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Larry Shiner, The invention of art – A cultural history 
 
 
Hoje em dia, podemos chamar a quase tudo “arte” sem problemas de 
maior. Uma das razões para isto é que o mundo artístico voltou à carga com o 
tema de misturar de novo “arte” e “vida”. Gestos deste género vão do inocente 
ao escandaloso, como levar quilts para dentro de museus de artes decorativas, 
ou literatura do tipo “pulp fiction” (novelas policiais baratas), para cursos de 
literatura, até tocar ruídos de rua em salas de concerto, ou submeter-se a 
cirurgia plástica directamente em video-satélite. A entrada intempestiva de 
todas estas coisas excêntricas, artefactos, ruídos, escritos, performances, no 
campo das belas-artes, levou alguns a falarem com desespero da “morte” da 
arte. Outros autores, envoltos no estandarte do pós-modernismo, concordam 
que o sistema das belas-artes nascido na época moderna está morto, mas 
convidam-nos a dançar sobre o seu túmulo, celebrando mais uma libertação. 
O mais importante não é saber se devemos dançar ou chorar, mas 
perceber como é que viemos ter a esta situação. Se queremos compreender a 
explosão daquilo a que chamamos arte, e a vontade de unir arte e vida, temos 
primeiro de compreender de onde vieram as ideias e instituições modernas das 
belas-artes. O sistema das artes moderno∗ não é uma essência ou uma 
fatalidade, mas algo que nós criámos. A arte tal como a entendemos 
genericamente é uma invenção europeia, não tem mais de duzentos anos. Foi 
precedida de um sistema das artes mais alargado e mais utilitário, que durou 
perto de dois mil anos, e possivelmente dará origem no futuro a um novo 
sistema das artes. 
A assimilação de todas as actividades e artefactos de outros povos e 
civilizações às nossas noções (europocentrismo) já dura há tanto tempo que a 
universalidade da ideia europeia de arte é aceite de forma indiscutível. Ver 
 
∗ Por “sistema das artes” (system of art) entende-se os conceitos e ideais subjacentes partilhados por 
vários universos artísticos e pela cultura em sentido lato, incluindo mesmo os que só marginalmente 
participam num dos universos artísticos. Um “universo artístico” (art world), uma rede de artistas, 
críticos, públicos e outros que partilham o mesmo campo de interesses, bem como uma partilha de certos 
valores, práticas e instituições. O “sistema das artes moderno” (modern system of art), ou actual sistema 
das belas-artes, surgido no século XVIII, é aqui usado em contraposição ao que o autor designa de 
sistema das artes mais antigo. “Moderno” é aqui usado apenas em contraposição a “antigo”, e não tem 
conotações com a ideia de moderno/pós-moderno. Por “arte” entende-se neste caso não só as artes 
visuais, mas também as belas-artes como um todo: todos os géneros artísticos, incluindo a pintura, a 
literatura, a música, a arquitectura, o teatro, a fotografia, etc. 
 
 
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uma pintura do Renascimento isolada numa parede de um museu, ler uma 
peça de Shakespeare através de uma antologia de textos literários, ou ouvir a 
Paixão segundo S. Mateus de Bach numa sala de concertos reforça a falsa 
impressão de que as pessoas do passado partilhavam a nossa noção de arte 
como um domínio composto de obras autónomas destinadas à contemplação 
estética. 
 Esta ideia de que os ideais e as práticas da arte moderna são 
universais e eternos, ou que pelo menos datam da Antiguidade Clássica ou do 
Renascimento, foi facilmente aceite devido à ambiguidade da própria palavra 
“arte”. Deriva do latim ars e do grego techne, que significavam qualquer 
aptidão ou actividade humana, desde domar cavalos até escrever poesia, fazer 
sapatos, vasos cerâmicos, ou governar. Nesta concepção antiga, o oposto da 
arte humana não era artesanato, mas natureza. Ainda hoje dizemos que a 
medicina ou a culinária são uma arte, i.e., uma actividade humana. 
É no século XVIII que se dá uma divisão fatídica neste conceito 
tradicional de arte. Depois de quase dois mil anos a significar qualquer 
actividade humana desenvolvida com habilidade e graça, o conceito de arte 
divide-se, gerando a nova categoria das belas-artes (poesia, escultura, 
arquitectura, pintura, música), oposto a artesanato1 e artes populares 
(bordados, canções populares, etc.). Hoje, quando nos interrogamos “Isto é 
mesmo arte?”, não queremos já dizer “Isto é produto de uma actividade 
humana, em vez de um produto natural?”, mas sim “Isto pertence à prestigiada 
categoria da arte (ou das belas-artes)?”. 
Nos tempos mais recuados, não havia artistas nem artesãos, mas 
simplesmente artesãos/artistas que elaboravam os seus poemas e pinturas, 
relógios e botas, de acordo com uma techne ou ars, uma arte/artesanato. Mas 
no final do séc. XVIII, artista e artesão tinham-se tornado opostos: artista 
significava agora o criador de obras de belas-artes, enquanto o artesão 
significava o mero fazedor de qualquer coisa útil ou interessante. Esta 
mudança do conceito de arte foi uma espécie de revolução como a de 
Copérnico: no decurso de um século, o modelo de construção fora 
 
1 Um artesão é alguém que possui apenas uma capacidade técnica, que trabalha por encomenda, e que se 
dedica sobretudo a uma actividade lucrativa. Artesanato é um termo usado por oposição a belas-artes, 
incluindo categorias que por vezes se sobrepõem, como artes aplicadas, artes menores, arte popular, folk 
art, arte comercial, artes do espectáculo (entertainment arts) 
 
 
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substituído pelo de modelo de contemplação, que tratava os produtos das 
belas-artes como objectos de atenção enlevada. No início do séc. XIX, a velha 
ideia da função nas artes também se dividiu, com as belas-artes a adquirirem 
um papel espiritual transcendente de revelarem a verdade, ou confortarem a 
alma. A ideia de contemplação desinteressada tinha sido até aí aplicada 
apenas a deus; agora, a arte, para muitas das elites cultas, estava à beira de 
se tornar uma nova arena de investimento espiritual. Não se tratou 
meramente da substituição de uma definição de arte por outra, mas da 
substituição de todo um complexo sistema de conceitos, práticas e instituições 
por outro sistema.. No sistema antigo, a ideia da arte como qualquer espécie 
de objecto ou actividade para uso ou diversão era acompanhada de 
instituições que agregavam aquilo que hoje separamos como arte, artesanato 
e ciências. Em vez do museu de arte, por exemplo, no séc. XVI-XVII havia os 
gabinetes de curiosidades, que misturavam conchas, relógios, esculturas, 
pedras preciosas, como uma súmula visual do conhecimento. Muitos 
artesãos/artistas trabalhavam em encomendas de patronos cujos contratos 
especificavam frequentemente o tema, a forma e os materiais e destinava um 
lugar e um propósito específicos para a peça depois de terminada. Até 
Leonardo da Vinci assinou um contrato para a Virgem dos Rochedos que 
especificava o tema, a cor das vestes da Virgem, a data de entrega, e uma 
garantia de reparações futuras. Os escritores profissionais passavam muito 
tempo copiando, tirando notas, escrevendo cartas para os seus patronos, ou 
escrevendo poemas de aniversário, encómios, ou ataques satíricos, conforme 
lhes era requerido. Para além do mais, a produção artística era normalmente 
um assunto que exigia a cooperação entre vários artistas, com várias mãos e 
mentes envolvidas, fosse a pintar frescos (Rafael), na múltipla autoria de 
produções teatrais (Shakespeare), ou no empréstimo livre de melodias ou 
harmonias entre compositores (Bach). Esta situação é muito diferente das 
normas do moderno sistema dominante das belas-artes, no qual o ideal não é 
a cooperação inventiva, mas a criação individual, as obras são 
frequentemente destinadas a uma finalidade ou local específicos mas existem 
por si mesmas, a separação entre obras de arte e um contexto funcional leva 
ao ideal da atençãosilenciosa e reverencial em salas de concerto, museus, 
teatros e salas de leitura. 
 
 
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O factor de mudança que permitiu partir ao meio o antigo sistema das 
artes foi a substituição do patronato (mecenato) por um mercado da arte e por 
um público de classe média. Relações de poder entram em cena: os géneros 
e actividades escolhidos para a elevação das mentes e os escolhidos para 
despromoção reforçam as questões de raça, classe, género: por exemplo, se o 
bordado feminino foi salvo do campo das “artes domésticas” para entrar no 
andar principal dos nossos museus de arte, é em parte devido à pressão 
exercida pelos movimentos feministas nas últimas décadas. Ultrapassou-se 
assim uma antiga divisória baseada no género, que existia no sistema das 
belas-artes. De forma semelhante, o movimento multiculturalista tem razão ao 
querer que os géneros e obras das minorias excluídas entrem nos curricula 
literários, musicais e artísticos. No entanto, em vez de simplesmente 
assimilarmos as artes das culturas tradicionais africanas ou nativas 
americanas às normas europeias, na crença paternalista de que lhes estamos 
a prestar uma homenagem, devemos aprender através da sua compreensão 
das artes tão diferente da nossa e discutir o seu lugar na sociedade. 
Então, desde o início do séc. XIX que temos definidas as polaridades 
básicas: Arte versus artesanato, artista versus artesão, estética versus 
utilidade, ou finalidade prática. Há uma tradição de resistência a esta 
divisão, mas o certo é que os trabalhos da maioria dos resistentes e apóstatas 
das normas das belas-artes (p. ex. os que tinham dúvidas e parodiavam e 
ironizavam com a arte no séc. XX, Marcel Duchamp e os Dadaístas, ou as 
figuras de proa da arte Pop e da arte conceptual) foram absorvidos pelo 
“Templo da Arte” e estão hoje representados nos principais museus que 
pretenderam parodiar. Mas mesmo enquanto o mundo das belas-artes estava 
a recapturar e domar estes actos de resistência, estava também a expandir os 
seus próprios limites, primeiro através da assimilação de novos tipos de arte, 
como a fotografia o filme ou o jazz, depois através da apropriação de obras de 
arte “primitiva” e popular, e finalmente através da aparente dissolução total das 
suas própria fronteiras, ao assimilar tudo, da auto-mutilação (body-art) aos 
ruídos de John Cage. 
No entanto, mesmo os artistas e críticos de arte que parodiam ou se 
opõem ao sistema das artes moderno, referindo-se à “morte da arte”, acabam 
por lhe ser tributários. O sistema estabelecido tem um enorme poder de 
 
 
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perdurabilidade; a arte não é apenas uma “ideia”, mas sim um sistema de 
ideais, práticas e instituições. 
A dimensão mais importante da arte, que até agora ainda não referimos, 
é a emoção. A arte não é apenas um conjunto de conceitos e instituições, mas 
algo em que as pessoas acreditam, uma fonte de conforto e prazer, de 
poderosas emoções, capaz de despertar sensações fortes: por exemplo, 
falamos num “amante das artes”. 
Mesmo quando pretendemos pôr em causa o actual sistema de crenças 
e valores relativo às artes, e repensar os seus ideais e instituições, 
necessitamos de explorar as suas raízes históricas como um prelúdio 
absolutamente imprescindível para avançarmos nessa crítica. 
Antes da separação entre belas-artes e artesanato, a distinção entre 
artista e artesão não era ainda normativa. Para L. Shiner, a ideia vastamente 
difundida de que foi no Renascimento que se estabeleceram os modernos 
ideais de arte, artista e estética não pode ser aceite. Este autor mostra que, 
apesar dos passos importantes dados nessa direcção, o velho sistema que 
unia arte e artesanato, artesão e artista, ainda era a norma na Itália de Miguel 
Ângelo e na Inglaterra de Shakespeare. A grande fractura neste sistema 
ocorreu, segundo Shiner, durante o século XVIII, separando finalmente as 
belas-artes do artesanato, o artista do artesão, a finalidade estética da 
utilidade. É nesta altura que se estabelecem determinadas instituições como o 
museu de arte, o concerto secular, os direitos de autor. É no século XIX que 
se completa a construção do novo sistema das artes, através da elevação da 
Arte ao nível dos mais altos valores, encarando-se a vocação artística como 
um apelo espiritual único, e da disseminação por toda a Europa e Américas 
das instituições das belas-artes, que é acompanhada do estabelecimento do 
comportamento estético que se julgava adequado à fruição das artes. 
No final do século XIX e no início do século XX, o sistema das artes 
moderno foi capaz de assimilar quer novas artes (a fotografia), quer novas 
formas de resistência (o movimento Arts and Crafts, o Construtivismo russo), 
sem alterar as suas polaridades básicas. Este sistema (belas-artes versus 
artesanato), que ainda hoje se mantém fortemente enraizado, tem sido 
acompanhado de processos de resistência e de assimilação que vão minando 
 
 
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seriamente as polaridades do sistema vigente, dando azo a que questionemos 
se virá a caminho um terceiro sistema das artes. 
No velho sistema das artes não havia, é claro, artesãos e artistas, no 
sentido que actualmente damos a estes termos, mas sim artesãos/artistas que 
juntavam em si qualidades que só foram separadas de forma definitiva no 
século XVIII. O actual sistema das artes, ou sistema das artes moderno, é 
assim o resultado de uma invenção do século XVIII. Isto não quer dizer que 
tenha surgido de repente, do nada; embora possamos falar de uma ruptura ou 
descontinuidade entre o sistema pré-moderno das artes e o moderno (actual) 
sistema das artes, tal não implica que não tenha havido continuidades entre 
ambos. Alguns aspectos do actual sistema das artes encontravam-se já 
latentes nos autores gregos da Antiguidade, nos pintores do Renascimento ou 
nos filósofos do século XVII, mas estas ideias só se organizaram num discurso 
regulador e num sistema institucional em finais do século XVIII. Este sistema 
das artes estabelecido no século XVIII continua a ser o enquadramento no seio 
do qual têm lugar muitas das mudanças actuais. 
A arte foi vista como “imitação” até ao advento do modernismo, altura 
em que os artistas iniciaram uma busca da essência da arte que culminou em 
1965, quando a pop art e a arte conceptual demonstraram que não havia uma 
maneira “correcta”, ou paradigmática, de a arte se apresentar. A arte revelara 
finalmente a sua verdadeira natureza: algo que faz uma afirmação e a 
corporiza, ou encarna, de forma auto-consciente. Depois da revelação de que 
a essência da arte é “significado, ou sentido, incorporado” (embodied meaning) 
(Arthur Danto, After the End of Art, 1997), a verdadeira forma da polaridade 
arte versus artesanato tornou-se igualmente aparente: significado corporizado 
versus mera utilidade e génio versus mera capacidade. O conceito de “morte 
da arte” em Danto (filósofo contemporâneo) tem que ver com a ideia de que “a 
arte é eternamente a mesma”, e que a essência da arte se foi revelando 
progressivamente ao longo da história. Este autor combina audaciosamente 
um ponto de vista essencialista com uma visão historicista. Agora que a 
essência foi revelada, a fase histórica da arte terminou: a arte já não tem uma 
“direcção narrativa”. É este o sentido da controversa frase de Danto, “the end 
of art”, que, embora provocadora, apenas significa que a própria arte deixou de 
procurar a sua essência. 
 
 
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Pode-se encontrar no passado algumas semelhanças esparsas com os 
ideais e as práticas modernas das belas-artes. O que é incorrecto é permitir 
que essas familiaridades reconfortantes nos impeçam de ver as enormes 
diferenças e criem a ilusão de que a ideia moderna de arte esteve sempre 
connosco. O importante é perceber quando e onde é que um antigo sistema de 
artes/artesanato – um complexo integrado de ideais, práticas e instituições – 
foi substituídopor um novo sistema de belas-artes versus artesanato. 
Há diferenças radicais entre as nossas concepções e a concepção e 
organização das artes dominante desde a Grécia Antiga até meados do século 
XVII. Durante cerca de dois mil anos, a cultura ocidental não teve um termo ou 
conceito para designar as belas-artes, e encarava o artista/artesão como um 
fazedor mais do que como um criador, havendo a convicção de que estátuas, 
poemas e músicas não existiam essencialmente por si mesmas, mas serviam 
determinadas finalidades. Na Idade Média, não havia artesanato e belas-artes, 
mas apenas artes, assim como não havia artistas ou artesãos, mas apenas 
artesãos/artistas, que davam igual importância à habilidade e à imaginação, à 
tradição e à invenção. Também não houve uma mudança brusca entre a Idade 
Média e o Renascimento, como durante muito tempo se pensou. No 
Renascimento, as artes e os seus executores ainda operavam inseridos num 
sistema de patronato/encomenda, que destinava a maior parte das obras a 
públicos, funções e locais específicos. 
O século XVI assiste ao surgimento de várias novas práticas (as 
biografias dos artistas, o auto-retrato), de algumas instituições inovadoras (as 
academias de arte), e de um começo de novas relações de produção (alguns 
coleccionadores e mercados de arte), mas o antigo modo de conceber e 
organizar a arte manteve-se dominante. O século XVII constituiu um período 
de transição crucial: o desenvolvimento da ciência e o surgimento de uma 
economia de mercado minavam a base social e intelectual do antigo sistema 
das artes, tornando obsoleto o velho esquema artes liberais/artes mecânicas, e 
atribuindo à ideia de gosto um novo papel na experiência da artes. No entanto, 
apesar dos sinais de ruptura, as sociedades seiscentistas ainda conseguiam 
unir num só arte e artesanato, artista e artesão, prazer e finalidade. 
 
 
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No final do século XVIII, haviam surgido na Europa uma série de 
instituições culturais, acompanhadas do aparecimento de um mercado e de um 
público distintos para as belas-artes, bem como de novas concepções de 
belas-artes, artista e estética. A convergência destas mudanças sociais, 
institucionais e intelectuais deu lugar ao moderno sistema das artes. O período 
entre 1750 e 1800 foi crucial, dado que assistiu à separação definitiva entre 
belas-artes e artesanato, artista e artesão, e da estética em relação aos 
restantes modos de experiência. Entre cerca de 1800 e 1830, o termo “arte” 
começou a significar um domínio espiritual autónomo, a vocação artística foi 
santificada, e o conceito de estética começou a substituir o de gosto. 
Porque se dá esta viragem do antigo sistema das artes dos séculos 
passados para o sistema das belas-artes? As razões foram sobretudo de 
ordem intelectual: as ideias de belas-artes, artista e estética trouxeram 
soluções a uma série de problemas conceptuais herdados de séculos 
anteriores. Mas as mudanças de conceitos foram igualmente justificações 
para as novas instituições que lhes deram corpo e para a nova elite cultural 
que neles acreditou. O moderno sistema das artes só se estabeleceu 
definitivamente entre 1680 e 1830, o que, de um ponto de vista sociológico, é o 
resultado de um longo processo de diferenciação social iniciado no final da 
Idade Média. A moderna ideia de arte não é um destino histórico nem um 
universal humano, como pretendem as concepções essencialistas, mas sim 
uma resposta às forças gerais de modernização e secularização; o facto de a 
arte se ter tornado um campo independente é consequência da dissolução 
natural das actividades integradas da sociedade medieval nas diferentes 
esferas da política, da economia, da religião, da ciência e da arte. 
 As novas instituições artísticas tiveram um papel-chave na mediação 
entre conceitos e contextos socio-económicos. Instituições como o museu de 
arte, o concerto secular, a critica literária, foram o ponto onde convergiram o 
social e o ideacional, constituindo-se e reforçando-se mutuamente. Há assim 
na emergência do sistema das belas-artes uma ligação entre os factores 
intelectuais, institucionais e o socio-económicos. Surge um sistema de 
mercado que vai crescendo, e dá-se a expansão de um público artístico de 
classe média. O novo ideal do artista está relacionado com a necessidade de 
os artistas garantirem a independência do novo mercado artístico e do novo 
 
 
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público das artes, na altura em que o velho sistema de patronato entrava em 
colapso. Surgem instituições como as exposições de pintura separadas e os 
negociantes de arte, os concertos seculares regulares e a oficialização dos 
direitos de autor. É consagrada uma nova imagem do artista como génio 
criador, juntamente com uma nova concepção da “obra” como um mundo 
autónomo em si mesmo. A ideia de uma experiência estética distinta para a 
arte emerge do problema do gosto. A expressão institucional desta nova 
sensibilidade tornou-se visível em aspectos como a eliminação de lugares para 
o público no palco dos teatros ou da ópera, ou o desenvolvimento do tour, a 
viagem pitoresca. 
 Assim, uma enorme mudança nos ideais e instituições da arte teve lugar 
através da Europa. Do mundo seiscentista onde as artes estavam integradas 
propositadamente na sociedade e em que havia muito poucas instituições 
artísticas autónomas, a expansão da classe média e o surgimento de um 
sistema de mercado para as artes levaram à emergência de quase todas as 
instituições e práticas modernas das belas-artes: na pintura, havia agora 
exposições, leilões de arte, negociantes de arte, crítica de arte, história da arte, 
e uma nova ênfase na assinatura; na música, havia agora concertos seculares, 
a eliminação dos lugares sentados no palco da ópera, o desenvolvimento da 
crítica musical e da história da música, a emergência do conceito de “obra” e 
as suas práticas de notação rigorosa, a introdução da numeração dos opus, o 
fim do empréstimo e da reciclagem. Na literatura, assistimos ao surgimento 
das bibliotecas itinerantes, da crítica e da história literária, ao desenvolvimento 
dos cânones vernaculares, ao estabelecimento dos direitos de autor e ao 
aparecimento de um novo estatuto para o autor como livre-criador. A 
acompanhar estas mudanças institucionais e comportamentais, dá-se uma 
revolução paralela nos conceitos e termos artísticos. A antiga e alargada 
noção de arte (“uma arte”), foi dividida nas categorias de belas-artes versus 
artesanato, a antiga ideia do artesão/artista dividiu-se no ideal do artista como 
criador versus o artesão como um fazedor rotineiro, e a antiga ideia do gosto 
dividiu-se na experiência refinada e intelectualizada chamada “estética” em 
contraste com os prazeres vulgares do sentido e da função. 
Surgem novos significados para velhos termos, como “artista”, por 
exemplo, que integra agora novas conotações de ideais elevados de liberdade 
 
 
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e de génio, assim como profundas mudanças que fazem com que se passe da 
imitação à originalidade, da invenção à criação, da reprodução à imaginação 
criativa. Todas estas modificações nas instituições, nas práticas, nos ideais, 
nos termos, constituem o moderno sistema das belas-artes, que ainda se 
encontra largamente em vigor na actualidade. 
 A noção de “contemplação desinteressada” torna-se parte do discurso 
de Kant e Schiller, embora não fosse universalmente aceite. A criação de um 
museu nacional de arte no Louvre, por parte dos revolucionários, na sequência 
da Revolução Francesa, retirando as obras de arte dos seus contextos 
funcionais para serem contempladas no museu, consubstanciou ou novo ideal 
da contemplação estética da “arte por si mesma”. 
 Se o século XVIII cindiu a antiga ideia da arte em belas-artes versus 
artesanato, o século XIX transformou as próprias belas-artes numa “Arte” 
reificada, um domínio independente e privilegiado do espírito,da verdade e da 
criatividade. De forma similar, o conceito de artista era agora santificado como 
um dos chamamentos mais altamente espirituais da humanidade. Em 
contraste, o estatuto e a imagem do artesão continuaram a declinar, dado que 
muitas pequenas oficinas foram forçadas a fechar devido ao processo de 
industrialização, e muitos artesãos especializados engrossaram as fileiras 
fabris, como operários, executando rotinas pré-estabelecidas. Finalmente, a 
“estética”, construída através da transformação do gosto refinado numa forma 
especial de contemplação desprendida, tornou-se para certas elites cultas uma 
espécie de experiência superior à ciência e à moral. Estas elevações foram 
acompanhadas das mudanças correspondentes nas instituições e nos 
comportamentos. Um número crescente de pessoas das classes médias tinha 
agora acesso à aprendizagem de um comportamento estético adequado. As 
audiências mais alargadas no campo das artes tornaram-se mais claramente 
divididas e começaram a frequentar diferentes instituições. A elevação e a 
consagração dos ideais de arte, artista e estética estavam amplamente 
completas por volta de 1830, mas levou-se quase o resto do século XIX para 
erigir as instituições artísticas, inculcar os novos ideais e modificar os 
comportamentos. 
Assim como houve antecipações dos modernos ideais da vocação 
artística do Renascimento em diante, também houve remanescentes do antigo 
 
 
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sistema arte/artesanato que perduraram. O período entre 1800 e 1830 parece 
ter sido o momento da consolidação e elevação finais. Em meados do século 
XIX, o termo “arte” passara não só a designar uma categoria das belas-artes 
(poesia, pintura, música, etc.), mas também um corpo autónomo de obras e 
performances, valores e instituições. A arte podia agora ser definida como 
uma espécie de essência metafísica. De forma correspondente, o ideal do 
artista como criador era visto como uma espécie de chamamento religioso, 
muitas vezes elevado ao estatuto de profeta e padre, mas igualmente 
permitindo as poses do dandy ou do boémio, juntamente com a do mártir e do 
rebelde. Finalmente, as “obras de arte” como criações fixas da imaginação 
inspirada suscitavam uma atenção estética, “por si mesmas”, um estado da 
mente e um comportamento insistentemente inculcado em audiências de 
concertos e visitantes de museus. O lado negativo da elevação da arte 
ocorrida no século XIX foi sem dúvida a posterior despromoção das artes e 
ofícios populares, a redução de muitos artesãos a operários industriais, e uma 
crescente separação dos públicos das belas-artes e das artes populares. No 
final do século XIX, esta divisão ocorrida no século XVIII tornara-se um 
verdadeiro abismo. 
Dois processos ocorrem posteriormente, afectando o sistema das belas-
artes como um todo. L. Shiner designa-os por “assimilação” e “resistência”. 
Por assimilação, entende o autor a progressiva expansão do campo das 
belas-artes do seu núcleo original da poesia, música, pintura, escultura e 
arquitectura (mais a dança, a oratória, etc.), até incluir novas artes, ou artes 
até aí excluídas, como a fotografia no final do século XIX, o cinema, o jazz e a 
“arte primitiva” no início do século XX, as artes que usam meios “artesanais” a 
partir de 1950, a música electrónica e o novo jornalismo desde os anos 60, e, 
desde os anos 70, quase tudo. Estas assimilações tiveram ainda o condão de 
provocar um efeito contrário de resistência radical às divisões profundas no 
sistema das artes. 
Assimilação e resistência tiveram as suas consequências ao nível 
das instituições artísticas. Isto torna-se muito claro sobretudo no que diz 
respeito à assimilação, que não se reduz a uns poucos de críticos ou filósofos 
a defenderem argumentos a favor da integração de novas artes ou formas de 
arte na categoria da arte, mas que passa pela incorporação dessas novas 
 
 
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artes ou formas de arte nos museus de arte, nas organizações sinfónicas, nos 
departamentos de literatura. De igual modo, a resistência às polaridades 
básicas do sistema das belas-artes significa não só algumas pessoas a 
lançarem ataques verbais à estreiteza dos ideais dominantes de belas-artes, 
artista e estética, mas igualmente a existência de artistas e curadores a 
trabalhar contra ou fora das instituições artísticas estabelecidas. No entanto, 
assimilação e resistência acabam por estar dialeticamente relacionadas. As 
instituições artísticas procuram perpetuar-se a si mesmas através da 
incorporação de ideias e obras dos que lhes resistem, e os que lhes resistem 
são constantemente tentados a satisfazerem-se com a mera expansão das 
categorias e instituições da arte. Movimentos “anti-arte” como o dadaísmo e o 
Construtivismo russo, ou os autores de gestos anti-arte como Marcel Duchamp 
ou John Cage, por exemplo, foram frequentemente ambivalentes no que 
respeita à categoria da arte e às instituições artísticas que atacaram, e estas 
instituições, por seu lado, preocuparam-se rapidamente em recuperar e 
conservar obras e acções anti-arte. 
Um caso interessante é o da assimilação da fotografia, inventada em 
1839, pouco depois da consolidação do moderno sistema das artes. A 
assimilação da fotografia só se completou no início do século XX, quando 
começou a entrar nos museus de arte. 
A resistência mais conseguida à divisão belas-artes versus artesanato 
foi a de Ruskin e William Morris, cujas ideias encontraram uma corporização 
institucional no movimento Arts and Crafts, que se espalhou das Ilhas 
Britânicas ao Continente e à América nas últimas décadas do século XIX. De 
1890 em diante, a viragem em direcção ao que chamamos modernismo nas 
belas-artes reafirmaria as divisões entre o sistema das belas-artes e o 
processo de assimilação de novos estilos. Ao mesmo tempo, a rejeição 
modernista dos ideais de imitação e beleza exigia novas formas de justificação 
teórica, como o formalismo (Roger Fry) e o expressionismo (Benedetto Croce). 
Mas os efeitos combinados da experimentação modernista e do choque da I 
Guerra Mundial também produziram vigorosos actos de resistência à 
separação entre arte e sociedade. Três desses movimentos exemplares foram 
o Dadaísmo/Surrealismo, o Construtivismo russo e a Bauhaus. A partir dos 
anos 60 do século XX, o processo de assimilação foi acelerado, até que as 
 
 
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fronteiras do que podemos entender como arte se foram expandindo de forma 
a incluir quase tudo, qualquer material, som ou actividade concebíveis, e a 
torná-los aceites pelas instituições artísticas. Floresceram igualmente 
resistências às polaridades deste moderno sistema das artes, não só entre 
escritores e compositores que ultrapassam as fronteiras entre arte erudita e 
arte popular, mas igualmente entre artistas identificados com abordagens 
ligadas à performance, ao meio-ambiente e à arte conceptual. Quer a 
assimilação quer a resistência, embora se movam em direcções opostas, 
acabam por minar o sistema das belas-artes e por suscitar a questão de saber 
se estamos a caminhar para além da arte dividida. 
Na contemporaneidade, a ideia de assimilação vai ganhando mais força. 
As disciplinas dedicadas ao estudo, crítica e história das belas-artes têm 
mudado. A história da arte readquiriu o interesse pelo contexto político e social 
e por novos métodos de análise, dando especial atenção às mulheres artistas 
e aos artistas oriundos de minorias. Os revisionistas disciplinares mais radicais 
pretendem dissolver a literatura nos estudos culturais, a história da arte na 
história das imagens, a história da música clássica ocidental numa 
etnomusicologia alargada. No entanto, muitas destas propostas 
interdisciplinares parecem destinadas a complementar mais do que a suplantar 
disciplinas já existentes. Mas ir para além do moderno sistema das artes 
significaria também ultrapassar a ambivalênciaem relação à habilidade, 
beleza, função e prazer sensual. O ideal de reunir belas-artes e artesanato ao 
nível do corpo tornou-se agora mais complexo devido ao advento da revolução 
digital. O surgimento do hipertexto, da ciber-arte, de modelos arquitectónicos 
virtuais, do som sintetizado, da transcrição automática, fizeram parecer as 
tradicionais formas de escrever, desenhar ou compor “à mão” ainda mais 
problemáticas em muitas artes. 
A elevação e espiritualização crescentes isolaram muitas vezes as 
belas-artes num enclave cultural; este isolamento gerou a vontade de 
reintegrar arte e sociedade ou arte e vida. Os valores inter-relacionados de 
função e prazer sensual, muitas vezes depreciados no passado, adquirem 
agora importância no processo de recuperação do respeito pelos ofícios 
artesanais. A “estética do quotidiano” de certas práticas tradicionais japonesas, 
por exemplo, poderá ensinar-nos muito. A tradição japonesa, privilegiando as 
 
 
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experiências sensoriais de aspectos transitórios da vida quotidiana, atribui 
igual valor à beleza formal, ao trabalho artesanal e à função. O verdadeiro 
multiculturalismo não se deve limitar à inclusão de alguns exemplos japoneses 
ou africanos na nossa arte, música ou antologias literárias, mas trata-se sim de 
um problema de aprender com as outras culturas as limitações das nossas 
categorias tradicionais. 
As artes tiveram sempre múltiplas funções, mas entre elas a educação 
foi sempre fundamental. A arte como uma religião de substituição: as belas-
artes oferecem à nossa sociedade individualista e secular mais perspectivas 
espirituais variadas do que as religiões históricas. Para alguns pequenos 
segmentos das elites culturais, as belas-artes foram de facto investidas com o 
tipo de sentimento e compromisso em tempos reservados às religiões 
tradicionais. 
 A resposta à arte dividida passa obviamente por não rejeitar ideais 
como a liberdade, a imaginação e a criatividade, mas uni-las a princípios como 
a facilidade, o serviço e a função. Não há, no entanto, uma fórmula mágica 
para este equilíbrio. 
 
 
(Tradução livre, adaptada e incompleta de Larry Shiner, The invention of art – A 
cultural history, Chicago/London, The University of Chicago Press, 2001, pp. 3-
18, 75-77, 153-155, 187-188, 225-228 e 303-307)

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