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Achille MBEMBÉ Corpos como fronteiras

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(Texto traduzido para fins unicamente didáticos. Favor não publicar ou divulgar. O texto original está disponível em http://europeansouth.postcolonialitalia.it)
 
Corpos como fronteiras[footnoteRef:1]* [1: * in From the European south, 4 (2019), p. 5-18. As primeiras iterações deste artigo foram apresentadas no Simpósio The Multiplication of Perspectives no MoMA em Nova York (EUA), no Schauspielhaus em Dusseldorf (Alemanha), Click Festival em Helsingor (Dinamarca) e TCS Philosophy & Association ou Philosophy and Literature Conference em Klagenfurt (Áustria).] 
Achille Mbembe
Nesta intervenção, Achille Mbembe reflete sobre as modalidades de vida planetária, associando o que chama de três megaprocessos: a soberania corporativa do início do século 21, o regime de velocidade computacional e a dialética do emaranhamento e da separação. Contrastando com uma certa fluidez da nossa contemporaneidade, Mbembé vê uma lógica de contração, contenção, encarceramento e clausura cujo resultado é a construção mundial de todo tipo de muros e fortificações, portões e enclaves como forma de gerenciar riscos, garantir segurança, e salvaguardar a «identidade». Práticas de diversificação das riquezas, de recurso a paraísos fiscais e de lavagem de dinheiro, de fragmentação de territórios, de fragmentação de espaços são corpos de «fronteirização». Como resultado, as fronteiras não são mais meras linhas de demarcação que separam entidades soberanas distintas. Cada vez mais, elas são o nome que devemos usar para descrever a violência organizada que sustenta tanto o capitalismo contemporâneo quanto nossa ordem mundial em geral. A fronteira não é mais apenas um ponto particular no espaço, mas, ao mesmo tempo, uma tecnologia e o corpo móvel de massas indesejadas da população. A África e a Europa precisam urgentemente se confrontar quanto à questão da mobilidade humana, uma dimensão-chave das mudanças planetárias que estão em andamento.
Palavras-chave: soberania corporativa, computacional, mobilidade, segurança, órgãos, tecnologia, fronteiras
Minha intervenção é um conjunto de reflexões urgentes, fragmentárias e inacabadas sobre nosso presente global. Quando digo «nosso presente global», o que realmente tenho em mente é a sustentabilidade e a durabilidade do nosso planeta. Aliás, esta é uma preocupação quase existencial, cada vez mais expressa em muitas vozes diferentes e compartilhada por várias pessoas em todo o mundo.
De fato, muitos estão se perguntando como devemos habitar de novo e compartilhar da maneira mais equitativa possível um planeta cujo sistema de suporte à vida foi tão severamente danificado pelas atividades humanas e que precisa urgentemente de reparos. Diante do profundo estado de fragmentação em que se encontra o planeta, perguntam-se: como devemos re-membrá-lo, isto é, recompor suas diferentes partes, remontá-lo e reconstituí-lo como um sistema integrado no qual humanos e não-humanos, componentes físicos, químicos e biológicos, oceanos, atmosfera e superfície terrestre estão todos interligados em um grande gesto de reciprocidade?
Essas questões de habitação e interconexão, de mutualidade, sustentabilidade e durabilidade, do emaranhamento da história humana e da história da Terra estão longe de serem preocupações abstratas. Na verdade, as mudanças ambientais planetárias de longo prazo em curso apenas as dramatizaram ainda mais, e há pouca dúvida de que elas estarão no centro de qualquer debate sobre o futuro da vida e o futuro da razão neste século. Atendê-las adequadamente nos obriga a reorientar nossa atenção para os três megaprocessos que têm uma influência quase esmagadora sobre aquilo em que a humanidade e o planeta em que vivemos (o único, até agora, onde se sabe que existe vida) podem se tornar.
Soberania corporativa do início do século 21
O primeiro megaprocesso é a consolidação sem precedentes de poder e conhecimento (político, financeiro e tecnológico) nas mãos de entidades empresariais privadas de alta tecnologia, cuja esfera de ação não é um país ou uma região, mas o globo. A «soberania corporativa» assumiu várias formas ao longo da história. Tomemos, por exemplo, a Companhia das Índias Orientais e seu domínio político em algumas partes do subcontinente indiano no século XVIII. Entidade composta, difusa e híbrida, ela exerceu poderes habitualmente associados às instituições formais do Estado. Tinha o poder de adquirir territórios e exercer autoridade sobre as pessoas. Tinha o poder de executar operações abrangentes, como cobrar impostos e travar guerras. Competindo com o Estado monárquico e nacional, foi uma parte fundamental das diferentes formas institucionais e constitucionais que moldaram a expansão imperial (ver Stein, 2011).
As condições que permitiram a expansão do governo privatizado na primeira metade do século 21 são bem conhecidas. Muitos deles têm a ver com as várias estruturas legais por trás dos acordos de comércio internacional, tratados de investimento estrangeiro e outros mecanismos que transformaram os mercados nas forças mais indiscutíveis de nossos tempos. Outros têm a ver com as transformações computacionais dos mercados financeiros e as possibilidades oferecidas pelas tecnologias de mídia (ver Beverungen e Lange, 2018). Além disso, se a velha distinção entre o poder econômico das corporações e a soberania política dos estados ainda se mantém, ela está cada vez mais aberta a contestação (leia Barkan 2013). A maioria das corporações globais aspira a se separar de todos os estados, enquanto sobre eles exerce vigilância. Seu grande sonho é estarem isentas de impostos e livre de responsabilidades, para, em suma, desfrutarem do tipo de imunidade e estado de excepcionalidade que costumávamos reconhecer apenas em poderes verdadeiramente soberanos.
Em um livro recente sobre o que ela chama de «capitalismo de vigilância», Shohana Zuboff argumenta que uma arquitetura global de modificação de comportamentos está em andamento. Impulsionado por estados poderosos, corporações de alta tecnologia e aparatos militares, o capitalismo de vigilância ameaça o que ela chama de «natureza humana» no século 21, assim como o capitalismo industrial desfigurou o mundo natural no século 20. Ela mostra até que ponto uma vasta riqueza é acumulada no que ela chama de novos «mercados de futuros comportamentais», ou seja, mercados onde as previsões sobre nosso comportamento são compradas e vendidas, e a produção de bens e serviços é subordinada a novos meios de modificação comportamental. De fato, o capital, especialmente o capital financeiro, tornou-se nossa infraestrutura compartilhada, nosso sistema nervoso, a goela transcendental que hoje mapeia nosso mundo e seus limites psicofísicos (Zuboff 2018). Ao nosso redor, parece que nada escapa a seu controle. Afetos, emoções e sentimentos, manifestações de desejo, sonhos ou pensamentos – nenhuma esfera da vida contemporânea foi deixada intocada pela expansão do capital. O capital agora mergulha suas garras nas entranhas do mundo. Em seu rastro, deixa vastos campos de detritos e toxinas, montes de resíduos humanos devastados por feridas e furúnculos. Agora que tudo é uma fonte potencial de capitalização, fez de si mesmo um mundo: um fenômeno alucinatório de dimensões planetárias.
A soberania corporativa do início do século 21 é, portanto, uma forma de poder sem precedentes, cuja principal aspiração é libertar-se da supervisão democrática. Como resultado, podemos não mais viver em uma época em que a soberania era exercida pelo demos. O demos, propriamente dito, pode não mais ser soberano. O capital financeiro, sob o disfarce de uma arquitetura digital onipresente, pode ter-se tornado definitivamente o novo Leviatã. Estamos testemunhando a bifurcação histórica entre democracia liberal e capitalismo financeiro, e o surgimento de uma nova forma de soberania – a soberania corporativa – que reivindica para si a lei da imunidade e os poderes de exceção.
O regime de velocidade computacional
O segundo megaprocesso que gostaria de invocar é a escalada tecnológicae as formas como ela redefiniu totalmente a natureza da velocidade, dos mercados livres e da economia, e a forma como monitora constantemente nosso comportamento na tentativa de revelar como ele pode ser modificado e otimizado. Na verdade, alguns dos mercados em expansão mais rápida no mundo hoje são «mercados para comportamento futuro». Eles se baseiam em uma melhor compreensão de uma intenção futura ainda incipiente. Isso «pode querer dizer futuras intenções de voto, a intenção de cometer fraude, a intenção de comprar um seguro de vida, ou a intenção de assistir a um vídeo específico», argumenta Louise Amoore (2019, 4). Esses mercados também contam com a extração e mineração de novas formas de matéria-prima, consistindo principalmente em informações e detalhes sobre o comportamento dos indivíduos retirados, como escreve Zuboff, dos cantos distantes do nosso inconsciente. É matéria-prima «capturada dos padrões mais íntimos do eu» – «nossa personalidade, nossos humores, nossas emoções, nossas mentiras, nossas vulnerabilidades, todos os níveis de nossa intimidade» (2018, 201). O objetivo não é apenas aumentar a previsibilidade do nosso comportamento. É também tornar a própria vida passível de «datificação».
Uma característica fundamental de nossos tempos é, portanto, a medida em que todas as sociedades estão organizadas de acordo com o mesmo princípio – o computacional. Estamos cercados de computação ubíqua, tecnologias que se entrelaçam no tecido de nossa vida cotidiana, dispositivos, sensores, coisas com as quais interagimos e que se tornaram parte de nossa presença no mundo o tempo todo. Como a fronteira entre nós e esses dispositivos é promulgada é uma questão aberta ao debate (Matzner 2019).
Mas, o que é o computacional? O computacional é geralmente entendido como um sistema técnico cuja função é capturar, extrair e processar automaticamente dados que devem ser identificados, selecionados, ordenados, classificados, recombinados, codificados e ativados. E não devemos esquecer que o computacional é também uma força e uma energia de tipo especial, um regime de velocidade com qualidades e infraestruturas próprias. É uma força e uma energia que produz e serializa sujeitos, objetos, fenômenos; que separa a razão da consciência e da memória, codifica e armazena dados que podem ser usados ​​para fabricar novos tipos de serviços e dispositivos vendidos com fins lucrativos. Seja operando em corpos, nervos, material, sangue, tecidos celulares, cérebro ou energia, o objetivo é o mesmo, ou seja, a conversão de todas as substâncias em quantidades; a conversão de fins orgânicos e vitais em meios técnicos; a captura de forças e possibilidades e sua anexação pela linguagem de um cérebro-máquina transformado em sistema autônomo e automatizado. Mas o computacional é também a instituição através da qual um mundo comum, um novo senso comum e novas configurações de poder, de percepção e de realidade são hoje trazidas à existência. A globalização da soberania corporativa, a extensão do capital em todas as esferas da vida e a escalada tecnológica na forma computacional fazem parte de um mesmo processo.
A dialética do emaranhamento e da separação
O terceiro megaprocesso é o que devemos chamar de dialética do emaranhamento e da separação. Em todo o mundo, a combinação de capital fóssil, a guerra de soft-power e a saturação do cotidiano por tecnologias digitais e computacionais levou à aceleração da velocidade e à intensificação das conexões, criando uma nova redistribuição da Terra e dos movimentos da população. Estar vivo, ou permanecer vivo, é cada vez mais equivalente a ser capaz de mover-se rapidamente.
No processo, a raça humana se deparou com os limites terrestres. Tais limites não são apenas consequência da esfericidade do planeta. São também limitações à expansão da vida como tal. À medida que o planeta parece cada vez mais fadado a queimar, não são apenas os corpos individualizados que estão em perigo. É a existência terrena, o destino de tudo na terra, a fluidez da vida que está em jogo (Pyne, 1997; Parisi e Terranova, 2000).
Enquanto isso, estamos, mais do que em qualquer outro momento da história humana, não apenas próximos uns dos outros, mas também expostos uns aos outros. Essa proximidade e exposição são experimentadas cada vez menos como oportunidade e possibilidade e, cada vez mais, como risco aumentado. Mas o emaranhamento e a exposição um ao outro não são tudo o que caracteriza o agora. Para onde quer que olhemos, o impulso é simultâneo e decisivo para a contração, para a contenção, para o enclausuramento e várias formas de acantonamento, detenção e encarceramento.
Típica dessa lógica de contração, contenção, encarceramento e fechamento é a construção mundial de todos os tipos de muros e fortificações, portões e enclaves. Em outras palavras, várias práticas de compartimentalização do espaços, de recurso a paraísos fiscais (offshoring) e lavagem de riquezas, de fragmentação de territórios e de fracionamento de espaços, selados com vários tipos de fronteiras cuja função é desacelerar o movimento e, mesmo, pará-lo em alguns casos, para certo tipo de populações, a fim de controlar as ameaças. Muitas razões são mobilizadas para dar conta dessa paixão renovada pelas fronteiras, tidas como a melhor forma de gerenciar riscos. A segurança e a preservação da identidade são alguns desses motivos. E, como sóe acontecer, barreiras físicas e virtuais de separação, digitalização de bancos de dados, sistemas de arquivamento, desenvolvimento de novos dispositivos de rastreamento, sensores, drones, satélites e robôs sentinelas, detectores infravermelhos e várias outras câmeras, controles biométricos e novos microchips contendo detalhes – tudo é feito para transformar a própria natureza da fronteira em nome da segurança. As fronteiras são cada vez mais transformadas em realidades móveis, portáteis, onipresentes e onipresentes. O objetivo é controlar melhor o movimento e a velocidade, acelerando-o aqui, desacelerando-o ali e, no processo, classificando, recategorizando, reclassificando as pessoas com o objetivo, mais uma vez, de selecionar melhor quem é quem, quem deve estar onde e quem não deve, em nome da segurança.
Como resultado, as fronteiras não são mais meras linhas de demarcação que separam entidades soberanas distintas. Cada vez mais, eles são o nome que devemos usar para descrever a violência organizada que sustenta tanto o capitalismo contemporâneo quanto nossa ordem mundial em geral. Mas, para sermos exatos, talvez não devêssemos falar em fronteiras, de modo geral, mas em «fronteirização», ou seja, do processo pelo qual certos espaços se transformam em lugares intransponíveis para certas classes de populações, que passam, assim, por um processo de racialização; lugares onde a velocidade deve ser reduzida e as vidas de uma multidão de pessoas julgadas indesejáveis ​​devem ser imobilizadas, se não destruídas. Seja qual for o caso, a transformação tecnológica das fronteiras está em pleno andamento. Em certo sentido, uma das principais consequências da aceleração das inovações tecnológicas tem sido a criação de um planeta segmentado de múltiplos regimes de velocidade.
Um desenvolvimento chave, ultimamente, é o grande interesse que as práticas de segurança nas fronteiras têm demonstrado pela conexão entre o corpo humano e a identidade, como meio de obter controle detalhado sobre o movimento e a velocidade. Nesse sentido, a pergunta que devemos fazer é a seguinte: o que exatamente está em jogo na ampliação da fronteira biométrica a múltiplos domínios da vida social e, em particular, ao corpo humano? Em outras palavras, o que explica a migração da fronteira, entendida como um ponto particular no espaço, para a fronteira como o corpo móvel das massas indesejadas de populações? A resposta é uma nova divisão global entre corpos potencialmente ameaçadores versus corpos que não são.
É da natureza do risco ser escondido da vista. O que está escondido da vista é geralmente desconhecido. Para que seja conhecido, deve servisualizado. A triagem de corpos nos postos de fronteira visa tornar visível «o que está escondido da visão, abrindo novas visualizações do corpo desconhecido, potencialmente ameaçador» (Amoore e Hall 2009, 444). Nesse contexto, as tecnologias biométricas deveriam fragmentar o corpo humano para recompô-lo para fins de securitização, eliminação e neutralização dos riscos. Isso acontece porque o corpo humano é visto como uma âncora indiscutível que permite a captura e a extração de dados em toda segurança. Como resultado, estamos testemunhando um emaranhamento gradual de características físicas individuais com sistemas de informação – um processo que serviu para aprofundar a fé nos dados como meio de gerenciamento de riscos e a fé no corpo como fonte de identificação absoluta. Dessa forma, as tecnologias biométricas talvez devam ser mais bem compreendidas como técnicas que governam tanto a mobilidade quanto o fechamento dos corpos (ver van der Ploeg 2003). Elas são percebidas como instrumentos infalíveis e inquestionáveis de verificação ​​da verdade sobre uma pessoa – os fiadores finais da identidade. Elas devem produzir a identificação inquestionável de uma pessoa e conferir autenticidade e credibilidade a todos os dados que estão conectados a essa identidade. De acordo com essa lógica, o mundo seria mais seguro se a ambiguidade, a ambivalência e a incerteza pudessem ser controladas. Supõe-se que essas tecnologias forneçam uma imagem completa de quem alguém é, para fixar e proteger a identidade como base para previsão e prevenção, deixando às pessoas a tarefa de contestar essa identidade.
Os três megaprocessos que esbocei brevemente estão conduzindo o movimento em direção ao que chamei de «emaranhamento planetário», bem como seu oposto, ou seja, fechamento, contração, contenção, acantonamento e encarceramento. Mas, repitamos, eles são moldados pela aliança entre o poder militar, as indústrias que o cercam (empreiteiros) e os gigantes da tecnologia. Eles também são impulsionados por elites corporativas cada vez mais distantes de seus países de origem, que armazenam a maior parte de seu capital em paraísos fiscais (ver Davis 2019). Essas elites não podem mais ser «forçadas a prestar contas» por meios tradicionais, como eleições ou protestos. Elas derrotam o escrutínio dos cidadãos por meio da complexidade e do sigilo, muitas vezes sob o pretexto da segurança nacional, ou por meio de uma lógica econômica que coloca o capital em primeiro lugar, antes das pessoas. Esse movimento é errático, desigual. Mas, em todos os lugares, ele aumenta a incerteza e a insegurança. Por toda parte, ele institucionaliza os riscos inerentes aos infortúnios da realidade.
Vida e mobilidade
Parte do que estamos testemunhando como resultado é uma nova imbricação, uma fusão simbiótica de vida e mobilidade. Estar vivo, ou sobreviver, é cada vez mais co-terminal com a capacidade de se mover. Assim como viver, o movimento, por sua vez, envolve duplicações contínuas, o cruzamento incessante de múltiplas linhas e limiares, múltiplas transições entre camadas. A própria vida é cada vez mais tomada como algo que pode ser calculado e recombinado, ao invés de meramente representado. Além disso, estamos testemunhando uma bifurcação entre a vida, por um lado, e os corpos, por outro. Hoje em dia, nem todo corpo é pensado como contendo vida. Acredita-se que corpos «descontados» não contenham vida como tal. São, a rigor, corpos nos limites da vida, presos em mundos inabitáveis ​​e lugares inóspitos. O tipo de vida que eles carregam ou contêm não é segurado ou não é segurável, dobrada como está em envelopes extremos e finos.
Esses corpos à beira do precipício são os mais expostos a secas, tempestades e fomes, resíduos tóxicos e várias experiências de apagamento. Com seus meios de subsistência impossibilitados, eles são os mais propensos a sofrer as mais incapacitantes feridas e danos. Sujeitos humanos presos muitas vezes sem escapatória, eles carregam o peso da vida terrestre em um planeta danificado (Tsing et al. 2017). Ao mesmo tempo, eles excedem todas as tentativas de contê-los. Esses corpos não estão simplesmente em movimento. Interativos e generativos, eles são movimentos e eventos. O interior de tais corpos não é separado de seus ambientes externos. Do ponto de vista dos corpos «descontados», estar vivo é sempre e já romper fronteiras ou estar exposto ao risco do fora entrar no dentro (leia Litvintseva, 2019).
Este desemaranhamento da vida dos corpos descontados, esta redistribuição da vida em escalas diferenciais de segurabilidade e não-segurabilidade é uma dimensão chave dos regimes migratórios contemporâneos. Estes últimos visam desacelerar a dinâmica das interações das pessoas, criar distâncias, ou romper as cadeias de relações entre elas, de modo a instituir novos padrões de separação. As restrições de movimento contemporâneas não se limitam às fronteiras nacionais. Elas estão trabalhando em escala global. Elas estão aprofundando as assimetrias de espaço e tempo entre as diferentes categorias de humanidade, enquanto conduzem à guetização progressiva de regiões inteiras do mundo. Em grande medida, isso é semelhante a uma universalização do modelo israelense. Nesse modelo, a restrição de movimento não visa necessariamente «confinar territorialmente as pessoas indesejadas ou dissociar seus movimentos daquele dos cidadãos, mas inscrevê-los em temporalidades e espacialidades desarticuladas, a ponto de dar a essas populações a ilusão de estarem territorialmente separadas» (Parizot 2018, 38).
Além disso, em um momento em que os componentes materiais e a organização biológica do corpo podem ser reengenhados e redesenhados, estes se baseiam mais do que nunca nas ideias de seleção repressiva, reprodução e rejuvenescimento das espécies. Somente o que pode potencialmente gerar valor conta como vida. Nesse contexto, as fronteiras devem concretizar o princípio da dissimilaridade, e não o da afinidade. Não são apenas obstáculos à livre circulação. São fronteiras entre espécies e variedades do humano. Como tal, eles desempenham um papel crucial nos modos contemporâneos de produção da diferença e do relacionamento humano. Os corpos humanos estão cada vez mais divididos entre aqueles que importam e os que não importam, aqueles que podem se mover e aqueles que não podem ou não devem, ou devem se mover apenas sob condições muito estritas. Corpos que não devem se mover são aqueles que não têm seguro. Eles devem ser rastreados, capturados e dispensados. Tais corpos são mantidos oscilando entre a invisibilidade, a espera e o apagamento. Eles estão presos em espaços fragmentados, tempo esticado e espera indefinida (Peteet, 2018). Quanto ao sonho da segurança perfeita, ele requer não apenas vigilância sistemática completa, mas também uma política de limpeza. Este sonho é sintomático das tensões estruturais que, durante décadas, acompanharam nossa transição para um novo sistema técnico de automação crescente – cada vez mais complexo, mas também cada vez mais abstrato.
Uma das maiores contradições da ordem liberal sempre foi a tensão entre liberdade e segurança. Hoje, esta questão parece ter sido cortada em duas. A segurança agora importa mais do que a liberdade. Uma sociedade de segurança não é necessariamente uma sociedade de liberdade. Uma sociedade de segurança é uma sociedade dominada pela necessidade irreprimível de adesão a um conjunto de certezas. Uma sociedade que teme todo tipo de interrogação que a mergulhe no desconhecido, desenterrando os riscos que nele certamente estão contidos. Por isso, numa sociedade de segurança, a prioridade é, a todo custo, identificar o que se esconde por trás de cada nova chegada – quem é quem, quem mora onde, com quem e desde quando, quem faz o quê, quem vem de onde, quem vai para onde, quando, como, porque e assim por diante. Além disso, quem planeja realizar quais atos, consciente ou inconscientemente. O objetivo de uma sociedade de segurança não é afirmar a liberdade, mas controlar e governar os modos de chegada.O mito atual afirma que a tecnologia constitui a melhor ferramenta para governar essas chegadas; que a tecnologia por si só permite a resolução deste problema – um problema de ordem, mas também de consciência, de identificadores, de antecipação e previsões. Teme-se que o sonho de uma humanidade transparente para si mesma, despojada de mistério, possa revelar-se uma ilusão catastrófica. Por enquanto, migrantes e refugiados estão sofrendo o impacto disso. A longo prazo, não é certo que serão os únicos.
Os megaprocessos destacados acima nos deixam com questões fundamentais que nos assombrarão durante a maior parte deste século. A primeira questão fundacional está relacionada ao que chamei de «fronteirização», ou as lógicas de contenção, clausura e contração. Talvez mais do que em qualquer outro momento de nosso passado recente, nos deparamos cada vez mais com a questão do que fazer com aqueles cuja própria existência não parece ser necessária para nossa reprodução; aqueles cuja mera existência ou proximidade é considerada uma ameaça física ou biológica à nossa própria vida. Ao longo da história, e em resposta a essa questão fundamental, vários paradigmas de regras foram concebidos para corpos humanos considerados excessivos, indesejados, ilegais, dispensáveis ​​ou supérfluos. Uma resposta histórica consistiu em estabelecer arranjos de exclusão espacial. Tal foi, por exemplo, o caso durante as primeiras fases do colonizador moderno ou do colonialismo genocida em relação às reservas indígenas americanas nos Estados Unidos, às prisões insulares, às colônias penais como a Austrália, aos campos e bantustões[footnoteRef:2]NdT na África do Sul. Um exemplo moderno tardio é Gaza, e Gaza pode muito bem prefigurar o que ainda está por vir. Ali, o controle de pessoas vulneráveis, indesejadas, excedentes ou racializadas é exercido por meio de uma combinação de táticas, sendo a principal delas o «bloqueio modulado». Um bloqueio proíbe, obstrui e limita quem e o que pode entrar e sair da Faixa. O objetivo pode não ser cortar totalmente a Faixa de linhas de abastecimento, redes de infraestrutura ou rota comerciais. No entanto, ela é relativamente fechada, de tal forma que efetivamente é transformada em um território aprisionado. O fechamento abrangente ou relativo é acompanhado por escaladas militares periódicas e pelo recurso generalizado de assassinatos extrajudiciais. Violência espacial, estratégias humanitárias e uma peculiar biopolítica de punição se combinam para produzir, por sua vez, um peculiar espaço de detenção em que pessoas consideradas excedentes, indesejadas ou ilegais são governadas pela abdicação de qualquer responsabilidade por suas vidas e seu bem-estar. [2: NdT «bantustão» vem do africâner: bantœstan que designava um território onde eram segregados negros na África do Sul e no sudoeste africano (atual Namíbia) durante o apartheid.] 
Mas há outro exemplo, do início do século 21, que consiste em travar novas formas de guerra, que podem ser chamadas de guerras de velocidade e mobilidade. As guerras contra a mobilidade são guerras cujo objetivo é transformar em pó os meios de existência e sobrevivência de pessoas vulneráveis ​​tidas como inimigas. Esses tipos de guerras de desgaste, metodicamente calculadas e programadas, e implementadas com novos métodos, são guerras contra as próprias ideias de mobilidade, circulação e velocidade, enquanto a era em que vivemos é precisamente uma era de velocidade, aceleração e abstração e algoritmos crescentes. Além disso, os alvos desse tipo de guerra não são de forma alguma corpos singulares, mas sim grandes faixas da humanidade julgadas inúteis e supérfluas.
Tudo isso faz parte da prática atual de fronteira remota, realizada de longe, em nome da liberdade e da segurança. Essa batalha, travada contra certos indesejáveis ​​e reduzindo-os a montes de carne humana, se desenrola em escala global, e está à beira de definir os tempos em que vivemos. As guerras contra a mobilidade são guerras peculiares contra os corpos. Eles têm a ver com duas grandes questões que nos confrontam hoje e nos perseguirão durante a maior parte deste século: por um lado, a questão dos futuros da vida, isto é, da auto-organização do ser e da matéria; por outro lado, o do futuro da razão.
O futuro da vida e o futuro da razão
Por muito tempo, a raça humana se preocupou com o surgimento da vida e as condições de sua evolução. A questão-chave hoje é como ela pode ser reproduzida, sustentada, tornada durável, preservada e universalmente compartilhada, e em que condições ela termina. Em geral, esses debates sobre como a vida na Terra pode ser reproduzida e sustentada, e em que condições ela termina nos são impostos pela própria época, caracterizada como é pela catástrofe ecológica iminente e pela escalada tecnológica.
É fato que, hoje, um número sem precedentes de seres humanos está inserido em tecnoestruturas cada vez mais complexas. Estes últimos estão intervindo cada vez mais na dinâmica do sistema terrestre em escala planetária. Isso levou à transgressão de limites planetários, como aqueles relacionados à mudança climática antropogênica, mudança degenerativa do uso da terra, perda acelerada de biodiversidade, perturbação dos ciclos biogeoquímicos globais de nitrogênio e fósforo e a criação e liberação de novas entidades como como nanopartículas e organismos geneticamente modificados (ver Donges et al.).
Além disso, tanto metabolicamente (por exemplo, em termos de suas necessidades energéticas) quanto reprodutivamente, as tecnologias estão cada vez mais ligadas a redes complexas de extração e predação, fabricação e inovação. Um exemplo são os desenvolvimentos recentes no domínio dos genes e moléculas. Como mostra Margarida Mendes, o apogeu do estudo do DNA permitiu a quebra e divulgação pública dos códigos genéticos de humanos, plantas e animais. Isso, por sua vez, deu lugar a um aumento exponencial de patentes biológicas, já que atualmente cerca de 20% do genoma humano é propriedade privada, em um contexto de uma lógica de mercado que aborda a vida como uma mercadoria a ser manipulada e replicada sob o volatilidade do consumo do mercado. Estudos após estudos mostraram, por exemplo, que as corporações estão intervindo diretamente nos ciclos naturais da vida e dos ecossistemas por meio da ampla modificação genética de elementos-chave na cadeia alimentar (ver Mendes 2017). À medida que genes OGM patenteados são absorvidos em nossos corpos em uma relação proprietária de subjugação biológica, o próprio corpo torna-se uma infraestrutura expandida e múltipla, onde a intervenção pode acontecer em muitas escalas diferentes. Portanto, é correto argumentar que há uma mudança na distribuição de poderes entre o humano e o tecnológico, no sentido de que as tecnologias estão se movendo em direção à «inteligência geral» e à autorreplicação. Elas estão recebendo os poderes de reprodução e propósitos teleonômicos independentes, em vez de tê-los retirados.
Nas últimas décadas, testemunhamos o desenvolvimento de formas algorítmicas de inteligência. Elas vêm crescendo em paralelo com a pesquisa genética, e muitas vezes em aliança com ela. A integração de algoritmos e análises da big data na esfera biológica não traz apenas uma crença cada vez maior no tecnopositivismo e nos modos de pensamento estatístico. Também abre caminho para regimes de avaliação do mundo natural e modos de previsão e análise que tratam a própria vida como um objeto computável. Concomitantemente, algoritmos inspirados no mundo natural e ideias de seleção natural e evolução estão em ascensão. É o caso dos algoritmos genéticos – um subconjunto de algoritmos evolucionários que imitam ações inspiradas em operadores biológicos, como as células, buscando otimizar as respostas aos problemas de seus ambientes por meio da autogeração, englobando processos de mutação e seleção natural. Estes últimos são projetados para evoluir e se adaptar ainda mais ao meio ambiente, em um processo de autogeração. A crença hoje é que tudo é potencialmente computávele previsível. No processo, o que se rejeita é o fato de que a própria vida é um sistema aberto, não linear e exponencialmente caótico.
Estes também são momentos em que muitos estão gradualmente percebendo que a razão pode ter atingido seus limites. Ou, em todo caso, é um momento em que a razão está em julgamento – estamos, em outras palavras, em uma espécie de Iluminismo das Trevas. A razão é uma faculdade que costumávamos reconhecer nos humanos e apenas nos humanos. Na tradição ocidental, todos nós, voluntariamente ou não, nos tornamos herdeiros da razão, sempre vista como a mais alta de todas as faculdades humanas, aquela que abriu as portas para o conhecimento, a sabedoria, a virtude e, o mais importante, a liberdade. Embora redistribuída de forma desigual entre eles, era prerrogativa apenas dos humanos, que os distinguiu das outras espécies vivas. Graças à sua capacidade superior de exercer essa faculdade, os humanos poderiam reivindicar ser excepcionais.
Hoje, a razão está sendo julgada de duas maneiras. Primeiro, a razão é cada vez mais substituída e subsumida pela racionalidade instrumental, quando não se reduz simplesmente ao processamento processual ou algorítmico da informação. Em outras palavras, a lógica da razão está se transformando de dentro de máquinas, computadores e algoritmos. O cérebro humano não é mais o local privilegiado da razão. O cérebro humano está sendo «baixado» em nano-máquinas. Uma quantidade excessiva de poder está sendo gradualmente cedida a abstrações de todos os tipos. Velhos modos de raciocínio estão sendo desafiados por novos modos que se originam de e dentro da tecnologia em geral e de tecnologias digitais em particular, bem como dos modelos top-down de inteligência artificial. Como resultado, a techné está se tornando a linguagem por excelência da razão.
Além disso, a razão instrumental, ou razão disfarçada de techné, é cada vez mais instrumentalizada. O próprio tempo está se envolvendo no fazer das máquinas. As próprias máquinas não executam simplesmente instruções ou programas. Eles começam a gerar um comportamento complexo. A reprodução computacional da razão fez com que a razão não seja mais, ou seja um pouco mais do que apenas o domínio da espécie humana. Agora a compartilhamos com vários outros agentes. A própria realidade é cada vez mais construída por meio de estatísticas, metadados, modelagem, matemática. Em segundo lugar, muitos estão dando as costas à razão em favor de outras faculdades e outros modos de expressão e cognição. Eles estão pedindo uma reabilitação do afeto e das emoções, por exemplo. Em muitas das lutas políticas em curso em nossos tempos, a paixão está claramente superando a razão. Em face de questões complexas, sentir e agir com coragem, visceralmente, em vez de raciocinar, está rapidamente se tornando a nova norma.
África no regime global de mobilidade
Vemos isso em relação às migrações africanas para a Europa em particular, e terminarei com comentários sobre essa questão. É uma questão que está turvada em mitos e fantasmas, alguns dos quais de cunho racista. De fato, no que diz respeito à questão das fronteiras e da migração, infelizmente os fatos já não parecem importar. E, no entanto, os fatos existem.
Estou preocupado com as políticas anti-imigração da Europa, porque seu objetivo final é transformar a África em um enorme Bantustão. É verdade que, de todas as regiões do mundo, a África é aquela que ainda não completou inteiramente sua transição demográfica. Há razões objetivas para isso, e elas são conhecidas por qualquer demógrafo historiador sério. Perdemos milhões de pessoas durante os séculos de comércio de escravos atlânticos e árabes. O colonialismo, suas guerras sem fim, sua economia política e suas consequências epidemiológicas e ecológicas mataram muitos. No final do século 21, a África terá finalmente compensado o que perdeu durante esses primeiros séculos. Terá mais jovens do que qualquer outra região do planeta. Nem todos eles vão fugir para a Europa. Acredito que precisamos urgentemente abrir o continente para si mesmo e arquitetar um novo ciclo histórico de repovoamento. A colossal massa terrestre de 30 milhões de quilômetros quadrados que é a África ainda pode abrigar mais pessoas. Na verdade, é sem dúvida a última porção da Terra que pode sustentar enormes migrações humanas. A maioria dos migrantes na África não sonha em ir para a Europa. Eles estão se mudando de um para outro país africano, e o mesmo acontece com os refugiados, os que fogem de guerras, desastres e catástrofes. Devemos parar de vender o mito segundo o qual a Europa está sitiada por refugiados e migrantes.
A Europa está rapidamente se tornando o maior reservatório de idosos na Terra. Muitas forças de direita e supremacistas brancos no mundo são dominadas pelo medo do que chamam de «o grande substituto», uma teoria da conspiração que pode desencadear políticas racistas e anti-imigração em escala planetária. Mas tais políticas simplesmente não são sustentáveis. Porque, mesmo que a Europa quisesse fechar hermeticamente as suas portas, é simplesmente demasiado tarde para fazê-lo. Talvez isso devesse ter sido feito há muito tempo e, no entanto, como sabemos, a Europa estava ocupada colonizando outras terras e não se pode realmente fechar as portas enquanto se saqueia à força as terras de outras pessoas.
Seja qual for o caso, se a Europa estivesse genuinamente determinada a fechar-se ao resto do mundo ou à África, as consequências teriam sido colossais, de proporções quase genocidas. A Europa teria que implementar políticas mortíferas, que aliás já são experimentadas naqueles laboratórios em que se tornaram o Mar Mediterrâneo e o Deserto do Saara. Segundo vários números, cerca de 34.000 pessoas já perderam a vida nos últimos anos tentando atravessar o Mediterrâneo; isso sem contar aqueles que encontraram seu fim no deserto do Saara, ou aqueles que são objeto de novas formas de escravidão e captura em lugares sem lei como a Líbia, onde a Europa está financiando milícias e incentivando-as a capturar pretensos africanos migrantes para detê-los em campos improvisados ​​ou vendê-los como escravos.
A escolha é, portanto, clara. É entre abraçar cinicamente todas as consequências de um para-genocídio rastejante, ou imaginar juntos diferentes formas de reorganizar o mundo e redistribuir o planeta entre todos os seus habitantes, humanos e não humanos. Como dito acima, uma questão-chave do século 21 será a gestão da mobilidade humana. O conceito de mobilidade humana é um pouco mais do que foi apelidado na Europa como a crise migratória, «a crise dos migrantes-refugiados». A mobilidade humana é uma dimensão chave das grandes mudanças planetárias que estão em curso. Eles incluem a migração, é claro, mas também estão relacionados a muitos outros fatores impulsionados pela aceleração tecnológica, a velocidade com que nosso mundo está se movendo, o desencadeamento de todos os tipos de forças predatórias, a ascensão do racismo bio- e high-tech, as condições de deterioração da vida na Terra e as mudanças ambientais.
Não podemos falar de migração sem abordar a presença e as ações do Ocidente no resto do mundo. A Europa e a América do Norte não podem sair destruindo os ambientes de vida de outras pessoas, extraindo seu petróleo, gás, madeira, diamantes e ouro, transportando tudo para casa, sem deixar nada para trás, transformando suas cidades em escombros, acabando com as possibilidades de viver em lugares distantes e esperar que aqueles afetados por tais convulsões sobrevivam em meio às ruínas.
A violência da Europa e da América no exterior é uma das principais razões pelas quais as pessoas são forçadas a fugir de lugares onde nasceram e cresceram, mas que se tornaram inabitáveis. E duvido que construir muros em torno de um Estado-nação seja a maneira mais inteligente de resolver as muitas crises que contribuímos para fomentar em todo o mundo. Em vez de comercializar ficções e inflamar paixões sombrias e histerias, devemos levar a sério a questão do futuro, reativar nossasfaculdades críticas e reabilitar a razão, porque se não reabilitarmos a razão, não poderemos consertar o mundo ou aprender a compartilhar o planeta.
Não podemos confundir o debate sobre os futuros africanos com os temores europeus de um grande êxodo. No que diz respeito à África, não temos que atender aos medos de ninguém. Temos que cuidar de nós mesmos e não podemos abraçar a lógica do «excesso de pessoas». Se, para começar, acreditamos que há excesso de pessoas, o que isso implica é que há algumas pessoas que não deveriam estar lá em primeira instância. Se este for o caso, então o que devemos fazer com o «surplus de pessoas», torná-los «supérfluos»? Temos que estar atentos às implicações terríveis e necropolíticas do discurso sobre «excesso de demais».
Dito isto, há questões reais de saída da pobreza, de criação e redistribuição de riqueza. Para enfrentá-los de forma eficiente, precisamos abrir a África para si mesma. A África é um continente colossal. Há espaço para todos, para cada um de seus muitos filhos e filhas, inclusive os da diáspora. Não podemos transformar esta porção da Terra em uma prisão dupla, onde as pessoas não podem sair e não podem se mover lá dentro. Temos que fazer da África um vasto espaço de circulação para seu próprio povo.
Se a Europa está realmente interessada em contribuir positivamente para resolver a grande questão do nosso século, que é a questão da mobilidade humana, a chave não é que a Europa gaste dinheiro construindo campos e prisões na Líbia e em seu próprio espaço. A Europa deve investir, por exemplo, na harmonização dos registos de identidade no continente, no desmantelamento gradual de milhares de fronteiras internas no continente, na intensificação racional dos movimentos no continente, em investimentos maciços na modernização de estradas, na construção de ferrovias transcontinentais e rodovias, na consolidação da navegação fluvial. É assim que o futuro será trazido de volta, e nenhum africano quererá sair ou acabar num lugar, a Europa, onde não conhece ninguém, onde ninguém os espera e onde não se é bem-vindo.
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Borderization = fronteirização
Entanglement = emaranhamento
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