltiplo e a multiplicidade do uno” (MORIN, 2011, p. 50): no âmbito das instituições educacionais, e ao lado de uma aposta ativa na emergência de um novo estilo de conceber o mundo, é crucial reacender a memória de nossa condição humana mestiça e marcada pela diversidade. Por meio de várias estratégias de ensino, e em todos os níveis de formação científica, é importante relembrar insistentemente que somos pó das estrelas, uma matéria que se tornou viva, sujeitos com histórias singulares. Que a diversidade é o patrimônio maior da cultura humana; que somos o único animal que sonha acordado e que constrói utopias. Que somos marcados pelo inacabamento, portanto, nada está dado em definitivo (ALMEIDA, 2017, p. 196). O humano “é furado como gruyère, múltiplo como colônia de pólipos, aberto como corredor. Toda educação social visa a calafetar os orifícios, cingir a multiplicidade, condenar a maior parte das aberturas” (MORIN, 2003, p. 169), quando, porém, deveria ser uma atitude reflexiva em permanente construção e reconstrução para concernir às demandas dessas nossas aberturas constitutivas que são, por natureza, campos da dúvida e da imprevisibilidade. Por isso mesmo, desafiam a cognição, que não precisa ter a exatidão como seu único fim, porque “conhecer e pensar não é chegar a uma verdade absolutamente certa, mas dialogar com a incerteza” (MORIN, 2018a, p. 59) que é, por sua vez, um ponto de partida para alcançar maiores verdades, cuja descoberta só pode acontecer pelos conflitos e pela provocação que a habilidade e a imprecisão podem causar à inteligência. a demência do sapiens é a insuficiência e a ruptura dos controles, mas o gênio do sapiens é também não ser totalmente prisioneiro desses controles, nem do controle do ‘real’ (meio ambiente), nem do da lógica (o neocórtex), nem do código genético, nem do da cultura e da sociedade, e, ainda, o de poder controlar os controles um pelo outro (MORIN, 1975, p. 135). É menos compreender Valdetário em si para justificar ou explicar suas ações e mais compreender o que de nós estava à amostra nesse homem, o que das nossas capacidades e debilidades aparecem para denunciar nossa má-educação que se reproduz nas nossas intransigências, obstinações conceituais, indisposição ao diálogo, na obsessão por classificar tudo, para, quem sabe, substituir as 90 acusações impulsivas, o castigo inveterado, os aviltamentos, o xingatório, a verborragia justiceira e o enxovalhamento pelo comedimento, pela humildade, pela recusa do revide, pela tolerância e pela compaixão. A bem da verdade, “a compreensão não desculpa nem acusa: pede que se evite a condenação peremptória, irremediável, como se nós mesmos nunca tivéssemos conhecido a fraqueza, nem cometido erros” (MORIN, 2011, p. 87), de modo que “a ética da compreensão pede que se argumente, que se refute em vez de excomungar e anatematizar” (MORIN, 2011, p. 87), isto é, pede que civilizemos nossas convicções, nossos juízos, nossos julgamentos, nos termos propostos por Morin: “a prática mental do autoexame permanente é necessária, já que a compreensão de nossas fraquezas ou faltas é a via para a compreensão das do outro” (MORIN, 2011, p. 87): se descobrimos que somos todos seres falíveis, frágeis, insuficientes, carentes, então podemos descobrir que todos necessitamos de mútua compreensão. O autoexame crítico permite que nos descentremos em relação a nós mesmos, por conseguinte, que reconheçamos e julguemos nosso egocentrismo (MORIN, 2011, p. 87). Nesse sentido, vale salientar que “compreender é também aprender e reaprender incessantemente” (MORIN, 2011, p. 89), já que, assim como Valdetário demonstrou em vida, somos seres moventes para os quais nenhuma disciplina ou nenhum sistema de pensamento estanque pode prescrever suas determinações e ser sempre bem-sucedido. Ainda que não saibamos, estamos sempre um passo à frente das categorizações, porque estas,ao serem elaboradas, precisaram fixar-nos no tempo e no espaço, enquanto continuamos a viver, mudar, oscilar, a sermos vários mesmo sendo um, a ter impulsos desconhecidos, pulsões incontroláveis, emoções repentinas, frustrações inesperadas, vitórias ou derrotas que, por terem o poder de alterar o curso normal da vida de cada um, podem alterar aquilo que havíamos traçado de antemão e nos expulsar do lugar que ocupávamos, nos obrigando a construir um outro. Esse foi um de tantos ataques sofridos pelo mecânico José Valdetário. Perguntado sobre as ambivalências em torno de Valdetário e sobre o que achava do caraubense, Manoel Lúcio Fernandes Filho (conhecido como Juninho de Duquinha), atual secretário de Finanças de Caraúbas, testemunha acerca disso 91 (informação verbal)9: “quem conheceu e conviveu com Val sabe que ele era um homem calmo. Agora, diante de tudo que ele sofreu na vida, principalmente as perseguições, fez as pessoas conhecerem dois tipos de Valdetário”. Manoel Lúcio acrescenta: “Val era um homem do seu serviço, da sua casa, da sua família e amigos; mas foi vítima de injustiças, as quais levaram ele a entrar nesse mundo de fazer justiça com as próprias mãos”. Para Juninho, há uma relação direta entre as injustiças sofridas por seu cunhado e o que ele veio a se tornar. O secretário percebe a existência de dois Valdetários e não o reduz à sua criminalidade. Manoel, que conviveu com o esposo da sua irmã antes e depois do homem ter se tornado aquele que ele não queria ser, garante que Val, mesmo na condição de foragido, mostrava não ter mudado nada. Outra fala abrange essa mesma dupla-face de Valdetário Carneiro. Paulo Vitor Nascimento, um dos seus biógrafos, declarou (informação verbal)10: “considero que durante a vida Valdetário foi a amálgama de várias condições. Um personagem de várias matizes, algo um tanto quanto cinza”. Nascimento prefere enxergar o caraubense “como um ser humano, digno de nota por ser, de certa maneira, o avatar de muitos aspectos importantes da história recente do Rio Grande do Norte, seja política, social ou de segurança pública”. É o olhar que dispensa os estereótipos e, justamente por isso, consegue enxergar além do comum. Esse olhar faz justiça a amplitude daquilo que o homem de Caraúbas que, como ator do grande teatro do mundo que fez para si, “funciona como uma espécie de necessidade para que o microcosmo nordestino permaneça completo, pronto para acionar seus obrigatórios e eternos mecanismos sob os carrilhões do tempo” (DANTAS, 2005, p. 310): longe de se vincular a qualquer projeto político ou ideológico justificador das suas ações, parece muito mais deter no seu entourage um espectro de índices configuradores de um produto imaginal transmitindo-se nas intrincadas malhas da vida em sociedade (sem que ninguém perceba), no qual se encontram os alicerces de signos fundantes de uma ressonância arquetípica (DANTAS, 2005, p. 310). Foi essa força para enfrentar potestades e para representar símbolos que configuram o imaginário que fez Rafael Barbosa e Paulo Vitor se interessarem pela figura. De acordo com o próprio Paulo, as façanhas de Valdetário e sua quadrilha 9 Depoimento concedido por escrito e recebido por e-mail, em junho de 2021. 10 Depoimento concedido por escrito e recebido por e-mail, em outubro de 2020. 92 fizeram parte de suas adolescências, de modo que era impossível não ficar vidrado no rádio ou na televisão para saber qual teria sido a última aventura dos Carneiros. Estudá-los e transformar seus atos em um livro equivaleu a materializar as fantasias juvenis em uma coisa para qual tanto eles quanto vários outros que ouviram falar das artimanhas do homem fabuloso podem retornar sempre que quiserem. O livro- reportagem (BARBOSA; NASCIMENTO, 2013) mais do que um registro jornalístico, se constitui em uma descrição do arquétipo que antes pertencia a duas imaginações. A partir da escrita e da publicação, o que pertencia a dois passou a pertencer a tantos quantos podem fantasiar com a história contada. Isso o estigma, as morais da ordem absoluta, os homens e as mulheres de bem, que se arvoram por ocupar esse posto, não conseguem admitir e cultivar, porque estão ocupados demais calculando e impondo as penas daqueles que flagraram em queda, sem se aperceberem que “sempre que denunciamos os ‘canalhas’ é para camuflar em nós alguma fraqueza ou baixeza” (MORIN, 2003, p. 40). Se a gramática das nossas relações sociais não nos disponibilizar outros termos que não sejam os do insulto contra quem agride a normalidade como Valdetário agrediu, nossa educação, formal ou informal, institucionalizada ou pessoal, falhou ao ensinar uma linguagem da brutalidade que, a pretexto de combater ou afastar os desviantes, direta ou indiretamente, multiplica a agressividade e desvela sua incompetência para descrever com mínima decência o humano que lhe confronta. Em busca de uma convivência que respeite a humanidade de todos, precisamos, desde a formação mais básica, enfrentar tabus e dizer o que somos “substituir um pensamento que isola e separa por um pensamento que distingue e une. [...] Substituir um pensamento disjuntivo e redutor por um pensamento do complexo, no sentido originário do termo complexus: o que é tecido junto” (MORIN, 2018a, p. 89), para, em busca de uma atitude científica arejada e um tanto mais precisa, “rediscutir como hipóteses postulados tidos como indiscutíveis, imprimir importância a fatos concebidos como aleatórios pela ciência, refutar a ortodoxia e o maniqueísmo, pôr à luz nossas crenças fundamentais, exercitar a criatividade” (ALMEIDA, 2017, p. 223) Essa é uma estratégia para reintegrar aquilo que faz parte dos problemas estudados ou investigados, mas, arbitrariamente, foi marginalizado, abandonado, legado a segundo plano para não contrariar pré-concepções teórico- conceituais. 93 Nós, que “somos educados para escolher sempre um e não muitos caminhos, um e não muitos amores, a andar sempre pela mesma rua, a se comportar sempre do mesmo jeito” (ALMEIDA, 2017, p. 206) para, assim, seguir uma pauta unitária que nos induz a um vocabulário monossilábico devemos, engajados na busca por construir melhores relações, “investir numa reorganização do conhecimento capaz de prover uma reforma na educação. Isso requer uma nova aliança entre cultura científica e cultura humanística, a reforma do pensamento e o exercício do diálogo” (ALMEIDA, 2017, p. 223), que é uma força de conjunção e uma via para conscientização pessoal e coletiva sobre nossa própria condição no mundo: abrir-se ao diálogo é abrir o duplo (e aleatório) processo: dialogar com o desconhecido até sentir-se semelhante a ele; dialogar com o semelhante até sentir-se desconhecido para si próprio. Abrir o diálogo é abrir a dialética do extremo próximo e do extremo distante, onde o distante se torna próximo e o próximo se torna distante, de onde poderia nascer a compreensão do outro; é simultaneamente reabrir a dialética do eu e do duplo (MORIN, 2003, p. 231) Sem que a maioria pudesse notar, havia na vida de Valdetário uma infinidade de dados e de material humano que apareceram para embaralhar as cartas e confundir o jogo que deveria ser de cartas marcadas. Aquele que seria seu ponto fraco — ser tanto sapiens quanto demens — também era seu ponto forte, como o é em todos nós que partilhamos da mesma natureza (MORIN, 2003). Da sua demência, da sua loucura, do seu delírio, da sua inconsequência, surgiram outro tipo de ser e outro modo de se relacionar com as pessoas, uma capacidade de reunir indignação e revolta sem perder a sensibilidade, potencial para fazer muito bem o que nunca havia sido feito por ele, o que lhe rendeu não apenas antecedentes criminais, mas um lugar no imaginário, no afeto, nas fantasias, na memória de um povo que encontrou no seu mais destemido conterrâneofascínio e inspiração. Val, que se tornara quem não queria ser e foi mais do que aquele que o fizeram ser, tornou-se um terceiro que, por sua culpa e pela implacabilidade da moral pública, não podia ser previsto por nenhum dos dois, em uma espécie de mestiçagem para a qual nosso universo vocabular, nossos regimes disciplinares e nossa reflexão deve se voltar a fim de aprender e se reformularem para terem o que dizer de importante sobre o humano, sobre sua condição, seus extremos, sua especificidade que vazam dos laboratórios, escapam dos gabinetes, surpreende e apresenta novas paisagens que somente fotografias em tempo real podem captar e 94 reproduzir com maior precisão, porque se trata do vivo, daquilo que tem voz e fala, pode falar inclusive que as conclusões a que se chegaram acerca de si estão equivocadas. 95 4. A VIDA COMO PALCO E A FAMA: EXERCÍCIOS DE ADMIRAÇÃO A admiração é um vinho generoso para os espíritos nobres. (Auguste Rodin) Onde está a estrela, onde está o homem? Nós os procuramos na Terra, no que o homem tem de mais íntimo e de mais atual, duplas coordenadas que, abertas para análise, podem posteriormente permitir que se leia o mapa do céu das estrelas. (Edgar Morin) O sertanejo não admira o criminoso, mas o homem valente. (Câmara Cascudo) Em que pese ter se tornado um dos maiores criminosos da história do RN, Valdetário foi um homem que apreciou as artes e almejou o estrelato: desejou compor peças teatrais e ser mais do que um mecânico. O teatro, a música, símbolos culturais e da política nacional e internacional permearam sua imaginação desde muito jovem, fazendo com que ele nutrisse o sonho de ser ator por muito tempo. Esse seu sonho embalou suas escolhas e, posteriormente, deu a tônica das suas incursões com fortes apelos à espetacularização, o que restaria comprovado pelo seu modus operandi. Essa verve se revelou no seu período escolar, na Escola Estadual Professor Lourenço Gurgel, localizada no centro da cidade: o garoto Val não era um dentre outros alunos aplicados. Seu desempenho era irregular. Foi no desfile cívico de 07/09/1972, quando ainda tinha 13 anos, que apareceu o ardor pelas estrelas. Nesse desfile, Valdetário, interpretaria Tiradentes, o conhecido herói da Inconfidência Mineira, e com esse papel assumiria pela primeira vez o protagonismo que o faria vencer o acanhamento. Passar pelas ruas da cidade ornamentado, atrair os olhares, ter os seus minutos de destaque e a distinção era o triunfo da ousadia por meio da arte. Era o encontro de uma estrela recém-nascida com o estrelato, guardadas as devidas proporções de um evento escolar de um município relativamente pequeno. Como em toda cidade interiorana, as pessoas vinham às 96 suas portas para ver a banda passar e seus artistas mirins — filhos, sobrinhos e netos — darem o melhor de si para depois terem do que se orgulhar na cidade. O dia era especial para caraubenses, alunos e professores. Nada podia dar errado. Estava tudo pronto para o espetáculo. Contudo, todo o cuidado com o figurino, pensado nos mínimos detalhes, parecia que seria em vão, porque a peruca que seria utilizada para compor o ornamento pertencia à diocese para cobrir a cabeça da estátua de Bom Jesus dos Passos (Jesus Cristo) durante as conhecidas procissões de Nosso Senhor Morto, na Semana Santa. O pároco da época recusava-se a emprestar, pelo que tiveram que bolar um plano: a peruca e o crucifixo foram pegos escondidos e sem o consentimento do padre. Era um grande dia e Valdetário estava animado. Ali, diante de toda a cidade, diante de conhecidos, amigos e vizinhos aconteceria a inversão de uma postura que havia perdurado pelos sete anos da promessa e pelos anos seguintes: ele se orgulharia de ser visto e não temeria o que poderiam pensar acerca de si; encontrar-se-ia com a capacidade possibilitada pela arte de viver outras realidades. Na encenação ele caminhava com muita dificuldade e mal conseguia abrir os olhos. A alva (tosco roupão vestido pelos condenados) roçava os seus tornozelos, o baraço (a grossa corda da forca) rodeava-lhe o pescoço e ia até a mão do carrasco, dando-lhe a sensação horrível, que parecia ser ele mesmo o condenado. Os estudantes em grande quantidade, e as pessoas nas ruas de Caraúbas lembravam o povo que acompanhava a cada gesto do padecente na história real (VIANA, 2010, p. 165). Esse momento foi um divisor de águas para o jovem que, encenando, sentiu- se à vontade e, em ato, reconheceu a potência do seu sonho. Ele, que antes era absolutamente introspectivo, teve a oportunidade de superar a timidez e, pela primeira vez, gostar de ser o centro das atenções. Estabelecia-se ali um encontro entre uma vida comum e uma saga que inspiraria o garoto a querer ser e fazer mais. Era o encontro definitivo entre o anonimato e a popularidade, entre a fantasia e o real; entre o brilho dos astros, que podia fazê-lo mudar de postura, e a penumbra da sua circunspecção que começava a se dissipar pelo envolvimento com uma história de luta e resistência. O menino de infância recatada e envergonhada soltava-se das amarras que o haviam feito refém do retraimento. Durante um longo período, Tiradentes permaneceu encantando o jovem José Valdetário Benevides. A história de resistência e enfrentamento do mártir brasileiro 97 alimentava sua imaginação e aquecia seu coração, como se os feitos heroicos e radicais dos quais ele tomou conhecimento na escola sobre a Inconfidência Mineira o inspirassem a ter a coragem de que sempre precisou para encarar a vida, seu visual, sua própria identidade, sua história. A fascinação só diminuiu quando José Valdetário, ainda na juventude, tomou conhecimento da bravura de Ernesto Rafael Guevara de la Serna (o Che Guevara, ou simplesmente Che), um dos três líderes da Revolução Cubana deflagrada na década de 1950, que ganhou notoriedade e passou a compor o rol dos grandes momentos geopolíticos mundiais. Figura 16: à direita, Valdetário à frente do desfile cívico Fonte: arquivo da Escola Estadual Prof. Lourenço Gurgel O jovem caraubense logo se interessou por aquela história de risco e aventura, perigos e utopias, dilemas e controvérsias. O fervor revolucionário, a coragem e o brio de Che cativaram o garoto de maneira tão singular que o fez desejar encenar uma peça de teatro (VIANA, 2010, p. 188) na qual pudesse representar o guerrilheiro e aproximar sua vida daquela ação e emoção de tomar as rédeas da história e fazê-la ganhar os contornos dos seus sonhos, como se quisesse comunicar algo sobre si, afinal, “a literatura, o teatro e o cinema fazem com que vejamos os indivíduos em sua singularidade e subjetividade, sua inserção social e histórica, suas paixões, amores, ódios, ambições e ciúmes” (MORIN, 2012b, p. 12). Sempre que podia, o rapaz falava sobre o assunto e o segredava a seu primo 98 José Viana Ramalho, o Dudé Viana, cantor, compositor e autor, insistindo para que Dudé escrevesse para ele um texto para ser atuado. O relacionamento de Dudé com Valdetário transcorreu dos seus 10 até seus 25 anos. Por vezes, o mecânico confessou a seu primo que não gostava de estudar e que esse havia sido a razão pela qual havia abandonado a escola, pois a mecânica já o havia capturado e para ser um bom profissional nessa área os estudos formais não eram necessários, ao que seu primo retrucou dizendo que para ser um bom ator, desejo que permanecia vivo no jovem José, era necessário estudar muito. Foi então que ele falou que, sim, se fosse pela arte, se fosse para se tornar ator, voltaria a estudar para exercer o ofício artístico que o havia cativado tanto quanto à mecânica: “ele sempre falava de música e teatro dramático” (VIANA, 2010, p. 188). No livro queescreveu para contar a história da sua família, Viana descreve que em uma das conversas tidas com seu primo, ele disse: “eu gosto de rir... adoro comédia, mas o drama tem um quê na minha vida, que não sei explicar” (VIANA, 2010, p. 188) Dudé Viana ainda relata que (informação verbal)11 alguns membros da família Benevides Carneiro admiravam Fidel Castro e Ernesto Che Guevara. Valdetário conheceu e passou a reverenciar os dois revolucionários a partir da veneração que seus tios e primos mais velhos nutriam, de sorte a considerar Che Guevara um exemplo de valentia e coragem dignas de respeito. Quando esteve preso, entre 10 de janeiro de 1983 e 22 de novembro de 1984, acusado injustamente de ter participado do roubo dos 94 milhões, Dudé recebeu a visita do seu primo que, movido pela indignação e revolta de ver seu parente submetido àquela situação, demonstrou tristeza por perceber o quanto sua família estava sendo devassada por aquelas circunstâncias, pelas perseguições e prisões. Viana já viajava pelas cidades fazendo shows e apresentando espetáculos. Sempre que ele e Valdetário se encontravam em Caraúbas, por insistência de Val, falavam sobre os mesmos assuntos: artes, música e teatro, o que demonstrava a curiosidade, o interesse e a obsessão do jovem mecânico que se dividia entre o chão da oficina e o mundo artístico. Ao visitar Dudé na prisão, mesmo que ambos estivessem tristes por aquelas condições, falaram sobre o mesmo assunto. Curioso, Val questionou sobre detalhes da peça O Sol, o vento e a chuva, musical de autoria 11 Depoimento concedido por escrito e recebido por e-mail, em março de 2021. 99 do primo apresentado no Rio de Janeiro, em meados da década de 1970. Interessava ao jovem mecânico saber sobre o processo de criação, sobre o que caracterizava um ator e quais segredos eram necessários descobrir para compor uma obra de arte. Foi ali, naquela visita, que ele reiterou sua paixão pelo mundo artístico e se declarou fã incondicional de Che Guevara e do cantor Raul Seixas (VIANA, 2010, p. 165), duas personalidades controvesas, que fizeram das suas carreiras símbolos de ousadia e comprovações de que é possível ser mais a partir das próprias forças, que é possível enfrentar a ordem em nome dos próprios ideais, transpor aquilo que parece intransponível e apresentar alternativas para preferências, ideias, desejos, vontades, disposições, necessidades que não encontram canais adequados pelos quais se expressar ou não conseguem se estabelecer por terem de enfrentar um estado de coisas que suprime qualquer manifestação daquilo que escapa aos padrões normativos de conduta e de gosto. A importância de Che que, para o mundo atual, verifica-se por “osmose ou controle remoto” (CASTAÑEDA, 2006, p. 17) reside no período em que o guerrilheiro agiu alçando valores que tentou incorporar, que causam nostalgia para os de hoje e eram combustível para os do passado, que ouviam falar da sua impetuosidade: a igualdade, a solidariedade, a libertação individual e coletiva (CASTAÑEDA, 2006). Para Che Guevara, “em qualquer momento e em pequenas coisas, pode-se ser um grande revolucionário, se se luta contra a injustiça, contra as situações de opressão que as sociedades de classe e o capitalismo produzem” (PÉREZ, 2001, p. 14). Essa aura que perpassa sua imagem foi se projetando ao longo do tempo, chegando aos rincões do Brasil. Ainda que essas questões não se formulassem assim tão claramente a Valdetário, a bravura do revolucionário lhe despertava interesse. A famosa frase hay que endurecer, pero sin perder la ternura jamás12, atribuída a Guevara, que ecoou pelo mundo como um lema de batalha, servia dentre outras coisas como um traço de personalidade, como um princípio de vida seu e para aqueles que, ao tomarem ciência e assimilarem a frase, poderiam entender que é possível ser severo sem se deixar embrutecer, que é possível ser resistente sem ser impermeável, que é possível ser dois e não perder a própria identidade, que é possível lutar sem deixar de ser singelo, assim como Valdetário Carneiro foi. 12 “É preciso endurecer, mas sem perder a ternura jamais”. 100 O grande legado de Che Guevara, que “hora aparece como um Jesus Cristo do século XX, hora como uma máquina fria de matar” (TEIXEIRA, 2009, p. 10), não foi político, mas humano (TAVARES, 2013, p. 13), por ter se tornado um “médico compromissado com uma causa” (COSTA, 2013, p. 65). Por mais criticável que seja, Che enfrentou estruturas de poder e organização social opressivas que de outro modo não seriam movidas e abaladas para dar causa a um novo, dar causa à realização do que se mostrava impossível e mostrar que pode haver alternativas àquilo que se impõe como intransponível. Ele foi uma demonstração de vigor e uma inspiração para seus espectadores, comunicando a estes que eles podem criar e recriar espaços, ampliar limites, ultrapassar fronteiras, serem mais fortes do que aquilo que os persegue com ferocidade e que podem instituir seu eu em circunstâncias hostis. Ernesto Guevara, assim como Valdetário, era um sapiens-demens, “onipresente e multifacetado, uma soma de muitos rostos” (TAVARES, 2013, p. 25). É precisamente nessa questão que os dois se encontram e se assemelham, em um tipo de correspondência cuja necessidade, por mais inconsciente que fosse a Val, revelou-se pela pronta veneração que o mecânico destinou àquele revolucionário que lhe oferecia paradigmas e conteúdos que inspiravam, ainda que no campo da imaginação, uma maneira de se colocar no mundo e viver, já que, como aponta Edgar Morin, “cada um se forma através de mil imitações. [...] A aptidão a imitar personagens manifesta-se tanto no teatro da vida quando na vida do teatro” (MORIN, 2012a, p. 91). O mecânico que foi bandido, o caraubense amedrontador que também foi carismático, podia ver, no médico argentino que foi guerrilheiro e mudou a história de Cuba, que somos grandes e intermitentes demais para se conformar a uma única função, a uma única divisão, a uma única trincheira, a uma única definição. Mesmo que seu sonho de interpretar nos palcos essa multidimensionalidade de ser e da vida não tenha se concretizado pelos atropelamentos do azar, ao olhar para Che e olhar para si, Valdetário encarnou os valores, a potência daquele que o arrebatara, em um lugar muito maior do que qualquer cenário, do que qualquer teatro, do que qualquer tablado: na sua própria existência, com todos os seus pesares; mas o drama, a tragédia não eram gêneros estranhos ao homem que, ainda jovem, já se sentia seduzido e assediado por eles. 101 Figura 17: Valdetário ao lado esquerdo de uma imagem de São Francisco Fonte: JH Primeira Edição, N° 1.146, ano 4, 19/03/2009 Logo que suas empreitadas criminosas começaram a se tornar vultosas, e mais intensamente depois da sua morte, os jornais começaram a tentar descobrir quem era aquele homem. Aquele que era um sonho e um desejo particular de um jovem passou a ser tema das crônicas jornalísticas e das conversas entre as pessoas da cidade que lamentavam ver o menino sonhador se tornar tão violento. Pouco a pouco, enquanto sua biografia e seu perfil começaram a ser descritos, os caraubenses perceberam que não estavam diante apenas de uma história de horrores perpetrados por um suposto perverso contumaz; estavam, também, diante de uma fatalidade, de um desastre pessoal com o qual era possível ser empático. Sua vida, enfim, já não podia mais ser restringida às conclusões policiais. As estrelas frequentavam e ditavam o ritmo da vida do homem na sua oficina, lugar de consertos que segregava concertos da alma que confluíam com os duplos em ebulição daquele que foi por muito tempo um simples, anônimo e pacato cidadão. Para José Valdetário, Raul Seixas, seu cantor preferido, brilhava com tanto esplendor que era impossívelnão ser embalado e convencido por sua poesia. O roqueiro baiano, conhecido por sua excentricidade e por dar voz a gerações 102 rebeldes com suas propostas de vidas e mundos alternativos, era sua fixação, em uma cidade e em uma cultura sem predisposições ao rock. Ouvir Raul e adorá-lo nessas circunstâncias era sinal de uma singularidade e originalidade semelhantes justamente as do próprio Maluco Beleza que, baiano, fã de Elvis Presley, sonhou e realizou seu mundo. Dois homens e a mesma disposição à conquista e posse do imponderável. Raul, “que soube deixar sua marca indelével no coração de cada um nós” (MEDEIROS, 2019b, p. 9), foi também um errático e, coincidentemente, morreu aos 44 anos de idade, em 21/08/1989, quando ainda podia oferecer mais do seu repertório, que era mais do que musical. Sua pródiga criatividade, sua presença marcante, sua inteligência musical ganharam tamanho destaque e cresceu na imaginação do povo, fazendo-o de fato um dos ícones mais importantes da música brasileira, que até “mesmo suas falhas (os shows que abandonou ou que o corpo não segurou) e seus fracassos (seus discos de pouca inspiração, suas apropriações indébitas) são muitas vezes elevados à categoria de acertos indubitáveis” (MEDEIROS, 2019b, p. 10). Val era como Raul, que “alternou em quantidade parelha vícios e virtudes, perversidades e generosidade, grandeza e pusilanimidade” (MEDEIROS, 2019b, p. 12), o que não os tornam menores ou maiores, mas evidencia uma vitalidade mestiça, desregrada, volátil e surpreendente, própria de um humano irredutível ao óbvio, à monotonia da percepção que, movida por maniqueísmos tacanhos, só consegue conceber as pessoas por uma única cartografia. Ao cantar e decantar um mundo que não era o seu, um mundo e um estilo de vida que estava fora do eixo do comum, Raulzito ofereceu a multidões chances de, pela melodia dos versos, vislumbrarem outras existências e fantasiarem, imaginarem, darem formas a essa imaginação. Seixas criou e recriou-se, inventou meios expressivos para reinventar-se, para situar-se e construir vias por onde os muitos que lhe habitavam podiam transitar, comunicar e sobreviver à própria ebulição que o movia e que o fez ser o que foi: a trajetória de Raul Seixas demonstrou na sua breve passagem por esse mundo que o ser tem várias vidas, desempenha diferentes papéis e vive a existência em parte de fantasias, em parte de ações. O seu cancioneiro e a sua poesia nos permite inserir e situar a condição humana no cosmo, na vida, na Terra e ao mesmo tempo, na cultura, na sociedade, na história, na estética. Como nenhum 103 outro compositor, foi produto e produtor de sua música, de sua obra, de sua vida. Foi criador e criatura da sua existência, da sua arte. Soube compreender e manusear como poucos o fato de ter consciência de sua própria consciência, característica fundamental da nossa condição e emergência extraordinária da mente humana. Talvez por isso, achava mais difícil fazer o próprio papel na vida do que encarnar outros personagens. Era mais difícil ser Raul Santos Seixas do que simplesmente Raul Seixas (MOURA, 2020, p. 49-50). Valdetário foi um dentre tantos que, seduzido por essa ontologia instaurada pela poesia, encontrou nas letras de quem incorporava outros para reencontrar a si mesmo o diapasão capaz de equalizar sua dor por não ter conseguido ser o que sonhou e ao mesmo tempo ter se tornado aquilo que era objeto de repulsa pela maioria. Os vários mundos possíveis e a multiplicidade do ser a partir dessa mesma variedade cantada por Raul Seixas, que a seu modo mostrou ser perecível e pobre tornar absoluta somente uma das catalogações possíveis para alguém, foram as mensagens necessárias para Val lidar com as colisões entre seus sonhos de menino e seus erros de adulto, entre sua rotina comum distante dos assaltos e a adrenalina praticamente letal das suas ações, afinal, “a paixão musical substitui todas as formas de vida que não foram vividas e compensa no plano da experiência íntima as satisfações encerradas no círculo dos valores vitais” (CIORAN, 2014, p. 39). Para o caraubense, a julgar pelas coisas as quais foi submetido por causa das rivalidades políticas e familiares que o circundaram, também se tornou mais difícil ser simplesmente José Valdetário Benevides do que Valdetário Carneiro. Sendo este último, mesmo que sobre ele pudesse e possa pesar a culpa e os juízos de valor condenatórios, Val conseguiu fazer com que as condições limitativas impostas pela existência em uma conjuntura de perseguição e implicância pelo poder fossem contornadas e reaver algum tipo de respeito, de controle sobre seu próprio destino, sobre sua história, sobre o que deveriam pensar acerca da sua identidade. Entretanto, assim como Raul Seixas, cuja poesia estava sempre afiada e pronta para dizer algo ao mundo (MOURA, 2020), Valdetário Carneiro estava sempre a perturbar aquilo que estava estabelecido, tanto por suas incursões quanto por sua personalidade de difícil classificação, que foi se delineando em cada uma das suas aparições e encontros com pessoas comuns. Ele ouviu do seu ídolo, cantou e aprendeu a ser uma metamorfose ambulante que aciona seus processos de mudanças a partir de cada necessidade, de cada experiência, de cada 104 interlocutor, de cada problema a ser resolvido e a partir de cada vez que é chamado a dizer a que veio ou quem de fato é. O músico e o mecânico, o ídolo e o fã, foram dois homens que precisaram compor e recompor para sobreviver às suas inadequações e sentirem-se vivos: o primeiro compôs com suas letras; o segundo, com sua vida. Ambos, porém, fizeram dos dilemas força motora para reagir e criar. A música foi para Raul Seixas um mecanismo para dizer a verdade ao poder e um veículo para expressar toda a sua criatividade e genialidade como marcadores da nossa condição demens. Sua poesia provocou e ainda provoca abalos sísmicos. A desordem estabelecida por sua música reforça a loucura como um elemento constitutivo da condição humana e a própria desordem como característica distintiva do nosso ser (MOURA, 2020, p. 128). Mais do que uma opção estética, portanto, o apego a Raul era uma identificação ética e ontológica, um modo de se colocar no mundo que havia encontrado seu correspondente e oportunizado a chance de se ver representado, uma tomada de posição para localizar-se e poder dizer, com palavras ou ações, o que era desejado, o que incomodava, o que não podia ser traduzido de outra maneira ou que nem sequer era possível nomear, o que compunha o ideário, os interesses e as volições daquele que se identificava com uma estrela que parecia consigo, posto que “quando se sofre vivendo, a necessidade de um mundo novo, distinto do que vivemos habitualmente, nasce de forma imperiosa para não diluirmos em um vazio interior. E esse mundo só a música pode trazê-lo” (CIORAN, 2014, p. 39). O que parece simples mostra-se como um receptáculo-projetor dos sujeitos que mobilizam suas energias e envolvem-se com a vida cantada e transformada em poesia. Pela música, soam e ressoam as contradições humanas (ALMEIDA; KNOBBE, 2003, p. 141) que se traduzem nas letras e nas incursões daqueles que, como Valdetário e Raul, tornam seus paradoxos exponenciais ao ponto de se desdobrarem em questões públicas que passam a implicar a outros e falar sobre seus desafios, seus embates externos, seus conflitos internos, suas necessidades de expressão que não encontram facilmente os canais mais adequados de satisfação. Valdetário, assim como Raul, foi vários sendo apenas um, compondo “partituras complexas da condição humana onde estão constituídas a vida” (MOURA, 2020, p. 128). 105 O Raulzito que costumava dizer “sou um monte de coisas, partículas juntas que formam Raul Seixas” (SEIXAS. In: SOUZA 1993, p. 15), era a estrela, a celebridade,o astro que confessava e mostrava ao homem caraubense que ser possuído por muitos e não querer ser somente um não era um problema do seu fã; era um dilema seu e que, por isso, era possível lidar com esse mosaico que constitui a experiência humana aceitando-se como tal, querendo ser, e sendo, tudo ao mesmo tempo sem a necessidade de caber em uma única fôrma. Seixas e Val encontravam-se, pois, nessa necessidade de serem um ator que não quer parar e só interpretar um personagem (SEIXAS. In: SOUZA, 1993, p. 38). É assim que Raul se apresenta e se faz ouvir em um trecho da música Gita, escrita em parceria com Paulo Coelho, em 1974: Você pensa em mim toda hora Me come, me cospe, me deixa Talvez você não entenda Mas hoje eu vou lhe mostrar Eu sou a luz das estrelas Eu sou a cor do luar Eu sou as coisas da vida Eu sou o medo de amar Eu sou o medo do fraco A força da imaginação O blefe do jogador Eu sou, eu fui, eu vou Raul poderia ser quem quisesse, só não aceitava ser normal, enquadrar-se, manter-se dentro dos enquadramentos da banalidade. Reconhecia-se instável e declamava sua instabilidade para que todos pudessem ver sua humanidade na celebridade, de modo que, ao ouvirem, percebessem que suas estranhezas não eram tão exóticas assim. Confessando isso em canções, ele oferecia a seus ouvintes “uma válvula de escape diante dos acontecimentos da vida, dos infortúnios da existência e dos problemas gerados pela consciência do real” (MOURA, 2020, p. 101). Cantou o sofrimento que também podia ser de Valdetário, em “Aquela Coisa”, do ano de 1983: Meu sofrimento é fruto do que me ensinaram a ser Sendo obrigado a fazer tudo mesmo sem querer Quando o passado morreu e você não enterrou 106 O sofrimento do vazio e da dor Ficam ciúmes, preconceito de amor... ... Minha cabeça só pensa aquilo que ela aprendeu Por isso mesmo, eu não confio nela eu sou mais eu Sim... pra ser feliz e olhar as coisas como elas são Sem permitir da gente uma falsa conclusão Seguir somente a voz do seu coração... O “Maluco Beleza” não compôs somente poesia e instituiu um modo de ser; ele falou daquilo que mais interessava e sobre o que as palavras disponíveis para quem o ouvia eram incapazes de enunciar. Ouvindo e cantando Raul, Val podia transformar em poesia seus delírios errantes e decantar as dores que o atravessavam. Entre os dois havia em comum uma gramática musical e existencial, dotada de uma razoabilidade peculiar, afinal, “a sabedoria da vida deve assumir a loucura da vida, que deve integrar a racionalidade numa louca sabedoria” (MORIN, 2017, p. 137). Além do encantamento pelo teatro e da enorme paixão por Raul Seixas, Valdetário era absolutamente deslumbrado pelo automobilismo, sobretudo pela Fórmula 1 (F1) e por aquele que se tornaria um ídolo nacional: Ayrton Senna. Ele sempre quis conhecer e ver de perto o evento, a magnitude daquelas máquinas cujo funcionamento ele mesmo, por causa do seu trabalho, conhecia suficientemente bem para se interessar por aquele espetáculo de ação e velocidade (BARBOSA; NASCIMENTO, 2013). Ir e presenciar a apoteose dos carros era, por um lado, uma realização pessoal, e, por outro lado, uma obsessão de quem era atraído pelas estrelas e seu brilho. Conforme Dudé Viana (informação verbal), foi através da carreira de Emerson Fittipaldi que Val se apaixonou pelo esporte. Com a ascensão de Senna, impulsionada pela cultura de massas, logo foi arrebatado por aquele piloto para o qual as limitações só estavam postas para serem ultrapassadas. Senna tinha o que precisava na Fórmula 1 de sua época: uma disciplina fantástica e a percepção de que estava num negócio que contém esporte. Além disso, conseguiu provocar a adoração do mito, sendo um padrão de doçura absoluta, de bondade, de capacidade de luta. E mais o estilo destemido. Tudo o que se espera de um ídolo e, junto com isso, uma visão comercial muito grande. Ele misturava tudo de uma maneira que era praticamente impossível saber onde terminava uma coisa e onde começava a outra (RODRIGUES, 2004, p.169). 107 Edgar Morin (2018b) chama esses novos famosos de “olimpianos”, em referência ao Monte Olimpo, local onde os gregos antigos acreditavam habitar os principais deuses a quem prestavam culto. Esses Olimpianos passam a se destacar por alguma característica pessoal que, ao ser identificada pelos meios de comunicação, será explorada para transformar seus portadores em ícones que logo se tornarão “modelos de cultura no sentido etnográfico do termo, isto é, modelos de vida” (MORIN, 2018b, p. 101), heróis-modelo que “realizam os fantasmas que os mortais não podem realizar, mas chamam os mortais para realizar o imaginário” (MORIN, 2018b, p. 101) no real, na medida do possível, em suas vidas comuns e a partir daquilo que são e possuem como qualidades de si, como se a projeção daquela imagem fantástica introjetasse uma certa energia vital em quem as aprecia por desejar ser como elas são e fazerem o que elas fazem: os novos olimpianos são, simultaneamente, magnetizados no imaginário e no real, simultaneamente ideais e inimitáveis e modelos imitáveis; sua dupla natureza é análoga à dupla natureza teológica do herói-deus da religião cristã: olimpianas e olimpianos são sobre- humanos no papel que encarnam, humanos na existência privada que levam. A imprensa de massa, ao mesmo tempo que investe os olimpianos de um papel mitológico, mergulha em suas vidas privadas a fim de extrair delas a substância humana que permite a identificação (MORIN, 2018b, p. 101) Ainda bem pequeno, Ayrton demonstrou paixão pelo automobilismo e tudo que envolvia os carros, desde sua bem-sucedida carreira nas competições de kart, nas quais foi por diversas vezes e por diferentes categorias campeão, até o auge na F1, passando pelas divisões de base. Era obstinado por vencer e ser o melhor das pistas. Tanto que, no início, quando precisou se afastar das corridas para administrar uma loja de materiais de construção do pai, aquele que havia sido entusiasta de primeira hora do talento do filho para competir, sua relação familiar se deteriorou ao ponto de desistir da administração da loja e retornar às pistas exclamando para todos da sua casa que “ninguém mandou me colocar sentado num kart quando eu era pequeno. Experimentei, gostei, e agora não peçam jamais para eu desistir. É a minha vida!” (RODRIGUES, 2004, p. 61), e era mesmo: todos os elementos que comporiam sua reputação na F1 já estavam presentes naquele mundinho amador, juvenil e improvisado do kart. Ayrton passou a ser conhecido por ser fechado e introvertido fora das pistas e extremamente técnico e competitivo dentro delas. Era 108 educado com todos, mas parecia educado até demais e falava o tempo inteiro em questões de motor e desempenho. Sempre tentava fazer as curvas mais rápido que os outros, e as fotos de suas atuações no kart mostram que ele as fazia quase de lado, no limite da força centrífuga (PIZA, 2003, p. 18). Assim como Valdetário, que sozinho aprendeu o funcionamento dos automóveis e a manipular suas peças, pela intuição, pelo tato, pelo magnetismo existente entre ele e as máquinas, “Senna mapeava o comportamento do carro a cada instante e a cada circunstância” (PIZA, 2003, p. 25), o que, a contento, fez com que ele desenvolvesse o hábito (que seria uma das suas marcas registradas) de, antes das corridas, percorrer todo o traçado da pista a pé a fim de verificar cada uma de suas peculiaridades, como se quisesse aferir a compatibilidade entre aquilo que ele já havia mapeado e os desafios que esse mapeamento logo precisaria enfrentar. Dedicados e estrategistas, o caraubense e o piloto paulistano foram homens que aguçaram seus talentos passando pelas provas mais ferrenhas que poderiam existir. Essa relação com as corridas e com o maior astro brasileirodo automobilismo aprimorava sua profissão e fazia com que ele se esmerasse ainda mais naquilo que se dedicava, enquanto o desejo de ir a Interlagos e assistir presencialmente aquilo para o que ele havia devotado a vida persistia, estimulando o mecânico. Por tanto apego e admiração, tornou-se reconhecidamente o melhor profissional da região e fez da sua oficina uma referência no conserto, na manutenção e correção dos problemas automobilísticos. Havia até mesmo quem se deslocasse de outros municípios só para ser atendido por seus serviços e usufruir da sua destreza com os carros. O que não pôde ser alcançado completamente foi sendo consumado parcialmente diariamente. A excelência das pistas com que sonhava acordado fez surgir um exímio e engenhoso especialista, com razão, afinal “as celebridades simultaneamente encarnam tipos sociais e proporcionam modelos de papéis” (ROJEK, 2008, p. 19). Quando soube da morte de Aryton Senna, naquele 01/05/1994, enquanto disputava o Grande Prêmio de San Marino, no Autódromo Enzo e Dino Ferrari, em Ímola, na Itália, Valdetário chorou copiosamente, relata Aguinalda Fernandes (informação verbal), declarando posteriormente que nunca mais a F1 seria a mesma, e que não teria mais sentido assistir aos grandes prêmios, tamanha a dor que sentira por perder a figura que o inspirava tanto. Aquele fatídico dia, em que o https://pt.wikipedia.org/wiki/Grande_Pr%C3%AAmio_de_San_Marino_de_1994_(F%C3%B3rmula_1) https://pt.wikipedia.org/wiki/Aut%C3%B3dromo_Enzo_e_Dino_Ferrari https://pt.wikipedia.org/wiki/%C3%8Dmola https://pt.wikipedia.org/wiki/It%C3%A1lia 109 Brasil inteiro mais uma vez pararia para apreciar os espetáculos do gênio das pistas, transformou-se em uma data de luto, comovendo toda uma nação: “era domingo de sol e feriado do Trabalho no Brasil, e o relato do hospital chegaria no horário do almoço. O dia, a semana, o mês não teria outro assunto” (PIZA, 2003, p. 114). A perda do ídolo e do objeto dos seus sonhos, porém, não seria suficiente para apagar a chama que já havia sido acesa no coração de Val. Para essa constatação, basta observar como ele realizava seus assaltos, sempre dotado de carros ultra potentes, roubados dos grandes fazendeiros ou de figuras de alto poder aquisitivo, e alcançavam velocidades extraordinárias. Os registros (BARBOSA; NASCIMENTO, 2013), inclusive visuais, atestam que a maioria desses automóveis usados pela quadrilha era formada por modelos 4x4 importados, picapes e caminhonetes que, por mais preparadas para enfrentar rotas difíceis que já fossem, ainda contavam com incrementos adicionados pelo próprio Valdetário, a fim de tornar seu maquinário imbatível e muito acima da média, especialmente em comparação com modelos de mesma marca e fabricante. As rodovias acidentadas do interior do Nordeste, o relevo dificultoso da caatinga, as estradas de areia e barro, a vegetação espinhosa, os matagais pelos quais a quadrilha empreitava suas fugas equivaliam às pistas de corrida e competição que Valdetário Carneiro nunca pôde conhecer. Competir na velocidade com as forças de segurança equiparava-se a concorrer com os pilotos que ele só viu pela televisão. As pequenas cidades que presenciaram a passagem desses veículos pujantes, acostumadas ao passar rotineiro das horas no interior, transformaram-se em grandes autódromos para todo tipo de excitação, nisso que, em virtude da sua suntuosidade, tornava-se um acontecimento inesquecível, à maneira de um Grande Prêmio de Fórmula 1. O homem que havia sido impedido de viver o sonho de ser ator, fez da vida o seu palco movido pelas estrelas que faziam seus olhos brilharem: as celebridades oferecem afirmações peculiarmente fortes de pertencimento, reconhecimento e sentido em meio às vidas de seu público, vidas que de outro modo poderiam ser pungentemente experimentadas como de baixo desempenho, anticlimáticas ou subclinicamente deprimentes (ROJEK, 2008, p. 58). Típico da cultura de massa, onde a vida é aquela que “conhece a liberdade, não a liberdade política, mas a liberdade antropológica, na qual o homem não está mais à mercê da norma social: a lei” (MORIN, 2018b, p. 105), de modo que viver não 110 é apenas mais intenso, é outra experiência, uma experiência de expansão de si. Valdetário Carneiro, que não pôde presenciar a velocidade alucinante dos carros em Interlagos, que não liderou nenhum movimento revolucionário como Tiradentes e Che Guevara, que não cantava e não tinha o pedestal de Raul, transferiu a coragem, o espírito de liderança e autodeterminação dessas personalidades à marginalidade para a qual foi empurrado e da qual fez uso para reivindicar o respeito dos outros. Fez ser realidade o que era produto do seu desejo, mostrou a factibilidade do novo cogito proposto por Bachelard (2009, p. 140): “eu sonho o mundo; logo, o mundo existe tal como eu sonho”. O tema da liberdade se apresenta através das janelas diariamente abertas da tela, do vídeo, do jornal, como evasão onírica ou mítica fora do mundo civilizado, fechado, burocratizado. É a esse título que existe relação profunda entre o tema do rei e o do vagabundo, o tema do fora da lei e o do taitiano, entre o estado natural e a gangue. Ao mesmo tempo, porém, o tema da liberdade se inscreve no grande conflito entre o Homem e o Interdito. Qualquer que seja a saída desse conflito, e mesmo que o homem finalmente seja vencido ou domesticado pela lei, a revolta antropológica contra a regra social — o conflito fundamental do indivíduo e da sociedade — é colocada, e as energias do homem são empregadas nesse combate (MORIN, 2018b, p. 107-108). Valdetário transformou-se em autor-ator da própria história quando incorporou esse outro seu que matava e assaltava, quando, mesmo praticando coisas ruins, espalhou rastros de bondade, quando decidiu ser o criminoso e não apenas mais um, quando não contradisse ninguém no momento em que acoplaram a seu nome o sobrenome “Carneiro”, que já havia se tornado uma pecha e ele tentou reverter, quando mobilizou as atenções para um caso de injustiça jamais reparada. Mesmo depois de ter se tornado o notório bandido que se tornou, ele manteve seus hábitos, distante das ostentações do seu próprio bando e indiferente à posse dos signos distintivos de riqueza que nunca o atraíram. Para ele, não importava fazer uso dos bens e dos lucros da sua atividade criminosa. Enquanto seu bando circulava nas famosas caminhonetes 4x4 importadas, o chefe preferia sua Chevrolet D-20, modelo considerado ultrapassado para a época. Tudo mudava quando resolvia entrar em ação. Era o momento das luzes se voltarem para seu espetáculo, e as vestimentas simples, o calção corriqueiro, as camisetas básicas acompanhadas de sandálias populares, pelos quais ele era reconhecido no cotidiano, davam lugar a calças jeans, camisas arrojadas e um par 111 de botas que impelia o ator à sua personagem demencial e conferia-lhe uma aparência completamente diferente. A mudança de figurino, mais do que uma mera troca de roupa, constituía um processo de estetização do sujeito para o empoderar. Mudar de trajes equivalia, pois, a mudar de atitude, como quem busca a coragem onde ela não pôde ser encontrada de antemão, como quem, ao vestir-se diferente, investia-se dos poderes olimpianos para feitos extraordinários. Paramentado da sua indumentária e investido desses poderes, Valdetário cruzava Estados, atravessava cidades, desbravava o sertão e o tornava seu pela intrepidez demonstrada. Seu nome ganhou status à medida que começou a circular nos registros policiais e jornalísticos. A partir da sua aparição, de modo drástico, todos poderiam saber que um jovem mecânico do interior havia sido vítima da inabilidade e da impostura sócio-político-culturais das confabulações dos poderosos, como pensa e afirma categoricamente Marciano Medeiros (informação verbal)13:“não tenho dúvida de afirmar que Valdetário Carneiro foi uma grande vítima do Estado Brasileiro”. Seu empoderamento foi completo, e era preciso ser assim para que seus planos ambiciosos pudessem se consumar. Ele escolheu e montou os melhores carros para atuar, apropriou-se do armamento mais potente que poderia, indo de metralhadoras semiautomáticas a pistolas de uso exclusivo das forças armadas brasileiras e fuzis, incluindo um M-16, usado exclusivamente pelo exército norte- americano, enviado em ônibus interestaduais da cidade de São Paulo (GUERRA, 2009). Também não teria escolhido os bancos, “símbolos do poder impessoal do dinheiro” (HOBSBAWM, 2017, p. 144) que determina os termos das relações sociais, para desafiar o sistema; não teria optado pela espetacularização dos seus feitos, não feito questão de atrair os holofotes, não teria sido, por fim, um homem que marcaria uma época e cravaria seu nome nos anais da história de um Estado, de uma região e de um país apenas por ser ele mesmo, desproporcionalmente audaz e controverso. Foi assim que ele, um sertanejo comum, transformou sonho em realidade. Parecido com o anarquista e assaltante espanhol Francesc Sabaté Llopart, que “percorria as fazendas das montanhas como mecânico ambulante e reparador de tudo quanto precisasse de conserto” (HOBSBAWM, 2017, p. 151), Valdetário 13 Depoimento concedido por escrito e recebido por e-mail, em setembro de 2020. 112 Carneiro “roubava bancos não apenas para conseguir dinheiro, mas como um toureiro enfrenta touros — para demonstrar coragem” (HOBSBAWM, 2017, p. 160). Para o caraubense, dado seu histórico de ações espetaculares e sua forma inédita de disputar com as polícias, o que realmente valia era antes o exemplo de ação do que seus efeitos, tendo em vista que, sabendo da sua superioridade de ataque “conseguir dinheiro com o risco da própria vida equivalia, num certo sentido moral, a pagar por ele. Caminhar sempre em direção à polícia era não só uma correta tática psicológica, como também a maneira de agir do herói” (HOBSBAWM, 2017, p. 161). A fama com que sonhara o jovem rapaz enfim havia sido conquistada e, a partir de então, seria impossível para caraubenses e norte-rio-grandenses se desvencilharem do seu sucesso proibido, subversivo e dramático. Coube à vida e aos seus atores, sem que o soubessem, compor e recompor os roteiros, montar e remontar os cenários, decidir quais coadjuvâncias seriam decisivas e o final de uma biografia que foi uma saga, de uma epopeia que foi uma tragédia, de uma história que continua viva em Caraúbas e no Rio Grande do Norte. Ainda que tentassem e tentem, era e é impossível evitar falar de uma experiência e de um tempo em que houve um sertanejo comum que, a seu modo, conseguiu fazer frente a tudo e a todos que eram maiores e que se empenharam em diminuí-lo ou enfrentá-lo. 4. 1 – A espetacularização da coragem Os primeiros anos da década de 2000 são considerados o auge da quadrilha que em pouco mais de dois anos realizou sete sucessivos assaltos a várias instituições no RN. A sequência foi tão aleatória quanto bem encadeada, seguindo o mesmo padrão de sitiar as cidades e fazer os pequenos efetivos policiais locais de refém: em 17 de janeiro de 2002, o alvo foi o Banco do Brasil (BB) de São Miguel do Oeste; em 17 de fevereiro do mesmo ano, os Correios de Barra de Maxaranguape; em 27 de fevereiro, o BB de João Câmara; em 6 de março, uma agência do mesmo banco e os Correios de Touros, onde o bando, após os policiais terem se rendido, ao invés de executá-los, atiraram em direção ao chão obrigando os agentes a pular e a dançar (BARBOSA; NASCIMENTO, 2013), nesse que é um causo que tem sua veracidade questionada como lenda, mas que é lembrado com risos por quem o conta. E continua: em 13 de maio de 2002, o BB de Santana dos Matos, em 3 de 113 junho os Correios de Poço Branco, e em 4 de junho de 2002 o mais famoso dos assaltos, que saqueou ao mesmo tempo as três únicas agências bancárias da cidade de Macau14. Até aquele momento, esse tipo de prática criminosa ostensiva e muito bem arquitetada era completamente desconhecido no Rio Grande do Norte. Ver as cidades sendo invadidas por uma fila de carros carregando uma porção de homens com armas à mostra e impondo terror com requintes de sarcasmo e ironia era uma novidade para a qual a inteligência e as possibilidades de contenção municipal e estadual não estavam preparadas. Sempre vestidos como se fossem a uma guerra, de coturno e macacões parecidos com aqueles usados por petroleiros, o bando sabia exatamente o que fazer chegando aos municípios, cada qual com sua função pré-estabelecida e um alvo a ser contido ou vigiado, com a ordem do chefe de não matar ninguém que primeiro não os tenha tentado executar. Os planos eram infalíveis e seu mentor, participante direto, totalmente focado na concretização impecável do que deveria ser feito. Rápidas e perspicazes, as incursões eram tão eficientes que não sobrava tempo para que o apoio das polícias de cidades vizinhas chegasse. Sempre comandado por Valdetário, os roteiros que seus homens seguiam pareciam ter saído de um filme de ação, tanto pela escolha ousada de assaltar à luz do dia, com os rostos de fora, instituições relativamente seguras e adaptadas para evitar roubos, quanto pelas atitudes surpreendentes que o chefe e seus comandados tinham. Era tudo muito inédito e espetacular demais para não ser irrevogavelmente notório. O homem que um dia havia se encantado pela aventura, que havia sido capturado pela adrenalina, que havia sido seduzido pela encenação fazia desses ingredientes a substância dos seus atentados. Para ele, nada podia ser pequeno e passar despercebido: tudo devia ganhar notoriedade e deixar o recado de que, a partir do momento em que se fazia conhecer, teriam de lidar com alguém fora de série que tratava empecilhos como estimulantes. O poder e os poderosos agora teriam um que os afrontaria, quando não em pé de igualdade, superiormente. São incontáveis os casos e narrativas a que se pode ter acesso ouvindo os caraubenses, lendo os jornais da época e consultando registros que, uns mais precisos e factíveis que outros, desenham esses mesmos traços de uma ousadia 14 Em 30/09/2008, a Federação Nacional dos Policiais Federais (FENAPEF) lançou em seu site uma matéria sobre o bando e esses assaltos. Link para acesso: https://fenapef.org.br/17608/. https://fenapef.org.br/17608/ 114 espetacularizada por Valdetário Carneiro e os seus cúmplices. Três exemplos se destacam: a fuga do presídio de segurança máxima de Alcaçuz, na madrugada de 05 de novembro de 2000; o assalto aos únicos bancos da cidade de Macau, distante 177km de Caraúbas, e a confissão espontânea em uma rádio do assassinato do médico João Simião Pereira. Juntos, esses três episódios projetaram a imagem de Valdetário, midiática e popularmente, aumentando o grau de preocupação social com aquilo que estava a se desenrolar diante de todos e havia se inscrito de uma vez por todas na ordem das demandas públicas urgentes. Logo depois do assassinato de João Pereira e da enfermeira Walquíria Batista Dantas que o acompanhava, ainda no ano de 1999, quando as investigações nem sequer haviam sido concluídas, Valdetário, que havia se habituado a dar entrevistas às rádios do oeste potiguar para desfazer mentiras a seu respeito sobre crimes que lhe imputavam e não haviam sido praticados por ele, liga15para uma delas e confessa o crime ao vivo, impondo-se e fazendo ameaças ao restante da família Simião Pereira, com a ressalva de que o único de caráter dentre todos os parentes do médico assassinado era Agnaldo Simião Pereira, à época prefeito de Caraúbas. A morte causou comoção na cidade e o velório seguido do sepultamento foi acompanhado por uma multidão emocionada. Em 08/06/2000, o prefeito, cujahonra havia sido exaltada, concede uma entrevista a então chamada TV Cabugi, afiliada da Rede Globo no Estado, apaziguando os ânimos e tentando uma trégua daquela disputa familiar, informando, aliás, que irá controlar qualquer tentativa de revide. Não obstante, faz um apelo: “eu quero que o caso seja esclarecido, se possível trazer a Polícia Federal”. Seis meses depois da confissão, o mentor do crime é preso na cidade de Monteiro, na Paraíba. Val, que estranhamente estava desarmado e absolutamente vulnerável ao lado de Silvana, não esboça reação. Despreparado para o confronto, nem de longe parece com aquele criminoso da rádio, dos relatos e dos crimes praticados. Presos ele e seu braço direito, o primo Cimar Carneiro, são conduzidos à Penitenciária Estadual Dr. Francisco Nogueira Fernandes, mais conhecida como Presídio de Alcaçuz, na cidade de Nísia Floresta/RN. Considerado um presídio de segurança máxima, Alcaçuz seria palco para mais um dos atos cinematográficos do personagem Valdetário Carneiro e de seu 15 O áudio da ligação foi reproduzido por aquela mesma edição do Programa Linha Direta. 115 bando. Entre 15 e 16 homens, em duas caminhonetes Ford Ranger e uma Chevrolet Silverado, com duas escadas que transpassavam os muros da cadeia (uma lançada para o lado interior de Alcaçuz e outra mantida do lado de fora), armados de metralhadoras giratórias, Fuzis AR-15, pistolas e granadas, rendem a vigília policial que estava de serviço e, além de resgatar o seu chefe e primo, dão causa para a fuga de outros 28 a 30 apenados, transformando radicalmente a rotina daquele lugar e causando uma convulsão entre os presidiários que não conseguiram escapar, que logo trataram de utilizar isso como pretexto para uma rebelião que seria reportada pelos principais veículos de comunicação estaduais como resultado direto da ação perpetrada pelos Carneiro. Figura 18: reprodução da matéria impressa sobre a fuga do presídio Fonte: Jornal Tribuna do Norte, edição online de 20/01/2012 O ineditismo da ação, que mais uma vez demonstrava a alta capacidade de articulação da quadrilha e sua audácia, aliado à insatisfação explosiva dos presos remanescentes, compunha a pauta dos periódicos impressos, televisivos e radiofônicos. Até aquele dia, essa fuga havia sido a maior e mais engenhosa já registrada no RN. Quando houve uma superior e precisou descrevê-la, no ano de 2012, o Jornal Tribuna do Norte, famoso no Estado por sua enorme tiragem, 116 reproduziu uma foto16 da sua versão impressa que havia relatado detalhes daquela que se tornara o parâmetro para avaliar as insuspeitáveis fragilidades do presídio mais seguro da época. Aquele passado e aquela incursão não poderiam ser esquecidos porque haviam sido tão espantosos quanto marcantes. Essa foi, dentre tantas outras, uma maneira de que Valdetário fez uso para demonstrar que o máximo do Estado era próximo do mínimo em comparação com sua capacidade estratégica, para deter sua determinação e sua organização criminosa, semelhantemente ao que ele demonstrou ao assaltar as três agências bancárias de Macau, tomando não apenas as agências de sobressalto, mas toda cidade que, atônita, parou diante daquelas cenas e contracenas de um filme de ação que incluía os macauenses no elenco sem que eles houvessem esperado ou pedido. A Terra do Sal, por algumas horas, passaria a ser a Terra da Estupefação de testemunhar o que nunca havia sido visto por seus olhos na vida real. Tudo parecia seguir a mais plena normalidade no início da tarde do dia 04/06/2002, até as famosas caminhonetes potentes invadirem a cidade cuja entrada também era a saída. Eram mais de 15 homens dos Carneiros que chegavam para impor um roteiro que nunca mais seria esquecido. Os relatos dão conta de que, ao se aproximarem dos bancos, os criminosos dispararam para o alto diversas vezes. Os alvos dos assaltos eram o Banco do Brasil, a Caixa Econômica Federal e o Banco do Nordeste, este, inclusive, preservou em suas paredes as marcas de dois tiros daqueles disparados, que por algum tempo seriam os únicos vestígios do atentado. Com as armas potentes de sempre, os assaltantes conseguiram render a todos e roubar as agências-alvo, no mais ousado dos assaltos que já haviam feito e de que se tem conhecimento. Estima-se um prejuízo de R$ 500 mil reais, quantia nunca confirmada de fato. O assalto, que fez alguns reféns, transcorria dentro do combinado, sem vítimas fatais ou baleados. Com as esquinas e a entrada-saída sitiada e vigiada por seus homens, nada podia sair fora do roteiro; até que uma viatura, ocupada por dois delegados da Polícia Civil, um agente e um sargento da Polícia Militar, surgiu e, sem saber da magnitude do esquema montado, reagiu atirando a esmo na tentativa de abater os assaltantes. Foi o erro que não poderiam ter cometido, porque, ao tentar matar os homens de Valdetário, esses mesmos homens passariam a ter liberdade 16 Link para acesso à matéria: http://www.tribunadonorte.com.br/noticia/fuga-e-a-maior-da-historia-de- alcacuz/209577. http://www.tribunadonorte.com.br/noticia/fuga-e-a-maior-da-historia-de-alcacuz/209577 http://www.tribunadonorte.com.br/noticia/fuga-e-a-maior-da-historia-de-alcacuz/209577 117 para contra-atacar como quisesse. Aconteceu: houve confronto com rajadas de tiros espalhafatosas, que deixaram a cidade em pânico. O delegado regional Antônio Teixeira dos Santos Júnior foi ferido no braço e no rosto, enquanto o outro delegado que conduzia a viatura, Róbson Luiz de Medeiros Lira, foi morto. Por causa disso, a rixa entre “Os Carneiro” e as forças policiais acirrou-se cada vez mais, naquele que se constituiria um ataque tanto à segurança pública quanto à corporação. Figura 19: entrada de Macau rodeada por águas Fonte: www.google.com.br Completados 10 anos do assalto, a Tribuna do Norte fez uma matéria17 inteira sobre o crime que, nas palavras de Marcos Antônio da Silva, um dos entrevistados pelo jornal, “foi coisa de cinema”, e, segundo as elaborações do mentor disso tudo, era para ser mesmo, porque era necessário ser espetacular, era necessário mostrar que aquele homem, uma vez humilhado, agora podia subjugar e ele mesmo impor 17 Link para acesso à matéria: http://www.tribunadonorte.com.br/noticia/grande-assalto-completa-10- anos/221846. http://www.google.com.br/ http://www.tribunadonorte.com.br/noticia/grande-assalto-completa-10-anos/221846 http://www.tribunadonorte.com.br/noticia/grande-assalto-completa-10-anos/221846 118 suas vontades. “O grande assalto”, como classificou a Tribuna, tinha a audácia em sua raiz, afinal sitiar uma cidade sem rotas de fugas alternativas, rodeada por água e mar, implicava em tornar o evitável em meta, o impossível em possível para quem, tomado pela desmedida, estava obstinado a fazer-se insubstituível naquilo a que se propusera a fim de dizer a que veio e o que haviam feito da sua vida impondo-lhe pagar o preço de ser vítima de sucessivas injustiças amargas. As três incursões revelam um só e mesmo traço: a necessidade de ser notório. No limiar da queda, na iminência de ser pego ou de ter seus planos frustrados por um erro de cálculo ou por uma contingência qualquer, Valdetário fazia questão de ser visto e cravar seu nome ao medir forças com aquilo que se impunha e superava a possibilidade de outros transgressores. Ao medir suas forças, tinha a oportunidade de mostrar seu predomínio; tornava-se ele mesmo dono e regente de si, indo ao extremo e arriscando a própria integridade física em uma jornada de delinquência, mas de autoafirmação radical e busca de alguma respeitabilidade, já que todas haviam lhe sido retiradas com suas prisões injustas de antes. Com propósito, portanto, ele se distanciava dos comuns e colocava-se na lista dos excepcionais, vistoque não bastava transgredir; era-lhe necessário transgredir com sofisticação a fim de transformar seus assaltos em acontecimentos memoráveis. A confissão pública do assassinato não era necessária; Macau, cidade praticamente ilhada, não precisava ser uma escolha, posto que o risco de que tudo desse errado era grande pelas características da cidade, e a derrubada da reputação de segurança máxima de Alcaçuz poderia ter sido aos moldes rudimentares em que as fugas aconteciam naquele tempo, escavando túneis ou coisas do gênero, sem confronto armado. Não, para ele não bastava ser imperceptível; era preciso cinematografar e alcançar os pícaros do seu Monte Olimpo. As cenas deviam ganhar as manchetes, deviam circular entre o maior número de pessoas possível, deviam registrar que o homem pacifico de outrora, submisso a duras penas sem culpa, agora era o responsável por dar as cartas em um jogo do qual havia se cansado de ser somente uma peça, por isso reivindicou o papel de jogador. Se esse jogador não deveria ter existido pelas dores que causou, o jogo muito menos, afinal, este último acionou o primeiro. Que os juízos sobrevenham a ambos. 119 Seja como fosse, Valdetário Carneiro opunha-se ao nivelamento por baixo da sua personalidade e das coisas que fazia, porque havia feito a personificação de um outro uma performatização que, como tal, deveria ocupar os lugares mais altos e receber o devido destaque pelas audiências. O lugar-comum ocupado pelos demais já não satisfazia seu gênio, cujo objetivo passava por voltar a ter um nome que remetesse a qualidades, ainda que estas fossem enviesadas como foram, mas isso tendia a ser relativizado, já que, “até certo ponto, o desejo de celebridade é uma refutação das convenções sociais” (ROJEK, 2008, p. 160), que transforma seus agentes em algo semelhante à figura arquetípica do anti-herói cujo compromisso de “explorar um estado de coisas na sociedade percebido como insatisfatório” (ROJEK, 2008, p. 172) o conduz a um patamar de representar aspirações e frustrações as quais seu oposto, o herói, não corresponde. Como símbolos de uma luta nem sempre nomeada ou com permissão para se mostrar, bandidos com forte representação cultural e simbólica como Valdetário se tornam colocam-se à frente de inconformismos que dificilmente identificam canais por onde podem dizer que existem e precisam de respostas, encarnam revoltas que nem sempre têm objeto claramente definido, reagem a males que nem sempre vencerão. No entanto, estão presentes e são facilmente percebidos pela experiência concreta de cada sujeito em seu contexto, em sua comunidade, nos seus empreendimentos. Com efeito, tornam-se ilustres marginais de uma indignação difusa que encontra na rebeldia pessoal de alguns o solo fértil para germinação de narrativas e processos de simpatia que antes não puderam ser traduzidos: todo mundo sabe, por experiência, o que significa ser tratado injustamente por pessoas e instituições, e os pobres, os fracos e os desvalidos sabem disso melhor do que ninguém. E, na medida em que o mito do bandido representa não só liberdade, heroísmo e o sonho de justiça para todos, mas representa também, de modo mais especial, a rebelião da pessoa contra a injustiça de que é objeto (a correção de minhas injustiças pessoais), perdura a ideia do justiceiro pessoal, principalmente entre os que carecem das organizações coletivas que são a principal linha de defesa contra tais injustiças (HOBSBAWM, 2017, p. 218). Ao transgredir e recusar as convencionalidades, o transgressor tanto denuncia quanto é aclamado por denunciar aquilo contra o que as pessoas não tinham condições, instrumentos ou recursos para se insurgirem, estabelecendo-se como um tipo especial que escancara a face suspeita do heroísmo convencional, 120 desde sempre reverenciado, caminhando paralelamente, de modo que sua notabilidade e fama passam a ser inversamente proporcionais ao resplendor daqueles ou daquilo que heroicizaram a partir dos valores e da moral vigente, de modo que a transgressão, especialmente a transgressão de Valdetário, que quis o sucesso, foi “um caminho tentado e testado na aquisição de notoriedade. Ela permite ao indivíduo carente de realização conquistar o reconhecimento da mídia e o status público como personalidade singular ou engrandecida” (ROJEK, 2008, p. 183). Nesse ponto convergem o demens de Valdetário e seu ardor pela representação artística. Um não pode ser entendido sem o outro, porque se complementam. Bandido, herói ou anti-herói, seja qual for a definição que as conveniências, os compromissos, as determinações morais, a imaginação, a fantasia, o afeto, o envolvimento pessoal com o mecânico que fez de uma vida trivial uma aventura irreverente, marcada pela eletrizante e pelo perigo sempre iminente sem afastar-se da brandura, da amorosidade, da afabilidade, do cuidado e da suavidade com as quais conquistou amores extasiantes, amigos e carinho, será inútil detê-lo a qualquer uma dessas classificações, suprimir sua humanidade e negar que, mesmo sob todas as críticas que se possa fazer e sob a égide da criminalidade, ele reluziu como seus ídolos e triunfou sobre as amarras construindo pontes com sua gente. 4. 2 – Sucesso de público e crítica Para Chris Rojek (2008), há três tipos de celebridades: a conferida, aquela que é herdada pela linhagem da qual se faz parte; a adquirida, que é o resultado do reconhecimento público destinado a um alguém merecedor de honorabilidade por possuir raros dotes e habilidades singulares, e a celebridade atribuída que não tem relação exclusivamente com os talentos e habilidades do sujeito, mas acontece pela concentrada representação de um indivíduo como digno de nota ou excepcional por intermediários culturais. Valdetário foi e é um misto dos dois últimos tipos, afinal passou a ser reconhecido e reportado por boa parte da imprensa como um agente extraordinário do crime, dotado de qualidades que o faziam superior aos demais, de sorte a inspirar tanto tremor quanto curiosidade simpática nos espectadores. 121 Dividindo opiniões e produzindo emoções distintas, Val construiu sua carreira a partir da ambiguidade e, desse modo, conseguiu atrair as atenções de todos, para repelir ou para buscar proximidade. Ele cometeu barbaridades e isso por si deveria provocar as óbvias reações repulsivas, mas o mecânico com sonho de ser celebridade, contrariando as expectativas, encontrou quem apreciasse e fosse cativado precisamente por causa das mesmas razões, como se os crimes e as contravenções praticadas não tivessem força suficiente para atenuar o deslumbramento e a fetichização da sua pessoa, e não tinham mesmo. Livres de culpa e burlando os tabus, os duplos de outras pessoas encontravam-se com o duplo do bandido e podiam comunicar-se para fortalecerem-se mutuamente. O homem de crimes espetaculares tinha seus fãs, aqueles cujo olhar se voltava para outras coisas que não apenas o lado sombrio de alguém que confrontou a lei e os poderes que pareciam grandes demais para serem enfrentados por qualquer pessoa. Ao aclamar o fora da lei, seus admiradores não aclamavam a transgressão em si, como se quisessem fazer o mesmo e optassem pela desordem, mas, sim, a pessoa que se determinou “a bancar o preço dos que não repetem o refrão dos atores sociais encenando os mesmos takes sem se dar conta do insosso e do insalubre que é ser como um no interior do todo” (DANTAS, 2005, p. 310). A veneração era direcionada à sua altivez, ao seu destemor, à sua intrepidez, a seu desassombro que de certa maneira, a exemplo dos deuses do Olimpo e das estrelas olimpianas, erguia acima dos mortais aquele que um dia havia sido apenas um mecânico. Essa adoração a virtudes que são no mais das vezes raras, aliada à simpatia que ele continuava tendo do seu povo, fez com que o velório e sepultamentode Valdetário, realizado no dia 11/12/2003, atraísse uma multidão, o que foi relatado e acabou sendo destaque na edição do dia 12/12/2003 de um dos jornalísticos da TV Cabugi, que cravou serem por volta de 10 mil pessoas acompanhando e vendo a passagem do caixão pelas ruas da cidade (VIANA, 2010). Era a maior das demonstrações de carinho que poderiam dar a quem causou tantos conflitos e instabilidades locais e regionais. A morte de José Valdetário Benevides embaralhou os papéis ao ponto de não haver mais a linha divisória entre o filho da dona Toinha e o marginal de vida fugidia, em um município que já havia aprendido a conviver com sua presença sempre tácita e iminente. 122 Durante o cortejo, até a entrada no cemitério, na medida em que o enterro passava nas ruas, os curiosos nas calçadas observavam e expressavam um sentimento de tristeza. No momento de enterrar o corpo, muitos choravam no último adeus a Valdetário (GURGEL, 2012, p. 25). A cidade relativamente pequena presenciou aquele que se tornou um evento cuja importância atraiu os diversos jornais do Estado, curiosos, as mulheres que Val havia amado, parentes, amigos, admiradores, conhecedores da história, a própria polícia que acompanhou o ritual na tentativa de capturar qualquer um dos componentes do bando que pudessem comparecer para prestar suas últimas homenagens. O homem que havia se colocado à margem da lei era, também, o mecânico caraubense de inteligência singular que tinha uma história, uma relação com seu lugar, um vínculo afetivo com seu povo, razões para ter se tornado o que se tornou e a partir disso conquistar a empatia dos demais. Figura 20: parte da multidão que acompanhou o velório de Valdetário Fonte: acervo da família Naquela quinta-feira do dia 11 de dezembro, Caraúbas parou para acompanhar o desfecho de uma história de alguém que havia cravado seu nome e sua história na memória coletiva daquele povo, alguém cujos feitos agitaram a pequena cidade do oeste potiguar de maneira extraordinária, apesar da sua 123 tragicidade. Ali, naquelas ruas por onde o caixão passou, as pessoas se acotovelavam para presenciar aquilo que por muito tempo pareceu impossível de acontecer e ao mesmo tempo prestar solidariedade à família. De fato, aquele não era somente o fim de um bandido, mas o término de uma saga com a qual a cidade e a região estavam envolvidas demais para não se comoverem em alguma medida. Se o caderno18 de presença ao velório, assinado por mais de 2 mil pessoas que sem medo de represarias fizeram questão de vincular seus nomes em homenagem a Valdetário, serve como mais evidência da comoção que sua partida causou, deduz- se que naquele conglomerado de pessoas que ocupou as ruas do município e fez daquele dia um marco havia muitos e tantos que sentiam, choravam e lastimavam a sua partida. De fato, aquela quinta-feira mudou completamente o dia e abalou toda a região do oeste e alto-oeste do Estado, repercutindo e tomando de sobressalto inclusive pessoas da capital. Toda a mídia se dirigiu ao local. Todos os veículos de comunicação queriam registrar aquele que se tornaria um momento histórico no RN. Tamanho foi o acontecimento que, antes de chegar à Caraúbas, houve apelos para que o corpo passasse por Mossoró e ali pudesse receber homenagens daqueles que conheciam o drama de um sertanejo comum. Os mossorenses queriam testemunhar de perto aquele que se tornara o acontecimento da semana, do mês e do ano para todos aqueles que viveram a experiência de conviver com a imagem, com a imposição, com o simbolismo cultural que Valdetário havia demonstrado, retirando do pouco que lhe estava ao alcance, mecanismos, estratégias, formas expressivas e de se impor para resistir à persecução dos outros e aos embaraços criados por ele mesmo, como o fez o Rei do Cangaço: Foi velado em Mossoró Chegou grande multidão, Sem dar espaço a ninguém. E Caraúbas também. Por ser temido e estimado, Permaneceu relembrado, Muita gente lhe quer bem. Marcou presença na missa 18 O caderno possui mais de 25 páginas assinadas e algumas destas, por amostragem, constam intercaladas no anexo D, ou seja, pulando de uma numeração à outra até depois da milésima assinatura, que foi de onde a família parou de enumerar por não conseguir acompanhar o ritmo daqueles que chegavam à igreja para ver o corpo e prestavam suas condolências assinando. 124 Dona Marli Nascimento, Com Aguinalda Fernandes Silvana também chegou, Dividiu o sofrimento. Comovida observou, Aquele sepultamento. O cortejo em Caraúbas Prosseguiu silencioso, No meio dos visitantes, Tinha muito curioso. E seu corpo num caixão Despediu-se do sertão, Nesse desfecho escabroso. [...] A fama dele cresceu Na memória popular. Virou tipo um Lampião No cenário potiguar. Entre os ritos da vingança, Ao devolver a matança Não conseguiu escapar. (MEDEIROS, 2019a, p. 83-84) Para os mais reticentes e para a própria força de segurança, ver tanta comoção diante daquele que seria um inimigo da sociedade, foi um espanto. O que essas pessoas ainda não podiam prever, o que não estava na pauta e contrariava a lógica foi o surgimento de duas mulheres desconhecidas pelos caraubenses que, durante o sepultamento de Val, em um ato de reconhecimento de algo de esplendor naquele para o qual parecia haver somente objeções, no mais absoluto contrassenso e na mais arriscada das aparições públicas que naquele dia alguém podia fazer, cantaram as glórias do fora da lei. Vestidas com camisetas estampadas com o rosto do homem mais temido da região e, por vários, tido como abominável elas insistiam em montar um fã-clube para celebrar seus feitos e mostrar uma grandeza imperceptível àqueles que já haviam concluído que Val não merecia nenhum tipo de homenagem. Nas camisetas, a foto e a mensagem “nós te admiramos muito”. Esse, que era um “exercício de admiração” (CIORAN, 2011) a alguém que, tal como as estrelas do cinema, mitologizara-se por suas façanhas cinematográficas e cuja imagem servia como projeção-identificação (MORIN, 1989; 2014) para produzir novos sentimentos sobre o mundo e sobre a vida, para comunicar certas verdades 125 sobre ele e sobre nós que estavam ocultas. É importante destacar que, por causa de toda repercussão e toda agitação causada por Valdetário e seus homens, todos ali sabiam dos seus erros e que não estavam a velar e sepultar um inocente. Todavia, muitos tinham olhos para ver além do que as imagens dominantes permitiam e aproximar-se daquele corpo, daquela morte, daquele evento com a pré- disposição de quem verdadeiramente havia entendido os motivos pelos quais ele havia feito tudo que fez, pois na “mais banal das projeções em outrem — do tipo ‘eu me ponho no lugar dele’ — é uma identificação de ‘eu’ a ‘ele’ que facilita e atrai a identificação de ‘ele a ‘mim’: ‘ele’ se tornou assimilável” (MORIN, 2014, p. 111). Ao ser, revelam seus mais sinceros sentimentos, seus afetos, sua autenticidade, que já não precisa de licenças para se interpor contra o estigma: o complexo projeção-identificação comanda todos os fenômenos psicológicos ditos subjetivos, ou seja, que traem ou deformam a realidade objetiva das coisas, ou que se situam deliberadamente fora dessa realidade (estados de alma, devaneios). Ele comanda também — sob sua forma antropocosmomórfica — o complexo dos fenômenos mágicos: o duplo, a analogia, a metamorfose (MORIN, 2014, p. 111). Jailma Lima Cavalcante e Telma Araújo deslocaram-se de Mossoró, distante pouco mais de 75km de Caraúbas, decididas a convocar a todos que, como elas, estariam dispostos a venerar aquele cujas realizações foram acima da média. O fã- clube detinha toda a aparência de uma organização bem-feita, com telefone fixo (317-2319) em um tempo de acessos relativamente limitados a celular (8817-3493). Ao irem àquelecortejo, elas não tiveram que superar apenas a distância entre as cidades, mas a incerteza de como seriam recebidas e o alvoroço de uma cidade e de uma região que testemunhava, ao menos supostamente, o fim de um ciclo de terror e, de certa forma, podiam comemorar e sentirem-se aliviadas. Jailma e Telma eram os contragostos daquela sensação de dever cumprido e de segurança reestabelecida. Em que pese ter recebido o apoio da família, já ali, durante a cerimônia fúnebre, a ideia das jovens foi descartada e sofreu reprimendas, tanto da justiça e da polícia como apologia ao crime quanto de caraubenses que viram na proposta uma certa dose de desatino. Mudaram de endereço e abandonaram publicamente a ideia. Desde então, não se tem notícia de seus paradeiros e nem mesmo os familiares de Val sabem dizer onde as mulheres moram. Mesmo sumindo e desistindo do grupo 126 que queriam formar, ao registrarem na história seus planos, aquelas mulheres comprovaram que sobre um mesmo fenômeno humano, mesmo que tudo pareça conspirar em direção de uma única percepção, pode haver contrários coexistentes que testificarão sobre a impossibilidade de esgotar qualquer que seja a obra humana em uma narrativa fechada e definitiva. Figura 21: reportagem sobre a tentativa de criar um fã clube para Valdetário Fonte: Jornal Gazeta do Oeste, n° 6.476, Ano 27, 12/12/2003. A história de Manoel Marques de Araújo, morador da cidade de Jucurutu/RN, a 77km da cidade de Caraúbas, compõe mais um exemplo de projeção-identificação que coincide com uma participação afetiva (MORIN, 2014). À época da morte e depois, quando Val já havia se tornado um mito, Manoel se destacou por sua profunda admiração ao caraubense. O problema surgiu quando a polícia do município, no ano de 2011, descobriu que o homem mantinha em sua casa um arquivo pessoal contendo livros e fotos sobre o bandido caraubense. Com a descoberta, todo o material pessoal de Manoel foi apreendido e recolhido para o cartório da Delegacia de Polícia Civil (DPC) de Jucurutu, ainda naquele ano. Os relatos dão conta que, no dia da apreensão, os policiais invadiram a residência localizada no Centro de Jucurutu em busca de armas e provas referentes a uma 127 denúncia anônima de que, na sua casa, uma dupla se preparava para fazer um assalto na região. Figura 22: reportagem sobre a proibição de guardar arquivos sobre Valdetário Fonte: Jornal Gazeta do Oeste, edição de 02/10/2011. A denúncia não se confirmou e o arquivo de Manoel, que era composto por um quadro com a foto de Valdetário com a data de nascimento e morte em uma moldura e pelo livro A saga Benevides Carneiro: a história da família mais diversificada do RN (VIANA, 2010), foi então confiscado, e o que foi tratado como fanatismo era, na verdade, a expressão do humano em busca de identificação ao projetar sobre um ícone seus anseios; era o homem multifacetado dando amostras de quem é e como ressignifica os dados da realidade para encontrar sentido e apresentar outros significados para as coisas com as quais se identifica e a partir das quais constrói suas iconografias. Por isso, o confisco era, mesmo que em vão, o trabalho da moralização sobre a espontaneidade, o trabalho da racionalidade contra a fantasia, o trabalho do medo contra a imaginação, o trabalho da rigidez contra a fluência do imaginário. 128 Ali, tendo sua casa vasculhada pela polícia e mantendo sua posição de admirador, Manoel Marques tornava-se mais uma amostra de que as convenções prescritivas não têm o domínio sobre todas as coisas e que seus produtos, tais como as leis, coíbem, mas não garantem a regulação absoluta das opiniões, das escolhas e das decisões, o que revela sua limitação e a prevalência da liberdade da qual a múltipla face da condição humana goza. Esse é o desafio que se apresenta, quando se está diante de um desencadeamento de eventos controversos que superam as aparências e apelam a sentidos e sensibilidades incensuráveis. Como alguém que se colocou à margem da lei e foi uma celebridade sem glamour, que plasmou o brilho das estrelas em sua vida, Valdetário deixou de ser somente um pistoleiro e assaltante de bancos para tornar-se objeto de uma relação que escapa aos limites da racionalização moralista e da legalidade ferrenha, para conduzir as atenções a caminhos e percepções menos óbvios, que necessariamente exigem do pensamento um trabalho de reelaboração ante um fenômeno controverso, mas tipicamente humano. Ao venerá-lo, apesar de seus atos, seus fãs e admiradores apresentam critérios diferentes para interpretação da pessoa e do fenômeno. Por causa disso, impõem a necessidade de uma gramática que, para existir, independe do que os domínios da moral têm a decretar a respeito do sujeito venerado ou daquilo que ele representa. O banditismo e o bandido, que deveriam ser repelidos por definição, são reelaborados para serem aceitos no interior das relações que tentam conspurcar. Afastado dos domínios da moral e localizado onde não pode ser julgado a partir dos seus crimes, porque encontrado nas silhuetas do imaginário, o bandido agora pode ser visto e admirado em sua singularidade. Sua amoralidade cede lugar à virtuosidade identificada na sua capacidade de ser uma espécie de homem diferente dos demais e “buscador de lenitivos para as feridas e cultivador de ervas amargas no corpo” (DANTAS, 2005, p. 310). Aquilo que parecia despojado de qualquer valor, portanto, apresenta-se como uma experiência a partir da qual as pessoas ressignificam as experiências e atribuem importância a tudo mais que está à sua volta e demanda a elaboração de significados que não puderam ser formulados pelas vias convencionais ou que por estas foram suprimidas ou interditadas, mas que permaneciam tanto mais latentes quanto presentes. Ainda hoje, Valdetário Carneiro é um símbolo de coragem e destemor. Com suas ações, ganhou a notoriedade típica das estrelas que admirou e criou as 129 condições para que, em torno da sua imagem, criassem especulações e curiosidades, entusiasmo e veneração. A cidade de Caraúbas presenciou não apenas a insurgência de um fora da lei contumaz, que precisava ser contido; presenciou, com todas as implicações que isso pode ter, a recolocação da sua posição no discurso e na compreensão acerca de quem ele era. Valdetário, cujos crimes o fizeram ser motivo de pânico, também era o homem que, ao transformar a coragem em motor para suas empreitadas, encarnava virtudes e convidava à reverência: a coragem força o respeito. Fascínio perigoso, decerto (pois a coragem, moralmente falando, não prova nada), mas que se explica talvez pelo fato de que a coragem manifesta pelo menos uma disposição para furtar-se ao puro jogo dos instintos ou dos temores, digamos um domínio de si e de seu medo, disposição ou domínio de si que, sem serem sempre morais, são pelo menos a condição – não suficiente, mas necessária – de toda moralidade (COMTE- SPOVILLE, 2016, p. 56). Como experiência concreta de um valor, a coragem é o contrário da apatia, da preguiça, da frouxidão, da indiferença, e, por isso mesmo, “nada mais é que a vontade mais determinada e, diante do perigo ou do sofrimento, mais necessária” (COMTE-SPOVILLE, 2016, p. 59). Defronte de acusações que haviam destruído sua vida, Val acusou o golpe ao reagir como reagiu, mas revelou a disposição de não ser mero espectador do que faziam consigo. Era nessa disposição que residia a sua coragem e tornava seu nome uma insígnia para a qual as pessoas podiam olhar e reconhecer que estavam diante de alguém que não se deixava abater pelos percalços do destino fabricado ou imposto por outros, ao contrário do que a média faz ao aceitar os papéis que lhes imputam. O homem que precisou escalonar sua indignação para ser reconhecido, a partir do momentoem que se insurge e conquista simpatia à sua causa, traz à luz quem também carrega consigo vários que não se revelariam facilmente ou permaneceriam discretos se não houvesse alguém para os estimular a se manifestar por meio da aclamação daquele que exagerou, sem precisar fazer o que ele fez, defender seus erros e justificar seus crimes. Isso acontece a despeito da moralidade, mas não sem arcar com o ônus de atravessar seu caminho e desafiar seus postulados que permanecem vigorosos e prontos a condenar qualquer tipo de discordância dos seus fundamentos, desprezando que “a insuficiência profunda de 130 um discurso é que ele pretende ter totalidade e ter coerência e, mais cedo ou mais tarde, revela sua insuficiência e sua incoerência” (MORIN, 2003, p. 225). Figura 23: reportagem sobre a legião de fãs que Valdetário angariou Fonte: JH Primeira Edição, nº 1.143, ano 4, 16/03/2009 Desde sua morte e sepultamento, o túmulo de Valdetário passou a ser um ponto de referência no cemitério de Caraúbas. Além daqueles que prestam homenagens e referenciam o lugar, viajantes, transeuntes e curiosos costumam visitar a sepultura que se tornou emblemática. Nenhum caso é tão expressivo quanto o da senhora Maria da Graça Fernandes (conhecida como Graça), enfermeira aposentada que, enquanto exercia a profissão, atendia e tratava dos ferimentos que Val contraia em suas fugas e ações. Como ela se tornou de confiança, sempre que ele se machucava mandava chamá-la para fazer os curativos necessários. Dessa relação profissional e quase que impositiva, porque era arriscado demais negar o pedido a Valdetário Carneiro, nasceu uma amizade que resistiu ao tempo, sobretudo depois que dona Maria da Graça sofreu ameaças de 131 morte dos Simião Pereira e o próprio Valdetário a defendeu como se a enfermeira fosse da sua família, informando que se algum mal sobreviesse à mulher ele cobraria a preço de sangue. Eu a conheci pessoalmente e por dois dias, 01/11 e 02/11/2021, acompanhei relativamente distante suas visitas, observei suas preces e sua devoção para não assustá-la. Reservada e receosa por não me conhecer, ela conversou muito pouco, mantendo-se arredia. Mesmo assim, revelou que desde 12/12/2003, o primeiro dia depois do enterro, vai aquele lugar e continuará a ir até não poder mais ou Deus a impedir. Continuou a falar e dizer o quanto detestava seu sobrenome por este ser o mesmo da primeira família que se voltou contra e atacou os Benevides Carneiro, pedindo para ser chamada apena por Graça. Ginevra Gurgel, prima de Valdetário, confirmou (informação verbal) isso acrescentando que Dona Graça, até em situações formais, costuma apresentar-se como Maria da Graça Rêgo, em deferência a Getúlio Rêgo, deputado estadual com quem mantém contato. Figura 24: o autor e ao fundo Maria da Graça Rêgo iniciando seu ritual Fonte: acervo do autor (2021) Além das lembranças boas que cultiva do homem em vida, sobre as quais ela não fala com ninguém, Maria Rêgo ainda atribui a Valdetário Carneiro a cura de uma 132 dor insuportável que por muito tempo sentiu no joelho e dificultava sua ida ao cemitério. Garante que rezou para Val e as dores se foram, pelo que ela se tornou bastante grata e o que a fez mitificar mais do que já o fazia a imagem do caraubense, em uma espécie de “devoção marginal” (PEREIRA, 2005) que, por ter essa qualificação, independe da legitimação das autoridades religiosas e de outras pessoas. De todo modo, por conter todas essas características e por sua obstinação, o caso da enfermeira foi se consolidando em Caraúbas como manifestação de algo em torno do jocoso e do incompreensível, porém impossível de ignorar. Realmente, para essas pessoas, Valdetário permanece vivo e atuante causando sensações, mobilizando seus valores, seus ideais, propósitos e a própria moral aqual estão submetidos e precisam preservar. Implicados no complexo projeção-identificação, envolvem-se afetivamente com aqueles ou com aquilo para o qual suas emoções se voltaram a partir das imagens que assimilaram, de modo que “a participação afetiva se estende, assim, dos seres às coisas, reconstituindo fetichismos, venerações e cultos. Uma ambivalência dialética liga os fenômenos do coração e os fetichismos” (MORIN, 2014, p. 114), fazendo funcionar “o pequeno cinema que nós temos na cabeça” (MORIN, 2014, p. 241), que alcança nossa poesia, que nos anima, que nos atiça, que nos entristece e nos afeta, tocando em nossos duplos, comunicando-se com eles, trazendo-os à baila. Sobre essas manifestações de afeto, houve e ainda há reações críticas que não conseguem conceber que uma mesma coisa pode ser experimentada de muitos modos. Por exemplo, questionado sobre as ambivalências em torno de Val e das diferentes percepções sobre ele, Vianney Gurgel, o autor do livro sobre os causos de Caraúbas, respondeu (informação verbal)19: “Valdetário não seria o primeiro fora da lei a ser romantizado e classificado como justiceiro. Foi assim também com Lampião [...]”. Mesmo que sem intenção, ao estabelecer a correlação com Lampião, Vianney revitaliza um signo ao qual estão atrelados processos de afirmação cultural e de projeção-identificação, que por causa dos afetos que mobiliza em espaços áridos como o sertão, “proporcionam um locus concreto para a nostalgia, um símbolo de virtude antiga e perdida” (HOBSBAWM, 2017, p. 166). 19 Depoimento concedido por escrito e recebido por e-mail, em maio de 2021. 133 Assim, Gurgel confirma indiretamente que entre essas duas personagens nordestinas existe um cordão umbilical rompido pela distância temporal, mas existente e recorrente pelas condições mesmas que faz irromper nas pessoas ira, revolta, indignação e violência contra o estado de coisas que os tenta ofender, abolir, esmagar. Mesmo o cangaço tendo se tornado um movimento permeado por problemas sérios, tanto quanto o bando dos Carneiros, os atributos daqueles homens que se apresentaram estando acima do bem e do mal, confrontando as instâncias reguladoras dessas categorias, são reconhecidos como portadores de faculdades raras, dignas de reconhecimento, sobretudo em sociedades com características patriarcais que ainda padecem dos males regionais encontrados na época de Virgulino Ferreira e de seus homens. Lampião, o mais famoso bandoleiro do Nordeste, assim como Valdetário também o foi, era símbolo de uma valentia incomum e representante de uma luta que, diante dos poderes locais dos coronéis como senhores absolutos, poucos poderiam encabeçar. A partir da associação feita entre os dois, Val e os seus herdaram essas virtudes, como que em uma transferência antropofágica que acrescentaria ainda mais elementos míticos a ele e a sua quadrilha, porque, ao ter de lidar com os poderes locais, “os sertanejos formaram uma comunidade com padrões e valores sociais próprios e, por eles vão lutar, no momento em que sentem que são desrespeitados” (MACHADO, 1973, p. 145) nas suas vidas de labuta e dificuldades praticamente diárias em situação de pobreza, escassez ou esquecimento por parte do Estado. Para que a valentia justifique ainda melhor a aura popular na poética é preciso a existência do fator moral.Todos os cangaceiros são dados inicialmente como vítimas da injustiça. [...] O sertão distingue o cangaceiro do homem valente. Para ele a função criminosa é acidental. [...] O essencial é a coragem pessoal, o desassombro, a afoiteza, o arrojo de medir-se imediatamente contra um ou contra vinte (CASCUDO, 1968, p. 122). Lutar para ter de volta a honradez usurpada, mesmo que isso custe sangue, simboliza o triunfo da coragem do sertanejo que aprendeu a viver com pouco e sobreviver a escassez de recursos, tendo-lhe sobrado como valor inalienável aquilo que é imaterial e cuja pertençanão se pode subtrair sem o revide de quem batalha para proteger aquilo que lhe define, aquilo que lhe constitui, aquilo que lhe é motivo de orgulho, mesmo depois de perder tudo. Logicamente, esse modo de ser carrega 134 consigo perniciosidades que devem ser contidas, mas isso não impede que, ao surgir, a reação seja de todo condenada, pois ela não se manifesta meramente como uma transgressão gratuita, e sim como um grito de socorro,uma insurreição e uma ética necessárias. Uma boa explicação para o respeito e empatia das comunidades sertanejas pelos cangaceiros, apesar de qualquer mal que estes pudessem lhes causar, nos parece ser o da construção, consciente ou inconsciente, por parte dos marginais, de um "escudo ético", terminologia tão apropriada e tão bem elaborada por Frederico Pernambucano de Mello. Esse elemento "ético", em última instância, os diferenciaria de forma inequívoca dos bandidos comuns aos olhos da população. E teria ajudado a manter a imagem de justiceiros ao longo do tempo na região (PERICÁS, 2010, p. 39) [aspas do autor]. Portanto, tal como acontece com Lampião, sobre Valdetário existem diferentes ângulos de leitura e termos possíveis, de sorte que, mais importante do que definir quais destes tem toda razão, cabe reafirmar, defender e mostrar que, ao surgirem, fenômenos desse tipo reintroduzem questões sociais, culturais e antropológicas para as quais não devemos dar de ombros, como se elas não fossem ressurgir pela mera indiferença. Elas ressurgirão e nos convocarão a pensar sobre elas. Resta saber o que pensaremos e trabalhar para que seja um bem-pensar, sabendo que ler essas questões com a perspectiva de que chegou a uma verdade final são tipos de ignorância e petulância disfarçados, que insistem em tornar hegemônica a versão que mais combina com sua concepção de mundo. O paradoxo insiste em ser o melhor lugar para se situar e captar o máximo de informações, de emoções, de opiniões, de vivências da experiência humana terrena, afinal somos nós quem reaparecemos quando as contradições reaparecem e são determinantes. Está nessa relação entre contraditórios, que mais cedo ou mais tarde reivindica para si seu lugar no debate e na reflexão, a pujança indenitária do banditismo interpretado pelo grupo chefiado por Valdetário Carneiro, a exemplo de tantos outros ao longo da história. Foi e tem sido assim com Lampião e os cangaceiros, Robin Hood e seu sucesso na literatura, no cinema, na memória transcultural de povos distintos. Não poderia ser diferente com Val, a repetição da mesma obstinação de fazer justiça por si e por aqueles cujos bens imateriais, a única e mais importante reserva de quem padece na escassez, são conspurcados. Das retas, ele fez curvas. Para o destino, traçou suas próprias veredas e marcou 135 seu tempo, fez história, fez a sua história, ao seu modo, assumindo e encarnando na vida seus sonhos e desejos. 136 5. CONCLUSÃO... DE UM TEXTO, NÃO DE UMA HISTÓRIA E de uma vida inteira, por Deus, o que se salva às vezes é apenas o erro, e eu sei que não nos salvaremos enquanto nosso erro não nos for precioso. Meu erro é o meu espelho, onde vejo o que em silêncio eu fiz de um homem. Meu erro é o modo como vi a vida se abrir na sua carne e me espantei, e vi a matéria de vida, placenta e sangue, a lama viva. (Clarice Lispector) Escrever sobre Valdetário Carneiro é escrever sobre parte da história de Caraúbas, sobre suas relações políticas, suas relações de poder e sociais. É também escrever sobre conflitos que remontam a um passado arcaico do Nordeste brasileiro, caracterizado pela omissão do Estado e pela resolução violenta das suas antipatias, como demonstração de poder e como ato de resistência, bravura e sobrevivência. Sua biografia mistura-se à historiografia da sua cidade e do Rio Grande do Norte, fazendo com que ele ocupe a galeria das personalidades inesquecíveis do RN. Falar sobre ele, portanto, consiste em falar sobre um tempo e uma organização sócio-político-cultural que formou gerações e serve, mesmo em com tons de nostalgia, como referência para sertanejas e sertanejos que, em maior ou menor proporção, ainda precisam com as mesmas dificuldades daquele passado contra o qual era necessário insurgir-se de algum modo. Não é meramente contar a história de um homem especificando seus dados biográficos, mas, sim, implicar na narrativa outros que compuseram a dinâmica dos fatos e ter a oportunidade de olhar para trás a fim de compreender os condicionamentos aos quais cada um estava submetido e por meio dos quais agiram como agiram, menos para determinar quais foram os culpados e quais são os inocentes, e mais refletir sobre as complexidades de existir em sociedade e ter que se adaptar a seus entraves. É, então, a chance de fazer uma radiografia que permitirá enxergar e tratar aquilo que era impossível antes pela fuligem do tempo ou pela impermeabilidade das certezas não revisadas, o que permite colocar em perspectiva as estruturas de comportamento e funcionamento das instituições da época, tendo em vista que estas, direta ou indiretamente, foram chamadas por Valdetário a se pronunciar e expor suas debilidades. 137 Humano como todos que podem aproximar-se da sua trajetória, Valdetário, por meio das suas muitas faces, abriu janelas para observação de quem ou do que somos. Essas janelas nos colocam de cara com interdições e determinadas perplexidades, entretanto, se recusarmos pensar sobre cada um desses embaraços, estaremos recusando pensar sobre nós mesmos, o que nos suscetibilizará ao autoengano e ao consequente autoritarismo de dizer pelos outros o que eles são, tornando sua definição, por mais arbitrária que seja, a responsável por dizer tudo sobre alguém. Essa postura separa, exclui e, no limite, extermina. Contra isso, impõe-se uma ética da compreensão que parta de si para outro, que consiga ver em si o que está no outro, que prefira a circunspeção e a compostura ao extravasamento e à censura categórica. Em ato, a vida de um homem errante insere-se como expressão da condição humana implicada em embaraços que essa mesma condição, instável e imperfectível, suscita; expressão marginal, mas não menos exuberante. O que no mais das vezes, para as audiências triviais, pode parecer um espetáculo de horrores é, na verdade, um recipiente de temas fundamentais que se desenvolvem e desnudam-se em experiências concretas, em relações de carne e osso, em eventos datados, em sujeitos nominados, em dilemas geograficamente situados. Valdetário e sua biografia são exemplos dessa profusão marginal que sobrevém e não se deixa exprimir pela vulgata daquilo que está dado, afinal as certezas e ditames sobre os quais se fundamentam a experiência social não são tão sólidos e infalíveis quanto parece, e o estigma, com sua cegueira atávica, nas mídias ou nas relações interpessoais mostra o quanto ainda estamos aquém, quando o assunto é a condição humana. Ao criar e atuar no palco que construiu para se apresentar havia outros com quem seu delírio criativo podia estabelecer conexões e simpatia, sem que para isso fosse necessário legitimar suas práticas. É que entre as mediações reguladas das relações existem demandas e vácuos cujas presenças são tão reais e pulsantes quanto são os reguladores que tentam alcançar a totalidade dos impulsos e das pulsões para modulá-los sempre. Dado que se trata de uma história de muitos lados e que pode ser vista a partir de diferentes ângulos, as formas de contá-la podem ser tão diversas quanto são suas nuances, fazendo com que esse seja um caso que, enquanto permanecer vivo no imaginário das pessoas de Caraúbas, não se esgotará e poderá ser legado a outras gerações que por sua vez poderão chegar aoutras 138 conclusões e apresentar outras perspectivas a partir de suas próprias sínteses e concepções de mundo, de modo a oferecer novas compreensões acerca de um fenômeno tão complexo como foi Valdetário Carneiro. 139 REFERÊNCIAS ALMEIDA, Maria da Conceição de; KNOBBE, Margarida Maria. Ciclos e metamorfoses: uma experiência de reforma universitária. 1. ed. Porto Alegre: Sulina, 2003. ALMEIDA, Maria da Conceição de. Quase Nua: meias verdades, mentiras sinceras. Natal/RN: Uma, 2016. ALMEIDA, Maria da Conceição de. Ciências da complexidade e educação: razão apaixonada e politização do pensamento. 2. ed. 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