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Indaial – 2019 SociolinguíStica Prof.a Luana Ewald Prof.a Danielle Vanessa Costa Sousa 2a Edição Copyright © UNIASSELVI 2019 Elaboração: Prof.ª Luana Ewald Prof.ª Danielle Vanessa Costa Sousa Revisão, Diagramação e Produção: Centro Universitário Leonardo da Vinci – UNIASSELVI Ficha catalográfica elaborada na fonte pela Biblioteca Dante Alighieri UNIASSELVI – Indaial. Impresso por: EW94s Ewald, Luana Sociolinguística. / Luana Ewald; Danielle Vanessa Costa Sousa. – Indaial: UNIASSELVI, 2019. 180 p.; il. ISBN 978-85-515-0403-1 1. Sociolinguística. - Brasil. I. Sousa, Danielle Vanessa Costa. II. Centro Universitário Leonardo Da Vinci. CDD 400 III apreSentação Caro acadêmico, este livro didático pretende oferecer uma porta de entrada para os estudos sociolinguísticos e sua contribuição para a educação básica brasileira. A sociolinguística é uma das áreas de conhecimento da linguística, cuja responsabilidade está ligada aos estudos da linguagem sob uma abordagem social. Ao pensarmos sobre o olhar que os estudos sociolinguísticos lançam para a língua, entramos em uma perspectiva que leva em conta aquilo que os falantes efetivamente usam em seu dia a dia e que, na maioria das vezes, está bastante distante da prescrição feita pelas gramáticas tradicionais. Esse distanciamento, no entanto, é natural. Dada nossa tradição escolar, há uma tendência em se identificar o estudo da linguagem com o estudo tradicional da gramática, o que buscaremos desconstruir nesta disciplina a partir da explicação de fenômenos linguísticos, sejam eles decorrentes das línguas em contato, dos contextos de comunicação, da história das línguas e seus falantes etc. Ao estudar linguística, você irá sempre se deparar com diferentes teorias que abordam o mesmo objeto de estudo central: a língua(gem). Essas teorias estão vinculadas às disciplinas da linguística, isto é, aos estudos sociolinguísticos, filológicos, estudos de gramaticalização, da linguística aplicada, dentre outros, que possuem métodos, concepções e formas distintas de tratar a linguagem. Na linguística, portanto, existe uma pluralidade teórica para trabalharmos com os vários fenômenos da língua. Na sociolinguística brasileira, procuramos desconstruir o mito de que as pessoas devem falar conforme prescreve a gramática normativa. Bagno, sociolinguista brasileiro, trata da variação em seus estudos da língua materna. Em vários de seus livros sobre variação linguística, o autor discute que falar conforme prescreve essa gramática é um feito impossível de se concretizar, pois a língua é dinâmica e está sempre se transformando a partir de questões sociais vivenciadas por seus falantes. E é justamente por isso que, ao tratarmos da fala, não podemos dizer que alguém fala certo ou errado, mas de forma adequada ou inadequada para determinada situação social. A partir desta apresentação, você já deve ter compreendido que a sociolinguística é uma área de estudos na nossa formação em Letras que se contrapõe às formas idealizadas e coercitivas de tratar os estudos da linguagem. Não pretendemos julgar uma forma linguística como melhor ou pior do que outra, como mais bonita ou feia, como mais correta ou errada; o que procuramos é compreender a língua em uso. Nossos estudos nesta disciplina devem contribuir com sua prática pedagógica a fim de que você se afaste de modelos de ensino que visem à mera aplicação de conhecimentos linguísticos em sala de aula legitimados IV Você já me conhece das outras disciplinas? Não? É calouro? Enfim, tanto para você que está chegando agora à UNIASSELVI quanto para você que já é veterano, há novidades em nosso material. Na Educação a Distância, o livro impresso, entregue a todos os acadêmicos desde 2005, é o material base da disciplina. A partir de 2017, nossos livros estão de visual novo, com um formato mais prático, que cabe na bolsa e facilita a leitura. O conteúdo continua na íntegra, mas a estrutura interna foi aperfeiçoada com nova diagramação no texto, aproveitando ao máximo o espaço da página, o que também contribui para diminuir a extração de árvores para produção de folhas de papel, por exemplo. Assim, a UNIASSELVI, preocupando-se com o impacto de nossas ações sobre o ambiente, apresenta também este livro no formato digital. Assim, você, acadêmico, tem a possibilidade de estudá-lo com versatilidade nas telas do celular, tablet ou computador. Eu mesmo, UNI, ganhei um novo layout, você me verá frequentemente e surgirei para apresentar dicas de vídeos e outras fontes de conhecimento que complementam o assunto em questão. Todos esses ajustes foram pensados a partir de relatos que recebemos nas pesquisas institucionais sobre os materiais impressos, para que você, nossa maior prioridade, possa continuar seus estudos com um material de qualidade. Aproveito o momento para convidá-lo para um bate-papo sobre o Exame Nacional de Desempenho de Estudantes – ENADE. Bons estudos! NOTA pelo ensino tradicional da língua. O que pretendemos, na verdade, é que a disciplina de língua portuguesa permita ao aluno da educação básica refletir sobre seus conhecimentos linguísticos, sobre a norma-padrão da língua, sobre os textos que circulam socialmente e passe a utilizar a linguagem adequadamente na sociedade, legitimando sua própria variedade e tendo acesso às variedades prestigiadas do país. Resumidamente, podemos dizer que a disciplina de sociolinguística está em diálogo com a linguística aplicada, a filologia, com as disciplinas voltadas aos estudos gramaticais, como morfologia e sintaxe sob a abordagem de usos sociais. Por meio desse diálogo, buscaremos compreender juntos o português falado no Brasil e o ensino de língua portuguesa na escola. Prof.ª Luana Ewald Prof.ª Danielle Vanessa Costa Sousa V Olá acadêmico! Para melhorar a qualidade dos materiais ofertados a você e dinamizar ainda mais os seus estudos, a Uniasselvi disponibiliza materiais que possuem o código QR Code, que é um código que permite que você acesse um conteúdo interativo relacionado ao tema que você está estudando. Para utilizar essa ferramenta, acesse as lojas de aplicativos e baixe um leitor de QR Code. Depois, é só aproveitar mais essa facilidade para aprimorar seus estudos! UNI VI VII Olá, acadêmico! Iniciamos agora mais uma disciplina e com ela um novo conhecimento. Com o objetivo de enriquecer seu conhecimento, construímos, além do livro que está em suas mãos, uma rica trilha de aprendizagem, por meio dela você terá contato com o vídeo da disciplina, o objeto de aprendizagem, materiais complementares, entre outros, todos pensados e construídos na intenção de auxiliar seu crescimento. Acesse o QR Code, que levará ao AVA, e veja as novidades que preparamos para seu estudo. Conte conosco, estaremos juntos nesta caminhada! LEMBRETE VIII IX UNIDADE 1 – INTRODUÇÃO AOS ESTUDOS SOCIOLINGUÍSTICOS E À SOCIOLINGUÍSTICA VARIACIONISTA ....................................................1 TÓPICO 1 – INTRODUÇÃO À SOCIOLINGUÍSTICA ................................................................3 1 INTRODUÇÃO ...................................................................................................................................3 2 A LINGUÍSTICA COMO CIÊNCIA DA LINGUAGEM HUMANA .......................................5 3 O SURGIMENTO DE UMA ABORDAGEM SOCIAL SOBRE A LINGUAGEM HUMANA .................................................................................................................7 4 SOCIOLINGUÍSTICA: A CONSTITUIÇÃO DE UMA NOVA ESCOLA DE PENSAMENTO NA LINGUÍSTICA...............................................................................................11 LEITURA COMPLEMENTAR .............................................................................................................14 RESUMO DO TÓPICO 1......................................................................................................................19 AUTOATIVIDADE...............................................................................................................................21 TÓPICO 2 – RELAÇÕES ENTRE LÍNGUA E SOCIEDADE .........................................................25 1 INTRODUÇÃO ...................................................................................................................................25 2 CONCEITOS FUNDAMENTAIS: VARIAÇÃO E COMUNIDADE .........................................26 3 AS GRAMÁTICAS E A NOÇÃO DE ERRO .................................................................................31 4 VARIEDADE, VARIAÇÃO, VARIÁVEL, VARIANTE ................................................................36 RESUMO DO TÓPICO 2......................................................................................................................39 AUTOATIVIDADE ...............................................................................................................................41 TÓPICO 3 – ESTUDO SOCIOLINGUÍSTICO DO PORTUGUÊS BRASILEIRO ....................45 1 INTRODUÇÃO ...................................................................................................................................45 2 POR QUE TRATAR DE VARIAÇÃO LINGUÍSTICA PARA O CONTEXTO DE TRABALHO NA EDUCAÇÃO BÁSICA? ......................................................................................45 3 VARIAÇÕES LINGUÍSTICAS NO PORTUGUÊS BRASILEIRO ............................................47 RESUMO DO TÓPICO 3......................................................................................................................55 AUTOATIVIDADE ...............................................................................................................................57 UNIDADE 2 – ESTUDANDO AS VARIEDADES E OS CONTATOS LINGUÍSTICOS.........61 TÓPICO 1 – SOCIOLINGUÍSTICA VARIACIONISTA ................................................................63 1 INTRODUÇÃO ...................................................................................................................................63 2 PARA ENTENDER A VARIAÇÃO E A MUDANÇA LINGUÍSTICA ......................................64 2.1 ANALISANDO REGULARIDADES LINGUÍSTICAS: PRINCÍPIOS METODOLÓGICOS.......................................................................................................................68 2.2 AS DIMENSÕES SOCIAIS DA VARIAÇÃO LINGUÍSTICA: TRAÇOS DESCONTÍNUOS E GRADUAIS ...............................................................................74 LEITURA COMPLEMENTAR .............................................................................................................83 RESUMO DO TÓPICO 1......................................................................................................................86 AUTOATIVIDADE ...............................................................................................................................88 Sumário X TÓPICO 2 – ALTERNÂNCIAS DE LÍNGUAS, BILINGUISMO E ESTRATÉGIAS LINGUÍSTICAS ................................................................................95 1 INTRODUÇÃO ...................................................................................................................................95 2 ALTERNÂNCIA DE LÍNGUAS .......................................................................................................96 2.1 ALTERNÂNCIA DE LÍNGUAS E BILINGUISMO ..................................................................101 RESUMO DO TÓPICO 2......................................................................................................................103 AUTOATIVIDADE ...............................................................................................................................105 TÓPICO 3 – O MITO DO MONOLINGUISMO .............................................................................107 1 INTRODUÇÃO ...................................................................................................................................107 2 O MITO DO MONOLINGUISMO NO BRASIL .........................................................................107 2.1 UM BREVE PANORAMA HISTÓRICO SOBRE O MITO DO MONOLINGUISMO ..........109 2.2 IDEOLOGIAS LINGUÍSTICAS MONOLÍNGUES E LÍNGUA COMO PRÁTICA SOCIAL .........................................................................................................................113 RESUMO DO TÓPICO 3......................................................................................................................117 AUTOATIVIDADE ...............................................................................................................................118 UNIDADE 3 – CONTRIBUIÇÕES DA SOCIOLINGUÍSTICA PARA A EDUCAÇÃO ..........119 TÓPICO 1 – O TRATAMENTO DAS VARIEDADES NO ENSINO DE LÍNGUA PORTUGUESA ..............................................................................................121 1 INTRODUÇÃO ...................................................................................................................................121 2 A GRAMÁTICA NAS AULAS DE LÍNGUA PORTUGUESA ...................................................121 3 A VARIAÇÃO LINGUÍSTICA NOS LIVROS DIDÁTICOS DE LÍNGUA PORTUGUESA ......125 LEITURA COMPLEMENTAR .............................................................................................................131 RESUMO DO TÓPICO 1......................................................................................................................135 AUTOATIVIDADE ...............................................................................................................................136 TÓPICO 2 – AS LÍNGUAS EM CONTATO E OS COMPORTAMENTOS E ATITUDES COM RELAÇÃO ÀS LÍNGUAS E SEUS FALANTES ....................139 1 INTRODUÇÃO ...................................................................................................................................139 2 CONSIDERAÇÕES SOBRE AS LÍNGUAS EM CONTATO ......................................................139 3 ESTUDANDO A VARIEDADE LINGUÍSTICA: SOCIOLETO, ETNOLETO, CRONOLETO E IDIOLETO .............................................................................................................144 4 COMPORTAMENTOS E ATITUDES SOBRE AS LÍNGUAS E SEUS FALANTES: PRECONCEITO LINGUÍSTICO .....................................................................................................148 RESUMO DO TÓPICO 2......................................................................................................................153 AUTOATIVIDADE ...............................................................................................................................155 TÓPICO 3 – POLÍTICA E PLANIFICAÇÃO LINGUÍSTICA .......................................................159 1 INTRODUÇÃO ...................................................................................................................................159 2 A GESTÃO DO PLURILINGUISMO .............................................................................................159 3 POLÍTICAS E PLANEJAMENTO LINGUÍSTICO .....................................................................163 LEITURA COMPLEMENTAR .............................................................................................................167 RESUMO DO TÓPICO 3......................................................................................................................172 AUTOATIVIDADE ...............................................................................................................................173 REFERÊNCIAS .......................................................................................................................................175 1 UNIDADE 1 INTRODUÇÃO AOS ESTUDOS SOCIOLINGUÍSTICOS E À SOCIOLINGUÍSTICA VARIACIONISTA OBJETIVOS DE APRENDIZAGEM PLANO DE ESTUDOS A partir do estudo desta unidade,você deverá ser capaz de: • compreender o lugar da sociolinguística nos estudos científicos da linguagem humana; • conhecer o surgimento da abordagem social sobre a linguagem e o nascimento da sociolinguística como disciplina da linguística; • reconhecer a existência de aspectos sociais na língua; • identificar a metalinguagem própria da sociolinguística a partir dos conceitos de comunidades de fala, variedade, variação, variável e variante linguísticas; • refletir sobre algumas variantes do português brasileiro. Esta unidade está dividida em três tópicos. No decorrer da unidade, você encontrará autoatividades com o objetivo de reforçar o conteúdo apresentado. TÓPICO 1 – INTRODUÇÃO À SOCIOLINGUÍSTICA TÓPICO 2 – RELAÇÕES ENTRE LÍNGUA E SOCIEDADE TÓPICO 3 – ESTUDO SOCIOLINGUÍSTICO DO PORTUGUÊS BRASILEIRO Preparado para ampliar seus conhecimentos? Respire e vamos em frente! Procure um ambiente que facilite a concentração, assim absorverá melhor as informações. CHAMADA 2 3 TÓPICO 1 UNIDADE 1 INTRODUÇÃO À SOCIOLINGUÍSTICA 1 INTRODUÇÃO A sociolinguística é tratada, de maneira geral, como o ramo da linguística que estuda a língua(gem) a partir de suas relações com a sociedade. Você verá, ao longo deste tópico, como ocorreu a constituição desse campo científico de estudos. Neste livro, muitas vezes, você se deparará com o termo língua como palavra equivalente à linguagem. Isto porque estamos entendendo a linguagem como uma forma de comunicação, seja de modo verbal ou não verbal. A língua, na presente disciplina, é estudada no seu contexto de comunicação verbal. Por isso, usamos língua(gem) como um recurso para identificar o estudo da língua socialmente situado. NOTA É importante que procure compreender, desde o início de suas leituras, que o tratamento dado à língua portuguesa durante a sua formação em Letras será científico, e não meramente normativo. O tratamento normativo dado à língua portuguesa, muitas vezes, tem sido pautado em uma compreensão de estrutura pronta e pré-estabelecida, o que Faraco (2008) chama de “norma curta” ao contrapor com a expressão “norma culta”. Esse jogo de palavras ocorre para criticar o ensino de língua que prescreve, normatiza regras do “bom” uso do português sob um olhar purista utilizado muito mais para justificar preconceitos que causam constrangimentos às pessoas do que para explicar o funcionamento da língua em si. O tratamento científico dado ao estudo da língua, por sua vez, está associado à busca pela compreensão e reflexão do processo pelo qual uma língua varia, muda e se constitui. Para tratar com cientificidade a língua, precisamos, portanto: [...] abandonar a ideia de que a língua é uma estrutura pronta, acabada, que não é suscetível a variar e a mudar. É necessário entender que a realidade das pessoas que usam a língua – os falantes – tem uma influência muito grande na maneira como elas falam e na maneira como avaliam a língua que usam e, especialmente, a língua usada pelos outros. [...] (COELHO; GÖRSKI; NUNES DE SOUZA, 2015, p. 12). UNIDADE 1 | INTRODUÇÃO AOS ESTUDOS SOCIOLINGUÍSTICOS E À SOCIOLINGUÍSTICA VARIACIONISTA 4 Talvez seja difícil pensar no estudo da língua como ciência, dada a nossa tradição escolar pautada exclusivamente nas gramáticas normativas, que tendem a realizar apagamentos acerca da reflexão sobre fenômenos da fala e da própria escrita. Nesse sentido, tendemos a simplificar, em contexto escolar, o processo de compreender fenômenos da linguagem ao apenas prescrevermos de forma subjetiva regras da gramática tradicional. Para tratar da cientificidade linguística, inclusive no campo dos estudos sintáticos, Mioto, Silva e Lopes (2018) problematizam o fato de termos facilidade em reconhecer a física ou a química como ciências, enquanto apresentamos certa resistência para atribuir o mesmo reconhecimento à sociologia ou à própria linguística. Os autores procuram, então, contextualizar a linguística como ciência, comparando-a com esses outros campos: [...] o físico – ou qualquer outro pesquisador – precisa de um objeto de estudo, isto é, uma coisa para estudar. Uma teoria se justifica na relação que tem com o objeto de estudo que ela aborda. Mas observe que “alguma coisa” é muito vago como objeto e é necessário que se faça aí uma delimitação muito mais precisa (MIOTO; SILVA; LOPES, 2018, p. 9, grifo no original). O objeto de estudo do físico corresponde a certos fenômenos naturais, tais como aqueles relacionados a condições climáticas (raios, trovões etc.) ou aqueles relacionados à conservação de energia, erosão, só para citar alguns exemplos. A linguística, de modo semelhante, também apresenta o seu objeto de estudos: a linguagem. Como é bastante vasta a “quantidade de termos que o fenômeno linguagem abarca [...]”, se torna “necessário restringir drasticamente o seu objeto de estudo” (MIOTO; SILVA; LOPES, 2018, p. 10), categorizando-o por escolas de pensamento ou disciplinas. A sociolinguística é uma dessas disciplinas que trata da variação e mudança linguísticas, da estratificação social das línguas, dos contatos linguísticos, enfim, da relação língua e sociedade, conforme mencionado anteriormente. Ao longo do seu curso de graduação, além da sociolinguística, você deve ter contato com outras disciplinas da linguística, como a morfologia, a sintaxe, a filologia, a linguística aplicada etc. Vamos começar nossos estudos situando o campo de conhecimento denominado sociolinguística para compreendermos sua importância na formação do profissional de Letras, nos avanços científicos acerca da linguagem e na prática pedagógica brasileira. Para que possamos situar a sociolinguística, precisamos recapitular, ainda que brevemente, alguns aspectos da própria constituição da linguística enquanto ciência autônoma, especialmente a partir das contribuições de Saussure para a formação do que viemos a chamar de linguística moderna, perpassando pela contraposição elaborada por Meillet à linguística saussuriana e chegando aos principais nomes da formação do campo de estudos sociolinguísticos nos Estados Unidos, como é o caso de William Labov. Pronto para iniciar seu percurso científico da sociolinguística? TÓPICO 1 | INTRODUÇÃO À SOCIOLINGUÍSTICA 5 2 A LINGUÍSTICA COMO CIÊNCIA DA LINGUAGEM HUMANA Como você já deve ter visto em outras disciplinas voltadas aos estudos linguísticos em seu curso de graduação, a linguística, constituída como ciência autônoma, foi pautada essencialmente a partir das contribuições de Ferdinand de Saussure ([1916] 2006) publicadas postumamente em 1916 em “Curso de Linguística Geral”. Charles Bally e Albert Sechehaye, com base em suas anotações e nas anotações de Albert Riedlinger, realizadas ao longo de cursos ministrados por Saussure na Universidade de Genebra, editaram e publicaram “Curso de Linguística Geral”, obra que se tornou um marco para a linguística moderna e para a abordagem estruturalista da linguagem. Conforme apresentamos na introdução deste tópico, toda ciência precisa de um objeto de estudo, isto é, um tema central que versa sua preocupação e que servirá de ponto de partida para elaboração de pesquisas. Para a linguística não é diferente! Seu objeto de estudo é a linguagem humana. Contudo, para lidar com esse objeto de estudo (a linguagem), há diferentes escolas de pensamento, como a linguística estruturalista originada a partir de Saussure, e a própria sociolinguística, que se constitui como conteúdo desta disciplina que você está cursando agora. Na área da sociolinguística, estudamos a linguagem a partir de uma abordagem social, o que é muito diferente do que se fazia no estruturalismo de Saussure, quando ocorreu a autonomia científica da linguística, o qual desconsiderava os falantes e sua história. A problemática que é aqui levantada pela sociolinguística se volta ao fato de que “as línguas não existem sem as pessoas que as falam, e a história de uma língua é a história de seus falantes”(CALVET, 2002, p. 12). Você deve ter notado o uso dos verbos no pretérito acerca das ações da linguística estruturalista (como em “ocorreu a autonomia científica”; ou em “muito diferente do que se fazia na linguística estruturalista”). Isto se deve apenas ao fato de a autonomia da ciência em questão já ter se concretizado e ao fato de Saussure ter falecido (em 1913), o que implica o impedimento da continuidade de seus estudos de forma direta. Contudo, vale alertar que o estruturalismo ainda é uma abordagem importante na linguística e que continuou em aprimoramento científico mesmo com o surgimento de novas escolas de pensamento. Por entenderem que o estruturalismo não compreende a linguagem em sua completude, alguns linguistas passaram a adotar outras perspectivas de estudo, como a abordagem social da sociolinguística, a fim de responder a novas perguntas de pesquisa que surgiam sobre a linguagem com o passar dos anos. Para compreender melhor os estudos estruturais, que não se constituem como foco deste material didático, recomendamos a leitura do texto disponível on-line “Por que ainda ler Saussure?”, publicado no livro “Saussure: a invenção da linguística”: FIORIN, José Luiz; FLORES, Valdir do Nascimento e BARBISAN, Leci Borges (Orgs.). Saussure: a invenção da linguística. São Paulo: Contexto, 2013, 174 p. Disponível em: <https://editoracontexto.com.br/downloads/dl/file/id/1523/saussure_a_invenc_o_da_ linguistica_apresentac_o.pdf>. Acesso em: 11 jan. 2018. NOTA UNIDADE 1 | INTRODUÇÃO AOS ESTUDOS SOCIOLINGUÍSTICOS E À SOCIOLINGUÍSTICA VARIACIONISTA 6 FIGURA 1 – SAUSSURE: A INVENÇÃO DA LINGUÍSTICA FONTE: <http://twixar.me/QcV1>. Acesso em: 15 maio 2019. Quando você iniciou as disciplinas específicas do curso de Letras, viu que, dentro da linguística, o objeto de estudo adotado por Saussure ([1916] 2006) era a langue (língua) como estrutura homogênea, separada dos aspectos da parole (fala). Embora Saussure reconhecesse a língua como um fato social, seu objeto de estudo desconsiderava as relações entre a linguagem e a sociedade e estava definido na estrutura da língua, a partir das relações internas entre os elementos linguísticos. Conforme introduz Calvet (2002), sociolinguista francês, Saussure via a língua como a parte social da linguagem, isto é, como uma instituição social, mas desconsiderava fatores externos a ela (classe social do falante, escolaridade, região onde vive...) e a estudava apenas de forma interna, como um sistema fechado em si mesmo. O estruturalismo na linguística foi construído, portanto, sobre a recusa em levar em consideração o que existe de social na língua, e se as teorias e as descrições derivadas desses princípios são evidentemente uma contribuição importante ao estudo geral das línguas, a sociolinguística [...] teve de tomar o sentido inverso dessas posições (CALVET, 2002, p. 12, grifos nossos). Foi especialmente pela concepção de língua como um sistema fechado em si mesmo que linguistas começaram a se opor ao estruturalismo, impulsionando o surgimento, anos mais tarde, da sociolinguística como uma nova escola de pensamento sobre a linguagem. Você verá, a partir do Tópico 2 desta unidade, que a sociolinguística é um campo científico responsável pelo estudo da língua levando em consideração tanto fatores externos a ela quanto internos. Isto quer dizer que, diferentemente do que Saussure fazia ao estudar o sistema da língua fechado em si mesmo, a sociolinguística procura compreender esse sistema a partir de fatores externos a ele, como a influência da vida social dos falantes na língua. NOTA TÓPICO 1 | INTRODUÇÃO À SOCIOLINGUÍSTICA 7 A partir da década de 1960, iniciou de forma mais significativa a complexa tarefa de problematizar as lacunas acerca da compreensão estruturalista da linguagem, dando margem à discussão sobre a diversidade linguística sob um viés social. Na corrente estruturalista, “insistia-se na organização dos fonemas de uma língua, em sua sintaxe”, enquanto que a sociolinguística passa a olhar para a língua em sua heterogeneidade, preocupando-se com a estratificação social das línguas e com a variação linguística, estudada, especialmente, a partir das classes sociais (CALVET, 2002, p. 12). Você entende o que significa a estratificação social das línguas? Ao longo de suas aulas de sociologia, na educação básica, você já deve ter se deparado com a expressão “estratificação social”. Seu conceito implica considerar que podemos classificar as pessoas em grupos tomando como base suas condições socioeconômicas. Nesse contexto, Labov ([1972] 2008), linguista estadunidense considerado um dos fundadores da sociolinguística, advoga que a língua só pode ser realizada e, por conseguinte, estudada, nesses grupos sociais de pessoas. A língua, pois, não existe fora da sociedade. Logo, através da língua, podemos observar o desenho da sociedade, de forma sempre fluida, nunca fixa. IMPORTANT E Além da crítica levantada ao estruturalismo de Saussure, a sociolinguística, na mesma década (1960), passa também a criticar fortemente o gerativismo de Chomsky, cuja principal contribuição teórica reside nos estudos sobre gramaticalidade e agramaticalidade, sobre a linguagem como uma universalidade das regras de natureza inata humana (CALVET, 2002). Os sociolinguistas se opõem a determinadas perspectivas desses dois modelos teóricos (estruturalismo e gerativismo), especialmente por conta da separação que tais modelos fazem entre o estudo linguístico e as questões sociais dos falantes. No entanto, o que nos interessa, mais do que debater sobre as controvérsias das diferentes escolas de pensamento da linguística, é compreender o que significa estudar sociolinguística e qual a sua contribuição para a atuação do profissional de Letras em contexto escolar (o que veremos a partir dos próximos tópicos). 3 O SURGIMENTO DE UMA ABORDAGEM SOCIAL SOBRE A LINGUAGEM HUMANA Conforme apresenta Calvet (2002) em sua obra “Sociolinguística: uma introdução crítica”, as primeiras contribuições para o surgimento de um pensamento social sobre a linguagem datam logo após a publicação de o “Curso de Linguística Geral”, o que contribuiu para o desenvolvimento das duas correntes de modo independente: o estruturalismo e a sociolinguística. UNIDADE 1 | INTRODUÇÃO AOS ESTUDOS SOCIOLINGUÍSTICOS E À SOCIOLINGUÍSTICA VARIACIONISTA 8 O linguista francês Antoine Meillet (1866 – 1936), tido como um dos mais brilhantes alunos de Saussure (MARRA; MILANI, 2012), é considerado precursor nesse pensamento social sobre a linguagem. “Entre os anos de 1905 e 1906, pouco tempo antes de Saussure iniciar o Curso em Genebra, Meillet, enquanto contribuía com o jornal de Durkheim, definiu linguagem como um fato social [...]” (MARRA; MILANI, 2012, p. 69). Embora Meillet e Saussure utilizem a definição de língua como um fato social, distanciam-se na forma como explicam esse fato. Na resenha que faz do livro “Curso de Linguística Geral”, Meillet já levantava uma importante crítica, afirmando que: “[...] ao separar a variação linguística das condições externas de que ela depende, Ferdinand de Saussure a priva de realidade; ele a reduz a uma abstração que é necessariamente inexplicável” (MEILLET, 1906 [1921] apud CALVET, 2002, p. 14, grifos nossos). O que seriam as condições externas mencionadas por Meillet? Essas condições são aquelas vinculadas a fatores sociais, que dependem de seus falantes para serem realizadas na língua. São exemplos de condições externas à língua: a classe social do falante, o grupo social ao qual pertence, a situação comunicativa, dentre outros aspectos. O que Saussure fazia era exclusivamente analisar fatores internos da língua, como sua sintaxe e fonologia, excluindo as influências sociais que levam a mudanças nos fatores internos. Vamos a um exemplo para compreender o que são as condições externas e internas da língua no contexto brasileiro? Quando observamos a palavra “Pernambuco” falada emdiferentes regiões do país, podemos perceber que será dita de formas diversas, a depender do falante. Ela pode ser pronunciada como PÉrnambucU, PÊrnambucU, PÊrnambucO, dentre outras possibilidades. Para estudar essas diferentes realizações da palavra Pernambuco, precisamos levar em consideração os fatores internos da língua, como a posição das vogais na sílaba e na palavra, sua tonicidade, bem como os fatores sociais, como a região do falante, o que se caracteriza como um condicionador externo à língua. Em outros exemplos, como “Você estuda na UNIASSELVI” e “Vós sois o Caminho, a Verdade e a Vida”, temos a variação dos usos dos pronomes “você” e “vós”, cujo significado coincide na língua portuguesa, mas pertencem a contextos sociais distintos (rua/trabalho/família versus religioso). Além do contexto, também podemos considerar a própria história do pronome “você” como um condicionador externo a essa realização, hoje utilizado como pronome pessoal por falantes do português brasileiro, mas ainda classificado como pronome de tratamento na gramática normativa. TÓPICO 1 | INTRODUÇÃO À SOCIOLINGUÍSTICA 9 A sentença “Vós sois o caminho” é uma construção frequentemente utilizada no meio religioso. Esse fragmento faz parte da música com o mesmo título da composição do Padre Vigne. Disponível em: <https://www.letras.mus.br/catolicas/1933500/>. Acesso em: 17 jan. 2019. NOTA Ficou mais fácil de compreender por que existe uma defesa para estudar a linguagem levando em consideração os seus fatores internos e externos? Mais adiante, ao longo da Unidade 2, retomaremos esses fatores para que possamos iniciar nossas próprias análises sociolinguísticas. Neste ponto de seus estudos sociolinguísticos, você já está se deparando com o termo variação linguística, que será aprofundado mais adiante no nosso material. Mas o que seria a variação linguística? Marcos Bagno (2007), autor de diversos livros de sociolinguística brasileira, explica a variação linguística a partir do conceito de heterogeneidade da língua. Em outras palavras, dizer que a língua varia implica admitir que existe um conjunto de realizações possíveis de uma língua, como a portuguesa. Anteriormente, vimos exemplos de variação linguística na palavra Pernambuco (que pode apresentar diferentes pronúncias, a depender da região do falante), bem como a escolha entre os pronomes vós e você (que depende de que século está situado o falante, ou de que contexto está falando, como o religioso ou familiar). Há vários outros exemplos de variação linguística que poderiam ser aqui explicitados, mas preferimos apresentá-los ao longo do nosso Livro de Estudos para explorá-los aos poucos. IMPORTANT E Além de defender a necessidade de abordagem interna e externa da língua, Meillet também procurou estudar a linguagem tanto pelo tratamento sincrônico quanto diacrônico, distanciando-se mais uma vez de Saussure, que estudou a língua exclusivamente pela sincronia. Lembra-se da diferença entre sincronia e diacronia? Trata-se do estudo das características da língua durante um o recorte de período do tempo (sincronia) e o estudo da língua através do tempo (diacronia). A linguística diacrônica, que é também chamada linguística histórica, analisa a linguagem e suas mutações durante um determinado período. Neste caso, explicita-se o período a ser considerado e o material linguístico a ser adotado na análise. A linguística sincrônica investiga as propriedades linguísticas de uma determinada língua em seu estágio evolutivo atual (SILVA, 2001, p. 16, grifos nossos). UNIDADE 1 | INTRODUÇÃO AOS ESTUDOS SOCIOLINGUÍSTICOS E À SOCIOLINGUÍSTICA VARIACIONISTA 10 DICAS A sincronia e a diacronia são conceitos introduzidos à linguística especialmente a partir de Saussure. Para entender melhor estes e outros conceitos saussurianos, recomendamos que assista aos vídeos que compõem o Kit Pedagógico de Linguística Aplicada à Língua Portuguesa. Além disso, há o vídeo “Bate-papo sobre: Saussure, cem anos de herança e recepções”, que apresenta uma entrevista realizada com Carlos Alberto Faraco e Marcio Alexandre Cruz. Vídeo disponível no canal de Youtube da Editora Parábola: https://www.youtube.com/ watch?v=Tj9gFyrLy-g. Em suma, as principais oposições que Meillet levanta aos postulados estruturalistas de Saussure se colocam no foco exclusivo dado à abordagem interna, sincrônica e abstrata da língua. No quadro a seguir, você poderá conferir as principais contraposições que Meillet levantou à linguística saussuriana: QUADRO 1 – OPOSIÇÕES SOBRE A ABORDAGEM DA LÍNGUA DE MEILLET A SAUSSURE SAUSSURE MEILLET ABORDAGEM INTERNA E EXTERNA Opõe linguística interna e linguística externa (focando na interna); desenvolve uma linguística terminológica para embasar teoricamente essa ciência. Associa l inguística interna e linguística externa; desenvolve uma linguística programática ao levar em conta o caráter social da língua. ABORDAGEM DA SINCRONIA E DIACRONIA Distingue abordagem sincrônica de abordagem diacrônica (focando na sincrônica); distancia estrutura de história. Une a abordagem sincrônica à diacrônica; busca explicar a estrutura da língua pela história. LÍNGUA: ABSTRATA OU SOCIAL Busca elaborar um modelo abstrato da língua, separando-a da fala e estudando exclusivamente sua forma. Ao procurar explicar a estrutura da língua pela história, se vê em conflito entre o fato social e o sistema linguístico. LÍNGUA COMO INSTITUIÇÃO SOCIAL É somente em dada comunidade que a língua é social, pois não analisa as marcas sociais que o falante produz na língua. A instituição social é um princípio apenas geral, pois restringe- se a uma linguística formal, à língua “em si mesma e por si mesma” (CALVET, 2002, p. 16). O princípio de língua como um fato social é central. A “linguística é uma ciência social, e o único elemento variável ao qual se pode recorrer para dar conta da variação linguística é a mudança social” (MEILLET, 1965, p. 17 apud CALVET, 2002, p. 16). FONTE: Adaptado de Calvet (2002) A partir dos itens listados no Quadro 1, podemos entender que a apresentação da língua como fato social por Meillet é profundamente antisaussuriana. É neste tema central a Meillet que nasce uma oposição ao estruturalismo ao mesmo tempo que nasce a linguística moderna (CALVET, 2002). TÓPICO 1 | INTRODUÇÃO À SOCIOLINGUÍSTICA 11 Essa oposição permitiu a constituição, anos mais tarde, de uma nova disciplina na linguística (a sociolinguística), que, ao insistir nas funções sociais da língua, funda-se contraditória ao enfoque exclusivo dado à sua forma. Vale considerarmos, contudo, que a sociolinguística moderna essencialmente se materializará nas pesquisas publicadas em língua inglesa. Dentre esses pesquisadores, podemos destacar Basil Bernstein (foi o primeiro a levar em consideração as produções linguísticas reais e a situação sociológica dos falantes de forma concomitante); William Bright (destacou-se pelo estudo dos fatores que condicionam a diversidade linguística, pelo estudo dos usos linguísticos e das crenças a respeito desses usos, das diferenças multidialetal, multilingual ou multissocietal); William Labov (constitui a sociolinguística variacionista ao pesquisar a fala dos negros americanos) (CALVET, 2002). 4 SOCIOLINGUÍSTICA: A CONSTITUIÇÃO DE UMA NOVA ESCOLA DE PENSAMENTO NA LINGUÍSTICA A constituição da sociolinguística como uma nova escola de pensamento na linguística se dá diante do contexto apresentado desde a oposição de Meillet a Saussure até as publicações em língua inglesa, dentre as quais Labov, que se inspirou em Meillet, tem recebido grande destaque no campo variacionista. Embora Meillet represente um avanço para a linguística com relação à sua percepção de língua, estava longe de responder a exigências teóricas sociolinguísticas. A crítica aos estudos linguísticos no período de Meillet e Saussure se constitui, segundo Calvet (2002, p. 142), “na defesa, de um lado,de uma linguística que estude inicialmente “a língua em si mesma” e, de outro, de uma linguística que vá até o fim das implicações da definição da língua como fato social”. De acordo com Calvet (2002), Meillet não soube perceber esse desafio nos estudos linguísticos, o qual sinalizava para a necessidade de “explicar todos os fatos das línguas (tanto sincrônicos como diacrônicos) em relação constante com a sociedade da qual essas línguas são o meio de expressão. Explicar e não meramente descrever” (CALVET, 2002, p. 144, grifo no original). Para que possamos compreender essa realidade linguística, o porquê da variação e mudança linguística, das atitudes e ações sobre as línguas, precisamos encarar uma perspectiva social na linguística. Nesse contexto, a literatura específica tende a afirmar que o termo sociolinguística alavancou a partir de um seminário organizado em 1964 na América do Norte. Essa sociolinguística, denominada norte-americana, tem como ponto de partida a linguística antropológica e se alinha intelectual e metodologicamente ao lado social da pesquisa (FISHMAN, 1991). UNIDADE 1 | INTRODUÇÃO AOS ESTUDOS SOCIOLINGUÍSTICOS E À SOCIOLINGUÍSTICA VARIACIONISTA 12 De 11 a 13 de maio de 1964, por iniciativa de William Bright, 25 pesquisadores se reuniram em Los Angeles para uma conferência sobre a sociolinguística. 8 eram da UCLA, a universidade que organizava a conferência, 15 outros eram americanos e só 2 participantes vinham de outro país (a Iugoslávia), mas estavam temporariamente na UCLA. 3 dentre eles apresentaram comunicações: Henry Hoenigswald, John Gumperz, Einer Haugen, Raven MacDavid Jr., William Labov, Dell Hymes, John Fisher, William Samarin, Paul Friederich, Andrée Sjoberg, José Pedro Rona, Gerald Kelley e Charles Ferguson. Os temas abordados eram variados: a etnologia da variação linguística (Gumperz), o planejamento linguístico (Haugen), a hipercorreção como fator de variação (Labov), as línguas veiculares (Samarin, Kelley), o desenvolvimento de sistemas de escrita (Sjoberg), a equação de situações sociolinguísticas dos Estados (Ferguson)... e os referenciais teóricos não eram menos variados (CALVET, 2002, p. 28-29). Esses pesquisadores constituem um grupo de linguistas contemporâneos que rejeitam a abordagem associal dos estudos estruturalistas e também gerativistas. Dentre eles, como você pode notar, está o linguista William Labov, que foi impulsionador na sociolinguística variacionista, conforme já apontamos. Labov inovou os estudos sobre as línguas ao abordar fenômenos da variação e da mudança linguísticas. O livro Padrões Sociolinguísticos (LABOV, [1972] 2008) é bastante representativo quanto às metodologias de pesquisa na sociolinguística variacionista. IMPORTANT E FIGURA 2 – PADRÕES SOCIOLINGUÍSTICOS FONTE: <http://twixar.me/9MV1>. Acesso em: 15 maio 2019. TÓPICO 1 | INTRODUÇÃO À SOCIOLINGUÍSTICA 13 O livro Padrões sociolinguísticos traz contribuições significativas para a teoria e metodologia na sociolinguística, especialmente ao entender que, nos estudos linguísticos, não devemos lidar com uma língua idealizada, mas com a língua representada na fala cotidiana. Isso permitiria à ciência explicar os fenômenos linguísticos por meio das teorias gramaticais, de modo que a teoria pudesse explicar os dados em análise (LABOV, [1972], 2008). O que acontecia na linguística estruturalista e gerativista, segundo Labov ([1972], 2008), era a produção de dados de análise e de teorias de forma conjunta, a fim de que esses dados se ajustassem à teoria gramatical. Diante desse contexto, que parte de fatores sociais e linguísticos, estrutura- se a proposta da teoria laboviana da variação e mudança linguísticas. Dentro dessa teoria, preocupamo-nos em estudar as variações linguísticas, suas estruturas e mudança/evolução no contexto social de dada comunidade de fala. Para isso, a sociolinguística dialoga com a linguística geral, a fim de explicar fenômenos morfológicos, sintáticos, semânticos e fonéticos acerca da variação linguística. Você já deve ter notado, aqui, que para tratar da variação e mudança linguística, foi necessário romper com as dicotomias saussurianas para estudar a língua tanto pela sincronia quanto pela diacronia e unir os fatores externos aos internos da língua. No próximo tópico, veremos mais detalhadamente as relações entre língua e sociedade estudadas pela sociolinguística. Mas, antes de prosseguirmos, vejamos também, de forma sucinta, uma leitura complementar que poderá contribuir para sua compreensão sobre a sociolinguística, além de tópicos pontuais do que estudamos até o momento. Por fim, convidamos você a colocar em prática os conhecimentos construídos por meio de algumas atividades. UNIDADE 1 | INTRODUÇÃO AOS ESTUDOS SOCIOLINGUÍSTICOS E À SOCIOLINGUÍSTICA VARIACIONISTA 14 Na leitura complementar que apresentamos a você, acadêmico do curso de Letras, recortamos um trecho do capítulo “Sociolinguística”, escrito por Tânia Maria Alkmin, da coletânea “Introdução à linguística: domínios e fronteiras”. O texto a seguir pretende tornar acessível para leitores iniciantes as relevantes abordagens sobre o fenômeno linguístico como fenômeno sociocultural, fundamentalmente heterogêneo e em constante processo de mudança. A partir da sua entrada nesse “terreno” dos estudos linguísticos, é importante que você adquira certa familiaridade com as questões mais gerais que se dedica a sociolinguística. A presente leitura complementar deve auxiliar a esclarecer seu entendimento sobre orientações teóricas que postulam o princípio da diversidade linguística, observando a relação entre linguagem e sociedade. 1 CONSIDERAÇÕES INICIAIS [...] A relação entre linguagem e sociedade, reconhecida, mas nem sempre assumida como determinante, encontra-se diretamente ligada à questão da determinação do objeto de estudo da Linguística. Isto é, embora admita-se que a relação linguagem-sociedade seja evidente por si só, é possível privilegiar uma determinada óptica, e esta decisão repercute na visão que se tem do fenômeno linguístico, de sua natureza e caracterização. Nesse sentido, a Linguística do século XX teve um papel decisivo na questão da consideração da relação linguagem- sociedade: é esta que se encarrega de excluir toda consideração de natureza social, histórica e cultural na observação, descrição, análise, e interpretação do fenômeno linguístico. Referimo-nos, aqui, à constituição da tradição estruturalista, iniciada por Saussure em seu Curso de Linguística Geral, em 1916. É Saussure quem define a língua, por oposição à fala, como o objeto central da Linguística. Na visão do autor, a língua é o sistema subjacente à atividade da fala, mais concretamente, é o sistema invariante que pode ser abstraído das múltiplas variações observáveis da fala. Da fala, se ocupará a Estilística, ou, mais amplamente, a Linguística Externa. A Linguística, propriamente dita, terá como tarefa descrever o sistema formal, a língua. Inaugura-se, assim, a chamada abordagem imanente da língua que, em termos saussurianos, significa “afastar tudo o que lhe seja estranho ao organismo, ao sistema” (SAUSSURE, 1981, p. 17) [...]. Saussure institucionaliza a distinção entre a Linguística Interna oposta a uma Linguística Externa. É essa dicotomia que dividirá, de maneira permanente, o campo dos estudos linguísticos contemporâneos, em que orientações formais se opõem a orientações contextuais, sendo que estas últimas se encontram fragmentadas sob o rótulo das muitas interdisciplinas: Sociolinguística, Etnolinguística, Psicolinguística etc. A tradição de relacionar linguagem e sociedade, ou, mais precisamente, língua, cultura e sociedade, está inscrita na reflexão de vários autores do século XX. Integrados ou não à grande corrente estruturalista, que ocupou o centro da LEITURA COMPLEMENTAR TÓPICO 1 | INTRODUÇÃO À SOCIOLINGUÍSTICA 15 cena teórica, particularmente, a partir dos anos 1930, encontramos linguistascujas obras são referências obrigatórias, quando se trata a questão de pensar do social no campo dos estudos linguísticos. Não caberia, aqui, enumerar todos esses estudiosos, mas uma breve referência a alguns nomes, ligados ao contexto europeu, impõe-se: Antoine Meillet, Mikhail Bakhtin, Marcel Cohen, Émile Benveniste e Roman Jakobson. [...] O esboço feito até aqui pode ser reduzido a uma afirmação muito simples: a questão da relação é óbvia e complexa ao mesmo tempo. Sabemos que é inegável, mas também, que a passagem do social ao linguístico – e do Linguístico ao social – não é feita com tranquilidade. Não há consenso sobre o modo de tratar e de explicar a questão da relação entre linguagem e sociedade: o fato é que o lugar reservado a essa consideração constitui um dos grandes “divisores de águas” no campo da reflexão da Linguística contemporânea. 2 A SOCIOLINGUÍSTICA: FIXAÇÃO DE UM CAMPO DE ESTUDOS O termo Sociolinguística, relativo a uma área da Linguística, fixou-se em 1964. Mais precisamente surgiu em um congresso, organizado por William Bright, na Universidade da Califórnia em Los Angeles (UCLA), do qual participaram vários estudiosos, que se constituíram, posteriormente, em referências clássicas na tradição dos estudos voltados para a questão da relação entre linguagem e sociedade: John Gumperz, Einar Haugen, William Labov, Dell Hymes, John Fischer, José Pedro Rona. Ao organizar e publicar, em 1996, os trabalhos apresentados ao referido congresso sob o título Sociolinguistics, Bright escreve o texto introdutório As dimensões da Sociolinguística, em que define e caracteriza a nova área de estudo. A proposta de Bright para a sociolinguística é a de que ela deve demonstrar a covariação sistemática das variações linguística e social. Ou seja, relacionar as variações linguísticas observáveis em uma comunidade às diferenciações existentes na estrutura social desta mesma sociedade. Segundo o referido autor, o objeto de estudo da Sociolinguística é a diversidade linguística. E, como que estabelecendo um roteiro para atividades de pesquisa a serem desenvolvidas na área da Sociolinguística, Bright, na mesma obra, identifica um conjunto de fatores socialmente definidos, com os quais se supõe que a diversidade linguística esteja relacionada como: a) identidade social do emissor ou falante – relevante, por exemplo no estudo dos dialetos de classes sociais e das diferenças entre falas femininas e masculinas; b) identidade social do receptor ou ouvinte – relevante, por exemplo, no estudo das formas de tratamento, da baby talk (fala utilizada por adultos para se dirigirem aos bebês); c) o contexto social – relevante, por exemplo, no estudo das diferenças entre a forma e a função dos estilos formal e informal, existentes na grande maioria das línguas; d) o julgamento social distinto que os falantes fazem do próprio comportamento linguístico e sobre o dos outros, isto é, as atitudes linguísticas. [...] UNIDADE 1 | INTRODUÇÃO AOS ESTUDOS SOCIOLINGUÍSTICOS E À SOCIOLINGUÍSTICA VARIACIONISTA 16 Os referidos autores observam, também, que a Sociolinguística se constitui e floresce no momento em que o formalismo, representado pela gramática de Chomsky, alcança enorme repercussão, em rota para o seu percurso vitorioso. Vemos assim, que, de um lado, a preocupação com as relações entre linguagem e sociedade tinha raízes históricas no contexto acadêmico norte-americano, e também que a oposição entre uma abordagem imanente da língua versus a consideração do contexto social é posta com grande vitalidade no campo dos estudos linguísticos. De fato, a constituição da Sociolinguística se fez, claramente, a partir da atividade de vários estudiosos e pesquisadores que deram continuidade à tradição, inaugurada no começo do século XX por F. Boas (1911) e seus discípulos mais conhecidos – Edward Sapir (1921) e Benjamin L. Whorf (1941): a chamada Antropologia Linguística. Nessa vertente, em que linguagem, cultura e sociedade são considerados fenômenos inseparáveis, linguistas e antropólogos trabalham lado a lado e, mesmo, de modo integrado. Nesse sentido, o que há de novo é a definição de uma área explicitamente voltada para o tratamento do fenômeno linguístico no contexto social no interior da Linguística, animada pela atuação de linguistas e, particularmente, de estudiosos formados em campos das ciências sociais. A Sociolinguística nasce marcada por uma origem interdisciplinar. É oportuno assinalar que o estabelecimento da Sociolinguística, em 1964, é percebido pela atuação de vários pesquisadores, que buscavam articular a linguagem com aspectos de ordem social e cultural. Em 1963, Labov publica seu célebre trabalho sobre a comunidade da ilha de Martha’s Vineyard, no litoral de Massachusetts, em que sublinha o papel decisivo dos fatores sociais na explicação da variação linguística, isto é, da diversidade linguística observada. Nesse texto, o autor relaciona fatores como idade, sexo, ocupação, origem étnica e atitude ao comportamento linguístico manifesto dos vineyardenses, mais concretamente, à pronúncia de determinados fones do inglês. Logo, em 1964, Labov finaliza sua pesquisa sobre a estratificação social do inglês em New York, em que fixa um modelo de descrição e interpretação do fenômeno linguístico no contexto social de comunidades urbanas – conhecido como Sociolinguística Variacionista ou Teoria da Variação, de grande impacto na linguística contemporânea. [...] Assim, o rótulo “Sociolinguística”, como foi possível observar, reuniu e agregou, no seu início, pesquisadores marcados pela formação acadêmica em diferentes campos do saber e marcados também pela preocupação com as implicações teóricas e práticas do fenômeno linguístico na sociedade norte- americana. Surgem, assim, pesquisas voltadas paras as minorias linguísticas (imigrantes porto-riquenhos, poloneses, italianos etc.), e para a questão do insucesso escolar de crianças oriundas de grupos sociais desfavorecidos (negros e imigrantes, particularmente). Em suma, a realidade diversificada, tanto linguística como cultural dos Estados Unidos, torna-se um ponto de reflexão básico para um contingente significativo de estudiosos. A propósito, vale lembrar que, também em 1964, houve um congresso em Bloomington, Indiana, em que linguistas e cientistas sociais debateram questões relativas às relações interdisciplinares, ao campo da dialetologia social, à escolarização de crianças provenientes de meio social pobre e de TÓPICO 1 | INTRODUÇÃO À SOCIOLINGUÍSTICA 17 origem estrangeira. Três obras referenciais foram organizadas a partir dos trabalhos apresentados nesse congresso: Ferguson (1965) Directions in Sociolinguistics: reporto on a interdisciplinar seminar, Lierberson (1966) (ed.) Explorations in Sociolinguistics, e Schuy (1964) (ed.) Social dialects and language learning. 3 A SOCIOLINGUÍSTICA: OBJETO, CONCEITOS, PRESSUPOSTOS Pondo de maneira simples e direta, podemos dizer que o objeto da Sociolinguística é o estudo da língua falada, observada, descrita e analisada em seu contexto social, isto é, em situações reais de uso. Seu ponto de partida é a comunidade linguística, um conjunto de pessoas que interagem verbalmente e que compartilham um conjunto de normas com respeito aos usos linguísticos. Em outras palavras, uma comunidade de fala se caracteriza não pelo fato de se constituir por pessoas que falam do mesmo modo, mas por indivíduos que se relacionam, por meio de redes comunicativas diversas, e que orientam seu comportamento verbal por um mesmo conjunto de regras. Tomemos, como exemplo, o uso do modo imperativo em português. Para os falantes do português, o imperativo denota ordem, exortação, conselho, solicitação, segundo o significado do verbo e o tom de voz utilizado, como em: “Vai-te embora”; “Ouve este conselho!”; “Vem cá”; “Desce daí”. [...] A depender do alcance e dos objetos de um trabalho de natureza Sociolinguística, podemos selecionar e descrevercomunidades de fala como a cidade de New York e a cidade do Rio de Janeiro, de São Paulo, de Belém. Ou o povo ianomâmi, que vive no Estado do Amapá. Ou, ainda, as comunidades dos pescadores do litoral do Estado do Rio de Janeiro, da ilha de Marajó, dos estudantes de Direito, dos rappers etc. Ao estudar qualquer comunidade linguística, a constatação mais imediata é a existência de diversidade ou da variação. Isto é, toda comunidade se caracteriza pelo emprego de diferentes modos de falar. A essas diferentes maneiras de falar, a Sociolinguística reserva o nome de variedades linguísticas. O conjunto de variedades linguísticas utilizado por uma comunidade é chamado repertório verbal. Assim é que, a propósito da cidade de Bruxelas, na Bélgica – país caracterizado pelo bilinguismo francês-flamengo (variedade do holandês) – Fishman aponta: Os funcionários administrativos do Governo, em Bruxelas, que são de origem flamenga, nem sempre falam holandês entre si, mesmo quando todos sabem holandês muito bem e igualmente bem. Não só há ocasiões em que falam francês entre si, em vez de holandês, como também há algumas ocasiões em que falam entre si o holandês standard enquanto em outras usam esta ou aquela variedade regional do holandês. De fato, alguns da mesma forma usam diferentes variedades de francês: uma variedade particularmente carregada de termos administrativos oficiais, outra correspondendo ao francês não técnico falado nos círculos de educação superior e refinados da Bélgica, e, ainda outra, que não é apenas um “francês mais coloquial”, mas o francês coloquial dos que são flamengos. Em suma, essas diversas variedades de holandês e de francês constituem o repertório linguístico de certos complexos sociais flamengos em Bruxelas (FISHMAN, 1974, p. 28). UNIDADE 1 | INTRODUÇÃO AOS ESTUDOS SOCIOLINGUÍSTICOS E À SOCIOLINGUÍSTICA VARIACIONISTA 18 Caso consideremos uma comunidade como a de Salvador, observaremos que o seu repertório linguístico se constitui de variedades linguísticas distintas, dado que os habitantes da cidade falam de modo diferente em função, por exemplo, de sua origem regional, de sua classe social, de suas ocupações, de sua escolaridade e também da situação em que se encontram. Assim é que um falante que pronuncia a palavra “doido” como [‘doijd3u] revela sua proveniência da região interiorana, assim como a pronúncia da palavra “cozinha” como [kú’zîǝ] indica, além da origem social, a sua pouca escolaridade. Um mesmo habitante de Salvador, segundo a situação em que se encontrar, poderá optar entre usar as expressões “Fiquei retado” ou “Fiquei aborrecido”, assim como entre “João convidou ele” ou “João o convidou”. Qualquer língua, falada por qualquer comunidade, exibe sempre variações. Pode-se afirmar mesmo que nenhuma língua se apresenta como uma entidade homogênea. Isso significa dizer que qualquer língua é representada por um conjunto de variedades. Concretamente: o que chamamos de “língua portuguesa” engloba os diferentes modos de falar utilizados pelo conjunto de seus falantes do Brasil, em Portugal, em Angola, Moçambique, Cabo Verde, Timor etc. Língua e variação são inseparáveis: a Sociolinguística encara a diversidade linguística não como um problema, mas como uma qualidade constitutiva do fenômeno linguístico. Nesse sentido, qualquer tentativa de buscar apreender apenas o invariável, o sistema subjacente – se valer de oposições como “língua e fala”, ou competência e performance – significa uma redução na compreensão do fenômeno linguístico. O aspecto formal e estruturado do fenômeno linguístico é apenas parte do fenômeno total. FONTE: ALKMIN, Tânia Maria. Sociolinguística: parte 1. In: MUSSALIM, Fernanda; BENTES, Anna C. (Orgs.). Introdução à linguística: domínios e fronteiras. V. 1. São Paulo: Cortez, 2001, p. 21-47. 19 Neste tópico, você aprendeu que: • A sociolinguística tem sido classificada como uma das áreas de conhecimento da própria linguística, ciência relativamente recente que é responsável pelo estudo da linguagem humana. • As primeiras contribuições para o surgimento de um pensamento social sobre a linguagem datam logo após a publicação do “Curso de Linguística Geral”, o que contribuiu para o desenvolvimento das duas correntes – o estruturalismo e a sociolinguística – de modo independente. • Saussure (corrente estruturalista) analisava exclusivamente os fatores internos da língua, como sua sintaxe e fonologia, excluindo as influências sociais que levam a variações e mudanças nos fatores internos da língua. • Como disciplina da linguística, a sociolinguística surge em oposição às concepções sistêmicas e formalistas dadas à língua em correntes como a do estruturalismo de Saussure e do gerativismo de Chomsky. Meillet foi um dos primeiros linguistas a se contrapor à corrente estruturalista, embora tenham sido os estudiosos estadunidenses, apenas na década de 1960, que receberam maior destaque para formulação da nova escola de pensamento denominada sociolinguística. • As condições externas à língua são aquelas vinculadas a fatores sociais, que dependem de seus falantes para serem realizadas. São exemplos de condições externas à língua a classe social do falante, o grupo social ao qual pertence, a situação comunicativa, dentre outros aspectos. • As principais diferenças entre os estudos de Meillet e de Saussure estão na abordagem interna e externa da língua, na abordagem sincrônica e diacrônica, no tratamento social dado à língua e não abstrato, ao tratamento heterogêneo e não homogêneo à língua como fato social. • A sociolinguística alavancou com a sociolinguística norte-americana, a partir de um seminário organizado em 1964. Dentre os principais nomes da sociolinguística como uma nova escola de pensamento está William Labov (constitui a sociolinguística variacionista ao pesquisar a fala dos negros americanos). RESUMO DO TÓPICO 1 20 • Os sociolinguistas contemporâneos entendem que para que possamos compreender a realidade linguística, o porquê da variação e mudança linguística, das atitudes e ações sobre as línguas, precisamos encarar uma perspectiva social na linguística. • Para estudar as variações linguísticas, suas estruturas e mudança/evolução no contexto social de dada comunidade de fala, a sociolinguística dialoga com a linguística geral. Assim, é possível explicarmos fenômenos morfológicos, sintáticos, semânticos e fonéticos acerca da variação linguística. 21 1 A partir de suas leituras sobre a sociolinguística, você deve ter percebido que ela se constitui como um campo científico do estudo da língua, associado à própria linguística. Para auxiliar na sua apropriação de conhecimento acerca dessa disciplina, montamos para você um roteiro de leitura, com o qual você poderá registrar suas inferências a partir das seguintes perguntas: a) Por que houve a necessidade de iniciar uma nova escola de pensamento para os estudos linguísticos se o estruturalismo já marcava a linguística como ciência? b) Quando e onde passamos a chamar os estudos que relacionam a sociedade e a linguística como sociolinguística? c) Qual é o pressuposto básico da sociolinguística? d) Qual o objeto de estudos da sociolinguística? e) Quem é reconhecido como o principal fundador da sociolinguística variacionista? f) O que você entende por heterogeneidade e variação linguística? 2 Ao longo deste tópico você viu que a sociolinguística é uma escola de pensamento da linguística. A sociolinguística surgiu, assim, para dar conta do aspecto social que constitui o uso da língua. Nesse sentido, essa disciplina procura responder às perguntas sobre a língua que outras correntes de estudo (como o estruturalismo e o gerativismo) não pretenderam responder. Tendo isto em vista, assinale V para a(s) sentença(s) verdadeira(s) e F para a(s) falsa(s): ( ) O estruturalismo, assim como a sociolinguística, entende que a língua é uma instituição social e, por isso, a estuda inserida em um contexto deuso. ( ) A sociolinguística procura explicar fenômenos de variação e mudança linguísticas a partir de estudos situados com falantes da língua, já que eles a influenciam cultural e historicamente. ( ) A sociolinguística tem caráter interdisciplinar, tendo em vista que dialoga com a linguística geral para explicar fenômenos morfológicos, sintáticos, semânticos e fonéticos acerca da variação linguística. ( ) Por meio dos estudos sociolinguísticos, podemos justificar o porquê de algumas pessoas tenderem a falar mais corretamente que outras, como é o caso da fala de professores com relação a de seus alunos. Agora, assinale a alternativa que apresenta a sequência CORRETA: a) ( ) F – V – V – F. b) ( ) V – V – F – V. c) ( ) V – V – V – F. d) ( ) F – V – V – V. e) ( ) V – F – V – F. AUTOATIVIDADE 22 3 Leia o fragmento do texto a seguir a respeito da linguística moderna saussuriana: A Linguística, iniciada a partir do Curso, leva em conta os princípios saussurianos de que a língua “é um sistema que conhece apenas sua própria ordem” (cl g: 31); “é um sistema do qual todas as partes podem e devem ser consideradas em sua solidariedade sincrônica” (cl g: 102); “é uma forma e não uma substância” (cl g: 141) e de que a Linguística “tem por único e verdadeiro objeto a língua considerada em si mesma e por si mesma” (cl g: 271). FONTE: FIORIN, José Luiz; FLORES, Valdir do Nascimento e BARBISAN, Leci Borges. (Orgs.). Saussure: a invenção da Linguística. São Paulo: Contexto, 2013.174 p. Assinale a alternativa CORRETA em relação às ideias apresentadas no fragmento do texto e à concepção de estudos sociolinguísticos apresentados neste tópico: a) ( ) Saussure foi o primeiro linguista a valorizar os estudos sociolinguísticos ao reconhecer a língua como fato social. b) ( ) O objeto de estudo da linguística estruturalista centrou-se na estrutura da língua a partir dos fatores externos a ela. c) ( ) O estruturalismo estuda a língua em si mesma e por si mesma, o que é fortemente criticado pelos sociolinguistas. d) ( ) Os estudos sociolinguísticos priorizam o estudo do sistema linguístico fechado em si mesmo. e) ( ) Os estudos saussurianos ainda carecem de cientificidade porque deixaram de contemplar a dimensão social da linguagem. 4 Para os sociolinguistas, os modelos estruturalistas e gerativistas de estudo são problemáticos porque desconsideram as influências externas à língua, como questões históricas, culturais, sociais, ideológicas, entre outras. Escreva um parágrafo crítico a respeito dos modelos problematizados pela sociolinguística, defendendo a necessidade de relacionar a língua com questões históricas, culturais, sociais, ideológicas dos seus falantes. 5 Neste tópico, você viu que Meillet foi um dos primeiros linguistas a se contrapor à corrente estruturalista, embora tenham sido os estudiosos estadunidenses, apenas na década de 1960, que receberam maior destaque para formulação da nova escola de pensamento denominada sociolinguística. Sobre os principais pressupostos da sociolinguística, analise as proposições a seguir: I- Os fatores internos (estrutura) e fatores externos (história e mudanças sociais) da língua são levados em consideração para explicação da variação e mudança linguísticas. II- São exemplos de condições externas à língua a classe social do falante, o grupo social ao qual pertence, a situação comunicativa, a idade, o gênero. III- Assim como Saussure, Meillet aborda a língua sincrônica e diacronicamente, a fim de contemplar as influências históricas e atuais na sua estrutura. É CORRETO o que se afirma em: 23 a) ( ) I e II. b) ( ) I, II e III. c) ( ) II, apenas. d) ( ) II e III. e) ( ) I e III. 6 Ao longo deste tópico, você se deparou, principalmente, com a reflexão de três estudiosos da língua: Saussure, Meillet e Labov. Disserte, sucintamente, o que aprendeu sobre eles. 24 25 TÓPICO 2 RELAÇÕES ENTRE LÍNGUA E SOCIEDADE UNIDADE 1 1 INTRODUÇÃO Como falante da língua portuguesa, você já deve ter observado quantas pessoas, falantes dessa mesma língua, possuem um “sotaque” diferente do seu (como no exemplo da pronúncia da palavra Pernambuco, mencionada no tópico anterior). Você também já deve ter percebido que há várias pessoas que fazem seleções de “palavras diferentes” que você para descrever um mesmo fenômeno ou objeto (como é o caso da escolha entre as palavras biscoito e bolacha), ou ainda, que construam “frases cujas formas sejam diferentes” das suas (como em “eu não falei”, “eu não falei não”, “falei não”...). Essas diferenças nas formas de falar, como veremos neste tópico, são denominadas pela sociolinguística como variações linguísticas, e estão relacionadas a diversos fatores: origem geográfica do falante, sua idade, gênero, entre outros. Reconhecer esses fatores, contudo, não quer dizer que admitamos algum tipo de condicionamento da fala com a região de nascimento do falante, ou com sua classe social etc. O que estamos admitindo, aqui, é o fato de que os falantes adquirem formas de falar a língua em convívio com outros falantes de dada região, grupo social etc. A reflexão sobre essas diferentes realizações em uma mesma língua é estudada pela sociolinguística a partir da relação entre a língua e a sociedade, conforme já viemos conversando desde o Tópico 1 desta primeira unidade. No Tópico 2, passaremos a estudar alguns conceitos essenciais para falarmos acerca da diversidade linguística, isto é, acerca das diversas possibilidades que temos para pronunciar as palavras da nossa língua, para escolher as palavras para descrever um mesmo objeto ou fenômeno e para realizar as construções sentenciais da língua. Vamos começar, então, a falar de variação linguística, e, por conseguinte, de variedade, variável e variante, de comunidade linguística, de normas da língua, que se vinculam a conceitos de gramáticas, bem como do entendimento de língua como um sistema heterogêneo. Pronto para iniciar? UNIDADE 1 | INTRODUÇÃO AOS ESTUDOS SOCIOLINGUÍSTICOS E À SOCIOLINGUÍSTICA VARIACIONISTA 26 2 CONCEITOS FUNDAMENTAIS: VARIAÇÃO E COMUNIDADE Como vimos na introdução deste tópico, é natural, como falantes de uma língua, a portuguesa, observarmos o jeito que cada um tem de falar. Essa observação normalmente se dá pelo âmbito geográfico, no qual tendemos a destacar os vários sotaques que as pessoas revelam; uns mais “cantados”, outros com pronúncias mais “aligeiradas”, outros, ainda, mais “chiados”, só para citar alguns exemplos. Pela fala, tendemos a determinar a região de um falante, a reconhecer, inclusive, se sua nacionalidade é a mesma ou não é a mesma que a nossa. Como afirma Silva (2001, p. 11), faz parte do “conhecimento comum” das pessoas “falar sobre” a linguagem e discutir aspectos relacionados às propriedades das línguas que conhece[m]. [...] Contudo, há um ramo da ciência cujo objeto de estudo é a linguagem”. Esse ramo, conforme já introduzido no Tópico 1, é a linguística, responsável por “determinar os princípios e as características que regulam as estruturas das línguas” (SILVA, 2001, p. 11). A sociolinguística, como uma das disciplinas da linguística, entende que uma língua não pode ser compreendida puramente pelo seu escopo linguístico, pois precisamos da relação língua e sociedade para explicarmos diversos fenômenos linguísticos. Quando duas pessoas falantes de uma mesma língua se encontram e passam a interagir linguisticamente, certamente se dá uma interação ampla em que cada uma das pessoas envolvidas passa a criar uma imagem de outra pessoa. Podemos identificar se a pessoa é falante nativo daquela língua. Um falante nativo é um indivíduo que aprendeu aquela língua desde criança e a tem como língua materna ou primeira língua. Caso classifiquemos o falante como sendo nativo, podemos afirmar se tal pessoa partilha da mesma variante regional daquela língua. Não precisamos nem mesmo ver um falante para determinar a sua idade ou sexo,e talvez seu grau de educação. Isto pode ser facilmente atestado quando atendemos a um telefonema. Podemos também precisar se o falante é estrangeiro que tem a língua em questão como segunda língua. Na grande maioria dos casos, falantes de uma segunda língua têm características de sua língua materna transpostas para a língua aprendida posteriormente. Tem-se, portanto, o “sotaque de estrangeiro” com características particulares de línguas específicas (como “sotaque” de americano, de japonês, alemão, italiano etc.) (SILVA, 2001, p. 11, grifos nossos). Quando observamos as características linguísticas dos falantes de uma dada língua, procuramos compreendê-las dentro de uma comunidade de fala. “Uma comunidade de fala consiste de um grupo de falantes que compartilham de um conjunto específico de princípios subjacentes ao comportamento linguístico” (SILVA, 2001, p. 12, grifos nossos). No livro Padrões Sociolinguísticos, Labov ([1972] 2008) conceitua a comunidade de fala a partir das atitudes dos falantes em relação à língua e às gramáticas que esses falantes compartilham. No entanto, vale considerarmos que esse conceito continua em debate e aperfeiçoamento nas discussões científicas. Guy (2001), por exemplo, faz uma reelaboração e define comunidade de fala como sendo um grupo de falantes que: TÓPICO 2 | RELAÇÕES ENTRE LÍNGUA E SOCIEDADE 27 1- compartilham traços linguísticos que são diferentes dos de outros grupos; 2- têm uma frequência alta de comunicação entre si; 3- apresentam as mesmas normas e atitudes em relação ao uso da língua. Diante do que vimos até o momento, é possível entender que o estudo da sociolinguística se preocupa com a comunidade de fala e não com um sistema específico de um ou outro indivíduo apenas. Para saber mais sobre o conceito de comunidade de fala, retome a seção “A sociolinguística: objeto, conceitos, pressupostos” da leitura complementar do Tópico 1 desta unidade. Sempre que estudarmos a língua, partindo da sua relação com a sociedade, precisamos reconhecer a comunidade de fala a ser analisada. Em outras palavras, todo fenômeno linguístico a ser discutido precisa estar situado socialmente. Tanto no contexto de ensino superior quanto no contexto de educação básica, defendemos a importância do estudo da língua de forma situada, a fim de que fenômenos linguísticos possam ser compreendidos através de usos linguísticos concretos. Nesse sentido, você, professor de língua portuguesa em formação, precisa se despir de certos preconceitos acerca de falas marginalizadas para procurar compreendê-las, entender o porquê de serem realizadas e assim tratá-las com cientificidade. Para entender melhor, vejamos a situação expressa na imagem a seguir, que submete a zoologia (ramo da biologia responsável pelo estudo dos animais) às prescrições formais que comumente ocorrem com a língua: FIGURA 3 - A ZOOLOGIA X A LINGUÍSTICA FONTE: <https://i1.wp.com/starkeycomics.com/wp-content/uploads/2019/04/Prescriptive- Zoology.jpg?fit=1199%2C1400&ssl=1>. Acesso em: 24 abr. 2019 (tradução nossa) Na verdade, você não está no meu livro de animais, portanto você não é um animal de verdade. Subespécies? Apenas um tigre que não sabe ser um tigre adequado! Tão preguiçoso. Isso é um erro. Sua espécie deve ter apenas 9 faixas. Eduque-se. Pare de evoluir! UNIDADE 1 | INTRODUÇÃO AOS ESTUDOS SOCIOLINGUÍSTICOS E À SOCIOLINGUÍSTICA VARIACIONISTA 28 Como a língua é dinâmica, é perfeitamente natural que nela ocorram mudanças com o tempo, o que implica admitir variações nos usos cotidianos de cada falante, de acordo com sua intenção discursiva e com a comunidade de fala à qual pertence. Em contexto escolar, há uma tendência de naturalizar o apagamento da variação da língua, embora em outros campos científicos, como o da biologia, essa naturalização de apagamento da diversidade das espécies não tende a ocorrer com a mesma frequência. Na imagem que você acaba de ver, é possível observar, de uma forma bem-humorada, como seria antiético se na zoologia houvesse uma certa seleção dos animais considerados cabíveis de estudo, ou se os animais fossem submetidos ao que está prescrito nos manuais do zoólogo, ao invés de estudados e descritos na forma que são encontrados. Pareceu bastante absurdo, não é mesmo!? Infelizmente, como vimos, essa realidade prescritiva não costuma soar tão absurda ou antiética quando tratamos, de modo geral, da língua. Quando estamos nos dirigindo ao estudo da língua, especialmente em contexto escolar, costumamos nos deparar com situações como no quadrinho um: “Na verdade, você não está no meu livro de animais, portanto, você não é um animal de verdade”. Nesse caso, quando há uma variação linguística que não está presente na gramática normativa, tendemos a ignorar essa variação, tratando-a como inexistente na língua. Quanto ao quadrinho dois (Subespécies? Apenas um tigre que não sabe ser um tigre adequado! Tão preguiçoso), identificamos que há uma tendência, na língua, de dizermos que as pessoas que não falam conforme a norma-padrão são preguiçosas, e não damos atenção à nova forma da língua, digna de ser estudada para que seja possível compreendermos como e por que ela acontece. No quadro três, entra a relação de erro: “Isso é um erro. Sua espécie deve ter apenas nove faixas. Eduque-se”. É comum que subjuguemos como simplesmente erro uma forma inovadora da língua, que se afasta da norma-padrão, e não busquemos compreendê-la como regularidade dentro dos aspectos linguísticos e extralinguísticos. Diante de tudo isso, veja o absurdo que seria pedir para a língua parar de “evoluir”, ou melhor, parar de mudar, assim como ocorreu no quadrinho quatro com uma espécie animal. A partir do exposto, precisamos problematizar que, para uma variação existir, ela não precisa ser dicionarizada ou prescrita pela gramática normativa, basta estar em uso por uma comunidade de fala. Nesse sentido, é preciso que trabalhemos com a educação linguística em contexto escolar, validando as diferenças como constitutivas da língua, e rompendo com a tradição de classificar como erro tudo o que se afasta do padrão. Com a disciplina de sociolinguística na graduação em Letras, procuramos romper com certos estigmas da língua para compreender que qualquer forma linguística em português, utilizada por comunidades de fala prestigiadas socialmente ou não, constitui o que convencionamos chamar de língua portuguesa e, por isso mesmo, não pode ser excluída dos estudos da língua. TÓPICO 2 | RELAÇÕES ENTRE LÍNGUA E SOCIEDADE 29 Diante do que ora fora apresentado a você, acadêmico, já é possível compreender que o conhecimento sobre uma língua não se limita às classificações normativistas de orações e palavras, pois estas são apenas elementos de estudos, mas não a língua em si. Para estudar uma língua, portanto, precisamos considerar seus elementos extralinguísticos, que consistem nos aspectos históricos, sociais, situacionais. Nesse sentido, a língua é sempre tratada, na sociolinguística, de forma heterogênea, o que implica a existência de variação linguística. A variação linguística, como já discutimos anteriormente, refere-se às diferenças que uma mesma língua pode apresentar em diferentes planos (histórico, comunicativo, estilístico, regional, social, contextual). Em outras palavras, a variação linguística pode ser compreendida como o processo pelo qual duas formas, com um mesmo valor de significado, podem ocorrer em um mesmo contexto (COELHO; GÖRSKI; NUNES DE SOUZA, 2015). Dizemos, portanto, que as diferenças de uso da língua provêm de diferentes variações, que podem ser: diastráticas (ou sociais), diatópicas (ou geográficas), diacrônicas (ou temporais), diafásicas (ou contextuais) e diamésicas (ou de modalidade escrita/falada). A seguir, acompanhe exemplos de cada uma dessas variações. IMPORTANT E a) Variação diacrônica: refere-se às mudanças na forma da língua ao longo da história. Para exemplificar a notória mudançada língua portuguesa ao longo do tempo, Bagno (2007) apresenta um trecho da Carta de Pero Vaz de Caminha, considerada entre diferentes estudiosos como a primeira produção literária brasileira, datada de 1º de maio de 1500: Easy segujmos nosso caminho per este mar delomgo ataa terça feira doitauas de pascoa que foram xxj dias dabril que topamos alguus synaaesde terá seemdo da dita jlha segundo os pilotos deziam obra de bjc lx ou lxx legoas . os quaaes herã muita camtidade deruas compridas aque os mareantes chama botelho [...] (PERO VAZ DE CAMINHA 1500 apud BAGNO, 2007, p. 165). Se compararmos a língua utilizada na carta com qualquer produção escrita atual, ainda que ambas as produções sejam escritas em língua portuguesa, perceberemos nítidas diferenças linguísticas. Quanto mais antigo for o texto, mais comprometida fica nossa compreensão, já que se distancia da variedade com a qual estamos habituados. b) Variação diatópica: também conhecida como variação geográfica, está relacionada aos usos linguísticos que falantes de uma mesma língua podem realizar de maneira diversificada, conforme suas origens geográficas. Confira alguns exemplos elencados por Alckmin (2001, p. 35): UNIDADE 1 | INTRODUÇÃO AOS ESTUDOS SOCIOLINGUÍSTICOS E À SOCIOLINGUÍSTICA VARIACIONISTA 30 a) brasileiros e portugueses se distinguem em vários aspectos de sua fala. No plano lexical, apenas um exemplo: “combóio” em Portugal, “trem” no Brasil. No plano fonético: a pronúncia aberta da vogal anterior média como em “prémio” [‘prEmjU], em contraste com a pronúncia fechada no Brasil, “prêmio” [‘premjU]. No plano gramatical: derivações diversas de uma raiz comum, como em ficheiro, paragem, bolseiro, que no Brasil correspondem a fichário, parada e bolsista; a colocação de advérbios como em “Lá não vou (Portugal) e “Não vou lá” (Brasil). b) entre falantes brasileiros originários das regiões nordeste (incluída a Bahia) e sudeste, percebemos diferenças fonéticas, como, por exemplo, a pronúncia de vogais médias pretônicas – como ocorre na palavra “melado” pronunciadas como vogais abertas no nordeste [mE’ladU] e fechadas no sudeste [me’ladU]. Percebemos também diferenças gramaticais, como, por exemplo, a preferência pela proposição verbal da negação, como em “sei não” (nordeste) e “não sei” (ou, “não sei, não”, no sudeste); o uso do artigo definido antes de nomes próprios como em “Falei com Joana” (nordeste) e “Falei com a Joana” (sudeste); c) O Estado da Bahia, por exemplo, a origem urbana ou rural pode ser evidenciada pelo uso da expressão “de primeiro” [di primero], em lugar de “antigamente”, “anteriormente”. c) Variação diamésica: é associada ao meio de comunicação, tendo em vista que nela se verifica a comparação entre as modalidades oral e escrita da língua (BAGNO, 2007). A esta altura de seus estudos, você já notou que existem diferenças na forma que você utiliza a língua na fala e na escrita? Quando você escreve um e-mail, por exemplo, consegue pensar previamente na linguagem escrita, nas sentenças, na ortografia, consegue revisá-lo e modificá-lo. Nesse sentido, um comunicado enviado por e-mail certamente será diferente de um comunicado proferido oralmente, na interação face a face, mesmo quando os interlocutores são os mesmos e o conteúdo da mensagem também. Isto porque, na oralidade, não temos a mesma possibilidade de revisão ou reajuste. Logo, há variações que costumam ser aceitas entre essas duas modalidades, como CÊ e VOCÊ; NÃO VAMU NÃO e NÃO VAMOS etc. d) Variação diastrática: também conhecida como variação social, “relaciona-se a um conjunto de fatores que têm a ver com a identidade dos falantes e também com a organização sociocultural da comunidade de fala” (ALCKMIN, 2001, p. 35). Tais fatores são normalmente identificados como de: a) classe social; b) idade; c) gênero; d) situação ou contexto social. Confira alguns exemplos elencados por Alckmin (2001): I- Classe social: observou-se o uso de dupla negação em grupos situados abaixo na escala social, como em “ninguém não viu”, “eu nem num gosto”. Nesse mesmo grupo, costuma-se encontrar a presença de [r] em lugar de [l], em grupos consonantais, como em “brusa” (blusa) e “grobo” (globo). II- Idade: com relação à idade, é comum encontrarmos certas gírias para denotar faixa etária jovem. III- Gênero: diferentes estudos identificaram o uso frequente de diminutivos, como “bonitinho”, “gostosinho, “vermelhinho” na fala feminina. TÓPICO 2 | RELAÇÕES ENTRE LÍNGUA E SOCIEDADE 31 3 AS GRAMÁTICAS E A NOÇÃO DE ERRO Como estudante de Letras, especialmente ao longo desta disciplina, você passará a ter subsídios para formular, ainda que de forma inicial, explicações sobre o mecanismo subjacente à linguagem. Essa tarefa, pois, coincide com o papel da própria gramática da língua. O papel da gramática, vale destacar, é o de apresentar as normas de uma dada língua. Em contato com os estudos da linguística aplicada, vemos, comumente, que a palavra “normas”, no plural, implica compreendermos que há regularidades diversas de se utilizar a língua, que não tão somente a norma-padrão, tradicionalmente imposta em materiais didáticos mais antigos ou antiquados. NOTA Nesse sentido, quando falamos em gramática, nem sempre estamos falando na gramática prescritiva ou normativa, a qual está limitada a prescrever (e não explicar) as regras para o uso da norma-padrão de uma dada língua. Conforme têm apontado alguns estudiosos brasileiros (BAGNO, 2011; BAGNO, 2007; BORTONI-RICARDO, 2004; ALCKMIN, 2001; SILVA, 2001), não existe o falante ideal, que realmente faça uso de todas as regras gramaticais prescritas pela gramática normativa, sem violações. A norma-padrão, pois, não é língua materna de ninguém, mas uma forma da língua ensinada nas escolas, em contexto de educação formal. Apesar disso, não podemos apagar os méritos da gramática normativa, tendo em vista seu papel em estabelecer certos padrões que são compartilhados pelos falantes de uma mesma língua (SILVA, 2001), além de seu patrimônio cultural (BAGNO, 2007). IV- Situação ou contexto social: a situação social implica a mudança que tendemos a realizar de acordo com os nossos interlocutores, o lugar onde nos encontramos (em um bar, em uma conferência, por exemplo) e segundo o tema da conversa (como a fofoca, assunto científico...). Esse tipo de variação, que depende do contexto social, também é conhecido como variação estilística ou de registro, considerando que o falante pode fazer uso de um estilo mais formal ou informal. Diante do que você viu até o momento, já deve ter compreendido que, para estudarmos a variação linguística, precisamos sempre levar em consideração a realidade das relações sociais dos falantes. Sempre que um falante utiliza a língua, o faz dentro de uma variedade linguística relativa ao seu grupo social, seu contexto comunicativo, sua origem geográfica etc. Continue sua leitura para refletir, a seguir, a noção de erro construída socialmente sobre certas variedades. UNIDADE 1 | INTRODUÇÃO AOS ESTUDOS SOCIOLINGUÍSTICOS E À SOCIOLINGUÍSTICA VARIACIONISTA 32 “Ao contrário do que declaram algumas pessoas desavisadas, os linguistas não consideram o processo de constituição de uma norma-padrão como uma coisa intrinsicamente negativa. Eles sabem que a vida social é regulada por normas, entre as quais estão as normas de comportamento linguístico. Os linguistas simplesmente chamam a atenção para o fato de a normalização da língua não ser um processo “natural”, mas sim o resultado de ações humanas conscientes, ditadas por necessidades políticas e culturais, e nas quais impera frequentemente uma ideologia obscurantista, dogmática e autoritária. Alguns linguistas (mas nem todos!) acreditam que uma norma-padrão poderia até ser um elemento cultural desejável, desde que constituída com o auxílio da pesquisa científica e com base em projetos sociais democráticos e não excludentes” (BAGNO, 2007, p. 34). IMPORTANT E O queprocuramos problematizar, aqui, com o apoio da sociolinguística, é que a gramática normativa não deve ser utilizada de forma acrítica em contexto educacional, pois precisamos refletir, como professores e estudantes da língua portuguesa, sobre as particularidades dessa língua que não atendem necessariamente a tais prescrições e que ainda assim são perfeitamente utilizadas por nós, falantes dessa língua. Silva (2001, p. 15, grifos nossos) exemplifica com o uso do futuro simples no português brasileiro, que é recomendando pela gramática normativa, mas não necessariamente utilizado no cotidiano pelos falantes: “Eu buscarei um livro amanhã”. Para uma grande maioria dos falantes do português brasileiro o futuro simples não ocorre na língua falada. Em seu lugar ocorre o futuro composto: “Eu vou buscar o livro amanhã”. Note, contudo, que o futuro simples é utilizado na linguagem escrita e em algumas variantes do português brasileiro (e certamente do português europeu). Faz-se, portanto, pertinente registrar a norma que prescreve o uso do futuro simples. De posse desta informação, falantes podem fazer uso apropriado de futuro simples se lhes for necessário. TÓPICO 2 | RELAÇÕES ENTRE LÍNGUA E SOCIEDADE 33 Como estamos defendendo um posicionamento de que não há formas certas ou erradas da língua falada, mas adequadas e inadequadas ao seu contexto de comunicação, levamos em consideração que todo falante de uma língua é capaz de desenvolver sua competência comunicativa. Todo falante nativo aprende a falar sua língua na convivência com outros falantes, e por isso mesmo, inserido em algum grupo social (ou melhor, comunidade de fala), aprende a falar de um determinado modo. No entanto, ao longo da vida, esse mesmo falante aprende a mudar certos aspectos da forma que fala a língua, de acordo com suas necessidades sociais. A essa habilidade, Fishman (1972 apud ALCKIMIN, 2001) atribui a denominação de competência comunicativa e sociolinguística, adquirida de forma lenta e inconsciente por cada falante. Dessa forma, é possível afirmar que cada um de nós conhece suficientemente bem a língua que fala. Diante disso, é capaz de desempenhar, socialmente, habilidades contextuais e discursivas (estabelecendo sentido na conexão de orações e frases mesmo que, muitas vezes, não conheça a nomenclatura utilizada na gramática normativa). Os conhecimentos que temos sobre a língua nos permitem fazer uso da linguagem para dar uma ordem ou optar por uma expressão equivalente mais modalizada (no sentido de realizar um pedido), “como em “saiam daqui, já!” ou “por favor, dirijam-se à saída”; se é oportuno dizer “tô fora” ou “não vai ser possível”; ou, ainda, “a gente não sabia” ou “não sabíamos”, ou ainda “desconhecíamos”” (ALCKIMIN, 2001, p. 37-38). IMPORTANT E A partir do posicionamento crítico à gramática normativa ou prescritiva, vamos procurar compreender a importância da gramática descritiva nos nossos estudos. Diferentemente da gramática normativa, que prescreve normas da língua, sem necessariamente explicá-las, a descritiva busca “descrever as observações linguísticas atestadas entre os falantes de uma determinada língua” (SILVA, 2001, p. 15). Nesse sentido, a gramática descritiva não julga como certo ou errado padrões linguísticos utilizados pelos falantes de dada língua, mas documenta-os como são manifestados no momento da descrição. Retomando o caso do futuro simples, em uma gramática descritiva, veríamos a documentação da “sua ausência no português falado de vários dialetos”, bem como, o registro de “suas características nas variantes em que ele ocorre. Tais gramáticas são formuladas com o apoio teórico da linguística” (SILVA, 2001, p. 16). Diante do que você estudou até agora, já deve ter percebido que, para a sociolinguística, não há língua melhor ou pior que outra, não existem formas da língua que sejam mais evoluídas que outras, tendo em vista que todas elas permitem a interação entre os falantes quando situadas em seus contextos de usos. Quando novas demandas sociais surgem, novas palavras ou formas comunicativas também surgem (o que visualizamos com bastante nitidez nos meios de comunicação digital), comprovando a mudança linguística como constitutiva das línguas. As línguas mudam continuamente, conforme você pode observar também nos estudos da filologia da língua portuguesa. UNIDADE 1 | INTRODUÇÃO AOS ESTUDOS SOCIOLINGUÍSTICOS E À SOCIOLINGUÍSTICA VARIACIONISTA 34 Nesse momento dos seus estudos, é imprescindível que você reflita e problematize a orientação tradicional escolar de ensino da língua portuguesa como algo homogêneo ou fixo, cuja existência dependa única e exclusivamente da norma- padrão (a qual passa a ser ensinada de forma fragmentada e descontextualizada). É a partir dessa orientação, pois, que decorre uma prática que costuma nos gerar insegurança no uso da linguagem ao “separar as ocorrências linguísticas em dois grupos: o certo, identificado sempre com as formas gramaticais escolares, e o errado, que, em geral, é aquilo que a gente fala e ouve o dia inteiro” (FARACO; TEZZA, 2001, p. 10, grifos no original). Por conseguinte, tendemos a pensar que não sabemos língua portuguesa, já que a língua do nosso dia a dia é julgada como errada na tradição escolar. Frases como Sou bom em matemática, mas péssimo em português, ou Será que falei certo?, ou Não sei nada de gramática, Mas que língua mais difícil esse tal do português são muito frequentes em ambientes escolarizados. Daí porque, embora a palavra ocupe um espaço extraordinário na vida das pessoas, ela mantenha sempre o seu toque “estrangeiro”, como algo que nunca pode ser completamente dominado (FARACO; TEZZA, 2001, p. 10, grifos no original). Com a sociolinguística, esperamos que você passe a compreender que a divisão da língua em certo e errado acaba eliminando o caráter investigativo para o estudo dela. O que é classificado como errado, pois, tende a perder o valor de estudo, distanciando o aluno de educação básica da compreensão do funcionamento da sua língua materna. Erros de português são simplesmente diferenças entre variedades da língua. Com frequência, essas diferenças se apresentam entre a variedade usada no domínio do lar, onde predomina uma cultura de oralidade, em relações permeadas pelo afeto e informalidade, [...] e culturas de letramento, como a que é cultivada na escola (BORTONI- RICARDO, 2004, p. 37, grifo no original). Para melhor compreender o que é erro, na sociolinguística, precisamos diferenciar a língua falada da língua escrita. Isto porque, na língua escrita, é possível exigir normas ortográficas, que podem ou não ser seguidas de forma correta por quem escreve. Quando a ortografia de uma palavra estiver diferente daquela exigida na regra, podemos identificar um erro ortográfico. Na fala, por sua vez, não temos como exigir regras ortográficas, logo, não podemos transcrever essa mesma noção de erro para o contexto da oralidade. Nos nossos estudos, como você pode observar, não lidamos com erros, já que toda variedade linguística utilizada por uma comunidade de fala é reconhecida e, por tanto, legítima para comunicar. Isso não significa dizer, contudo, que o falante não se adéque a certos contextos de usos da língua (lembra-se da variação diastrática? Nela, há a mudança de estilo, por exemplo, que depende do contexto social no qual o falante se insere). TÓPICO 2 | RELAÇÕES ENTRE LÍNGUA E SOCIEDADE 35 Tratamos, na sociolinguística, de usos adequados e inadequados da língua para determinados contextos comunicacionais. Todo falante precisa desenvolver a habilidade de adequar a linguagem para cada situação de uso, desempenhando, assim, sua competência linguística. A isto, não atribuímos a avaliação de erro e acerto, mas identificamos a adequação linguística. De acordo com Bortoni-Ricardo (2004, p. 74), é papel da escola “facilitar a ampliação da competência comunicativa dos alunos, permitindo-lhes se apropriarem dosrecursos comunicativos necessários para se desempenharem bem, e com segurança, nas mais distintas tarefas linguísticas”. A escola, pois, é o lugar reconhecido socialmente para o letramento, o que implica reconhecermos, também, que é um espaço privilegiado para o ensino sistemático de recursos comunicativos, necessários para o desempenho competentemente em certas práticas sociais (BORTONI-RICARDO, 2004). DICAS Para compreender melhor a relação entre a noção de erro e o ensino de gramática na educação básica, sugerimos que assista ao Programa “Salto para o Futuro” / Série: Um Mundo de Letras: Práticas de leitura e escrita, episódio “A gramática na escola”, apresentado pela TV Escola / Secretaria de Educação a Distância (SEED) / MEC, Produzido pela REDE BRASIL (TVE), Rio de Janeiro, RJ. Nesse episódio, contamos com a rica participação do Prof. Dr. José Carlos de Azeredo (UFF), da Prof.ª. Drª. Edair Maria Görski (UFSC) e do Prof. Dr. Luiz Carlos Travaglia (UFU). Link para acesso: https://www.youtube.com/ watch?v=yQ8fFk4m900&t=323s. FIGURA 4 - A GRAMÁTICA NA ESCOLA FONTE: <https://youtu.be/yQ8fFk4m900>. Acesso em: 15 maio 2019. UNIDADE 1 | INTRODUÇÃO AOS ESTUDOS SOCIOLINGUÍSTICOS E À SOCIOLINGUÍSTICA VARIACIONISTA 36 O ensino dos recursos comunicativos, como viemos discutindo ao longo da Unidade 1 do nosso material, precisa ser crítico, logo, deve extrapolar os conceitos prescritivos da gramática tradicional, tendo em vista que a norma-padrão não será adequada a todos os contextos comunicativos. Vamos a um exemplo? Você já pensou se um roteirista escrevesse as falas das personagens de um filme seguindo a norma-padrão? O resultado certamente lhe causaria estranhamento, pois os filmes mais aclamados são aqueles que fogem da artificialidade, isto é, são aqueles em que as atrizes e os atores captam a essência da personagem, e a linguagem é constitutiva desse processo. Como naturalmente falamos fazendo uso de diferentes variedades, esperamos que os filmes representem essa realidade. Nos filmes nacionais, também estranhamos quando nos deparamos com a fala carioca, por exemplo, sendo utilizada por uma personagem gaúcha. A seguir, vamos nos aprofundar um pouco mais a este debate a partir de alguns conceitos- chave utilizados na sociolinguística variacionista. 4 VARIEDADE, VARIAÇÃO, VARIÁVEL, VARIANTE Nesta etapa dos nossos estudos, já compreendemos que a variação linguística é constitutiva da língua. Não existem línguas que não tenham variação. Nesse sentido, podemos definir a língua, na perspectiva sociolinguística, como um conjunto de variedades. A partir deste momento, acostume-se a utilizar os termos específicos para o estudo dos diferentes modos de falar uma mesma língua: variação, variedade, variável e variante. Vamos conhecer melhor cada um deles? Como vimos no início da nossa leitura, compartilhamos princípios sociais e linguísticos quando fazemos uso de uma língua, sem que necessariamente tenhamos que estudá-los formalmente. Por exemplo, um morador do interior de São Paulo não estuda o som do R pós-vocálico para pronunciar “porta” com uma líquida retroflexa não lateral. Quando estudamos os sons da fala de uma língua, precisamos utilizar a representação fonética desses sons, o que ocorre convencionalmente por meio do alfabeto fonético internacional, identificado pela sigla IPA (International Phonetic Alphabet). A líquida retroflexa não lateral é um som fonético representado pelo símbolo [ɹ] e popularmente chamada de R caipira. A palavra “porta”, assim, teria o seu R representado na fala de uma camada significativa da população do interior de São Paulo como po[ɹ]ta. No Rio de Janeiro metropolitano, como a pronúncia costuma ser diferente, poderíamos representar da seguinte forma: po[ɣ]ta. Temos aqui, portanto, o exemplo de dois sons ([ɹ] e [ɣ]) para representar o R pós-vocálico, mas poderíamos encontrar ainda outros. NOTA TÓPICO 2 | RELAÇÕES ENTRE LÍNGUA E SOCIEDADE 37 A pronúncia de “po[ɹ]ta” na comunidade de fala interiorana é compartilhada entre os falantes sem que haja uma exigência explícita para que isto ocorra. Nesse sentido, dizemos que o falante realiza a seleção de dada variante para falar. É justamente por isso, como vimos desde o primeiro tópico, que a análise sociolinguística precisa levar em conta tanto os fatores linguísticos como os extralinguísticos para compreendermos dado fenômeno da linguagem. Dentre os fatores extralinguísticos, foram destacados a região geográfica, classe social, escolaridade, faixa etária, gênero, estilo. A variante é assim empregada com a finalidade de “[...] caracterizar as propriedades linguísticas compartilhadas por um grupo específico de falantes. Temos, assim, variantes etárias, variantes de sexo, variantes geográficas etc.” (SILVA, 2001, p. 14). Para que sejam consideradas variantes, as formas linguísticas precisam ser intercambiáveis em um mesmo contexto e precisam manter o mesmo significado. No exemplo da porta (po[ɹ]ta ou po[ɣ]ta), a palavra porta sempre será porta, independentemente de qual variante o falante usar. A variante, assim, equivaleria a uma forma linguística selecionada pela comunidade de fala. Você já consegue entender por que temos os termos variante, variedade e variação? A variação linguística, como vimos, produz um conjunto de realizações possíveis de uma língua, admitindo-a como heterogênea. Consoante Bagno (2007, p. 39), “[...] debaixo do guarda-chuva LÍNGUA, no singular, se abrigam diversos conjuntos de realizações possíveis dos recursos expressivos que estão à disposição dos falantes”. Nesse sentido, é dentro da variação que encontramos a variedade linguística, ou seja, encontramos “um conjunto dos muitos “modos de falar” uma língua [isto é, seus dialetos]” (BAGNO, 2007, p. 47). Ainda segundo Bagno (2007) é possível estudarmos quantas variedades linguísticas quisermos. Isto dependerá dos fatores sociais que incluiremos no nosso estudo. O modo de falar de cada grupo social em estudo (como mulheres agricultoras da Paraíba acima de 60 anos; jovens entre 18 e 25 anos, com baixa escolaridade, do interior de São Paulo etc.) constitui uma variedade linguística (BAGNO, 2007), um “dialeto”. Cada variedade linguística apresentará uma característica (a variante) que permitirá diferenciá-la de outra variedade (de outro “dialeto”): [...] nem todas as variedades linguísticas do português brasileiro apresentam o “s chiado” [que constitui em uma variante] em final de sílaba (FE[ʃ]TA) ou final de palavra (FE[ʃ]TA[ʃ]); algumas variedades usam TU como pronome de 2ª pessoa, enquanto outras usam VOCÊ); a maioria das variedades que apresentam o TU eliminaram a terminação –S na conjugação verbal (TU FALA, TU COME), enquanto outras (poucas) conservam o –S (TU FALAS, TU COMES), e por aí vai... (BAGNO, 2007, p. 47). Perceba que, diante do que lhe foi apresentado, podemos entender que dentro da variação (heterogeneidade da língua), existem variedades (caracterizadas pelos modos de falar dos grupos sociais dos falantes), e dentro das variedades, existem as variantes (elemento singular, como o uso do TU ou VOCÊ, que permitirá caracterizar a variedade do grupo). No próximo tópico, você ainda visualizará alguns exemplos de variantes do português brasileiro. UNIDADE 1 | INTRODUÇÃO AOS ESTUDOS SOCIOLINGUÍSTICOS E À SOCIOLINGUÍSTICA VARIACIONISTA 38 O termo variável, dentro desse contexto de estudos, é aplicado para assumir a possibilidade de variação de dado uso linguístico, permitindo ao falante a escolha de uma variante dentre a possibilidade de outras para se chegar a uma variedade linguística. Conforme Mollica (2003, p. 11), um exemplo de variável linguística ou de fenômeno variável é “a concordância entre o verbo e o sujeito [...], pois se realiza através de duas variantes, duas alternativas possíveis e semanticamente equivalentes: a marca de concordância no verbo ou a ausência da marca de concordância”. Este seria o caso também apresentado porBagno (2007) na citação anteriormente realizada, em que há uma variável linguística que permite duas variantes para a conjugação verbal acompanhada do pronome TU: o apagamento da terminação–S na conjugação verbal (TU FALA, TU COME) ou a manutenção do –S (TU FALAS, TU COMES). As variantes são as formas que concorrem em uma variável, interna ou externa na língua. Nas variáveis internas, “encontram-se os fatores de natureza fonomorfossintáticos, os semânticos, os discursivos e os lexicais” (MOLLICA, 2003, p. 11), enquanto que nas externas, “reúnem-se os fatores inerentes ao indivíduo (como etnia e sexo), os propriamente sociais (como escolarização, nível de renda, profissão e classe social) e os contextuais (como grau de formalidade e tensão discursiva)” (MOLLICA, 2003, p. 11). Vale considerarmos, ainda, de acordo com Mollica (2003, p. 11), que há variantes que “podem permanecer estáveis nos sistemas (as mesmas formas continuam se alternando) durante um período curto de tempo ou até por séculos, ou podem sofrer mudança, quando uma das formas desaparece”. No caso da mudança linguística, o fator variável parece desaparecer aos poucos, permanecendo um único modo de falar algo, momento em que se configura um fenômeno de mudança em progresso. Podemos, assim, investigar a mudança linguística, a estabilidade de certas variantes, a variedade de um grupo social, quais são os fenômenos variáveis, assim como prever um comportamento linguístico regular e sistemático (MOLLICA, 2003). No próximo tópico, veremos de forma mais aprofundada as variáveis que configuram as variantes do português brasileiro, de modo a reconhecermos a heterogeneidade da língua e a importância de nos distanciarmos de uma visão homogênea ao tratarmos da norma-padrão em sala de aula. Mas antes disso, vamos colocar em prática os conceitos aprendidos neste tópico com algumas atividades? 39 RESUMO DO TÓPICO 2 Neste tópico, você aprendeu que: • A sociolinguística, enquanto subárea da linguística, estuda a língua usada por comunidades de fala. • A comunidade de fala consiste de um grupo de falantes que compartilha normas em relação ao uso da língua. Como exemplo, podemos retomar as mulheres analfabetas e agricultoras da Paraíba acima de 60 anos de idade como uma comunidade de fala. • Para estudar uma língua, precisamos considerar seus elementos linguísticos e extralinguísticos, que consistem nos aspectos históricos, sociais, situacionais. Nesse sentido, a língua é sempre tratada, na sociolinguística, de forma heterogênea, o que implica a existência de variação linguística. Cada comunidade de fala apresenta uma variedade própria de seu grupo social. • A variação linguística consiste na heterogeneidade da língua. As diferenças de uso da língua provêm de diferentes variações, que podem ser: diastráticas (ou sociais), diatópicas (ou geográficas), diacrônicas (ou temporais), diafásicas (ou contextuais) e diamésicas (ou de modalidade escrita/falada). • Na variação diastrática, destacamos a organização sociocultural da comunidade de fala em: a) classe social; b) idade; c) gênero; d) situação ou contexto social. • A norma-padrão é problematizada pela sociolinguística no sentido político e ideológico, tendo em vista a legitimação de uma variedade e a exclusão de outras, de modo autoritário. No entanto, isto não significa que a norma-padrão deva ser ignorada, pelo contrário, deve ser aliada à pesquisa científica a fim de democratizá-la. Por isso, seu tratamento em sala de aula precisa ser crítico. • Todo falante nativo aprende a falar sua língua na convivência com outros falantes, e por isso mesmo, inserido em uma comunidade de fala, aprende a variedade linguística dessa comunidade, embora também aprenda a transitar entre diferentes modos de falar, conforme sua necessidade social. O falante desempenha certas habilidades contextuais socialmente, bem como discursivas, de acordo com sua competência comunicativa e sociolinguística. • A gramática normativa tradicional é aquela que prescreve normas da língua, sem necessariamente explicá-las. A gramática descritiva não julga como certo ou errado os padrões linguísticos utilizados pelos falantes de dada língua, mas documenta-os como são manifestados no momento da descrição. 40 • A divisão da língua em certo e errado NÃO é utilizada pela sociolinguística devido à necessidade de investigação de qualquer variedade linguística como constitutiva da língua. Tratamos, na sociolinguística, de usos adequados e inadequados da língua para certos contextos comunicacionais. Todo falante precisa desenvolver a habilidade de adequar a linguagem para cada situação de uso, desenvolvendo, assim, sua competência comunicativa e sociolinguística. • Na variação linguística (processo pelo qual diferentes formas podem ocorrer no mesmo contexto linguístico com o mesmo valor referencial, ou com o mesmo valor de verdade), existem variedades (caracterizadas pelos modos de falar dos grupos sociais dos falantes, como um dialeto). Nas variedades, existem as variantes (forma individual que disputa pela expressão variável, como a variante TU ou VOCÊ, que permitirá caracterizar a variedade do grupo). O termo variável consiste no item gramatical no qual localizamos a variação linguística (nas variantes TU ou VOCÊ, identificamos a variedade do grupo, mas a possibilidade de escolher entre um pronome ou outro indica um fenômeno variável). 41 1 Assinale a alternativa que melhor defina comunidade de fala para os estudos sociolinguísticos: a) ( ) Grupo de pessoas cuja fala seja homogênea entre si, a fim de caracterizar a variedade linguística em comum. b) ( ) Grupo de pessoas que vive em uma comunidade e fala a mesma língua, sem variação. c) ( ) Grupo de pessoas que fala a língua fazendo uso de normas em comum. d) ( ) Grupo de pessoas que apresenta a variante padrão da língua compartilhada entre si. 2 Veja a tabela a seguir e procure identificar as comunidades linguísticas estudadas. Em seguida, conceitue comunidade de fala com suas palavras: AUTOATIVIDADE VARIAÇÃO LINGUÍSTICA Localidades Contextos linguísticos [ey] + flap (dinheiro) [ey] e [ay] + fricativa palato- alveolar (beijo, caixa) Percentual PR Percentual PR Florianópolis/SC 96% 0,32 48% 0,62 Porto Alegre/RS 99% 0,35 98% 0,46 Curitiba/PR 97% 0,79 94% 0,22 Região Sul 98% 66% FONTE: Görski e Coelho, (2012, p. 135) 3 (ENADE, 2017) FIGURA - VARIAÇÃO LINGUÍSTICA FONTE: ENADE (2017) Eu mandei ver! A Verinha é uma gata! Demorô! Tô bolado... Pô, Vô! Tu não saca nada! De que raça? E foram? É que a condução atrasou O quê? Levou uma bolada? É, hoje em dia não saco nada mesmo. Mas, quando eu era jovem, sacava muito bem no vôlei. E no tênis também! 42 O texto exemplifica a variedade linguística: a) ( ) Diatópica (geográfica). b) ( ) Diacrônica (de tempo). c) ( ) Diafásica (forma/informal). d) ( ) Diamésica (modalidade oral/escrita). e) ( ) Diastrática (camada social/profissional). 4 No quadro a seguir, você verá a comparação de fenômenos comuns à modalidade escrita da língua e à modalidade oral. ORALIDADE E ESCRITA Oralidade Escrita O momento de produção e o de recepção do texto são simultâneos. Há defasagem entre o momento de produção e o de recepção. É possível negociar o sentido com o interlocutor e, também, corrigir-se. O autor deve antecipar possíveis dúvidas do leitor e tratar de esclarecê-las ainda no momento de produção. O texto é coconstruído: para comunicar-se melhor, os interlocutores interagem o tempo todo, usando tanto a linguagem verbal quanto a não verbal. O autor produz o texto solidariamente e, depois, o leitor deve reconstruir seus significados também sozinho. É impossível “voltar atrás” no que foi dito. É possível revisar o texto quantas vezes for necessário. O processo de produção é transparente: o interlocutor “vê” seus erros e correções. O processo de produção fica oculto: o leitor tem acesso apenas ao textofinal. É impossível consultar outras fontes durante a produção. É possível consultar outras fontes e checar as informações. O planejamento é local: enquanto está falando uma frase, a pessoa pensa na próxima. O planejamento é global: a pessoa planeja o texto como um todo e, caso se desvie do plano inicial, pode aceitar a nova ordem ou voltar atrás. Tende a haver maior tolerância a erros e, portanto, mais informalidade. Tende a haver maior cobrança e, portanto, mais formalidade. A obediência à norma padrão costuma ser menos rígida. Por exemplo: as marcas do plural às vezes desaparecem. A norma padrão costuma ser seguida com mais rigor, até porque é possível revisar o texto. Predomínio de frases curtas e simples: “Bom dia, pessoal! Hoje a gente vai dar uma recordada na equação de segundo grau. Vamos abrir o livro na página 10 que eu já explico”. Predomínio de frases longas e complexas: “Para a primeira aula, está prevista uma revisão dos fundamentos de cálculo, a começar pela equação de segundo grau. Os alunos resolverão uma série de problemas em sala, sob a supervisão do professor”. Predomínio da voz ativa e da ordem direta: “Vamos revisar os fundamentos de cálculo”. Uso frequente da voz passiva e da ordem indireta: “Serão revisados os fundamentos de cálculo”. Abundância de “ f rases quebradas” (anacolutos): “Essas optativas, precisa fazer o pré-requisito primeiro”. Maior linearidade na composição das frases: “Para inscrever-se nas disciplinas optativas, é preciso ter cumprido os pré-requisitos”. FONTE: Adaptado por Juarez Firmino da obra de GUIMARÃES, Thelma de Carvalho. Comunicação e linguagem. São Paulo: Pearson, 2012. Disponível em: <https:// juarezfrmno2008sp.blogspot.com/2012/07/variacao-diamesica.html>. Acesso em: 2 maio 2019. 43 Esse quadro exemplifica a variedade linguística: a) ( ) Diatópica (geográfica). b) ( ) Diacrônica (de tempo). c) ( ) Diafásica (forma/informal). d) ( ) Diamésica (modalidade oral/escrita). e) ( ) Diastrática (camada social/profissional). 5 A variação diastrática é a que observa os modos de falar de diferentes grupos sociais, normalmente identificados por: a) classe social; b) idade; c) gênero; d) situação ou contexto social. Na situação de sala de aula, em que você estiver exercendo seu papel social de professora ou professor, na sua fala, haverá variação linguística? Explique e argumente com a discussão realizada ao longo deste tópico. 6 A divisão da língua em certo e errado NÃO é utilizada pela sociolinguística, mas sim os usos adequados e inadequados da língua para determinados contextos comunicacionais. Tendo isto em vista, assinale V para a(s) sentença(s) verdadeira(s) e F para a(s) falsa(s): ( ) Para desenvolver a habilidade de adequar a linguagem para cada situação de uso, o falante possui a competência de aprender a falar conforme os postulados da gramática normativa. ( ) A competência comunicativa e sociolinguística permite que o falante aprenda que todo texto escrito será produzido conforme a norma-padrão, embora na fala possa admitir erros. ( ) Aprender a transitar entre diferentes modos de falar, conforme sua necessidade social, corresponde ao seu desempenho adequado, que parte da competência comunicativa e sociolinguística. 7 Leia o fragmento do texto a seguir: Se por gramática entendermos o estudo sem preconceitos do funcionamento da língua, do modo como todo ser humano é capaz de produzir linguagem e interagir socialmente através dela, por meio de textos falados e escritos, portadores de um discurso, então, definitivamente é para ensinar gramática, sim. Na verdade, mais do que ensinar, é nossa tarefa construir o conhecimento gramatical dos nossos alunos, fazer com que eles descubram o quanto já sabem da gramática da língua e como é importante se conscientizar desse saber para a produção de textos falados e escritos coesos, coerente, criativos, relevantes etc. (BAGNO, 2007, p. 70). Agora, analise a relação entre as seguintes proposições e assinale a alternativa CORRETA: 44 I- Com fundamento na sociolinguística, defendemos que a gramática normativa se constitui como objeto de ensino da disciplina língua portuguesa PORQUE II- Ela explica os padrões linguísticos utilizados pelos falantes. a) ( ) As duas proposições são verdadeiras, e a segunda é justificativa da primeira. b) ( ) As duas proposições são falsas. c) ( ) A primeira proposição é falsa e a segunda é verdadeira. d) ( ) As duas proposições são verdadeiras, mas a segunda não é justificativa da primeira. 8 Como você está começando a ter contato com uma linguagem científica bastante específica da área da sociolinguística, sugerimos que inicie a produção de um glossário. Toda vez que se deparar com uma nova palavra, escreva-a em seu glossário para futuras consultas ao longo dos seus estudos. Que tal iniciar este glossário com as seguintes palavras: variação, variedade, variável, variante? Para isto, construa um quadro que contenha uma coluna para a explicação de cada um desses termos e uma para seus respectivos exemplos. 45 TÓPICO 3 ESTUDO SOCIOLINGUÍSTICO DO PORTUGUÊS BRASILEIRO UNIDADE 1 1 INTRODUÇÃO A partir dos fundamentos da sociolinguística, estivemos trabalhando com a identificação da diferença linguística na língua portuguesa. Na presente disciplina, você começa a observar a variedade linguística inserida na comunidade de fala, sem julgá-la em comparação com a norma-padrão. Com este tópico, em específico, esperamos que você dê continuidade aos seus estudos sociolinguísticos a fim de desenvolver fundamentos para uma pedagogia culturalmente sensível no contexto de educação básica, atribuindo cada vez mais um caráter científico à língua ao invés de mero juízo de valor. Tendo isto em vista, passaremos a discutir as variedades prestigiadas e estigmatizadas na língua portuguesa, o tratamento dado aos conceitos de norma- padrão e norma culta e os diferentes níveis da variação. Vamos começar? 2 POR QUE TRATAR DE VARIAÇÃO LINGUÍSTICA PARA O CONTEXTO DE TRABALHO NA EDUCAÇÃO BÁSICA? Bortoni-Ricardo (2004) sugere, enquanto professoras e professores de língua portuguesa na educação básica, que adotemos uma pedagogia culturalmente sensível aos saberes dos educandos. Nesse sentido precisamos nos atentar “às diferenças entre a cultura que eles [os alunos] representam e a da escola”, a fim de “encontrar[mos] formas efetivas de conscientizar os educandos sobre essas diferenças” (BORTONI-RICARDO, 2004, p. 38). Identificar a diferença linguística no momento da realização é o primeiro passo para conscientizar o estudante sobre essa diferença. É justamente por conta da identificação da diferença que o estudo da variação linguística constitui importância ao longo de sua formação em Letras, tendo em vista que a falta do reconhecimento implica a falta da conscientização em sala de aula. A dificuldade maior, muitas vezes, está em identificarmos a variedade na qual nós mesmos nos inscrevemos. Após a identificação da diferença, o que fazemos? Devemos corrigir nossos alunos? Tendo em vista que a palavra “corrigir” se inscreve na noção de certo e errado, não devemos corrigir. No entanto, como colocamos acima, precisamos conscientizar os estudantes sobre as diferenças linguísticas sempre que for 46 UNIDADE 1 | INTRODUÇÃO AOS ESTUDOS SOCIOLINGUÍSTICOS E À SOCIOLINGUÍSTICA VARIACIONISTA oportuno, bem como ensinar-lhes recursos para se adequarem linguisticamente aos diferentes contextos comunicativos. Nesse sentido, procuramos dar recursos para que comecem a monitorar seu próprio estilo, “sem prejuízo do processo de ensino/aprendizagem, isto é, sem causar interrupções inoportunas. Às vezes, será preferível adiar uma intervenção para que uma ideia não se fragmente, ou um raciocínio não se interrompa” (BORTONI-RICARDO, 2004, p. 42). A partir desse contexto, esperamos que você aja criticamente em sala de aula com relação ao ensino de língua portuguesa,considerando que a norma- padrão é apenas mais uma das diferentes variedades linguísticas que temos à disposição. Assim como nos estudos da sociolinguística, esperamos que você possa observar a variedade linguística inserida na comunidade de fala, sem julgá- la em comparação com a norma-padrão. Algumas variedades, como você verá melhor na Unidade 3 com a discussão sobre o preconceito linguístico, recebem maior prestígio que outras, por razões sociopolíticas. Como exemplo, podemos identificar o estigma social que a fala de uma comunidade de baixa escolaridade, de área rural, sofre em comparação ao prestígio atribuído a uma variedade mais urbana, falada por uma comunidade mais escolarizada. Em ambas, muitas vezes, podemos encontrar distanciamentos da norma-padrão, como a omissão do R em verbos de infinitivo – Preciso FALÁ com você – e a troca de R por L em encontros consonantais – pRaca ao invés de pLaca. Contudo, nesses dois exemplos citados, apenas a variedade de menor escolaridade, na qual identifica-se a troca do R por L em encontros consonantais, sofre estigma social. Essa valoração linguística é reflexo da hierarquia social existente entre esses grupos de falantes, a qual acaba implicando na falsa ideia de que há variedades superiores e outras inferiores. Vamos tratar, no nosso material de sociolinguística, das variedades prestigiadas, aquelas faladas por grupos mais urbanos, de classe social mais elevada, com maior escolaridade, e das variedades estigmatizadas, que são aquelas faladas por grupos de menor prestígio social. A norma-padrão é a variedade linguística socialmente mais valorizada, de reconhecido prestígio social, cujo uso é, normalmente, requerido em situações de formalidade na escrita. Nos materiais didáticos, contudo, parece haver uma certa confusão entre o que é a norma-padrão e o que é a norma culta, ou língua culta. De acordo com Bagno (2007), podemos identificar como norma culta ou língua culta as variedades prestigiadas do grupo. Estamos chamando-as aqui sempre de variedades prestigiadas, nunca de norma culta, a fim de evitarmos a falsa ideia de que quem não as utiliza não tem cultura. A norma-padrão, portanto, não é sinônimo de norma culta, tendo em vista que não é a forma falada pelos grupos sociais de maior prestígio, mas um conjunto de normas prescritas pela gramática normativa. Como afirma o autor, “[...] o português brasileiro são três: uma norma-padrão, que não é língua de ninguém; um conjunto de variedades estigmatizadas e um conjunto de variedades prestigiadas, cada uma delas caracterizando grupos sociais específicos” (BAGNO, 2007, p. 131). TÓPICO 3 | ESTUDO SOCIOLINGUÍSTICO DO PORTUGUÊS BRASILEIRO 47 O uso indevido da terminologia, para Bagno (2007), é um dos maiores problemas da abordagem da variação linguística em materiais didáticos. Por isso, é importante que você se aproprie desse conhecimento sociolinguístico e consiga lidar com o livro didático de forma crítica, trabalhando aspectos bem elaborados dele e problematizando, com seus alunos, algumas lacunas com relação ao tratamento dado à língua. A sociolinguística nos dá subsídios para compreendermos a relação entre as diferentes variedades da língua e o reconhecimento de apenas uma delas como norma-padrão. Esse reconhecimento, vale destacarmos, pode mudar ao longo da história. Na língua portuguesa, inclusive, podemos encontrar alguns usos que já foram padrão e hoje não são mais, como observado nos exemplos do século XVI: - as formas “desreito”, “despois”, “frecha”, “frito”, “premeiramente”, hoje desabonadas, são encontradas no texto da carta de Pero Vaz de Caminha, de 1500; - as formas “frauta”, “escuitar”, “intonce”, assim como as construções sintáticas do tipo “deseja de comprar” (com a presença da preposição de) [...] – hoje consideradas incorretas – são encontradas em Os Lusíadas, de Camões (1572). Como se vê, representações de pronúncias e construções gramaticais atestadas em textos legitimados não são mais consideradas como “bom uso”. Como entender, então, que ocorrências equivalentes, tão vivas em variedades não padrões contemporâneas, como por exemplo “Framengo”, “ele deve de sair, agora” e “a gente fomos lá”, sejam consideradas como “erradas”, “fruto de ignorância”? A fala das classes altas mudou e a de outros grupos sociais reteve esses usos: esse foi o “erro” (ALCKMIN, 2001, p. 41). O fundamento teórico desta disciplina, como vimos, permite-lhe reconhecer, em seu trabalho em sala de aula, que os princípios que regulam as propriedades da norma-padrão não são puramente linguísticos, mas também sociais. O que se marginaliza na língua, por conseguinte, se marginaliza, na verdade, no grupo social que a fala. Conforme Bagno (2007, p. 129), essa realidade precisa ser analisada e criticada “para que o trabalho na escola não reproduza os mesmos estereótipos e as mesmas discriminações que vigoram na sociedade em geral”. Continue sua leitura para aprofundar o debate com a realidade variacionista do português brasileiro. 3 VARIAÇÕES LINGUÍSTICAS NO PORTUGUÊS BRASILEIRO Ao longo desta unidade você leu sobre a constituição da disciplina sociolinguística nos estudos científicos sobre a linguagem. Também viu que, quando analisamos a língua cientificamente, é incoerente julgar uma variante como melhor ou pior que outra, embora reconheçamos que, socialmente, existam as variantes de prestígio ou as estigmatizadas. 48 UNIDADE 1 | INTRODUÇÃO AOS ESTUDOS SOCIOLINGUÍSTICOS E À SOCIOLINGUÍSTICA VARIACIONISTA Para entendermos melhor sobre as variantes do português brasileiro, é importante que saibamos que a variação ocorre em todos os níveis da língua. Em outras palavras, a variação pode ser fonético-fonológica; morfológica; sintática; semântica; lexical; estilístico-pragmática. É justamente por isso que a sociolinguística é um campo de estudo interdisciplinar. No diálogo com essas outras áreas da linguística, é capaz de observar os usos da língua por uma comunidade de fala. Vamos conhecer melhor cada um dos níveis citados? a) Variação fonético-fonológica: ocorre quando a troca de um som pelo outro não gera mudança no significado da palavra. Bagno (2007) exemplifica com as várias pronúncias do R, que pode ser mais vibrante (como tipicamente no Rio Grande do Sul), pode ser realizado como o popular R caipira (que é aquele que se assemelha à pronúncia da língua inglesa estadunidense), pode, ainda, ser realizado bem na garganta, como na pronúncia carioca, e assim por diante. Quando ocorre uma variação de ordem fonético-fonológica, um som é trocado por outro sem que haja mudança no significado da palavra. Por conta disso, tais sons são considerados alofones de um mesmo fonema. NOTA b) Variação morfológica: essencialmente se refere à alteração que ocorre em uma unidade mínima de significado da palavra, isto é, em um morfema da palavra. Por exemplo, em “pegajoso” e “peguento”, vemos uma variação no uso dos sufixos, que exercem função de expressar a mesma ideia (BAGNO, 2007). Na variação morfológica, podemos observar como os morfemas (que são elementos que carregam significado dentro de uma palavra) variam para a inovação linguística. No exemplo de “pegajoso” e “peguento”, os sufixos que foram utilizados na formação dessas novas palavras (derivadas a partir do verbo pegar), apesar de diferentes, exercem a mesma função de substantivar a palavra pegar para dizer que algo gruda (como em grudento). A variação morfológica normalmente é uma variação de interface, sendo, em muitos casos, morfofonológica ou morfossintática. A partir de Coelho, Görski e Nunes de Souza (2015), podemos identificar alguns exemplos que ilustram bem esses níveis de variação: I- Na variação morfofonológica, a variação atinge um morfema e um fonema. Exemplo: o apagamento do morfema verbal -r como marca de infinitivo em realizações como andá, vendê e parti é uma variação morfofonológica. Veja que o -r representa um fonema (um som da palavra)e também um morfema (uma unidade que marca infinitivo do verbo). Na realização “revolve” (em TÓPICO 3 | ESTUDO SOCIOLINGUÍSTICO DO PORTUGUÊS BRASILEIRO 49 comparação com “revólver”), não temos esse mesmo tipo de variação, pois a queda do –r é um fato apenas fonológico, já que é parte do radical da palavra, e não um morfema que traz um significado à palavra. Outro exemplo de variação morfofonológica que podemos encontrar com facilidade no português brasileiro é com relação à redução do morfema verbal –ndo (utilizado para representar o gerúndio) para –no, como em “falando” versus “falano”, “comendo” versus “comeno”. II- Na variação morfossintática, a variação atinge um morfema e a relação da estrutura sentencial. Exemplo: na formação das sentenças “tu anda” e “eles anda”, observamos a concordância com a segunda pessoa do singular e com a terceira pessoa do plural na relação entre pronome e verbo. Quando precisamos iniciar a análise da relação entre os termos de uma sentença, levamos em consideração as relações sintáticas. Por isso, a transformação que o verbo sofre nas duas sentenças exemplificadas não é apenas morfológica, ela é morfossintática. III- Se analisarmos apenas a alternância entre os pronomes “tu” e “você” ou “nós” e “a gente”, estaremos realizando uma análise de variação morfológica (e não um caso de interface), pois não há necessidade de reconhecer a relação entre os termos de uma sentença ou entre os sons de uma palavra, apenas há a necessidade de observar a escolha de um pronome para o outro. c) Variação sintática: refere-se à organização dos elementos dentro de uma sentença. O exemplo que Bagno (2007, p. 40) apresenta é o seguinte: "UMA HISTÓRIA QUE NINGUÉM PREVÊ O FINAL / UMA HISTÓRIA QUE NINGUÉM PREVÊ O FINAL DELA / UMA HISTÓRIA CUJO FINAL NINGUÉM PREVÊ”. d) Variação semântica: refere-se à variação de significados empregados por cada comunidade de fala a uma palavra. A palavra “vexame”, por exemplo, pode significar “vergonha” ou “pressa”, a depender da região do falante (BAGNO, 2007). e) Variação lexical: corresponde à variação de palavras que temos para dizer a mesma coisa. Por exemplo: “as palavras MIJO, XIXI, e URINA se referem todas à mesma coisa” (BAGNO, 2007, p. 40). f) Variação estilístico-pragmática: refere-se à variação da situação comunicacional, que ora requer maior grau de formalidade, ora requer menor grau de formalidade. Por exemplo: “os enunciados QUEIRAM SE SENTAR, POR FAVOR e VAMO SENTANO AÍ, GALERA” podem ser proferidos pelo mesmo falante, dependendo de sua situação comunicativa (BAGNO, 2007, p. 40). Nesses diferentes níveis da variação linguística que apresentamos, talvez o que lhe traga maiores novidades, agora, seja o de variação fonético-fonológica, tendo em vista que a representação alfabética não é capaz de retratar a realidade dos sons da língua pronunciados por seus falantes. Para isto, fazemos uso do IPA (Alfabeto Fonético Internacional). Veja, a seguir, a imagem de um quadro que representa os sons do português-brasileiro produzidos com algum tipo de obstrução no trato oral (chamados de consoantes). 50 UNIDADE 1 | INTRODUÇÃO AOS ESTUDOS SOCIOLINGUÍSTICOS E À SOCIOLINGUÍSTICA VARIACIONISTA É importante que você não confunda consoantes com letras dentro do contexto que estamos lhe apresentando. Na fonética e na fonologia, as consoantes são compreendidas como sons produzidos com alguma obstrução no trato oral (e não corresponderão de modo direto às letras do nosso alfabeto ortográfico). Vale destacarmos que, em outras línguas, são encontrados ainda outros símbolos que não estão representados no quadro a seguir. IMPORTANT E QUADRO 2 – REPRESENTAÇÃO FONÉTICA DAS CONSOANTES DA LÍNGUA PORTUGUESA Articulação Bilabial Labiodental Dental ou Alveolar Alveopalatal Palatal Velar Glotal Maneira Lugar Oclusiva desvozeadavozeada p b t d k g Africada desvozeadavozeada tʃ dʒ X ɣ h ɦ Fricativa desvozeadavozeada f v s z ʃ ʒ Nasal vozeada m n ɲ Tepe vozeada ɾ Vibrante vozeada r ̆ Refroflexa vozeada ɹ Lateral vozeada l ʎ lj FONTE: Adaptado de <http://www.dle.uem.br/fonetica/consoantes.html>. Acesso em: 9 jul. 2019. DICAS No site do Departamento de Letras da Universidade Estadual de Maringá http:// www.dle.uem.br/fonetica/consoantes.html, você encontrará os quadros das consoantes e das vogais da língua portuguesa com animações. Ao clicar em cada símbolo fonético, o site lhe direcionará para a explicação de como o som é produzido, a exemplos de palavras com a aplicação desse som, à possibilidade de ouvir o som, além de exercícios para colocar sua aprendizagem em prática. Também sugerimos que você assista ao vídeo “ALFABETO FONÉTICO INTERNACIONAL (IPA): Como interpretar? Para que serve?| Masterclass de fonética #1”, https://www.youtube.com/watch?v=FYAzWHT__tM, disponível no Canal English in Brazil by Carina Fradozo. Nesse vídeo, você poderá assistir a uma aula completa gravada por Carina Fragozo sobre o International Phonetic Alphabet (IPA). Seu foco, embora voltado à língua inglesa, é bastante pertinente nos nossos estudos sobre a variação linguística no nível fonético e fonológico para observarmos a importância da representação fonética da língua falada. TÓPICO 3 | ESTUDO SOCIOLINGUÍSTICO DO PORTUGUÊS BRASILEIRO 51 Minutagem: 0:54 O que é o IPA? 2:57 Para que servem os símbolos? 7:30 Como interpretar o IPA? 7:44 Consoantes pulmônicas 13:57 Consoantes não pulmônicas 14:30 Outros símbolos 14:45 Diacríticos 15:16 Suprasegmentos 17:22 Tons 17:47 Vogais São vários símbolos que podem lhe parecer confusos inicialmente, já que uma parte deles se diferencia do alfabeto ortográfico que convencionalmente conhecemos. Por isso, vamos lhe apresentar, no quadro a seguir, exemplos de usos desses símbolos para representar certos sons da nossa língua. Símbolo Fonético Exemplo em palavra Explicação do símbolo [b] Baba Usado para representar o som do “b”. [k] Cuca, quinta, quero Usado para representar o som de “c” e “qu” quando parecem ser pronunciadas como um “k”. [d] Dado Usado para representar o som do “d”. [dʒ] Dia Usado para representar uma variante que parece unir “d” e “j” no som de “d”. [f] Fofo Usado para representar o som do “f”. [g] Gato, grande Usado para representar o som de “g” quando precede as vogais “a, o, u” ou consoantes. [ʒ] Já Usado para representar o som de “j”. [l] Lá Usado para representar o som de “l” em início de sílaba. [ʎ] Palha Usado para representar o som de “lh”. [m] Mama Usado para representar “m” em início de sílaba. [n] Nó Usado para representar “n” em início de sílaba. [ɲ] Manhã Usado para representar “nh”. [p] Pó Usado para representar “p”. [ɾ] Puro, braço, prato Usado para representar o “r” entre os dentes, normalmente pronunciado em palavras que possuem um único “r” entre vogais ou em encontro consonantal. [r ̆] Carro, rato Usado para representar o “r” vibrante, como na pronúncia do político Michel Temer, ex-presidente do Brasil. Normalmente utilizado no encontro de dois “r” ou em “r” em início de palavra, mas também pronunciado em palavras como porta, carta. O “r” vibrante normalmente é encontrado no Sul do Brasil. QUADRO 3 - CONSOANTES 52 UNIDADE 1 | INTRODUÇÃO AOS ESTUDOS SOCIOLINGUÍSTICOS E À SOCIOLINGUÍSTICA VARIACIONISTA [x] Carro, rato Usado para representar o “r” velar, como na pronúncia característica da variedade carioca. Normalmente utilizado no encontro de dois “r” ou em “r” em início de palavra. [ɣ] Perda Correspondente de [x] e ocorre no final de sílaba seguida de consoante, como em perda, tarde, carta, curva. [ɹ] Porta Popularmente conhecido como “r” caipira, o [ɹ] é produzido como se houvesse combinação de r e l na pronúncia, como na pronúncia do inglês estadunidense, “we are” (nós somos). [h] Rio, terra Pronúncia característica, por exemplo, da variedade mineira de Belo Horizonte. Não ocorre fricção na região velar. [s] Só, cedo, texto É o popular som de “s”, independentemente de sua grafia alfabética.[ʃ] Xixi, chimarrão É o popular som de “x”, independentemente de sua grafia alfabética. [tʃ] Tchau, tia Usado para representar o som de “t” quando for pronunciado como se houvesse o encontro entre “t” e “x”. [v] Vovô Usado para representar o som de “v”. [z] Casa, doze Usado para representar o popular som de “z”, independentemente da sua grafia alfabética. FONTE: Adaptado de Bagno (2011, p. 16-17). No Quadro 2 e no Quadro 3, você teve um contato inicial com a representação fonética das consoantes da língua portuguesa. No Quadro 4, a seguir, você poderá observar a representação fonética das vogais orais do português brasileiro. QUADRO 4 - REPRESENTAÇÃO FONÉTICA DAS VOGAIS ORAIS DA LÍNGUA PORTUGUESA BRASILEIRA FONTE: Massini-Cagliari e Cagliari (2001, p. 129) Regiões Articulatórias Anterior Central Posterior Altura: Fechada i u meio-fechada e o meio-aberta ɛ ɔ Aberta a ɐ Não arredondada Não arredondada arredondada Labialização Além das vogais orais, apresentadas acima, existem, também, as vogais nasais e as semivogais. Todas elas estão exemplificadas no Quadro 5 logo a seguir. É importante que você observe que há mais de cinco vogais quando levarmos em consideração sua produção fonética, diferente do que tradicionalmente estudamos com a representação ortográfica no período de alfabetização. TÓPICO 3 | ESTUDO SOCIOLINGUÍSTICO DO PORTUGUÊS BRASILEIRO 53 Para entender melhor cada um dos sons apresentados, veja o Quadro 5, que traz exemplos e explicações da realização das vogais, além das semivogais. QUADRO 5 – VOGAIS E SEMIVOGAIS Símbolo Fonético Exemplo em palavra Explicação do símbolo [a] Pá Usado apenas quando o “a” é tônico. [ɐ] Madeira Usado apenas quando o “a” não possui tonicidade. [e] Bebê Usado para representar apenas o “e” fechado. [ɛ] Pé Usado para representar apenas o “e” aberto, com em “é”. [i] Vi Usado para representar o som de “i” quando constitui núcleo da sílaba (não é semivogal). [o] Vovô Usado para representar apenas o “o” fechado. [ɔ] Vovó Usado para representar apenas o “o” aberto, como em “ó”. [u] Urubu Usado para representar o som de “u”, quando núcleo da sílaba (não é semivogal). [ã] Manhã Usado para representar o som do “a” nasalizado. [ẽ] Vento Usado para representar o som do “e” nasalizado. [ĩ] Fim Usado para representar o som do “i” nasalizado. [õ] Som Usado para representar o som do “o” nasalizado. [ũ] Mundo Usado para representar o som do “u” nasalizado. [y] Raiva Usado para representar o som do “i”, quando for uma semivogal. [w] Louco Usado para representar o som do “u”, quando for uma semivogal. FONTE: Adaptado de Bagno (2011, p. 16) Agora que você já conhece as representações fonéticas das consoantes e das vogais da língua portuguesa, vamos passar a observar como esses sons são discutidos e observados diretamente no campo da sociolinguística. Quando procuramos destacar um único som da palavra que varia, como é o caso do R, escrevemos a palavra de acordo com nossa ortografia, mas substituímos as letras vinculadas à variante pela representação fonética entre parênteses quadrados [ ]. Por exemplo, a palavra carro pode variar bastante. Então, é possível que façamos algumas representações: ca[x]o, ca[ɾ]o, ca[r̆]o, só para citar alguns exemplos. Podemos também realizar a transcrição fonética completa da palavra. Para isto, além dos parênteses quadrados, precisamos fazer uso de aspas simples e reta ̍ , a qual precede a sílaba tônica da palavra, como em “fala” [ˈfalɐ]. Veja que, na palavra “fala”, a sílaba mais forte na pronúncia é o “fa”, por isso o símbolo de aspas simples e reta (ˈ) precisa ser colocado antes dessa sílaba durante a transcrição fonética. Neste livro não trabalharemos especificamente com o estudo da fonética, mas faremos uso de transcrições para representar as diferentes pronúncias do português brasileiro, isto é, algumas variantes no nível fonético. Recomendamos, 54 UNIDADE 1 | INTRODUÇÃO AOS ESTUDOS SOCIOLINGUÍSTICOS E À SOCIOLINGUÍSTICA VARIACIONISTA então, que tenha sempre consigo os quadros que trazem exemplos de cada som para lhe auxiliar na interpretação da variação e para que você consiga se apropriar de cada um deles. Na próxima unidade, passaremos a analisar algumas regularidades linguísticas. Por isso, é importante que você estude os símbolos que foram aqui apresentados e procure, aos poucos, se apropriar deles. Elaboramos uma lista de autoatividades que poderão auxiliá-lo nessa tarefa. Fique conosco! 55 RESUMO DO TÓPICO 3 Neste tópico, você aprendeu que: • A pedagogia culturalmente sensível corresponde ao trabalho com as diferenças culturais em contexto escolar, no qual cabe à professora ou professor de língua portuguesa identificar a variação linguística presente na sala de aula no momento da realização para, quando for oportuno, conscientizar o estudante sobre as diferenças linguísticas. Essa prática é importante para o desenvolvimento da competência comunicativa e sociolinguística do aluno. • A valoração linguística que determina modos de falar como certos ou errado, bonitos ou feios, é resultado de uma hierarquia social existente entre os grupos de falantes. Neste livro, discutimos a existência das variedades prestigiadas, aquelas faladas por grupos mais urbanos, de classe social mais elevada, com maior escolaridade, e das variedades estigmatizadas, que são aquelas faladas por grupos de menor prestígio social. • A norma-padrão e a norma culta NÃO são sinônimos. A norma culta ou língua culta corresponde às variedades prestigiadas faladas por grupos sociais. A norma culta falada em Belo Horizonte certamente é diferente daquela falada em Pernambuco e assim por diante. A norma-padrão NÃO é a forma falada pelos grupos sociais de maior prestígio, mas é um conjunto de regras prescritas pela gramática normativa (e, por isso mesmo, não pertence à comunidade de fala alguma). • A sociolinguística permite que reconheçamos que o que se marginaliza na língua, se marginaliza, na verdade, no grupo social que a fala. Logo, é correto afirmar que o que regula a norma-padrão não são princípios puramente linguísticos, mas também sociais. Isto quer dizer que, embora a norma-padrão não seja uma língua pertencente a uma comunidade de fala, ela existe por conta de questões sociais (essencialmente políticas) e não por exigência de uma estrutura interna da língua. • A variação linguística ocorre em todos os níveis da língua: a variação pode ser fonético-fonológica; morfológica; sintática; semântica; lexical; estilístico- pragmática. • Para observar a variação fonético-fonológica, a representação alfabética não é suficiente. Por isso, fazemos uso do IPA (Alfabeto Fonético Internacional), com o qual trabalhamos as representações fonéticas de vogais, semivogais e consoantes da língua portuguesa. 56 Ficou alguma dúvida? Construímos uma trilha de aprendizagem pensando em facilitar sua compreensão. Acesse o QR Code, que levará ao AVA, e veja as novidades que preparamos para seu estudo. CHAMADA 57 1 A sociolinguística apresenta contribuições significativas para o ensino de língua portuguesa em contexto de educação básica. Seus subsídios acerca da diversidade linguística nos fazem pensar a urgência de uma pedagogia culturalmente sensível com os saberes dos educandos. A partir dessas considerações, analise as assertivas a seguir e selecione a que esteja ancorada em uma prática pedagógica culturalmente sensível: I- A compreensão da troca ortográfica de “mais” no lugar de “mas” na escrita do aluno a partir de seu modo de falar permite um trabalho de identificação da variação linguística, bem como a posterior conscientização da diferença entre forma escrita e falada, ao invés da mera correção ortográfica. II- O trabalho de conscientização em sala de aula deve sempre levar o aluno a substituir sua variedade linguística, quando estiver errada, para passar a falar conforme a norma-padrão. III- O reconhecimento da heterogeneidade que já existe na sala deaula é um aspecto importante do trabalho com ensino de língua portuguesa (da conscientização da língua padrão, dos usos em diferentes situações comunicativas, etc.). Estão CORRETAS apenas a(s) sentença(s): a) ( ) I e III. b) ( ) III. c) ( ) II e III. d) ( ) I, II e III. e) ( ) I e II. 2 Leia o trecho de Carmo Bernardes (1969) utilizado por Bortoni-Ricardo (2004, p. 13) para iniciar a conversa sobre língua portuguesa como língua materna: “Custei a danar a aprender a linguagem deles e aqueles trancas não quiseram aprender a minha” Essa fala caracteriza a tentativa de Carmo Bernardes a aprender a língua da comunidade escolar urbanizada, quando saiu de um contexto interiorano. Com base no fundamento teórico discutido ao longo desta Unidade e no próprio livro de Bortoni-Ricardo (2004), comente a afirmação de Carmo Bernardes buscando refletir a diversidade linguística que pode ser explorada em sala de aula e a prática pedagógica que pode auxiliar o professor em tal tarefa. 3 Considerando o contexto brasileiro, é possível afirmar que a língua portuguesa falada pelas camadas sociais mais populares é inferior à norma- padrão ao trazer marcas linguísticas que se distanciam das prescrições gramaticais? Discuta. 4 Por que a escola deve levar os alunos a se apoderarem de regras linguísticas que gozam de prestígio, entre outras? AUTOATIVIDADE 58 5 O professor deve intervir na forma em que os alunos utilizam a linguagem no domínio escolar? Responda considerando as diferenças entre a cultura da oralidade, predominante na variedade usada no domínio do lar, e a cultura de letramento, como a que é cultivada na escola. 6 Ao longo deste tópico você viu alguns conceitos importantes para tratarmos os diferentes modos de se utilizar a língua, seja na modalidade escrita ou oral. Assinale a alternativa que apresenta a melhor definição para norma culta: a) ( ) Forma falada pelos grupos sociais de maior prestígio, também conhecida como variedades de prestígio. b) ( ) Conjunto de normas prescritas pela gramática normativa e, por isso mesmo, não pertencente à comunidade de fala alguma. c) ( ) É sinônimo de norma-padrão e amplamente utilizada nos manuais didáticos de língua portuguesa. d) ( ) É oposição da norma inculta, falada pelas pessoas mais ignorantes do país. e) ( ) Conjunto de normas ensinadas nos livros didáticos para a escrita correta das palavras. 7 A variação linguística ocorre em todos os níveis da língua: a variação pode ser fonético-fonológica; morfológica; sintática; semântica; lexical; estilístico- pragmática. Diante disto, relacione as colunas, identificando em cada variação o nível em que ocorre: (1) Variação fonético-fonológica. (2) Variação morfológica. (3) Variação sintática. (4) Variação semântica. (5) Variação lexical. (6) Variação estilístico-pragmática. ( ) Camisola, em Portugal, é uma roupa que se usa em vez da camisa. Ex.: As camisolas dos jogadores de futebol. / No Brasil, camisola é uma peça de vestuário feminino usada para dormir. ( ) Informal: E aí, cê tá bem? / Formal: Como a senhora está? ( ) [dʒ]ia / [d]ia. ( ) Eu nem num sei / Sei não. ( ) Maluquês / Maluquice. ( ) Aipim / Mandioca. ( ) Tô bem / Estou bem. 8 (ENADE, 2017) As variantes linguísticas são diversas maneiras de se dizer a mesma coisa em um mesmo contexto e com o mesmo valor de verdade. A um conjunto de variantes dá-se o nome de variável linguística. FONTE: TARALLO, F. A Pesquisa Sociolinguística. São Paulo: Ática, 1986 (adaptado). Assinale a opção que apresenta dois pares linguísticos legítimos de variação linguística. a) ( ) m[u]rcego – m[o]rcego, [p]ata – [l]ata. b) ( ) [b]ote – [p]ote, d[e]dal – d[ɛ]dal. c) ( ) f[i]liz – f[ɛ]liz, p[u]mada – p[o]mada. d) ( ) [d]oca – [t]oca, lei[t]e – lei[tʃ]e. e) ( ) [t]ime - [tʃ]ime, [d]ata – [m]ata. 59 9 Ouça a leitura do texto “Só de sacanagem”, com a interpretação da cantora Ana Carolina, e preste muita atenção nas palavras destacadas: Só de sacanagem Elisa Lucinda - interpretado por Ana Carolina [...] Pois bem, se mexeram comigo, com a velha e fiel fé do meu povo sofrido, então agora eu vou sacanear: mais honesta ainda vou ficar. Só de sacanagem! Dirão: "Deixa de ser boba, desde Cabral que aqui todo o mundo rouba" e eu vou dizer: Não importa, será esse o meu carnaval, vou confiar mais e outra vez. Eu, meu irmão, meu filho e meus amigos, vamos pagar limpo a quem a gente deve e receber limpo do nosso freguês. Com o tempo a gente consegue ser livre, ético e o escambau. Dirão: "É inútil, todo o mundo aqui é corrupto, desde o primeiro homem que veio de Portugal". Eu direi: Não admito, minha esperança é imortal. Eu repito, ouviram? IMORTAL! Sei que não dá para mudar o começo, mas, se a gente quiser, vai dá para mudar o final! (Link para ouvir a leitura acesse: https://www.youtube.com/watch?v=cE1VuxpOshI) a) Faça a transcrição fonética das sílabas destacadas nas palavras, de acordo com a variante da intérprete. Palavra Transcrição fonética Comigo Rouba Freguês Desde b) Sobre as variantes utilizadas por Ana Carolina, identifique a pronúncia de “o” não tônico, de “r” em início de palavra, de “s” em final de sílaba, e de “d” quando precede o som de “i” (como quando a cantora pronunciou “desde”). Compare esses sons com a forma que você os pronunciaria nessas palavras e descreva as semelhanças e/ou diferenças da variação em nível fonético e fonológico. 10 No vídeo a seguir você deverá assistir à entrevista de Cacau Menezes, colunista de jornais da cidade de Florianópolis, SC, com Ney Matogrosso, artista brasileiro natural do Mato Grosso do Sul, embora tenha vivido em São Paulo e Rio de Janeiro grande parte de sua vida. 60 FONTE: <http://g1.globo.com/sc/santa-catarina/jornal-do-almoco/videos/t/edicoes/v/cacau- menezes-entrevista-ney-matogrosso/7368434/?mais_vistos=1> Acesso em: 27 ago. 2019. a) A partir do vídeo, represente foneticamente os sons destacados nas palavras a seguir: Fala de Cacau Menezes Palavras Transcrição Fonética Os teatros O[ ] teatro[ ] Florianópolis Florianópoli[ ] Rio de Janeiro [ ]io de Janeiro Fala de Ney Mato Grosso Palavras Transcrição Fonética Rua [ ]ua Roupagem [ ]oupagem Horas Hora[ ] b) Com base na transcrição fonética de alguns sons produzidos por Ney Mato Grosso e por Cacau Menezes, responda: As palavras indicadas para observação das variáveis linguísticas sinalizam para semelhanças ou diferenças entre a fala do entrevistador e do entrevistado? Explique sua resposta. 61 UNIDADE 2 ESTUDANDO AS VARIEDADES E OS CONTATOS LINGUÍSTICOS OBJETIVOS DE APRENDIZAGEM PLANO DE ESTUDOS Esta unidade tem por objetivos: • apresentar análises de variação e mudança linguística; • discutir o fenômeno da mudança linguística como algo inerente à sociedade; • identificar regularidades linguísticas em variedades do português brasileiro; • conhecer os traços contínuos e descontínuos da variação; • discutir conceitos referentes a línguas em contato; • apresentar noções acerca do bilinguismo e das práticas de translinguagem; • introduzir o conceito de alternância de códigos, estratégias linguísticas, bem como a definição de translinguagem; • refletir sobre as ideologias monolíngues e sobre as que diferem desta orientação linguística no que concerne ao bilinguismo e à educação bilíngue. Esta unidade está organizada em três tópicos. Neles, você encontrará dicas, textos complementares, observações e atividades que lhe darão uma maior compreensão dos temas a serem abordados. TÓPICO 1 – SOCIOLINGUÍSTICA VARIACIONISTA TÓPICO 2 – ALTERNÂNCIAS DE CÓDIGO E ESTRATÉGIAS LINGUÍSTICAS TÓPICO 3 – O MITO DO MONOLINGUISMO Preparado para ampliar seus conhecimentos? Respire e vamos em frente! Procure um ambiente que facilite a concentração, assim absorverá melhor as informações. CHAMADA 62 63 TÓPICO 1 SOCIOLINGUÍSTICA VARIACIONISTA UNIDADE 2 1 INTRODUÇÃO Ao longo dos estudos da Unidade 1 do seu material de Sociolinguística,você provavelmente notou que esta disciplina está preocupada com a descrição das diferentes variedades que coexistem dentro de uma comunidade ou mais comunidades de fala. Nesse sentido, não podemos confundir a língua portuguesa com a gramática normativa dessa língua, uma vez que buscamos compreender as variedades do português brasileiro considerando o seu contexto social de uso. Para essa compreensão, dependemos do campo científico da sociolinguística variacionista, que apresenta modos próprios de pesquisa. Neste tópico, pretendemos introduzir, de forma sucinta, a metodologia de pesquisa da sociolinguística variacionista e apresentar possibilidades para o estudo de fenômenos linguísticos variáveis do português brasileiro. Para esse estudo, você conhecerá os cinco problemas e princípios empíricos para uma teoria da variação e mudança linguística, que são: fatores condicionantes, encaixamento da variação, avaliação das mudanças, transição e implementação. É a partir do estudo nessa perspectiva, considerando os problemas e princípios citados, que sociolinguistas brasileiros têm identificado atitudes de estigmatização a determinados traços linguísticos denominados de descontínuos, os quais representam as variantes linguísticas típicas de falantes provenientes de classes sociais economicamente desfavorecidas, com menor grau de escolaridade e associadas às zonas rurais do país. Em contrapartida, há variantes linguísticas encaixadas em classes sociais economicamente favorecidas, provenientes de zonas urbanas e com maior escolaridade, que não sofrem o mesmo estigma. Diante dessa realidade, os estudos da sociolinguística têm contribuído significativamente para o contexto de educação básica, uma vez que a descrição das variedades de comunidades de fala existentes no Brasil desmente o mito do monolinguismo nacional e de homogeneidade na língua portuguesa, desqualificando o ensino pautado exclusivamente na noção de certo e errado. Nesse sentido, é muito importante que você, enquanto futuro docente, conheça e compreenda a perspectiva da qual parte a sociolinguística para que as suas aulas possam ser planejadas, levando em conta as variedades com as quais você se deparará em sua sala de aula. Pronto para iniciar a Unidade 2? UNIDADE 2 | ESTUDANDO AS VARIEDADES E OS CONTATOS LINGUÍSTICOS 64 2 PARA ENTENDER A VARIAÇÃO E A MUDANÇA LINGUÍSTICA Na Unidade 1, você teve a oportunidade de conhecer o conceito de variação linguística, em quais níveis ela ocorre e de que maneira os contextos sociais influenciam para que ela ocorra. A partir dessa compreensão, podemos observar a importância do trabalho no campo da variação linguística para o debate sobre o progresso da mudança linguística que, conforme Labov (2008), ocorre em três estágios: na origem, na propagação e no término. Em outras palavras, por meio da pesquisa no campo da sociolinguística variacionista, é possível olhar para um contexto no qual inicia-se uma variação linguística, compreender como a nova variante passa a se propagar em novos contextos, entre falantes de diferentes idades, escolaridades, classes sociais, e de que forma essa variante assume a norma de uso. Para exemplificar, retomaremos um contexto de variação apresentado na Unidade 1 acerca do pronome de segunda pessoa do plural. Como já observamos, embora o pronome “vós” ainda se faça presente nos manuais de gramáticas normativas da língua portuguesa, os falantes do português brasileiro o substituíram pelo pronome “vocês” para indicar a segunda pessoa do plural. Se realizarmos uma análise sociolinguística em textos antigos, veremos que, no século XVI, o pronome “vós”, e não “vocês”, era utilizado para marcar a segunda pessoa do plural. Nos séculos seguintes, novas formas passaram a competir com “vós”, o que implicou na variação linguística. A partir dessa variação, observamos, portanto, uma mudança linguística completada da forma pronominal de “vós” para “vocês” na fala de praticamente todos os brasileiros. Vale destacarmos que “nem toda variabilidade e heterogeneidade na estrutura linguística implica mudança; mas toda mudança implica variabilidade e heterogeneidade” (WEINREICH; LABOV; HERZOG, 2006, p. 126, grifos nossos). Isso quer dizer que sempre que nos depararmos com uma mudança linguística, como é o caso de “vós” e “vocês”, conforme vimos há pouco, também nos deparamos com a heterogeneidade da língua, com a sua possibilidade de variação. No entanto, mesmo quando estamos diante de uma variação linguística, não quer dizer que haja uma mudança linguística. Por exemplo: As formas “tu” e “você” convivem na nossa sociedade, especialmente no Sul do Brasil, marcando uma diferença de estilo e região. Podemos observar que entre as formas concorrentes “tu” e “você” há variação, mas não há uma mudança linguística, uma vez que ambas as formas continuam em uso. IMPORTANT E TÓPICO 1 | SOCIOLINGUÍSTICA VARIACIONISTA 65 Duas obras foram fundamentais para a consolidação dos estudos da teoria da variação na busca para compreender a língua em sua heterogeneidade, num processo constante de variação e mudança linguística: (1) a primeira obra, publicada por Uriel Weinreich, William Labov e Marvin Herzog (2006), é intitulada “Fundamentos empíricos para uma teoria da mudança linguística”; (2) e a segunda obra, que você conheceu um pouco melhor na Unidade 1, foi publicada por William Labov (2008) e recebeu o título de “Padrões sociolinguísticos”. FIGURA 1 – FUNDAMENTOS EMPÍRICOS PARA UMA TEORIA DA MUDANÇA LINGUÍSTICA FONTE: <http://twixar.me/yfGT>. Acesso em: 24 ago. 2019. Em nossa sociedade, nós interagimos por meio da língua. É através dela que a vida acontece. No entanto, isso só é possível porque essa língua é estruturada, possui uma lógica e todos aqueles que dominam essa língua conseguem se entender, mas, se existe uma estrutura, como é possível que a língua mude sem que o caos aconteça? Como continuamos a nos comunicar mesmo diante das variações e das mudanças que acontecem? Para responder a essas perguntas, a teoria da mudança busca por dados empíricos variáveis. Para descrever esses dados, contudo, é importante que se tenham ferramentas adequadas. Nesse sentido, a sociolinguística parte de alguns problemas (que podem, também, ser entendidos como questionamentos) empíricos, que orientam os estudos daqueles que buscam conhecer e compreender como é possível que “[...] tanto língua quanto comunidade permaneçam ordenadas, embora a língua mude” (COELHO et al., 2015, p. 76). Esses problemas, também chamados de princípios, foram propostos por Weirich, Labov e Herzog (2006) e guiam ainda hoje os estudos sociolinguísticos. IMPORTANT E UNIDADE 2 | ESTUDANDO AS VARIEDADES E OS CONTATOS LINGUÍSTICOS 66 I- Fatores condicionantes – “busca-se compreender quais são as condições para a mudança em dada estrutura, que podem advir de fatores de ordem social e de ordem linguística” (SALOMÃO, 2011, p. 191, grifos nossos). Esse princípio possibilita descrever, por exemplo, de que forma aspectos sociais, como idade, gênero, sexo, escolaridade, entre outros, condicionam a variação e a mudança linguística. Além disso, também possibilita observar a influência dos condicionantes linguísticos que participam da própria estrutura da língua, como os morfológicos ou sintáticos, por exemplo, na mudança da língua. II- Encaixamento da variação – busca-se descrever o fenômeno da variação linguística com base na observação dos fatores condicionantes linguísticos e sociais (não linguísticos). Podemos dizer que a análise variacionista, em sua essência, corresponde à observação de fatores sociais e seu reflexo nos fenômenos linguísticos que ocorrem na fala de uma comunidade (LABOV, 2008). Em outras palavras, nesse princípio, o fenômeno da variação é descrito dentro de uma comunidade de fala a partir dos fatores condicionantes. III- Avaliação das mudanças – “busca-se estudar os possíveis efeitos da variação sobre a estrutura linguística,sobre a eficiência comunicativa e sobre um amplo conjunto de categorias não representacionais (inclusive interacionais, discursivas e pragmáticas) envolvidas na fala” (SALOMÃO, 2011, p. 191). Em outras palavras, a avaliação das mudanças nos permite refletir sobre os valores da própria variável linguística entre seus falantes, sobre o papel do falante no processo de mudança e sobre sua consciência acerca do processo de mudança (LABOV, 2008). A atitude do falante pode se manifestar em dois níveis, a saber: (i) avaliação linguística e (ii) avaliação social. Enquanto que a avaliação linguística se relaciona à eficiência na comunicação, a social diz respeito ao significado social das formas linguísticas (COELHO et al., 2015, p. 91-92). Em suma, podemos dizer que a avaliação corresponde à atitude social quanto à língua para a determinação de uma mudança linguística. IV- Transição – “busca-se compreender os estágios intervenientes entre dois estados da língua: como um falante aprende uma forma alternante, tempo em que as duas formas coexistem, tempo em que uma das formas prevalece sobre a outra” (SALOMÃO, 2011, p. 191). O problema da transição consiste na observação e na descrição da mudança linguística, por meio de um olhar diacrônico, de um ponto inicial de origem do fenômeno até um ponto no qual a mudança se apresenta concluída, totalmente visível, ou seja, observa-se a progressão da mudança ao longo de diferentes gerações. V- Implementação – “busca-se analisar os fatores responsáveis pela implementação da mudança e a razão pela qual as mudanças em um aspecto estrutural ocorrem em determinada língua em um dado momento, mas não em outra língua com o mesmo aspecto, ou na mesma língua, em outras épocas” (SALOMÃO, 2011, p. 191). Uma das hipóteses da implementação de Labov (2008) é a de que a mudança raramente acontece de baixo para cima, TÓPICO 1 | SOCIOLINGUÍSTICA VARIACIONISTA 67 isto é, a mudança é legitimada e encaixada apenas se a avaliação de grupos sociais prestigiados, com maior escolaridade, maior poder socioeconômico, aceitar a forma inovadora e incorporá-la às suas variedades prestigiadas. Você sabia que há muitos estudos sociolinguísticos que são realizados a partir de cartas pessoais escritas em diferentes séculos? O problema de implementação da mudança pode guiar esse tipo de estudo, uma vez que os dados revelam as formas inovadoras da língua usadas nas cartas pessoais e que foram incorporadas pelos falantes. As cartas pessoais normalmente são extraídas de uma plataforma on-line chamada de CORPORA do PHPB, disponível em: https://sites.google.com/site/corporaphpb/. NOTA Cada um desses cinco problemas representa os princípios para uma teoria da variação e mudança linguística, a fim de que o sociolinguista possa observar, em dados reais da fala de comunidades, como as variações ou as mudanças linguísticas podem estar encaixadas num contexto social, como são avaliadas e como a mudança pode ser ativada em contextos geográfica e temporalmente específicos. Esses cinco problemas, portanto, correspondem a uma investigação sobre a língua, que pode ser realizada com objetivos distintos, tais como: I. identificar os fatores condicionantes da variação linguística; II. observar o reflexo dos fatores condicionantes da variação linguística na fala de uma comunidade; III. compreender a atitude social de uma comunidade de fala diante de formas concorrentes da língua; IV. descrever uma mudança linguística em curso ou totalmente concluída; V. descrever a implementação da mudança, considerando o encaixamento e a avaliação da forma inovadora na comunidade de fala. Para saber mais sobre como se realizam as pesquisas na sociolinguística variacionista, continue a leitura deste tópico! UNIDADE 2 | ESTUDANDO AS VARIEDADES E OS CONTATOS LINGUÍSTICOS 68 2.1 ANALISANDO REGULARIDADES LINGUÍSTICAS: PRINCÍPIOS METODOLÓGICOS Prezado acadêmico, a discussão aqui presente buscará lhe auxiliar na compreensão dos princípios metodológicos de uma análise de regularidade linguística, importante para o seu olhar crítico de dados de variação linguística ao receber materiais pedagógicos. Você poderá, assim, avaliar se os livros didáticos, por exemplo, trazem materialidade de variação linguística real ou representações fictícias (como nos quadrinhos de Maurício de Sousa), cujo objetivo não é estudar a heterogeneidade da língua, mas produzir conteúdo literário. Apresentamos a você uma abordagem inicial dos estudos sociolinguísticos para você ter uma base para empreender suas próprias investigações e para que possa levar o conhecimento variacionista da linguagem para a sala de aula. A sociolinguística, como campo de investigação científico sobre a língua, pode ser compreendida a partir de duas perspectivas diferentes de estudo: a macrossociolinguística e a microssociolinguística (MONTEIRO, 2000). Na macrossociolinguística, a relação sociedade e língua é compreendida a partir de discussões voltadas ao multilinguismo e às políticas linguísticas, que serão mais aprofundadas nos próximos tópicos da Unidade 2 e na Unidade 3 do nosso livro. A segunda perspectiva de estudo, a microssociolinguística, se constitui como foco no presente tópico, pois nos permite analisar como os fatores sociais resultam nas variedades faladas por diferentes comunidades brasileiras. IMPORTANT E A perspectiva da microssociolinguística é mais comumente denominada a partir da corrente de estudos laboviana: sociolinguística variacionista ou teoria da variação (embora essa perspectiva também englobe a sociolinguística interacional e a etnografia da fala). William Labov é considerado precursor no campo devido aos métodos que utilizou em sua dissertação de mestrado e em sua tese de doutorado para coletar dados de variedades da língua inglesa falada na ilha de Martha’s Vineyard, no estado de Massachusetts, e das variedades da língua inglesa falada em Nova York. A relação língua e sociedade, como temos discutido ao longo deste livro, é foco na análise sociolinguística para compreensão de regularidades presentes na fala de uma comunidade linguística. A fim de sistematizar o processo de variação linguística, o pesquisador sociolinguista identifica fatores sociais que implicam o fenômeno variável. TÓPICO 1 | SOCIOLINGUÍSTICA VARIACIONISTA 69 Perceba que os conceitos acerca da variação linguística, como variedade, variante, variável, trabalhados na Unidade 1, continuam em uso para os nossos estudos. Por isso, não deixe de retomá-los sempre que necessário antes de prosseguir com as suas leituras. NOTA Conforme introduz Bagno (2007) na obra “Nada na língua é por acaso”, a variação linguística não acontece livremente em um sistema aleatório onde “tudo pode”. O emprego das variantes é regido por certas regras sociais e estruturais (LABOV, 2008), que permitem verificar o encaixamento linguístico e social da variação, além de uma possível mudança linguística em curso. Essa verificação ocorre por meio de pesquisas na sociolinguística variacionista, as quais realizam análises quantitativas e qualitativas de um corpus. Você saberia dizer o que é um corpus de pesquisa? Na sociolinguística variacionista, o corpus de pesquisa se refere a um conjunto de dados de variação linguística obtido com base em determinadas características. Nesse sentido, podemos selecionar um conjunto de dados que nos permite analisar a variação fonético-fonológica de um estado brasileiro, ou a variação morfossintática entre grupos de escolaridades diferentes numa mesma cidade, só para citar alguns exemplos. Na pesquisa variacionista, é possível comprovarmos que a variação é constitutiva da língua, o que implica admitir que diferentes formas linguísticas convivam na sociedade, nas comunidades de fala, e que inclusive há variação na fala de um mesmo indivíduo. Além disso, a sociolinguística variacionista tem comprovado que a mudança linguística não ocorre de uma hora para outra, mas é gradual.Os pressupostos teóricos presentes na teoria da variação “permitem ver regularidade e sistematicidade por trás do aparente caos da comunicação no dia a dia, procurando demonstrar como uma variante se implementa na língua ou desaparece” (SALOMÃO, 2011, p. 190, grifos nossos), como ocorre seu encaixamento na comunidade de fala, quais as atitudes dos falantes diante da maneira inovadora, de que forma se dá a transição e implementação de uma mudança. IMPORTANT E UNIDADE 2 | ESTUDANDO AS VARIEDADES E OS CONTATOS LINGUÍSTICOS 70 Para analisar essa realidade, a sociolinguística variacionista trabalha com dados estatísticos, que são tratados qualitativa e quantitativamente, a partir da noção de peso relativo, que é a análise da regra variável baseada nos seus fatores contextuais. Existe um pacote de programas para a análise computacional dos dados. Os mais utilizados são o VARBRUL e o GOLDVARB, auxiliando a calcular a porcentagem dos fenômenos variáveis para que, em seguida, interpretemos o fenômeno da variação, relacionando os princípios estatísticos e as teorias sociais e linguísticas (SALOMÃO, 2011). “O resultado da análise das variantes pode produzir duas situações: a existência de estabilidade entre variantes, denominada variação; ou a competição entre as variantes com aumento de uso de uma delas, chamada mudança em curso” (SALOMÃO, 2011, p. 192, grifos nossos). Como você já deve ter percebido ao longo da sua leitura, nos nossos estudos, procuramos trabalhar com o falante-ouvinte real, em situações reais de linguagem, e não com um falante-ouvinte ideal, para o qual se impõe certos modelos linguísticos. Nesse sentido, ao realizarmos uma pesquisa sociolinguística, lidamos com gravações de amostras de fala informais e espontâneas de um número expressivo de informantes, a fim de que seja possível analisar as formas variáveis dentro de uma comunidade de fala. Salomão (2011, p. 191, grifos nossos) explica o passo a passo da pesquisa na sociolinguística variacionista: Primeiramente, o investigador tem de delimitar o fenômeno linguístico variável, levantando todas as possibilidades de produção que estão em variação. Posteriormente, ele deve lançar hipóteses sobre as variáveis condicionadoras (linguísticas e sociais) que podem estar influenciando a escolha de uma ou de outra forma variante, baseando- se tanto nos dados coletados, na teoria linguística e na estrutura social da comunidade estudada. É importante que o investigador identifique os grupos de fatores, tanto estruturais como sociais, com os quais irá trabalhar antes de submeter os dados a uma análise computacional, por meio de um pacote de programas (alguns dos mais utilizados são o VARBRUL e o GOLDVARB) que faz os cálculos de frequência (SALOMÃO, 2011, p. 192, grifos nossos). Para ilustrar esses procedimentos metodológicos da teoria da variação, convidamos você a conhecer a pesquisa de Macedo (2004), que realiza uma análise de variação no nível fonético-fonológico no falar "culto" de Recife, na qual identifica o encaixamento da palatização de /s/ em final de sílaba. A pesquisadora, para iniciar seu estudo na sociolinguística variacionista, passa por quatro etapas de delimitação: 1- Seleção do fenômeno linguístico variável: /s/ em final de sílaba. 2- Delimitação da comunidade de fala: grupo de falantes que acessam a norma prestigiada de Recife. 3- Reconhecimento de todas as possibilidades de produção que estão em variação: Macedo (2004) reconhece quatro variáveis para /s/ em final de sílaba na fala prestigiada de Recife: (1) as consoantes alveolares surdas [s] e [ʃ], como TÓPICO 1 | SOCIOLINGUÍSTICA VARIACIONISTA 71 em pa[s]tel, mê[ʃ]; (2) as consoantes alveolares sonoras [z] e [ʒ], como em me[z] mo ou pé[ʒ]descalços; (3) a consoante fricativa glotal, como em me[h]mo; (4) e ainda a possibilidade de não se pronunciar o /s/, o que se identifica como um zero fonético – me[Ø]mo. 4- Levantamento de hipóteses sobre as variáveis condicionadoras (linguísticas e sociais): Macedo (2004) considera as variáveis sociais de sexo (feminino e masculino) e de faixa etária (I – de 13 a 20 anos; II – de 21 a 45 anos; III – de 46 a 70 anos). Como variáveis linguísticas, Macedo (2004) considera a posição da sílaba (intravocabular – quando o /s/ ocorre dentro de uma palavra, como em pasta; ou intervocabular – quando o /s/ se localiza no final de uma palavra e na fala se conecta com o início de outra, como em olhos azuis), a categoria gramatical (verbo, adjetivo, substantivo, outras), o contexto fonológico antecedente (quais vogais e consoantes antecedem o /s/), o contexto fonológico seguinte (quais vogais e consoantes sucedem o /s/), a tonicidade (a sílaba onde se encontra o /s/ é tônica ou atônica), e a sonoridade (o traço vozeado ou desvozeado da consoante seguinte). Para delimitação do corpus de pesquisa, Macedo (2004) extraiu 5.369 ocorrências de /s/ em final de sílaba de 12 inquéritos do tipo DID do Projeto NURC – Recife, aleatoriamente selecionados, totalizando aproximadamente 360 minutos de gravação. Das 5.369 ocorrências, por meio do pacote computacional VARBRUL, Macedo (2004) analisou pormenorizadamente 3.911, que correspondem às realizações alveolar e palatal do fonema em questão (o que corresponde ao reconhecimento de todas as possibilidades de produção que estão em variação). O Projeto NURC surgiu da iniciativa de documentar e descrever a norma objetiva do português culto falado no Brasil, tendo promovido o registro sonoro de exemplares da fala urbana, com vista à descrição de seus aspectos fonéticos e fonológicos, gramaticais e léxicos. As gravações compreendem três tipos de entrevistas: D2 – diálogo entre dois informantes, DID – diálogo entre informante e documentador e EF – elocução em atitude formal. Os informantes apresentam as seguintes características: formação universitária, nascidos na cidade sob estudo e filhos de falantes nativos do português. Dividem-se em três faixas etárias, a saber: I – de 25 a 35 anos, II – de 36 a 55 anos e III – de mais de 56 anos. No Brasil, foram gravadas entrevistas em cinco capitais, a saber: São Paulo, Rio de Janeiro, Porto Alegre, Salvador e Recife (IEL, UNICAMP, 2013-2019. FONTE: <http://www3.iel.unicamp.br/cedae/noticia.php?view=details&article=203>. Acesso em: 28 jul. 2019. NOTA UNIDADE 2 | ESTUDANDO AS VARIEDADES E OS CONTATOS LINGUÍSTICOS 72 A seguir, você conseguirá visualizar como ocorreu a análise quantitativa e qualitativa da realização do /s/ em final de sílaba, levando em consideração a variável linguística das categorias gramaticais: Lembre-se de que a variável linguística significa que há algo interno à própria língua que favorece a variação. NOTA QUADRO 1 – CATEGORIA GRAMATICAL FONTE: Macedo (2004, p. 58) FATOR APLIC./TOTAL FREQUÊNCIA Verbo 479/804 60% Adjetivo 265/462 57% Substantivo 1.009/1.961 51% Outra 687/2.142 32% Nessa análise, identifica-se que “a categoria gramatical que mais favorece a palatização é o verbo” (MACEDO, 2004, p. 58). Seguidamente, a autora procura relacionar os dados da categoria linguística com as variáveis sociais da pesquisa, afirmando que: “após analisarmos uma a uma, todas as variáveis em estudo, constatamos que cinco foram as variáveis selecionadas pelo programa computacional como estatisticamente relevantes para a produção da palatal” (MACEDO, 2004, p. 60), que foram de sexo; contexto fonológico seguinte; traço de sonoridade do segmento seguinte; faixa etária; posição da sílaba. No gráfico a seguir, a autora cruza as variáveis sociais, que são as de maior peso no tocante à realização palatal: TÓPICO 1 | SOCIOLINGUÍSTICA VARIACIONISTA 73 GRÁFICO 1 – PRODUÇÃO PALATAL EM POSIÇÃO DE CODA: SEXO X FAIXA ETÁRIA FONTE: Macedo (2004, p. 61) Conforme podemos observar no gráfico anterior, a produção palatal atinge percentuais altíssimos no sexo feminino, chegando a 99% na segunda faixa etária, também é na segunda faixa etária masculina que podemos verificaro mais elevado índice percentual, 66% (MACEDO, 2004, p. 61). Observe, acadêmico, que os condicionadores sociais (sexo e faixa etária) estão atuando nessa variação específica. Assim, a realização de uma ou outra variante parece estar condicionada por esses fatores, quando se olha em uma perspectiva externa à língua. Numa rápida análise, podemos perceber uma diferença de comportamento na produção palatal entre homens e mulheres distribuídos nas respectivas faixas etárias. Entre as mulheres, o índice mais baixo de produção é na I faixa e o mais alto, como já dissemos, na II faixa, estando a I e II faixas praticamente no mesmo patamar, havendo um pequeno favorecimento também para a II faixa (MACEDO, 2004, p. 61). Além do trabalho de Macedo (2004), que utilizamos para exemplificar a você como ocorre uma pesquisa à luz da teoria da variação, existem outros estudos dessa natureza sobre a fala e a escrita, abrangendo fenômenos morfológicos, sintáticos, fonético-fonológicos, discursivo-pragmáticos. Não deixe de conferir mais sobre essas pesquisas, que investigam não só a variação e a mudança, mas as atitudes e as crenças linguísticas relacionadas à variação linguística. Fique conosco para ler mais sobre a avaliação acerca dos traços linguísticos. UNIDADE 2 | ESTUDANDO AS VARIEDADES E OS CONTATOS LINGUÍSTICOS 74 2.2 AS DIMENSÕES SOCIAIS DA VARIAÇÃO LINGUÍSTICA: TRAÇOS DESCONTÍNUOS E GRADUAIS Como vimos até agora, a pesquisa sociolinguística contribui para pensarmos na heterogeneidade da língua condicionada a fatores sociais. Também vimos que a diversificação social, além de constituir fatores condicionantes para a variação linguística, agrega um conjunto de valores socioculturais às variantes de uma língua, o que pode ser investigado especialmente a partir do problema da avaliação proposto por Weinreich, Labov e Herzog (2006). Tomando como base a teoria da variação, Bagno (2007) identifica que as variedades linguísticas podem ser representadas a partir de um contínuo. De um lado desse contínuo, temos falares que evidenciam maior renda econômica, maior escolaridade e maior contato com o espaço urbano, avaliados, consequentemente, com maior prestígio social. Do outro lado, contudo, os falares com menor renda, menor escolaridade e maior contato com o espaço rural, são avaliados socialmente com maior estigma. FIGURA 2 – CONTÍNUO DOS FALARES DO PORTUGUÊS BRASILEIRO FONTE: Bagno (2007, p. 77) - renda - escolaridade + rural + renda + escolaridade + urbano + ES TI G M A + PR ESTÍG IO Conforme observa Bagno (2007), a avaliação atribuída às variedades linguísticas é essencialmente social, isto é, os traços linguísticos característicos de classes menos favorecidas social e economicamente (menor escolaridade, menor renda, maior contato com zonas rurais) são avaliados negativamente. O autor procura destacar que “não é propriamente a língua que está sendo avaliada, mas, sim, a pessoa que está usando a língua daquele modo” (BAGNO, 2007, p. 77, grifos nossos). Na nossa fala, portanto, podemos encontrar traços linguísticos característicos de variedades mais estigmatizadas e de variedades mais prestigiadas. A esses traços, os sociolinguistas Bagno (2007) e Bortoni-Ricardo (2004) têm atribuído a denominação de traços graduais e traços descontínuos. TÓPICO 1 | SOCIOLINGUÍSTICA VARIACIONISTA 75 Traços graduais são aqueles comuns aos falares de praticamente todos os brasileiros; e traços descontínuos são aqueles que estão presentes principalmente no contínuo de menor renda, menor escolaridade, de origem mais rural (BAGNO 2007; BORTONI-RICARDO, 2004). IMPORTANT E Para que essas ideias fiquem mais claras, vamos ler o texto “O limoeiro”, de autoria do cartunista brasileiro Maurício de Sousa, cujo conteúdo contempla características da fala de Chico Bento, personagem de origem rural, do interior de São Paulo. Durante sua leitura, preste especial atenção nas palavras destacadas em negrito. O Limoeiro Maurício de Sousa Chico Bento: — Vixi! Como você cresceu! Inté parece qui foi onte qui prantei esse limoero! Agora, já ta cheio di gaio! Quase da minha artura! Como o tempo passa, né? Uns tempo atrais, ocê era deste tamanhico! Fiz um buraquinho i ponhei ocê inda mudinha dentro! Protegi dos vento, do sor, das geada... i nunca dexei fartá água! Imagina se eu ia dexá ocê passa sede! Hoje você ta desse tamanhão! Quero vê o dia im qui ocê tivé mais grande qui eu! Cum uns gaio cumprido cheio di limão i umas foia bem larga, pra dá sombra pra quem tivé dibaxo! Aí, num vô percisá mais mi precupá c’ocê, né limoero? Pruque aí ocê vai tá bem forte! Vai sabê si protegê do vento do sor i da geada, sozinho! I suas raiz vão tá tão cumprida qui ocê vai podê buscá água por sua conta! Ocê vai sê dono doce mesmo! Sabe, limoero... Tava pensando... Acho que dispois, vai sê eu qui vô percisá docê! Isso é... Quando eu ficá mais véio! Craro! Cum uns limão tão bão qui ocê tem... i a sombra qui ocê dá, pode mi protegê inté dos pingo di chuva! Ocê vai fazê isso, limoeiro? Cuidá di mim também? Num importa! O importante é qui eu prantei ocê! I é ansim qui eu gosto! Do jeito qui ocê é. Pai do Chico Bento para a Mãe do Chico Bento: — Muié... tem reparado como nosso fio cresceu? FONTE: SOUSA, M. de. O limoeiro. Chico Bento, nº 354. In: BORTONI-RICARDO, S. M. Educação em língua materna: a sociolinguística na sala de aula. São Paulo: Parábola Editorial, 2004, p. 45. UNIDADE 2 | ESTUDANDO AS VARIEDADES E OS CONTATOS LINGUÍSTICOS 76 Você conseguiu perceber que, dentre as palavras destacadas, algumas delas recebem maior rejeição que outras? No discurso direto da personagem Chico Bento, Maurício de Sousa procurou incluir marcas características da fala rural do interior de São Paulo, a fim de dar vivacidade ao texto. No entanto, apesar de a fala ser caracterizadamente rural, nela encontramos tanto traços descontínuos quanto traços graduais. No quadro a seguir, acompanharemos a explicação de cada palavra destacada que caracteriza um traço descontínuo: QUADRO 2 – TRAÇOS DESCONTÍNUOS EM “O LIMOEIRO” Palavra Explicação INTÉ É uma forma arcaica da preposição até. Esse arcaísmo se conservou no polo rural e praticamente desapareceu dos falares urbanos; por isso foi considerado traço descontínuo. Observe que muitas formas encontradas hoje no polo rural são arcaísmos que se preservaram e podem ser encontrados em obras literárias antigas, como Os Lusíadas, poema que foi escrito pelo português Luís Vaz de Camões, para celebrar as descobertas marítimas de seus patrícios, e publicado em 1572 (BORTONI-RICARDO, 2004, p. 54). PRANTEI A troca de /l/ por /r/ nos grupos consonânticos, como em bloco/broco, problema/ probrema/pobrema é encontrada em falares rurais e rurbanos e, às vezes, até em falares urbanos. Preferimos classificar prantei como um traço descontínuo, considerando que esse fenômeno é muito estigmatizado na cultura urbana (BORTONI-RICARDO, 2004, p. 54). O falar rurbano é aquele intermediário, situado entre o caracterizado rural e urbano. ARTURA A troca de /l/ pós-vocálico por /r/ é fenômeno típico dos falares rurais igualmente avaliado muito negativamente nas cidades. É, portanto, um traço descontínuo (BORTONI-RICARDO, 2004, p. 55). PONHEI O verbo pôr é irregular e no pretérito perfeito é conjugado assim: pus, puseste, pôs, pusemos, pusestes, puseram. Nos falares rurais, porém, o pretérito perfeito é formado em analogia com os verbos regulares (cantei/ casei/ falei etc.), usando-se, como base, a forma da primeira pessoa do presente (ponho). A forma ponhei é, portanto, uma regularização que segue um processo de analogia. Observe que formações analógicas como essa são muito comuns na linguagem de crianças pequenas, que dizem coisas como: “eu descei”, “já chegui” etc., mas a variante ponhei é uma forma estigmatizada nas comunidades urbanas e tem o mesmo caráter de um estereótipo dos falares rurais. Por isso, nós os catalogamos como traço descontínuo(BORTONI- RICARDO, 2004, p. 55-56). SOR É variante da palavra sol em que o /l/ pós-vocálico é realizado como /r/. É a mesma regra fonológica que vimos em artura. A flutuação entre /r/ e /l/ pós-vocálico é própria das comunidades situadas no polo rural, onde também podemos ouvir galfo/garfo; calvão/carvão (BORTONI-RICARDO, 2004, p. 56). MUIÉ Nesta variante de mulher, típica do polo rural do contínuo, temos a aplicação de duas regras: a vocalização da consoante lateral palatal /lh/ e a perda do /r/ final. A primeira regra tem caráter descontínuo e pode ser observada em /filho/ > fio/; / palha > paia/; /trabalha > trabaia/. A perda do /r/ final é um traço gradual. Observe que essa perda é mais frequente nos infinitivos verbais, mas também ocorre em substantivos como mulher; colher e suor ou em adjetivos como maior, melhor etc. (BORTONI-RICARDO, 2004, p. 58). TÓPICO 1 | SOCIOLINGUÍSTICA VARIACIONISTA 77 PERCISÁ Nessa palavra, vemos que o fonema /r/ alterou sua posição no interior da sílaba: /precisar/ > /percisá/. Essa regra, que é conhecida como metátese, é muito comum nos falares rurais. Alguns exemplos: “tauba” (< tábua), “partelera” (< prateleira), “preguntar” (< perguntar), “vrido” (< vidro). [...] Na evolução do português arcaico para o português moderno, ocorreram muitos casos de metátese. Exemplos: semper (latim) > sempre; desvariar > desvairar; depredar > depedrar (BORTONI- RICARDO, 2004, p. 57-58). DISPOIS É uma forma arcaica de depois que ainda se conserva nos falares rurais. A palavra depois se formou da junção de três preposições latinas: de + ex + post, e isso explica a presença do “s” na forma arcaica (e rural) despois/dispois (BORTONI-RICARDO, 2004, p. 58). FONTE: Bortoni-Ricardo (2004, p. 54-58) Bortoni-Ricardo (2004) explica que algumas variantes presentes nessas palavras destacadas são típicas dos falares situados no polo rural e que, conforme nos aproximamos do contexto urbano, essas variantes vão desaparecendo. “Dizemos, então, que esses traços têm uma distribuição descontínua porque seu uso é “descontinuado” nas áreas urbanas” (BORTONI-RICARDO, 2004, p. 53, grifos nossos). Bagno (2007), por sua vez, esclarece que a rejeição às variedades mais estigmatizadas, que apresentam traços descontínuos, é reflexo direto da exclusão e injustiça da distribuição dos bens sociais, e não especificamente pela estrutura linguística. Como você deve ter reparado no texto de Maurício de Sousa, ainda há outros traços que estão presentes na fala de Chico Bento que não discutimos. Esses traços são aqueles que se situam na fala de todos os brasileiros e, por isso mesmo, “se distribuem ao longo de todo o contínuo. Esses traços, ao contrário dos outros, têm uma distribuição gradual”, e, portanto, os chamamos de traços graduais (BORTONI-RICARDO, 2004, p. 53). Conforme a própria caracterização da fala de Chico Bento revela, os traços linguísticos graduais também fazem parte do repertório dos falantes das variedades mais estigmatizadas, e não somente daquelas que recebem certo prestígio social. No Quadro 3, você poderá acompanhar a explicação de cada palavra destacada no texto que caracteriza um traço gradual. Conforme pontua Bortoni- Ricardo (2004), talvez você não vá concordar totalmente com essa classificação, mas o importante é ter fundamentos para justificar e refletir sobre esses traços. UNIDADE 2 | ESTUDANDO AS VARIEDADES E OS CONTATOS LINGUÍSTICOS 78 QUADRO 3 – TRAÇOS GRADUAIS EM “O LIMOEIRO” Palavra Explicação LIMOERO O sufixo –eiro é pronunciado quase sempre “êro”. Os ditongos ei e ai seguidos dos fonemas /r/, /n/, /j/ e /x/ tendem a ser reduzidos, tornando-se vogais simples /e/ e /a/. Exemplos: cade(i)ra, ca(i)xa, be(i)jo, ribe(i)ra etc. Todos esses são traços graduais (BORTONI-RICARDO, 2004, p. 54). OCÊ O pronome de tratamento você deriva do tratamento antigo “Vossa Mercê”, que obedeceu ao seguinte percurso: vossa mercê > vosmecê > você > (o)cê. As formas “ocê” e “cê” são muito usadas em estilos não monitorados por todos os brasileiros (BORTONI-RICARDO, 2004, p. 55). DOS VENTO Temos um sintagma ou frase nominal, cujo núcleo é um substantivo (vento). Os sintagmas nominais são formados de um núcleo nominal e de outros elementos chamados determinantes, que podem ser artigos definidos (o, a, os, as), artigos indefinidos (um, uma, uns, umas) ou pronomes (demonstrativos, indefinidos, possessivos etc.). Podem ocorrer também adjetivos no sintagma nominal. No português padrão, principalmente na modalidade escrita, os determinantes e os adjetivos concordam em gênero e número com o núcleo do sintagma (ex.: todos aqueles cidadãos corruptos serão processados). [...] Mas no português oral, nos estilos não monitorados, há uma tendência a evitar a redundância, flexionando- se só o primeiro elemento do sintagma, como ocorreu no diálogo de Chico Bento que vimos (BORTONI-RICARDO, 2004, p. 58). DEXEI Nesta forma verbal, o primeiro ditongo /ei/ foi reduzido a /e/, como em limoero, que já vimos. Observe que em dexei o ditongo que já está na sílaba átona pretônica foi reduzido, mas o mesmo ditongo que está na sílaba tônica final se preservou. De fato, os segmentos fonológicos das sílabas tônicas tendem a ser mais resistentes a mudanças fonológicas. No entanto, o ditongo /ou/ reduz-se a /o/ tanto em sílabas átonas não finais, quanto em sílabas tônicas não finais e finais. Veja: outro > otro; outono > otono; entrou > entrô. Se compararmos então o que está acontecendo com o ditongo /ei/ e o ditongo /ou/, concluiremos que a regra de redução do ditongo /ou/ se aplica a uma gama maior de ambiente do que a regra de redução do ditongo /ei/. Isso é um indicador para nós de que a primeira já está mais avançada no processo de evolução da língua que a segunda (BORTONI-RICARDO, 2004, p. 56). TIVÉ Esta forma verbal ocorreu no seguinte enunciado: “Quero vê o dia im qui ocê tivé mais grande qui eu”. Há muitos comentários a fazer sobre esta fala do Chico Bento, começando pelo tivé. Nesse contexto, a forma tivé é variante de estiver, que é futuro do subjuntivo do verbo estar, que perdeu a sílaba inicial es- e o fonema /r/ final. A forma tivé também pode ser variante de tiver, que é futuro do subjuntivo do verbo ter. [...] Classificamos tivé como um traço gradual porque a perda – ou aférese, que é a supressão de fonema(s) – da sílaba inicial es- no verbo estar é um traço generalizado no português brasileiro, especialmente nos estilos não monitorados. Igualmente a perda do /r/ final nos infinitivos verbais e nas formas do futuro do subjuntivo é um traço gradual (BORTONI-RICARDO, 2004, p. 56). DIBAXO Nessa variante do advérbio debaixo, foram aplicadas duas regras [...]: a redução de vogal pretônica /e/ > /i/ e do ditongo /ai/ > /a/. Ambas as regras têm caráter gradual (BORTONI-RICARDO, 2004, p. 57). FONTE: Bortoni-Ricardo (2004, p. 54-58) TÓPICO 1 | SOCIOLINGUÍSTICA VARIACIONISTA 79 Você consegue identificar algum desses traços na sua fala ou na fala de alguém que você conheça? É importante destacarmos novamente que o fato de esses traços constituírem variedades linguísticas de falantes do português brasileiro não significa que haja erros nessas variedades, uma vez que, com o apoio da sociolinguística, observamos que os traços representam apenas diferenças no uso da língua. O fato de existir estigma ou prestígio sobre eles implica apenas no nosso reconhecimento de que se há variação linguística, também há avaliação sobre as variantes. Com relação à perspectiva de erro, vale relembrarmos que, quando estamos pensando nos contextos de uso da língua, não tratamos as variantes como formas que possam ser consideradas erradas. As diferentes formas de usar a língua, de fato, não são erros, afinal, fazem parte da variação e mudança linguísticas. Contudo, conforme discutimos no Tópico 3 da Unidade 1, em um contexto de ensino formal, é dever da escola apresentar aos alunos as diferentes variedades, num processo de identificaçãoe conscientização (BORTONI-RICARDO, 2004), discutindo, inclusive, o preconceito linguístico contido naquelas variedades mais estigmatizadas. No quadro a seguir, elencamos 15 principais traços descontínuos do português brasileiro: QUADRO 4 – TRAÇOS DESCONTÍNUOS DO PORTUGUÊS BRASILEIRO TRAÇOS DESCONTÍNUOS COMENTÁRIO 1. Queda da vogal átona postônica em palavras proparoxítonas: córrego > corgo; pássaro > passo; bêbado > bebo; árvore > arvre etc. Prosseguimento de uma tendência muito antiga na língua portuguesa, que transformou em paroxítonas um sem- número de proparoxítonas latinas: tégula > telha; apícula > abelha; límpidu > limpo etc. 2. Não nasal ização de s í labas postônicas: home ~ homem; ontem ~ onte; fizeram ~ fizero etc. Outra tendência antiga na história da língua; até hoje os dicionários registram pares como ABDÔMEN/ ABDOME, REGÍMEN/REGIME, CERTÂMEN/CERTAME, VELÂMEN/VELAME, CERÚMEN/CERUME, em que a variante sem nasalização final é mais amplamente usada. Outras muitas palavras, como LUME, EXAME, NOME, CIÚME, provém de palavras latinas em que existia um –N final postônico. 3. Monotongação de ditongos átonos crescentes em posição final: notícia > notiça; paciência > paciença; imundície > imumdice etc. A história da língua apresenta muitos exemplos da mesma tendência, que as variedades estigmatizadas seguem mais coerentemente: istitia > justiça; pigritia > preguiça; factitiu > feitiço; pretiu > preço; criantia > criança etc. 4. Rotacismo: troca de L por R em encontros consonantais ou em final de sílaba: placa > praca; planta > pranta; talco > tarco; futebol > futebor etc. O rotacismo nos encontros consonantais ocorreu na formação do português. Inúmeras palavras que hoje têm um R no encontro consonantal tinham um L na palavra de origem. 5. Pronúncia [y] da consoante palatal [ʎ], escrita LH: telha > têia; abelha > abêia; velha > véia etc. Mudança que também aconteceu em galego, francês e na maioria das variedades do espanhol. UNIDADE 2 | ESTUDANDO AS VARIEDADES E OS CONTATOS LINGUÍSTICOS 80 6. Eliminação do plural redundante, marcado em geral só nos determinantes: os menino, as casa, aquelas coisa toda etc. Também ocorre nos estilos falados menos monitorados dos falantes urbanos escolarizados, em situação distensa. 7. Redução da morfologia verbal a duas formas: [eu] canto e [tu/você/ele/nós/a gente/vocês/eles] canta; ou a três: [eu] canto, [tu/você/ele/vocês/eles] canta; [nós] cantamo. Também ocorre nos estilos falados menos monitorados dos falantes urbanos escolarizados, em situação distensa. 8. Uso dos pronomes do caso reto em função de complemento: ABRAÇA EU; LEVA NÓS TAMBÉM; ELA GOSTA MUITO DE TU; EU CONHECO ELE etc. O pronome ELE (e flexões) também é usado pelos falantes urbanos escolarizados em função de objeto. Os outros aparecem com menor frequência, e sobretudo com construções sintáticas mais complexas: VOCÊ NUNCA TINHA VISTO EU E O PEDRO JUNTOS ANTES? 9. Uso do pronome oblíquo MIM como sujeito de infinitivo depois da preposição PRA ( < PARA): É COISA DEMAIS PRA MIM FAZER! Essa construção se torna cada vez mais frequente na fala de cidadãos altamente escolarizados das zonas urbanas, particularmente na cidade e no estado de São Paulo. 10. Uso da palavra MAIS como preposição equivalente a COM: O PEDRO TEVE AQUI MAIS A MARIA. Também usada em algumas variedades urbanas regionais. 11. Formação analógica do verbo PONHAR a partir da primeira pessoa PONHO: EU JÁ PONHEI A MESA DO JANTAR. Processos analógicos semelhantes também operam nas variedades urbanas. A maioria dos brasileiros, inclusive os mais letrados, pronuncia “vim” o infinitivo de VIR, muito provavelmente por influência analógica das formas conjugadas em que aparece a nasalidade: VENHO, VIM, VINHA etc. 12. Surgimento da preposição NE (pronunciada /ni/), deduzida das formas compostas: NO, NA, NUM, NISSO etc.: ELA MORA NE GOIÂNIA. Também ocorre em algumas variedades urbanas regionais. 13. Uso de advérbio de intensidade com formas superlativas: MAIS MIÓ, MAIS PIÓ, MUITO ÓTIMO etc. Recurso enfático, que também ocorre nas variedades urbanas de escolarizados quando dizem, por exemplo, ISSO VAI PIORAR AINDA MAIS, PODE FICAR AINDA MELHOR etc. 14. Léxico característico, variável de região para região: FRUITA, LUITA, OITUBRO, CUZINHA, DRUMI, PERCURÁ, DESPOIS, ANTOCE, A R R E S P O N D Ê , A L E M B R A R , DEREITO, MENHÃ, VOSMECÊ etc. A maioria desses vocábulos representam sobrevivências de fases anteriores da língua e podem ser encontrados na literatura medieval e clássica. 1 5 . A p r ó t e s e d e u m [ a ] e m algumas palavras: ATROPEÇÔ, ALEMBRANDU, AVOAR. A prótese de um [a] em algumas palavras (atropeçô, alembrandu, avoar) se refere ao processo de inserção do fonema nessas palavras, como resultado de um processo histórico de mudanças linguísticas internamente motivadas e regidas por leis fonéticas. FONTE: Bagno (2007, p. 144-146) TÓPICO 1 | SOCIOLINGUÍSTICA VARIACIONISTA 81 Vale destacarmos que muitas variações linguísticas são realizações das regras mais recorrentes na língua. A título de exemplo, pensemos no caso das paroxítonas, que são as palavras mais comuns na língua portuguesa. Por conta da regularidade da tonicidade das palavras, há essa tendência de tentarmos encaixar outras palavras nesse mesmo padrão tônico, especialmente palavras proparoxítonas, que seriam as exceções no português brasileiro. Nesse sentido, o primeiro traço descontínuo apresentado no quadro anterior é reflexo dessa regularidade linguística, na qual palavras proparoxítonas, como córrego, bêbado e árvore, podem variar para palavras paroxítonas, como corgo, bebo e arvre. Interessante pensar, prezado acadêmico, que as palavras estrangeiras, inclusive, quando são trazidas para a língua portuguesa, tendem a ser pronunciadas como paroxítonas (observe a tonicidade de delete, cheque, clique, enter...). Agora que você já conhece alguns traços descontínuos do português brasileiro, confira, no Quadro 5, os traços graduais: QUADRO 5 – TRAÇOS GRADUAIS DO PORTUGUÊS BRASILEIRO TRAÇOS GRADUAIS COMENTÁRIOS 1. Redução dos ditongos /ey/ a /e/ e /ay/ a /a/ diante de consoantes palatais ou da vibrante simples: BEIJO [ˈbeʒo]; CAIXA [ˈkaʃɐ]; CHEIRO [ˈʃeɾu] etc. A convenção ortográfica leva a pronúncias forçadas, artificiais, que não correspondem à realidade falada pela imensa maioria dos brasileiros de todas as regiões. Esse fenômeno interfere no processo de alfabetização, uma vez que a tendência do aprendiz é escrever a vogal simples e não o ditongo. Também é responsável por casos de hipercorreção, como as escritas CARANGUEIJO, BANDEIJA, PRAZEIROSO etc. 2. Redução de ditongo /ow/ a /o/ em todos os contextos: OURO [ˈoɾu]; CALOURO [kaˈloɾu]; AMOU [aˈmo] etc. A convenção ortográfica leva a pronúncias forçadas, artificiais, que não correspondem à realidade falada pela maioria dos brasileiros de todas as regiões. Esse fenômeno interfere no processo de alfabetização, uma vez que a tendência do aprendiz é escrever a vogal simples e não o ditongo. 3. Ditongação da vogal tônica final seguida de /s/ , resultando nas pronúncias: “pais” para PAZ, “mêis” para MÊS, puis para PUS etc. Essa ditongação é generalizada no português brasileiro, ocorrendo em quase todo o território nacional. Dela, resulta a dificuldade de distinguir, na escrita, a conjunção MAS do advérbio MAIS, uma vez que tendem a ser pronunciados exatamente da mesma forma. 4. Apagamento do /r/ em final de palavra, principalmente em final de verbos no infinitivo: CANTAR > CANTÁ; VENDER > VENDÊ; PROFESSOR > PROFESSÔ. O apagamento do /r/ nos infinitivos caracteriza o vernáculo de todos os brasileiros. Nas demais palavras, é mais frequente em determinadas variedades regionais. 5. Queda do –S final das formas verbais de 1ª pessoa do plural (NÓS): VAMO LÁ! NÓS COMPRAMO ISSO PRA VOCÊ. Caracteriza a fala rápida, distensa, informal. UNIDADE2 | ESTUDANDO AS VARIEDADES E OS CONTATOS LINGUÍSTICOS 82 6. Uso amplo de ONDE para se referir a espaço, tempo, situação etc., ou como organizador do fluxo discursivo: ESSA É UMA CRISE MUITO PERIGOSA, ONDE NÓS PRECISAMOS OLHAR PARA FRENTE EM BUSCA DE UMA SOLUÇÃO A norma padrão só admite o uso de ONDE com referência a “espaço físico”. 7. Uso indistinto de ONDE por AONDE e vice-versa: ONDE VOCÊ PENSA QUE VAI? AONDE VOCÊ PENSA QUE ESTÁ? Apesar desse uso indistinto estar registrado há séculos na língua, inclusive na melhor literatura, os puristas só admitem AONDE com verbos que indicam direção ou movimento: AONDE VOCÊ VAI? 8. Uso do verbo TER impessoal, com sentido de existência: JÁ TEM AÇÚCAR NESSE CAFÉ? QUANTAS PESSOAS TINHA POR LÁ? A tradição purista condena esse uso de TER, prescrevendo em seu lugar o verbo HAVER: JÁ HÁ AÇÚCAR NESSE CAFÉ? QUANTAS PESSOAS HAVIA POR LÁ? 9. Atribuição de gênero feminino a palavras tradicionalmente masculinas e vice-versa: A DÓ, O ALFACE, DUZENTAS GRAMAS etc. A norma padrão prescreve os gêneros tradicionais. FONTE: Bagno (2007, p. 147-156) Além dos traços graduais aqui apresentados, é possível identificar muitos outros. No entanto, para compreendermos sobre os aspectos da variação linguística, o que foi listado já é suficiente. Essa compreensão, prezado acadêmico, é importante para ser levada ao contexto da sala de aula, uma vez que a discussão sobre essas variações pode auxiliar seus futuros alunos a reconhecerem as regras que regem a norma padrão, partindo das regras que constituem a própria fala. Além disso, ao perceberem que não é possível, a ninguém, falar de acordo com o que traz a norma padrão o tempo inteiro, os alunos podem quebrar alguns estigmas e entenderem que todos variam o seu falar em alguma medida. No próximo tópico, introduziremos alguns conceitos relacionados à macrossociolinguística (ou sociologia da linguagem), como alternância de códigos, estratégias linguísticas, bilinguismo, entre outros, que, assim como o estudo da variação, permitem combatermos o mito do monolinguismo brasileiro. Antes disso, vamos realizar uma leitura complementar que poderá lhe direcionar a fazer uma pesquisa sociolinguística? Em seguida, confira as autoatividades para colocar em prática o que estudamos neste tópico! TÓPICO 1 | SOCIOLINGUÍSTICA VARIACIONISTA 83 LEITURA COMPLEMENTAR Na leitura complementar que apresentamos a você, acadêmico do curso de Letras, recortamos um trecho do artigo “Sociolinguística variacionista: pressupostos teórico-metodológicos e propostas de ensino”, escrito por Márluce Coan e Raquel Meister Ko, e publicado pelo periódico “Domínios da Lingu@gem”. Esse texto, de forma sucinta, retoma os pressupostos da teoria da variação linguística, especialmente com base nos postulados labovianos. PRESSUPOSTOS TEÓRICO-METODOLÓGICOS: ALGUMAS CONSIDERAÇÕES SOBRE VARIAÇÃO E MUDANÇA A Teoria da Variação e Mudança Linguística (também chamada Sociolinguística Quantitativa ou Laboviana) tem como objeto de estudo a variação e mudança da língua no contexto social da comunidade de fala. A língua é vista pelos sociolinguistas como dotada de “heterogeneidade sistemática”, fator importante na identificação de grupos e na demarcação de diferenças sociais na comunidade. O domínio de estruturas heterogêneas é parte da competência linguística dos indivíduos. Nesse sentido, a ausência de heterogeneidade estruturada na língua seria tida como disfuncional (WEINREICH; LABOV; HERZOG, 2006). A língua não é propriedade do indivíduo, mas da comunidade (é social). Entretanto, Labov discorda de Saussure, Chomsky e outros que insistem na homogeneidade necessária do objeto linguístico, que ignoram a heterogeneidade e que consideram a fala como caótica e desmotivada (FIGUEROA, 1996). Labov (2008) crê que o novo modo de fazer linguística é estudar empiricamente as comunidades de fala. Esse argumento pode ser acoplado à rejeição da psicologia individual como um modelo de referência para a linguística, bem como rejeição do idioleto ou gramática individual como o objeto da linguística (FIGUEROA, 1996). De acordo com Labov (2000), todos os sociolinguistas concordam que produções e interpretações de um falante não são o lugar primário da investigação linguística nem as unidades finais da análise, mas os componentes usados para construir modelos de nosso objeto primário de interesse, a comunidade de fala. A Sociolinguística que Labov propõe é aquela com o propósito de estudar a estrutura e a evolução da língua no contexto social da comunidade, cobrindo a área usualmente chamada de Linguística Geral, a qual lida com Fonologia, Morfologia, Sintaxe e Semântica (LABOV, 2008). Segundo Figueroa (1996), quando se diz que a Sociolinguística é o estudo da língua em seu contexto social, isso não deve ser mal-interpretado. A Sociolinguística laboviana não é uma teoria da fala, nem o estudo do uso da língua com o propósito exclusivo de descrevê- la, mas o estudo do uso da língua no sentido de verificar o que ela revela sobre a estrutura linguística (langue). Quando Labov fala em heterogeneidade, refere-se à variação, mas está interessado na variação que pode ser sistematicamente explicada. A variação sistemática é um caso de modos alternativos de dizer a mesma coisa, sendo esses UNIDADE 2 | ESTUDANDO AS VARIEDADES E OS CONTATOS LINGUÍSTICOS 84 modos portadores do mesmo significado referencial (LABOV, 2008). A linguística laboviana tornou-se sinônimo do estudo de variação e mudança linguísticas. Conforme Labov (1978), dois enunciados que se referem ao mesmo estado de coisas com o mesmo valor de verdade constituem-se como variantes de uma mesma variável (regra variável). Assumindo a perspectiva de que é impossível entender o desenvolvimento de variação e mudanças linguísticas fora da vida social da comunidade, já que pressões sociais estão continuamente operando sobre a linguagem, Labov se propõe, em seus trabalhos pioneiros, a correlacionar os padrões linguísticos variáveis a diferenças paralelas na estrutura social em que os falantes estão inseridos. De fato, investigando variáveis fonológicas, o autor constata uma forte correlação entre a estratificação social dos falantes e seus usos linguísticos diferenciados. Ampliando o escopo da regra variável para além dos limites da fonologia, Weiner e Labov (1977) estudam construções ativas e passivas do inglês, testando fatores externos (estilo, sexo, classe, etnia, idade) e fatores internos (status informacional, paralelismo estrutural), concluindo que os dois tipos de condicionamento podem ser independentes, uma vez que todos os grupos sociais tratam a alternância ativa/passiva da mesma maneira. A extensão do modelo variacionista para tratar fenômenos sintático-discursivos “abriu as portas à incorporação de hipóteses funcionalistas, no sentido de atribuir a motivações fora da estrutura da língua, decorrentes de necessidades comunicativo-funcionais, a origem da variação” (PAREDES, 1993, p. 885). Labov (2008) comenta que, se se quer dar uma contribuição significante no que se refere ao funcionamento da língua, o estudo dessa em seu contexto social não pode permanecer no campo da Fonologia. Note-se que mudanças fonológicas podem alterar a morfologia da língua; mudanças morfológicas podem alterar a sintaxe; mudanças sintáticas, o plano discursivo. Correlacionando variação e mudança, a Teoria da Variação e Mudança (WEINREICH; LABOV; HERZOG, 2006) rompe com a dicotomia sincronia/ diacronia (SAUSSURE, 1995) aproximando-as. “Afinal de contas, para que os sistemas mudem, urge que eles tenham sofrido algum tipo de variação” (TARALLO, 1994, p. 25). A conjunção entre sincronia e diacronia permite que o enfoque não seja o de mudanças abruptas ou etapas estáticas. Pode-se dizer que, “a partir de tais e tais características estruturais e de tais e tais condições de funcionamento, o sistema, quase que preditivamente, caminhou na direção X e não nadireção Y” (TARALLO, 1994, p. 26). Tendo sido evidenciada a variação num momento sincrônico, atual, por exemplo, volta-se ao passado para o encaixamento histórico das variantes, fechando o ciclo com a chegada novamente ao presente (TARALLO, 1994); desse modo, pode-se observar (ou não) a manifestação da doutrina do uniformitarismo: alguns mecanismos que operaram para produzir mudanças no passado podem estar operando nas mudanças correntes (LABOV, 2008). Se olhar o passado pode fornecer indícios para explicar o presente, é possível olhar o presente para TÓPICO 1 | SOCIOLINGUÍSTICA VARIACIONISTA 85 projetar o futuro, ou seja, verificar uma mudança em tempo aparente. Conforme pontua Labov (1994), esse tipo de mudança refere-se à predominância de uma das variantes nos grupos mais jovens. As observações em tempo aparente conectadas às observações em tempo real permitem que se verifique a mudança em progresso. A análise da mudança em tempo aparente é apenas um prognóstico, uma projeção que o pesquisador se arrisca a fazer, portanto, constitui-se como uma hipótese. A articulação entre presente e passado permite evidenciar estágios variáveis e mudanças que aconteceram (tempo real) e que estão em curso (tempo aparente). Convém, contudo, deixar claro que nem toda variabilidade na estrutura linguística envolve mudança, mas toda mudança envolve, obrigatoriamente, variabilidade (WEINREICH; LABOV; HERZOG, 2006). Via variação, pode-se captar a direção e algumas generalizações acerca da mudança. De acordo com Faraco (2005), a mudança não se refere à troca direta e abrupta de um elemento por outro, mas envolve sempre uma fase de concorrência. Da variação entre duas formas para a codificação de uma mesma função/significação, uma pode se fixar na função tornando a outra obsoleta, embora nem sempre seja esse o caso. Para explicar a mudança, é preciso dizer o que aconteceu (fatos) e por quê (princípios). A teoria da mudança, segundo Lass (1980), teria de incluir a variabilidade como um axioma, visto ser empírica a variabilidade. Pelo que supõe Lass, o estudo da variação pode constituir-se em caminho para explicar o fenômeno da mudança linguística. FONTE: COAN, M.; KO, R. M. Sociolinguística variacionista: pressupostos teóricometodológicos e propostas de ensino. Domínios da Lingu@agem, v. 4, n. 2, 2010, p. 175-178. 86 RESUMO DO TÓPICO 1 Neste tópico, você aprendeu que: • A sociolinguística é dividida em duas perspectivas diferentes de estudo: a macrossociolinguística e a microssociolinguística. Assim, trabalhamos com a sociolinguística variacionista, situada na microssociolinguística. • A mudança linguística ocorre em três estágios: na origem (quando inicia dado fenômeno variável), na propagação (como a nova variante é introduzida a diferentes contextos sociais e comunidades) e no término (quando a mudança linguística é completada). • Toda mudança linguística implica variação, mas nem toda variação resulta em uma mudança linguística. • Weinreich, Labov e Herzog (2006) propuseram cinco problemas e princípios empíricos para uma teoria da variação e mudança linguística: I. Fatores condicionantes; II. Encaixamento da variação; III. Avaliação das mudanças; IV. Transição; V. Implementação. • O pesquisador sociolinguista identifica fatores sociais que implicam no fenômeno variável, que são os condicionantes sociais e linguísticos. • Reconhecer que a língua varia não significa dizer que ela é caótica, pois, conforme os estudos sociolinguísticos têm comprovado, mesmo na variação existe regularidade e sistematicidade. • A sociolinguística contribui para a compreensão de que a variação é constitutiva da língua e a mudança linguística não ocorre de uma hora para outra, mas é gradual. Nesse sentido, o sociolinguista reconhece a variação como a existência de estabilidade entre variantes e mudança em curso como o aumento de uso significativo de uma das variantes que competem no fenômeno variável. • A metodologia de pesquisa na sociolinguística variacionista parte da necessidade de utilizar como corpus de análise dados de fala reais, tratados qualitativa e quantitativamente, a partir da noção de peso relativo. • A pesquisa na sociolinguística variacionista envolve algumas etapas, a saber: I. seleção do fenômeno linguístico variável; II. delimitação da comunidade de fala; III. reconhecimento de todas as possibilidades de produção que estão em variação; IV. levantamento de hipóteses sobre as variáveis condicionadoras (linguísticas e sociais). • A avaliação das variantes linguísticas é social e tem sido observada a partir dos traços linguísticos graduais e descontínuos. 87 • Os traços graduais são comuns aos falares de praticamente todos os brasileiros e os traços descontínuos estão presentes principalmente no contínuo de menor renda, menor escolaridade, de origem mais rural. • Os principais traços descontínuos elencados nos nossos estudos foram: queda da vogal átona postônica em palavras proparoxítonas (árvore > arvre); não nasalização de sílabas postônicas (home ~ homem); monotongação de ditongos átonos crescentes em posição final (notícia > notiça); rotacismo (placa > praca); pronúncia [y] da consoante palatal [ʎ], escrita LH (telha > têia); eliminação do plural redundante (os menino); a prótese de um [a] em algumas palavras: ATROPEÇÔ, ALEMBRANDU, AVOAR, entre outros. • Os principais traços graduais elencados nos nossos estudos foram: redução dos ditongos /ey/ a /e/ e /ay/ a /a/ (BEIJO [ˈbeʒo], CAIXA [ˈkaʃɐ]); redução de ditongo /ow/ a /o/ (OURO [ˈoɾu]); ditongação da vogal tônica final seguida de /s/ (“pais” para PAZ); apagamento do /r/ em final de palavra (CANTAR > CANTÁ); queda do –S final das formas verbais de 1ª pessoa do plural – NÓS - (VAMO LÁ); entre outros. 88 AUTOATIVIDADE 1 A sociolinguística é uma área da linguística preocupada com os estudos da linguagem sob um aspecto social. Ela pode ser dividida em duas perspectivas diferentes de estudo: a macrossociolinguística e a microssociolinguística. Assinale a alternativa CORRETA que caracteriza um estudo da microssociolinguística: a) ( ) Sociologia da linguagem. b) ( ) Alternância de código. c) ( ) Sociolinguística variacionista. d) ( ) Política linguística. e) ( ) Multilinguismo. 2 A mudança linguística ocorre em três estágios: na origem (quando inicia dado fenômeno variável), na propagação (como a nova variante é introduzida a diferentes contextos sociais e comunidades) e no término (quando a mudança linguística é completada). Considerando o exposto, analise a tabela a seguir, que apresenta dois fenômenos variáveis para duas localidades da região Sul do Brasil: USO DE TU VS. VOCÊ E CONCORDÂNCIA VERBAL COM TU (ADAPTADA DE LOREGIAN-PENKAL, 2004, p. 133; 167) Localidades Uso de tu vs. você Concordância verbal com o pronome tu Percentual Peso Relativo Percentual Peso Relativo Florianópolis/SC 76% 0,32 43% 0,85 Ribeirão da Ilha/SC 96% 0,78 60% 0,91 Porto Alegre/RS 93% 0,61 7% 0,35 Região Sul (sem Curitiba) 87% 40% FONTE: Görski e Coelho (2012, p. 146) Agora, a partir da análise feita e dos estudos realizados, classifique V para as sentenças verdadeiras e F para as falsas: ( ) O pronome de segunda pessoa do singular é um fenômeno variável que se realiza por meio de duas variantes (tu e você), o que revela o término de uma mudança linguística. ( ) A variante TU está encaixada na Região Sul (Florianópolis, Ribeirão da Ilha/ SC e Porto Alegre /RS), sendo a mais usada para expressar segunda pessoa do singular, embora haja variação para VOCÊ em 13% das ocorrências. 89 ( ) A variável de concordância verbal com o pronome TU tem como variantes a presença de marca de concordância (tu vais, tu foste...) e ausência de marca de concordância (ex.: tu vai, tu foi). ( ) A Região Sul (Florianópolis, Ribeirão da Ilha/SC e Porto Alegre /RS) parece avaliar negativamente a ausência de marca de concordância verbal com o pronome TU, impedindo umamudança linguística de se completar. 3 Explique e exemplifique a afirmação “toda mudança linguística implica variação, mas nem toda variação resulta em uma mudança linguística”. 4 Ao longo deste tópico, você conheceu os cinco problemas e princípios empíricos para uma teoria da variação e mudança linguística: I. Fatores condicionantes; II. Encaixamento da variação; III. Avaliação das mudanças; IV. Transição; V. Implementação. Relacione as colunas, indicando cada problema com sua devida explicação: I- Fatores condicionantes II- Encaixamento da variação III- Avaliação das mudanças IV- Transição V- Implementação ( ) Estuda a atitude social quanto à variante para a determinação de uma mudança linguística. ( ) Busca identificar os fatores linguísticos e sociais como condicionantes para a variação e mudança linguística. ( ) Analisa por que uma mudança linguística em certa estrutura ocorre em dado momento, mas em outra língua não. ( ) A partir dos condicionantes, descreve a variação e a mudança linguística em uma comunidade de fala. ( ) Observa e descreve uma mudança linguística em curso. 5 A metodologia de pesquisa na sociolinguística variacionista parte da necessidade de utilizar como corpus de análise de dados de fala reais, tratados qualitativa e quantitativamente. Nesta questão, gostaríamos de propor a você a elaboração de quatro etapas de pesquisa, que você poderá desenvolver com o acompanhamento de seu professor. Defina: I- Seleção de um fenômeno linguístico variável. II- Delimitação da comunidade de fala. III- Reconhecimento de todas as possibilidades de produção que estão em variação. IV- Levantamento de hipóteses sobre as variáveis condicionadoras (linguísticas e sociais). 6 A avaliação das variantes linguísticas é social e tem sido observada a partir dos traços linguísticos graduais e descontínuos. Assinale a alternativa CORRETA que apresenta um grupo de traços descontínuos: 90 a) ( ) Praca (placa); Escrevê (escrever). b) ( ) Pexe (peixe); pobrema (problema). c) ( ) Home (homem); Deiz (dez). d) ( ) Arvre (árvore); Têia (telha). e) ( ) Os Menino (os meninos); Oro (ouro). 7 (ENADE, 2014) Leia o texto a seguir. Restos Minha Nossa Senhora do Bom Parto! O caminhão do lixo já deve ter passado! Eu juro, seu poliça, foi nessa lixeira aqui! Nessa mesminha! Eu vim catar verdura, sempre acho umas tomate, umas cenoura, uns pimentão por aqui. Tudo bonzinho, é só lavar e cortar os pedaço podre, que dá pra comer… Aí quando eu puxei umas folha de alface, levei o maior susto. Quase desmaiei, até. Eu, uma mulher assim fornida que nem o seu poliça tá vendo, imagina: fiquei de pernas bamba. Me deu até tontura. Acho que também por causa do fedor… Uma carniça que só o senhor cheirando pra saber. Mas eu juro por tudo que é mais sagrado! Tinha sim um anjinho morto nessa lixeira! Nessa aqui! Coitadinho… Deve ter se esgoelado de tanto chorar. A gente via pela sua carinha de sofrimento. Ele tava com a boquinha aberta, cheinha de tapuru. Eu nem reparei se era menino ou menina, porque eu fiquei morrendo de pena… E de medo, também… Os olho… É do que mais me alembro… Esbugalhado, mas com a bola preta virada pra dentro, sabe? Ai! Soltei um berro e saí correndo.” FONTE: SERAFIM, L. Restos. In: SOUTO, A. Variação linguística e texto literário: perspectivas para o ensino. Cadernos do CNLF, v. XIV, n. 4, t. 4, 2010, p. 3310 (com adaptações). Considerando a variedade linguística utilizada pela personagem do texto, analise as afirmativas a seguir: I- A redução do verbo “estar”, como em “tá” e “tava”, é uma característica evidenciada na fala de sujeitos escolarizados e não escolarizados. II- A eliminação da marca de plural, como em “os pedaço” e “pernas bamba”, é um traço das variedades linguísticas populares faladas e escritas. III- A prótese do fonema /a/ em “alembro” é uma característica associada à história da língua portuguesa. É correto o que se afirma em: a) ( ) I, apenas. b) ( ) III, apenas. c) ( ) I e II, apenas. d) ( ) II e III, apenas. e) ( ) I, II e III. 91 8 (ENADE, 2011) O caso é caracterizado na língua como rotacismo, ou seja, um processo de mudança em que se emprega o /r/ no lugar de /l/ nos vocábulos. Embora seja inadequado à norma padrão da língua, esse processo é bastante frequente em variedades de menor prestígio social. Acerca desse tema, avalie as informações a seguir: I- As diferenças entre variedades da língua, como a exemplificada pelo rotacismo, não devem ser consideradas mero fator de preconceito linguístico; dado que este é um dos fatores que favorecem a unidade linguística de uma comunidade. II- O rotacismo é bem aceito por todos os falantes e é empregado de forma ampla nos diversos grupos sociais, sendo uma das mudanças que se está generalizando no português brasileiro. III- O processo de rotacismo é decorrente de diferenças sociais recentes, que estão permitindo o surgimento de dialetos paralelos ao português padrão e utilizados por falantes em ascensão social. IV- O processo de rotacismo não é novo na língua e já ocorria no período de passagem do latim vulgar para o português, como no caso de /plicare/ > / pregar/. É CORRETO o que se afirma apenas em: a) ( ) I e II. b) ( ) I e IV. c) ( ) II e III. d) ( ) I, III e IV. e) ( ) II, III e IV. 'Praca cronada' Ladrão de carros derrapa no Português e é preso pela polícia por causa de uma placa clonada Disponível em: <http://www.xapeco.com.br/praca-cronada/> Acesso em: 19. ago. esp. 2011. 92 9 (ENADE, 2008) Canção Nunca eu tivera querido Dizer palavra tão louca: bateu-me o vento na boca e depois no teu ouvido Levou somente a palavra Deixou ficar o sentido O sentido está guardado no rosto com que te miro neste perdido suspiro que te segue alucinado no meu sorriso suspenso como um beijo malogrado Nunca ninguém viu ninguém que o amor pusesse tão triste Essa tristeza não viste e eu sei que ela se vê bem... Só se aquele mesmo vento fechou teus olhos, também. FONTE: MEIRELES, C. Poesias completas. Rio de Janeiro: Nova Aguiar, 1993, p. 118. Em qual das opções a seguir as duas palavras do texto estão sujeitas à redução do ditongo, fenômeno frequente no português falado no Brasil? a) ( ) “eu” e “bateu-me”. b) ( ) “guardado” e “viu”. c) ( ) “louca” e “beijo”. d) ( ) “depois” e “sei”. e) ( ) “ninguém” e “bem”. 10 (ENADE, 2008) Com relação aos estigmas linguísticos, vários estudiosos contemporâneos julgam que a forma como olhamos o "erro" traz implicações para o ensino de língua. A esse respeito, leia a seguinte passagem, adaptada da fala de uma alfabetizadora de adultos, da zona rural, publicada no texto Lé com Lé, Cré com Cré, da obra O Professor Escreve sua História, de Maria Cristina de Campos. "Apresentei- lhes a família do ti. Ta, te, ti, to, tu. De posse desses fragmentos, pedi-lhes que formassem palavras, combinando-os de forma a encontrar nomes de pessoas ou objetos com significação conhecida. Lá vieram Totó, Tito, tatu e, claro, em meio à grande alegria de pela primeira vez escrever algo, uma das mulheres me exibiu triunfante a palavra teto. Emocionei-me e aplaudi sua conquista e 93 convidei-a a ler para todos. Sem nenhum constrangimento, vitoriosa, anunciou em alto e bom som: “teto é aquela doença ruim que dá quando a gente tem um machucado e não cuida direito”. O fenômeno sociolinguístico constituído pela passagem da proparoxítona “tétano” para a paroxítona “teto”, na variedade apresentada, é observado também no emprego de: a) ( ) “figo” em lugar de fígado, e “arvre” em vez de árvore. b) ( ) “paia” em lugar de palha, e “fio” em lugar de filho. c) ( ) “mortandela” em lugar de mortadela, e “cunzinha” em vez de cozinha. d) ( ) “bandeija” em lugar de bandeja, e “naiscer” em lugar de nascer. e) ( ) “vende” em lugar de vender, e “cantá” em vez de cantar. 94 95 TÓPICO 2 ALTERNÂNCIAS DE LÍNGUAS, BILINGUISMO E ESTRATÉGIAS LINGUÍSTICAS UNIDADE 2 1 INTRODUÇÃOAo longo desta unidade, temos discutido os processos envolvidos no estudo da variação e da mudança linguística. Além disso, depreendemos o quão importante é compreender tais questões para que possamos chegar à escola munidos de subsídios que nos auxiliem no trabalho com as diferentes variedades faladas pelos alunos. O que vimos até o momento, contudo, leva em conta a variação dentro de uma mesma língua. Neste tópico, ampliaremos a discussão e partiremos para a reflexão sobre alternância de línguas, bilinguismo e estratégias linguísticas, tópicos de discussão situados na macrossociolinguística (ou sociologia da linguagem). Dentre os vários fenômenos presentes nas interações linguísticas e sociais, destacamos a alternância de línguas (em inglês code-switching). O code- switching, fenômeno que consiste no uso de duas ou mais línguas, é considerado um fenômeno linguístico natural, pois surge nas interações conversacionais de pessoas bilíngues. A alternância de línguas é compreendida como uma estratégia de adaptação comunicativa, empregada de forma criativa pelos falantes bilíngues, por meio do uso de uma ou de outra língua de acordo com os elementos particulares de cada situação comunicativa. No Tópico 2 desta unidade, apresentaremos alguns conceitos de alternância de línguas, além de uma breve reflexão sobre estratégias linguísticas, dialogando com as definições de bilinguismo, visto que este fenômeno emerge das interações de sujeitos bilíngues. Com o intuito de enriquecer e ampliar a nossa aprendizagem sobre este tema, que envolve uma mistura de línguas, e por estarmos alinhados à sociologia da linguagem, apresentaremos também, neste tópico, uma definição concisa de translinguagem, por ser um conceito que vem sendo bastante discutido dentro do campo de pesquisas linguísticas e por divergir das concepções encontradas na literatura científica sobre alternância de línguas. UNIDADE 2 | ESTUDANDO AS VARIEDADES E OS CONTATOS LINGUÍSTICOS 96 Em português, code-switching pode ser traduzido por alternância de códigos ou alternância de línguas. Neste livro, escolhemos usar o segundo termo (alternância de línguas), tendo em vista a concepção de língua que embasa nosso trabalho, língua como prática social e não enquanto código, assunto que abordaremos ainda de maneira mais ampla. IMPORTANT E 2 ALTERNÂNCIA DE LÍNGUAS Conforme mencionamos no início desta unidade, a alternância de línguas é uma estratégia linguística em que o sujeito bilíngue insere itens lexicais (ou sentenças inteiras) de duas ou mais línguas e dialetos. Antes de falarmos sobre alternância de línguas, consideramos importante apresentar a definição de bilinguismo a que nos alinhamos neste livro e nas nossas práticas cotidianas. Entendemos o bilinguismo como um fenômeno político-linguístico que envolve o uso de diferentes línguas e experiências vivenciadas nessas línguas. A visão de bilinguismo que trazemos não se reduz à somatória de duas línguas, isto é, primeira e segunda línguas. A visão de bilinguismo que trazemos aborda todas as línguas que compõem o repertório do falante, sendo essas línguas caracterizadas dentro de um contexto multilíngue. Por isso, procuramos situar a construção do conceito de alternância de línguas para chegarmos à translinguagem. Compreendemos multilinguismo como um contexto no qual várias línguas, dialetos e falares coexistem numa comunidade. É importante deixar claro que nem sempre uma sociedade multilíngue possui falantes plurilíngues, visto que o multilinguismo está relacionado com a língua, com a cultura e com os usos da língua, enquanto que o plurilinguismo trata das habilidades linguísticas de um sujeito falar várias línguas. Com relação aos conceitos “língua” e “dialeto”, que são melhores compreendidos dentro da linguística, eles se aplicam a aspectos diferentes, embora estes termos não sejam opostos. Entendemos língua como meio comum de comunicação entre pessoas de uma comunidade, podendo ser modificada por seus falantes nativos. Diferente da concepção estruturalista da língua de Saussurre e da concepção estritamente mentalista de Chomsky – os quais estudam a língua sem considerar o contexto de uso –, compreendemos a língua como um fenômeno ideológico e indissociável do seu contexto de uso. Já o dialeto é entendido como uma língua realizada numa região específica, tratando-se de uma variedade linguística, como uma realização da língua. IMPORTANT E TÓPICO 2 | ALTERNÂNCIAS DE LÍNGUAS, BILINGUISMO E ESTRATÉGIAS LINGUÍSTICAS 97 De acordo com Grosjean (1982, p. 145), a alternância de línguas diz respeito ao “uso alternado de duas ou mais línguas no mesmo enunciado ou interação”. Segundo o autor, uma única palavra, uma sentença ou mesmo várias sentenças podem ser alternadas durante uma mesma interação conversacional. A alternância de línguas tem sido descrita pelos pesquisadores como algo natural e inerente à condição de falante de mais de uma língua. Durante a conversação, os falantes bilíngues fazem escolhas linguísticas, observando as vantagens e desvantagens de usar uma ou outra língua (GROSJEAN, 1982). John Gumperz, um dos precursores do estudo de alternância de línguas, define o fenômeno como “a justaposição dentro do mesmo fragmento de fala de passagens pertencentes a dois sistemas ou subsistemas gramaticais distintos” (GUMPERZ, 1982, p. 59). Para o autor, falantes bilíngues alternam as línguas durante a comunicação e essa estratégia é parte central da interação entre os indivíduos bilíngues. No entanto, embora falantes bilíngues possam lançar mão de diversos elementos linguísticos de diferentes línguas nas interações comunicativas, constituindo tal ação como uma estratégia comunicativa, esta prática não se realiza de forma casual, pois existem várias razões que fundamentam a alternância de línguas (EMMOREY et al., 2008; GROSJEAN, 1982). No quadro a seguir, apresentamos alguns motivos e/ou funções que levam os falantes a alternarem as línguas nas interações comunicativas. Depois da leitura do quadro, você encontrará explicações mais aprofundadas para esses fenômenos. QUADRO 6 – ALGUNS MOTIVOS PELOS QUAIS AS PESSOAS ALTERNAM LÍNGUAS FONTE: Adaptado de Grosjean (1982) e Gumperz (1982) Autores Como ocorre a alternância Motivo da alternância GROSJEAN (1982) Preenchimento lexical, citar alguém ou especificar o interlocutor; qualificar a mensagem, com o intuito de torná-la mais ampla ou com mais ênfase. Transmitir intimidade, aborrecimento, bem como marcar a identidade com o grupo. GUMPERZ (1982) Personalizar a mensagem, destacando o envolvimento do falante; citações; especificação do interlocutor. Excluir alguém da conversa; incluir alguém na conversa; modificar o papel do falante; interjeições, qualificação da mensagem. A seguir, apresentaremos alguns exemplos que envolvem preenchimento lexical, marcação de identidade e interjeições presentes na alternância de línguas: UNIDADE 2 | ESTUDANDO AS VARIEDADES E OS CONTATOS LINGUÍSTICOS 98 a) Preenchimento lexical em alternância de línguas inglês – português (OLIVEIRA, 2000, p. 70) I felt so much saudade after he left. (Eu senti tanta saudade depois que ele partiu.) b) Marcação de identidade do grupo em alternância de línguas inglês – espanhol (GUMPERZ; HERNÁNDEZ-CHAVEZ, 1978, p. 296) a. Mulher: Well, I’m glad that I met you. OK? b. (Bom, gostei de te conhecer. OK?) Homem: Andale, pues, and do come again. (OK, e volte novamente.) c) Função de interjeição em alternância de línguas dinamarquês – turco (JORGENSEN, 2005, p. 395) a. Snak ordentlig jeg smadrer dig. (Fale corretamente ou eu te bato) b. Tamam. Jeg snakker meget ordentlig. (OK. Eu falo muito corretamente.) Um ponto que vale destacarmos é que as concepções de alternância de línguas, hoje, sofrem críticas em diferentes campos da linguística, uma vez que a prática linguística que alterna as línguas não se limita na soma de uma língua à outra (ou de um elemento de uma língua à outralíngua). Por isso, para lidarmos com as situações de bilinguismo nas quais identificamos certa interferência entre as línguas, tratamos de práticas translíngues (conceito que complementa a alternância de línguas), como veremos adiante. IMPORTANT E Dependendo do contexto, monolíngue ou bilíngue, a alternância das variantes pode ser menos ou mais complexa. Em situações monolíngues, o falante pode alternar a variante da língua que utiliza de acordo com três variáveis. A primeira acontece com base em fatores pragmáticos, dependendo sempre do cenário e da situação que o sujeito está envolvido. A segunda, com base nos interlocutores, isto é, idade, sexo, ocupação, status socioeconômico, origem, além de seus papéis sociais em relação ao outro participante da interação. A terceira acontece de acordo com o tópico da conversa entre os interlocutores (ERVIN-TRIPP, 1964). Em contextos bilíngues, essa alternância é mais complexa, pois os aspectos pragmáticos permitem que o indivíduo escolha, em cada situação interacional, não somente por variantes de uma mesma língua, mas também por línguas diferentes. Em situações bilíngues, os falantes podem variar o uso de acordo com três variáveis, a saber: TÓPICO 2 | ALTERNÂNCIAS DE LÍNGUAS, BILINGUISMO E ESTRATÉGIAS LINGUÍSTICAS 99 I- O pertencimento do sujeito ao grupo. Isto envolve critérios como idade, sexo e religião. II- A relevância da situação, no tocante aos interlocutores, ao ambiente físico e aos estilos do discurso dos participantes. III- A relação com o tópico, pois dependendo do assunto, os falantes podem variar na escolha das línguas. É importante ressaltarmos que a escolha de uma língua pelo falante não ocorre necessariamente em detrimento de uma outra. Conforme Grosjean (1982), esta escolha, que acontece por meio ou não da alternância de línguas, se dá através de dois estágios que envolvem falantes monolíngues e bilíngues: I- No primeiro, o falante bilíngue, ao interagir com um monolíngue, escolhe inicialmente a língua que usará na interação. II- No segundo estágio, o falante bilíngue, que interage com outro falante bilíngue, decide, mesmo que de maneira inconsciente, se vai ou não alternar entre as línguas. IMPORTANT E Para clarificar esta proposição, apresentamos a figura a seguir, de acordo com a proposta de Grosjean (1982): FIGURA 3 – ESTÁGIOS DE ESCOLHA DE LÍNGUAS FONTE: Grosjean (1982, p.129) Falante bilíngue em interação com falante monolíngue falante bilíngue utiliza utiliza L1 L2 L1 L2 Escolha da Língua Code- Switching com code- Switching com code- Switching sem code- Switching sem code- Switching A figura é composta por traços e parênteses para mostrar a interação de falante monolíngue e bilíngue. Do lado esquerdo da figura, há a divisão e ligação por meio de traços para indicar que o falante monolíngue fala a L1 e a L2 sem alternar as línguas. No meio, existe uma imagem ligada por traços mostrando o falante bilíngue, usuário de duas línguas, isto é, L1 e L2, e que faz uso ou não da alternância de línguas. UNIDADE 2 | ESTUDANDO AS VARIEDADES E OS CONTATOS LINGUÍSTICOS 100 Ao aprender uma segunda língua, vivenciamos diferentes situações com e na língua que está sendo estudada. Uma das situações relacionadas com este contexto de aprendizagem é a alternância de línguas, considerada um fenômeno natural, que não deve ser confundida com erro ou ausência de conhecimento na língua em estudo. É importante ainda esclarecer que a alternância de línguas segue uma concepção de uso das línguas de maneira hierárquica, ou seja, as línguas que o falante aprende e usa são vistas como um somatório, por exemplo, L1+L2+L3. Na interação, o falante decide e alterna a língua que fará parte da comunicação. IMPORTANT E O profissional da área de Letras deve estar preparado para atuar e lidar com a diversidade sociolinguística brasileira, uma vez que poderá atuar em escolas situadas em contextos indígenas, de imigração e com a comunidade surda. Esta experiência, certamente, desvelará, no uso da língua portuguesa, o bilinguismo de seus falantes, que revela mais uma prática de translinguagem que necessariamente uma alternância de línguas, como veremos adiante. Enfatizamos também que o conceito de alternância de línguas trouxe benefícios para os estudos sociolinguísticos, mas hoje são problematizados quando pensamos nas práticas linguísticas de maneira mais ampla, isto é, quando pensamos na diversidade linguística presente na sociedade, que se traduz por meio dos muitos falares e usos das línguas. IMPORTANT E A seguir, apresentaremos o conceito de bilinguismo e de translinguagem como definições que divergem do conceito de alternância de línguas. TÓPICO 2 | ALTERNÂNCIAS DE LÍNGUAS, BILINGUISMO E ESTRATÉGIAS LINGUÍSTICAS 101 2.1 ALTERNÂNCIA DE LÍNGUAS E BILINGUISMO Desde o início da nossa discussão neste tópico, estamos citando o termo “bilíngue” ou “falantes bilíngues”. Afinal, qual o conceito de bilíngue? Responderemos esta questão partindo de concepções distintas de bilinguismo defendidas por diferentes linguistas: Bloomfield, Grosjean e García. Bloomfield (1979) define o bilinguismo como a junção de duas línguas, como uma somatória de dois monolíngues, o que problematizamos nos estudos da linguística aplicada e sociologia da linguagem. Para Grosjean (1982), em contrapartida, o bilíngue é o indivíduo que usa duas ou mais línguas em sua vida cotidiana, e este uso muda de acordo com os diferentes domínios da vida, como a casa, a universidade, a interação com familiares e amigos. Um falante brasileiro de guarani (língua indígena) e português brasileiro, por exemplo, dificilmente utilizaria a língua guarani na universidade, embora possa ser a língua que melhor atenda suas realidades interacionais na esfera familiar ou religiosa. García (2009) apresenta um conceito de bilinguismo que se aproxima ao de Grosjean (2010) e, por conseguinte, se distancia de Bloomfield (1979): o bilíngue é alguém que possui um repertório de diferentes línguas e tem experiências diversas em cada uma delas. Para a autora, os falantes bilíngues não têm simplesmente dois recipientes externos com duas línguas (como parece entender Bloomfield), mas um repertório linguístico maior, um sistema de linguagem, com características que interagem entre si para impulsionar os desempenhos linguístico e cognitivo (GARCÍA, 2009). Observe que as definições de Grosjean, com ênfase na definição de García, divergem da concepção de alternância de línguas, estudada anteriormente. Isto porque o conceito de García e Grosjean, o qual defendemos neste material didático, não se refere ao falante bilíngue como alguém que intercala as línguas nas interações – como aparece na alternância de línguas. Ao contrário, o falante faz uso das diferentes línguas do seu repertório sem monitorar ou hierarquizar a língua em uso. O que isto quer dizer? É que existe uma diferença marcante entre a alternância de línguas e a translinguagem, que é a pressuposição de que as línguas envolvidas na alternância são sistemas autônomos e distintos. Translinguagem se refere a construções linguísticas criativas por parte dos falantes bilíngues na produção e negociação de sentido para atingir seus propósitos comunicativos (GARCÍA, 2009). UNIDADE 2 | ESTUDANDO AS VARIEDADES E OS CONTATOS LINGUÍSTICOS 102 Na perspectiva das práticas translíngues, o falante pode adotar recursos linguísticos de diferentes comunidades, sem que tenha que comprovar uma competência “perfeita” nas línguas que estão em uso, ou seja, ele pode “misturar” as diferentes línguas que conhece sem se preocupar em falar “bem” a língua em uso. IMPORTANT E Todo falante bilíngue carrega marcas do seu bilinguismo e isso não significa dizer que ele fala alguma das línguas de forma errada, ele está apenas realizando práticas de translinguagem com as línguas que conhece. Como exemplo,trazemos os descendentes de imigrantes alemães no Brasil que utilizam expressões que são comuns nas construções sintáticas alemãs para a produção de sentenças em língua portuguesa, tais como: (i) Preciso estudar para as provas finais uma vez; ou uso de léxico de uma língua em outra devido ao valor distintivo que apresenta (ii) Eu gosto de chimia de ovo no meu pão. É importante não confundir a translinguagem com a simples alternância entre as línguas que o falante conhece. Para García (2009), as alternâncias de línguas referem- se às alternâncias de línguas nomeadas. A definição externa de quais línguas devem ser faladas ou de quais línguas devem ser alternadas é dada pelos estados e pelos sistemas escolares. Enquanto que a translinguagem incide sobre as estratégias de negociação de sentidos, e não unicamente sobre as formas estruturais da língua. IMPORTANT E Neste livro didático, partimos do pressuposto de que as perspectivas das práticas translíngues não invalidam o conceito de alternância de línguas – recurso produtivo e estratégico nos estudos de bilinguismo –, mas o complementa, compreendendo que a grande diferença entre estas concepções reside no conceito de “língua” que subjaz a essas definições. A alternância de línguas alinha-se à concepção de língua como um sistema abstrato, isto é, um sistema homogêneo e fixo, enquanto que a prática translíngue alinha-se à concepção de língua como prática social, ou seja, a língua é vista como heterogênea, fluida e os aspectos culturais, sociais dos falantes são considerados. 103 RESUMO DO TÓPICO 2 Neste tópico, você aprendeu que: • Dentre os vários fenômenos presentes nas interações linguísticas e sociais, apresentamos a alternância de línguas (em inglês code-switching) como um fenômeno linguístico natural, que surge nas interações conversacionais de pessoas bilíngues, no uso de duas ou mais línguas. • Apresentamos também, de acordo com Grosjean (1982) e Gumperz (1982), alguns motivos e/ou funções que levam os falantes a alternarem as línguas nas interações comunicativas, bem como alguns exemplos que envolvem preenchimento lexical, marcação de identidade e interjeições presentes na alternância de línguas. • O conceito de alternância de línguas é um recurso produtivo e estratégico nos estudos de bilinguismo, mas o conceito de translinguagem o complementa. • Atrelado a estes aspectos acerca da alternância das línguas, destacamos dois estágios que envolvem falantes monolíngues e bilíngues: I. o primeiro voltado à interação de um falante bilíngue com um monolíngue, que escolhe inicialmente a língua que usará na interação; II. segundo estágio, voltado à interação do falante bilíngue com outro falante bilíngue, que decide, mesmo que de maneira inconsciente, se vai ou não alternar entre as línguas em uma interação comunicativa. • Trouxemos algumas definições de bilinguismo, a começar com a de Bloomfield (1979), que conceitua o termo como a somatória de duas línguas (BLOOMFIELD, 1979). Apresentamos também outra concepção, com a qual nos alinhamos: a de Grosjean (2010) e a de García (2009). • Grosjean (2010) afirma que o bilíngue é o indivíduo que usa duas ou mais línguas em sua vida cotidiana, e este uso muda de acordo com os diferentes domínios da vida, como a casa, a universidade, a interação com familiares e amigos. • Somada à visão de Grosjean, destacamos a de García (2009), que assevera que o bilíngue é alguém que possui um repertório de diferentes línguas e tem experiências diversas em cada uma delas. Os falantes bilíngues não têm simplesmente dois recipientes externos com duas línguas, mas um repertório linguístico maior, com características que interagem entre si para impulsionar os desempenhos linguístico e cognitivo. 104 • Em complementação à definição de alternância de línguas, apresentamos, de maneira sucinta, o conceito de translinguagem, que se refere às construções linguísticas criativas, recursos linguísticos, por parte dos falantes bilíngues na produção e negociação de sentido para atingir seus propósitos comunicativos, sem a preocupação de possuir uma competência “perfeita” no uso da língua (GARCÍA, 2009). 105 AUTOATIVIDADE 1 A partir do texto apresentado, você pôde conhecer alguns temas relacionados à área de ensino de línguas e seus usos. Para auxiliar sua aprendizagem nessa disciplina, montamos para você um roteiro de leitura, com o qual você poderá registrar suas inferências a partir das seguintes perguntas: a) O que você compreendeu sobre alternância de línguas e quais as razões que conduzem os falantes a esse fenômeno? b) De acordo com o que estudamos nesse tópico, descreva uma situação de alternância de línguas que você poderia presenciar na escola. c) De acordo com Fishman (1965), em situações bilíngues, os falantes podem variar o uso da alternância de línguas de acordo com três variáveis. Quais são essas variáveis? d) Qual o conceito de bilíngue apresentado no texto, de acordo com García (2009)? e) Qual a diferença entre translinguagem e alternância de línguas? 106 107 TÓPICO 3 O MITO DO MONOLINGUISMO UNIDADE 2 1 INTRODUÇÃO No tópico anterior, apresentamos alguns conceitos de alternância de línguas, dialogando com as definições de bilinguismo e translinguagem, uma vez que consideramos que este fenômeno é oriundo e está presente nas interações de sujeitos bilíngues. Apresentamos também algumas razões que levam os falantes bilíngues a alternarem os usos das línguas nas práticas de translinguagem. Este uso, de caráter heterogêneo, nos mostra que diferentes grupos sociais fazem uso de diversas línguas e, respectivamente, possuem diferentes culturas, identidades e ideologias. Diante de uma realidade linguística composta por várias línguas e diversos falantes dessas línguas, refletiremos, neste tópico, sobre o mito do monolinguismo, isto é, a ideia ainda presente de que existe uma única língua nos contextos sociais, bem como as ideologias subjacentes a este mito. Vamos iniciar a nossa reflexão? 2 O MITO DO MONOLINGUISMO NO BRASIL O Estado brasileiro, por muito tempo, estabeleceu um ideário nacional fundamentado em uma única língua, falada de uma única maneira (a língua portuguesa), e uma identidade comum aos brasileiros, atribuindo destaque ao mito ou à crença do monolinguismo, desconsiderando, consequentemente, todas as outras línguas, culturas e identidades existentes no país. O mito do monolinguismo, historicamente estabelecido no Brasil, ressalta o preconceito, o desconhecimento da realidade e um projeto político de se construir um país com uma língua legítima (OLIVEIRA, 2000). Os fatos subjacentes à concepção histórica e ideológica de que no Brasil se fala uma única língua trazem a ideia de que a unidade nacional só seria possível numa base unilíngue, o que possibilitaria aos falantes da língua portuguesa uma convivência amigável e harmoniosa, visto que se entenderiam perfeitamente. Para Bagno e Rangel (2005, p. 77): 108 UNIDADE 2 | ESTUDANDO AS VARIEDADES E OS CONTATOS LINGUÍSTICOS A história da formação da sociedade brasileira revela o empenho constante, por parte das camadas sociais dominantes, de criar a imagem de um país monolíngue, onde todos os habitantes se entendem perfeitamente e vivem, por isso, em total harmonia. O mito da língua única, para se constituir, exigiu ao longo da história uma política linguística essencialmente autoritária, consubstanciada em medidas repressoras […]. Essa concepção política homogeneizante e repressora de imposição do português como única língua legítima do país é refutada nos dias atuais pelas comunidades linguísticas brasileiras, por meio de ações, instrumentos e políticas que enfatizam a legitimação das línguas dessas comunidades, sejam elas indígenas, línguas de sinais, de fronteiras ou dos imigrantes. Com o advento da Declaração Universal dos Direitos Linguísticos (UNESCO, 2006), as comunidades linguísticas ganharam uma proteção internacional importante,que toma como ponto de partida as comunidades e não os Estados. A Declaração concebe que uma organização linguística deve estar baseada no respeito, na diversidade, na convivência e no benefício recíproco, manifestando-se contrária aos interesses próprios do Estado e da comunidade linguística que queira prevalecer sobre outra, pois “baseia-se no princípio de que os direitos de todas as comunidades linguísticas são iguais e independentes do seu estatuto jurídico ou político como línguas oficiais, regionais ou minoritárias” (Art. 5 º). Com relação ao conceito de comunidade linguística, a Declaração a define como toda sociedade humana historicamente situada em um território geográfico estabelecido, seja ele reconhecido ou não, que se autoidentifica como povo e que desenvolve uma língua compartilhada entre seus membros como meio de comunicação natural e coesão cultural entre eles, determinando, desta forma, uma territorialidade geográfica e simbólica para a língua da comunidade. Artigo 1º Esta Declaração entende por comunidade linguística toda sociedade humana que, assentada historicamente em um espaço territorial determinado, reconhecido ou não, se autoidentifica como povo e desenvolve uma língua comum como meio de comunicação natural e coesão cultural entre seus membros. A denominação língua própria de um território faz referência ao idioma da comunidade historicamente estabelecida neste espaço (UNESCO, 2006, s.p.). TÓPICO 3 | O MITO DO MONOLINGUISMO 109 Você sabe quantas línguas são faladas no Brasil? O INDL (Inventário Nacional de Diversidade Linguística) se ocupa com a identificação, documentação, reconhecimento e valorização das línguas faladas pelos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira. Dentre os diferentes setores da sociedade atuantes para inclusão das línguas como patrimônio cultural do Brasil, estão as Universidades, que, especialmente por meio de pesquisas da pós-graduação, levantam os dados sociolinguísticos dos diferentes cenários nacionais. Acesse o portal do INDL e saiba mais sobre a diversidade de línguas faladas no nosso país. Disponível em: http://portal.iphan.gov.br/indl. DICAS Dados sobre a existência da diversidade linguística e cultural no Brasil podem ser notados através da presença de diferentes línguas no país, pois há, em média, mais de 200 línguas atualmente (OLIVEIRA, 2000), sejam elas indígenas, crioulas, de imigração e línguas de sinais. Essa diversidade enfraquece o mito do monolinguismo, fomenta a necessidade de discussão e o reconhecimento do caráter multilíngue do país, bem como destaca a importância de políticas e planejamentos linguísticos que conscientizem a população brasileira desse status e propiciem o conhecimento de diferentes línguas, além de uma identificação linguística e cultural com a língua de acesso. Quando se fala em diversidade linguística, muitas vezes, se pensa na diversidade interna à própria língua portuguesa, das variações presentes na língua, o que decorre, entre outras razões, do predomínio, no país, do mito de que aqui só se fala português (embora seja de fato a língua oficial do país). No entanto, cada vez mais, vemos que as sociedades contemporâneas estão sendo ocupadas e alteradas por um fluxo intenso de textos, línguas e culturas, recursos dos quais as pessoas fazem uso para interagir socialmente. 2.1 UM BREVE PANORAMA HISTÓRICO SOBRE O MITO DO MONOLINGUISMO No Brasil, ainda, tem-se difundido a ideologia do monolinguismo (CAVALCANTI, 1999), ou seja, a crença de que os brasileiros falam uma única língua. Neste sentido, as línguas dos grupos minoritários (as línguas de sinais, línguas indígenas, línguas de migração) são vistas como fora de um padrão, por se contraporem aos ideais nacionalistas. 110 UNIDADE 2 | ESTUDANDO AS VARIEDADES E OS CONTATOS LINGUÍSTICOS De acordo com a UNESCO (Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura), a língua oficial é a língua utilizada no quadro das diversas atividades oficiais, isto é, as atividades legislativas, executivas e judiciais de um estado soberano ou território. A língua regional é a língua falada em uma determinada região ou localidade. Línguas minoritárias são as consideradas desprestigiadas, tais como as línguas indígenas, as de sinais, as línguas de imigrantes. IMPORTANT E A concepção de língua única é oriunda principalmente de dois fatos históricos importantes do país, a saber: (i) a administração do Marquês de Pombal, por volta de 1750 e (ii) período da ditadura de Getúlio Vargas, entre 1937-1945. Com relação ao Marquês de Pombal, este acreditava que a língua indígena tupi- guarani poderia ser uma ameaça aos colonizadores e também uma forte barreira para a constituição de um único povo. De igual maneira, Getúlio Vargas defendia a proibição do uso das línguas trazidas pelos imigrantes que vinham para o Brasil, como uma ameaça à identidade nacional. Para conhecer mais sobre as políticas de silenciamento linguístico do período ditatorial de Getúlio Vargas, assista ao documentário “Sem Palavras”, disponibilizado na plataforma Vimeo pelo link: https://vimeo.com/46396266 DICAS A diversidade linguística sempre esteve presente na história do Brasil. Apesar deste fato, os governos sempre difundiram e reforçaram na sociedade a visão de um país monolíngue e homogêneo. Estas visões, presentes até hoje na sociedade, fomentam o preconceito linguístico com relação às línguas minoritárias (línguas de sinais, línguas indígenas, de imigração), bem como as variedades linguísticas presentes na língua portuguesa, impondo como aceitável apenas o uso do português padrão ou de um português idealizado. TÓPICO 3 | O MITO DO MONOLINGUISMO 111 Para a sociolinguística, o termo “heterogêneo” caracteriza a língua como um fenômeno variável e dinâmico, considera, ainda, a variabilidade social e as diferenças no uso das variantes linguísticas correspondentes às diversidades dos grupos sociais. O termo “homogêneo”, por sua vez, considera a língua como um sistema fechado, fixo, com regras categóricas. IMPORTANT E Com relação à compreensão do que vem a ser o preconceito linguístico, veja a tirinha a seguir: FIGURA 4 – PRECONCEITO LINGUÍSTICO FONTE: <https://redacaonline.com.br/blog/tema-de-redacao-preconceito-linguistico/>. Acesso em: 15 nov. 2019. A imagem foi escolhida para exemplificarmos e refletirmos sobre uma atitude de preconceito linguístico. O homem, ao falar para a mulher a palavra “pobrema” numa situação de conquista amorosa, causou nela espanto e resistência de prosseguir a conversa, por ele não seguir uma norma padrão e fixa da língua portuguesa. A fala do homem revela a realidade brasileira no tocante à diversidade linguística e social. Marcos Bagno, autor do livro “Preconceito linguístico”, faz uma forte reflexão e crítica ao mito do monolinguismo e destaca o quanto é prejudicial para a sociedade, pois apaga a diversidade linguística no Brasil e fixa, nas escolas brasileiras, a ideia do erro quando os falantes falam ou escrevem diferente da norma padrão do português. A escola, por sua vez, acaba sendo um local de normalização e imposição de uma língua comum, quando não considera o falante juntamente à sua origem geográfica, idade, cultura, grau de escolaridade etc. 112 UNIDADE 2 | ESTUDANDO AS VARIEDADES E OS CONTATOS LINGUÍSTICOS FIGURA 5 – LIVRO “PRECONCEITO LINGUÍSTICO”, DE MARCOS BAGNO FONTE: <https://www.amazon.com.br/Preconceito-Lingu%C3%ADstico-Cole%C3%A7%C3%A3o- que-Como/dp/8515018896>. Acesso em: 18 ago. 2019. Embora o tema ‘preconceito linguístico’ seja retomado e aprofundado na Unidade 3, você já pode procurar por referências de leitura. O livro “Preconceito linguístico” é uma importante referência para ampliar a compreensão e discussão sobre o preconceito linguístico no Brasil. Nessa obra, o autor traz discussões e propostas das ciências da linguagem e da educação, além de apresentar um discurso em favor de uma educação linguística voltadapara a inclusão social e para o reconhecimento e a valorização da diversidade cultural. DICAS TÓPICO 3 | O MITO DO MONOLINGUISMO 113 2.2 IDEOLOGIAS LINGUÍSTICAS MONOLÍNGUES E LÍNGUA COMO PRÁTICA SOCIAL O breve panorama histórico que apresentamos na seção anterior mostra que a constituição da concepção de língua única sempre esteve relacionada com o movimento colonial e suas aspirações políticas. Da Monarquia à República, sempre foi fomentada a construção, bem como o fortalecimento do monolinguismo, mesmo diante da diversidade linguística no Brasil. Essas “crenças, ou sentimentos sobre as línguas como são usadas em seus mundos sociais” (KROSKRITY, 2004 apud LOPES, 2013) são um dos conceitos de ideologia linguística que problematizamos e que correspondem ao que estamos discutindo sobre a hegemonia da língua portuguesa em relação às outras línguas presentes na sociedade brasileira. Compreendemos também como ideologia linguística “quaisquer conjuntos de crenças sobre a língua articulados pelos usuários como uma racionalização ou justificação de estrutura e uso linguístico percebidos” (SILVERSTEIN, 1979, p. 193). Ao observarmos as visões preconcebidas sobre a língua portuguesa em que se excluem as suas variedades, percebemos que existe uma concepção de uma única língua padrão na fala, desprestigiando os outros falares que fogem do que é considerado correto. Um outro exemplo de crença e de ideologia linguística presente no Brasil é a visão sobre a Língua Brasileira de Sinais (LIBRAS). Embora reconhecida como língua da comunidade surda brasileira, pela Lei nº 10.436/2002 e regulamentada pelo Decreto nº 5626/2005, muitas vezes ela não é vista como uma língua, mas como mímica, conjuntos de gestos e pantomimas ou como uma língua inferior ao português. Além disso, existem, com relação às línguas de sinais, alguns mitos recorrentes (QUADROS; KARNOPP, 2004, p. 31), que conferem a elas um estatuto linguístico inferior às línguas orais, a saber: Haveria uma única e universal língua de sinais usada por todas as pessoas surdas. A língua de sinais seria uma mistura de pantomima e gesticulação concreta, incapaz de expressar conceitos abstratos. Haveria uma falha na organização gramatical da língua de sinais que seria derivada das línguas de sinais, sendo um pidgin sem estrutura própria, subordinado e inferior às línguas orais. 114 UNIDADE 2 | ESTUDANDO AS VARIEDADES E OS CONTATOS LINGUÍSTICOS FIGURA 6 – LIVRO “LÍNGUA DE SINAIS BRASILEIRA: ESTUDOS LINGUÍSTICOS”, DE RONICE MULLER DE QUADROS E LODENIR BECKER KARNOPP FONTE: <https://www.amazon.com.br/L%C3%ADngua-Sinais-Brasileira-Estudos- Ling%C3%BC%C3%ADsticos-ebook/dp/B016UWFVSW>. Acesso em: 18 ago. 2019. O livro “Estudos Linguísticos” é uma das obras mais importantes sobre a Língua Brasileira de Sinais, pois as autoras descrevem detalhadamente os aspectos linguísticos em todos os níveis, desmistificando várias ideologias sobre as línguas de sinais. DICAS Pidgin é uma língua nascida do contato de outras línguas. Ela é criada de forma espontânea, a partir da mistura de duas ou mais línguas, servindo de apoio e comunicação para os falantes dessas línguas. IMPORTANT E TÓPICO 3 | O MITO DO MONOLINGUISMO 115 Podemos citar também a ideologia sobre a língua espanhola no Brasil, vista como uma língua “parecida” ao português, portanto, “fácil” de ser falada pelos lusófonos. Além disso, muitos consideram que o espanhol “correto” é o falado na Espanha, em detrimento das múltiplas variedades da língua dentro da própria Espanha e dos países hispanofalantes. Os conceitos apresentados sobre ideologia linguística, somados aos respectivos exemplos, nos mostram que a ideia de monolinguismo se associa a uma visão de língua única, pura e rígida, não aceitando a fluidez, os aspectos sociais, culturais e históricos que influenciam na fala e interação dos sujeitos. Conforme Blommaert (2014, p. 71): [...] uma ideologia especializada em que a diversidade desconcertante que caracteriza a língua real em contextos reais (“fala”) pode ser reduzida a apenas um punhado de formas e regras que organizam as combinações de tais formas [...] que as regras são tudo o que há na língua, são “a língua” e ponto final. O texto “A ideologia do pan-hispanismo e o ensino do Espanhol no Brasil” é um texto relevante para a discussão de ideologias sobre a língua espanhola no Brasil. FONTE: <https://docplayer.com.br/32967368-A-ideologia-do-panhispanismo-e-o-ensino- do-espanhol-no-brasil.html>. Acesso em: 18 ago. 2019. DICAS Contrapondo a ideologia monolíngue, apresentamos uma visão que busca desconstruir essa concepção totalizante de língua, ao considerar o falante como um agente da e na língua, levando em conta os aspectos sociais, culturais, históricos, ideológicos que o constroem enquanto sujeito, e que não se dissociam da língua em uso. Heller (1999) enfatiza a necessidade de mudar a visão sobre as línguas como sistemas autônomos e mover a sua concepção para discussões que privilegiem a língua como prática social, os falantes como atores sociais e as diferentes línguas envolvidas nas interações. Como prática social, entendemos que a língua se constitui no uso e nas interações dos falantes (GARCÍA, 2009; PENNYCOOK, 2010). Consideramos que a língua é um produto das atividades sociais e culturais nas quais as pessoas se envolvem (PENNYCOOK, 2010). 116 UNIDADE 2 | ESTUDANDO AS VARIEDADES E OS CONTATOS LINGUÍSTICOS Falar da língua como prática social é considerar o que acontece em um lugar particular e em momentos específicos, nos quais os falantes fazem uso de uma variedade de recursos semióticos do seu repertório linguístico, produzindo significados diversos (PENNYCOOK, 2010). Esta visão de linguagem, como prática social, não só difere da concepção que considera a língua um instrumento de comunicação, vista como única e fixa, como também destaca a importância de direcionarmos o nosso olhar para a heterogeneidade e diversidade das línguas nas interações sociais. 117 RESUMO DO TÓPICO 3 Neste tópico, você aprendeu que: • O mito do monolinguismo, historicamente estabelecido no Brasil, que ressalta o preconceito, o desconhecimento da realidade e um projeto político de se construir um país com uma língua legítima, é oriundo de dois fatos históricos importantes do país, a saber: (i) a administração do Marquês de Pombal, por volta de 1750 e (ii) o período da ditadura de Getúlio Vargas, entre 1937-1945. • Ideologia linguística pode ser compreendida como qualquer conjunto de crenças sobre a língua articuladas pelos usuários como uma racionalização ou justificação de estrutura e uso linguístico percebidos, e que a ideologia monolíngue se associa a uma visão de língua única. • O conceito de prática social se contrapõe ao de ideologia monolíngue e se constitui no uso e nas interações dos falantes, sendo um produto das atividades sociais e culturais nas quais as pessoas interagem. Ficou alguma dúvida? Construímos uma trilha de aprendizagem pensando em facilitar sua compreensão. Acesse o QR Code, que levará ao AVA, e veja as novidades que preparamos para seu estudo. CHAMADA 118 1 Na sua opinião, o contexto acadêmico tem sido um espaço de discussões e reflexões sobre preconceito linguístico? Descreva. 2 O que você entendeu sobre ideologias linguísticas? Explique apresentando exemplos. 3 Diante da concepção de língua como prática social, explique por que a ideologia monolíngue não se sustenta. Traga exemplos que deem sustentação à sua resposta. AUTOATIVIDADE 119 UNIDADE 3 CONTRIBUIÇÕES DA SOCIOLINGUÍSTICA PARA A EDUCAÇÃO OBJETIVOS DE APRENDIZAGEM PLANO DE ESTUDOS A partir do estudo desta unidade, você deverá ser capaz de: • retomar a sociologia da linguagem para refletir sobre o papel do multilinguismo brasileiro e das línguas em contato na educação linguística; • refletir sobre os tipos de variedades linguísticas para a compreensão da heterogeneidade da língua portuguesa na educaçãobásica; • discutir o tratamento dado à variação linguística nos materiais didáticos de língua portuguesa; • discutir o conceito de preconceito linguístico frente aos comportamentos e atitudes sobre as línguas e seus falantes; • introduzir o debate sobre política e planificação linguísticas. Esta unidade está organizada em três tópicos. Neles, você encontrará dicas, textos complementares, observações e atividades que lhe darão maior compreensão dos temas a serem abordados. TÓPICO 1 – O TRATAMENTO DAS VARIEDADES NO ENSINO DE LÍNGUA PORTUGUESA TÓPICO 2 – AS LÍNGUAS EM CONTATO E OS COMPORTAMENTOS E ATITUDES COM RELAÇÃO ÀS LÍNGUAS E SEUS FALANTES TÓPICO 3 – POLÍTICA E PLANIFICAÇÃO LINGUÍSTICA Preparado para ampliar seus conhecimentos? Respire e vamos em frente! Procure um ambiente que facilite a concentração, assim absorverá melhor as informações. CHAMADA 120 121 TÓPICO 1 O TRATAMENTO DAS VARIEDADES NO ENSINO DE LÍNGUA PORTUGUESA UNIDADE 3 1 INTRODUÇÃO No Tópico 3 da primeira unidade, vimos que a pedagogia culturalmente sensível corresponde ao trabalho com as diferenças culturais em contexto escolar, no qual cabe à professora ou ao professor de língua portuguesa identificar a variação linguística presente na sala de aula para conscientizar o estudante sobre as diferenças linguísticas. Neste tópico da Unidade 3, veremos que a pedagogia culturalmente sensível depende do tratamento dado à gramática em sala, às variações linguísticas e ao preconceito linguístico. Entendemos, pois, que as aulas de língua portuguesa, sob uma abordagem científica acima da normativa, precisa direcionar para a investigação dos fenômenos presentes na língua portuguesa não só idealizada em determinados manuais gramaticais, mas utilizada pelos falantes dessa língua. Essa prática, como observamos, é importante para o desenvolvimento da competência comunicativa e sociolinguística do aluno. Também traremos à discussão, neste primeiro tópico, o tratamento dado à variação linguística nos livros didáticos de língua portuguesa, como os conceitos de norma e variação são abordados e de que forma buscam conscientizar estudantes da educação básica acerca da heterogeneidade da língua. Pronto para iniciar? 2 A GRAMÁTICA NAS AULAS DE LÍNGUA PORTUGUESA Ao longo da nossa conversa, vimos a importância sobre ultrapassarmos a noção de que a língua portuguesa, enquanto disciplina escolar, visa ao estudo exclusivo da gramática normativa, de uma forma descontextualizada e fragmentada. Nesse sentido, o estudo sobre regra gramatical continua, mas abrindo possibilidade para diferentes abordagens (como é o caso da abordagem descritiva da língua). Apesar da aparente “tranquilidade” que a abordagem normativa- prescritiva representa para a maioria dos estudantes, pais e professores, sob uma falsa ideia de que sozinha possa garantir “um bom desempenho comunicativo”, vale considerarmos que é a descrição do uso real da língua que tem possibilitado a reflexão sobre as regras que regem seu “funcionamento”. UNIDADE 3 | CONTRIBUIÇÕES DA SOCIOLINGUÍSTICA PARA A EDUCAÇÃO 122 Faz parte do ensino da língua, na escola, o ensino de gramática, que não necessariamente precisará tomar um viés normativo, cuja função única seja de identificar erros e acertos nos usos linguísticos. Além disso, o ensino de gramática não se restringe ao ensino das nomenclaturas gramaticais, como ainda veremos nesta seção. IMPORTANT E Mais importante que classificar palavras, frases, períodos “como se fossem coisas autônomas, com leis próprias e independentes de suas condições de uso” (ANTUNES, 2007, p. 75), é reconhecer o funcionamento das regras gramaticais da língua oral e escrita. Por conseguinte, esperamos que o estudante possa refletir que em situações de maior monitoramento, especialmente na escrita, as construções linguísticas poderiam (ou deveriam) ser diferentes da situação corriqueira de fala (ANTUNES, 2007). Para saber mais sobre a fala e a escrita, recomendamos que assista ao vídeo do linguista brasileiro Luiz Antônio Marcuschi, do Departamento de Letras – CEEL UFPE. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=XOzoVHyiDew. DICAS Considerando o que já estudamos, a concepção de que a língua é imutável ou inflexível é mítica, pois a língua assume variações, embora o falante não tenha total liberdade de escolha sobre essas variações (há condicionantes sociais e linguísticos para a variação). E é por isso que as línguas são sistemas complexos. É que elas são providas de um componente – digamos – mais fixo que flexível [esse componente seria as regras gramaticais], e de outro mais flexível que fixo, à disposição do usuário, na dependência de mil e um fatores constituintes da situação de interação. Por exemplo, em português, a posição do artigo faz parte daquele componente rígido: vem sempre antes do substantivo; ou ainda, o artigo e o demonstrativo nunca vêm juntos, como em O este livro. Mas, muita coisa na língua se situa naquela zona de oscilação, cuja escolha por uma ou outra forma cabe ao usuário (por exemplo, Meu livro ou O meu livro, porcentagem ou percentagem). Alguém, ainda, dependendo da situação, pode optar por usar um adjetivo no superlativo (lindíssima) ou, para surtir o mesmo efeito, repetir o adjetivo, como em Ela é linda, linda! (ANTUNES, 2007, p. 72). TÓPICO 1 | O TRATAMENTO DAS VARIEDADES NO ENSINO DE LÍNGUA PORTUGUESA 123 Conforme pontua Antunes (2007, p. 72, grifos nossos), “todos os usos da língua são submetidos à aplicação de regras”, sejam eles pertencentes à norma padrão ou às diversas variedades linguísticas faladas por distintas comunidades. Por isso, insistimos que trabalhar com regras gramaticais na escola significa estudar normas que “regulam os usos que as pessoas fazem [da língua], nos mais diferentes contextos e com as mais diferentes finalidades” (ANTUNES, 2007, p. 72). IMPORTANT E Além disso, vale alertá-lo, caro acadêmico, que nem sempre a noção de regra gramatical está clara nos materiais didáticos de língua portuguesa. Por isso, nesta disciplina de sociolinguística, procuramos lhe dar subsídios para reconhecer as regras gramaticais que se fazem presentes na língua portuguesa padrão e suas variedades. Sobre essa questão, a linguista brasileira Irandé Antunes (2007) adverte acerca da confusão entre o estudo da regra gramatical e da nomenclatura gramatical nas atividades pedagógicas em língua portuguesa, inclusive em livros didáticos. Segundo a autora, “quando alguém está explorando as terminologias e nomenclaturas das diferentes classes de palavras, é comum ficar a impressão de que se está estudando gramática” (ANTUNES, 2007, p. 69), embora esteja apenas observando “rótulos, nomes das unidades da gramática” (ANTUNES, 2007, p. 70). A promoção de atividades de análise e reflexão de regras gramaticais contempla o estudo das normas que especificam os usos da língua, sejam eles constituintes das variedades linguísticas mais prestigiadas ou não. Ao estudante, nesse contexto, é oportunizado o exercício de observação de regularidades da língua em diferentes níveis (fonético-fonológico, morfológico e suas interfaces, sintático, semântico, pragmático), e não sua mera classificação. Antunes (2007, p. 71) exemplifica algumas regras da gramática do português: - deixar o verbo na primeira pessoa do singular se o sujeito da oração se refere à pessoa que fala (Eu gosto de ouvir música brasileira); - pôr o artigo antes do substantivo (o livro); - usar o presente do indicativo como núcleo do predicado em definições e verdades universais (O homem é um animal racional.); (O homem é mortal); - deixar sem flexão de gênero ou de número os pronomes indefinidos alguém, ninguém, tudo, nada, algo; - alterar a forma dos substantivos para indicar flexão de gênero (o gato; a gata); - usar o demonstrativo aquele (e suas flexões) se a coisa referida está longe (Aquela casa é a casa onde moro) (ANTUNES, 2007, p. 71, grifos nossos). UNIDADE3 | CONTRIBUIÇÕES DA SOCIOLINGUÍSTICA PARA A EDUCAÇÃO 124 Há uma tendência de os livros didáticos, nos tópicos de estudo sobre gramática, evitarem contemplar as questões gramaticais que admitem variação (ANTUNES, 2007), fixando-se apenas nos modelos linguísticos idealizados. Essa prática acaba privando o estudante de reconhecer que as regras admitem mudanças e variações, o que, segundo Antunes (2007), se evidencia ainda mais pela dificuldade de abrir mão de normas cristalizadas, como a regência do verbo assistir com preposição (assistir ao jogo). De maneira geral, a regência com a preposição “a” do verbo “assistir” não costuma ser usada nem por pessoas mais escolarizadas. O mesmo se poderia dizer sobre o uso de pronomes oblíquos no início de frases ou sobre o estudo do pronome “vocês” como pronome de tratamento, ao invés de ser levado em conta como um pronome que, no Brasil, assume o lugar de “vós”. Parece existir, nesses exemplos sobre vós e vocês, sobre a regência do verbo assistir, entre outros, certa dificuldade em se reconhecer que as mudanças linguísticas já aconteceram e que, como afirma Antunes (2007), de alguma maneira são irreversíveis. Diferentemente do estudo sobre as regras gramaticais que orientam o uso da língua em diferentes contextos, também precisamos do estudo da nomenclatura gramatical na escola, mas não para um fim em si mesma. O estudo da nomenclatura gramatical é importante para a abordagem científica dada à língua, a fim de possibilitarmos a identificação, de forma bem-sucedida, dos elementos gramaticais que estão sendo estudados. Cada ciência possui um “conjunto de termos com os quais se refere às coisas de seu campo” (ANTUNES, 2007, p. 78), e, com o estudo da língua não poderia ser diferente. IMPORTANT E Estudar as nomenclaturas, portanto, não significa estudar regras (já que elas não regem padrão algum) ou estudar a própria norma padrão. Estudar as nomenclaturas implica reconhecer os nomes que as unidades da gramática têm para que funcionem como um recurso para a descrição das regras gramaticais (ANTUNES, 2007). Logo, os exercícios de língua portuguesa que solicitam apenas a identificação de substantivos, verbos, preposições, entre outras unidades da gramática, não são suficientes para que o estudante reflita e compreenda sobre os mecanismos que constituem os usos linguísticos, embora sejam importantes para nomeá-los de alguma forma. TÓPICO 1 | O TRATAMENTO DAS VARIEDADES NO ENSINO DE LÍNGUA PORTUGUESA 125 Você já deve ter percebido, até este ponto das suas leituras, que a disciplina de sociolinguística não está aqui para tirar o espaço que ocupa a norma padrão de uma língua como registro oficial, mas de oportunizar o estudo da língua dentro das suas variedades. Para isso, é importante manter o diálogo com as disciplinas do campo gramatical, sem excluir as influências sociais sobre a variação. Continue sua leitura para saber mais sobre o tratamento dado à variação linguística nos livros didáticos de língua portuguesa. 3 A VARIAÇÃO LINGUÍSTICA NOS LIVROS DIDÁTICOS DE LÍNGUA PORTUGUESA Como vimos, há críticas levantadas acerca das atividades que constituem os livros didáticos de língua portuguesa na educação básica com relação à confusão entre estudo de regras gramaticais e de nomenclaturas, ou falta de ênfase na variação linguística. No entanto, a qualidade desses materiais é crescente, especialmente a partir da instituição do Programa Nacional do Livro Didático (PNLD), oportunizando às escolas selecionarem a coleção que melhor atender às necessidades educacionais dos seus estudantes. Os livros didáticos são escritos no PNLD pelos detentores de direitos autorais, conforme critérios estabelecidos em edital e aprovados em avaliações pedagógicas coordenadas pelo Ministério da Educação, contando com a participação de Comissão Técnica específica, integrada por especialistas das diferentes áreas do conhecimento correlatas. Esses materiais didáticos distribuídos pelo MEC às escolas públicas de educação básica do país são escolhidos pelas próprias escolas. FONTE: <http://portal.mec.gov.br/component/content/article?id=12391:pnld>. Acesso em: 9 out. 2019. NOTA É importante destacarmos que o tratamento da variação linguística nos livros didáticos tem se manifestado cada vez mais. Parece haver, de fato, um avanço quanto à inclusão do debate sobre preconceito linguístico e diversidade nos livros didáticos, embora continuem com alguns problemas que merecem reflexão. IMPORTANT E UNIDADE 3 | CONTRIBUIÇÕES DA SOCIOLINGUÍSTICA PARA A EDUCAÇÃO 126 A gente percebe, em muitas obras, uma vontade sincera dos autores de combater o preconceito linguístico e de valorizar a multiplicidade linguística do português brasileiro. Mas a falta de uma base teórica consistente e, sobretudo, a confusão no emprego dos termos e dos conceitos prejudicam muito o trabalho que se faz nessas obras em torno dos fenômenos de variação e mudança (BAGNO, 2007, p. 119). A confusão teórica a qual Bagno (2007) faz referência é a troca conceitual de norma culta e norma padrão, é a necessidade de constituir entendimento de que há variação nos diferentes níveis da língua, de que variação não é apenas regional ou de baixa escolaridade, de que no Brasil se falam várias línguas. Observe, prezado acadêmico, que estes são conteúdos que você foi estudando ao longo de toda a disciplina de sociolinguística. Bagno (2007) explica essas questões dentro de dois principais problemas dos livros didáticos com relação à variação linguística (quando ela aparece no livro): 1- A tendência de tratar da variação linguística como sinônimo somente de variedades regionais, rurais ou de pessoas não escolarizadas. 2- A prática de propor exercícios de reescrita da norma estigmatizada para a norma padrão ou “culta”. “Em termos sociológicos, estigma é um julgamento bastante negativo, que os grupos sociais hegemônicos fazem sobre os grupos subalternos, seja por seu modo de ser, por sua cultura e, obviamente, por sua língua” (BORTONI-RICARDO; OLIVEIRA, 2013, p. 47). NOTA Com relação ao primeiro problema, Bagno (2007) entende haver uma falsa suposição de que “os falantes urbanos e escolarizados usam a língua de modo mais “correto”, mais próximo do padrão, e que no uso que eles fazem não existe variação” (BAGNO, 2007, p. 120). Essa compreensão é resultado das relações de poder estabelecidas na sociedade, que abrem caminho para o julgamento das variedades de falantes urbanos, normalmente de status socioeconômico mais alto, como as formas da língua mais “corretas” (mesmo não correspondendo à norma padrão) quando comparadas às variedades de falantes rurais, com baixo status socioeconômico. Por isso, Bagno (2007) reconhece que muitos livros didáticos insistem em apresentar como exemplos de variação linguística uma tirinha do personagem Chico Bento (de Maurício de Sousa), um poema de Patativa do Assaré ou o samba de Adoniran Barbosa, isto é, textos literários que apresentam de forma estereotipada os falares menos urbanos para fins de marcações socioculturais. TÓPICO 1 | O TRATAMENTO DAS VARIEDADES NO ENSINO DE LÍNGUA PORTUGUESA 127 Conheça um poema de Patativa do Assaré e um samba de Adoniran Barbosa: NOTA Coisas do Meu Sertão Patativa do Assaré Seu dotô, que é da cidade Tem diproma e posição E estudou derne minino Sem perdê uma lição, Conhece o nome dos rios, Que corre inriba do chão, Sabe o nome de estrela Que forma constelação, Conhece todas as coisa Da história da criação E agora qué i na Lua Causando admiração, Vou fazê uma pergunta, Me preste bem atenção: Pruque não quis aprendê As coisa do meu sertão? Por favô, não negue não Quero que o sinhô me diga Pruquê não quis o roçado Onde se sofre de fadiga, Pisando inriba do toco, Lacraia, cobra e formiga, Cocerento de friêra, Incalombado de urtiga, Muntas vez inté duente, Sofrendo dô de barriga, Mas o jeito é trabaiá Que a necessidade obriga. [...] Sambado Arnesto Adoniran Barbosa O Arnesto nos convidou pra um samba, ele mora no Brás Nós fumos, não encontremos ninguém Nós voltermos com uma baita de uma reiva Da outra vez, nós num vai mais Nós não semos tatu! O Arnesto nos convidou pra um samba, ele mora no Brás Nós fumos, não encontremos ninguém Nós voltermos com uma baita de uma reiva Da outra vez, nós num vai mais No outro dia encontremo com o Arnesto Que pediu desculpas, mas nós não aceitemos Isso não se faz, Arnesto, nós não se importa Mas você devia ter ponhado um recado na porta O Arnesto nos convidou pra um samba, ele mora no Brás Nós fumos, não encontremos ninguém Nós voltermos com uma baita de uma reiva Da outra vez, nós num vai mais No outro dia encontremo com o Arnesto Que pediu desculpas, mas nós não aceitemos Isso não se faz, Arnesto, nós não se importa Mas você devia ter ponhado um recado na porta Um recado assim ói: “Ói, turma, num deu pra esperá Ah, duvido que isso num faz mar, num tem importância Assinado em cruz porque não sei escrever” Arnesto FONTE: Coisas do Meu Sertão: Patativa do Assaré. SILVA, A. G. da. Cante lá, que eu canto cá. Rio de Janeiro: Vozes, 1978. Samba do Arnesto: Adoniran Barbosa. <https://www.vagalume.com.br/adoniran-barbosa/samba-do-arnesto.html>. Acesso em: 9 out. 2019. UNIDADE 3 | CONTRIBUIÇÕES DA SOCIOLINGUÍSTICA PARA A EDUCAÇÃO 128 Esses exemplos comumente encontrados em livros didáticos retratam as variedades mais estigmatizadas, o que pode ser um indicativo, para os estudantes da educação básica, de que variação só acontece nas camadas sociais de menor escolaridade, de área mais rural. Além disso, esses textos não representam verdadeiramente variedades linguísticas do português brasileiro, uma vez que intentam produzir literatura como manifestação lúdica, artística (BAGNO, 2007). Bagno (2007) exemplifica o problema do uso inadequado dos trabalhos criativos em materiais didáticos com a análise de uma sentença retirada da fala de Zé Lelé na tirinha da Turma da Mônica: “SORRIAM QUI EU VÔ TIRÁ O RETRATO!” FIGURA 1 – CHICO BENTO FONTE: SOUSA, M. de. Turma da Mônica. In: CRUZ, A. G. C. da et al. A variação fonológica: metaplasmos em tiras de HQs. Anais do VII Seminário de Iniciação Científica SóLetras – CLCA – UENP/CJ. <https://docplayer.com.br/4276744-A-variacao-fonologica-metaplasmos-em-tiras- de-hqs.html>. Acesso em: 9 out. 2019. Ora, na tentativa de reproduzir o falar caipira, foram usadas as grafias QUI, VÔ e TIRÁ. Mas desde quando essas pronúncias são exclusivas das variedades rurais? Em todo o português brasileiro, a palavra que escrevemos QUE é pronunciada [ki], porque a redução da vogal átona final E em [i] é uma regra categórica da nossa língua, isto é, não apresenta variação – como ocorre em BODE, DENTE, FACE, GENTE, ELE, ME e em milhares e milhares de outras palavras. Tanto é assim, que em alguns (poucos) casos em que ele vem devidamente enfeitado com um acento circunflexo: QUÊ – nesses casos, não se trata mais da não útil palavra gramatical que pode ser pronome, conjunção, advérbio, preposição etc., mas sim de um substantivo (HAVIA UM QUÊ DE MISTÉRIO NO OLHAR DE MARINALVA) ou uma interjeição (O QUÊ?! TODO MUNDO FOI EMBORA?) (BAGNO, 2007, p. 121). TÓPICO 1 | O TRATAMENTO DAS VARIEDADES NO ENSINO DE LÍNGUA PORTUGUESA 129 São em poucas regiões do país onde se preserva a pronúncia do “E” nas sílabas átonas finais (BODE, DENTE, FACE, GENTE, ELE), como no oeste do estado de Santa Catarina, por exemplo. NOTA O que procuramos questionar, aqui, em conformidade com Bagno (2007), é a marca gráfica QUI para reproduzir a fala de Chico Bento ou do Zé Lelé, mas nunca da Mônica, ou da Magali, crianças de áreas urbanas. As crianças brasileiras de São Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte, Salvador, e outras cidades grandes (BAGNO, 2007) pronunciam, assim como Chico Bento e Zé Lelé, a elevação de “e” para “i” em sílabas finais átonas – QUI para QUE, DENTI para DENTE etc. No entanto, a variação linguística é marcada na escrita apenas para as crianças de zonas rurais, implicando a falsa ideia de que para as outras crianças, de zonas urbanas, não há variação linguística. Precisamos relembrar, como bem sinaliza Bagno (2007), que o problema não está nos textos literários, como de Maurício de Sousa, mas nos nossos usos descontextualizados desses textos como material pedagógico para o ensino da variação linguística. Como vimos na primeira unidade deste livro de sociolinguística, o estudo da variação se dá através de representações reais de falas, e não fictícias. As opções gráficas empregadas no Chico Bento, nos sambas de Adoniran e nos poemas de Patativa têm como única finalidade criar uma atmosfera peculiar, inserir o leitor/ouvinte num universo social e cultural diferente daquele que vem convencionalmente representado pela ortografia oficial, o universo urbano letrado. Nenhum compromisso com o rigor da pesquisa científica (ainda bem!) (BAGNO, 2007, p. 123). Uma dica pedagógica do sociolinguista Marcos Bagno (2007), ao se deparar com representações de falas como esta da HQ da Turma da Mônica no material didático de língua portuguesa, é levantar com os estudantes da educação básica as mesmas reflexões que foram aqui levantadas: Por que será que o autor optou por representar QUI para QUE, VÔ para VOU, TIRÁ para TIRAR? Será que essas marcas linguísticas são representativas apenas das comunidades rurais ou também se fazem presentes nas falas mais urbanas? UNIDADE 3 | CONTRIBUIÇÕES DA SOCIOLINGUÍSTICA PARA A EDUCAÇÃO 130 Até aqui, vimos o primeiro principal problema identificado por Bagno (2007) nos livros didáticos de língua portuguesa: a tendência de tratar da variação linguística como sinônimo de variedades regionais, rurais ou de pessoas não escolarizadas. O segundo problema, como mencionado anteriormente, se refere à prática de propor exercícios de reescrita da norma estigmatizada para a norma padrão ou “culta”. Nesse sentido, diante de uma representação da fala de Chico Bento, por exemplo, haveria uma atividade de reescrita da fala para a “norma culta”. Nesse tipo de atividade, vale destacar, há um problema conceitual, pois o termo “norma culta” abarca as variedades prestigiadas de uma língua, e não necessariamente a norma padrão. Além disso, esse tipo de atividade pode se revelar como preconceito linguístico, uma vez que discrimina o falar rural, solicitando que seja corrigido de alguma forma. “Se existe algum trabalho pedagógico interessante a ser feito com Chico Bento, é precisamente o de valorizar as diferenças socioculturais que o personagem tenta encarnar” (BAGNO, 2007, p. 123). A conscientização da variação linguística numa pedagogia culturalmente sensível não se dá por meio da correção, mas da identificação de que a variação ocorre em todos os estratos e situações sociais. Logo, é dentro de textos (orais ou escritos) do próprio estudante que o uso da norma padrão ou monitoramento da fala deve ser exigido, por meio do exercício de adequação linguística. Bagno (2007) sugere trabalhar, em sala de aula, com variedades linguísticas autênticas. Por isso, indica como uma fonte de fácil acesso o portal do Museu da Língua Portuguesa na internet (www.museudalinguaportuguesa.org.br), que possui amplo material para pesquisa e estudo acerca da língua falada e língua escrita. Alguns links que podem ser úteis: • http://museudalinguaportuguesa.org.br/wp-content/uploads/2017/09/menas.pdf. • http://museudalinguaportuguesa.org.br/wp-content/uploads/2017/09/Saber-uma- li%CC%81ngua-e%CC%81-separar-o-certo-do-errado.pdf. • http://museudalinguaportuguesa.org.br/estacao-educativo/biblioteca/lingua/. • http://museudalinguaportuguesa.org.br/wp-content/uploads/2017/10/Projetos- cienti%CC%81ficos-sobre-o-portugue%CC%82s-brasileiro.pdf. DICAS TÓPICO 1 | O TRATAMENTO DAS VARIEDADES NO ENSINO DE LÍNGUA PORTUGUESA 131 LEITURA COMPLEMENTAR Recortamos um trecho do Capítulo 6 (A variação linguística nos livrosdidáticos) do livro “Nada na língua é por acaso: por uma pedagogia da variação linguística”, escrito por Marcos Bagno. Esta leitura pode servir como um instrumento de análise crítica e reflexiva acerca do tratamento dado pelos livros didáticos (LD) aos fenômenos da variação e da mudança linguísticas, por meio de um roteiro composto por dez questões. UM ROTEIRO PARA ANALISAR OS LIVROS DIDÁTICOS 1- O livro didático trata da variação linguística? Essa é a pergunta principal, porque se o LD não tratar de variação linguística em nenhum momento, ele já se revela fora de sintonia com as propostas mais avançadas de educação em língua materna, até mesmo no que diz respeito às diretrizes oficiais de ensino. Se for esse o caso, e se você considerar que, em outros aspectos, o LD faz um bom trabalho e merece ser utilizado, então caberá a você elaborar por conta própria uma boa abordagem dos fenômenos de variação. [...] 2- O livro didático menciona de algum modo a pluralidade de línguas que existem no Brasil? Por causa da formação histórica da sociedade brasileira, uma formação marcada por toda sorte de violência e de autoritarismo, existe na nossa cultura o mito muito poderoso do monolinguismo. Todo o discurso que circula na sociedade carrega a noção de que ser brasileiro é sinônimo de ser falante de português. O Brasil, no entanto, está na pequena lista dos oito países que abrigam no seu território metade das línguas faladas no mundo (os outros sete são, pela ordem, Índia, Indonésia, Papua Nova Guiné, Nigéria, Camarões, México e Austrália, com o Brasil no oitavo lugar). Se considerarmos que existem cerca de 6.000 línguas no planeta, metade delas são faladas nesses oito países, sendo quase 1.000 só na Índia! Das quase 210 línguas que coexistem com o português, cerca de 190 são línguas indígenas (um décimo do total de línguas que se falava no território brasileiro no início da colonização), usadas por um total de mais ou menos 300 mil descendentes dos primeiros habitantes do território – sobreviventes de uma longa história de extermínio sistemático praticado durante os quatro séculos de colonização e, em boa medida, perpetuada até hoje na forma de uma situação social de extrema indigência e de exclusão absoluta. [...] Além das línguas indígenas, convivem com o português brasileiro quase 20 línguas de origem europeia e asiática, trazidas pelos imigrantes que se estabeleceram no Brasil desde o início do século XIX, logo após a independência (1822). [...] Nos quase 16.000 quilômetros de fronteiras terrestres com os países vizinhos, o português brasileiro vive em contato com outras línguas, sobretudo com o espanhol, falado em sete dos dez países limítrofes. [...] UNIDADE 3 | CONTRIBUIÇÕES DA SOCIOLINGUÍSTICA PARA A EDUCAÇÃO 132 O plurilinguismo brasileiro sempre foi silenciado, inclusive por meio de ações violentas, como proibições formais, massacres de povos indígenas, legislações que condenavam à prisão quem falasse outras línguas etc. É uma pena que toda essa história permaneça oculta e que a escola continue preservando o mito do monolinguismo que, para piorar, foi construído na ilusão de que o Brasil é um “milagre” linguístico porque todos os brasileiros se entendem perfeitamente num território maior do que a Europa ocidental [...] 3- O tratamento se limita às variedades rurais e/ou regionais? Os livros didáticos mais vendidos no Brasil são escritos e produzidos, em sua maioria, na região Sudeste (com predomínio no estado de São Paulo) e, em menor medida, na região Sul (com predomínio do Paraná), sempre por autores vinculados à cultura das grandes cidades. Com isso, pela própria origem social dos autores, as variedades linguísticas mais representadas nessas obras são as urbanas dessas regiões. O “diferente”, o “exótico”, o “pitoresco” será inevitavelmente o que vier de fora, o Outro, o que não fizer parte daquele universo sociocultural, que acaba sendo considerado (enganosamente) “neutro”, “normal”, “comum”. É por isso que, no tratamento da variação linguística, esses livros quase unanimemente recorrem a exemplos das variedades rurais de suas próprias regiões (em geral exemplos não autênticos, como o Chico Bento) ou de variedades de outras regiões brasileiras. Desse modo, como os LD produzidos no Sudeste- Sul são adotados em todo o território nacional, o usuário da obra didática é levado a acreditar que o seu modo de falar, por não estar representado no livro, é “estranho” ou “errado”. [...] Tudo isso deve ser analisado e devidamente criticado, para que o trabalho na escola não reproduza os mesmos estereótipos e as mesmas discriminações que vigoram na sociedade em geral. 4- O livro didático apresenta variantes características das variedades prestigiadas (falantes urbanos, escolarizados)? Essa é uma pergunta que, infelizmente, até agora, só tem podido ser respondida de forma negativa. Mesmo os livros didáticos que conseguem tratar da variação linguística de maneira relativamente satisfatória acabam deixando de lado as variedades urbanas, por causa do prestígio socialmente conferido à fala dos cidadãos urbanos mais letrados, fica a ilusão de que eles se comportam linguisticamente de acordo com as prescrições da gramática normativa. Isso se revela na confusão terminológica entre “norma culta” e “norma padrão”, tomadas como sinônimos, quando de fato não são, numa perspectiva científica rigorosa. Atenção: não abordaremos as variedades prestigiadas com a intenção de denunciar os “erros” e os “abusos” que “até mesmo” os falantes escolarizados cometem contra a língua! [...] Mostrar que ocorre variação em todas as camadas sociais ajuda a gerar a consciência de que a língua é essencialmente heterogênea, variável e mutante, e que não existe nenhum grupo social que fale mais “certo” ou mais “errado” do que outro e que, principalmente, a gramática normativa não encerra a verdade eterna, última e absoluta sobre a língua. TÓPICO 1 | O TRATAMENTO DAS VARIEDADES NO ENSINO DE LÍNGUA PORTUGUESA 133 5- O livro didático separa a norma padrão da norma culta (variedades prestigiadas) ou continua confundindo a norma padrão com uma variedade real da língua? Esse é um dos maiores problemas da abordagem da variação linguística, não só nos livros didáticos, mas também em muitos trabalhos acadêmicos sobre questões sociolinguísticas – o problema da terminologia. Só para lembrar: O PEDRO, EU CONHEÇO ELE MUITO BEM é um exemplar da norma culta brasileira (variedades prestigiadas), porque todos os falantes brasileiros urbanos e altamente escolarizados usam o pronome ELE como objeto direto. Esse uso, no entanto, não é acolhido pela tradição normativa, portanto, não faz parte da norma padrão. Por isso, como também já dissemos, não faz muito sentido usar termos como variedade padrão, língua padrão, dialeto padrão, porque o padrão não é variedade, nem língua, nem dialeto – para tratar de variedade, língua e dialeto, é preciso que existam pessoas de carne e osso falando essa variedade, língua ou dialeto, e ninguém fala (nem escreve) o padrão, nem no máximo grau de monitoramento estilístico. Como o próprio nome diz, é um padrão, um modelo idealizado (e muito ideologizado). [...] 6- O tratamento da variação ao livro didático fica limitado ao sotaque e ao léxico, ou também aborda fenômenos gramaticais? É muito frequente, nos materiais didáticos, a abordagem da variação linguística se restringir a fenômenos que poderíamos chamar de superficiais: o sotaque e o léxico. [...] Muito frequente também é o tratamento da variação se limitar a comparar sotaque e léxico do português brasileiro e do português europeu, sem se aprofundar nas questões mais importantes para o ensino no Brasil e transformando a variação linguística, ainda que involuntariamente, numa lista de coisas engraçadas e curiosas [...]. Existe um nível mais profundo de variação linguística que em geral é pouco abordado: a variação morfossintática. [...] Na tarefa de inserçãodo aprendiz no mundo da leitura e da escrita, o reconhecimento das diferenças que existem entre a gramática das variedades estigmatizadas, a gramática das variedades prestigiadas e a norma padrão é indispensável. Um único exemplo, o do paradigma da conjugação verbal, basta para demonstrar isso: VARIEDADES +ESTIGMATIZADAS VARIEDADES +PRESTIGIADAS NORMA-PADRÃO eu FALO eu FALO eu FALO você [tu] FALA você FALA tu FALAS ele ele ele FALA a gente [nós] a gente nós FALAMOS eles nós FALAMOS vós FALAIS vocês FALAM eles FALAM eles UNIDADE 3 | CONTRIBUIÇÕES DA SOCIOLINGUÍSTICA PARA A EDUCAÇÃO 134 [...] 7- O livro didático mostra coerência entre o que diz nos capítulos dedicados à variação linguística e o tratamento que dá aos fatos de gramática? Ou continua, nas outras seções, a tratar do “certo” e do “errado”? [...] Assim, para analisar a coerência do tratamento da variação linguística no LD, é preciso não se limitar ao capítulo ou unidade que aborda especificamente esses temas, mas também investigar o trabalho que ele faz na obra com relação ao ensino de gramática. É incoerente pedir respeito e tolerância diante da variação linguística e dizer, nos exercícios de gramática, que usar o pronome ELE como objeto direto é um “erro”, ou que o pronome VOCÊ é apenas uma “forma de tratamento”, ou que é “proibido” iniciar frases com pronome oblíquo, ou que não se pode dizer EU CUSTO A CRER, mas somente CUSTA-ME CRER... [...] 8- O livro didático explicita que também existe variação entre fala e escrita, ou apresenta a escrita como homogênea e a fala como lugar de erro? [...] Entre a fala mais espontânea e a escrita mais monitorada existe um amplo contínuo de gêneros textuais que representam as realizações empíricas da língua nas interações sociais. [...] No mundo contemporâneo, com o surgimento da comunicação virtual, por meio do computador, a separação entre o que é tipicamente falado e o que é tipicamente escrito se torna cada vez mais fluida – é só pensar que um bate-papo na internet se faz por meio de sinais escritos... [...] 9- O livro didático aborda o fenômeno da mudança linguística? Como? [...] exatamente como no tratamento da variação, é muito frequente limitar a abordagem da mudança às questões de vocabulário. Mal dá para contar quantas vezes aparece, em LD, a crônica “Antigamente” de Carlos Drummond de Andrade, para tratar de palavras e expressões que não são mais usadas hoje em dia... Seria muito bom se os livros começassem a dar exemplos de textos antigos para mostrar que a língua mudou, não só no léxico, mas principalmente na sua gramática, nas regras que fazem a língua funcionar como funciona. [...] 10- O livro didático apresenta a variação linguística somente para dizer que o que vale mesmo, no fim das contas, é a norma padrão? Essa é uma forma muito sutil de preconceito linguístico: abordar a variação linguística, mostrar que a língua é heterogênea para, no final, insistir na preservação de um modelo idealizado de língua, de um padrão normativo extremamente rígido e conservador. [...] FONTE: BAGNO, M. Nada na língua é por acaso: por uma pedagogia da variação linguística. São Paulo: Parábola Editorial, 2007. p. 125-139. 135 RESUMO DO TÓPICO 1 Neste tópico, você aprendeu que: • O ensino de gramática faz parte do ensino da língua, mas não deve se restringir à abordagem normativa-prescritiva. • O estudo das regras gramaticais permite identificarmos que a língua possui componentes mais fixos (ex.: posição do artigo faz parte daquele componente rígido: vem sempre antes do substantivo) e mais flexíveis (ex.: Meu livro ou O meu livro, porcentagem ou percentagem). • Todos os usos da língua são submetidos à aplicação de regras, sejam eles pertencentes à norma padrão ou às diversas variedades linguísticas faladas por distintas comunidades. Por isso, atividades de análise e reflexão de regras gramaticais precisam contemplar essa realidade em diferentes níveis (morfológico e suas interfaces, sintático, semântico, pragmático). • Estudar a nomenclatura gramatical não é o mesmo que estudar as regras gramaticais. A nomenclatura gramatical é importante para a abordagem científica dada à língua, a fim de possibilitar a identificação dos elementos gramaticais em estudo com sucesso. • O tratamento da variação linguística nos livros didáticos tem se manifestado cada vez mais, embora necessite de aprofundamento. • Há livros didáticos que ainda realizam confusões teóricas com relação à norma culta e norma padrão, além de realizarem algumas confusões ao entendimento de que há variação nos diferentes níveis da língua, de que variação não é apenas regional ou de baixa escolaridade, de que no Brasil se falam várias línguas. • Há dois principais problemas dos livros didáticos com relação à variação linguística (isto quando ela aparece no livro): 1. A tendência de tratar da variação linguística como sinônimo somente de variedades regionais, rurais ou de pessoas não escolarizadas; 2. A prática de propor exercícios de reescrita da norma estigmatizada para a norma padrão ou “culta”. 136 1 (ADAPTADO DO ENADE, 2011) No excerto a seguir, encontram-se algumas atividades propostas em livro didático de língua portuguesa: Atividades com trecho do poema O operário em construção, de Vinícius de Moraes. Proposta: [...] 2- Aponte todos os substantivos presentes no texto. 3- Aponte um substantivo abstrato presente no texto. 4- Aponte um substantivo concreto presente no texto. 5- Qual é o único substantivo presente no texto que admite uma forma para o masculino e outra para o feminino? 6- Há, no texto, algum substantivo próprio? Em caso afirmativo, aponte-o. AZEVEDO, D. G. Palavra e criação: língua portuguesa. São Paulo: FTD, 1996. v. 8, p. 102 (com adaptações). Sobre as atividades, assinale V para a(s) sentença(s) verdadeira(s) e F para a(s) falsa(s): ( ) As atividades revelam um contexto de aprendizagem acerca das regras gramaticais da norma padrão da língua portuguesa. ( ) As atividades usam o poema como recurso e pretexto para trabalhar com os alunos tópicos de gramática, ignorando aspectos mais relevantes. ( ) A proposta apoia-se em atividades que representam uma confusão sobre o conhecimento da nomenclatura gramatical com o aprendizado da língua e suas regras gramaticais. Agora, assinale a alternativa que apresenta a sequência CORRETA: a) ( ) V – V – F. b) ( ) V – V – V. c) ( ) F – V – V. d) ( ) F – F – V. 2 Todos os usos da língua são submetidos à aplicação de regras, sejam eles pertencentes à norma padrão ou às diversas variedades linguísticas faladas por distintas comunidades. No entanto, existem regras gramaticais que pertencem a componentes mais fixos e outras a mais flexíveis. Diante dessas considerações, leia as sentenças a seguir: I- A mesa é branca. II- A gente comprou uma mesa branca. AUTOATIVIDADE 137 Explique o componente fixo destacado na sentença I e o componente flexível destacado na sentença II. 3 O ensino de gramática faz parte do ensino da língua, mas não deve se restringir à abordagem normativa-prescritiva, já que ao estudante deve ser oportunizado estudar a língua em uso. Diante disso, analise as sentenças a seguir: I- O estudo de regras gramaticais significa priorizar a norma padrão na escola. II- As atividades de identificação da nomenclatura gramatical explicam as regras da norma padrão da língua e outras variedades. III- As regras gramaticais evidenciam que há componentes fixos e flexíveis na língua. Assinale a alternativa CORRETA: a) ( ) Apenas a sentença III está correta. b) ( ) Todas as sentenças estão corretas. c) ( ) As sentenças I e III estão corretas. d) ( ) As sentenças II e III estão corretas. 4 Você viu que o estudo das regras gramaticais faz parte do estudo da língua. Por isso, não pode ser ignorado na escola. No entanto, também deve-se ter cuidado para não se confundir estudo das regras gramaticais e estudo das nomenclaturas gramaticais.Explique a diferença entre regras e nomenclaturas gramaticais. 5 Dentro da abordagem descritiva da língua, é possível realizarmos a descrição de qualquer variedade linguística, reconhecendo suas regras gramaticais. Nesse sentido, explique a afirmação: todos os usos da língua são submetidos à aplicação de regras. 6 O tratamento da variação linguística nos livros didáticos tem se manifestado cada vez mais, embora necessite de aprofundamento. Leia o texto a seguir e marque V para a(s) sentença(s) verdadeira(s) e F para a(s) falsa(s), considerando os estudos realizados até o momento nesta disciplina: Coisas do Meu Sertão Patativa do Assaré Seu dotô, que é da cidade Tem diproma e posição E estudou derne minino Sem perdê uma lição, Conhece o nome dos rios, Que corre inriba do chão, Sabe o nome de estrela 138 Que forma constelação, Conhece todas as coisa Da história da criação E agora qué i na Lua Causando admiração, Vou fazê uma pergunta, Me preste bem atenção: Pruque não quis aprendê As coisa do meu sertão? ( ) O texto é uma boa representação de variação linguística para atividades de identificação e conscientização, uma vez que permite reescrita para a norma culta. ( ) A omissão do R em “fazê” pode ser discutida nas aulas de língua portuguesa como marca de variação linguística urbana. ( ) O uso do texto literário para o estudo de variação linguística constitui em uma prática pedagógica recomendável, uma vez que permite exemplificar a realidade da língua portuguesa. Assinale a alternativa que apresenta a sequência CORRETA: a) ( ) V – F – V. b) ( ) F – V – F. c) ( ) V – F – F. d) ( ) V – V – F. 139 TÓPICO 2 AS LÍNGUAS EM CONTATO E OS COMPORTAMENTOS E ATITUDES COM RELAÇÃO ÀS LÍNGUAS E SEUS FALANTES UNIDADE 3 1 INTRODUÇÃO No tópico anterior, vimos alguns elementos importantes sobre o ensino de gramática na escola e os problemas que, de modo geral, aparecem nos livros didáticos de língua portuguesa para a educação básica, apesar da melhora crescente que apresentam ao tratamento destinado ao estudo da linguagem. No presente tópico, traremos a você algumas considerações sobre as línguas de contato, levando em conta que dificilmente você irá se deparar com uma sala de aula inteiramente monolíngue. Nesse contexto, conceitos sobre diglossia, sabir, pidgin, línguas crioulas, línguas veiculares serão levantados para a nossa conversa. Também pretendemos retomar o estudo sobre as variedades linguísticas, a fim de introduzirmos o que é dialeto, socioleto, etnoleto, cronoleto, idioleto. Esses conceitos, pois, contribuem para a concepção de que não há língua sem variação. Logo, são importantes para desconstruirmos os mitos acerca da homogeneidade da língua portuguesa no Brasil. Por isso, é importante que você, futuro professor, conheça e compreenda esses conceitos. Em seguida, no âmbito da variação linguística, trazemos à discussão os comportamentos e atitudes acerca das línguas, suas variedades e seus falantes, bem como o preconceito linguístico. Vamos iniciar mais esta etapa de estudos? 2 CONSIDERAÇÕES SOBRE AS LÍNGUAS EM CONTATO Antes de iniciarmos nossa conversa acerca dos comportamentos e atitudes sobre as línguas e seus falantes, é importante abordarmos alguns conceitos vinculados a situações do multilinguismo, frequentemente ignoradas em políticas educacionais, e à presença da variação linguística (que é inevitável) na própria língua portuguesa. Conforme o sociolinguista francês Louis-Jean Calvet pontua, o multilinguismo faz com que as línguas estejam constantemente em contato, e “o lugar desses contatos pode ser o indivíduo (bilíngue, ou em situação de aquisição) ou a comunidade. E o resultado dos contatos é um dos primeiros objetos de estudo da sociolinguística” (CALVET, 2002, p. 35). 140 UNIDADE 3 | CONTRIBUIÇÕES DA SOCIOLINGUÍSTICA PARA A EDUCAÇÃO No Brasil, como você viu na Unidade 2, construiu-se um mito do monolinguismo, pautado na concepção de que aqui só se fala português. No entanto, pesquisas no âmbito da sociolinguística (e/ou sociologia da linguagem) e da linguística aplicada desvelam um cenário bem diferente. Oliveira (2000), cujo trabalho se destaca no campo das políticas linguísticas para o multilinguismo, sinaliza para as mais de 200 línguas faladas no Brasil. Essas línguas, por conseguinte, geram uma situação sociolinguística complexa, uma vez que não só interferem na variação linguística em língua portuguesa, mas também nas práticas de translinguagem, nos empréstimos e interferências (como já estudado na Unidade 2). Nesse sentido, é importante olharmos para a formação linguística de uma comunidade considerando também alguns outros conceitos da sociolinguística, tais como: línguas aproximativas (como as línguas veiculares, o crioulo, o pidgin e o sabir) e a diglossia, como resultado do contato linguístico. As línguas veiculares consistem naquelas utilizadas em situação de contato entre os falantes que mutuamente desconhecem a língua um do outro (CALVET, 2002). A língua veicular, portanto, é utilizada com o intuito de possibilitar a comunicação entre pessoas que não partilham da mesma língua vernácula. Vernáculo consiste em um termo utilizado para a língua que representa o Estado, a nação, ou para as variedades linguísticas populares (variedades vernáculas), como é o português popular brasileiro. NOTA Imagine, como exemplo de língua veicular, um refugiado sírio que chega ao Brasil sem falar português e procura estabelecer diálogo com brasileiros que não falam árabe. Para se compreenderem, esses interlocutores tentarão utilizar uma terceira língua que conheçam, como a língua inglesa, por exemplo. Nesse sentido, por meio de uma língua veicular, conseguiram encontrar uma forma de conversarem entre si. TÓPICO 2 | AS LÍNGUAS EM CONTATO E OS COMPORTAMENTOS E ATITUDES COM RELAÇÃO ÀS LÍNGUAS E SEUS FALANTES 141 A língua inglesa, nesse contexto, não é a língua materna dos falantes que precisam estabelecer comunicação mesmo desconhecendo a língua um do outro. No entanto, é a primeira língua de alguma outra comunidade, como de falantes ingleses, australianos, canadenses, estadunidenses, entre outros. Nesse sentido, a língua inglesa, ainda que seja língua materna de alguma comunidade, no exemplo dado anteriormente, é língua veicular para os falantes sírio e brasileiro NOTA Precisamos considerar o fato de que nem sempre haverá uma língua veicular disponível – já imaginou se o refugiado tentasse utilizar uma terceira língua que o brasileiro desconhecesse? Diante da necessidade de comunicação, ainda é possível inventarem para si outra forma de língua aproximativa, que pode ser uma língua sabir ou um pidgin. Afinal, qual é a diferença entre um sabir e um pidgin? Calvet (2002) distingue esses dois conceitos de língua pela estrutura que assumem: Estas formas, chamadas de sabirs, são originalmente utilizadas entre comunidades que não têm língua comum, mas que mantêm, por exemplo, relações comerciais. Trata-se de um sistema extremamente restrito: algumas estruturas sintáticas e um vocabulário limitado às necessidades de comunicação imediata. Quando essas formas cobrem necessidades de comunicação mais amplas e seu sistema sintático se torna mais desenvolvido, fala-se de pidgins [...]” (CALVET, 2002, p. 42). Como você deve ter notado, o sabir e o pidgin não são línguas maternas de ninguém, uma vez que nascem da necessidade de comunicação imediata. O sabir, um sistema linguístico gerado por línguas de contato é muito mais restrito em comparação ao pidgin. A origem do sabir, segundo Calvet (2002, p. 169), vem da “língua de contato formada por elementos provenientes do italiano, árabe, grego, turco e espanhol, desaparecida por volta de 1900, e que foi utilizada nos portos do Mediterrâneo desde a Idade Média”. O pidgin, por sua vez, é uma língua de contato cujo sistema linguístico já se desenvolveu um pouco mais em comparação ao sabir, e sua origem podeapresentar algumas controvérsias entre linguistas (CALVET, 2002). Um exemplo de pidgin que podemos mencionar se refere ao violento período em que africanos, de origens diferentes, foram retirados de suas terras e escravizados, levados para plantações em outros países (CALVET, 2002). Como não podiam se comunicar em suas línguas maternas, tiveram de criar um pidgin como língua aproximativa. 142 UNIDADE 3 | CONTRIBUIÇÕES DA SOCIOLINGUÍSTICA PARA A EDUCAÇÃO Acerca do contexto brasileiro, vale destacarmos que o pidgin, “desenvolvido como meio de comunicação de emergência nas comunidades de escravos”, influenciou as variedades regional-rurais existentes hoje (BORTONI-RICARDO, 2005, p. 35). Nesse sentido, encontramos, na sala de aula, variedades que são decorrentes de um pidgin, conforme destaca Bortoni-Ricardo (2005). Quando discutimos as línguas aproximativas, também é importante lembrarmo-nos de que o crioulo faz parte desse contexto. Com a chegada de imigrantes haitianos ao Brasil, em fluxos mais recentes, é possível que você tenha ouvido falar sobre as línguas crioulas, já que fazem parte do repertório linguístico de grande parte da população haitiana. Segundo Calvet (2002, p. 52): Para alguns, um crioulo é um pidgin que se tornou língua veicular (isto é, a língua primeira de uma comunidade), tendo um léxico muito mais ampliado, uma sintaxe mais elaborada e campos de uso variados. O crioulo se caracteriza então por um vocabulário emprestado a uma língua dominante, a dos plantadores, e uma sintaxe fundada sobre a sintaxe das línguas africanas. Outros enfatizam que nenhuma descrição pôde provar verdadeiramente as relações entre a gramática dos crioulos e as das línguas africanas e se inclinam especialmente para a hipótese de uma aproximação de aproximação. A aproximação de aproximação a qual Calvet (2002) se refere é a tese de que, na ilha da Reunião, os africanos escravizados adquiriram um francês sumário (“uma aproximação do francês”). Os novos escravizados que chegavam à ilha aprendiam esse francês sumário com os mais antigos, desencadeando em uma nova língua: o crioulo adquirido de “uma aproximação de aproximação”. Nesse contexto, é importante entendermos que o contato linguístico gera conflitos nas necessidades de comunicação, possibilitando o surgimento de novas línguas ou até o desaparecimento de determinadas línguas, de variedades linguísticas, além das possibilidades de situações de translinguagem (conforme estudado na Unidade 2) e de usos de línguas veiculares. Diante disso, as pesquisas sociolinguísticas de línguas em contato identificaram a necessidade de uma nova discussão importante no campo: a noção de diglossia. Em 1959, o linguista americano Charles A. Fergunson lança um conceito de diglossia, adaptando-o do francês, diglossie, como a existência, “dentro das fronteiras de uma mesma comunidade, de duas variedades [uma variedade alta e uma variedade baixa] de uma mesma língua, cada uma destinada a propósitos distintos” (FERGUNSON, 1959 apud FRITZEN, 2007, p. 76). A função de cada variedade, para o autor, é uma das características mais importantes da diglossia. Pensando nos domínios de língua, Fergunson (1959 apud FRITZEN, 2007, p. 76) entende que a “variedade alta seria empregada, por exemplo, para fins burocráticos, acadêmicos, religiosos, enquanto a baixa em situações mais íntimas ou informais, como no lar, entre amigos, em correspondência pessoal”. TÓPICO 2 | AS LÍNGUAS EM CONTATO E OS COMPORTAMENTOS E ATITUDES COM RELAÇÃO ÀS LÍNGUAS E SEUS FALANTES 143 O também linguista americano Joshua Fishman (1971) ampliou a noção de diglossia utilizada por Fergunson (1959). Fishman (1971 apud FRITZEN, 2007 p. 76) incluiu “situações de bilinguismo em que duas diferentes línguas são usadas para funções comunicativas distintas”. Nesse contexto, o bilinguismo é estudado a partir da diglossia-fenômeno social, em contraposição ao bilinguismo como fato individual (CALVET, 2002). Calvet (2002, p. 61-62) exemplifica a noção de diglossia de Fishman concretizada em quatro situações polares: 1- Bilinguismo e diglossia: todos os membros da comunidade conhecem a forma alta e a forma baixa. É o caso do Paraguai (espanhol e guarani). 2- Bilinguismo sem diglossia: há numerosos indivíduos bilíngues em uma sociedade, mas não se utilizam das formas linguísticas para usos específicos. Esse seria o caso de situações instáveis, de situações em transição entre uma diglossia e uma outra organização da comunidade linguística. 3- Diglossia sem bilinguismo: numa comunidade social há a divisão funcional de usos entre duas línguas, mas um grupo só fala a forma alta, enquanto a outra só fala a forma baixa. [...] 4- Nem diglossia nem bilinguismo: há uma só língua. Só se pode imaginar essa situação em uma comunidade muito pequena. Vale alertar que, embora o conceito de diglossia até aqui apresentado tenha exercido forte influência na sociolinguística, novas pesquisas na área passaram a questionar um ponto frágil na sua definição: “a relativa estabilidade da variedade alta e da baixa que a noção desse fenômeno [proposto por Fergunson e ampliado por Fishman] implica” (FRITZEN, 2007, p. 76). Essa definição é tida como frágil porque o contato sempre gera conflito, uma vez que as línguas e/ou as variedades linguísticas sempre disputam alguma legitimidade nos espaços geográficos, o que gera novas mudanças linguísticas ou a permanência de variações. IMPORTANT E Quando falamos, hoje, em diglossia, consideramos as disputas e conflitos que ela implica na realidade multilíngue, na relação entre as diferentes línguas em contato e o uso de diferentes variedades dessas línguas. Para exemplificar, podemos pensar na situação bilíngue de surdos na educação básica brasileira, que se comunicam diariamente em Libras, mas utilizam a língua portuguesa nas tarefas escritas escolares. Há um conflito constante na presença dessas duas línguas na escola, considerando que as atividades avaliativas tendem a ser realizadas na língua portuguesa, dificilmente na língua materna desse estudante 144 UNIDADE 3 | CONTRIBUIÇÕES DA SOCIOLINGUÍSTICA PARA A EDUCAÇÃO surdo. Além disso, como estudante bilíngue, revela as marcas desse bilinguismo nos usos do português constantemente, o que também gera conflitos. A língua portuguesa em uso por um surdo, que apresenta as marcas do bilinguismo, tende a ser mal recebida, julgada negativamente, desvelando mais uma vez a situação de conflito na diglossia presente na sala de aula. A noção de diglossia, ao olharmos para o bilinguismo sob um aspecto social, contribui para a discussão acerca da política e planificação linguística, que será apresentada a você no Tópico 3 desta unidade. ESTUDOS FU TUROS Na Unidade 2, vimos as alternâncias entre as línguas e as práticas de translinguagem como estratégias linguísticas em situação de bi/multilinguismo, isto é, em situação de contato entre línguas. Nesta seção do Tópico 2 da Unidade 3, esperamos que você, prezado acadêmico, tenha refletido sobre a diglossia como um aspecto do bi/multilinguismo social, sobre as línguas veiculares, o sabir, o pidgin, bem como o crioulo como outras estratégias linguísticas investigadas pela sociolinguística e importantes para os estudos da linguagem também na escola. Lembre-se, afinal, de que seu contexto escolar tende a ser multilíngue e, ignorar esse multilinguismo pode implicar perda linguística, dificuldades de aprendizagem e construções de estereótipos que fortaleçam o preconceito linguístico. Enquanto professor de língua portuguesa, suas atitudes e comportamentos diante do contato linguístico importam e muito para os falantes dessas línguas! Continue conosco para conhecer aspectos sobre o estudo da variedade linguística nas comunidades brasileiras, considerando o dialeto, o socioleto, o etnoleto, o cronoleto e o idioleto. 3 ESTUDANDO A VARIEDADE LINGUÍSTICA: SOCIOLETO, ETNOLETO, CRONOLETO E IDIOLETO Neste momento da sualeitura na disciplina de Sociolinguística, é importante que você consiga reunir subsídios para responder à seguinte questão: por que estudar a variação linguística? O tema variação linguística está constantemente presente nas nossas atitudes como professores de língua portuguesa, já que a variação, inevitável na vida social de qualquer pessoa, adentra a escola. Por conseguinte, a formação inicial do professor de língua portuguesa necessita contemplar aspectos de variação e preconceito linguístico, os mitos construídos acerca da homogeneidade TÓPICO 2 | AS LÍNGUAS EM CONTATO E OS COMPORTAMENTOS E ATITUDES COM RELAÇÃO ÀS LÍNGUAS E SEUS FALANTES 145 da língua portuguesa no Brasil e o apagamento do multilinguismo, assim como as políticas que buscam reverter, de certo modo, a invisibilidade que a história linguística brasileira desvela sobre a diversidade de línguas e seus falantes. Nesse sentido, esperamos que os estudos da sociolinguística possam contribuir para a sua prática pedagógica aberta à heterogeneidade, e que você possa assumir ações de ensino da língua que permitam ao estudante da educação básica descrever os fenômenos morfológicos, sintáticos, fonético-fonológicos, semânticos, pragmáticos, contextualizados dentro de variedades linguísticas, incluindo a norma padrão. Na Unidade 1 deste livro didático, você viu que existem diferentes tipos de variação linguística: variação diatópica, variação diastrática, variação diacrônica, variação diafásica e variação diamésica. Nesta seção da terceira unidade, veremos que também podemos classificar por tipos as diferentes variedades linguísticas: dialeto (tipicamente visto como variedade regional, embora o uso do termo tenha sido ampliado), socioleto (variedade social), etnoleto (variedade dos grupos étnicos), cronoleto (variedade de geração), idioleto (modo particular de cada um falar). Você lembra qual é a diferença entre os conceitos de variação e variedade na sociolinguística? A variação linguística corresponde ao processo pelo qual diferentes formas da língua podem ocorrer no mesmo contexto linguístico com o mesmo valor referencial, ou com o mesmo valor de verdade. A variedade representa o modo como uma comunidade fala (é o seu dialeto, por exemplo). IMPORTANT E NOTA Olhar para cada tipo de variedade linguística contribui não só na compreensão das características da variação, como também na prática pedagógica que ultrapassa a ideia de “erro” na língua para fortalecer o estudo dos diferentes modos de falar o português brasileiro. Irandé Antunes (2002, p. 130) afirma que “ninguém cria [...] suas próprias regras linguísticas. A língua é um fato social, um saber coletivo, que existe em função da interação do indivíduo com os seus pares”. 146 UNIDADE 3 | CONTRIBUIÇÕES DA SOCIOLINGUÍSTICA PARA A EDUCAÇÃO As variedades da língua portuguesa se constituíram por mudanças linguísticas ao longo de um percurso histórico, desde o latim, até os usos atuais. Essas mudanças, como vimos na Unidade 2, resultaram em traços descontínuos e graduais, revelando fenômenos de síncope (desaparecimento de fonema no interior de vocábulo; ex.: LETRA para o que era LITTERA, FIGO para FÍGADO), vocalização (transformação de consoante (lateral) em vogal; ex.: PAIA para PALHA), metátese (troca de lugares de fonemas ou sílabas dentro de um vocábulo; ex.: SEMPRE para o que antes era SEMPER, TAUBA para TÁBUA), entre outros. Vamos, agora, reconhecer o que significa cada tipo de variedade: a) Dialeto: “é um termo usado há muitos séculos, desde a Grécia Antiga, para designar o modo característico de uso da língua num determinado lugar, região, província etc.” (BAGNO, 2007, p. 48). É importante destacarmos, consoante Bagno (2007), que o termo dialeto, hoje, perde sua essência conceitual restrita à variedade regional para designar o que, na sociolinguística, preferimos chamar de variedade. Além disso, o senso comum tem construído uma representação negativa acerca do dialeto, como uma forma não gramatical da língua falada por pessoas sem instrução formal (FRITZEN; EWALD, 2011). Essa representação, contudo, não cabe à sociolinguística, uma vez que trata toda a realização linguística como variedade de mesmo valor para estudo. IMPORTANT E O sociolinguista Max Weinreich (1894-1969) popularizou a frase: “uma língua é um dialeto com um exército ou marinha” (NORDHOFF; HAMMARSTRÖM, 2011, p. 1), problematizando o fato de que não haveria diferença, sob o aspecto sociolinguístico, ao tratamento dado entre dialeto e língua. No entanto, a língua, diferentemente de um dialeto, tem status na sociedade para se tornar língua oficial de uma nação. Nesse sentido, seria possível afirmarmos que a língua é um dialeto com prestígio e o dialeto é uma língua sem prestígio. A língua, num cenário de preconceito, seria o que pessoas “civilizadas” utilizam, enquanto dialeto, visto de maneira pejorativa, consiste no desprezo a determinados modos de falar (CALVET, 2002). Línguas minoritárias tendem a ser denominadas, no senso comum, como dialetos (por não desfrutarem do status de língua padrão). TÓPICO 2 | AS LÍNGUAS EM CONTATO E OS COMPORTAMENTOS E ATITUDES COM RELAÇÃO ÀS LÍNGUAS E SEUS FALANTES 147 A sociolinguística tem trabalhado, no Brasil, com variedades de línguas de imigração sem fazer distinção de status entre elas: como Pommerisch e o Hunsruckisch (dialetos do alemão) e o Talien (dialeto do italiano), só para citar alguns exemplos. Quando usamos o termo dialeto/variedade na sociolinguística, portanto, não estamos nos distanciando do reconhecimento de língua, já que entendemos que toda língua é constituída por dialetos/variedades. É importante, também na educação básica, desconstruir estigmas vinculados à variação linguística e à constituição de variedades das línguas que compõem o cenário multilíngue nacional. Na língua portuguesa, em discurso majoritário, o falar caipira frequentemente tem sido visto como um dialeto, mas as variedades mais prestigiadas das línguas, faladas por pessoas escolarizadas de zonas urbanas não têm recebido a mesma designação. Como variedades linguísticas, na sociolinguística, todas elas são dialetos/variedades e recebem o mesmo tratamento científico. b) Socioleto: também chamado de dialeto social, “designa a variedade linguística própria de um grupo de falantes que compartilham as mesmas características socioculturais (classe socioeconômica, nível cultural, profissão etc.)” (BAGNO, 2007, p. 48). Nesse sentido, consoante Monteiro (2002), é possível identificarmos, pelas características da fala de um indivíduo, o grupo social ao qual pertence (como de surfistas, de advogados etc.). O socioleto usado por determinados sujeitos serve como uma reafirmação da sua identidade, isto é, aquele uso da língua o caracteriza como sendo parte de um determinado grupo, por isso o faz. Perceber que o próprio indivíduo, por meio de uma variedade linguística, se reconhece e é reconhecido por outros sujeitos como pertencente a um grupo social, também tem um papel importante no processo de ensino da língua em sala de aula. c) Etnoleto: é a variedade associada à determinada etnia/subgrupo cultural (MONTEIRO, 2002), e por isso tende a ser reconhecida como um dialeto de grupo étnico. d) Cronoleto: “designa a variedade própria de determinada faixa etária, de uma mesma geração de falantes” (BAGNO, 2007, p. 48). Para exemplificar, podemos pensar na facilidade que temos para identificar a diferença da fala dos idosos em comparação à de indivíduos mais jovens, em virtude de conservarem traços que já passaram por mudanças linguísticas (MONTEIRO, 2002). e) Idioleto: “designa o modo de falar característico de um indivíduo, suas preferências vocabulares, seu modo próprio de pronunciar as palavras, de construir as sentenças etc.” (BAGNO, 2007, p. 48). O conceito de idioleto contribui para reconhecermos que nenhuma comunidade é homogênea, uma vez que não existem “duas pessoas que falem igualmente,empregando os mesmos tipos de construção sintática, uma frequência igual na seleção de vocábulos ou uma realização de fonemas sem distinção” (MONTEIRO, 2002, p. 50). 148 UNIDADE 3 | CONTRIBUIÇÕES DA SOCIOLINGUÍSTICA PARA A EDUCAÇÃO Estudar os diferentes tipos de variedades linguísticas é importante para que reconheçamos que a realização da língua é influenciada pelos contextos de uso, se diferenciando e até se modificando conforme idade, sexo, classe social, grau de escolaridade, etnias, distâncias geográficas, além dos fatores linguísticos (como tonicidade silábica, posição da consoante da sílaba etc.). Fique conosco para estudar acerca dos comportamentos e atitudes sobre as variedades da língua que, quando negativos, resultam no preconceito linguístico. 4 COMPORTAMENTOS E ATITUDES SOBRE AS LÍNGUAS E SEUS FALANTES: PRECONCEITO LINGUÍSTICO Ao longo da disciplina de sociolinguística, vimos que em qualquer língua há variedades diferentes. Nesse sentido, é inevitável considerar que existem variantes que coexistem na sociedade de forma competitiva, como a disputa entre “tu” e “você”, “a gente” e “nós”, a disputa entre pronúncias etc. O uso de determinadas variantes pode assumir traços sociais, como escolaridade, região de origem do falante, classe social, entre outros. As variantes, relacionadas aos traços sociais, são constantemente julgadas pelos falantes de uma língua, que podem assumir atitudes positivas ou negativas frente a certos usos linguísticos. Considerar esses comportamentos e atitudes é importante para o estudo da linguagem, tendo em vista que “a valorização ou a desvalorização de uma determinada língua [ou variantes da língua] pode ser o fator decisivo entre a sua manutenção ou extinção” (CEREZOLI; MENDONÇA; SELLA, 2015, p. 1). Nesse contexto, consoante Labov (2008), as atitudes linguísticas são determinantes para os fatores de mudanças linguísticas, uma vez que só ocorre uma mudança na língua quando os falantes passam a aceitar a forma inovadora. Nesta seção, procuraremos sensibilizá-lo, prezado acadêmico, com a reflexão acerca das nossas atitudes frente às línguas e suas variações, bem como acerca dos preconceitos linguísticos em relação às variedades e aos seus falantes. Como você já deve ter observado, é impossível uma língua ser falada sem variação. Logo, todo falante, independentemente de grau de escolaridade ou situação socioeconômica, está sujeito à variação linguística. Diante dessa realidade, é pertinente questionarmos: se a língua é sempre realizada dentro de uma variedade, por que então algumas variedades são julgadas (no senso comum) como mais “erradas” que outras? Para responder tal pergunta, precisamos considerar fatores sociais, e não necessariamente linguísticos, pois o estigma e o prestígio a certas variedades estão associados aos seus falantes, à posição social que ocupam em uma escala socioeconômica, à escolarização e à própria origem geográfica. Conforme assinalam alguns linguistas, são os grupos de maior prestígio social que detêm poder para ditar qual variante da língua tem maior status, valorizando ou rejeitando determinados usos linguísticos (AGUILERA, 2008). TÓPICO 2 | AS LÍNGUAS EM CONTATO E OS COMPORTAMENTOS E ATITUDES COM RELAÇÃO ÀS LÍNGUAS E SEUS FALANTES 149 Vale lembrarmos que as variantes linguísticas de uma regra variável, mesmo quando não corresponderem à norma padrão, não são consideradas pela sociolinguística como erros. Bortoni-Ricardo e Oliveira (2013, p. 50) explicam a atitude linguística de classificar como “errados” alguns modos de falar e outros não: Alguns “erros” são vistos como menos salientes porque já se tornaram regra na língua falada pelos cidadãos mais letrados, passando, assim, muitas vezes, despercebidos. Bagno (2003) acredita que, por esse motivo, existam erros mais “errados” (ou mais “crassos”) do que outros e trabalha com a ideia de uma pirâmide das classes sociais, na qual a escala de “crassidade” é inversamente proporcional à escala de prestígio social, ou seja, quanto menos socialmente prestigiado for um indivíduo, mais erros serão encontrados na sua língua pelos membros das classes sociais mais prestigiosas. No campo de estudos da sociolinguística, sempre houve a problematização do que é visto como erro na fala das pessoas. Por isso, desde a Unidade 1, introduzimos os termos adequação e inadequação linguística, cujos conceitos se referem a um evento ou ato de fala que atende ou não “às expectativas do ouvinte em função dos papéis sociais de um outro” (BORTONI-RICARDO; OLIVEIRA, 2013, p. 48). Classificar meramente como erro um ato de fala pode ser reflexo do preconceito linguístico. Para assistir a uma introdução sobre o tema preconceito linguístico, acesse o link https://www.youtube.com/watch?v=TDCcSKl5maI, disponível no canal Brasil Escola, no YouTube. DICAS O preconceito linguístico se manifesta por meio de julgamentos, que costumam ser desrespeitosos e depreciativos com relação às variedades das línguas e seus falantes (SCHERRE, 2008). É, portanto, uma crença, sem fundamento científico, sobre a língua. IMPORTANT E 150 UNIDADE 3 | CONTRIBUIÇÕES DA SOCIOLINGUÍSTICA PARA A EDUCAÇÃO As variedades linguísticas mais sujeitas a preconceito linguístico são, normalmente, as que possuem características associadas a grupos de pessoas com menos prestígio na escala social ou a grupos de pessoas da área rural ou do interior do país. Este fato decorre do sentimento de superioridade – muito claro na mídia – dos grupos vistos como mais privilegiados, econômica e socialmente (SCHERRE, 2008, p. 12). Na Unidade 2, ao observar os traços descontínuos, você encontrou amostras de variantes frequentemente sujeitas ao preconceito linguístico, o qual leva a afirmações descabidas e desrespeitosas sobre seus falantes: não sabe falar português, fala tudo errado, empobrece a língua, só para citar alguns exemplos. De acordo com Scherre (2008), assim como os preconceitos de raça, religião ou gênero que, hoje, são passíveis de punição, o preconceito linguístico poderia também ser tratado com gravidade na sociedade. As teorias linguísticas e, mais especificamente, sociolinguísticas, contribuem constantemente no combate ao preconceito linguístico, tendo em vista sua “condição de propiciar um conhecimento dinâmico e aberto dos fenômenos que envolvem a linguagem humana” (SCHERRE, 2008, p. 19). No entanto, cabe salientar que as discussões sobre a legitimação das línguas e das suas variedades, além de científicas, também são políticas, o que melhor veremos no último tópico desta unidade. TÓPICO 2 | AS LÍNGUAS EM CONTATO E OS COMPORTAMENTOS E ATITUDES COM RELAÇÃO ÀS LÍNGUAS E SEUS FALANTES 151 Achou interessante o tema “preconceito linguístico”? Confira as sugestões de leituras que deixamos aqui para você: LIVROS PARA AMPLIAR O CONHECIMENTO SOBRE VARIAÇÃO E PRECONCEITO LINGUÍSTICO DICAS Doa-se lindos filhotes de Poodle FONTE: <http://twixar.me/W7LT>. Acesso em: 15 out. 2019. Preconceito linguístico FONTE: <http://twixar.me/47LT>. Acesso em: 15 out. 2019. A língua de Eulália FONTE: <http://twixar.me/b7LT>. Acesso em: 15 out. 2019. Nós cheguemu na escola, e agora? FONTE: <http://twixar.me/w7LT>. Acesso em: 15 out. 2019. FONTE: As autoras 152 UNIDADE 3 | CONTRIBUIÇÕES DA SOCIOLINGUÍSTICA PARA A EDUCAÇÃO A partir dos pressupostos até aqui apresentados, podemos compreender que é papel da escola oportunizar a aprendizagem dos modos diferentes de falar, que podem (ou devem) ser ajustados às situações sociais de uso, adotando um posicionamento científico, e não de preconceito. Por isso, a sociolinguística é indispensável na formação dos professores e nos currículos escolares (BORTONI- RICARDO; OLIVEIRA, 2013). Nas aulas de língua portuguesa, esperamos que os estudantes possam aprender a usar os recursos da variação para a competência sociolinguística, sem invisibilizar suas características sociodemográficas (BORTONI-RICARDO; OLIVEIRA,2013). Nesse sentido, como assinalam as autoras: Um professor poderá aceitar de seu aluno tanto “eu encontrei ele no jardim” quanto “eu o encontrei no jardim”, dependendo do contexto em que o enunciado apareça. Mas não poderá jamais aceitar que o aluno escreva: “eu encomtrei...”. Levar em conta essa flexibilidade que caracteriza a interação oral não monitorada não significa, todavia, que os professores estejam proibidos de fazer intervenções quando seus alunos não ajustam com propriedade a fala à formalidade da situação” (BORTONI-RICARDO; OLIVEIRA, 2013, p. 55). Em um programa televisivo do canal GNT, no qual o artista Fábio Porchat entrevista convidados, o tema preconceito linguístico surge em um tom bastante descontraído. Na oportunidade, Francisco Bosco fala sobre a invenção da gramática e como ela já nasce como uma invenção de classe. Confira o vídeo no link: https://www.youtube. com/watch?v=YDDeBLxKwrs&fbclid=IwAR3ikNvOOqS_dqWpmBjqyk5BjuSzzkCF4y- UEpnnjvpkblcdOYLGFLdYC9s. DICAS A sociolinguística, como temos defendido nesta disciplina, desempenha um papel crucial no combate ao preconceito linguístico com sua função científica de descrever as regularidades da língua nas mais diversas realizações, lutando para o reconhecimento dessa heterogeneidade em contexto escolar. No próximo tópico, veremos mais detalhadamente aspectos relacionados às políticas linguísticas, nas quais se situam a discussão sobre a legitimação das línguas e sua heterogeneidade. Antes de prosseguirmos, convidamos você a colocar em prática, por meio de algumas atividades, os conhecimentos construídos. 153 RESUMO DO TÓPICO 2 Neste tópico, você aprendeu que: • A sociolinguística (e/ou sociologia da linguagem) e a linguística aplicada desvelam o multilinguismo no Brasil, apesar da existência do mito de que aqui só se fala português. • O multilinguismo faz com que as línguas estejam constantemente em contato, gerando uma situação sociolinguística complexa. Por conseguinte, é importante olharmos para a formação linguística de uma comunidade, considerando: línguas aproximativas (como as línguas veiculares, o crioulo, o pidgin e o sabir) e a diglossia como fenômenos gerados pelo contato linguístico. • As línguas veiculares consistem naquelas utilizadas em situação de contato entre os falantes que mutuamente desconhecem a língua um do outro. Ex.: um falante de português e um falante de francês que desconhecem suas línguas optam por uma terceira língua, a veicular, para haver comunicação, que pode ser o espanhol, o inglês, entre outras. • Caso não haja uma língua veicular como opção de comunicação, é possível que os falantes inventem uma outra língua aproximativa, como o sabir ou o pidgin. • O sabir é uma língua aproximativa, cujo sistema é extremamente restrito: algumas estruturas sintáticas e um vocabulário limitado às necessidades de comunicação imediata. • O pidgin é uma língua aproximativa inventada para que os interlocutores, que desconheçam suas línguas mutuamente, possam estabelecer comunicação. Seu sistema sintático é mais desenvolvido que o do sabir. • O sabir e o pidgin não são línguas maternas de ninguém. • Há duas formas de definir as línguas crioulas: I. O crioulo é um pidgin que se tornou a língua primeira de uma comunidade, cujo vocabulário é emprestado de uma língua dominante e uma sintaxe é fundada sobre a sintaxe das línguas africanas; II. O crioulo é originado de uma aproximação de aproximação, isto é, os escravizados africanos ensinaram uma língua dominante sumária (aproximação da língua dominante) a outros escravizados que realizaram uma nova aproximação, gerando uma nova língua (crioula), ensinada de geração a geração. 154 • A diglossia é gerada em situação de contato linguístico, como resultado de um contexto sociolinguisticamente complexo, onde há diferentes línguas e variedades dessas línguas disputando espaços. • As variedades da língua portuguesa se constituíram por mudanças linguísticas ao longo de um percurso histórico, desde o latim, até os usos atuais. Essas mudanças resultaram em traços descontínuos e graduais, revelando fenômenos de síncope, vocalização, metátese, entre outros. • As variedades linguísticas podem ser classificadas por tipos: dialeto (tipicamente visto como variedade regional, embora o uso do termo tenha sido ampliado), socioleto (variedade social), etnoleto (variedade dos grupos étnicos), cronoleto (variedade de geração), idioleto (modo particular de cada um falar). • A língua é um dialeto que desfruta prestígio social, podendo assumir legitimação para língua padrão; o dialeto, no senso comum, é uma língua sem prestígio, desassociado de um padrão. Para a sociolinguística, toda língua é realizada em dialetos/variedades, o que implica no mesmo tratamento científico para descrição. • As atitudes sobre as variantes de uma mesma variável são determinantes para os fatores de mudanças linguísticas, uma vez que só ocorre uma mudança na língua quando os falantes passam a aceitar a forma inovadora. • O senso comum tende a julgar determinadas variantes como “erros”, mas, quando as variantes parecem estar associadas a cidadãos mais letrados, não recebem o mesmo julgamento. Essa atitude diante da língua pode ser reflexo de preconceito linguístico. • O preconceito linguístico é uma crença, sem fundamento científico, sobre a língua. Manifesta-se por meio de julgamentos, que costumam ser desrespeitosos e depreciativos com relação às variedades das línguas e seus falantes. O preconceito linguístico gera afirmações descabidas e desrespeitosas sobre seus falantes: não sabe falar português, fala tudo errado, empobrece a língua etc. 155 AUTOATIVIDADE 1 A sociolinguística (e/ou sociologia da linguagem) e a linguística aplicada desvelam o multilinguismo no Brasil, apesar da existência do mito de que aqui só se fala português. O multilinguismo reflete diretamente as realidades de contato linguístico que existem em nosso país. Diante desse contexto, analise as sentenças a seguir: I- O multilinguismo brasileiro só existe porque os falantes necessitam constantemente das línguas veiculares para comunicação com estrangeiros. II- Sabirs e pidgins correspondem ao vernáculo do português popular brasileiro, que é heterogêneo. III- No Brasil, a diglossia representa situação conflituosa, uma vez que o uso e as atitudes diante das variedades linguísticas e de diferentes línguas estão longe de serem estáveis. Agora, assinale a alternativa CORRETA: a) ( ) Apenas a sentença I está correta. b) ( ) As sentenças I e III estão corretas. c) ( ) As sentenças I, II e III estão corretas. d) ( ) Apenas a sentença III está correta. 2 O estudo sobre contato linguístico implica a necessidade de utilizarmos alguns conceitos da sociolinguística, tais como: língua veicular, sabir, pidgin, língua crioula, diglossia. Assinale a alternativa CORRETA que melhor pode conceituar uma língua crioula: a) ( ) Idioma de um país terceiro utilizada em situação de contato entre os falantes que mutuamente desconhecem a língua um do outro. b) ( ) Língua aproximativa, cujo sistema é extremamente restrito: algumas estruturas sintáticas e um vocabulário limitado às necessidades de comunicação imediata. c) ( ) Pidgin que se tornou a língua primeira de uma comunidade, cujo vocabulário é emprestado de uma língua dominante e cuja sintaxe é fundada sobre a sintaxe das línguas africanas. d) ( ) Língua aproximativa inventada para que os interlocutores, que desconhecem suas línguas mutuamente, possam estabelecer comunicação, sem que seja ensinada às próximas gerações de falantes. 3 A diglossia é gerada em situação de contato linguístico, como resultado de um contexto sociolinguisticamente complexo, onde podem haver diferentes línguas e variedades dessas línguas. Explique por que não podemos tratar de estabilidade linguística em situação de diglossia. 156 4 As variedades linguísticas podem ser classificadas por tipos:dialeto (tipicamente visto como variedade regional, embora o uso do termo tenha sido ampliado), socioleto (variedade social), etnoleto (variedade dos grupos étnicos), cronoleto (variedade de geração), idioleto (modo particular de cada um falar). Assinale a alternativa CORRETA que apresenta um exemplo de cronoleto: a) ( ) Um grupo de idosos entre 70 e 80 anos fala “Nós comemos”, enquanto um grupo de jovens entre 18 e 28 anos fala “A gente come”. b) ( ) Em uma comunidade de surfistas, o léxico “ixi”, para indicar uma interjeição de surpresa, faz parte da variedade de apenas um falante. c) ( ) O inglês vernacular negro estudado por Labov. d) ( ) O linguajar típico da região Sudeste do Brasil. 5 O sociolinguista Max Weinreich (1894-1969) popularizou a frase: “uma língua é um dialeto com um exército ou marinha”. Escreva um parágrafo crítico acerca dessa afirmação. 6 (ENADE, 2017) Texto 1 O apelido foi instantâneo. No primeiro dia de aula, o aluno novo já estava sendo chamado de "Gaúcho". Porque era gaúcho. Recém-chegado do Rio Grande do Sul, com um sotaque carregado. — Aí, Gaúcho! — Fala, Gaúcho! Perguntaram para a professora por que o Gaúcho falava diferente. A professora explicou que cada região tinha seu idioma, mas que as diferenças não eram tão grandes assim. Afinal, todos falavam português. Variava a pronúncia, mas a língua era uma só. E os alunos não achavam formidável que num país do tamanho do Brasil todos falassem a mesma língua, só com pequenas variações? — Mas o Gaúcho fala "tu"! — disse o gordo Jorge, que era quem mais implicava com o novato. — E fala certo — disse a professora. — Pode-se dizer "tu" e pode-se dizer "você". Os dois estão certos. Os dois são português. O gordo Jorge fez cara de quem não se entregara. 157 Um dia o Gaúcho chegou tarde na aula e explicou para a professora o que acontecera. — O pai atravessou a sinaleira e pechou. — O que? — O pai. Atravessou a sinaleira e pechou. A professora sorriu. Depois achou que não era caso para sorrir. Afinal, o pai do menino atravessara uma sinaleira e pechara. Podia estar, naquele momento, em algum hospital. Gravemente pechado. Com pedaços de sinaleira sendo retirados do seu corpo. — O que foi que ele disse, tia? — quis saber o gordo Jorge. — Que o pai dele atravessou uma sinaleira e pechou. — E o que é isso? — Gaúcho... Quer dizer, Rodrigo: explique para a classe o que aconteceu. — Nós vinha... — Nós vínhamos. — Nós vínhamos de auto, o pai não viu a sinaleira fechada, passou no vermelho e deu uma pechada noutro auto. A professora varreu a classe com seu sorriso. Estava claro o que acontecera? Ao mesmo tempo, procurava uma tradução para o relato do gaúcho. Não podia admitir que não o entendera. Não com o gordo Jorge rindo daquele jeito. "Sinaleira", obviamente, era sinal, semáforo. "Auto" era automóvel, carro. Mas "pechar" o que era? Bater, claro. Mas de onde viera aquela estranha palavra? Só muitos dias depois a professora descobriu que "pechar" vinha do espanhol e queria dizer bater com o peito, e até lá teve que se esforçar para convencer o gordo Jorge de que era mesmo brasileiro o que falava o novato. Que já ganhara outro apelido: Pechada. — Aí, Pechada! — Fala, Pechada! FONTE: VERÍSSIMO, L. Pechada. Revista Nova Escola, maio 2014. Disponível em: https:// novaescola.org.br. Acesso em: 9 jul. 2017. Texto 2 Todos sabem que existe um grande número de variedades linguísticas, mas, ao mesmo tempo em que se reconhece a variação linguística como um fato, observa-se que a nossa sociedade tem uma longa tradição em considerar a variação em uma escala valorativa, às vezes até moral, que leva a tachar os usos característicos de cada variedade como certo ou errado, aceitáveis ou inaceitáveis, pitorescos, cômicos etc. FONTE: TRAVAGLIA, L. C. Gramática e Interação: uma proposta para o ensino de gramática. São Paulo: Cortez, 2009. 158 Considerando a imagem apresentada, os sentidos estabelecidos pelo texto 1 e a reflexão provocada pelo texto 2, conclui-se que a professora: a) ( ) Identifica “pechada” como um caso de estrangeirismo na fala de seu aluno, incorporado à língua portuguesa como empréstimo aceitável da língua espanhola. b) ( ) Identifica o fenômeno de variação diafásica em nível lexical, ao compreender o contexto de uso dos vocábulos “sinaleira” e “auto”. c) ( ) Ignora a possibilidade de discutir o tema do preconceito linguístico com relação ao uso de variações linguísticas diatópicas. d) ( ) Evita, ao abordar as variedades linguísticas do português brasileiro, que o estudante Rodrigo sofra preconceito linguístico. e) ( ) Explica os diferentes modos de falar de seus alunos conforme a ocorrência de variações morfológicas e sintáticas na fala de Rodrigo. 159 TÓPICO 3 POLÍTICA E PLANIFICAÇÃO LINGUÍSTICA UNIDADE 3 1 INTRODUÇÃO Nos tópicos anteriores, vimos alguns elementos importantes sobre o ensino de gramática na escola e os problemas que aparecem nos livros didáticos de língua portuguesa para a educação básica. Vimos também algumas considerações sobre as línguas de contato, os conceitos de diglossia, sabir, pidgin, línguas crioulas, línguas veiculares, dialeto, socioleto, etnoleto, cronoleto, idioleto. Agora, para finalizar esta unidade, apresentaremos alguns conceitos e reflexões sobre a gestão do plurilinguismo, políticas e planejamento linguístico. 2 A GESTÃO DO PLURILINGUISMO Quando falamos em gestão do plurilinguismo, estamos nos referindo à gestão da diversidade linguística, isto é, a pluralidade e a variação das línguas em contato presentes em contextos diversos. Essa gestão se relaciona com o modo como instituições, indivíduos e grupos lidam e agem com o plurilinguismo, ou seja, como administram as situações de uso das línguas. Isso envolve políticas linguísticas provenientes do Estado, de órgãos relacionados ao governo e de pessoas ou comunidades que dispõem de recursos, estratégias e autoridade para concretizar as políticas e gestão das línguas, mobilizadas pelos seus aspectos ideológicos, políticos e sociais (CALVET, 2007; SPOLSKY, 2009). Ao falarmos de gestão do plurilinguismo e das ações relacionadas às línguas por meio de políticas linguísticas, destacamos e reiteramos a diversidade presente no Brasil, que se contrapõe e desafia o mito do monolinguismo, um processo histórico e social de homogeneização linguística, que legitimou o português como língua nacional única do Brasil. Ter consciência disso é fundamental para o professor. Estar em sala de aula significa conviver, diariamente, com esse plurilinguismo. Diante disso, é fundamental compreender o conceito e, para além disso, as implicações práticas dessa realidade. UNIDADE 3 | CONTRIBUIÇÕES DA SOCIOLINGUÍSTICA PARA A EDUCAÇÃO 160 O que compreendemos como plurilinguismo? De acordo com os autores Broch (2014) e Altenhofen e Broch (2011), o termo plurilinguismo é entendido e utilizado para designar as competências do falante em mais de uma língua, isto é, os usos das línguas do falante, envolvendo uma postura linguística plural e social. Entendemos que os usos de diferentes línguas de um falante estão além das escolhas por usar uma ou outra língua, uma vez que compreendemos que as ações que fazemos com a linguagem estão relacionadas com outras práticas culturais, sociais e políticas. IMPORTANT E O que temos visto é que o Brasil é um país de muitas línguas, e isso fica claro quando olhamos para o número de línguas que foram e são ainda faladas no país. Você já leu sobre esse tema neste material didático e viu que, no Brasil, são faladas mais de 200 línguas. Segundo Oliveira (2000), os grupos indígenas do país falam cerca de 170 línguas, as comunidades de descendentes de imigrantes por volta de 30 línguas e as comunidades surdas do Brasil usam a Língua Brasileira de Sinais (Libras), a língua de sinais Urubu- Kaapor, localizada no sul do estado do Maranhão, a Língua de Sinais Cena, utilizada para a comunicação entre surdos e ouvintes em umacomunidade rural do município de Jaicós, no Piauí. Essa realidade caracteriza o Brasil como um país de multilinguismo. IMPORTANT E Como uma das medidas e políticas que reconhecem e protegem a diversidade cultural e linguística do Brasil está a Constituição Federal de 1988, que reconheceu aos indígenas o direito à cidadania, à sua cultura e à sua língua. Apesar desse reconhecimento, não direcionou ações para outras línguas e comunidades, tais como as línguas de sinais (Libras, Urubu-Kaapor e Cena) e a dos imigrantes, como o italiano, o alemão, o ucraniano e o crioulo (MORELLO; SEIFFERT, 2011). Foi a partir da Constituição de 1988 que se vislumbrou e se articulou os primeiros movimentos no Estado brasileiro em prol da diversidade linguística, cujo início é marcado pelo reconhecimento dos direitos dos povos indígenas em relação às suas línguas e culturas. Estas ações inspiraram outras e abriram espaços para discussões e reflexões sobre a importância da defesa em torno dos direitos linguísticos no país. TÓPICO 3 | POLÍTICA E PLANIFICAÇÃO LINGUÍSTICA 161 No tocante às ações em direção ao reconhecimento, à defesa, à valorização e à difusão das línguas no país, além da Constituição de 1988, citamos o Inventário Nacional da Diversidade Linguística do Brasil (INDL), instituído pelo Decreto nº 7.387/2010 e conduzido pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN). Este inventário contempla as línguas que fazem parte da sociedade brasileira. Destacamos também a Lei nº 10.436, de 24 de abril de 2002, regulamentada pelo Decreto nº 5.626 de 2005, que reconhece a Língua Brasileira de Sinais (Libras) como meio legal de comunicação e expressão da comunidade surda brasileira. Outras políticas linguísticas que tratam do uso e da defesa das línguas são os documentos de co-oficialização de diversas línguas no âmbito de governos municipais, voltados às línguas de imigração e às línguas indígenas, bem como o Seminário de Criação do Livro de Registro das Línguas promovido pelo IPHAN em 2006. Essas políticas linguísticas não só reconhecem a presença de diferentes línguas no Estado brasileiro, como também buscam valorizá-las e protegê-las, desafiando e desconstruindo o mito de língua única no país. Por conseguinte, contribui para que a sociedade perceba a multiplicidade de línguas no Brasil, sejam as línguas de sinais, as línguas das comunidades indígenas, de imigrantes, línguas crioulas, além das variedades dialetais da língua portuguesa. Para aprimorar seus conhecimentos sobre o tema diversidade linguística e sobre quantas línguas são faladas no nosso país, confira esta entrevista com o professor Gilvan Müller de Oliveira. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=Hy-ggZQYP7s. DICAS Para você conhecer um pouco melhor as línguas citadas até o momento, apresentamos o quadro a seguir com as categorias de línguas conforme o Inventário Nacional de Diversidade Linguística (INDL) (2016, p. 13-14): UNIDADE 3 | CONTRIBUIÇÕES DA SOCIOLINGUÍSTICA PARA A EDUCAÇÃO 162 QUADRO 1 – CATEGORIAS DE LÍNGUAS CONFORME O INDL LÍNGUAS DE IMIGRAÇÃO Línguas alóctones trazidas ao Brasil por grupos de fala advindos principalmente da Europa, Oriente Médio e Ásia e que, inseridas em dinâmicas e experiências específicas dos grupos em território brasileiro, tornaram-se referência de identidade e memória. Exemplos: Talian, Pomerano, Hunsrükisch, entre outras. LÍNGUAS INDÍGENAS Línguas autóctones, originárias do continente sul- americano – da porção que hoje corresponde ao território brasileiro – e faladas por populações indígenas. Exemplos: Guarani, Kaingang, Baniwa, Tukano, Ninam, Maxakali, Marubo, entre outras. LÍNGUAS AFRO-BRASILEIRAS Línguas de origem africana faladas no Brasil. Essas línguas apresentam notáveis diferenças linguísticas em vários aspectos de sua estrutura gramatical, produzidas por mudanças históricas desencadeadas pelo contato com o Português, podendo ter ocorrido transferências gramaticais desde esse substrato africano (LUCCHESI et al., 2009). Exemplos: Gíria de Tabatinga, língua do Cafundó e variedades Afro-brasileiras do Português Rural. LÍNGUAS DE SINAIS Línguas faladas por comunidades surdas, incluindo pessoas surdas e ouvintes, que se utilizam da modalidade visuoespacial com sinais manuais e não manuais, tais como expressões faciais e corporais. Exemplos: Libras, Língua de Sinais Urubu-Kaapor, Língua de Sinais do município de Jaicós, no Piauí, entre outras. LÍNGUAS CRIOULAS Línguas surgidas a partir da aquisição como língua materna por parte de um grupo social de uma língua Pidgin. Exemplos: os Galibi-Marwórno, os Karipuna e os Palikur, que vivem no estado do Amapá e falam uma língua crioula formada a partir do Francês como língua dominante, e de diferentes línguas africanas e indígenas da Guiana Francesa e Suriname. VARIEDADES DIALETAIS DA LÍNGUA PORTUGUESA Embora o Português seja língua oficial e majoritária do país, suas variedades podem ser objeto de ações de promoção e valorização. Essas variedades internas ao português decorrem de fatores históricos, geográficos e étnico- culturais que influenciam a conformação de elementos linguísticos que demarcam identidades de falares regionais (variedades diatópicas) e de segmentos sociais específicos (variedades diastráticas). FONTE: Adaptado de INDL (2016) TÓPICO 3 | POLÍTICA E PLANIFICAÇÃO LINGUÍSTICA 163 Para saber mais sobre a Política da Diversidade Linguística e sobre o Guia de pesquisa e documentação para o Inventário Nacional da Diversidade Linguística, acesse o livro do Inventário Nacional da Diversidade Linguística. FONTE: <http://portal.iphan.gov.br/uploads/ckfinder/arquivos/INDL_Guia_vol1.pdf>. Acesso em: 20 nov. 2019. DICAS Diante dessa realidade linguística, pensar e reconhecer a relevância de uma política de inclusão plurilíngue é fundamental para a construção de uma “democracia cultural” (OLIVEIRA; ALTENHOFEN, 2001). Para tanto, Altenhofen e Broch (2011, p. 17) propõem uma pedagogia do plurilinguismo, para que a diversidade linguística seja protegida e que a pluralidade seja fomentada e compreendida “como a postura de constituir-se plural diante da diversidade”. Nesta perspectiva, falaremos, na próxima seção, sobre políticas linguísticas, visto que elas existem em níveis diferentes, desde os usos das línguas por um falante, por uma comunidade ou por uma família, até as leis oficiais do governo. 3 POLÍTICAS E PLANEJAMENTO LINGUÍSTICO Considerando os temas desta unidade, que englobam as diferentes línguas do Brasil com o preconceito linguístico em relação a essa diversidade, apresentamos conceitos relevantes à discussão, a começar pela definição de política linguística. De acordo com Calvet (2007), um dos autores que discute esse conceito, a política linguística é definida como uma deliberação das grandes decisões com a relação língua e sociedade. Com a definição de política linguística, o autor apresenta o conceito de planejamento linguístico, que, por sua vez, trata da implementação da política linguística. UNIDADE 3 | CONTRIBUIÇÕES DA SOCIOLINGUÍSTICA PARA A EDUCAÇÃO 164 Assim, segundo Calvet (2007), as políticas linguísticas implicam relações de poder, que envolvem diversas atividades de cunho político, tais como a organização de leis, portarias, regimentos, de modo que o planejamento representa a passagem à ação, ou seja, a implementação do que a política orienta. Embora o autor apresente esses dois conceitos como distintos, também destaca que política e planejamento caminham juntos, são como um binômio inseparável, não há política sem implementação e vice-versa. IMPORTANT E De acordo com Calvet (2007), para proceder às ações planejadas sobre uma língua, existem dois tipos de gestão das situações linguísticas. A primeira gestão, nomeada de in vivo, refere-se às práticas sociais por meio das quais os falantes resolvem seus problemas de comunicação numa língua. Essa gestão trata do modo comodeterminada população usa sua competência linguística no cotidiano, isto é, essa gestão não é determinada por instrumentos legais, como leis e decretos, mas se realiza por meio das escolhas espontâneas dos falantes. A segunda gestão, intitulada de in vitro, envolve a intervenção sobre as práticas sociais. O que isso quer dizer? Essa gestão linguística, segundo Calvet (2007), diz respeito às medidas oficiais de planejamento linguístico, por um viés político, no que tange a determinadas situações linguísticas, ou seja, são as ações do Estado em forma de poder e controle institucional sobre as práticas linguísticas. Para Calvet (2007), quaisquer grupos sociais podem apresentar propostas de políticas linguísticas, entretanto, apenas o Estado tem o poder e as ferramentas para colocar em prática estas propostas. Como exemplo de políticas linguísticas que incidem sobre a língua, citamos intervenções que visam à defesa de uma língua, por meio de revisões e acordos ortográficos, determinação sobre as línguas que devem estar presentes no sistema formal de ensino e em contextos bilíngues ou plurilíngues, oficialização de uma língua, como a Língua Brasileira de Sinais (Libras). Uma segunda definição de política linguística que apresentamos é o conceito de Spolsky (2004), que define política linguística a partir de três componentes interligados, mas independentes, a saber: práticas, crenças e gestão. IMPORTANT E TÓPICO 3 | POLÍTICA E PLANIFICAÇÃO LINGUÍSTICA 165 De acordo com Spolsky (2004), as práticas são compreendidas como as escolhas linguísticas e os comportamentos observáveis dos falantes, sobre o que eles realmente fazem com a língua. São os aspectos linguísticos escolhidos pelos falantes em situações de uso da língua no cotidiano. O segundo componente, de acordo com Spolsky (2004), são as crenças sobre a linguagem. Para o autor, as crenças envolvem os valores atribuídos à língua e às variedades linguísticas. Algumas variedades e modos de falar são estigmatizados, enquanto outros podem ser mais valorizados. O terceiro componente apresentado pelo autor é a gestão linguística. Essa gestão engloba leis e decretos estabelecidos por um estado-nação que determina aspectos do uso oficial da língua. Para saber mais sobre Políticas Linguísticas, deixamos como referência o livro de Louis Jean Calvet. FONTE: <travessa.com.br/as-politicas-linguisticas/artigo/69203fda-54f9-48cd-b1a2-af7b4 c288545>. Acesso em: 20 nov. 2019. DICAS Além das definições apresentadas, destacamos também os tipos de políticas e planejamentos linguísticos (GARCEZ; SCHULZ, 2016), quais sejam: (i) políticas linguísticas de corpus; (ii) políticas linguísticas de status; e (iii) políticas de aquisição. IMPORTANT E UNIDADE 3 | CONTRIBUIÇÕES DA SOCIOLINGUÍSTICA PARA A EDUCAÇÃO 166 As políticas linguísticas de corpus tratam literalmente sobre o corpo da língua. Em muitos casos, isso diz respeito à língua escrita, buscando definir a criação de um vocabulário, o sistema gráfico em que a língua será registrada, se esse sistema será alfabético ou não. Mesmo a língua tendo uma escrita já consolidada, como é o caso do português, possíveis ajustes podem e ainda são feitos, como é o caso das diversas reformas ortográficas e do próprio Acordo Ortográfico. As políticas linguísticas de status, por sua vez, englobam as funções das línguas nos seus contextos de uso. Uma língua pode ser meio de interação apenas no âmbito escolar, familiar ou profissional, por exemplo, e o seu reconhecimento e uso podem reiterar o seu estatuto enquanto língua. Este seria o caso da Libras, que após a sanção da Lei nº 10.436, seu uso e difusão tem ganhado cada vez mais força e amplitude. As políticas linguísticas de aquisição tratam do ensino de línguas. Esse tipo de política envolve as decisões a respeito de como as línguas podem ou devem ser usadas como meio de instrução, que línguas são oferecidas na escola e em quais séries. Como exemplo desse tipo de política, citamos a lei que trata da obrigatoriedade da oferta de Língua Espanhola no componente curricular de Língua Estrangeira Moderna nas escolas brasileiras, além do Decreto nº 5626/05, que orienta que os alunos surdos devem ser alfabetizados em Libras em escolas inclusivas. A discussão que fizemos neste tópico reitera a realidade do Brasil, isto é, um país com diferentes línguas, culturas e identidades. Essa diversidade se encontra presente em todos os contextos, em especial o escolar. Por isso, é importante que os professores considerem e trabalhem a diversidade linguística na sala de aula, na escola, para que sejam fomentados o respeito e a compreensão ao que é diverso, ao que é diferente. A introdução dos conceitos discutidos neste Livro Didático de Sociolinguística procurou servir de porta de entrada para você, prezado acadêmico, à realidade complexa da relação entre língua e sociedade, que implica reconhecer que as atitudes diante das línguas e suas variedades se constituem em políticas linguísticas. Encerramos este livro convidando-o para realizar uma última leitura complementar, na qual você verá alguns aspectos do trabalho do linguista frente às políticas linguísticas. Além disso, também elaboramos um resumo deste último tópico do livro para que você possa rever alguns conceitos discutidos antes de realizar as autoatividades. TÓPICO 3 | POLÍTICA E PLANIFICAÇÃO LINGUÍSTICA 167 LEITURA COMPLEMENTAR Na leitura complementar que apresentamos a você, recortamos um trecho da entrevista com Gilvan Müller de Oliveira, concedida à Revista Revel, v. 14, n. 26, 2016, numa edição sobre o tema Políticas Linguísticas. Essa entrevista ampliará a sua compreensão sobre o conceito de Política Linguística, em quais países os estudos de Políticas Linguísticas encontram-se avançados e quais são alguns dos principais temas discutidos em Políticas Linguísticas, em especial, no cenário brasileiro. REVEL – O que se entende hoje por “Políticas linguísticas”? Que tipo de trabalho um linguista que atua nessa área desenvolve? GILVAN – Em primeiro lugar considero necessário fazer uma distinção entre as instâncias que fazem políticas linguísticas e as que tradicionalmente estudam as políticas linguísticas, isto é, que fazem o que Louis-Jean Calvet chamou de Politologia Linguística. Trata-se de dois fazeres muito diferentes e que às vezes se tocam. Entendo que as políticas linguísticas são uma área das políticas públicas, concebidas e executadas por instituições que têm ingerência na sociedade, como os Estados, os governos, as igrejas, as empresas, as ONGs e associações, e até as famílias. A maior parte das políticas linguísticas são realizadas sob outros nomes, embutidas dentro de outras políticas, de modo que podem não ser imediatamente identificáveis. Isso não ocorre por um suposto secretismo dos agentes de políticas linguísticas – os Estados, por exemplo – mas porque as línguas e os seus usos estão conectados a todo o agir social do homem. Assim, uma política de saúde ou de defesa, de transporte ou editorial pode ter implicações sobre os usos das línguas e gerar demandas para intervenções sobre as próprias línguas. Uma grande parte das políticas linguísticas não é feita por linguistas ou mesmo com a participação de linguistas, e a maior parte dos linguistas profissionais, por exemplo no Brasil, pode não se envolver diretamente com a concepção e execução de políticas linguísticas, embora o seu fazer muitas vezes possa ser usado para determinadas políticas, por exemplo para instruí-las ou legitimá-las. Em parte isso ocorre porque a mainstream da linguística do século XX, que teve como uma das suas preocupações centrais a de constituir uma ciência – ciência entendida dentro de uma ótica mais ou menos positivista (e que não pode por isso, naturalmente, incluir o político) – atuou na direção contrária: fez um esforço para separar a linguística da política, da cultura e da história – e também das demais ciências humanas– e para produzir uma visão cada vez mais imanentista e sistêmica – estrutural – da língua, focada no código. Evidentemente isso influenciou gerações de linguistas profissionais, e acabou conduzindo ao desenvolvimento uma linguística de perfil mais teórico, e mais ou menos restrita ao campo universitário. UNIDADE 3 | CONTRIBUIÇÕES DA SOCIOLINGUÍSTICA PARA A EDUCAÇÃO 168 Costumo contar que quando fiz o bacharelado em linguística, na minha graduação, no início dos anos 1980, tive 53 disciplinas na área, mas nunca ouvi falar em política linguística, área acadêmica com a qual fui me familiarizar minimamente apenas no mestrado na Alemanha na segunda metade da mesma década. Não era algo corriqueiro, naquele momento, que se pensasse que numa graduação em linguística houvesse a necessidade de tratar de política linguística, ou de mostrar ao estudante que são tomadas decisões sobre as línguas e realizadas ações sobre as línguas, isto é, que as línguas são também moldadas pela intervenção humana. A universidade, por outro lado, é um campo com lógica própria na sociedade, como diria Bourdieu. Tanto é que a maioria dos linguistas que conheço são professores universitários, e é dentro da universidade que fazem as suas carreiras e constroem as suas práticas profissionais. Para todos os fins, consideram-se muito mais professores universitários que linguistas. Assim, considero importante ver o termo das duas perspectivas: da perspectiva das políticas linguísticas propriamente ditas, como políticas públicas, por um lado, e da área acadêmica chamada de “Política Linguística” por outro, que, para a CAPES, é uma área da linguística, dentro da subárea de sociolinguística ou de linguística aplicada, com uma história de uns 60 anos no meio universitário ocidental, e recém na adolescência no Brasil. No entanto, dos anos 1980 para cá, a questão tem mudado bastante, e desde o início do século XXI tem crescido exponencialmente o interesse disciplinar pela política linguística no Brasil e no mundo em geral, o que chamei em outra oportunidade de “a virada político-linguística” nos estudos linguísticos. A meu ver, o crescimento do interesse pelas políticas linguísticas, e igualmente pela área acadêmica chamada política linguística, tem relação com pressões da sociedade brasileira sobre o Estado após o processo de redemocratização, plasmado pela Constituição de 1988. Essa “nova república” que se inicia mais concretamente naquele momento, e tem hoje quase 30 anos, com altos e baixos (até mais baixos que altos) interrompeu o processo autoritário do Regime Militar e quis introduzir modificações no Brasil, quis introduzir um modelo mais inclusivo de cidadania, mais aberto ao reconhecimento da diversidade e da legitimidade das diferenças culturais e linguísticas dos brasileiros. A nova república quis mudar algumas compreensões que o Brasil tinha sobre si mesmo, tanto para acompanhar o movimento mundial de reconhecimento do direito de ser diferente como para atualizar o conceito de cidadania, essencial para o funcionamento de uma democracia, e isto precisava ser feito com a revisão das compreensões mais tradicionais sobre o país e sobre os brasileiros. Essa movimentação trouxe à luz diferentes políticas de inclusão, de fomento à diversidade, de reconhecimento de direitos culturais, de internacionalização, de desnaturalização, enfim, dos pressupostos da “Ilha Brasil”, monolíngue e TÓPICO 3 | POLÍTICA E PLANIFICAÇÃO LINGUÍSTICA 169 monocultural, perfeitamente ocidental e cristã, estabilizada nos seus pressupostos pelo Estado Novo e depois pelo Regime Militar, e com um espaço público criado e mantido por meios de comunicação do nosso mainstream, em especial televisivos, de perfil ainda colonial e antidemocrático [...]. Trata-se, então, de colocar esses ganhos epistemológicos e metodológicos a serviço das sociedades, novamente citando Calvet, “porque afinal os homens não existem para servir às línguas, mas as línguas para servir aos homens”. As políticas linguísticas nos dão uma conexão entre as línguas e todo o resto do universo humano, seus interesses, suas necessidades, suas visões de futuro. Construir políticas linguísticas, então, é participar da construção do futuro das sociedades, e mais especificamente da nossa sociedade; fazer política linguística, pela própria noção de intervenção sobre as línguas, sem a qual ela não existe, é atuar para um mundo mais justo neste campo específico das línguas e dos seus usos, mais plural, mais democrático e mais aberto à ecologia de saberes humanos. É reconhecer que também no campo do uso das línguas há constantemente assimetrias de poder que favorecem a uns e calam os outros, assimetrias que constantemente combateremos com os instrumentos da planificação ou planejamento linguístico, numa guerra que finalmente não temos (historicamente) como ganhar definitivamente, mas na qual podemos vencer muitas batalhas importantes, “combatendo o bom combate”. Dificilmente poderíamos dar hoje uma visão totalmente exaustiva sobre as variadíssimas iniciativas, trabalhos e pesquisas que merecem o nome de “políticas linguísticas”, dada a amplitude, e dado, ainda, que nos encontramos em plena revolução digital no campo das línguas, que traz tantas modificações para o campo. REVEL – Em quais países os estudos de Políticas Linguísticas se encontram mais avançados? GILVAN – Bem, para retornarmos à dicotomia que propus no início da entrevista, entre fazer política linguística e estudar as políticas linguísticas, acredito que podemos dizer, em primeiro lugar, que cada país tem a política linguística que necessita e que pode realizar. Dito assim, evidentemente, estou querendo dizer que não se pode fazer qualquer política linguística em qualquer lugar ou país simplesmente porque os fatores de poder, fatores geopolíticos, condicionam fortemente cada movimento. Então seria difícil falar de políticas linguísticas mais avançadas ou mais atrasadas e mais adequado tentar entender como é que um Estado, por exemplo, tenta resolver um problema que se lhe coloca, com os meios de que dispõe, e no horizonte da sua governança e das limitações ideológicas da sua época e dos seus quadros gestores. Essa compreensão nos ajudará a intervir no sentido de tornar essas políticas mais democráticas e respeitosas da diversidade, se isso estiver ao nosso alcance. UNIDADE 3 | CONTRIBUIÇÕES DA SOCIOLINGUÍSTICA PARA A EDUCAÇÃO 170 Nesse caso encontraremos, nos diversos países, problemas e interesses políticos fundantes, que fazem com que o Estado e suas instituições, mas também o Mercado ou a sociedade civil, se concentrem em ações diversas no âmbito das políticas linguísticas. Para uns, como a Índia, foi preciso reconhecer uma multiplicidade de línguas para garantir a governança e a adesão ao Estado e diminuir os conflitos. Para outros, como o Brasil, a continuidade da dominação ideológica, econômica e militar do segmento luso-brasileiro sobre outros segmentos constitutivos da cidadania, garantiu a força para levar adiante a imposição do português como língua única, ainda que lentamente se tenha permitido algum avanço, bastante tímido ainda, de iniciativas para o plurilinguismo, como comentei anteriormente. [...] REVEL – Quais são alguns dos principais temas que ainda precisam ser discutidos em Políticas Linguísticas, em especial no cenário brasileiro? Como estão os estudos de Políticas Linguísticas no Brasil? GILVAN – Políticas linguísticas são uma faceta das políticas públicas dos países, das organizações internacionais, das corporações e instituições, e nesse sentido são um fazer permanente do homem, sempre adaptadas a sua época, aos interesses geopolíticos, econômicos e culturais em jogo numa determinada fase histórica. Não se esgotam, mudam de foco; não se completam, estão sempre em construção. Então talvez essa pergunta queira focalizar esse atual momento histórico do Brasil, os desafios que estamos vivendo nesteano de 2016, ou nesta segunda década do século XXI. Vou responder lançando mão da contribuição de Richard Ruiz, de 1984, no seu artigo Orientations in Language Planning, no qual apresenta três grandes perspectivas dentro das quais as políticas linguísticas funcionam, e que captam os esforços geopolíticos dos Estados na sua gestão do universo linguístico sob o seu poder ou alcance. Ruiz divide o campo das orientações em três: Língua como Problema, Língua como Direito e Língua como Recurso. Se mapearmos as políticas linguísticas veremos que em grande parte derivam de uma das três preocupações e transcorrem dentro de uma das três chaves. Assim, quando o Estado Novo brasileiro instituiu a Campanha de Nacionalização do Ensino, com as suas ações de proibir o uso de línguas de comunidades descendentes da imigração, algumas delas, então, já faladas em território brasileiro há mais de cem anos, estava claramente vendo as Línguas como Problema. Quando a Constituição de 1988, no entanto, incluiu a temática indígena, nos artigos 210, 215, 231 e 232, e reconheceu aos índios “sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam” está no segundo quadro, que trata da Língua como TÓPICO 3 | POLÍTICA E PLANIFICAÇÃO LINGUÍSTICA 171 Direito. Quando os países de língua portuguesa, finalmente, criam um instituto para promover a sua língua no exterior, tratam a Língua como Recurso, neste caso um recurso do “soft power”, político, diplomático, com desdobramentos econômicos. Vivenciamos um momento histórico em que Língua como Direito e Língua como Recurso orientam grande parte das políticas linguísticas. Boa parte das ações do IPOL foram possíveis, nos últimos 15 anos, dado o crescimento da ideia de que as comunidades têm direito ao uso das suas línguas, mas ainda mais forte é a expansão das políticas que se orientam pela ideia de Língua como Recurso, em especial na relação com a internacionalização dos mercados, do fluxo de pessoas nas migrações internacionais, dos fluxos da informação e do conhecimento na Internet, em forma digital. [...] Assim, para abreviar a conversa, o que estou sugerindo é que a área mais dinâmica das políticas linguísticas nas próximas décadas, ocorrerá com as políticas da chave de Língua como Recurso, na gestão do multilinguismo e na criação de soluções plurilíngues onde antes se propunham soluções monolíngues. Acredito, portanto, que precisamos ficar atentos a estes acontecimentos e às novas políticas que daí decorrerão, e repito que estamos numa fase, no Brasil, de grande crescimento do interesse pela política linguística, exatamente pela percepção da necessidade de intervir no campo das línguas, num fenômeno que chamei, há uns anos, como já disse no começo da entrevista, de a “virada político linguística”. Penso que a linguística do século XXI será grandemente e cada vez mais política linguística. FONTE: OLIVEIRA, G. M. de. Políticas linguísticas: uma entrevista com Gilvan Müller de Oliveira. ReVEL, v. 14, n. 26, 2016. Disponível em: www.revel.inf.br. Acesso em: 20 nov. 2019. Ficou alguma dúvida? Construímos uma trilha de aprendizagem pensando em facilitar sua compreensão. Acesse o QR Code, que levará ao AVA, e veja as novidades que preparamos para seu estudo. CHAMADA 172 RESUMO DO TÓPICO 3 Neste tópico, você aprendeu que: • A gestão do plurilinguismo, política e planejamento linguísticos se refere à diversidade linguística, à pluralidade e à variação das línguas em contato presentes em contextos diversos e que essa gestão se relaciona com o modo como instituições, indivíduos e grupos lidam e agem com o plurilinguismo, como administram as situações de uso das línguas. • No Brasil se falam mais de 200 línguas, com destaque para os grupos indígenas, as comunidades de descendentes de imigrantes, as comunidades surdas. • As categorias de línguas são: línguas de imigração, línguas indígenas, línguas afro-brasileiras, línguas de sinais, línguas crioulas, além das variedades presentes no português, registradas no Inventário Nacional da Diversidade Linguística do Brasil (INDL). • O plurilinguismo pode ser definido como um termo que designa as competências do falante em mais de uma língua, isto é, os usos das línguas do falante, envolvendo uma postura linguística plural e social. • O conceito de políticas linguísticas é definido como as relações de poder que envolvem diversas atividades de cunho político, tais como a organização de leis, portarias, regimentos. O conceito de planejamento linguístico é compreendido como a implementação do que uma política orienta. • Uma política in vivo envolve as práticas sociais por meio das quais os falantes resolvem seus problemas de comunicação numa língua. Uma política in vitro representa as intervenções sobre essas práticas sociais. • A política linguística pode ser compreendida a partir de três componentes interligados: práticas, crenças e gestão. • Os principais tipos de políticas e planejamento linguísticos são: (i) políticas linguísticas de corpus; (ii) políticas linguísticas de status; e (iii) políticas de aquisição. 173 AUTOATIVIDADE 1 De acordo com a discussão feita no Tópico 3, defina a gestão do plurilinguismo. 2 Cite algumas políticas, mencionadas no texto, de proteção e de reconhecimento da diversidade linguística no Brasil. 3 Quais são os conceitos de política e planejamento linguísticos apresentados no Tópico 3? 4 Conforme o texto, quais são os tipos de políticas e planejamentos linguísticos? 5 (ENADE, 2015) Texto 1 Se empreendermos uma grande viagem pelo Brasil, de Norte a Sul e de Leste a Oeste, recolhendo os modos de falar das pessoas de todas as regiões, de todos os estados, das principais cidades, da zona rural etc., vamos perceber que existem diferenças nesses modos de falar, diferenças que podem ser fonéticas, sintáticas, morfológicas, lexicais, semânticas, pragmáticas. Há muita semelhança, também, mas são as diferenças que chamam mais a atenção e que permitem classificar esses variados modos de falar a língua. Quando você consegue identificar os traços característicos de determinado modo de falar uma língua, você pode chamá-lo de variedade. A Sociolinguística veio mostrar que toda língua muda e varia, isto é, muda com o tempo e varia no espaço, além de variar também de acordo com a situação social do falante. FONTE: BAGNO, M. Português ou Brasileiro? Um convite à pesquisa. São Paulo: Parábola Editoria, 2004. Texto 2 “Olha; essa é pra quem tá arretado para conhecer um pouco mais sobre Pernambuco”. – Cabeça do VT chamada por apresentadora. “Então se aprochegue. A repórter Mônica Silveira mostra essa maneira encantadora de falar”. – Cabeça do VT chamada por apresentador. “É o mesmo Brasil, mas no meio de um bate-papo descontraído, esse parece um país à parte” – Texto do off que abre o VT. Na companhia da citada repórter, o poeta Jessier Quirino percorre um mercado popular perguntando às pessoas o significado de determinadas palavras e expressões, em ritmo de poesia falada. Dessa conversa, surgem os sentidos atribuídos por nordestinos “Pedir pinico” (solicitar ajuda), “Assustado” (festa surpresa), “Com a gota” (com raiva), “cocorote” (cascudo) e “pirangueiro” (avarento). VT produzido pela TV Globo Nordeste/Recife, veiculado no Bom Dia Brasil em outubro de 2013. Tempo: 3''20'. 174 Considerando os excertos, avalie as afirmações a seguir: I- Ao veicular uma reportagem destacando algumas formas variantes do “nordestinês”, telejornais de abrangência nacional, notadamente em TV aberta, contribuem para a divulgação das heterogeneidades da Língua Portuguesa. II- Em telejornais de veiculação nacional, o texto jornalístico deveria recorrer apenas à norma culta da Língua Portuguesa para possibilitar o entendimento da reportagem pelo conjunto dos telespectadores, independentemente do seu lugar de origem. III- A abordagem de traços de variedadesou variantes sociolinguísticas de determinadas regiões em uma edição de telejornal de âmbito nacional possibilita aos telespectadores das demais regiões o conhecimento e a valorização de entidades linguísticas diferentes da sua. É CORRETO o que se afirma em: a) ( ) I, apenas. b) ( ) II, apenas. c) ( ) I e III. d) ( ) II e III. 175 REFERÊNCIAS AGUILERA, V. de A. Crenças e atitudes linguísticas: quem fala a língua brasileira? In: RONCARATI, C.; ABRAÇADO, J. (Orgs.). Português brasileiro II: contato linguístico, heterogeneidade e história. Niterói: Editora Federal Fluminense, 2008. ALKMIN, Tânia Maria. Sociolinguística: parte 1. In: MUSSALIM, Fernanda; BENTES, Anna C. (Orgs.). 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