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TEORIA E PRÁTICA EM SOCIOLOGIA CLÁSSICA AULA 01 Prof. Dr. Rafael Pons Reis CONVERSA INICIAL O objetivo do presente texto consiste em apresentar brevemente os conteúdos da primeira vídeo-aula ministrada pela Professora Maria Izabel Machado, da disciplina de Teoria e Prática em Sociologia Clássica. Para tanto, na primeira seção veremos o processo de construção de uma abordagem científica da realidade, uma vez que, até então, os homens se valiam de explicações não científicas para explicar a realidade, a partir do pensamento mítico, do pensamento religioso e do senso comum. Na segunda seção delinearemos o surgimento dos primeiros estudos científicos sobre a realidade, em detrimento das explicações baseadas na fé cristã que perdurou ao longo da Idade Média. Na seção seguinte, explanaremos a importância assumida pelo Renascimento e pelo Iluminismo em relação ao uso da razão e do pensamento científico para a explicação dos mais variados fenômenos da realidade. Na quarta seção, apresentaremos alguns importantes aspectos que contribuíram para a emergência da ciência social com base no método empírico de observação da realidade. E, por fim, na última seção, destacaremos as principais contribuições de duas importantes revoluções para o desenvolvimento dos estudos das ciências sociais, a saber, a Revolução Industrial e a Revolução Francesa. TEMA 1 – CONSTRUÇÃO DE UMA ABORDAGEM CIENTÍFICA DA REALIDADE Antes de darmos início sobre os processos que contribuíram para a construção de uma abordagem científica da realidade, precisamos entender o que é a Sociologia. Em linhas gerais, a sociologia é a ciência que estuda as sociedades, isto é, ela estuda a sociedade em sua diversidade e complexidade. Isso significa dizer que a sociologia analisa os variados aspectos que permeiam a vida social a partir de pesquisas sobre os fenômenos sociais (baseados nas interações e comportamentos humanos). Partindo do pressuposto que cada sociedade é formada pelo conjunto de pessoas que interagem entre si em uma relação de interdependência e compartilham regras, valores e costumes, o objetivo mais amplo da sociologia 3 consiste em “compreender esses conjuntos além das questões individuais e de senso comum” (Campos & Pontes, 2018, p. 24). Ao longo da história das sociedades, os homens sempre procuraram formular explicações da realidade em que estavam inseridos. Se as primeiras tentativas de entender cientificamente a realidade social data de fins do século XVIII, na Europa, devemos perguntar: como eram as explicações sobre a realidade social, sobre o cotidiano em que os homens estavam inseridos, antes da Sociologia? Em resumo, as explicações não científicas acerca das relações de interdependência do homem para com a sociedade se davam por meio: i) do pensamento mítico, momento em que sociedades primitivas explicavam as ações humanas por meio de narrativas alegóricas1, tendo como base a ocorrência de fenômenos sobrenaturais; ii) do pensamento religioso, através de incontáveis registros arqueológicos (esculturas, símbolos e pinturas) de deuses, os fenômenos sociais tinham como base elementos religiosos; iii) do senso comum, destaque para o senso prático (regras e tabus alimentares, jogos infantis) com que as sociedades deliberavam e resolviam seus problemas; e iv) da ciência, momento em que, por meio de revoluções técnico- científicas e do Iluminismo, são construídos os critérios de validade científica, por sua vez, muito importantes para o acúmulo e a reprodução do conhecimento. TEMA 2 – A IDADE MÉDIA E O PREDOMÍNIO DA FÉ O período conhecido como Idade Média durou aproximadamente mil anos (do século V ao Século XV), momento em que os homens utilizavam a perspectiva religiosa e a tradição para explicar o mundo e dar sentido a ele. Nesse período, o poder da Igreja era muito forte, exercendo uma considerável influência tanto na política como no campo das ideias. Isso significa dizer que ela determinava o que era certo e o que era errado na esfera social, sendo que qualquer questionamento ou conduta contrária as suas regras, era considerado um pecado e, portanto, passível de ser punido e combatido. Além disso, havia 1 São exemplos os mitos de origem: Judaico (Gênesis), Tupi Guarani, Iorubá e Grega. As explicações mítico-religiosas cumpriram um papel social importante no sentido de tornar a vida prática, a vida cotidiana viável. 4 por parte da Igreja uma centralização do conhecimento, e um monopólio explicativo sobre tudo que permeava a vida em sociedade. A despeito da Igreja, à sua maneira, ter incentivado a produção do conhecimento científico, momento em que se vislumbram os primeiros estudos nas áreas da física, química e astronomia, o que ela não admitia era que um determinado conhecimento fosse capaz de questionar a ordem social estabelecida. Nesse contexto, uma explicação científica que abalou os alicerces explicativos da Igreja foi o Heliocentrismo, desenvolvido por Nicolau Copérnico (1473-1543), a teoria foi inovadora à época ao defender o argumento de que o Sol ocupava o centro do Sistema Solar, contrariando a então vigente teoria Geocêntrica, defendido pela Igreja, que considerava a Terra como o centro. Em que pese as explicações baseadas na fé cristã terem perdurado ao longo de todo o período, gradativamente os homens foram explorando outros campos de saber a fim de buscar novas formas de explicação. Neste sentido, dois movimentos foram fundamentais para o desenvolvimento de uma perspectiva científica e racional: o Renascimento e, conforme já mencionado, o Iluminismo, os quais veremos na próxima seção. TEMA 3 – O RENASCIMENTO E O ILUMINISMO A transição entre a Idade Média, marcada pelo sistema feudal, e a Idade Moderna, foi marcada por inúmeras mudanças na Europa, tais como: fim das monarquias e a ascensão dos Estados nacionais; da economia feudal à economia capitalista; a emergência dos valores burgueses (enquanto que o clero e a nobreza perdiam força); as cidades se desenvolveram e o comércio se intensificou. Essas mudanças permitiram novas formas de viver e de refletir sobre o mundo, produzindo, com isso, uma ruptura civilizacional e interpretativa, trazendo reflexos no ambiente político, cultural, social e econômico. Neste contexto, a partir do século XIV e o fim do século XV, dá-se início o movimento cultural, político e econômico conhecido por Renascimento. Surgido na Itália, ganhou forte inspiração na cultura greco-romana, cuja revalorização das referências da Antiguidade Clássica fez com que os 5 renascentistas rejeitassem as explicações baseadas no misticismo, na fé e na tradição, procurando encontrar outras explicações para os fenômenos naturais e sociais. No âmbito social, por exemplo, um exemplo da produção de conhecimento renascentista sobre a sociedade pode ser encontrado na famosa obra de Nicolau Maquiavel2 (1469-1527), “O príncipe”. Um termo muito conhecido atribuído ao autor em questão, o maquiavelismo, deriva da compreensão equivocada acerca da suposta doutrina de que a traição, o engodo, a astúcia e a má-fé praticada por um indivíduo faria do mesmo ser “maquiavélico”. De fato, na obra O Príncipe, Maquiavel expõe a dinâmica política com grande desenvoltura e frieza, na medida em que aponta as formas e os modos de agir para que um indivíduo ascenda e se mantenha no poder, empregando para isso, de quaisquer meios, “desde que o objetivo fosse legítimo” (ACQUAVIVA, 2010, p. 100). Ao longo da vida de Maquiavel a “Itália” encontrava-se dividida em cinco principais regiões: a República de Veneza, o Ducado de Milão, o Reino de Nápoles, República Florentina e os Estados Papais. Sendo que a maior parte dos demais Estados da península Itálica era formada por Estados ilegítimos, comandadospor mercenários chamados condottiere. Uma breve análise do contexto histórico vivido por Maquiavel se faz necessária a fim de compreender o desejo mais amplo do autor que consistia na unificação de toda as regiões da península em um único reino, um único Estado. A partir da análise de suas duas principais obras, Maquiavel afirma categoricamente a existência de apenas e, tão somente, duas formas de governo: as Repúblicas, e as Monarquias (ou Principados). Em seu tempo, o autor não conheceu na prática, mais do que duas formas de governo: a república e a tirania. Precisamos levar em consideração que seu país vivia dividido por lutas internas, em que as cidades italianas frequentemente entravam em guerra entre si, que por sua vez conformava um terreno fértil para a existência de tiranos e demagogos. 2 Nicolau Maquiavel (em italiano Niccolò di Bernardo dei Machiavelli) nasceu em Florença (Itália) em maio de 1469, e é considerado o fundador da Ciência Política moderna por ter escrito sobre o Estado, o governo, a política, e sobre as relações de poder, a despeito de suas pesquisas terem sido realizadas por meio de técnicas adotadas pela ciência política contemporânea. Dentre suas principais obras destacamos Discursos sobre a primeira década de Tito Lívio (1531), e a mais conhecida, O Príncipe (1532), obras que analisaremos nas próximas seções. Possuidor de grande conhecimento, Maquiavel foi historiador, filósofo, diplomata, poeta e músico no período renascentista. 6 Na obra Discursos Maquiavel defende seus argumentos referentes à forma republicana, uma vez que no livro O Príncipe o autor expõe seus conceitos em defesa da forma monárquica. Nesta última obra o autor ressalta que: “Todos os Estados, todos os domínios que tiveram e têm poder sobre os homens, foram e são repúblicas ou principados [monarquias]”. Dentre as inúmeras contribuições de Maquiavel para o estudo da ciência política, inicialmente destacamos em suas obras o distanciamento dos estudos jurídicos em relação à natureza e as formas de Estado. Em tese, os pensadores anteriores a Maquiavel, concentravam seus estudos sobre o Estado a partir de uma análise meramente jurídica, no sentido de que o Estado era formado por meio de um ato jurídico e, portanto, cabia ao mesmo o processo de criação de leis (direito positivo). Em O Príncipe, por sua vez, o autor analisa o fenômeno político da criação do Estado não por meio da perspectiva jurídica, mas sim da comportamental, em especial na análise do comportamento do governante (QUADROS, 2016). A partir do início do século XVIII, a Europa passa a vivenciar outro movimento intelectual que buscava promover mudanças políticas, sociais e econômicas nas sociedades europeias. Conhecido como Iluminismo, no sentido de lançar “luzes” sobre os diferentes aspectos que encobriam a percepção da realidade. O movimento visa estimular a luta da razão e do pensamento científico contra a autoridade, isto é, a luta da “luz contra as trevas”, no sentido de difundir o uso da razão para dirigir o progresso da vida em todos os aspectos. Foram vários os pensadores que contribuíram à reflexão crítica e sistemática da realidade social, dentre eles podemos citar o pensador francês Voltaire (1694-1778), que combatia o fanatismo religioso e defendia o uso razão e, outro pensador francês, Jean-Jacques Rousseau. O ponto de partida para entendermos a visão de Rousseau acerca das razões que levam os homens a firmar um pacto social e, portanto, construir o Estado, assenta suas bases em temas tais como o estado de natureza, o surgimento da propriedade e o problema da escravidão. Partindo do livro “Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens”, o autor menciona que no momento anterior à criação do Estado, ou seja, no momento apolítico, ele concorda com os demais contratualistas acerca do argumento de que o principal objetivo do homem no estado de natureza é a autopreservação. Ora, neste momento pré-estatal, o 7 homem é livre, ou seja, não há impedimentos para sua ação e nenhuma prescrição de comportamento em termos de normas e regras (leis). No estado de natureza, o homem é feliz, são e saudável, e vive em comunhão com a natureza. Ele faz uso desta para tirar seu sustento (caça e coleta), utiliza seus recursos (madeira, resina, óleo) e por meio da confecção de instrumentos produtivos, o homem aprimora suas técnicas para a caça (arco e flecha) e para a produção de alimentos (arado). A harmonia vivida pelo homem no estado de natureza com o ambiente natural reflete inclusive na harmonia entre os homens. TEMA 4 – COMEÇADO A DEFINIR A SOCIOLOGIA Conforme vimos até aqui, os movimentos intelectuais como o Renascimento e o Iluminismo contribuíram em grande medida para o advento da razão e da ciência para explicar o mundo, em detrimento das explicações baseadas na fé e na tradição. A partir deste momento é possível então pensarmos em construir uma definição para a sociologia. Para Alessandro Paixão, a “Sociologia é a ciência que estuda a interação do indivíduo com a sociedade, as relações que ele mantém, a sua inserção na coletividade. É o estudo da vida social, dos grupos e das sociedades” (2012, p. 23-24). De posse destas considerações, podemos afirmar que a sociologia surge como ciência a partir da tentativa de responder ao seguinte questionamento: o indivíduo faz a sociedade ou a sociedade faz o indivíduo? Qualquer tentativa de oferecer uma resposta implicaria, por extensão, em entender acerca da origem dos problemas sociais, bem como sobre como a sociedade se mantém em funcionamento. Os primeiros estudos sociológicos, especialmente na França, vão considerar a ciência sociológica como uma ciência empírica. Isso significa dizer que o estudo da sociedade não pode ser filosófico, uma vez que a sociologia precisa estar alicerçada no estudo das instituições, das interações, dos indivíduos e das relações entre as pessoas. Ao afirmarmos que a sociologia é uma ciência empírica, queremos dizer que se trata de uma ciência que exige comprovação dos fenômenos 8 estudados, isto é, que o exame dos fatos e das relações entre indivíduos e instituições sejam observados na prática, a partir de dados observáveis materialmente no cotidiano de uma sociedade. A despeito do fato da Sociologia também ser capaz de formular teorias e modelos teóricos de análise sobre o fenômeno social, ela precisa, para comprovar suas hipóteses, da comprovação empírica, isto é, do exame a partir da observação concreta dos fenômenos estudados. Ao longo do desenvolvimento da sociologia, a ciência social vem construindo diferentes metodologias para se pensar os variados fenômenos que ocorrem no interior das sociedades, tais como o uso da Estatística (exemplo: os estudos estatísticos do pensador francês Émilie Durkheim), Descritiva, vindo a se tornar mais Analítica e, na sociologia contemporânea, mais compreensiva. TEMA 5 – AS DUAS GRANDES REVOLUÇÕES E A CONSOLIDAÇÃO DO CAPITALISMO Segundo o aclamado historiador britânico, Eric Hobsbawn, para que um evento possa ser chamado de revolução, ele precisa alterar os pilares de uma dada sociedade, isto é, a estrutura, por sua vez, formada a partir de elementos da política, da cultura e da economia. Neste sentido, caso um acontecimento seja capaz de alterar substancialmente as relações econômicas, e as relações políticas (a forma como se governa), bem como seja capaz de alterar o modo como as pessoas se comportam, neste caso, aí sim o fenômeno pode ser considerado uma Revolução. Dentre as revoluções mais estudadas pelas ciências sociais, destacamos a Revolução Industrial e a Revolução Francesa. Originária na Inglaterra no final do século XVIII e, posteriormente, disseminando por toda a Europa, a Revolução Industrial contribuiu sobremaneira para um grandenúmero de transformações econômicas e sociais. As inovações tecnológicas trazidas no campo da tecnologia, novas fontes de energia e mecanização dos processos de produção, permitiu a criação de novas formas de organização do trabalho, bem como das relações de interdependência do homem para com a sociedade. 9 Importante mencionarmos que a Revolução Industrial não significou apenas a criação e a adoção de novas tecnologias, mas, segundo Paixão “(...) se iniciou o processo de industrialização, e os artesãos, que antes produziam em suas casas com suas ferramentas, passaram a trabalhar sob as ordens do empresário capitalista e se sujeitaram a novas formas de conduta e relações de trabalho” (2012, p. 27-28). Em que pese a importância dessa revolução, ela não teria tido sucesso se não tivesse ocorrido em paralelo a Revolução Francesa, que significou o fim do regime feudal em toda a Europa, promovendo, com isso, um conjunto muito grande de transformações na economia, na política e nas manifestações culturais. O sistema social e político que predominava na França até a Revolução era chamado de Antigo Regime, em que o governo era dominado pela aristocracia, sob forte controle da monarquia absolutista. O terceiro Estado era formado pela burguesia e por outros grupos sociais destituídos de participação política e privilégios que, por sua vez, sustentava o primeiro Estado (clero) e o segundo Estado (nobreza) por meio de elevados impostos e tributos feudais. O antigo regime impedia a ascensão da burguesia, esta, por sua vez, era obrigada não apenas a pagar impostos à nobreza, mas também uma série de taxas, proibições e restrições impostas pelo Estado absoluto. Sendo assim, a Revolução Francesa significou o fim dos privilégios feudais que a aristocracia e o clero tinham desde o período feudal. FINALIZANDO Ao longo do presente texto foi possível apresentar alguns importantes conceitos e pressupostos que contribuíram para o desenvolvimento e a evolução da ciência sociológica. Vimos na primeira seção como o uso da razão e o estudo científico da interdependência do homem e da sociedade são relativamente recentes (século XVIII). Assim sendo, a construção de uma abordagem científica da realidade ocasionou uma mudança radical na forma de interpretar e explicar os fenômenos sejam eles naturais ou sociais. Na segunda seção estudamos sobre como as explicações baseadas na religião e na tradição foram dando espaço em face da produção de um 10 conhecimento científico baseado na razão. Neste contexto, destacamos, na seção seguinte, a importância assumida de dois movimentos para o desenvolvimento de uma perspectiva científica e racional, a saber, o Renascimento e o Iluminismo. Na quarta seção estudamos a emergência dos primeiros estudos sociológicos, especialmente na França, a partir de da construção de uma ciência empírica, a partir da noção de que a sociologia assenta as suas bases no estudo das instituições, das interações e das relações entre as pessoas. E, por fim, na última seção, apresentamos o cenário mais amplo que deu origem à sociologia, a saber, a partir de uma série de mudanças introduzidas pela Revolução Industrial e pela Revolução Francesa. Em face das profundas transformações na sociedade e no campo das ideias provocadas por ambas as revoluções, novos problemas e dilemas foram surgindo, exigindo com isso, a construção de métodos mais arrojados para se pensar a sociedade a fim de obter novas respostas para os problemas à medida que iam surgindo. REFERÊNCIAS ACQUAVIVA, Marcus C. Teoria Geral do Estado. Barueri, São Paulo: Manole, 2010. CAMPOS, Juliana l. de; PONTES, Stefania Poeta. Curitiba: Intersaberes, 2018. (Coleção EJA: Cidadania Competente, v. 13). PAIXÃO, Alessandro E. Sociologia Geral. Curitiba: Editora Intersaberes, 2012. QUADROS, Doacir G. de. O Estado na teoria política clássica: Platão, Aristóteles, Maquiavel e os contratualistas. Curitiba: Editora Intersaberes, 2016.
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