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_ 200 maio A virada dos patrões A troca de guarda na Fiesp e o fl erte dos industriais com o PT, por Ricardo Balthazar O epicentro místico Por que Santa Catarina fascina tanto os neonazistas, por Felippe Aníbal “Não passo ninguém pra trás” As negociatas do maior grileiro de terras da Amazônia Legal, por Allan de Abreu A longa espera Como a Comissão de Anistia tenta se reerguer depois de Bolsonaro, por Luigi Mazza Tarifa Zero já! A utopia do transporte público gratuito começa a se tornar realidade, por Roberto Andrés E mais: Mulheres de presos no TikTok, por João Batista Jr. River Claure recria O Pequeno Príncipe nos Andes Um conto inédito de Jeferson Tenório Poemas de Ana Martins Marques A morte de María Kodama, por Alejandro Chacoff 0 0 2 0 0 pi au í_ 20 0_ R$ 3 2, 00 _a no 1 7_ m ai o_ 20 23 EXTRA! EXTRA! EDIÇÃO 200 QUASE IGUAL À 199 E MUITO PARECIDA COM A FUTURA 201 piauí_ 200 maio piauí maio piauí maio 1 de 1 27/4/23 PROVA FINAL V3 Br as il R ev ist as A S A B E D O R I A I N D Í G E NA A S A B E D O R I A I N D Í G E NA P O D E M U DA R O M U N D O P O D E M U DA R O M U N D O Conheça o livro obrigatório para quem deseja se reconectar com a natureza, animais e tradições milenares Extraordinário, inteligente e transformador. The GuardianThe Guardian Um hino de amor para o mundo. Elizabeth GilbertElizabeth Gilbert Br as il R ev ist as piauí_maio 3 Na oficina do Brics, de Caio Borges Quem fez o quê na edição de maio imagens Caio Borges ABRIL DESPEDAÇADO A CPI e a volta da extrema direita ao centro da política nacional Fernando de Barros e Silva + imagem Allan Sieber Mulher-gorila expõe a crueldade do machismo em monólogo que “abusa” do público masculino; Haroldo Ferretti, baterista do Skank, abre seu coração; fósseis sugerem que a humanidade chegou mais cedo às Américas; o traje tradicional da ABL se adapta a tempos de crise; estilista monta coleção de barracos judiciais; a arte em argila de Caruaru está em perigo; atriz de Vidas Secas, Maria Ribeiro faz 100 anos imagens Andrés Sandoval O BAILE DA FIESP Como os industriais paulistas, após longo namoro com o bolsonarismo, se reaproximaram do PT Ricardo Balthazar + imagem Nelson Almeida ELDORADO DO EXTREMISMO Santa Catarina e a multiplicação de células neonazistas Felippe Aníbal + imagem Vito Quintans OS FILHOS DO DELÍRIO Como as crianças nascidas de um projeto genético de Hitler enfrentam a descoberta sombria de suas raízes Valentine Faure + imagem Robert Capa O GRILEIRO-MOR Como Altino Masson se apossou de tanta terra pública na Amazônia Allan de Abreu + imagem Marizilda Cruppe A FILA DA REPARAÇÃO Os enroscos da Comissão de Anistia, que tenta se reerguer após Bolsonaro Luigi Mazza UM MENINO VEIO DO CÉU Fotógrafo boliviano reinventa O Pequeno Príncipe nos Andes, com indígenas aimarás River Claure + texto Diego Mondaca LOOK DO DIA NO XILINDRÓ Mulheres de presidiários se transformam em estrelas do TikTok e do Instagram João Batista Jr. + imagem Flavia Valsani A VEZ DA TARIFA ZERO Como o transporte público gratuito passou de utopia a realidade e ajudou a salvaguardar a democracia no Brasil Roberto Andrés + imagem Beto Nejme O PRAZER DAS PALAVRAS Os etimólogos e o amplo dicionário que a língua portuguesa não tem Paula Alkmim + imagem Beto Nejme NA COMPANHIA DE RUFUS Deve haver alguma beleza nessa vida fodida de merda Jeferson Tenório + imagem Robinho Santana DE UMA A OUTRA ILHA E não parece estranho que o próprio mar não enlouqueça? Ana Martins Marques + imagens Carla Caffé A cigana mandou queimar a capa da revista no quintal pra não assustar as almas puras A HERANÇA María Kodama administrou a obra de Borges como se precisasse defendê-la de todos. O que ocorrerá agora que ela se foi? Alejandro Chacoff + imagem Juan M. Espinosa capa colaboradores_4 questões vultosas_6 esquina_8 questões patronais_14 capítulos do nazismo I_22 capítulos do nazismo II_28 crimes fundiários_34 anais da ditadura_38 portfólio_44 questões carcerárias_52 questões republicanas_58 questões vernaculares_64 ficção_70 poesia_76 cartas_78 despedida_80 pi au í_20 0 A Volta do Fuzileiro, de Norman Rockwell, 1945 1 de 1 27/4/23 PROVA FINAL Br as il R ev ist as 4 colaboradores_maio Caio Borges [Capa] é artista gráfico. Ilustrou o livro De A a Z, Eróticas, de Sheila Hafez, pelo selo Laranja Original (Neotropica). Fernando de Barros e Silva [Abril despedaçado, p. 6] é repórter da piauí e apresentador do podcast Foro de Teresina. Ilustração de Allan Sieber. Ricardo Balthazar [O baile da Fiesp, p. 14] é jornalista. Foi repórter e editor da Folha de S.Paulo e correspondente do Valor Econômico nos Estados Unidos. Andrício de Souza [Cartuns a partir da p. 20], cartunista e roteirista, publicou o livro de quadrinhos O Intestino Eloquente (Espirro). Felippe Aníbal [Eldorado do extremismo, p. 22] é jornalista. Ilustração de Vito Quintans. Valentine Faure [Os filhos do delírio, p. 28] é escritora baseada em Paris e colaboradora do jornal Le Monde. Texto originalmente publicado na revista The Atlantic. ©2023 The Atlantic Monthly Group, Inc. Todos os direitos reservados. Distribuído por Tribune Content Agency. Tradução de Rogério Galindo. Allan de Abreu [O grileiro-mor, p. 34], repórter da piauí, é autor dos livros O Delator, Cocaína: A Rota Caipira e Cabeça Branca (Record). Colaboraram Jean-Noël Konan, de Abidjan (Costa do Marfim), e Luiz Fernando Toledo. Foto de Marizilda Cruppe. Luigi Mazza [A fila da reparação, p. 38] é repórter da piauí. River Claure [Um menino veio do céu, p. 44] é fotógrafo e designer boliviano. As fotos integram o livro Warawar Wawa (Raya Editorial). Apresentação de Diego Mondaca. Tradução de Rubia Goldoni e Sérgio Molina. João Batista Jr. [Look do dia no xilindró, p. 52], repórter da piauí, publicou A Beleza da Vida: A Biografia de Marco Antonio de Biaggi (Abril). Foto de Flavia Valsani. Roberto Andrés [A vez da tarifa zero, p. 58] é urbanista e professor da UFMG. Fundador da revista Piseagrama e da iniciativa Nossa América Verde. Trecho do livro A Razão dos Centavos: Crise Urbana, Vida Democrática e as Revoltas de 2013, a ser lançado em junho pela Zahar. Ilustração de Beto Nejme. Paula Alkmim [O prazer das palavras, p. 64] é jornalista com especialização em comunicação pública da ciência pela UFMG. Foi coordenadora de jornalismo na Rádio UFMG Educativa. Ilustração de Beto Nejme. Jeferson Tenório [Na companhia de Rufus, p. 70] é escritor e!doutor em letras,!autor,! entre outros, de!Estela Sem Deus!e! O Avesso da Pele, ganhador!do prêmio Jabuti em 2021!(ambos pela!Companhia da Letras).!Ilustração de Robinho Santana. Ana Martins Marques [De uma a outra ilha, p. 76] é poeta e autora de O Livro das Semelhanças, da Companhia das Letras. Poemas extraídos da plaquete De Uma a Outra Ilha, a ser lançada em junho na coleção Círculo de Poemas, publicada pelas editoras Luna Parque e Fósforo. Ilustrações de Carla Caffé. Alejandro Chacoff [A herança, p. 80] é escritor, ensaísta e editor de literatura da piauí. Autor do romance Apátridas (Companhia das Letras). Desenhos em homenagem à 200ª edição da piauí: Adão Iturrusgarai, Allan Sieber, Andrício de Souza, Ari Hisae, Caco Galhardo, Caio Borges, Carla Caffé, Carol Ito, Edson Ikê, Faw Carvalho, Gidalti Moura Jr., João Pinheiro, Laerte, Leandro Assis, Pedro Franz, Reinaldo Figueiredo, Robinho Santana, Val Pires, Valentina Fraiz, Vito Quintans. Ilustrações de Esquina por Andrés Sandoval. A ação faz referência aos marcos de !" de maio e #$ de novembro, propondo diálogos sobre a condição social da população negra. Oficinas, bate-papos e apresentações pelas unidades e plataformas digitais. DE MAIO A NOVEMBRO SESCSP.ORG.BR!DO"#AO$% #DO"#AO$% #NEGRITUDESESC Paula Alkmim Ricardo Balthazar Luigi Mazza Jeferson TenórioAna Martins Marques Allan de Abreu C A IO B O R G ES1 de 1 27/4/23 PROVA FINAL Br as il R ev ist as #OBrasilVoltou O Brasil voltou a cuidar da saúde, da cultura, da sua natureza, da sua gente. Voltou a combater a fome, com programas e ações para quem mais precisa. Voltou a priorizar a educação e valorizar os professores. Voltou a investir em infraestrutura com a construção de moradias e retomada de obras. Voltou a respeitar o meio ambiente e o seu povo e a ser respeitado no exterior. E é só o começo, vem muito mais por aí. voltou. Pra fazer mais POR NOSSA GENTE. GOVERNO FEDERAL 100 DIAS DE Confi ra as principais ações: gov.br/obrasilvoltou Br as il R ev ist as 6 fiscal à reforma tributária –, o que lhe confere hoje amplos poderes (além de uma paleta de cores bastante rica para que possa exercitar suas artes). É dramático que a aquarela de Lula 3 dependa nesse nível do pincel de um artista como Arthur Lira. A todo instan- te, paira no ar a ameaça de que sua mão pesada (ou leve demais) venha danificar de forma indelével a paisagem. Mas Lira é um pintor que gosta de trabalhar sob encomenda. Cobra caro, e sabe de quem cobrar. Sua proeminência humi- lha a cidadania, mas ele está longe de ser o pior dos problemas no momento. Logo depois do 8 de janeiro, o cientista social Marcos Nobre, autor do livro Limites da Democracia: De Junho de 2013 ao Governo Bolsonaro, disse à Folha de S.Paulo que o país tinha uma chance histórica de isolar politicamente a ex- trema direita. Vale citar: “Há uma oportu- nidade sem igual para o sistema político, especialmente para o!governo Lula, en- frentar e isolar essa extrema direita que quer o golpe já. É possível partir para uma defesa da democracia muito mais robusta do que a que foi feita até agora.” Menos de quatro meses depois, tem-se a sensa- ção nítida de que essa oportunidade foi desperdiçada. Por várias razões. É verdade que num primeiro momen- to os Poderes encenaram o teatro da insti- tucionalidade, como manda o figurino. Lula reuniu os governadores; o Congres- so e o Supremo desempenharam seus papéis – e esse mínimo foi importante para demarcar o terreno. Logo, no entan- to, a “defesa mais robusta da democracia” cedeu espaço às acomodações de praxe. Lula esvaziou a criação de uma "#$ no calor dos acontecimentos, quando havia se formado na opinião pública um sentimento quase unânime de re- púdio aos vândalos. Se fosse instalada em fevereiro, na abertura do ano legis- lativo, num ambiente ainda aquecido, a comissão seria um instrumento eficaz contra o golpismo. Haveria como trans- formá-la num desdobramento da frente ampla pela democracia. Lula também evitou contrariar os mi- litares, muitos deles àquela altura compro- metidos até o pescoço com a sabotagem do novo governo. Exonerou com duas semanas de atraso o comandante do Exér- cito que havia impedido a prisão dos manifestantes na noite do 8 de janeiro, contrariando uma determinação do mi- nistro da Justiça, Flávio Dino. Manteve, contudo, à frente da Defesa um conser- vador pusilânime como José Múcio, es- colhido a dedo justamente para não melindrar os fardados. E praticamente não mexeu no Gabinete de Segurança Institucional (%&$), que havia se transfor- mado pelas mãos do general Augusto Heleno, golpista contumaz, num ser- pentário bolsonarista. A reação temperada do governo ti- nha justificativas razoáveis. Lula quis evitar que o golpe bolsonarista viesse ocupar o centro da pauta política, amea- çando paralisar a gestão que então se iniciava. Havia escombros demais acu- mulados ao longo dos últimos quatro anos, além daqueles produzidos em poucas horas pela malta verde-amarela. As prisões em massa, os indiciamentos, o encarceramento de Anderson Torres, elo civil mais evidente entre Bolsonaro e os delinquentes, tudo isso pareceu ser resposta suficiente ao golpe por alguns meses. À falta de uma “defesa mais ro- busta da democracia”, o temperamento intempestivo de Alexandre de Moraes, no Supremo Tribunal Federal, e a firmeza atuante de Flávio Dino, um orador de ta- lento incomum, satisfizeram durante cer- to tempo a demanda por justiça, reparação, punição dos criminosos. Essa fase acabou. A criação da "#$ mista, na esteira das imagens que flagraram o general Gon- çalves Dias, então chefe do %&$ de Lula, perambulando atônito pelo Palácio do Planalto, sem oferecer nenhuma resis- tência aos invasores, representa evidente revés para o governo. A família Bolsona- ro terá seu microfone. Damares Alves, Magno Malta, esses digníssimos repre- sentantes do povo, terão voz, plateia e holofotes para dizer que menina veste rosa, menino veste azul, que é Brasil acima de tudo, Deus acima de todos, que a culpa é do #', que Lula é ladrão. Criar tumulto no país e fabricar ma- terial fantasioso para alimentar seus se- guidores pelas redes sociais – eis dois objetivos bastante palpáveis para a extre- ma direita na "#$. As conversas razoáveis sobre assuntos sérios, as discussões sobre políticas públicas, o arcabouço fiscal, as emergências sociais – tudo agora terá que disputar espaço com a artilharia dos jagunços do capitão no Congresso. A "#$ do Golpe é o retorno do re- calcado. A vitória eleitoral de Lula não é igual à vitória política da democra- cia. Essa disputa ainda não acabou, e a extrema direita, que estava acuada na retranca, acaba de marcar um gol de contra-ataque. Entre as tantas ur- gências brasileiras, derrotar politica- mente o obscurantismo talvez seja a principal delas. Sem isso, não haverá Amazônia viva, não haverá menos ar- mas e mais livros, não haverá redução da desigualdade. Sabemos que a viabilidade do governo depende de algum sucesso na economia, sem o que o resto tende a desmoronar. Mas o sentido histórico deste mandato é outro. Ao contrário do que supõem os senhores da imprensa, que se comovem mais com a autonomia do Banco Cen- tral do que com o 8 de janeiro, a ques- tão ainda é a democracia. J C omo dos casamentos e dos jogos do São Paulo, das comis- sões parlamentares de inqué- rito ("#$s) também se diz que a gente sabe como começam, mas não sabe como terminam. Também é verdade que não costumam acabar bem, como os casamentos e os jogos... Deixemos as comparações para lá. As circunstâncias que envolvem a Comissão Parlamentar Mista de Inqué- rito criada nos últimos dias de abril são únicas. A começar por seu objeto, que não diz respeito a eventuais malfeitos do governo em curso, como costuma ocor- rer, mas a uma tentativa de golpe de Estado perpetrada por apoiadores do governo anterior, financiados e catequi- zados em acampamentos ilegais protegi- dos pelo Exército por meses a fio. Foram, na verdade, anos de realejo, se lembrar- mos da insistência quase ininterrupta com que Jair Bolsonaro girou a manivela golpista, com palavras e gestos, durante todo o seu mandato. O inventário dos crimes que cometeu no exercício da Pre- sidência não caberia neste artigo. Mais importante é frisar que a impunidade que o ex-presidente desfruta até hoje diz muito sobre a saúde, ou a debilidade, das instituições do país. Augusto Aras e Arthur Lira, esses grandes prevaricado- res da República, entendem do assunto. Lira volta a ser personagem decisivo para arbitrar os rumos da "#$. Fortalecido pelo bloco que formou em torno de si, com nove partidos e mais de 170 deputa- dos, o presidente da Câmara tem o poder de definir o perfil da comissão parlamen- tar – se mais amigável ou se mais hostil aos interesses do governo. Além da ascen- dência sobre as nomeações de pelo me- nos 5 dos 16 parlamentares da comissão, Lira, como ninguém mais, pode facilitar ou dificultar a tramitação da pauta eco- nômica no Congresso – do novo regime questões vultosas A CPI e a volta da extrema direita ao centro da política nacional FERNANDO DE BARROS E SILVA ABRIL DESPEDAÇADO A LL A N S IE B E R _2 0 2 3 1 de 1 28/4/23 PROVA FINAL Br as il R ev ist as Br as il R ev ist as 8 “ABRA OS PERNÕES, GOSTOSINHO!” Mulher-gorila expõe acrueldade do machismo em monólogo que “abusa” do público masculino absurdo! Por que você saiu de casa se não planejava mostrar o que interessa?!” Cada vez mais afrontosa e destemida, a atriz sugere que os três homens fiquem de pé e se acariciem mutuamente. O de calça comprida não topa. Os de bermu- da, ainda que embaraçados, aceitam compartilhar esfregadinhas nas costas. “Gosto quando vocês se pegam. Lindo, lindo!”, incentiva a artista. “Por que não se beijam?” Os rapazes, atônitos, suspen- dem imediatamente os carinhos. A atriz se agarra à oportunidade e explica: “Mi- nha peça acontece no limiar do cons- trangimento e do terror. Mas apenas para metade da plateia... Para a outra metade, é só comédia, humor, curtição!” Na verdade, o sarcasmo de King Kong Fran lava a alma de uns 80% do público. Desde a estreia, em novembro, as mulhe- res ocuparam praticamente todos os as- sentos dos teatros cariocas que receberam a montagem – o Ipanema, o Cesgranrio e o !" Investimentos, onde o monólogo es- tará de novo neste mês, depois de passar por lá em março. Os poucos boys que ousam se defrontar com o espetáculo de setenta minutos dificilmente saem incólu- mes da experiência. A protagonista inverte a ordem patriarcal e se transmuta em al- goz dos “machos héteros” não somente porque assedia parte da audiência mascu- lina. Ela também conta histórias reais de sexismo no showbiz, que desconcertam os marmanjos presentes. A intenção é fazê- los sentir empatia pelo sofrimento femini- no. Claro que as espectadoras se entregam freneticamente à catarse e estimulam a artista o tempo inteiro, com uma profusão de gritos, assobios, gargalhadas e aplausos. Há, inclusive, as que antecipam certas fra- ses da atriz, numa demonstração de que assistiram à peça mais de uma vez. O boca a boca dentro e fora da inter- net acabou tornando a encenação um inesperado sucesso. Dez mil pessoas já a prestigiaram – número elevadíssimo para os padrões brasileiros, sobretudo quando a produção é de baixo orçamen- to. King Kong Fran custou 30 mil reais, garimpados numa vaquinha digital. E scrito e dirigido pela própria atriz e por Pedro Brício, o monólogo agrega várias linguagens: as do circo, do vaudeville, da performance e do cabaré burlesco. O espírito justi- ceiro das redes sociais norteia to do o espetáculo, na medida em que a prota- gonista adota um tom assertivo, lacra- dor, e comanda um tribunal anár quico, onde nenhum homem goza da presun- ção de inocência. A montagem não tem exatamente uma trama. Em linhas gerais, apresenta a versão alongada de um velho quadro circense – o da Monga, mulher sen- sual que vira gorila e ataca a plateia. Se a fera do passado apenas urrava, a do sé- culo !!# fala pelos cotovelos e levanta sem trégua as bandeiras do feminismo. Curiosamente, quem se converte em gorila na peça é a palhaça Fran, alter ego de Rafaela Azevedo. A protagonis- ta assume, portanto, duas facetas com- plementares: a da macaca tagarela e a de uma clown tão mordaz quanto ego- cêntrica, autoritária e perversa. Ela inicia a encenação numa jaula e rapi- damente se liberta. Logo abaixo da cintura, exibe um dildo de 37 cm, ora utilizado como arremedo de microfo- ne, ora como um simulacro de espada ou porrete. A música Dona do Prazer – adaptação de Toxic, sucesso de Brit- ney Spears, gravada pelo grupo Forró na Veia – serve de trilha sonora. Um trechinho da letra: Bem que eu te avi- sei/Para não me tocar/Cuidado, baby/ Você vai se queimar/É perigoso/Provar do meu amor. Carioca de Honório Gurgel, bairro periférico onde também nasceu a can- tora Anitta, a atriz de 31 anos criou Fran em 2013, durante uma oficina de palhaçaria. Inspirou-se na mãe, que já morreu e padecia de uma doença mental grave, o transtorno de persona- lidade limítrofe. “Ela não separava a fantasia da realidade. Dizia que iria telefonar para um galã de novela, por exemplo, e acreditava naquilo. Con- versava horas pelo celular com absolu- tamente ninguém. Era triste, singelo e engraçado. Tudo junto”, relembra a artista. “Minha mãe fazia coisas em casa que muitos atores não conseguem fazer em cena.” Diferentemente dos palhaços tradi- cionais, Fran evita pintar a face. Usa apenas uns cílios postiços enormes, uma peruca chanel preta e um batom vermelho, sempre borrado. Esforça-se para bancar a gata do pedaço, mas fre- quentemente naufraga e soa desajeita- da, excessiva ou ridícula. Entre 2018 e 2019, a personagem estrelou o solo Fran World Tour, em que tentava executar diversos números de circo e fracassava. Um terrível acontecimento está por trás do espetáculo que Rafaela Azevedo encabeça agora. Quan- do tinha 21 anos, a atriz sofreu um es- tupro. Ela se tratava com um osteopata, que a violentou durante uma consulta. “No momento da agressão, uma dúvida me atormentava: ‘Será que dei motivo para o cara se comportar assim? Será que agi de maneira inadequada?’ Eu me culpei... Por isso, não o denunciei.” O ataque lhe deixou marcas profundas. “Meu útero adoeceu, parei de menstruar e senti cólicas horrorosas. Os sintomas me assombraram por um bom tempo.” Não bastasse, a moça se fechou para as relações amorosas. “Eu me enxergava como o problema. Então, pensava: qual- quer homem que me atrair vai abusar de mim, já que sou fácil demais.” Graças à psicoterapia e à leitura de ensaios feministas, a atriz reinterpretou o episódio. “Compreendi que posso rea- gir. Os agredidos têm direito à violên- cia. Por que nem cogitei esmurrar o médico na hora do estupro? Não seria impossível. Faço ginástica, cultivo os músculos, exercito minha agilidade. Só que, em vez de peitar o agressor, aceitei o papel de vítima como inerente à mu- lher.” Uma década depois do ocorrido, com King Kong Fran, a artista final- mente reagiu. J Armando Antenore esquina Inicialmente, a impressão é de que a atriz Rafaela Azevedo está fazendo um simples pedido. “Você... Sim, você mesmo. Por gentileza, poderia trocar de lugar com aquela moça?”, indaga a prota- gonista do monólogo King Kong Fran para um jovem da plateia, num teatro do Rio de Janeiro. Surpreso, o rapaz de barba concorda sem reclamar. Ele usa camisa e bermuda claras. A atriz, posicionada no canto direito do palco, mira outro jovem e repete o apelo. Dessa vez, o alvo resiste. Também de bermuda, o homem não pre- tende trocar de poltrona com mulher ne- nhuma. “Ah, prefere continuar aí?”, certifica-se a artista. “Beleza. Mas você vai se arrepender...” Num piscar de olhos, o rapaz entende que não se trata de um pedido. É uma ordem, e só lhe resta ce- der. “Método Paulo Freire... Funciona, viu?”, zomba a atriz. O espetáculo mal começou e a estrela da noite já tem o público nas mãos. Ela desce languidamente do palco. Enver- ga uma fantasia de gorila, bem peluda. A máscara do primata, no entanto, não lhe oculta o rosto. Repousa sobre a cabe- ça da artista, como um boné. Os dois ra- pazes estão, agora, em poltronas vizinhas, perto de um terceiro jovem, que traja uma elegante calça comprida. A atriz ca- minha até o trio, equilibrando-se num salto plataforma de 10 cm, que a deixa com 1,80 metro de altura. Impetuosa, en- cara um dos homens de bermuda: “Per- não de fora, hein? E a camisa? Aberta no peito... Por que você se vestiu assim? É um código, né? Você deseja que a mu- lherada avance. Confessa! Que tal dar uma levantadinha para todo mundo admi- rar o material?” Completamente sem jeito, o jovem obedece. “Hmmmm... Resolveu meter o tímido, é?”, provoca a artista. Ela aborda, então, o segundo rapaz de bermuda. “Outro gostosinho aqui. Você se incomodaria de abrir as pernas? Quero checar um negócio: a sua mala está marcando?”, pergunta com voz qua- se ingênua, enquanto aponta o pênis do jovem. “Está marcando ou não? Preciso saber... Abra os pernões! Não está?! Que A N D R É S S A N D O VA L _2 0 2 3 1 de 5 27/4/23 PROVA FINAL Br as il R ev ist as piauí_maio 9 BAQUETAS NA MESA Haroldo Ferretti, baterista do Skank,abre seu coração “Toda banda um dia acaba, me-nos os Rolling Stones.” Haroldo Ferretti dizia isso para si mes- mo havia muito tempo. Mesmo assim, o baterista sentiu um baque forte quando seu companheiro de banda, o guitarrista e vocalista Samuel Rosa, avisou que pre- tendia começar uma carreira solo, com novos parceiros e novas formas de com- por. O anúncio foi feito em uma reunião de trabalho corriqueira, em uma tarde de agosto de 2019. Além de Ferretti e Rosa, estavam presentes o baixista Lelo Zaneti e o tecladista Henrique Portugal. O quar- teto formava o Skank, uma das bandas de maior sucesso do pop rock brasileiro. Com o fim iminente do grupo, Fer- retti passou a viver um “furacão de emo- ções”. “Quando chega a hora, dá um vazio, uma coisa esquisita”, diz ele à piauí. A hora chegou em 26 de março passado, quando o Skank fez seu último show, no Estádio Mineirão, em Belo Horizonte, cidade onde a banda foi for- mada, em 1991. Um público estimado em 50 mil pessoas acompanhou as três horas de apresentação. Em um misto de euforia e melancolia, os fãs ouviram hits como Te Ver, É uma Partida de Futebol, Jackie Tequila e Resposta. O baterista imaginava que, depois de uma noite como aquela, o quarteto se encontraria no camarim para lembrar seus êxitos e talvez até “estourar um champanhe e tocar a música do Ayrton Senna para comemorar”. Não foi o que aconteceu. “Brindamos com uma cerve- jinha e falamos: ‘Pô, gente, valeu.’” Em retrospectiva, Ferretti acha que essa des- pedida morna foi até adequada: “Você não solta foguete no velório de ninguém.” Nos dias seguintes ao show final, o grupo de WhatsApp da banda silenciou. “A sensação que tenho é que todo mun- do está com esse nó ainda na garganta”, diz Ferretti, que poucos dias depois da apresentação embarcou com a família para Londres. “Estou curioso para saber como vai estar meu coração, minha vida, minha cabeça daqui a um tempo.” O coração, a vida e a cabeça de Fer-retti oscilaram entre a tristeza e a gratidão nos meses que antecede- ram o show de despedida. Ele ainda ten- tava superar o impacto provocado pela decisão de Samuel Rosa, principal com- positor do Skank. Também se esforçava para “compreender as razões do outro” – e constatar, enfim, que não compreen- dia nem mesmo suas próprias razões. Ele admite que manter a harmonia do quarteto depois da decisão do vocalista de encerrar a banda exigiu muito esforço. Recorrendo à incontornável analogia com o casamento, o baterista avalia que durante esse período os membros do Skank já estavam separados, embora vi- vessem ainda na mesma casa. “Eu me policiei para não perder uma coerência que sempre tive em relação aos meus só- cios, e para não ligar o foda-se”, afirma.! Quando Samuel Rosa anunciou o fim do Skank, em 2019, a ideia era manter a banda em atividade ainda por um ano, para uma turnê de despedida. O prazo foi calculado também para cumprir os passos contratuais necessá- rios à dissolução do grupo e para não deixar a equipe técnica do Skank sem emprego de uma hora para outra. Mas então a Covid adiou a turnê de 2020. Durante a pausa imposta pela pande- mia, Ferretti se deu conta de que estava fazendo um “ensaio do que seria a vida depois, sem o compromisso do Skank”. Ele diz que foi “obrigado a entender que iria acordar na segunda-feira e não ia receber a programação do fim de sema- na, não ia ter que pegar um avião ou um carro para ir a tal ou tal cidade”. Resul- tado: “Na marra, aprendi, me acostumei com aquela ideia do fim.” Em março de 2022, quando a turnê de despedida finalmente teve início, as coisas se mostraram mais complexas do que ele pensou. “Parecia que cada show era o último. Era sempre carregado de uma emoção muito diferente da que a gente estava acostumado a sentir. E isso, sinceramente, me trazia uma sensação que, por Deus do céu, não era normal.” A decisão de Rosa tornou-se ainda mais incompreensível para Ferretti. “O Skank era tão produtivo e, porra, não é comum ver uma banda que consiga ser tão versátil.” Ele foi aceitando a ideia do fim do Skank à medida que a turnê pro- gredia, mas teve uma recaída na virada do ano, quando se aproximava a despedi- da no Mineirão. “A partir de janeiro, co- mecei a sentir uma angústia gigante, um vazio. Foi péssimo”, diz. “Tentei achar as minhas formas de lidar com essa situação para não cair numa vala que pudesse ser prejudicial não só a mim, mas a todo mundo. Fiquei com medo de adoecer, entrei numa paranoia, mas seguimos.” O dia 26 de março de 2023 chegou mais rápido do que ele esperava. Aos 53 anos, Ferretti teve a sensação de que “os 32 anos de Skank haviam passado mui- to rápido, de que a vida havia passado rá- pido, de que a vida é mesmo um sopro”. Descrever o que sentiu no palco, em Belo Horizonte, não é fácil para ele. “Na hora em que sentei na bateria... Não sei se consigo explicar...”, diz, hesitante, para então se entusiasmar com a lem- brança do público mineiro: “É clichê, mas parecia que cada um estava ali para nos dar um presente. Não era uma massa cinzenta de pessoas. Foi uma ca- tarse, um negócio muito diferente. Só estando dentro do meu coração para sentir o que eu estava sentindo.” O s ex-companheiros de banda pre-tendem se arriscar na carreira solo, mas Ferretti descarta essa possibili- dade. Ele não fez planos detalhados para a vida pós-Skank. “Não vou ter pique de montar uma nova banda para tentar fa- zer sucesso de novo. Não sou cantor, não sou compositor, não sou líder de banda. Minha posição é diferente, sempre tive consciência disso. É o lugar que eu quis: adoro ficar ali quietinho, nos bastidores.” Sem pressa para se reorganizar profis- sionalmente, ele se considera “pra lá do sucesso”, por tudo que o Skank alcançou. “Além disso, consegui ganhar grana”, acrescenta. “Não tenho uma corda no pescoço de ter que arrumar um emprego rápido para sobreviver.” Seus dois filhos – Júlia, de 23 anos, e João, de 20 – já têm, segundo o pai, “a vida deles”. “Agora, eu e minha mulher temos liberdade, a gente pode cuidar da gente”, afirma. Depois da viagem à Europa, o bate- rista quer estudar produção musical e técnicas de gravação, para melhor uti- lizar o estúdio que mantém em casa. “Sempre fui muito da prática e nunca tive tempo de parar para estudar. Sei que vou amar estudar isso.” Bem mais que o tempo/que nós perde- mos,/ficou pra trás também o que nos juntou, diz a canção Resposta, do Skank. O tempo em que Ferretti esteve junto de Rosa, Zaneti e Portugal ficou para trás, e ele vai se permitir um período de des- canso. “Vou sentir muita saudade”, diz. “Agora é dar o peso adequado para cada um desses sentimentos, para que isso não seja um problema para mim.” J Silvana Arantes A MARCA DA PREGUIÇA Fósseis sugerem que a humanidade chegou mais cedo às Américas C omo tem feito praticamente todos os verões nos últimos doze anos, o paleontólogo uruguaio Richard Fariña passou duas semanas, em feverei- ro deste ano, escavando o sítio do Arroyo del Vizcaíno, nos arredores do município de Sauce, quase 40 km ao Norte de Mon- tevidéu, no Uruguai. Milhares de fósseis de grandes mamíferos extintos já apare- ceram ali desde 1997, quando os primei- ros ossos vieram à tona em consequência de uma grande seca. O sítio paleontológico fica embaixo do riacho (ou arroio) que lhe dá nome. A cada temporada, os pesquisadores precisam construir uma pequena barragem e des- viar o curso do riacho, para que possam enfim abrir a escavação. Neste ano, eles eram aproximadamente quinze, entre co- laboradores e alunos de Fariña na Univer- sidade da República. Ficaram acampados nas imediações do sítio, e o paleontólogo era quem cozinhava para o grupo. Quando apareceram os primeiros fós- seis, os moradores locais estranharam. “Isso não é de boi”, disse um senhor ao se deparar com um osso comprido. E não era mesmo: pertencia a uma Lestodon, uma preguiça-gigante que podia medir quase 5 metros de comprimentoe pesar 4 toneladas ou mais. O animal viveu na América do Sul durante a última Era Glacial e desapareceu por volta de 11,5 mil anos atrás, com outros mamíferos gigan- tes que ficaram conhecidos como a me- gafauna extinta. No Arroyo del Vizcaíno, foram en- contrados vários desses animais. Vive- ram naquela região o gliptodonte, um bicho que lembra um tatu de 1 tonelada com uma cauda pontuda; o mastodon- te, um primo extinto do elefante; e o dentes-de-sabre, um felino de 2 metros de comprimento cujos caninos podiam medir mais de 20 cm. Quando os pesquisadores dataram o material, descobriram que os fósseis ti- nham cerca de 30 mil anos. Até aí, nada de surpreendente. Mas algo notável se revelou quando um colaborador de Fa- riña examinou de perto a clavícula de uma preguiça e encontrou marcas que, na sua avaliação, só podiam ter sido feitas por ferramentas de pedra fabricadas por humanos. Marcas similares apareceram também numa costela da Lestodon e em dezenas de outros ossos. Seriam um indí- cio de que ali viveram humanos que tal- vez comessem carne de preguiça-gigante. Não fosse por um detalhe: para boa parte dos arqueólogos, os primeiros humanos só chegaram ao continente americano entre 16 mil e 20 mil anos atrás – ou seja, muitos milênios depois da época em que aqueles ossos foram talhados. Aos 65 anos, Richard Fariña é um ho-mem corpulento de farta cabeleira e barba grisalha. O cientista recebeu a piauí no começo de março num saguão da Universidade da República onde havia o esqueleto de uma preguiça-gigante e a carapaça de um gliptodonte descobertos no Uruguai. Falou em português fluente e com direito a mesóclise. Aprendeu a lín- gua no final dos anos 1980, quando morou em Porto Alegre e fez mestrado na Univer- sidade Federal do Rio Grande do Sul. Fariña explicou que as ferramentas de pedra costumam deixar marcas mais reti- 2 de 5 27/4/23 PROVA FINAL Br as il R ev ist as líneas e em forma de !. Quando causadas por dentes de um animal, as marcas são irregulares e em forma de ". “Como a pedra é bem mais dura que o osso, a inci- são é profunda e deixa uma deformação nas bordas” disse o paleontólogo. “O osso se comporta como se fosse plástico.” As marcas misteriosas até poderiam ter outras causas. Os ossos talvez tenham sido pisoteados por outros animais. O de- safio dos pesquisadores é descartar essa possibilidade acima de qualquer suspei- ta. O uruguaio já calculou a probabilida- de de todas as marcas identificadas nos ossos terem causas naturais, e concluiu que é baixíssima – um número que co- meça com 0 e tem outros 43 zeros depois da vírgula e antes do 6, o último algaris- mo. Num estudo de 2021, seu grupo re- correu à inteligência artificial para interpretar a origem das marcas e, mais uma vez, concluiu que elas foram produ- zidas por ferramentas de pedra. Alguns colegas não se convenceram. Desde 2014, quando o grupo de Fariña publicou seus achados numa revista bri- tânica, várias refutações ao trabalho fo- ram veiculadas na literatura especializada. Na crítica mais recente, publicada no ano passado na revista PaleoAmerica, oito cientistas de universidades norte-ameri- canas apontaram fragilidades no estudo uruguaio. Para eles, trata-se do exemplo típico de um sítio formado por proces- sos naturais, e não pela ação humana. Fariña e seus colegas publicaram na mesma revista uma réplica em tom meio desaforado, que fala de rigor na ciência e honestidade intelectual. A vida dos uruguaios seria bem mais fácil se eles achassem no sítio as ferra- mentas que produziram aquelas mar- cas. Já apareceu ali uma peça que tem jeito de ser um raspador, mas nada pare- cido com as facas de pedra que devem ter sido usadas para deixar aquelas mar- cas, quem sabe tirando a carne dos os- sos. Algumas peças notáveis apareceram nas escavações deste ano, mas é cedo para cravar que eram ferramentas. “Ain- da estão sendo analisadas”, disse Fariña. O Arroyo del Vizcaíno se junta a ou-tras ocupações de idade parecida espalhadas pelo continente ameri- cano. Na Serra da Capivara, no Sul do Piauí, há vários sítios com mais de 20 mil anos de idade, sendo que um deles passa dos 40 mil. Em Santa Elina, em Mato Grosso, há indícios da presença humana com até 27 mil anos – incluindo ossos de preguiça-gigante modificados por ferra- mentas. Em Chiquihuite, no Norte do México, há uma caverna a 2,7 mil metros de altitude que pode ter sido povoada há 30 mil anos. Em comum, esses sítios têm também o fato de serem todos contesta- dos por parte da comunidade científica. Enquanto não aparecer uma prova mais firme da presença humana no Arroyo del Vizcaíno, a situação não deve mudar. Fariña não se incomoda com as críti- cas nem faz questão de convencer os incrédulos. Só não abre mão de ver as marcas de ossos tratadas com seriedade pelos seus pares. O paleontólogo gosta das controvérsias e acha que elas abrem espaço para a circulação de novas ideias. “Na ciência é bom deixar abertas todas as portas, porque tu não sabe por qual delas vai ter que atravessar”, disse Fariña. E a porta da chegada humana ao conti- nente há mais de 25 mil anos, segundo ele, “está ficando escancarada”. J Bernardo Esteves REVOLUÇÃO NO FARDÃO! O traje tradicional da ABL se adapta a tempos de crise # D iógenes Cardoso retira da caixa os fios de ouro, dispostos em um ar-ranjo que lembra um rabo de ca- valo. “Olha só o peso”, diz o alfaiate de 82 anos, ao passar o conjunto para as mãos do interlocutor. A cena traz um toque de melancolia: em 2018, o profis- sional veterano perdeu a exclusividade que mantinha desde 2005 de confeccio- nar os fardões dos integrantes da Acade- mia Brasileira de Letras ($%&). # A quebra do monopólio representou também o rompimento de uma tradição: não há mais ouro nos fardões. O que re- luz no peito dos recém-chegados à $%& são paetês aplicados sobre o bordado. “Não tem ouro”, sentencia Cardoso ao ver fotos do novo modelo. Dependendo da incidência da luz, os fios produzem refle- xos vermelhos ou verdes, mas não doura- dos. O alfaiate também usava paetês, mas dava o acabamento com fios de ouro. O fim da “era do ouro” começou com a posse do poeta e compositor Antonio Cicero, que optou por uma solução casei- ra e mais barata. O novo fardão saiu do ateliê de seu marido, o figurinista Marce- lo Pies, que há mais de vinte anos atua no cinema e no teatro. Fernanda Montene- gro, Gilberto Gil, Godofredo de Oliveira Neto e Ruy Castro também entraram na academia com o modelo de Pies. A mudança foi impulsionada pelo fim de outra tradição: há menos de dez anos, depois de alguns questiona- mentos sobre o uso de verbas públicas, governos estaduais e prefeituras deixa- ram de doar o traje de seus filhos torna- dos imortais – um gasto público que não é mais aceitável em tempos de austerida- de fiscal. Atas de sessões realizadas em 2017 mostram que os acadêmicos discu- tiram novos meios para financiar a roupa coruscante dos colegas novatos. As pro- postas não avançaram. Como argumen- tou na época o jornalista Cícero Sandroni, o problema é do acadêmico, não da aca- demia. Desde então, alguns eleitos banca- ram o traje com recursos próprios; outros o receberam de amigos, empresas ou en- tidades profissionais.# A diferença de preços entre os fardões de Cardoso e de Pies é grande. O novo sai por 30 mil reais. O de fios de ouro por quase o dobro e chegou a custar 78 mil reais na época do mecenato oficial – o alfaiate alega que os governos atrasavam o pagamento e exigiam custosas certi- dões. Pies não respondeu aos pedidos de entrevista feitos pela piauí. Um amigo do estilista que o consultou sobre o tema confirma que os bordados de seu fardão são feitos com fios metalizados, mas res- salvou que a falta do ouro não justifica a diferença de preço (segundo Cardoso, na sua última compra, cada grama do metal custou 3,8 mil reais). Presidente da $%&, o jornalista Merval Pereira não vê problemas na mudança. “O fardão mudoucom o tempo”, diz. Ele lembra que o escritor Ariano Suassuna encomendou seu traje a uma costureira e a uma bordadeira do Recife.#Machado de Assis, primeiro presidente da $%&, nunca vestiu fardão. O traje só foi intro- duzido na instituição em 1910 – dois anos depois da morte de Machado –, na posse do escritor e jornalista Paulo Barre- to, o João do Rio. Tornou-se obrigatório desde então, embora as normas para sua confecção só tenham sido oficializadas no regimento de 1964: deveria ter “bor- dados a ouro, imitando louros”. As normas foram sendo relaxadas com o passar dos anos, como se pode constatar comparando três trajes mantidos no acer- vo da $%&. Nos fardões do poeta e filólogo Amadeu Amaral (empossado em 1919) e do jurista, historiador e político Afonso Arinos de Melo Franco (cuja posse foi em 1958), os louros são feitos inteiramente com fios de ouro. Já o#fardão do jornalista e escritor Carlos Heitor Cony, empossado em 2000, tem fios do metal apenas nos acabamentos, tal como faz#Cardoso.# Houve acadêmicos que propuseram a extinção do fardão, como o poeta e deputado Afonso Celso, que acha- va o traje pouco adequado ao nosso clima. Em 1928, o antropólogo Roquette-Pinto tentou, e não conseguiu, assumir sua ca- deira sem envergar o uniforme. O poeta Manuel Bandeira, que não gostava do fardão, só o usou na sua posse. Em 1997, durante uma reunião da $%&, o também poeta Lêdo Ivo revelou que Bandeira usara um traje emprestado. Depois de ganhar alguns quilos, o romancista João Ubaldo Ribeiro deixou de ir às posses de acadêmicos e contribuiu para o anedotá- rio em torno do uniforme. “Dizia que o fardão ficou tão apertado que ele se sen- tia um queijo provolone quando o abotoa- va”, conta a escritora e acadêmica Ana Maria Machado.# A adoção da roupa com louros doura- dos foi iniciativa do jornalista e escritor Medeiros e Albuquerque, com o propósi- to de deixar a $%& mais parecida com seu modelo, a Academia Francesa. Em mais uma inconfidência nas sessões da acade- mia brasileira, o romancista Josué Mon- tello contou aos colegas, em 1993, que Medeiros e Albuquerque tinha razões ocultas para imitar os franceses: funcio- nários da alfândega brasileira confun- diam o fardão com o traje de gala usado por diplomatas e assim liberavam o ilustre passageiro sem revista de bagagem. “As coisas dele passavam tranquilamente”, disse Montello. Até onde se sabe, não ha- via tesouros das arábias entre essas coisas.# Em 1977, com a eleição de Rachel de Queiroz, primeira mulher a entrar na $%&, foi necessário criar uma versão femi- nina do fardão. Foi adotado um vesti- do longo com bordado em torno da gola. O modelo seria substituído, em 2010, por um parecido com o dos homens, dese- nhado pelo estilista Guilherme Guima- rães. A troca não foi pacífica. “Fui voto vencido”, lamenta Ana Maria Machado, que considera o vestido mais leve e fres- co.#Novos imortais elogiam o traje assina- do por Pies. Gilberto Gil afirmou que o considera elegante; Ruy Castro disse que ele é “muito confortável”. Para o roman- A N D R É S S A N D O VA L _2 0 2 3 10 3 de 5 27/4/23 PROVA FINAL Br as il R ev ist as piauí_maio 11 cista Godofredo de Oliveira Neto, o traje é “supercaprichado e bem cortado”. Em seu ateliê com vista para a !"# – fica a 120 passos do Petit Trianon, sede da instituição, no Centro do Rio –, cer- cado de ternos em produção e de fotos ao lado de acadêmicos, Diógenes Car- doso admite ter ficado surpreso – mas não magoado – com a adoção do mode- lo concorrente. Faz questão de lembrar que, no ano passado, foi dele a roupa que o neurocirurgião Paulo Niemeyer Filho vestiu na posse. Numa das prateleiras de seu local de trabalho, repousam três pe- ças de gabardine verde-escuras, material para a confecção de três fardões. “Se eles vierem...”, suspira o alfaiate, sonhando com os próximos imortais. J Fernando Molica MODA, CÓPIA E TRETA Estilista monta coleção de barracos judiciais Nati Vozza é um fenômeno. Paulista de Campinas, ela foi uma pioneira dos blogs de moda, com o Glam- 4You. Linda e bem articulada, tornou-se uma das primeiras influenciadoras a criar a própria grife, em parceria com Antonio Junqueira, seu marido na épo- ca. Lançada em 2012 como by$% e hoje chamada apenas $%, a marca faz roupas para mulheres ricas. Em 2020, foi adqui- rida por 210 milhões de reais pelo Grupo Soma, um dos maiores conglomerados de moda do Brasil – Animale, Farm e Hering estão em seu portfólio. Hoje divorciados, Vozza e Junqueira seguem no comando da $%, que alcançou uma receita bruta de 381,4 milhões de reais em 2022, um crescimento de 38,1% em relação ao ano anterior. A grife tem dezesseis lojas próprias, vende suas peças online e está nas prateleiras de noventa lojas multimarcas em todo o Brasil. Enquanto isso, com 1,4 milhões de seguidores no Instagram e 320 mil no TikTok, a criadora da $% suscita contro- vérsia nas redes. Suas brigas com outras influenciadoras foram parar no Judiciá- rio, em três processos rumorosos. Num recente vídeo promocional da $%, a influenciadora Mônica Salga-do ironizou grifes que recorrem ao “ativismo” para “se legitimar”. Pegou mal: o Grupo Soma vangloria-se de plan- tar mil árvores por dia. Na surdina, a em- presa fez a peça publicitária com Salgado sumir das redes sociais. Uma diretora do Soma disse no Instagram que o vídeo “não reflete os valores do grupo”. Vozza engoliu a reprimenda em silên- cio, o que não é do seu feitio – como bem sabe a publicitária Camila Toledo, da conta “Camila Fashion Tips”, com 66 mil seguidores no Instagram. Em março, Toledo cotejou vestidos do esti- lista Reinaldo Lourenço com peças pa- recidas do norte-americano LaQuan Smith e da marca italiana Bottega Vene- ta. Antes disso, apontou cópias de outras grifes estrangeiras feitas pelas brasileiras Skazi, Agilitá, Iorane – e $%. “Ela come- çou copiando muito a Cris Barros, grife que também faz parte do Grupo Soma”, diz Toledo, sobre Vozza. “Mas adora Isa- bel Marant, Courrèges, Givenchy...” Em 2020, Vozza entrou na Justiça com um pedido para que Toledo não mais citasse o seu nome e sua grife. O juiz Guilherme Ferreira da Cruz acatou as acusações, afirmando que houve “uso in- devido do nome, da imagem e da voz” da estilista. A decisão foi reformada em uma instância superior, mas ficou mantido o veto à citação do nome de Vozza e de sua marca. Para driblar a ordem judicial, To- ledo se refere à $% como byXerox. A disputa aguarda julgamento de re- curso pelo &'(. “Uma influenciadora com milhões de seguidores, que faz da exposição de sua vida uma forma de gerar valor de mercado para a sua em- presa, pode não querer ser alvo de críti- cas?”, questiona a advogada Letícia Soster Arrosi, que representa Toledo. A defesa de Vozza diz que Toledo abu- sou da liberdade de expressão. “Camila chegou a fazer 84 postagens em dois meses contra a marca e a pessoa física da Nati, usando termos pejorativos, como Raivozza e Trevozza”, diz a advo- gada Priscila Cortez de Carvalho. Formada em farmácia, Priscilla Re- zende chacoalhou a internet entre os anos de 2011 e 2013, depois que criou o blog Blogueira Shame para revelar os bas- tidores de uma profissão que ainda estava no berçário: a de influenciadora. “As me- ninas faturavam alto com publicidade, fingindo estar dando dicas de amigas para as suas seguidoras”, conta Rezende, que na época não revelava a sua identidade. O Blogueira Shame atingia entre 2 e 3 milhões de visualizações por mês. Ta- manha repercussão fez com que fosse responsável pela primeira autuação do Conselho de Autorregulamentação Pu- blicitária (Conar) sobre publicidade di- gital no Brasil, em 2012. Revelou que a Sephora tinha contratado as blogueiras Lala Rudge, Mariah Bernardes e Thás- sia Naves para fazerem anúncio velado de um delineador da Yves Saint Lau- rent. O caso ficou conhecido ironica- mente como “mensalão da moda”. Rezende interrompeu o blog algum tempo depois,mas em 2020, quando es- tava em quarentena no sítio de sua famí- lia em Minas Gerais, resolveu criar uma conta no Instagram chamada “Desin. Fluencer”, abordando o universo das in- fluenciadoras. A fim de fazer uma grana, ela passou a cobrar de seguidores que quisessem fazer parte de seus “melhores amigos”, recurso do Instagram Stories para mostrar postagens a pessoas selecio- nadas. Só que publicou ali intimidades sobre o divórcio de Vozza, usando termos chulos, e a mensagem vazou do grupo exclusivo. “Eu estava nervosa com a pan- demia”, justifica-se Rezende. A criadora do $% apelou à Justiça, e Rezende foi condenada a pagar 40 mil reais (em valo- res atuais). No fim de 2021, o Instagram tirou o “Desin.Fluencer” do ar, por su- postamente infringir suas regras. Rezen- de briga na Justiça para reativar o perfil. Jéssica Belcost, mais uma influencia- dora do Instagram, com 592 mil seguido- res, comprou por 3 mil reais uma calça de couro da $% e desconfiou do material depois que um passante do cinto se sol- tou. Resolveu falar disso na rede e acabou processada por Vozza. Uma perícia judicial atestou que a par- te externa da calça era feita de couro, mas a interna, de elastano. Pelo uso da palavra “falso” em uma postagem sobre a calça, Belcost foi condenada a pagar 5 mil reais de indenização. O caso aguarda julga- mento em segunda instância. Em contra- partida, Toledo e Belcost processaram Vozza por danos morais, mas perderam. No Reclame Aqui, plataforma criada para consumidores relatarem problemas, a $% consta na categoria “não recomen- dada”. De quarenta reclamações entre outubro de 2022 e março deste ano, ne- nhuma foi respondida pela grife. N ati Vozza ainda encontra tempo para cultivar haters com posta-gens descalibradas, devido ao seu comportamento. Ao elogiar a eficácia de um bronzeador, ela afirmou ter mu- dado de “raça”. Durante a pandemia, questionou a rapidez com que foi cria- da a vacina contra a Covid e disse que o lockdown iria “matar mais do que o ví- rus”. Também precisou pedir desculpas por ter relacionado marcas que esta- riam copiando as suas peças com “fá- bricas de chão sujo” do bairro do Bom Retiro, em São Paulo. Para a advogada de Vozza, não con- cordar com determinado posiciona- mento político não dá direito a ninguém de fazer ataques pessoais. “O argumen- to de que, por ser uma pessoa pública, pode ser xingada não tem cabimento.” Vozza em nenhum processo contes- tou o fato de ser acusada de copiar esti- listas estrangeiros. “Esse não é o objeto dos processos. Coincidências podem acontecer, e a moda está cheia disso”, diz a advogada. Camila Toledo rebate: “Qual é a diferença entre as roupas vendidas pela Shein e as dela [Vozza], que faz peças parecidas, só que custan- do 1 mil reais?” J João Batista Jr. OUTRO OURO NEGRO A arte em argila de Caruaru está em perigo N o princípio era o barro. Foi graças ao solo rico que o Alto do Moura, bairro de Caruaru, ci- dade do agreste pernambucano, come- çou a ser povoado. Por volta de 1900, agricultores de regiões vizinhas foram atraídos por sua terra fértil banhada pelo Rio Ipojuca. O local abrigava também uma abundante jazida da argila e, com o tempo, esse material levou os moradores a trocarem a agricultura pelo artesanato. O amontoado de ruas ficou conhecido como “Terra dos Ceramistas” e foi lá que viveram os mestres Vitalino (1909-63) e Galdino (1929-96), precursores das artes figurativas em barro no Brasil. Logo na entrada do bairro, um por- tal exibe o seu título principal, conferi- do pe la Unesco: “Bem-vindo ao Alto do Moura, o maior centro de artes figura- tivas das Américas.” As ruas calmas são repletas de ateliês. Pelas portas e janelas abertas se vê as mais diversas figuras de cerâmica dispostas em mesas, cadeiras e pranchas: casinhas e igrejas, bois e cães, lavradores, músicos e trabalhadores com roupas de padrões geométricos multico- loridos. De acordo com a Associação dos Artesãos em Barro e Moradores do Alto do Moura (Abmam), cerca de oito- centos ceramistas vivem atualmente da tradição do barro, passada de geração a geração. Para a modelagem de peças nas mais variadas dimensões –)desde figuras minúsculas cujos detalhes só se en- xerga com lupa até figuras humanas em tamanho natural –, o barro precisa ter características específicas, como as en- contradas nas margens do Rio Ipojuca. Essas jazidas locais, porém, estão quase esgotadas, de acordo com uma análise do geógrafo Laudenor Pereira da Silva. Não foi o artesanato que as exauriu: olarias da área utilizam a argila dos ter- renos para produzir telhas e tijolos des- de os anos 1950. Houve épocas em que essas empresas até proibiram os arte- sãos de terem acesso a sua matéria-pri- ma – que devido à cor escura, recebeu o epíteto de “ouro negro” (normalmen- te associado ao petróleo). 4 de 5 27/4/23 PROVA FINAL Br as il R ev ist as 12 Proveniente de fenômenos geológicos que duram milhares de anos, o barro só pode ser encontrado em partes da mar- gem do rio. Até hoje, três reservas foram utilizadas pelos moradores do Alto do Moura. A primeira, comprada pelo gover- no do estado, foi cedida para a comunida- de de artesãos em 1981. O esgotamento da área ocorreu rapidamente, antes da libera- ção da segunda jazida, adquirida em 1985 e que acabou por volta de 2007. No mes- mo ano, o governo comprou a atual reser- va, de 4 hectares, também doada aos artesãos. Contudo, segundo relatos dos moradores, não há nenhuma proteção da jazida. Como sua porteira e suas cercas estão quebradas, qualquer um consegue ter acesso ao local, inclusive as olarias. Acredita-se que a argila dessa terceira jazida vá durar pouco mais de vinte anos – o que precisa ser confirmado por novos estudos geológicos. Mas os artesãos di- zem que a situação é pior.!“Se retirásse- mos só da área que pertence à associação, o barro já tinha acabado há muito tem- po”, diz o artesão Helton Rodrigues, presi- dente da Abmam. “Hoje em dia, tiramos só 10% do que utilizamos dessa jazida. Os outros 90% vêm de terrenos particu- lares [à beira do Rio Ipojuca], mas a qua- lidade é duvidosa.” A falta de estudos sobre o solo da região dificulta a desco- berta de outras reservas que podem exis- tir nos 320 km de percurso do rio. Atendendo à reivindicação dos mora- dores e da associação, a Prefeitura de Caruaru anunciou, no ano passado, a compra de um terreno que seria destina- do à extração do barro. Mas até agora só existe a promessa da então prefeita Ra- quel Lyra ("#$%), hoje governadora de Pernambuco. A doação ainda não foi oficializada, e os oitocentos artesãos, cuja renda depende inteiramente do barro, estão entregues à própria sorte. Discípula e afilhada de Mestre Galdi-no, Cleonice Otília, de 65 anos, não acredita na sorte. Conhecida como Nicinha, a artesã começou a moldar o bar- ro ainda criança, para ajudar no apertado orçamento da família. Foi graças ao barro que pôde comprar sua casa e sustentar seu filho após a morte precoce do marido. “O diploma que eu tenho é o bolo de barro. O meu ouro negro. A minha caneta sem bico”, recita Nicinha, que estudou até a quarta série e é poeta. No ano de 2021, ela teve um poema publicado pela primei- ra vez, em uma coletânea intitulada Asas da Palavra do País de Caruaru. Agora está trabalhando em seu próprio livro. “Não aprendi a ler na escola, mas, através da arte do barro, até poesia eu faço”, diz. Suas esculturas de formas alongadas e imagina- tivas quase sempre vêm acompanhadas de poemas que as explicam e reinventam.! Mestre Galdino, Edvard Munch e Fri- da Kahlo são alguns dos artistas que inspi- ram Nicinha, além, é claro, de suas companheiras artesãs do Alto do Moura. Líder nata, ela fundou o grupo de mulhe- res Flor do Barro, que realiza cursos e ofi- cinas sobre a arte ceramista para as novas gerações. O grupo já recebeu importantes distinções estaduais, como o Prêmio Aria- no Suassuna de Cultura Popular e Dra- maturgia, em 2019, e o PrêmioCulturas Populares, em 2018. Na luta pelo reco- nhecimento do trabalho feminino, o Flor do Barro protesta contra o fato de, quase sempre, somente homens serem reconhe- cidos pelo título de mestre artesão. Tudo o que Nicinha construiu até hoje veio da intimidade entre suas mãos e o “ouro negro”. “A gente sobrevive da arte do barro. Precisamos saber quanto tempo ainda temos, e precisamos princi- palmente de uma nova jazida, com estu- dos que comprovem se ela é boa ou não”, diz. “Para que nossa arte não morra, pre- cisamos ter o que deixar para as próximas gerações.” Esse é o único momento em que o rosto de Nicinha, cheio de peque- nas rugas que atestam suas muitas risa- das, deixa a tristeza transparecer. J Maria Júlia Vieira UM SÉCULO SOB O SOL Atriz de Vidas Secas, Maria Ribeiro faz 100 anos Aquela mulher que se arrasta pelo ser-tão no filme Vidas Secas, carregando o filho mais novo e com um baú de folha na cabeça, completou cem voltas ao redor do Sol no último dia 25 de março. Ela hoje mora em Genebra, na Suíça, mas nasceu cercada pela Caatinga, paisagem do livro de Graciliano Ramos e do filme homônimo de Nelson Pereira dos Santos. Seu povoado natal, Boqueirão, no municí- pio baiano de Sento Sé, foi inundado nos anos 1970 para a criação do lago da barra- gem de Sobradinho. No lugarejo hoje sub- merso, começou o enredo singular que é a vida centenária da atriz Maria Ribeiro (no registro civil, Maria Ramos da Silva). Caçula de uma família de sete ir- mãos, Ribeiro conta que tinha só 3 anos quando deixou Boqueirão, onde os pais eram trabalhadores rurais. Foi viver em Juazeiro, na Bahia, e depois em Pirapo- ra, em Minas Gerais, com um casal de tios mineiros que cuidaria dela até a ida- de adulta. Quando tinha 15 anos, mu- dou-se com eles para o Rio de Janeiro. No Rio, trabalhou em fábricas e tipo- grafias, até se fixar na Líder Cine La- boratórios, onde chegou a chefe de expedição. A empresa fazia revelação de filmes e tinha entre seus clientes os jo- vens diretores que criariam o Cinema Novo. “Eles me entregavam o filme para revelar, e eu entregava o copião. Tinham mais contato comigo do que com o dono do laboratório”, lembra Ribeiro. Ela nunca pensara em ser atriz, mas, aproximando-se dos 40 anos no início dos anos 1960, foi convidada por Pereira do Santos, durante um intervalo de almoço na Líder, para interpretar Sinha Vitória em Vidas Secas, o quinto longa-metragem do diretor (a tendência de buscar amadores para papéis centrais ganhou força no Ci- nema Novo). “Nelson, peça tudo, menos isso”, disse ela. Mas ele estava convicto de ter encontrado nos traços e na firmeza da funcionária os atributos ideais para a com- panheira do retirante Fabiano, persona- gem de Átila Iório, ator já experiente. Ela cedeu à insistência do diretor. Os quatro sócios da Líder relutaram em libe- rar sua funcionária, mas foram convenci- dos por um dos produtores do filme, Herbert Richers, cliente assíduo do labora- tório. Para não confundirem o sobrenome Ramos de Maria com o do escritor Graci- liano, o dela foi mudado para Ribeiro. A s filmagens em Palmeira dos Ín-dios, no agreste alagoano, cidade onde Graciliano Ramos foi prefei- to, duraram quatro meses. A equipe mo- rou em um alojamento improvisado. “Como o filme era muito pobre, não tinha uma tenda no set para proteger do Sol”, conta Ribeiro à piauí, por telefone. “Eu me cobria com uma toalha de ba- nho e ficava acocorada embaixo de um pé de catingueira esperando a minha vez de entrar em cena.” Houve outros desafios. Um deles foi a cena em que Sinha Vitória mata o papa- gaio de estimação para comer. Ribeiro relembrou certa vez como a sequência foi feita: “Eu, os meninos e Fabiano comendo raiz seca com um restinho de farinha. E o papagaio em cima do baú, zanzando pra lá e pra cá. Quando Nelson disse: ‘Cena!’, eu fiquei tão assombrada que peguei o papagaio pelo pescoço e apertei, torcendo e não torcendo ao mesmo tempo para não matar. Nelson ficou apavorado e disse: ‘Corta!’ Joguei o papagaio pra lá e ele caiu se debatendo. Pegaram, molharam e o descarado viveu. Ficou um dia tristinho, mas depois caiu na malandragem.” Lançado em 1963, Vidas Secas foi exibido no ano seguinte no Festival de Cannes, onde ganhou o prêmio da Orga- nização Católica Internacional do Cine- ma (Ocic). Lá, despertou preocupação com outro animal: uma condessa italiana acionou a Sociedade Protetora dos Ani- mais para protestar contra o sacrifício da cadela Baleia. A reclamação foi tão vee- mente que a Air France se dispôs a levar Baleia a Cannes, para provar que sua morte fora só encenação. Ao que consta, a cadelinha desfilou no festival toda facei- ra, com um traje de gala azul- marinho e uma camélia branca. “Eu não fui a Can- nes, mas Baleia foi”, diz Ribeiro. Em 1965, a agora atriz profissional iria a Cannes com A Hora e a Vez de Augusto Matraga, de Roberto Santos, no qual ela fez o papel de Dionóra. A essa altura, já havia deixado o emprego no laboratório. Na sequência, trabalhou em Os Herdeiros (1970), de Cacá Diegues; Soledade – A Ba- gaceira (1976), de Paulo Thiago; Perdida (1974), de Carlos Alberto Prates Correa, e As Tranças de Maria (2003), de Pedro Car- los Rovai. Ela conta que teve ainda uma curta passagem pela tevê, em O Rei do Gado (1996), da Rede Globo, mas suas cenas teriam sido cortadas na edição final. Com Nelson Pereira dos Santos, fez mais dois filmes: O Amuleto de Ogum (1974) e A Terceira Margem do Rio (1994). “Meu relacionamento com ele era mara- vilhoso e vinha do laboratório, quando apresentou os primeiros filmes, sempre muito tímido, acanhado. Senti muito a morte dele”, diz. O diretor de Vidas Se- cas morreu em abril de 2018. M aria Ribeiro vive em Genebra desde 2010. Foi sua filha única, Wilma Lindomar da Silva, que mora na Suíça há quase quarenta anos, quem a convenceu a se mudar para a cidade. A atriz sofreu um acidente vas- cular cerebral (&'() em 2020. Com vi- são e locomoção prejudicadas, ela hoje reside em uma casa de repouso para idosos, a Résidence Poterie. Foi lá que a Prefeitura de Genebra ce- lebrou o centenário de Ribeiro, com a apresentação de um casal de dançarinos brasileiros e a entrega de um buquê de flo- res amarelas. Em abril, a família estava organizando uma breve viagem da atriz ao Brasil, entre o final deste mês e o início de junho. Ela desejava rever seus familiares. Forte como as personagens que costu- mava interpretar, Ribeiro diz que a morte não a assusta. “Já comprei minha mortalha tem mais de 25 anos, em Roma. De vez em quando tem que lavar, porque vai ama- relando”, conta. Ela até já planejou como será sua lápide no cemitério de Sobradi- nho, no interior da Bahia. Haverá uma foto sua, com chapéu de palha e sorriso radian- te, perto deste epitáfio: “Maria Ribeiro: atriz da tevê e do cinema brasileiro.” J Luis Osete A N D R É S S A N D O VA L _2 0 2 3 5 de 5 27/4/23 PROVA FINAL Br as il R ev ist as Já nas livrarias todavialivros.com.br O novo romance de Itamar Vieira Junior, autor de Torto Arado Prepare-se para uma nova incursão na alma do povo brasileiro. Br as il R ev ist as 14 fez 60 anos em janeiro, e Gomes comple- tará a mesma idade em dezembro. Feito o gracejo, o empresário foi à substância do seu discurso. Lamentou o declínio da indústria brasileira, reclamou dos impostos e criticou as taxas de juros. Segundo seu diagnóstico, o setor perdeu relevância econômica porque sucessivos governos adotaram políticas que extraem com tributos a maior parte da riqueza produzida pelas fábricas e encarecem excessivamente os custos de financia- mento, a tal ponto que inviabilizam in- vestimentos na produção. “O Brasil foi criando condições extremamente inóspi- tas para o desenvolvimento da atividade da indústria de transformação”, disse. A seguir, tratou da reforma tributária. As indústrias acreditam que as propostas em discussão no Congresso podem be- neficiar seus negócios,e Gomes expres- sou simpatia por elas. Como a votação ainda deve demorar, ele aproveitou a visita de Haddad para adiantar dois pe- didos. Primeiro, criar um benefício es- pecial que permita às indústrias deduzir mais rapidamente dos seus lucros gastos com máquinas e investimentos em no- vas instalações, abatendo assim os im- postos que são calculados sobre seus ganhos. Depois, zerar imediatamente o Imposto sobre Produtos Industrializados (!"!), principal tributo federal incidente sobre as vendas do setor. Vários produtos, inclusive do setor têx- til, já têm o !"! zerado atualmente. O ou- tro incentivo sugerido por Gomes já existe para certas despesas, como os investi- mentos das indústrias em pesquisa e de- senvolvimento tecnológico. Ampliar esses benefícios significaria perda imediata de arrecadação para o governo, sem garantia de compensação no futuro. Imaginando a resposta do ministro aos pedidos, Gomes encerrou sua fala com uma mensagem tranquilizadora: “Pode ter certeza que a indústria de transformação vai responder. Todas as experiências de redução de tribu- tos para a indústria resultaram, na verda- de, num aumento de arrecadação.” Ao tomar a palavra, Haddad ignorou os dois pedidos de Gomes. Preferiu des- tacar os pilares da sua estratégia para tirar a economia do marasmo: uma reforma tributária ampla, nos moldes das propos- tas que o Congresso começou a debater em 2019, e um plano para equilibrar as contas do governo nos próximos anos, projeto que àquela altura ainda era obje- to de estudo. O ministro estava entusias- mado com os encontros que tivera no convescote anual do Fórum Econômico Mundial, em Davos, na Suíça, dias antes. Contou aos empresários ter notado gran- de interesse dos investidores estrangei- ros pelo Brasil e previu o surgimento, em breve, de oportunidades vantajosas para o país e suas indústrias. Os microfones foram então abertos para os empresários na plateia. A primei- ra alfinetada veio de Pedro Evangelinos, presidente do Sindicato da Indústria de Refrigeração, Aquecimento e Tratamen- to de Ar do Estado de São Paulo. O em- presário criticou a sugestão feita por Gomes. Como somente 2% das indús- trias brasileiras têm ganhos tributados conforme o lucro contábil, apenas elas, as maiores empresas do país, poderiam aproveitar o benefício proposto pelo pre- sidente da Fiesp. “Seria importante pen- sar naquilo que pode ajudar os outros”, disse Evangelinos. Segundo a Receita Federal, 93% das indústrias brasileiras são de pequeno porte e se enquadram nas regras do Simples, e por isso não te- riam como aproveitar o incentivo. Evangelinos é filho de um imigrante grego que veio para o Brasil após a Se- gunda Guerra Mundial e começou a produzir componentes para aparelhos de refrigeração em São Paulo na década de 1970. O negócio prosperou até que, no ano 2000, um concorrente norte- americano comprou a empresa da famí- lia e fechou a fábrica no Brasil. Cinco anos depois, Pedro e o irmão, Yanis, decidiram retomar as atividades. Cons- tataram que não poderiam competir se produzissem no país e resolveram então se associar a um fabricante na China, de onde importam os produtos quase pron- Q uando o empresário Josué Christiano Gomes da Silva chegou ao salão nobre da Fe- deração das Indústrias do Esta- do de São Paulo, em 30 de janeiro, o local já estava lotado. No cami- nho até a mesa principal, o presidente da Fiesp foi cercado por dirigentes de sindi- catos associados à entidade, que faziam questão de cumprimentá-lo. Assim que os salamaleques terminaram, Gomes se aproximou da mesa, onde o esperavam de pé o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, e outros convidados. Todos sen- taram nos lugares indicados com seus nomes, e Gomes deu início aos trabalhos da última reunião da diretoria da Fiesp prevista no calendário de janeiro. Ele começou contando como conhe- ceu o ministro, empossado havia quatro semanas apenas. O encontro ocorreu dé- cadas atrás, quando Gomes visitou a loja do pai de Haddad, cliente da indústria têxtil de sua família, a Companhia de Te- cidos Norte de Minas (Coteminas). Khalil Haddad tinha negócios numa área de co- mércio popular no Centro de São Paulo, a cujos lojistas o pai do empresário, José Alencar Gomes da Silva, vendia tecidos. Do jovem Fernando Haddad, o presidente da Fiesp guardou a lembrança de um ne- gociador difícil: “Como comprador, ele judiava da gente brutalmente, porque sempre queria pagar mais baixo.” Haddad questões patronais Como os industriais paulistas, após longo namoro com o bolsonarismo, se reaproximaram do PT RICARDO BALTHAZAR O BAILE DA FIESP 1 de 8 27/4/23 PROVA FINAL Br as il R ev ist as piauí_maio 15 tos para vender no mercado nacional com a marca !"# Brasil. Os irmãos tra- zem uma fatia equivalente a apenas 6% da produção da fábrica chinesa. Na reunião da Fiesp, o ministro da Fazenda ouviu mais uma dúzia de per- guntas e desviou das cascas de banana até o fim, mantendo o foco nas suas priorida- des. Acrescentou que não tem planos de mexer agora nas regras do Simples, o pro- grama que reduz impostos para empresas de pequeno porte, mas sugeriu que pode- rá ser reavaliado no futuro. “A reforma tributária pode ajudar muito, muito”, in- sistiu. Antes de encerrar o encontro, Go- mes disse que as primeiras iniciativas do ministro mereciam aplausos e ofereceu seu apoio. “Conte com a indústria do Bra- sil, com a indústria de São Paulo, e acre- dite na indústria”, disse. E convidou todos para almoçar no restaurante no topo do edifício da Fiesp. A presença de Haddad na sede da Fiesp teve significado especial pa-ra Gomes. Poucos dias antes, o salão nobre da entidade servira de palco para cenas de opereta, no auge de uma crise interna que deixara o empresário pendurado por um fio no comando da federação. A visita da maior autoridade econômica do país era uma maneira de demonstrar o prestígio político de Go- mes e sua capacidade de diálogo com o novo governo, neutralizando assim os dissidentes que haviam tentado derru- bá-lo. Para oferecer solidariedade a ele, dirigentes das federações industriais do Rio de Janeiro, de Minas Gerais e da Bahia também se deslocaram até São Paulo para a reunião de 30 de janeiro. Com o mesmo objetivo, o vice-presi- dente Geraldo Alckmin, que acumula as funções de ministro do Desenvolvimen- to, Indústria, Comércio e Serviços, havia visitado a Fiesp dias antes, em 16 de ja- neiro. Recém-empossado, ele ainda não completara a montagem de sua equipe e não tinha anúncio algum a fazer aos in- dustriais. Entreteve a plateia com anedo- tas de seus tempos como governador do estado de São Paulo e prefeito de Pinda- monhangaba e disse que estava na Fiesp para colher sugestões. Ficou para o al- moço e ouviu várias. Segundo um dos empresários que passaram pela mesa do vice-presidente, ele anotava os pedidos dos industriais no verso dos cartões de visita que lhe entregavam. Um dos que conseguiram reter a atenção de Alckmin foi o presidente exe- cutivo da Associação Nacional da Indús- tria de Pneumáticos, Klaus Curt Müller. Ele queria reclamar de uma medida tomada no início de 2021 pelo governo Jair Bolsonaro, que zerou as tarifas de importação de pneus para cargas pesa- das, com a alegação de que havia escas- sez do produto no mercado nacional. Pneus feitos na China, no Vietnã e em outros países asiáticos passaram a entrar no Brasil livres da taxa de 16% que pa- gavam antes, e as vendas das indústrias brasileiras despencaram. O vice-presi- dente ouviu, anotou e ficou de analisar. Assim que Alckmin foi embora, teve início uma assembleia convocada a pe- dido dos desafetos de Gomes com o ob- jetivo de destituir o empresário da presidência da entidade. Foram horas de tumulto, que terminaram no início da noite com a deposição de Gomes, apro- vada por 47 representantes dos 131 sindi- catos que compõem a Fiesp. Seguiram-se dias de indefinição sobre o futuro da organização patronal, até que osgrupos em conflito resolveram se encontrar para negociar um acordo. Celebrada a paz, anunciada por notas oficiais lacôni- cas, Gomes pôde voltar a ocupar sua sala na Fiesp sem medo de ser despejado. A aproximação com o novo governo ajudou o industrial a vencer a oposição interna. Pragmáticos, os industriais não têm interesse em criar uma relação conflituosa com os petistas, o que po- deria obstruir seu acesso aos corredores de Brasília onde suas reivindicações são discutidas. No entorno de Lula tam- bém não há ninguém interessado em ter no comando da Fiesp um adversário do governo, ainda que a entidade tenha perdido muito da influência de outros tempos. Dois dias após a destituição de Gomes, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva fez questão de telefonar ao em- presário para se solidarizar. Gomes logo se posicionou como fiel escudeiro de Lula. No auge do confronto do presidente da República com o presi- dente do Banco Central ($#), Roberto Campos Neto, por causa das altas taxas de juros, o industrial não hesitou. Em março, o governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas, ex-ministro de Bolsonaro, disse na Fiesp que a gritaria contra os juros era contraproducente, por criar instabilidade nos mercados. Gomes respondeu que as taxas elevadas eram injustificáveis. Dias depois, ele ajudou a transformar um semi- nário do Banco Nacional de Desenvolvi- mento Econômico e Social ($%&'() em palco para os críticos da política monetá- ria e ganhou aplausos ao classificar as ta- xas fixadas pelo $# como “pornográficas”. O Banco Central ignorou as pressões do governo e manteve a taxa básica de ju- ros em 13,75%, nível em que está estacio- nada desde agosto. É a taxa mais alta do mundo em termos reais, descontada a in- flação. O $# diz que segurá-la nesse pata- mar ajuda a conter os preços e que só vai afrouxar o torniquete quando o governo tiver um plano consistente para equilibrar suas contas. Gomes juntou-se aos que pensam que o $# e os tubarões do merca- Lula e Josué Gomes, presidente da Fiesp: o caldo de insatisfação que borbulhava na entidade desde a posse do empresário transbordou quando ele aderiu à campanha em prol da democracia N E LS O N A LM E ID A _A FP_2 0 2 3 2 de 8 27/4/23 PROVA FINAL Br as il R ev ist as 16 do financeiro exageram ao apontar o des- controle orçamentário do governo como raiz das dificuldades que a economia atra- vessa. Na sua concepção, qualquer esforço para reanimar a indústria e os negócios será inócuo se os juros não diminuírem. Em 31 de março, Haddad chamou Go- mes para lhe mostrar um esboço do seu plano fiscal, que tinha sido apresentado a jornalistas dias antes. A proposta cria re- gras para conter o crescimento das despe- sas do governo e evitar que continuem aumentando mais rapidamente do que as receitas. Na primeira reunião de diretoria da Fiesp em abril, Gomes sacou um peda- ço de papel do bolso do paletó e disse que estavam registrados ali quatro compromis- sos assumidos pelo ministro no encontro de fim de março. O empresário contou que Haddad prometeu implementar o be- nefício fiscal defendido em janeiro pela Fiesp e lançar um programa de financia- mentos subsidiados para a indústria, além de trabalhar pela reforma tributária e pela baixa dos juros. “Esse documento foi ini- ciativa dele”, ressaltou Gomes, agitando o papel no ar. “Ele escreveu e ele assinou.” A distância, eram visíveis na folha de pa- pel quatro linhas rabiscadas à mão e a as- sinatura de Haddad. Gomes está no comando dos negó-cios de sua família desde que o pai se afastou das empresas para se dedicar à política. José Alencar foi sena- dor por Minas Gerais, vice-presidente da República nos dois primeiros governos de Lula e ministro da Defesa por um breve período, entre 2004 e 2006. Mor- reu em 2011, três meses após encerrar seu segundo mandato na Vice-Presidên- cia. Alencar fundou a Coteminas em 1967, em Montes Claros, e mais tarde expandiu suas atividades por fábricas no Rio Grande do Norte, na Paraíba e em Santa Catarina. A empresa produz len- çóis, toalhas e outros artigos de cama, mesa e banho, além de fios e tecidos. No varejo, vende com três marcas próprias: Artex, mmartan e Casa Moysés. Em 2006, Gomes deu sua grande ta- cada empresarial ao concluir uma fusão com a norte-americana Springs. A união resultou na formação da Springs Global, que é controlada pela Coteminas e ad- ministra todas as atividades do grupo, incluindo nove fábricas no Brasil e uma na Argentina. Unidades industriais que funcionavam nos Estados Unidos foram fechadas, e suas máquinas transferidas para instalações no Brasil. A transação deu à Coteminas acesso a cadeias de va- rejo no mercado norte-americano e for- taleceu a musculatura da empresa brasileira para enfrentar o crescimento da avassaladora concorrência chinesa. Nos últimos anos, porém, a compa- nhia vem acumulando prejuízos. Em 2022, as perdas registradas até setembro somaram 466 milhões de reais, para re- ceitas operacionais de 1,3 bilhão de reais, segundo as informações mais recentes da Coteminas. Seus custos subiram com os preços do algodão e do poliéster em alta. As vendas, que tinham aumentado du- rante o isolamento imposto pelo combate à Covid, quando as pessoas passaram mais tempo dentro de casa, caíram quan- do elas voltaram às ruas. A subida dos ju- ros agravou a situação, fazendo estrago no balanço da empresa, que se endividou nos últimos tempos para desenvolver uma rede própria de varejo. “Uma tem- pestade perfeita”, resumiu Gomes em agosto, em teleconferência com analistas do mercado. As ações da Coteminas despen- caram, mas voltaram a desper- tar interesse dos investidores no fim de abril, quando fechou um acor- do com a varejista chinesa Shein que po- derá ampliar o mercado para os seus produtos. Embora a Coteminas não te- nha fábricas em São Paulo, ela mantém seus escritórios comerciais na capital pau- lista há décadas e é filiada ao sindicato da indústria têxtil do estado. Mineiro de Ubá, Gomes assumiu a presidência da Fiesp em janeiro de 2022, após vencer uma eleição em que sua cha- pa era a única concorrente. O seu nome foi uma escolha pessoal do empresário Paulo Skaf, de 67 anos, que dirigiu a Fiesp por dezessete anos. Nesse longo domínio, Skaf promoveu sucessivas alterações nos estatutos da entidade para se manter no cargo e cogitou fazê-lo mais uma vez an- tes de comunicar aos correligionários, no segundo semestre de 2020, que planejava sair. Não deu muitas explicações, dizendo apenas que queria encerrar o ciclo e se dedicar a negócios particulares. Mas sa- bia-se que ele sonhava disputar as eleições para governador de São Paulo e apostava no apoio de Jair Bolsonaro para realizar suas ambições políticas e superar a frustra- ção de três tentativas fracassadas de che- gar ao Executivo do estado. Como outros dirigentes da federa- ção, Skaf é um sem fábrica. Ele desati- vou a tecelagem da família no início dos anos 2000, se desfez do maquinário e transformou as instalações num con- domínio empresarial, alugando o espa- ço para pequenas empresas. Pôde assim se dedicar exclusivamente à política empresarial, primeiro como presidente da Associação Brasileira da Indústria Têxtil e de Confecção (Abit) e, depois, da Fiesp. José Alencar foi um dos patro- cinadores de sua candidatura à presi- dência da federação, em 2004. Outros medalhões da indústria, como o presi- dente da Companhia Siderúrgica Na- cional, Benjamin Steinbruch, também apoiaram seus planos. Em 2022, Skaf ajudou a montar a chapa de Gomes e organizou vários jan- tares para apresentá-lo aos dirigentes dos sindicatos. Apesar de bem relacionado no meio, o dono da Coteminas conhecia poucos deles. O presidente da Associa- ção Brasileira da Indústria do Plástico, José Ricardo Roriz Coelho, um ex-aliado de Skaf que se distanciou do dirigente com o tempo, organizou uma candidatura alternativa, mas falhas na documenta- ção de dois apoiadores acabaram
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