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04 Assassinatos na rua morgue autor Edgar Allan Poe

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9
ASSASSINATOS NA RUA MORGUE
Quais as canções que cantavam as Sereias ou que nome 
Aquiles adotou quando se escondeu entre as mulheres são 
questões que, embora intri gantes, não se acham além de 
toda a conjec tu ra.
Sir Thomas Browne
As características mentais geralmente denominadas analíticas são, em si mesmas, pouco suscetíveis a uma 
análise. Podemos apreciá-las somente através de seus efeitos. 
Sabemos delas, entre outras coisas, que quando possuídas em 
grau incomum, sempre são, para seu possuidor, uma fonte 
do mais vivo prazer. Assim como o homem robusto vibra em 
sua força e habilidade física, dedicando-se com entusiasmo 
aos exercícios que põem seus músculos em ação, assim o 
analista se glorifi ca naquela atividade moral que desemba-
raça e deslinda. Encontra prazer até mesmo nas ocupações 
mais triviais que lhe permi tam exercer seus talentos. Ama os 
enigmas, os paradoxos e os hieróglifos; exibe, na solução de 
cada mis tério, um grau de acurácia que parece sobrenatural 
às pessoas de compreensão mais ordinária. Seus resultados, 
ainda que obtidos através da própria alma e essência do mé-
todo, apresentam, de fato, todo o aspecto da intuição. 
A faculdade da resolução de problemas possivelmente 
é muito fortalecida pelo estudo das matemáticas, especial-
mente pelo mais elevado de seus ramos, o qual, injustamente, 
apenas em função de suas operações de revisão dos fatos, 
vem sendo chamado de análise, como se fosse somente isso. 
Todavia, calcular não é o mesmo que analisar. Um enxadrista, 
por exemplo, calcula sempre, sem se esforçar por efetuar 
análises. Segue-se que o jogo de xadrez, em seus efeitos 
10
sobre o caráter mental, é em grande parte mal compreendido. 
Não me disponho agora a escrever um tratado, mas estou 
simplesmente prefaciando uma narrativa um tanto peculiar 
através de observações bastante casuais; aproveitarei a 
ocasião, portanto, para afi rmar que os poderes mais altos do 
intelecto refl exivo são exercitados de forma mais decidida e 
mais útil através do humilde jogo de damas do que pela fri-
volidade elaborada do xadrez. Neste último, em que as peças 
têm movimentos diferentes e bizarros, com valores os mais 
diversos e variados, aquilo que é somente complexo provoca 
o engano (um erro bastante comum) de parecer profundo. 
O que entra principalmente no jogo é a atenção. Se falhar 
por um momento, o jogador se distrai e comete um erro para 
seu prejuízo ou derrota fi nal. Uma vez que os movimentos 
possíveis não somente são numerosos como labirínticos, a 
possibilidade de ocorrência de tais distrações é multipli-
cada; em nove casos em dez, o vencedor não é o jogador 
mais inteligente, mas sim o mais concentrado. No jogo de 
damas, ao contrário, em que os movimentos são sempre os 
mesmos e existe muito pouca variação, as probabilidades de 
um movimento inadvertido são diminuídas e a mera atenção 
fi ca relativamente fora do jogo, as vantagens obtidas por 
qualquer um dos parceiros são conseguidas através de maior 
perspicácia. Para sermos menos abstratos, vamos supor 
um jogo em que as peças sejam reduzidas a quatro damas 
e no qual, naturalmente, não se espere qualquer distração. 
É óbvio que aqui a vitória pode ser decidida (uma vez que 
os adversários têm peças absolutamente iguais) somente 
através de algum movimento muito recherché1, resultado de 
um grande esforço intelectual. Sem possuir mais recursos 
do que ele, o analista se lança no espírito de seu oponente, 
identifi ca-se com ele e, com alguma freqüência, observa 
de relance o único método (algumas vezes absurdamente 
simples) através do qual pode seduzi-lo a cometer um erro 
ou apressar-se a fazer um cálculo errado.
1. Pesquisado, elaborado, sofi sticado. Em francês no original. (N.T.)
11
O jogo de whist vem sendo notado há muito tempo 
pela infl uência que exerce sobre o que é denominado o po-
der de cálculo; homens com intelectos de primeira ordem 
aparentemente sentem um prazer inexplicável através desta 
diversão, ao mesmo tempo que desprezam o xadrez por sua 
frivolidade. Não há dúvida que nenhum jogo de natureza 
semelhante exige tanto da faculdade de análise. O melhor 
jogador de xadrez da Cristandade pode não ser nada mais que 
o melhor enxadrista; porém a profi ciência no whist implica 
uma capacidade de sucesso em todos os empreendimentos 
mais importantes nos quais uma mente disputa com outra. 
Quando uso o termo “profi ciência”, indico aquela perfeição 
no exercício do jogo que inclui um entendimento de todas 
as fontes de que uma vantagem legítima pode ser derivada. 
Estas são não apenas múltiplas como multiformes, e freqüen-
temente se encontram em recessos da mente totalmente ina-
cessíveis para a compreensão das pessoas comuns. Observar 
atentamente signifi ca lembrar distintamente; deste modo, o 
enxadrista concentrado vai se dar muito bem no whist; ao 
mesmo tempo que as regras de Hoyle (que se baseiam no 
próprio mecanismo do jogo) são em geral sufi cientemente 
compreensíveis.2 Deste modo, a posse de uma memória 
retentiva e a capacidade de proceder “conforme o livro” são 
as qualidades geralmente consideradas sufi cientes para se 
ser um bom jogador. Mas é nas questões que vão além dos 
limites impostos pelas regras que se evidencia a habilidade 
do analista. Em silêncio, ele realiza uma série de observações 
e inferências. Talvez seus companheiros façam o mesmo; a 
diferença na quantidade de informações que assim são ob-
tidas não se baseia tanto na validade da inferência como na 
qualidade da observação. O conhecimento necessário é o do 
quê deve ser observado. Nosso jogador perito não estabelece 
limites para si próprio; nem ao menos, considerando que 
o jogo é o objetivo, ele rejeita deduções a partir de coisas 
2. Edmund Hoyle escreveu A Short Treatise on Whist (Um curto tratado 
sobre o Whist) em 1742. (N.T.)
12
totalmente externas ao jogo. Ele examina a fi sionomia de 
seu parceiro de dupla e a compara cuidadosamente com 
os rostos de cada um de seus oponentes. Ele considera o 
modo de classifi car as cartas em cada mão; muitas vezes 
conta trunfo a trunfo e fi gura por fi gura, através dos olhares 
lançados pelos portadores uns sobre os outros. Ele nota cada 
variação na expressão dos semblantes à medida que o jogo 
se desenrola, reunindo um tesouro de pensamentos a partir 
das diferenças de expressão de certeza, de surpresa, de triun-
fo ou de derrota. A partir da maneira como é vencida uma 
vaza ele julga se a pessoa vencedora pode ganhar outra em 
seguida ou não. Ele reconhece o que é jogado para iludir o 
adversário através do jeito com que a carta é jogada sobre a 
mesa. Uma palavra casual ou inadvertida; a queda acidental 
ou a virada de uma carta, com a ansie dade ou desimportância 
associada à sua ocultação; a contagem das vazas, na ordem 
de seu aparecimento; o embaraço, a hesitação, a ansiedade ou 
a trepidação – tudo fornece à sua percepção aparentemente 
intuiti va indicações do verdadeiro estado do jogo. Depois 
que as duas ou três primeiras mãos foram jogadas, ele está 
em pleno controle do valor das cartas que cada jogador 
possui e, a partir daí, descarta as suas com uma precisão 
de propósito tão absoluta como se o resto dos participantes 
estivesse jogando a descoberto. 
O poder analítico não deve ser confundido com a 
simples engenhosidade; porque, embora o analista seja 
necessariamente engenhoso, um homem de engenho muitas 
vezes é perceptivelmente incapaz em análise pura. O po-
der construtivo, ou capacidade de combinação, através do 
qual a engenhosidade é em geral manifesta e para o qual a 
frenologia (acredito que erroneamente) designou um órgão 
cerebral separado, supondo que seja uma qualidade primi-
tiva, tem sido com muita freqüência encontrado em pes soas 
cuja capacidade intelectual em outras áreas se aproxima da 
idiotia, um fato que já atraiu observação geral entre os escri-
tores e os moralistas. Entre a engenho sidade e a qualidade 
13
analítica existe uma diferença muito maior, sem a menor 
dúvida, daquelaexistente entre a fantasia e a imaginação, 
porém de um caráter muito estritamente análogo. Pode 
ser comprovado na prática que os engenhosos são sempre 
fanta siosos, enquanto os realmente imaginativos sempre se 
demonstram analíticos. 
A narrativa que se segue provavelmente se torna rá mais 
clara para o leitor, se tomar em consideração os comentários 
e as afi rmações que acabo de expor. 
Quando residi em Paris durante a primavera e parte 
do verão de 18—, travei conhecimento com um Monsieur 
C. Auguste Dupin. Este jovem cavalheiro pertencia a uma 
excelente – de fato, ilustre – família, porém, através de uma 
série de eventos inesperados, havia sido reduzido a uma tal 
pobreza que a energia de seu caráter sucumbiu perante ela e 
desis tiu de enfrentar o mundo ou preocupar-se em recu perar 
sua for tuna. Por cortesia de seus credores, permane cia em 
sua posse uma pequena parte de seu patrimônio; com esta 
renda e mantendo rigorosa economia, ele conseguia obter 
as necessidades básicas da vida, sem se preocupar com suas 
superfl uidades. De fato, os livros eram seu único luxo; e, em 
Paris, é fácil consegui-los.
Nosso primeiro encontro foi em uma biblioteca obscura 
na rua Montmartre, em que o acidente de que ambos estáva-
mos em busca do mesmo volume muito raro e notável fez 
com que entrássemos em contato e estabelecêssemos uma 
comunhão de interesses mais íntima. Encon tramo-nos vezes 
sem conta. Eu estava profundamente interessado na pequena 
história de sua família que ele me detalhava com toda aquela 
ingenuidade que um francês demonstra quando o assunto é 
ele mesmo ou alguma coisa de seu interesse pes soal. Fiquei 
espantadís simo, também, com a vasta ex tensão de suas 
leituras; e, acima de tudo, minha alma foi despertada pelo 
fervor ardente e ao mesmo tempo pela vívida originalidade 
de sua imaginação. Estando em Paris a fi m de realizar certos 
objetivos que não vêm ao caso expor, senti que a sociedade de 
14
um homem assim seria um tesouro inestimável, e confi ei-lhe 
esta impressão com toda a franqueza. Finalmente, decidimos 
morar na mesma casa enquanto durasse minha permanência 
naquela cidade; uma vez que minhas circunstâncias materiais 
eram um pouco menos difíceis que as dele, foi-me permitido 
incorrer nas despesas necessárias para alugar e mobiliar, em 
um estilo que agradasse à melancolia bastante fantástica de 
nossos temperamentos tão semelhantes, uma mansão grotes-
ca e maltratada pelo tempo, deserta há muito tempo, devido a 
superstições que não nos interessa ram muito e ao fato de que 
estava a meio caminho de desabar, localizada em uma parte 
remota e um tanto desolada do Faubourg St.-Germain.
Se a rotina de nossa vida neste lugar fosse conhecida do 
mundo, teríamos sido encarados como dois loucos – ainda 
que talvez nos considerassem como dois loucos mansos. 
Nossa reclusão era perfeita. Não recebíamos nenhum visi-
tante. De fato, a localização de nosso retiro tinha sido man-
tida cuidadosamente em segredo de meus antigos amigos e 
associados; e já faziam muitos anos desde que Dupin tinha 
cessado de ter relações de amizade ou mesmo de ser conhe-
cido em Paris. Existíamos somente para nós mesmos.
Por uma exacerbação da fantasia de meu amigo (de 
que mais posso chamá-la?), ele se achava enamorado da 
Noite, apenas pelo prazer de gozá-la; e eu mesmo recaí 
nesta situação bizarra, do mesmo modo que partilhei de 
todas as suas outras peculiaridades, entregando-me a seus 
caprichos ardentes com um per feito abandono. A divindade 
negra não queria habitar conosco sempre, mas podíamos 
fi ngir-lhe a presen ça. Assim que os primeiros sinais da 
aurora surgiam, fechávamos todos os postigos maciços de 
nosso velho edifício e acendíamos alguns círios que, embora 
fortemente perfumados, projetavam apenas os raios de luz 
mais débeis e merencó rios. Sob esta fraca luminosidade, 
ocupávamos nossas almas em sonhos – lendo, escrevendo 
ou conversando –, até que o relógio nos advertia da chegada 
da verdadeira Escuridão. Era então que saíamos às ruas, 
15
lado a lado, continuan do nossa discussão dos tópicos do 
dia; ou simplesmen te vagabundeando sem destino até alta 
madrugada, procurando, entre as luzes e sombras turbulentas 
da populosa cidade, aquele infi nito de excitação mental que 
somente a observação tranqüila pode conceder. 
Era nessas ocasiões que eu não podia deixar de notar e 
admirar (embora já estivesse preparado, por suas afi rmações 
variadas e inteligentes observações, a esperar por ela) uma 
habilidade analítica peculiar em Dupin. Ele parecia, tam-
bém, ansiar por ela e extrair o maior prazer em exercitá-la 
– ou, talvez mais exatamente, em exibi-la – e não hesitava 
em confessar o prazer que experimentava. Ele se gabava, 
com uma risadinha baixa e discreta, de que podia ler as 
intenções e pensamentos da maioria dos homens, como se 
tivessem janelas no peito; e tinha o costume de acompanhar 
estas assertivas com provas diretas e bastante assombrosas 
do seu conhecimento íntimo de meus sentimentos. Nestes 
momentos, seu aspecto era frígido e abstraído; seus olhos 
mostravam uma expressão vazia; e sua voz, geralmente 
ostentando um belo timbre de tenor, subia para um trêmulo 
que teria parecido resultado de atrevimento e petulância se 
não fosse pela deliberação e completa distinção com que era 
enunciada. Ao observá-lo quando se achava nesta disposição, 
muitas vezes me recordava meditativamente da velha fi lo-
sofi a da alma bipartida e me divertia a fantasiar a existência 
de um duplo Dupin – o criativo e o investigador. 
Mas não se suponha, a partir do que acabei de relatar, 
que estou detalhando algum mistério ou escre vendo algum 
romance. O que eu descobri no meu amigo francês foi me-
ramente o resultado de uma inte ligência superexcita da ou, 
talvez, até mesmo doentia. Mas quanto ao caráter de suas 
observações durante o período que está sendo descrito, um 
exemplo demonstrará melhor a idéia. 
Uma noite, estávamos passeando por uma rua comprida 
e suja, nas proximidades do Palais Royal. Estando ambos, 
aparentemente, imersos em pensamentos, nenhum de nós 
16
tinha proferido uma sílaba por, no mínimo, quinze minutos. 
Repentinamente, Dupin proferiu estas palavras:
– Ele é um camarada muito baixinho, é verdade: serviria 
bem melhor para o Théâtre des Variétés. 
– Não resta dúvida – respondi distraidamente, sem ob-
servar a princípio (por encontrar-me profunda mente absorvido 
em refl exões) a maneira extraordiná ria com que meu interlocu-
tor tinha entrado justamente no espírito de minha meditação. 
No instante seguinte, percebi o que ha via acontecido e meu 
espanto foi profundo. – Dupin – disse eu, gravemente –, isto 
vai além de minha compreen são. Não hesito em dizer que 
estou assombrado e difi cilmente posso acreditar na evidência 
de meus sentidos. Como foi possível que você soubesse que 
eu estava pensando em...? – fi z uma pausa neste ponto, como 
para me convencer além de toda dúvida de que ele realmente 
sabia em quem eu estivera pensando.
– Em Chantilly, naturalmente – disse ele. – Por que fez 
uma pausa? Você estava observando para si próprio que sua 
fi gura diminuta não era adequada para papéis trágicos.
Fora precisamente este o assunto de minhas refl exões. 
Chantilly tinha sido, quondam3, um sapateiro re mendão da 
rua St.-Denis que havia pego a febre do palco e fora tentado 
a representar o papel de Xerxes, na tragédia de mesmo nome, 
de Crébillon, tendo sido notoriamente satirizado por seus 
esforços através de panfl etos anônimos. 
– Explique-me, por amor de Deus – exclamei –, o mé-
todo, se é que houve um método, por meio do qual você foi 
capaz de ler meus pensamentos dessa forma. 
De fato, eu estava muito mais impressionado do que 
me dispunha a admitir.
– Foi o vendedor de frutas – replicou meu amigo – que 
o levou à conclusão de que o sapateiro-remendão não tinha 
altura sufi ciente para o papel de Xerxes et id genus omne.4
3. Em um certo momento, outrora, antigamente. Em latim no original. 
(N.T.) 
4.E todos os de seu gênero. Em latim no original. (N.T.)
17
– O vendedor de frutas! Agora mesmo não entendi nada! 
Não conheço nenhum fruteiro!
– O homem que veio correndo em sua direção quando 
entramos nesta rua, deve ter sido há uns quinze minutos. 
Lembrei-me então que, de fato, um vendedor de frutas, 
carregando na cabeça um grande cesto cheio de maçãs, quase 
tinha me derrubado por acidente, quando dobramos da rua 
C—— para a avenida em que estávamos agora; mas não 
havia a menor possibilidade de associar esse fato a meus 
pensamentos sobre Chantilly. Mas Dupin não era absoluta-
mente dado a charlatânerie.
– Eu vou explicar – disse ele. – Para que você possa 
compreender mais claramente, vamos primeiro retraçar o 
curso de suas meditações, desde o momento em que eu 
lhe falei até nosso rencontre com o quitandeiro que acabei 
de mencionar. Os elos maiores da cadeia são os seguintes; 
Chantilly, Órion, Dr. Nichols, Epicuro, Estereo tomia, os 
paralelepípedos da rua e o vendedor de frutas. 
Há poucas pessoas que não tenham, em determinado 
período de suas vidas, se divertido a tentar retraçar as etapas 
através das quais conclusões parti culares de suas próprias 
mentes possam ter sido atingidas. Essa ocupação muitas 
vezes é cheia de interesse; e aquele que tenta realizá-la pela 
primeira vez pode fi car assombrado pela distância aparen-
temente ilimitada e incoerente entre o ponto de partida e o 
objetivo alcançado. Imagine-se então meu pasmo, minha 
estupefação ao escutar o francês emitir aquelas sentenças 
que recém havia pronunciado, especialmente depois que 
não pude deixar de reconhecer que havia falado a verdade, 
ponto por ponto. Ele continuou:
– Estávamos falando sobre cavalos, se me lembro 
corretamente, um instante antes de dobrarmos a esquina da 
rua C——. Foi este o último assunto que discutimos. No 
momento em que entramos nesta rua, um quitandeiro, com 
um cesto grande na cabeça, passando rapidamente por nós, 
empurrou-o sobre uma pilha de paralelepípedos colocada 
18
junto ao ponto em que o pavimento está sendo consertado. 
Você pisou em uma das pedras soltas, escorregou, distendeu 
levemente o tornozelo, fi cou incomodado e de mau humor 
por alguns instantes, resmungou umas poucas palavras, 
voltou-se para olhar a pilha e então pros seguiu em comple-
to silêncio. Eu não estava prestando atenção particular ao 
que você fazia, porém a observa ção vem se tornando para 
mim, nos últimos anos, uma espécie de necessidade, como 
se fosse uma segunda natureza. Bem, você continuou com 
os olhos fi ncados no chão – olhando, com uma expressão 
aborrecida, para os buracos e valas do pavimento (foi assim 
que eu percebi que ainda estava pensando nas pedras), até 
que chegamos àquela viela chamada Lamartine, que foi 
pavimentada, como uma experiên cia, com aqueles blocos 
que se superpõem e são re bi tados uns aos outros. Aqui seu 
rosto se iluminou; e per cebendo um certo movimento em 
seus lábios, não pude duvidar de que tenha pronunciado a 
palavra “estereo to mia”, um termo que estão aplicando muito 
afetadamente a essa espécie de pavimento. Nesse mesmo mo-
mento, eu soube que você não poderia ter di to a si pró prio 
“estereoto mia”, sem ser levado a pensar na “ato mia” e assim 
nas teorias de Epicuro;5 e uma vez que, ao discutirmos este 
assunto há relativamente pou co tempo, eu lhe mencionei que 
de forma singular, em bora não estivesse despertando muita 
atenção, as adi vinhações vagas daquele nobre grego estavam 
sendo agora confi rmadas pela recente cosmogo nia nebu lar, 
proposta pelo dr. Nichols, senti que você não pode ria evitar 
de erguer os olhos para a grande ne bulosa de Órion, e fi quei 
esperando que você fi zes se isso. De fato, você olhou; e agora 
eu tinha plena certe za de que tinha seguido corretamente seus 
5. Atomia, a teoria de que o Universo é formado por pequenas partículas, foi 
um termo introduzido em 159l. Mas não se atribui a Epicuro. Este fi lósofo 
grego, 341-270 a. C., ensinava que o prazer era o máximo bem, referindo-
se à cultura do espírito e à prática da virtude. A falsa interpretação ligou o 
termo à busca dos prazeres materiais. Foi Demócrito (460-370 a. C.) que 
considerou a matéria composta por uma infi nidade de átomos, ao passo que 
preconizava a busca da felicidade pela moderação dos desejos. (N.T.)
19
pas sos.6 Porém, na quela amarga crítica feita a Chantilly, que 
apareceu no Musée de ontem, o satirista fez algumas alusões 
des gra cio sas à mudança de nome do sapa teiro, de pois que 
colocou os coturnos de um ator de tragédias e citou um 
verso em latim sobre o qual conversamos com freqüência. 
Refi ro-me à linha: Per didit an ti quum litera prima sonum.7. 
Eu já lhe havia dito que es ta citação referia-se a Órion, 
porque antigamente era escrito Úrion; devido à questão que 
debatemos em torno desta explicação, tinha certeza de que 
você não teria podido esquecê-la. Estava claro, portanto, que 
você não poderia deixar de combinar as idéias de Órion e 
Chantilly. Que você realmente as combinou, eu percebi pelo 
sorriso que passou por seus lábios. Você estava pensando 
na imolação do pobre sapateiro. Até aquele momento, você 
estava andando meio ca bisbaixo; mas, nesse momento, 
esticou-se de modo a mos trar sua plena estatura. Tive então 
certeza de que estava refl etindo sobre a fi gura minúscula de 
Chan tilly. Foi nesse ponto que interrompi suas meditações 
para observar que, de fato, ele era um sujeito muito pequeno, 
quero dizer, Chan tilly – e que ele teria muito mais sucesso 
no Théâtre des Variétés.
Pouco tempo depois disso, estávamos olhando uma edi-
ção vespertina da Gazette des Tribunaux, quando o seguinte 
parágrafo atraiu nossa atenção:
“EXTRAORDINÁRIOS ASSASSINATOS – Esta madruga da, por 
volta das três horas da manhã, os habitantes do Quartier St.-
Roch foram acordados do sono por uma sucessão de gritos 
terríveis que partiam, apa ren te mente, do quarto andar de uma 
casa na rua Mor gue cujas únicas moradoras conhecidas eram 
6. Órion ou Orionte foi um caçador de grande beleza, morto por Diana e 
transformado na grande constelação localizada no equador celeste, que pode 
ser vista igualmente nos dois hemisférios. A nebulosa de Órion foi avistada 
pela primeira vez em 1659 e contém seis grandes estrelas encerradas em 
uma vasta luminosidade. (N.T.) 
7. “Perdeu, desde a antigüidade, o som da primeira letra.” Em latim no 
original. (N.T.)
20
uma certa Ma dame L’Espa naye e sua fi lha, Made moiselle Ca-
mille L’Espanaye. Depois de algum atraso, ocasio na do pela 
tentativa infrutífera de obter admissão da ma neira usual, o 
portão de entrada foi rebentado com um pé-de-cabra e oito 
ou dez dos vizinhos entraram, acom panhados por dois gen-
darmes. A essa altura, os gri tos já haviam cessado; porém, 
enquanto o grupo cor ria pelo primeiro lance de escadas, 
duas ou mais vo zes grosseiras, aparentemente discutindo 
fu rio sa mente, foram distingui das, parecendo provir da parte 
su perior da casa. Quando o grupo chegou ao segundo pa-
tamar, também estes sons haviam cessado e tudo per manecia 
em perfeito silêncio. As pessoas se espalharam e correram 
de peça em peça. Ao chegarem a um amplo quarto na parte 
dos fundos do quarto andar (cuja porta foi forçada, porque 
estava trancada com a cha ve do lado de dentro), apresentou-
se um espetácu lo que encheu a todos os presentes não tanto 
de horror como de estupefação. 
“O apartamento estava na mais completa desordem 
– o mobiliário quebrado e os pedaços jogados em todas as 
direções. Quase no centro do quarto havia um estrado para 
suportar um leito, mas a cama fora tirada de cima dele e 
jogada no meio do assoalho do aposento. Sobre uma cadeira, 
havia uma navalha manchada de sangue. Na lareira havia 
duas ou três mechas longas e espessas de cabelo humano 
grisalho, também cobertas de sangue, que pareciam ter sido 
arrancadas pela raiz. Em diversos locais do assoalho foram 
encontrados quatro napoleões,8 um brinco de topázio, três 
colheres grandes de prata,três colheres menores de métal 
d’Alger e duas bolsas, contendo quase quatro mil francos 
em ouro. As gavetas de uma cômoda, ainda colocada em um 
dos cantos da sala, estavam abertas e tinham sido aparente-
mente revistadas, embora muitos artigos de vestuário ainda 
permanecessem dentro delas. Um pequeno cofre de ferro 
8. Moeda francesa de prata no valor de cinco francos. Mais adiante, o Metal 
de Argel referido é a alpaca, também chamado de Metal Branco, usado para 
talheres e objetos de arte. (N.T.) 
21
foi descoberto no chão, embaixo da cama (não embaixo do 
estrado), no lugar aonde esta tinha sido atirada. Estava aberto, 
com a chave ainda na porta. Continha apenas algumas cartas 
velhas e outros papéis de pouca importância.
“Não foi encontrado sinal de Madame L’Espa naye; mas 
tendo sido observada uma quantidade des u sada de fuligem na 
lareira, a chaminé foi pesqui sada, e o cadáver da fi lha (coisa 
horrível de se relatar!), de cabeça para baixo, foi puxado 
dali; tinha si do empurrado para cima, através da abertura 
estrei ta da chaminé, por uma distância considerável. O 
corpo ainda estava bastante quente. Quando foi examinado, 
encontraram-se muitas escoriações, sem dú vida ocasionadas 
pela violência com que foi empurrado chaminé acima e pelo 
esforço necessário para retirá-lo. No rosto, foram achados 
muitos arranhões fundos, e no pescoço, hematomas escuros, 
com sinais profundos de unhas, indicando que a defunta tinha 
sido estrangulada. 
“Após uma investigação completa de cada porção da 
casa, sem novas descobertas, o grupo entrou em um peque-
no pátio calçado, que fi ca na parte de trás do edifício, onde 
jazia o corpo da velha senhora, com a garganta cortada a tal 
ponto que, ao tentarem erguer o cadáver, a cabeça caiu no 
chão. Tanto o corpo como a cabeça estavam terrivelmente 
mutilados; o primeiro a um ponto que mal retinha qualquer 
semelhança com um corpo humano.
“Para este horrível mistério não existe ainda, segundo 
acreditamos, a menor pista.”
O jornal do dia seguinte trazia os seguintes detalhes 
adicionais:
“A tragédia da rua Morgue. Muitos indivíduos foram 
examinados com relação a este caso tão extraordinário 
e assustador (A palavra affaire (caso) ainda não tinha na 
França esta leveza de signifi cado que transmite a nós.), mas 
ainda nada transpirou que pudesse lançar alguma luz sobre 
22
ele. Transcrevemos abaixo todos os testemunhos materiais 
obtidos.
“Pauline Dubourg, lavadeira, depôs que conhece ambas 
as falecidas há três anos, período em que lavou-lhes as rou-
pas. A velha senhora e sua fi lha pa reciam manter muito boas 
relações e serem muito afeiçoadas uma à outra. Pagavam com 
regularidade. Não podia dizer qual era sua renda ou meio de 
sustento. Achava que Madame L’Espanaye ganhava a vida 
como cartomante. Segundo diziam, tinha dinheiro guardado. 
Nunca encontrou qualquer pessoa de fora quando ia buscar as 
roupas para lavar ou as trazia de volta à casa. Tinha certeza 
de que não tinham empregadas. Parece que não havia mobília 
em qualquer parte do edifício, exceto no quarto andar. 
“Pierre Moreau, vendedor de cigarros e de fu mo, depõe 
que habitualmente vendia pequenas quantidades de tabaco e 
de rapé a Madame L’Espa naye e que a atendia há uns quatro 
anos. Tinha nascido no bairro e sempre residira por lá. A 
falecida e sua fi lha moravam há mais de seis anos na casa em 
que os ca dáveres tinham sido encontrados. Anteriormente, 
fora ocupada por um joalheiro, que sublocava os an dares 
superiores para várias pessoas. A casa era de pro priedade de 
Madame L’Espanaye. Ela fi cou descontente com a maneira 
como o imóvel era maltratado pelo seu inquilino e mudou-
se para lá, recusando-se a alugar quaisquer aposentos. A 
velha senhora tinha um comportamento meio infantil. A 
testemunha tinha avistado a fi lha umas cinco ou seis vezes 
no decorrer daqueles seis anos. As duas viviam uma vida 
muito retraída – o povo dizia que tinham dinheiro. Também 
tinha ouvido alguns dos vizinhos comentarem que Madame 
L’Espanaye lia o futuro das pessoas – mas não acreditava 
nisso. Mesmo porque nunca tinha visto ninguém entrar na 
casa, exceto a velha senhora e sua fi lha, um carregador uma 
vez ou duas e um médico, umas oito ou dez vezes. 
“Muitas outras pessoas, na maioria vizinhos, apresenta-
ram evidências no mesmo sentido. Não se falou de ninguém 
que freqüentasse a casa. Não se sabia se Madame L’Espanaye 
23
e sua fi lha tinham parentes vivos. Os postigos das janelas 
da frente raramente eram abertos. Os postigos do fundo 
permaneciam sempre fechados, com a exceção daqueles de 
uma grande sala dos fundos do quarto andar. A casa era boa 
e sólida – não era muito antiga. 
“Isidore Musèt, gendarme, depõe que foi chamado à 
casa por volta das três da manhã e encontrou umas vinte ou 
trinta pessoas diante do portão, esforçando-se para entrar. 
Finalmente forçou a porta com uma baioneta – não foi com 
um pé-de-cabra. Teve pouca difi culdade para abrir, porque 
era um portão de duas folhas e não estava trancado nem 
em cima nem embaixo. Os gritos continuavam enquanto o 
portão estava sendo arrombado – mas cessaram subi tamente. 
Pareciam os gritos de uma pessoa (ou pessoas) em grande 
agonia – eram altos e prolongados, não eram curtos e rápidos. 
A testemunha subiu as escadas à frente de todos. Quando 
chegou ao primeiro patamar, escutou duas vozes discutindo 
alta e furiosamente – uma das vozes era rouca e zangada, a 
outra muito mais aguda – uma voz muito estranha. Conse-
guiu distinguir algumas das palavras emitidas pela pri meira 
voz, que era de um francês. Tinha certeza de que não era 
uma voz de mulher. Tinha distinguido as palavras sacré e 
diable. A voz mais aguda era de um estrangeiro. Não tinha 
certeza se era uma voz de homem ou de mulher. Não havia 
entendido nada do que dissera, mas acreditava que falava em 
espanhol. O estado do apartamento e dos corpos foi descrito 
pela testemunha conforme relatamos ontem. 
“Henri Duval, um vizinho, fabricante de objetos de 
prata, depõe que participava do primeiro grupo que entrou 
na casa. Em geral, corrobora o testemunho de Musèt. Logo 
depois que forçaram a porta, fecharam-na por dentro, para 
impedir a entrada da multidão, que se reuniu muito depressa, 
não obstan te o adiantado da hora. A voz aguda, segundo 
pensa esta testemunha, era de um italiano. Tem certeza de 
que não era de um francês. Não tinha certeza se era voz de 
homem. Poderia ser de mulher. A testemunha não sabia falar 
24
a língua italiana. Não pôde distinguir as palavras, mas pela 
entonação estava convencido de que a pessoa falava em 
italiano. Conhecera Mada me L’Espanaye e sua fi lha. Tinha 
conversado muitas vezes com ambas. Tinha certeza de que 
a voz aguda não pertencia a nenhuma das falecidas. 
“——— Odenheimer, proprietário de um restau rante. A 
testemunha apresentou-se voluntariamente para testemunhar. 
Como não falava francês, foi examinada por meio de um 
intérprete. É nascida em Amsterdam. Estava passando pela 
casa por ocasião dos gritos. Duraram por vários minutos 
– provavelmente dez. Eram longos e altos, muito terríveis e 
apa vorantes. Foi um dos que entrou no edifício. Cor ro borou 
a evidência prévia em todos os respeitos, exceto um. Tem 
certeza de que a voz mais aguda era de um homem e que este 
era francês. Não conseguiu entender as palavras proferidas. 
Eram altas e rápidas, desiguais, emitidas aparentemente tanto 
com medo quanto com raiva. A voz era áspera, muito mais 
áspera do que aguda. Não poderia realmente classi fi cá-la 
como aguda. A voz mais grossa disse repetidamente sacré, 
diable e uma única vez, mon Dieu.9
“Jules Mignaud, banqueiro, da fi rma Mignaud et Fils, 
sediada na rua Deloraine. É o sócio mais ve lho da fi rma. 
Madame L’Espanaye tinha algumas propriedades. Tinha 
aberto uma conta em sua casa bancá ria na primavera do 
ano de **** (oito anos antes). Fa zia freqüentes depósitos de 
pequenas somas. Nunca havia sacado nada até o terceiro dia 
antes de sua mor te, quando retiroupessoalmente a soma de 
4.000 francos. Esta soma foi paga em moedas de ouro e um 
ama nuense a acompanhou até em casa com o dinheiro. 
“Adolphe Le Bon, amanuense da fi rma Mignaud et 
Fils, depõe que, no dia em questão, por volta do meio-dia, 
acompanhou Madame L’Espanaye até sua residência com os 
4.000 francos guardados em duas bolsas. Assim que a porta 
foi aberta, Mademoiselle L’Espanaye apareceu e tomou de 
9. “Sagrado” (no sentido blasfemo de “maldito”), “diabo” e “meu Deus”. 
Em francês no original. (N.T.) 
25
suas mãos uma das bolsas, enquanto a velha senhora segura-
va a outra. Ele então cumprimentou-as com uma curvatura e 
saiu. Não viu nenhuma pessoa na rua nessa ocasião. É uma 
rua lateral, solitária e muito pouco trafegada.
“William Bird, alfaiate, depõe que era uma das pessoas 
que entraram na casa. É de nacionalidade inglesa. Mora em 
Paris há dois anos. Foi um dos pri mei ros a subir as escadas. 
Escutou as vozes em discus são. A voz grave e zangada era 
de um francês. Entendeu várias palavras, mas não lembra 
mais de todas. Escutou distintamente sacré e mon Dieu. 
Por um momento, escutou um som que parecia o de várias 
pessoas lutando, como se o chão estivesse sendo arranhado 
e pisoteado. A voz aguda era muito alta, bem mais alta que 
a voz grave. Tem certeza de que não era a voz de um inglês. 
Parecia mais ser a voz de um ale mão. Poderia ser uma voz 
de mulher. A testemunha não fala alemão.
“Quatro das testemunhas acima, tendo sido re con vo-
cadas, depuseram que a porta do quarto em que foi encon-
trado o corpo de Mademoiselle L’Espa naye estava trancada 
por dentro quando o grupo chegou até lá. Tudo se encontrava 
agora em perfeito silêncio – não havia gemidos, nem ruídos 
de qualquer tipo. Ao forçarem a porta, não viram ninguém. As 
janelas, tanto da sala da frente como do quarto dos fundos, 
estavam com os postigos fechados e fi rmemente tran cadas 
por dentro. Uma porta entre as duas peças estava fechada, 
porém não trancada. A porta que dava da sala da frente para 
o corredor de acesso estava tran cada, com a chave do lado 
de dentro. Uma pequena pe ça na parte da frente da casa, no 
quarto andar e jun to às escadas, estava aberta, com a porta 
escancara da. Esta peça estava atopetada de camas velhas, cai-
xas e coisas assim. Todos os objetos foram cuidadosa mente 
removidos e examinados. Não houve uma pole gada em 
qualquer lugar da casa que não fosse objeto de uma pesquisa 
cuidadosa. Limpa-chaminés foram feitos subir e descer pelas 
chaminés. A casa tinha quatro andares, com águas-furtadas 
(mansardes). Um alçapão no forro tinha sido pregado com 
26
toda a segurança; não dava a impressão de ter sido aberto 
durante anos. O tempo decorrido entre o som das vozes dis-
cutindo e o arrombamento da porta da sala foi declarado de 
maneiras variadas pelas testemunhas. Alguns declararam 
que se haviam passado uns três minutos, outros chegaram a 
cinco. A porta foi aberta com muita difi culdade.
“Alfonzo Garcio, agente funerário, depõe que re side na 
rua Morgue. É de naturalidade espanhola. Per tencia ao grupo 
que entrou na casa. Mas não subiu escadas acima. É um ho-
mem nervoso e estava apreen sivo com relação às possíveis 
conseqüências da agita ção. Escutou as vozes discutindo. A 
voz mais grave era de alguém falando em francês. Não pôde 
com preender o que estava sendo dito. A voz aguda perten cia a 
alguém falando em inglês. Neste ponto, tem certe za absoluta. 
Não fala o idioma inglês, mas julga pela en tonação.
“Alberto Montani, confeiteiro, depõe que se achava 
entre os primeiros que subiram as escadas. Escutou as vo-
zes mencionadas. A voz grave e violenta falava em francês. 
Conseguiu perceber diversas palavras. A pessoa que falava 
parecia estar repreendendo. Não conseguiu entender as 
palavras proferidas pela voz aguda. Falava rápido e de ma-
neira desparelha. Mas acha que as palavras eram em russo. 
Corrobora o testemunho geral. É italiano. Nunca conversou 
com um natural da Rússia. 
“Diversas testemunhas, ao serem reconvocadas, tes-
temunharam que as chaminés de todas as peças do quarto 
andar eram estreitas demais para admitir a passagem de um 
ser humano. Por “limpa-chaminés” queriam dizer escovas 
cilíndricas de limpeza, do tipo que são empregadas por 
aqueles que limpam chaminés para retirar o acúmulo de 
fuligem. Estes escovões foram passados para cima e para 
baixo de cada saída de lareira e de cada cano de ventilação 
exis tente na casa. Não existe uma porta dos fundos pela 
qual alguém pudesse haver descido enquanto os salvadores 
subiam as escadas. O corpo de Made moiselle L’Espanaye 
estava tão fi rmemente entalado na chaminé que não pôde ser 
27
descido até que cinco ou seis pessoas unissem suas forças 
para puxá-lo.
“Paul Dumas, médico, depõe que foi chamado para 
examinar os corpos mais ou menos quando o dia clareava. 
Nessa ocasião, ambos estavam deitados sobre a cobertura 
de estopa do estrado da cama, no mesmo quarto em que 
Mademoiselle L’Espanaye fora encontrada. O cadáver da 
jovem estava muito machucado e arranhado. O fato de 
ter sido empurrado chaminé acima poderia perfeitamente 
causar essa aparência. A garganta estava muito machucada. 
Havia diversos arranhões profundos logo abaixo do queixo, 
juntamente com uma série de marcas lívidas que eram, 
evidentemente, as impressões deixadas por dedos. O rosto 
estava arroxeado de uma forma apavorante e os olhos salta-
vam das órbitas. A língua tinha sido parcial mente mordida. 
Um grande hematoma foi descoberto sobre o estômago, 
produzido, aparentemente, pela pressão de um joelho. Na 
opinião de M. Dumas,10 Mademoiselle L’Espanaye tinha 
sido estrangulada até morrer por uma pessoa ou pessoas 
desconhecidas. O cadáver da mãe estava horrivelmente 
mutilado. Todos os ossos da perna e do braço direitos es-
tavam mais ou menos esmagados. A tíbia esquerda tinha 
sido partida em mais de um lugar, do mesmo modo que 
todas as costelas do lado esquerdo. O corpo inteiro esta-
va terrivelmente marcado e arroxeado. Não era possível 
afi rmar como os ferimentos haviam sido infl igidos. Um 
porrete pesado de madeira ou uma barra larga de ferro, uma 
cadeira, qualquer arma grande, pesada e contundente teria 
produzido tais resultados, se fosse brandida pelas mãos 
de um homem muito robusto. Nenhuma mulher poderia 
ter desferido aquele tipo de golpe com qualquer arma. 
A cabeça da falecida, quando foi vista pela testemunha, 
estava inteiramente separada do corpo e os ossos também 
se achavam em grande parte esmagados. A garganta havia 
10. A inicial “M” que aparece no texto várias vezes antes de sobrenomes 
franceses é simplesmente abreviatura de “Monsieur”. (N.T.) 
28
sido evidentemente cortada com algum instrumento muito 
afi a do – provavelmente uma navalha. 
“Alexandre Etienne, cirurgião, foi convocado com M. 
Dumas para examinar os corpos. Corroborou o testemunho 
e as opiniões de M. Dumas. 
“Nada mais de importância foi descoberto, em bora 
diversas outras pessoas fossem interrogadas. Um assassinato 
tão misterioso e intrigante em todos os seus detalhes jamais 
foi cometido antes em Paris, se é que realmente houve 
um assassinato. A polícia está inteiramente confusa, uma 
ocorrência pouco comum em casos desta natureza. Não há, 
entretanto, a sombra de uma pista.”
A edição vespertina do jornal declarava que a maior 
excitação ainda perdurava no Quartier St.-Roch, que os 
aposentos do prédio tinham sido novamente examinados 
e novos exames das testemunhas realiza dos, tudo sem o 
menor resultado. Um pós-escrito, en tretanto, mencionava 
que Adolphe Le Bon tinha si do preso e encarcerado, embora 
nada parecesse in cri miná-lo, além dos fatos que já foram 
detalhados. 
Dupin pareceu-me singularmente interessado no pro-
gresso das investigações, ou pelo menos foi o que julguei 
a partir de suas ações, porque não fez o menor comentário. 
Foi somente depois que a prisão de Le Bon foi anunciada 
que ele pediu minha opinião sobre os assassinatos.
Eu somente podia concordar com todaParis ao consi-
derá-los um mistério insolúvel. Não via maneira através da 
qual fosse possível identifi car o assassino.
– Não podemos julgar os meios – disse Dupin – a partir 
de um exame tão superfi cial. A polícia parisiense, que é tão 
exaltada por sua argúcia, é esperta, mas nada mais do que 
isto. Não existe método em seus procedimentos, além do 
método sugerido pela inspiração do momento. Desfi lam uma 
série de medidas tomadas a fi m de satisfazer ao público; mas 
não é infreqüente que estas sejam tão mal adaptadas ao obje-
29
tivo proposto, que nos recordam a frase famosa de Monsieur 
Jourdain, que mandou buscar seu robe-de-chambre – pour 
mieux entendre la musique.11 Os resultados que eles obtêm 
não deixam de surpreender com uma certa freqüência, mas 
na maior parte são obtidos por simples diligência e grande 
atividade. Quando faltam estas atividades, seus esquemas fa-
lham. Vidocq, por exemplo,12 além de saber adivinhar, era um 
homem perseverante. Porém, desprovido de um pensamento 
educado, ele errava continuamente pela própria intensidade 
de suas investigações. Prejudicava a própria visão por segurar 
os objetos perto demais. Podia ver assim, quem sabe, um ou 
dois pontos com clareza extraordinária, mas seu procedimen-
to o levava necessariamente a perder a visão do conjunto. 
Porque existe uma coisa que podemos chamar de excesso de 
profundidade. A verdade não se encontra sempre no fundo de 
um poço. De fato, no que se refere aos conhecimentos mais 
importantes, acredito que seja invariavelmente superfi cial. 
A profundidade acha-se nos vales em que a buscamos e 
não no topo das montanhas, onde a verdade é encontrada. 
Os modos e fontes deste tipo de erro são bem tipifi cados 
pela contemplação dos corpos celestiais. Olhar uma estrela 
de relance, observá-la pelo canto dos olhos, voltando para 
ela as porções laterais da retina (mais suscetível às fracas 
sensações luminosas que a parte central) signifi ca percebê-la 
distintamente – é assim que apreciamos melhor o seu brilho 
– um brilho que vai se enfraquecendo na proporção em que 
voltamos a visão diretamente sobre ele. De fato, um número 
maior de raios cai sobre o olho neste último caso, porém, no 
anterior, existe a capacidade de compreensão mais refi nada. 
11. M. Jourdain é o principal personagem de O burguês gentilho mem de 
Molière (Jean-Baptiste Poquelin, 1622-1673), negociante enriquecido que 
se demonstra cada vez mais ridículo em seu desejo de elevar-se socialmente. 
Na cena em questão, ele manda buscar seu roupão “para escutar melhor 
a música”. (N.T.)
12. François Vidocq, 1775-1857, ex-condenado a trabalhos forçados, chegou 
a ser chefe de polícia de Paris. Suas Memórias inspiraram o personagem 
Vautrin, de Honoré de Balzac, 1799-1850. (N.T.)

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