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Fundamentos Gerais da educação Básica Fundamentos Gerais da educação Básica F u n d a m e n to s G e r a is d a e d u c a ç ã o B á si c a e l izabete dos santos agnes cordeiro de carvalho aldemara Pereira de melo elisabeth sanfelice Jairo marçal elizabete dos santos agnes cordeiro de carvalho aldemara Pereira de melo elisabeth sanfelice Jairo marçal Fundação Biblioteca Nacional ISBN 978-85-387-3612-7 Fundamentos Gerais da Educação Básica Elizabete dos Santos Agnes Cordeiro de Carvalho Aldemara Pereira de Melo Elisabeth Sanfelice Jairo Marçal IESDE BRASIL S/A Curitiba 2013 2.ª edição Edição revisada © 2005– IESDE BRASIL S/A. É proibida a reprodução, mesmo parcial, por qualquer processo, sem autorização por escrito dos autores e do detentor dos direitos autorais. Capa: IESDE BRASIL S/A Imagem da capa: Shutterstock IESDE BRASIL S/A Al. Dr. Carlos de Carvalho, 1.482. CEP: 80730-200 Batel – Curitiba – PR 0800 708 88 88 – www.iesde.com.br Todos os direitos reservados. CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO-NA-FONTE SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ ________________________________________________________________________________ F977 2. ed. Fundamentos gerais da educação básica / Elizabete dos Santos... [et al.]. - 2. ed., rev. - Curitiba, PR : IESDE BRASIL, 2013. 232 p. : 28 cm Inclui bibliografia ISBN 978-85-387-3612-7 1. Professores de ensino médio - Formação. 2. Educação de base - Brasil. I. Título. 13-1065. CDD: 370.71 CDU: 37.02 19.02.13 21.02.13 042899 ________________________________________________________________________________ Sumário Fundamentos filosóficos e pedagógicos do Ensino Médio ..................................................9 Educação e sociedade – análise introdutória ..........................................................................................9 Uma leitura crítica dos fundamentos filosóficos – Política da Igualdade ...............................................11 Ética da Identidade ...............................................................................................................21 Estética da Sensibilidade ........................................................................................................................26 Autonomia, Identidade e Diversidade – a complexidade da trajetória entre o ideal da proposta e sua operacionalização .............................................................33 Autonomia ..............................................................................................................................................33 Identidade ...............................................................................................................................................36 Diversidade .............................................................................................................................................38 Buscando respostas para a ação pedagógica ........................................................................43 Interdisciplinaridade – um diálogo necessário .......................................................................................43 Organização curricular: a quem serve a escola? ..................................................................55 As competências, as habilidades e as tecnologias ..................................................................................55 Linguagens e suas representações ........................................................................................61 Plurissignificação das linguagens ...........................................................................................................61 A condição humana como objeto de reflexão ......................................................................67 Diversidade de representações humanas ................................................................................................67 Sociologia ...............................................................................................................................................73 Natureza em transformação .................................................................................................79 O conhecimento científico: do ver ao generalizar ..................................................................................79 Construir conhecimentos sobre a natureza ..........................................................................89 Buscando respostas e investigando conceitos .........................................................................................89 Análise política/cultural/econômica da implantação da nova proposta ...............................99 Linguagens e suas representações II ....................................................................................103 Língua Portuguesa ..................................................................................................................................103 Língua Estrangeira Moderna ................................................................................................107 Arte ......................................................................................................................................111 Educação Física ...................................................................................................................115 Caminhos da linguagem I ....................................................................................................119 Língua Portuguesa ..................................................................................................................................119 Língua Estrangeira ...............................................................................................................123 Caminhos da linguagem II ...................................................................................................125 Arte .........................................................................................................................................................125 Educação Física II ................................................................................................................131 Avaliação: um exercício de autonomia ................................................................................135 A condição humana como objeto de reflexão II ...................................................................143 A compreensão do ser humano na sua relação com o mundo ................................................................143 Os recortes da realidade através de diferentes caminhos e olhares .....................................151 A questão metodológica I .......................................................................................................................151 Os recortes da realidade através de diferentes caminhos e olhares II ..................................163 A questão metodológica II ......................................................................................................................163 Avaliação – processo dialético de superação .......................................................................187 Natureza em transformação II ..............................................................................................193 Possibilidade de construção e representação das Ciências .....................................................................193 Matemática e metodologia através do tempo .........................................................................................196 Concepções presentes nos PCN ..............................................................................................................198 O jogo como estratégia possível .............................................................................................................200Ciências da Natureza: onde as diferentes abordagens se encontram ...................................203 A questão metodológica ..........................................................................................................................203 Avaliação: ação para a cidadania .........................................................................................219 Das considerações ...................................................................................................................................219 Apresentação Q uando surgiu no cenário nacional a definição de Parâmetros Curriculares Nacionais para o Ensino Médio, com claros indicadores para a qualidade dessa etapa de ensino, acenando com mudanças profundas que pretendiam restabelecer sua importância e a integração do aluno ao mundo contemporâneo, emergiu também, como consequência, a necessidade premente da instauração de um processo de análise e discussão pelos protagonistas da ação educativa. Aos educadores cabe o papel de interpretação e elucidação crítica dos princípios norteadores da nova proposta, a difícil tarefa de revelar as implicações, a complexidade, os limites e as possibilidades de sua real efetivação e ações que promovam a contextualização da proposta, a articulação entre o seu ideal e a realidade educacional, tecendo os fios que possibilitarão sua viabilidade orgânica. A maior virtude desse processo de reflexão é que ele traz à tona contradições de ordens filo- sófica, política, cultural, pedagógica, entre outras, que, uma vez investidas de um amplo e profundo debate, podem oferecer a possibilidade de enfrentamento e resolução dos problemas. Porém, cabe alertar que a leitura ingênua, irrefletida ou dogmática, pode levar ao escamoteamento da proposta com o consequente desestímulo associado à ideia de inviabilidade, o que só viria a contribuir para a reafirmação de posições conservadoras. Somente com um processo de interação consciente, de reflexão crítica, por parte de todos os envolvidos na ação educativa, com clara definição de papéis, atribuições e responsabilidades será possível a construção de um novo Ensino Médio. O presente trabalho está organizado em duas apostilas e dividido em quatro módulos. O primei- ro módulo apresenta uma reflexão sobre os fundamentos filosóficos e pedagógicos do Ensino Médio, presentes nas novas diretrizes curriculares. Esse módulo está organizado em seis unidades: as duas primeiras versam sobre os fundamentos filosóficos – Política da Igualdade, Ética da Identidade e Es- tética da Sensibilidade; a terceira unidade busca estabelecer uma base conceitual para os princípios da Autonomia, Identidade e Diversidade; a quarta unidade aponta para a discussão de temas mais conhecidos da esfera pedagógica, interdisciplinaridade e contextualização, vinculados à questão do trabalho e da cidadania; na quinta unidade está presente a preocupação de se buscar um debate sobre as competências e tecnologias; e, para finalizar esse módulo, a sexta unidade propõe uma análise so- bre os avanços e os limites dos Parâmetros Curriculares Nacionais. Os outros três módulos apresentam as três áreas dos conhecimentos: linguagens e suas repre- sentações; a condição humana como objeto de reflexão; natureza em transformação, e estão organiza- dos (cada módulo) nas seguintes unidades: a primeira apresenta uma definição de cada área e discorre sobre as suas disciplinas; a segunda unidade discute as competências das áreas; a terceira e a quarta unidade abordam alternativas metodológicas nas áreas e a quinta unidade trata do processo de avalia- ção em cada área do conhecimento. Fundamentos filosóficos e pedagógicos do Ensino Médio Educação e sociedade – análise introdutória O homem vive em sociedade e em função dessa relação social desenvolve características específicas, que lhe são peculiares e que possibilitam sua singularidade enquanto espécie. A maturação do ser humano é decorrente de um processo de sociabilidade e pode-se, por exemplo, citar a linguagem como construção necessária a essa sociabilidade. É possível afirmar que, em função do estabelecimento da relação em sociedade, o homem se humanizou. Essa humaniza- ção permite a cada nova geração o conhecimento, adaptação e absorção daquilo que a humanidade construiu, possibilitando também a transformação e a reconstrução dessa geração e, consequentemente, dessa sociedade. A educação deve possibilitar ao homem o conhecimento e os instrumentos ne- cessários para interpretar e decifrar a realidade, realizar escolhas e agir sobre o seu destino. Na ação educativa, o que deve estar implícito é o aperfeiçoamento do próprio homem, questão esta já formulada por Kant: “as relações de educação, no seu sentido mais amplo, têm que ter em mente o estado futuro da humanidade. O homem deve fazer a si mesmo melhor do que já é”. Florestan Fernandes, estudioso da sociedade, apresenta em seus escritos sobre as funções das ciências sociais no mundo moderno, de forma muito pertinente, uma concepção de educação na qual afirma que as gerações novas recebem uma herança social das gerações mais velhas, herança essa que seria a solução dos problemas do passado. Entretanto, recebem também como herança novos problemas sociais a se- rem enfrentados, situações de vida ainda não resolvidas. A ação educativa consiste em oferecer ao homem condições de discernimento e superação desses problemas, a fim de estabelecer escolhas a partir dos próprios interesses, valores e ideais. A escola se configura como um espaço definido para o desenvolvimento do ensino, ou seja, como um espaço organizado, planejado e instituído para promover a apreensão do conhecimento sistematizado e universalizado. Mas, ainda é importante considerar que a escola possibilita também, em função de uma condição histórico- -cultural, o desenvolvimento implícito e/ou explícito da ação educativa numa aborda- gem mais ampla. Como esclarece Antonio Candido (1985, p. 11), “existe um sistema de relações, de papéis, de valores, determinados no ensino e pelo ensino manifestan- do-se principalmente na escola, concebida não apenas como agência de instrução, mas como um grupo social complexo, num dado contexto social”. Princípios norteadores da educação, como Política da Igualdade, Ética da Iden- tidade, Estética da Sensibilidade, Autonomia e Diversidade, uma vez instituídos atra- vés de uma proposta oficial, devem se fazer presentes na escola pela reflexão dos sujeitos envolvidos na ação educativa. Aos professores cabe a consciência de sua ação – a reflexão sobre a causa, a finalidade e os efeitos – a compreensão de que Fundamentos filosóficos e pedagógicos do Ensino Médio 10 sua prática não pode estar limitada à transmissão de um saber sistematizado, sendo necessário que essa ação esteja contextualizada à realidade e constantemente em processo de análise crítica. E aos alunos, a compreensão de que se constituem como sujeitos ativos no processo educacional. Sujeitos ativos, porque é na ação e na decisão consciente do aluno que se dá a relação ensino-aprendizagem. A escola, compreendida como uma unidade social responsável pela educação, define atitudes, comportamentos, posições, papéis. Possui uma dinâmica própria e, sem desconsiderar as relações estabelecidas pela sociedade, de onde recebe valores, normas e obrigações, não pode ser entendida apenas como reflexo dessa socieda- de, devendo ter consciência da sua responsabilidade singular de reflexão e criação. Assim, a escola se revela também como um espaço onde os protagonistas da ação educativa, inspirados por princípios fundamentais para o desenvolvimento e o aper- feiçoamento humano, podem sobrepujar as mazelas e contradições presentes nessa mesma sociedade. Por isso Japiassu defende uma pedagogia da inteligência que é o outro ângulo de visão da pe- dagogia da incerteza. Com efeito, investir na inteligência é exorcizar o dogmatismo da certeza. Neste sentido, a educação é o aprendizado do pensare a superação do repensar e se identi- fica com a própria dimensão reflexiva da filosofia, enquanto dimensão da consciência que a própria sociedade tem de si mesma. Autenticamente liberal e libertadora seria a sociedade que assegurasse a todos os seus membros a “oportunidade de uma educação, não somente em função de um grupo particular, mas da própria inteligência dos que pensam o destino da humanidade. Uma sociedade que perde essa consciência que a cultura toma de si mesma está fadada a perder a consciência de si”. Assim, um ensino filosoficamente fundado permitiria que os educandos aprendessem “a cri- ticar, quer dizer, examinar e passar ao crivo as opiniões recebidas ou impostas, as ideias e tradições transmitidas e os ensinamentos aparentemente inquestionáveis” e tornaria possível “o ultrapassamento do conformismo e do inconformismo em vista de uma coerência sempre maior entre o pensamento e a ação”. (SEVERINO, 1997, p. 233-234) Entretanto, a educação, longe de assumir seu papel inovador dentro da socieda- de, tem historicamente deixado prevalecer um lado conservador e disciplinador. Foi, por exemplo, com Durkheim, que a escola passou a representar para a sociedade [...] um poderoso instrumento para controlar as paixões humanas, assim “educar é inscrever na subjetividade da criança os três elementos da moralidade: o espírito da disciplina (graças ao qual a criança adquire o gosto da vida regular, repetitiva e o gosto da obediência à auto- ridade); o espírito da abnegação (adquirindo o gosto de sacrificar-se aos ideais coletivos) e a autonomia da vontade (sinônimo de submissão esclarecida)”. Estabeleceu-se assim, através da educação, a construção do sujeito normal, [...] sinônimo dessa chateza de traçado, dessa timidez das aspirações, desse esmagamento ou de- saparecimento do desejo [...] Quem sabe possa ser aquele que a polícia nos acostumou a chamar de cidadão de bem para diferenciar do marginal; esse que “jamais” derrubaria o Império mas que, ao mesmo tempo, é incapaz de morrer pela República. (FERNANDES, 1997, p. 67) Ao desencanto da constatação de que na ação educativa ainda se perpetuam princípios e práticas de submissão e controle é vital que se contraponha o desejo por uma escola livre, criativa, autônoma, crítica, sustentado na consciência de que para Fundamentos filosóficos e pedagógicos do Ensino Médio 11 sua realização é preciso que se proceda a redescoberta dos verdadeiros significados da Política, da Ética e da Estética. Aceitar o desafio de conceber uma nova proposta para a educação é abrir mão das supostas facilidades presentes na cultura dos jargões, que, por mais que possam re- presentar um ideal de educação democrática, encontram-se cristalizados e deslocados do espaço e do tempo vividos pela escola e, distantes assim das demandas educacio- nais, pouco contribuem para o seu entendimento e significação. Trata-se de recuperar os sentidos dos fundamentos filosóficos e reconstruí-los a partir de um esforço coletivo que contemple as aspirações de cada unidade escolar. Uma leitura crítica dos fundamentos filosóficos – Política da Igualdade A elaboração das Diretrizes Curriculares Nacionais deve ser entendida dentro de um processo histórico e ressalta-se a importância de assegurar na sua interpreta- ção e aplicação os avanços conquistados, tais como: os princípios da universalização e democratização do conhecimento, a preparação para o mundo do trabalho, a neces- sidade de uma sólida formação no núcleo comum e a articulação do conhecimento com a realidade do aluno já contemplados na Proposta de Ensino de 2.º Grau ante- riormente vigente. É importante assinalar como inovador nas novas diretrizes o fato de que elas trazem à luz da discussão alguns elementos que podem vir a estimular o trabalho, alimentar o debate, reorientar al- guns conceitos, aprofundar algumas ideias e prin- cípios que consequentemente terão reflexos na ação educativa. Os fundamentos filosóficos que devem nor- tear a proposta pedagógica para o Ensino Médio trazem em si valores universais imprescindíveis e provocam a necessidade de serem investidos de uma significação própria em cada unidade escolar. Entretanto, uma vez estabelecido esse caráter inovador e instigante, presente na formulação das di- retrizes, cabe também alertar para o risco que pode vir a representar a formulação de interpretações mais apres- sadas devendo ser considerado como uma sombra que poderá en- cobrir a luminosidade dessas ideias. Os parâmetros curriculares se apresentam permeados por con- ceitos clássicos, porém abstratos, e que se prestam, por sua natureza, Imagem 1 – A Vítima da Glo- balização – Paulo Caruso. Fundamentos filosóficos e pedagógicos do Ensino Médio 12 a interpretações ambíguas e contraditórias, que podem comprometer os objetivos da proposta, chegando até mesmo à consecução de uma ação educativa em sentido contrário. A apropriação e a manipulação desses conceitos, podem, sob uma nova roupagem, reafirmar e manter modelos conservadores e excludentes. Como nos aler- ta o filósofo Paulo Eduardo Arantes na conferência “O pensamento único tem cura?”, tem sido ideia corrente em setores da política e na mídia internacional que a partir da década de 1990, após a queda do muro de Berlim, os antagonismos ideológicos teriam sido superados, dando espaço a um pensamento único (consensual). Pros- segue afirmando que é comum se observar hoje, no discurso político de partidos liberais, o conceituário outrora exclusivo dos partidos de esquerda. No entanto, isso não significa que as contradições foram superadas, mas, sim, que a ação política foi reduzida a um perigoso economicismo que passa a estabelecer todas as regras para o funcionamento da sociedade. O mercado econômico passa a ser apresentado como depositário de todas as esperanças de uma sociedade mais justa. No pensamento único não há espaço para o debate ou divergência, logo, “somos todos iguais”. Nessa condição, pensar criticamente é opor-se à redução da vida humana à esfera restrita dos interesses econômicos. Pensar é sempre pensar revolucionariamente. A incompatibilidade entre os discursos oficiais e as estatísticas sociais, alar- mantes em todo o mundo, somada à ausência de um amplo debate envolvendo todos os protagonistas acerca dos possíveis caminhos para essa sociedade, compele-nos à reflexão. Com a preocupação de assegurar profundidade e melhor compreensão do objeto investigado, nos reportamos ao pensamento clássico com o intuito de proceder ao resgate da origem e significado dos conceitos de Política e Igualdade. Em que pese o fato de a Grécia Antiga não ser um modelo de comunidade po- lítica perfeita, foi em Atenas que a democracia encontrou sua melhor representação. Dela destacamos, para início desta reflexão, os conceitos de esfera pública e esfera privada, fundamentais na organização do mundo grego. É ideia recorrente hoje que o homem é um ser social e que a vida em socieda- de equivale à vida organizada politicamente. Porém, a concepção do zoon politikon (animal político) de Aristóteles persiste e fragiliza o argumento de que o homem é apenas um animal social. A vida em sociedade não é atributo exclusivo dos seres humanos, pelo contrário, é essa condição social que nos aproxima dos animais. A humanidade se caracteriza pelo estabelecimento de objetivos comuns e a partir das relações que o homem estabelece com a pólis (cidade-estado), tais como: justiça, igualdade e felicidade para todos. Reside nessa concepção a importância que os gre- gos atribuíam à vida pública e à política, entendida como a mais importante das artes gregas ou de todos os conhecimentos por eles produzidos. Na esfera pública, o homem desenvolvia seu bios-politikos por meio do exercício de atividades consideradas políticas, como a ação (práxis) e o discurso (léxis). Essas atividades, na experiência da pólis, foram se tornando independentes e o discurso pas- sou a ter grande importância para identificar o homemcomo ser político – aquele que decidia acerca da vida na pólis através do uso da palavra e da persuasão. No enten- dimento dos gregos, o uso da força ou da violência eram considerados métodos pré- -políticos, pertencentes ao espaço privado, ou seja, desenvolvidos no lar e na família. Fundamentos filosóficos e pedagógicos do Ensino Médio 13 A necessidade social estava localizada na Antiguidade, na casa (oikia) e na família – pertencentes à esfera privada, na qual os homens satisfaziam suas necessi- dades biológicas de sobrevivência e manutenção da espécie, estando assim condicio- nados a essas necessidades. Era a necessidade que reinava sobre todas as atividades exercidas no lar [...] A esfera da pólis, ao contrário, era a esfera da liberdade e, se havia uma relação entre essas duas esferas, era que a vitória sobre as necessidades da vida em família constituía a condição natural para a liberdade na pólis. (ARENDT, 1987, p. 40) No exercício da vida pública, em meio aos seus iguais, através do discurso e da ação, o homem grego se apresentava na sua individualidade: [...] era o único lugar em que os homens podiam mostrar quem realmente e inconfundivel- mente eram. Em benefício dessa possibilidade e por amor a um corpo político que propiciava a todos, cada um deles estava mais ou menos disposto a compartilhar do ônus da jurisdição, da defesa e da administração dos negócios públicos. (ARENDT, 1987, p. 51) A partir da Modernidade, as diferenças entre as esferas social e política vêm se diluindo. Com a promoção artificial do social à esfera pública, acontece um fal- seamento do verdadeiro sentido do exercício da política, que reduz a condição de cidadão à condição de indivíduo. A ação política, que dava a verdadeira identidade ao cidadão, foi se transformando na simples manutenção da vida e da espécie, o que distanciou o homem da condição de humanidade e o aproximou da condição de ani- malidade. Portanto, os homens foram se distanciando do verdadeiro sentido da co- munidade política e perdendo a capacidade de discursar e agir a partir de um objetivo comum. A construção da comunidade política que pressupunha o envolvimento de todos os cidadãos passa a ser imposta por instâncias externas à própria sociedade. A sociedade definida como “um conjunto de famílias economicamente organizadas de modo a constituir o fac-símile de uma única família sobre-humana e sua forma po- lítica de organização denominada nação,”(ARENDT, 1987, p. 38) é uma construção presente na Modernidade na qual a política passa a ser entendida apenas como uma função dessa sociedade e na qual a ação, o discurso e o pensamento são decorrentes do interesse social de uma parcela dessa sociedade – as elites dominantes. Neste particular, pouco importa se uma nação se compõe de homens iguais ou desiguais, pois a sociedade exige sempre que seus membros ajam como se fossem membros de uma enorme família dotada apenas de uma opinião e de um único interesse. (ARENDT, 1987, p. 49) Um fato decisivo é que a sociedade, em todos os seus níveis, exclui a possibilidade de ação, que antes era exclusiva do lar doméstico. Ao invés de ação, a sociedade espera de cada um dos seus membros um certo tipo de comportamento, impondo inúmeras e variadas regras, todas elas tendentes a “normalizar” os seus membros, a fazê-los “comportarem-se”, a abolir a ação espontânea ou a reação inusitada. (ARENDT, 1987, p. 50) Contrapondo-se ao funcionamento das sociedades heterônomas (aquelas que rece- bem as normas, as regras, as leis, de fora, de outro), surge a noção de privatividade, ou seja, aquilo que é de fórum íntimo. Porém, esse caráter privativo possui uma certa ambiguida- de, da mesma forma que assegura o espaço privado da intimidade, pode também represen- tar o espaço da privação – privado da ação na esfera pública – provocando um isolamento radical do sujeito, o que em nada contribui para o desenvolvimento de sua autonomia. Para Rousseau, como reação às normatizações impostas pela sociedade, o homem deve se manter fiel à “intimidade do coração”. A intimidade surge como uma “alternativa” às “exigências niveladoras do social”, ao conformismo presente nessas sociedades. Fundamentos filosóficos e pedagógicos do Ensino Médio 14 Após o declínio de sua vasta e gloriosa esfera pública, os franceses tornaram-se mestres da arte de serem felizes entre “pequenas coisas”, dentro do espaço de suas quatro paredes, entre o armário e a cama, entre a mesa e a cadeira, entre o cão, o gato e o vaso de flores, dedicando a estas coisas um cuidado e uma ternura que, num mundo em que a rápida industrialização destrói constantemente as coisas de ontem para produzir os objetos de hoje, pode até parecer o último recanto puramente humano do mundo. (ARENDT, 1987, p. 61) O equívoco no entendimento daquilo que hoje se insiste em chamar de esfera pública se agravou com o surgimento da sociedade de massa – entendida como a junção de vários grupos sociais formando uma única sociedade. Abrangendo todos os membros de uma determinada comunidade, a sociedade de massas passa então a controlá-los e normatizá-los. Estabelece-se um deturpamento do Princípio da Igual- dade – ser igual é obedecer às mesmas normas. Não existe entre os membros dessa sociedade um projeto coletivo, um bem comum. Conviver no mundo significa essencialmente ter um mundo de coisas interposto entre os que nele habitam em comum, como uma mesa se interpõe entre os que se assentam ao seu redor; pois, como todo intermediário, o mundo ao mesmo tempo separa e estabelece uma relação entre os homens. A esfera pública, enquanto mundo comum, reúne-nos na companhia uns dos outros e contudo evita que colidamos uns com os outros, por assim dizer. O que torna tão difícil suportar na sociedade de massas não é o número de pessoas que ela abrange, ou pelo menos não é este o fator fundamental; antes, é o fato de que o mundo entre elas perdeu a força de mantê-las juntas, de relacioná-las umas às outras e de separá-las. A estranheza de tal situação lembra uma sessão espírita na qual determinado número de pessoas, reunidas em torno de uma mesa, vissem subitamente, por algum truque mágico, desaparecer a mesa entre elas, de sorte que duas pessoas sentadas em frente uma à outra já não estariam separadas, mas tampouco teriam qualquer relação tangível entre si. (ARENDT, 1987, p. 62) Imagem 2 – Estudantes de Curitiba participam de manifestação pelo passe escolar, 1993 – Jairo Marçal. O Estado de Direito garante a todos os cidadãos a igualdade perante as leis, po- rém sabemos que historicamente em nosso país há um descompasso entre o que a lei propõe e a realidade vivida pela sociedade. A partir dessa análise, constatamos que a Política da Igualdade, mais que uma garantia, deve ser uma construção permeada de Fundamentos filosóficos e pedagógicos do Ensino Médio 15 contradições e obstáculos de várias naturezas. O filósofo francês, Jacques Rancière, seguramente um dos mais originais pensadores políticos dos nossos dias, defende a tese de que a democracia, longe de ser um espaço de harmonia a priori, encontra sua melhor definição na palavra dissenso e explica que desde o seu surgimento a democra- cia se configura como a luta daqueles que têm suas pretensões ao poder asseguradas, seja pelo nascimento ou pelo poder econômico, contra aqueles destituídos de qualquer parcela de poder. A possibilidade única dos “sem parcela” lutarem pelo poder que lhes cabe é a palavra. Não é por acaso que a palavra tem sido na história do mundo ocidental objeto de duras disputas. Historicamente tem sido uma estratégia de manutenção do poder, a subtração dos plebeus da racionalidade de seu discurso, tornando-o suposta- mente sem significado ou sentido. Essa estratégia justifica o fato de que o discurso da plebe, bem como suas pretensões ao poder, têm sido tratadas como um escândalo. O filósofo britânico Bertrand Russel, prêmio Nobel de Litera- tura, foi preso em 1961, aos 89 anos, devido à suacampanha pelo desarmamento nuclear. Imagem 3. Para precisar essa especificação do dissenso fundador da política proponho examinar um outro enunciado fundador e aparentemente sem problema da filosofia política. Por exemplo, na passagem do livro I da Política em que Aristóteles estabe- lece o signo da destinação naturalmente política do homem: de todos os animais, o homem é o único que tem capacidade do logos, da palavra. A voz (phone) é comum ao homem e aos outros animais que, como ele, exprimem por meio dela prazer ou sofrimento. Mas somente o homem tem a palavra, que permite manifestar o útil e o prejudicial e, em consequência disso, o justo e o injusto. Tudo parece, portanto, claro: quando se está diante de um animal que discursa, sabe-se que é um animal humano, portanto político. Mas, na prática, uma coisa é muito menos clara: como se reconhece Fundamentos filosóficos e pedagógicos do Ensino Médio 16 exatamente como um discurso aquele ruído que o animal diante de nós faz com sua boca? Esse reconhecimento não é, justamente, natural. Ele próprio supõe uma sub- versão da ordem normal das coisas. Aquele que recusamos contar como pertencente à comunidade política, recusamos primeiramente ouvi-lo como ser falante. Ouvimos apenas o ruído no que ele diz. É o que nos mostra um pensador francês do século XIX, Ballanche, ao rees- crever à sua maneira o relato de uma das grandes narrativas fundadoras da querela política, a narrativa da secessão dos plebeus romanos no monte Aventino. No relato de Tito Lívio, os plebeus em revolta eram reconduzidos à ordem pelo discurso de um patrício, Menêmio Agripa, que lhes explicava, por meio de uma fábula, a ordem social. Ele lhes explicava que a cidade era um grande corpo cujas partes eram todas solidárias. Nesse corpo, os braços plebeus e o centro vital patrício eram igualmente necessários, mas não evidentemente de igual dignidade. Eis aí uma perfeita fábula policial: uma fábula da boa distribuição de cada um em seu lugar e em sua função. A originalidade de Ballanche é mudar o argumento da narrativa e seu sentido. Ele a transforma numa querela em que a questão é justamente saber se os plebeus falam ou não. Os plebeus, em seu relato, exigem um acordo com os patrícios. Os patrícios intran- sigentes respondem que isso é impossível, por uma razão muito simples. Um acordo liga duas partes que comprometem sua palavra. Mas, para comprometer sua palavra, é preciso tê-la. Ora, os plebeus não falam. É verdade que houve um emissário que foi ao local e assegura tê-los ouvido falar. Mas seus colegas lhe provam que é uma ilusão de seus sentidos, já que eles não podem falar. Sua pretensa fala não é mais que um som fugaz, uma espécie de mugido que é o signo da necessidade e não a manifestação da inteligência. (RANCIÈRE, 1996) É atributo da escola o uso da palavra e o direito ao significado do discurso e somente a consciência dessa condição, pela comunidade escolar, poderá possibilitar a construção da Política da Igualdade. Expressões inspiradoras e inconformistas da nossa história oportunamente podem se fazer presentes, a fim de iluminar e contri- buir com essa tese acerca do direito à palavra. O silêncio da maioria Paulo Leminski A voz da maioria silenciosa é silêncio cúmplice o silêncio de quem compactua com o silêncio de Hitler e deixa prosseguir o silêncio de Graciliano o silêncio comodista dos que dançam conforme a música o silêncio dos que fingem que não sabem o silêncio dos que fazem de conta que não têm nada com isso o silêncio comprado com a boa vida o silêncio dos que dizem Fundamentos filosóficos e pedagógicos do Ensino Médio 17 viva e deixe viver um toque de silêncio um minuto de silêncio antes da iluminação. 1. Com base no texto “Educação e sociedade”, apresente uma concepção de escola. 2. Apresente as diferenças entre as esferas pública e privada na Antiguidade, e comente a contri- buição desses conceitos para a construção de uma Política da Igualdade. Fundamentos filosóficos e pedagógicos do Ensino Médio 18 3. A partir das concepções de Paulo Arantes em “Pensamento único”, e Jacques Rancière em “O dissenso”, analise a questão “dos direitos” na democracia brasileira. 4. Dos elementos que compõem o conceito de Política da Igualdade, quais estão presentes e quais não estão incorporados no cotidiano da sua escola? Como construir os possíveis caminhos para o seu desenvolvimento? Antonio Candido – professor aposentado de Teoria Literária e Literatura Comparada na USP; crítico e historiador de literatura. Publicou, entre outros: Formação da Literatura Brasileira – momentos decisivos (1959). Fundamentos filosóficos e pedagógicos do Ensino Médio 19 Antônio Joaquim Severino – professor de Filosofia da Educação da Faculdade de Educação da USP. Publicou, entre outros, os seguintes trabalhos: Metodologia do Trabalho Científico (1990); Métodos de Estudo para o 2.° Grau (1990); A Filosofia no Brasil (1990); Filosofia – Coleção Ma- gistério 2.° Grau (1994). Émile Durkheim (1858-1917) – pensador francês, considerado o pai da Sociologia. Publicou: As Regras do Método Sociológico (1895); Da Divisão Social do Trabalho; Educação e Sociologia; O Suicídio, entre outras. Florestan Fernandes (1920-1995) – sociólogo paulista. Publicou, entre outros: A Organização Social dos Tupinambás (1963); A Integração do Negro na Sociedade de Classes (1978); Da Guerrilha ao Socialis- mo: a Revolução Cubana (1979); A Revolução Burguesa no Brasil – Ensaio de Interpretação Sociológi- ca (1981); A Ditadura em Questão (1982); Pensamento e Ação – o PT e os rumos do socialismo (1989). Hannah Arendt (1906-1975) – filósofa e pensadora social alemã de origem judia, publicou, entre outros: As Origens do Totalitarismo (1951); A Condição Humana (1958); Eichmann em Jerusalém (1963); The Life of the Mind (1978). Heloísa Rodrigues Fernandes – professora de Sociologia na USP. Publicou: Sintoma Social Dominan- te e Moralização Infantil, (1994); “Infância e modernidade: doença do olhar” (In: Infância, Escola e Modernidade – 1997), entre outras. Hilton Japiassu – professor e pesquisador nas áreas de Epistemologia e Filosofia das Ciências, atua na UFRJ. Publicou, entre outros: Interdisciplinaridade e Patologia do Saber (1976); O Mito da Neutralidade Científica (1975); A Pedagogia da Incerteza (1983); A Crise da Razão e do Sa- ber Científico (1996). lmmanuel Kant (1724-1804) – filósofo alemão. Principais obras: Crítica da Razão Pura (1781); Pro- legômenos a qualquer Metafísica Futura que Possa Vir a Ser Considerada como Ciência (1783); Fundamentos da Metafísica dos Costumes (1785); Crítica da Razão Prática (1788). Jacques Rancière – professor no Departamento de Filosofia da Universidade de Paris VIII. Publicou: A Noite dos Proletários (1988); Os Nomes da História (1994); O Desentendimento – política e filosofia (1996); O Dissenso (1996). Jean-Jacques Rousseau (1712-1778) – filósofo suíço. Publicou: Discurso Sobre as Ciências e as Ar- tes (1748); Discurso sobre a Origem e os Fundamentos da Desigualdade entre os Homens (1755); Emílio ou da Educação (1757); O Contrato Social (1757); Devaneios de um Caminhante Solitário (1776), entre outros. Paulo Eduardo Arantes – ex-professor do Departamento de Filosofia da USP, tem se dedicado ao estudo das ideias filosóficas no Brasil. Publicou, entre outros: Hegel: a ordem do tempo (1981); Um Departamento Francês de Ultramar (1994); Dicionário de Bolso – do almanaque philosophico zero à esquerda (1997). Paulo Leminski (1944-1989) – poeta, romancista, ensaísta e compositor curitibano. Publicou, en- tre outros: Catatau (1975); Polonaises (1982); Trotski (1986); Distraídos Venceremos (1987); Guerra Dentro da Gente (1988). Fundamentos filosóficos e pedagógicos do Ensino Médio 20 ARENDT, Hannah. A Condição Humana. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1987. CANDIDO, Antonio. Tendências no desenvolvimento da sociologia na educação. In: PEREIRA, Luís; FORACCHI, Marialice M. (Orgs.).Educação e Sociedade. São Paulo: Nacional, 1985. FERNANDES, Heloísa Rodrigues. Infância e modernidade: doença do olhar. In: GHIRALDELLI JÚNIOR, Paulo (Org.). Infância, Escola e Modernidade. São Paulo: Cortez; Curitiba: UFPR, 1997. HISTÓRIA do pensamento. Barcelona: Orbis, 1983. MARÇAL, Jairo. Pós-Modernismo: a agonia da moderna cultura ocidental. Curitiba, 1989. Mono- grafia (Especialização em Antropologia Filosófica – Escola de Frankfurt), Departamento de Filosofia, Universidade Federal do Paraná. NOVAES, Adauto (Org.). A Crise da Razão. São Paulo: Cia das Letras, 1996. RANCIÈRE, Jacques. Odissenso. In: NOVAES, Adauto (Org.). A Crise da Razão. São Paulo: Cia das Letras, 1996. SEVERINO, Antonio Joaquim. A Filosofia Contemporânea no Brasil: conhecimento, política e educação. Petrópolis: Vozes, 1997. Ética da Identidade O homem nasce livre e em toda a parte encontra-se a ferros. O que se crê senhor dos demais, não deixa de ser mais escravo do que eles. Rousseau O estudo da Ética não tem a finalidade de inculcar regras, de educar para a obediência tácita, mas, sim, de possibilitar o acesso às diversas concepções de moral e, consequentemente, à análise crítica, ao debate e à compreensão de que as regras e as leis são criações humanas e, por não terem origem natural ou divina, são passíveis de transformações e mudanças. Nesse sentido, podemos afir- mar que a Ética é o estudo da liberdade. Moral (Dicionário Aurélio): conjunto de regras de conduta consideradas como válidas, quer de modo absoluto para qualquer tempo ou lugar, quer para grupo ou pessoa determinada. Ética (Dicionário Aurélio): estudo dos juízos de apreciação que se referem à conduta humana, suscetível de qualificação do ponto de vista do bem e do mal, seja relativamente a determinada sociedade, seja de modo absoluto (universal). Ética (Marilena Chauí): estudo dos valores morais (as virtudes), da relação entre vontade e paixão, vontade e razão; finalidades e valores da ação mo- ral; ideias de liberdade, responsabilidade, dever, obrigação etc. A Moral é definida por Marilena Chauí como uma criação histórico-cultural contrapondo- se às tendências que tentam apresentar os valores morais (ideias constituídas sobre o bem, o mal, a justiça, a injustiça, a liberdade, a responsabilida- de, a felicidade) como sendo naturais. Entende-se por cultura tudo o que o homem cria ou aquilo que altera na natureza; a maneira como os homens in- terpretam a si mesmos e suas relações com a natu- reza dando-lhes novos significados. A concepção naturalizadora da moral é um artifício criado pela humanidade para determinar, garantir e manter os padrões e os valores através dos tempos e das ge- rações. As sociedades historicamente não cultivam o exercício da Ética – a reflexão crítica dos valores morais – pelo contrário, impõem os valores de for- ma arbitrária e unilateral, identificando a origem destes ora na natureza, ora como criação divina, Imagem 4. Ética da Identidade 22 portanto, como sendo absolutos, dogmáticos e imutáveis. A coibição da reflexão acer- ca dos valores instituídos ou da possibilidade da criação dos seus próprios valores reduz os seres humanos a coisas (sujeitos em objetos), o que se caracteriza por um ato de vio- lência moral. Considerando que a humanidade dos humanos reside no fato de serem racionais, dotados de vontade livre, de capacidade para comunicação e para a vida em sociedade, de capacidade para interagir com a natureza e com o tempo, nossa cultura e sociedade nos definem como sujeitos do conhecimento e da ação, localizando a violência em tudo aquilo que reduz um sujeito à condição de objeto. Do ponto de vista ético, somos pessoas e não podemos ser tra- tados como coisas. Os valores éticos se oferecem, portanto, como expressão e garantia de nossa condição de sujeitos, proibindo moralmente que nos transformem em coisas usadas e manipuladas por outros. (CHAUÍ, 1994, p. 337) A proposição de uma Ética da Identidade, como um dos fundamentos do En- sino Médio, pode, se compreendida na sua profundidade e encaminhada de acordo com a sua verdadeira finalidade, inaugurar uma fase de profundas reflexões e de transformações significativas na práxis educacional brasileira. Entendemos que Ética e Política são indissociáveis, porque, como já afirmamos anteriormente, uma comu- nidade, ao se organizar politicamente, deve fazê-lo em função de finalidades éticas – a busca dos valores de bem, justiça, igualdade e felicidade para todos. Nesse sentido, é fundamental que todas as instâncias envolvidas nesse processo, da mantenedora aos protagonistas da ação educativa na unidade escolar, tenham consciência da im- portância, da dimensão e da dificuldade dessa tarefa, principalmente se considerar- mos o conservadorismo histórico presente nas mais diversas instituições brasileiras – família, igreja, escola, governo, representação política, entre outros. Considerando que os homens vivem em sociedade na busca de um bem co- mum – viver melhor para viver feliz –, podemos dizer que a base da relação política de uma sociedade são os valores morais. A ética é sobretudo uma discussão acerca dos valores morais. Propor a Ética da Identidade como fundamento de uma escola é propor a reflexão sobre os valores estabelecidos e instituídos e a construção de novos valores. A pensadora social, Hannah Arendt, desenvolveu a categoria de vita activa a partir de três conceitos: o labor – expresso pelo próprio metabolismo; o trabalho – al- terações promovidas pelo homem na natureza; e a ação – representada pelas relações exclusivamente humanas, o homem com os seus semelhantes. Essa ação se funda- menta no discurso. Hannah Arendt ressalta que a ação é um atributo exclusivamente humano e a apresenta como um segundo nascimento do homem, o seu nascimento para a vida humana. A Identidade só pode ser construída a partir da ação. Agir, no sentido mais geral do termo, significa tomar iniciativa, iniciar, imprimir movimento a alguma coisa. Por constituírem um initium, por serem recém-chegados e iniciadores, em virtude do fato de terem nascido, os homens tomam iniciativa, são impelidos a agir. [...] O fato de que o homem é capaz de agir significa que se pode esperar dele o inesperado, que ele é capaz de realizar o infinitamente improvável. E isto, por sua vez, só é possível porque cada homem é singular, de sorte que, a cada nascimento, vem ao mundo algo singularmente novo. Desse alguém que é singular pode-se dizer, com certeza, que antes dele não havia ninguém. Se a ação, como início, corresponde ao fato do nascimento, se é a efetivação da condição hu- mana da natalidade, o discurso corresponde ao fato da distinção e é a efetivação da condição humana da pluralidade, isto é, do viver como ser distinto e singular entre iguais. (ARENDT, 1987, p. 190-191) Nessa linha de abordagem, o pensamento de Gerd Bornheim amplia o nosso Ética da Identidade 23 entendimento do grau de complexidade existente na organização da sociedade entre o estabelecimento de normas e a singularidade humana. Entre o sujeito e a norma existe uma relação eminentemente tensa e conflituosa, uma vez que todo estabelecimento de uma norma implica cerceamento da liberdade “e, que compete à tessitura das forças sociais convencionar entre ambos alguma forma de equilíbrio; ou então, por vezes, reconhecer que o equilíbrio se faz difícil e mesmo impossível”. (BORNHEIM, 1997, p. 247) Imagem 5. Consciência moral é a capacidade de o sujeito conhecer os valores morais, avaliá-los segundo sua razão, sua vontade, seu desejo e, a partir disso, decidir pelo seu acatamento ou sua transgressão. Esse exercício de liberdade e autonomia implica um ato de responsabilidade para consigo mesmo e para com a sociedade. De todos os filósofos que refletiram sobre a Moral, F. Nietzsche foi, sem dú- vidas, o mais radical. A originalidade do seu pensamento decorre do grau de ques- tionamento acerca dos valores morais vigentes na sociedade do seu tempo. Aética nietzscheana é intransigente quanto ao direito de questionamento dos valores esta- belecidos, e mais, exige também o direito de que cada ser humano possa ser o cons- trutor/senhor dos seus próprios valores. Nietzsche se refere a uma superação radical do papel de submissão imposta pelas normas de conduta e valores reacionários aos indivíduos. Sua filosofia é um convite a uma transvaloração dos valores. Trata-se de perguntar em que consistem, como são instituídos, como se acham fundamentados os valores morais. Trata-se, ainda, de reinventá-los. A atitude de negação, questionamento e mesmo de transgressão das normas e valores vigentes perpassa toda a obra de Nietzsche e se apresenta de forma contun- dente na Genealogia da Moral, na qual o pensador utiliza estudos históricos dos fun- damentos da moral judaico-cristã, a fim de provar que os valores morais, sobretudo os de bem e mal, não se constituem por princípios metafísicos/religiosos e atempo- rais, mas que têm origem histórica, são criações humanas, demasiadamente humanas e diferem de sociedade para sociedade através dos tempos. Ética da Identidade 24 O único imperativo moral aceito por Nietzsche é o valor da vida traduzido por ele como vontade de potência. É dessa vontade de potência, para realização da vida, que devem nascer os valores morais. Negar a vontade de potência significa para Nietzsche reprimir a própria vida. Portanto, a moral conser- vadora, que desrespeita esse princípio, é autoritária e violenta, devendo ser transgredida. O seu método genealó- gico de investigação leva-o à descoberta de uma origem dis- torcida e até mesmo de uma in- versão dos valores de bem e mal e das virtudes como compai- xão, renúncia, abnegação, pie- dade e altruísmo, entre outras, tão propagadas e defendidas pela moral da nossa sociedade. “Necessitamos uma crítica dos valores morais, e antes de tudo deve discutir-se o valor desses valores, e por isso é de toda a necessidade conhecer as condi- ções e os meios ambientes em que nasceram, em que se de- senvolveram e deformaram”. (NIETZSCHE, 1976, p. 13) Nietzsche argumenta que existe uma moral de senhores e uma moral de escravos, uma moral de fortes e uma moral de fracos e que, muitas vezes, essas morais coexistem numa mesma pessoa. A origem dos valores de bem e de mal é diferente para senhores e para escravos. Uma vez que o primeiro (valor do senhor) surge de uma autoafirmação e o último (valor do escravo) de uma negação e oposição, eles não podem ser equivalentes. [...] O valor “bom” de uma moral corresponde exatamente ao valor “mau” da outra. Enquanto os fortes afirmam: nós nobres, nós bons, nós belos, nós felizes; os fracos dizem: se eles são maus então nós so- mos bons. Portanto, “mau” no sentido da moral do ressentimento é precisamente o nobre, o corajoso, o mais forte; é o “bom” da moral dos senhores. (MARTON, 1993, p. 54) Pode-se concluir que a origem dos valores da moral dos fracos consiste numa inversão, numa mera reação. Não sendo capazes de criar seus próprios valores, os Imagem 6. Ética da Identidade 25 fracos (ressentidos) precisam negar os fortes para só então estabelecerem as bases da sua moral. Por não poderem admitir essa fragilidade e incapacidade de criar seus próprios valores, os fracos deslocam a origem dos valores tirando-a do domínio hu- mano e transferindo-a para um plano metafísico. Criados desde sempre, sobrehuma- nos e divinos, os valores devem ser apenas obedecidos. Trata-se de tentar impor aos fortes a culpa pela sua ação criadora de valores, transformando-a em desobediência às leis divinas e, com esse artifício, garantir a manutenção dos seus valores fracos, deturpados e invertidos. O homem do ressentimento traveste sua impotência em bondade, a baixeza teme- rosa em humildade, a submissão aos que odeia em obediência, a covardia em paci- ência, o não poder vingar-se e não querer vingar-se e até perdoar, própria miséria em aprendizagem para a beatitude, o desejo de represália em triunfo da justiça divina so- bre os ímpios. (MARTON, 1993 p. 54) O projeto nietzscheano da transva- loração dos valores traduz-se numa bus- ca sem tréguas pela superação da moral niilista – desprovida de qualquer sentido. É, sobretudo, a busca da liberdade, da condição fundamental para a construção da verdadeira identidade humana. Na contramão dessas ideias de liberdade trazidas para o debate por meio das diversas leituras possíveis dos fundamentos filosóficos da nova proposta do Ensino Médio, anunciam-se espasmos de uma moral reacionária. Valendo-se da complexi- dade do aprendizado da vivência democrática, que é por sua natureza geradora de conflitos, sobretudo, quando envolvidas questões de poder, de valores, de estabeleci- mento de regras no espaço coletivo – a escola –, essas tendências conservadoras têm divulgado apelos, que embora estranhos e avessos à dinâmica do diálogo, se prestam a impor valores já superados. Publicações recentes, apoiadas por setores da mídia, anunciam um suposto fracasso do processo de construção de Autonomia, Identidade e Diversidade. Tais publicações: Condenam Confundem Brincos na orelha, bonés, roupas “esfarrapadas”. Questionamento com falta de respeito. Determinam Trocam Meninas de um lado e meninos de outro, O diálogo pela punição. A volta da fila. A discussão sobre as consequências do vício pela proibição de fumar. A hierarquia dos papéis. O diretor que não fala com alunos fora de sua sala. A reflexão sore os valores morais pelo cultivo das “boas maneiras”. A volta do castigo físico. A volta dos uniformes de gravatinha, terninho e saia plissada. Imagem 7 – Diferenças. Ética da Identidade 26 Estética da Sensibilidade Para Marx, a relação entre o homem e o mundo é estética, isto é, baseia-se na sensibilidade. Sua estética propõe o resgate da unidade entre intelecto e sensibilida- de, perdida na tradição preponderantemente racionalista do mundo ocidental e nas relações impostas pelo sistema capitalista. “O homem se afirma no mundo objetivo não apenas no pensar, mas também com todos os sentidos” (MARX, 1987, p. 178). Os sentidos humanos (audição, olfato, paladar, tato e visão) são vistos por Marx de duas formas, como sentidos naturais/biológicos/instintivos e também como sentidos transformados pela cultura – humanizados. Para o ouvido não musical a mais bela música não tem sen- tido algum, não é objeto [...]. A formação dos cinco sentidos é um trabalho de toda a história universal até os nossos dias. (MARX, 1587) Assim como na práxis da Política e da Moral, também na Estética os conceitos e valores presen- tes são construções histórico-sociais. Nessa traje- tória de atribuição de significados aos sentidos, ao invés da busca de plenitude da sua realização como ser humano, o homem vai reduzindo e limitando o uso desses sentidos na sua relação com o mundo. Do legado deixado pelo Iluminismo para a huma- nidade, se evidencia como negativa a concepção de que a razão seria capaz de, sozinha, explicar a totalidade dos fenômenos naturais e da existência humana. É nesse período que a ciência, produto da razão humana, inicia um processo de grande efervescência e desen- volvimento, oferecendo ao mundo a tecnologia que iria prover as so- ciedades com instrumentos e ob- jetos que trariam mais facilidade e conforto ao homem. Essa expe- riência de transformação da socie- dade moderna, juntamente com o assédio da produção tecnológica- -industrial, que inaugura a socie- dade de consumo, fortaleceu o “consenso” de que o conhecimento humano verdadeiro só poderia ser atingido por meio da razão. Na supremacia da razão so- bre a sensibilidade, imposta pelo mundo científico-industrial, a sen- sibilidade foi se caracterizando como um adorno, um enfeite, um componente não Imagem 8 – Paris, 1968. Imagem 9 – Largo da Ordem – Curitiba (PR). Imagem 10 – Grafite em Curitiba – Jairo Marçal. Ética da Identidade 27 essencial para o conheci- mento e para a existênciahumana. A sociedade capi- talista pautada na produção e no consumo restringe de forma impositiva a vida hu- mana às regras do mercado econômico e põe em cena uma derivação menor da condição humana – o ho- mem unidimensional, aque- le voltado exclusivamente para o trabalho, para a rea- lização de suas necessida- des biológicas e para a ma- nutenção da espécie, o homem cada vez menos humano. Uma sociedade que vem sufocando o princípio do prazer em nome de um questionável princípio de realidade. As perdas decorrentes dessa unidimensionalização do homem são muito mais significativas do que um olhar apressado poderia revelar, elas atingem a essência do homem, sua inventividade, sua criatividade, sua imaginação, sua singularidade – a subjetividade humana. Uma sociedade de homens desprovidos desses atributos é uma sociedade sombria, autômata, padronizada, totalitária e, apesar de todas as imitações produzidas com o intuito de forjar uma beleza inexistente ou ilegítima, tudo o que essa sociedade consegue revelar é o seu oposto – a sua incapacidade de ser Estética. Uma sociedade jamais será Estética se não incorporar em sua dinâmica a Po- lítica e a Ética. A desconsideração dessas dimensões pode reduzir a Estética à mera maquiagem. Pensar a Estética da Sensibilidade é abrir caminho para a criatividade, a imaginação, a singularidade e a curiosidade pelo inusitado. A exemplo de tantos problemas psicológicos, as pesquisas sobre a imaginação são dificulta- das pela falsa luz da etimologia. Pretende-se sempre que a imaginação seja a faculdade de formar imagens. Ora, ela é antes a faculdade de deformar as imagens fornecidas pela percep- ção, é sobretudo a faculdade de libertar-nos das imagens primeiras, de mudar as imagens. Se não há mudança de imagens, união inesperada de imagens, não há imaginação, não há ação imaginante. Se uma imagem presente não faz pensar numa imagem ausente, se uma imagem ocasional não determina uma prodigalidade de imagens aberrantes, uma explosão de imagens, não há imaginação. Há percepção, lembrança de uma percepção, memória fami- liar, hábito das cores e formas. O vocábulo fundamental que corresponde à imaginação não é imagem, mas imaginário. O valor de uma imagem mede-se pela extensão de sua auréola imaginária. Graças ao imaginário, a imaginação é essencialmente aberta, evasiva. É ela, no psiquismo humano, a própria experiência da novidade. Mais que qualquer outro poder, ela especifica o psiquismo humano. Como proclama Blake: “A imaginação não é um estado, é a própria existência humana.” (BACHELARD, 1990, p. 1) Estética da Sensibilidade Para Marx, a relação entre o homem e o mundo é estética, isto é, baseia-se na sensibilidade. Sua estética propõe o resgate da unidade entre intelecto e sensibilida- de, perdida na tradição preponderantemente racionalista do mundo ocidental e nas relações impostas pelo sistema capitalista. “O homem se afirma no mundo objetivo não apenas no pensar, mas também com todos os sentidos” (MARX, 1987, p. 178). Os sentidos humanos (audição, olfato, paladar, tato e visão) são vistos por Marx de duas formas, como sentidos naturais/biológicos/instintivos e também como sentidos transformados pela cultura – humanizados. Para o ouvido não musical a mais bela música não tem sen- tido algum, não é objeto [...]. A formação dos cinco sentidos é um trabalho de toda a história universal até os nossos dias. (MARX, 1587) Assim como na práxis da Política e da Moral, também na Estética os conceitos e valores presen- tes são construções histórico-sociais. Nessa traje- tória de atribuição de significados aos sentidos, ao invés da busca de plenitude da sua realização como ser humano, o homem vai reduzindo e limitando o uso desses sentidos na sua relação com o mundo. Do legado deixado pelo Iluminismo para a huma- nidade, se evidencia como negativa a concepção de que a razão seria capaz de, sozinha, explicar a totalidade dos fenômenos naturais e da existência humana. É nesse período que a ciência, produto da razão humana, inicia um processo de grande efervescência e desen- volvimento, oferecendo ao mundo a tecnologia que iria prover as so- ciedades com instrumentos e ob- jetos que trariam mais facilidade e conforto ao homem. Essa expe- riência de transformação da socie- dade moderna, juntamente com o assédio da produção tecnológica- -industrial, que inaugura a socie- dade de consumo, fortaleceu o “consenso” de que o conhecimento humano verdadeiro só poderia ser atingido por meio da razão. Na supremacia da razão so- bre a sensibilidade, imposta pelo mundo científico-industrial, a sen- sibilidade foi se caracterizando como um adorno, um enfeite, um componente não Imagem 8 – Paris, 1968. Imagem 9 – Largo da Ordem – Curitiba (PR). Imagem 10 – Grafite em Curitiba – Jairo Marçal. Ética da Identidade 28 Imagem 12 – O Violeiro – José Ferraz de Almeira Júnior.Imagem 11 – Colin Cooper – Jairo Marçal. Imagem 13 – O Beijo – Augusto Rodin. A obra de arte, em sua particularidade e singulari- dade única oferece algo universal – a beleza – sem necessidade de demonstrações, provas, inferên- cias e conceitos. Quando leio um poema, escuto uma sonata ou observo um quadro posso dizer que são belos, ou que ali está a beleza, embora esteja diante de algo único e incomparável. O juízo de gosto teria, assim, a peculiaridade de emitir um julgamento universal, referindo-se, porém, a algo singular e particular. (CHAUÍ, 1994, p. 321) A sensibilidade estética transfor- ma em expressão artística a interpreta- ção que o homem faz do mundo e da sua existência. A arte é, entre as instâncias do conhecimento humano, a que oferece as maiores possibilidades de desenvolvi- mento da sensibilidade, tanto para quem produz – o artista – como para quem frui – o público. A escola pode se constituir como um espaço de fruição das obras de arte, originais ou reproduzidas, bem como de iniciação às diversas formas de expressão artística. Trata-se da democratização do acesso à arte, que às vésperas do século XXI, em que pese o fato de se dispor de avançados meios de comunicação, ainda é privilégio de poucos, com o agravante de que a indústria cultural, dirigida pelos interesses do mercado, impõe às camadas destituídas de poder uma estética do mau gosto. A democratização do acesso às diversas linguagens da arte deve perpas- Ética da Identidade 29 sar todas as áreas do conhecimento, não devendo ser compreendida como atributo exclusivo de algumas disciplinas ou áreas. Contra a concepção de natureza como objeto disponível e manipulável para a exploração, os frankfurtianos propõem a gratuidade da fruição estética e da arte. Na dimensão estética deli- neiam-se as potencialidades liberadoras da imaginação produtora e criadora, os poderes de Eros contra a civilização repressiva, porque a arte transcende a determinações espaço-tem- porais, vence a morte. A arte é testemunha de um outro princípio de realidade que não o da submissão à produtividade; ao desempenho do mundo competitivo do trabalho e da renúncia ao prazer. Trata-se de um princípio que reconcilia o homem com a natureza exterior, interior e com a história. Para os frankfurtianos Horkheimer, Adorno, Marcuse e Benjamim, a arte é o antídoto contra a barbárie. Os meios de comunicação de massa são o opos- to da obra de pensamento que é a obra cultural – ela leva a pensar, a ver, a refletir. As imagens publicitárias, televisivas e outras, em seu acú- mulo acrítico, nos impedem de imaginar. Elas tudo convertem em entretenimento: guerras, genocídios, greves, cerimônias religiosas, ca- tástrofes naturais e das cidades, obras de arte, obras de pensamento. A cultura, ao contrário, é para o frankfurtianos a quintessência dos di- reitos humanos. Em um mundo anti-intelectual, antiteórico e inimigo do pensamento autônomo, a razão ocupa lugar central. Cultura é pensa- mento e reflexão. Pensar é o contrário de obe- decer. (MATOS, 1993, p. 71-72) Apresentar como fundamento filosóficodo Ensino Médio a Estética da Sensibilida- de, pouco, ou até mesmo nunca abordada em qualquer proposta anterior, sem dúvida, abre um caminho importante para a inserção, com grande diversidade de alternativas, do mun- do sensível na construção do conhecimento. Entretanto, não devemos ingenuamente supor que tal inserção se fará por meio de uma “mágica de implantação de propostas”. Não basta proferir o discurso do incentivo, do “fazer acontecer.” Numa escola inspirada na Estética da Sensibilidade, o espaço e o tempo são planejados para acolher e expressar a diversidade dos alunos e oportunizar trocas de significados. Nessa esco- la, a descontinuidade, a dispersão caótica, a padronização, o ruído, cederão lugar à continui- dade, à diversidade expressiva, ao ordenamento e à permanente estimulação pelas palavras, imagens, sons, gestos e expressões de pessoas que buscam incansavelmente superar a frag- mentação dos significados e o isolamento que ela provoca. (PCN, 1999) É fundamental assegurar, como consequência de um intenso processo de dis- cussão e reflexão, o compromisso político e ético de todos os agentes envolvidos e indispensáveis na consecução da proposta. É necessário criar condições organi- zacionais, institucionais, estruturais e profissionais para que o desenvolvimento do sensível, a expressão artística, encontre no espaço e no tempo escolar alternativas de realização. Imagem 14 – Cinco Moças de Guaratinguetá – Di Cavalcanti. Ética da Identidade 30 1. Considerando as relações conflituosas existentes entre o sujeito e a norma, discorra sobre o sentido da transvaloração dos valores de Nietzsche. 2. A partir das ideias apresentadas acerca do significado de ética, elabore a sua própria concepção de uma Ética da Identidade no espaço da sua escola. 3. Quais os novos elementos trazidos pela Estética da Sensibilidade para o contexto escolar e de que forma eles podem colaborar qualitativamente com a Educação Básica? 4. Apresente alternativas para a construção de uma Estética da Sensibilidade dentro da escola. Ética da Identidade 31 Friedrich Nietzsche (1844-1900) – filósofo alemão. Principais obras: O Nascimento da Tragédia no Espírito da Música (1871); Humano, Demasiado Humano (1878); Assim Falou Zaratustra (1884); Para Além de Bem e Mal (1886); Para a Genealogia da Moral (1887). Gaston Bachelard (1884-1962) – filósofo francês. Principais obras: O Novo Espírito Científico (1934); A Psicanálise do Fogo (1938); A Filosofia do Não (1940); A Poética do Espaço (1957); O Ar e os So- nhos – ensaio sobre a imaginação do movimento (1943). Gerd Bornheim – professor de Filosofia na UFRJ. Publicou: Dialética: teoria e práxis (1983); O Idiota e o Espírito Objetivo; O sujeito e a norma (In: Ética, São Paulo, Cia das Letras, 1992); Crise da ideia de crise (In: A Crise da Razão, 1960); O bom selvagem como philosophe e a invenção do mundo sen- sível (In: Libertinos Libertários, 1996) entre outros. Karl Heinrich Marx (1818-1883) – filósofo, historiador e jornalista alemão. Principais obras: Manus- critos Econômicos-Filosóficos (1844); Teses Contra Feuerbach (1845); A Miséria da Filosofia (1847); Manifesto Comunista (1848); O 18 Brumário de Luís Bonaparte (1852); Para a Crítica da Economia Política (1859); O Capital (1867/1894). Marilena de Souza Chauí – professora de História da Filosofia e Filosofia Política na USP. É autora de: Cultura e Democracia: o discurso competente e outras falas (1986); O que é Ideologia (1981); Repres- são Sexual, essa nossa Desconhecida (1984); Convite à Filosofia (1994); Público, Privado e Despotismo (In: Ética, 1992); A Nervura do Real: liberdade e imanência em Espinosa (1999), entre outros. Olgária Chain Feres Matos – professora de Filosofia Política na USP. Publicou: Rousseau: uma arque- ologia da desigualdade; 1968: as barricadas do desejo; O Iluminismo Visionário: Walter Benjamin, leitor de Descartes e Kant; A Escola de Frankfurt: luzes e sombras do Iluminismo. Scarlet Marton – professora de Filosofia Moderna e Contemporânea na USP. Publicou, entre outros: Nietzsche: das forças cósmicas aos valores humanos (1990); Nietzsche: uma filosofia a marteladas (1982); Foucault: leitor de Nietzsche (1985); Nietzsche: a transvaloração dos valores (1993). Ética da Identidade 32 ARENDT, Hannah. A Condição Humana. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1987. BACHELLARD, Gaston. O Ar e os Sonhos: ensaios sobre a imaginação do movimento. São Paulo: Martins Fontes, 1990. BORNHEIM, Gerd. O sujeito e a norma. In: NOVAES, Adauto (Org.). Ética. São Paulo: Cia das Le- tras, 1992. BOTTOMORE, Tom (Ed.). Dicionário do Pensamento Marxista. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1988. BRASIL. Ministério da Educação. Secretaria de Educação Média e Tecnológica. Parâmetros Curri- culares Nacionais: Ensino Médio. Brasília, 1999. BULCÃO, Marli. O Racionalismo da Ciência Contemporânea: uma análise da epistemologia de Gaston Bachelard. Rio de Janeiro: Antares, 1981. CHAUÍ, Marilena. Convite à Filosofia. São Paulo: Ática, 1994. FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo Dicionário da Língua Portuguesa. 2. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986. HORKHEIMER, Max; ADORNO, Theodor W. Textos Escolhidos. São Paulo: Nova Cultural, 1989. (Coleção Os Pensadores). MARÇAL, Jairo. Pós-Modernismo: a agonia da moderna cultura ocidental. Curitiba, 1989. Mono- grafia (Especialização em Antropologia Filosófica – Escola de Frankfurt), Departamento de Filosofia, Universidade Federal do Paraná. MARTON, Scarlet. Nietzsche e a Transvaloração dos Valores. São Paulo: Moderna, 1993. MARX, Karl. Manuscritos Econômico-Filosóficos e outros Textos Escolhidos. 4. ed. São Paulo: Nova Cultural, 1987. (Coleção Os Pensadores). MATOS, Olgária C.F. A Escola de Frankfurt: luzes e sombras do iluminismo. São Paulo: Moderna, 1993. NIETZSCHE, Friederich. A Genealogia da Moral. Lisboa: Guimarães & Companhia de Editores, 1976. NOVAES, Adauto (Org.). Ética. São Paulo: Cia das Letras, 1992. O Livro da arte. São Paulo: Martins Fontes, 1999. RAMOS, Célia M. A. Grafite, Pichação e Cia. São Paulo: Annablume, 1994. Autonomia, Identidade e Diversidade – a complexidade da trajetória entre o ideal da proposta e sua operacionalização O estudo dos Parâmetros Curriculares para o Ensino Médio, incluindo o Pa-recer 15/98, embora não revele discordância com relação ao significado imediato do trinômio Autonomia, Diversidade e Identidade, denuncia o distanciamento entre aqueles que idealizaram a proposta e aqueles que efetivamente deverão colocá-la em prática. A forma excessivamente econômica na apresentação dos conceitos quanto à sua extensão e profundidade, juntamente com o compromisso e a responsabilidade atribuída aos protagonistas da ação educativa nas unidades escolares, provocam pre- ocupação e inquietação. Ao se remeter aos princípios norteadores, sejam eles a Polí- tica da Igualdade, Ética da Identidade, Estética da Sensibilidade, ou aos que estamos tratando nesta unidade: Autonomia, Diversidade e Identidade, a proposta estabelece com muito rigor os pontos de partida e de chegada, nesse último caso, anunciando inclusive os instrumentos avaliativos para mensuração dos resultados. Defende “me- canismos de prestação de contas que facilitem a responsabilização dos envolvidos”, entretanto, pouco investimento é destinado ao processo de elucidação da complexi- dade semântica e filosófica dessas ideias, bem como da sua execução pedagógica e administrativa. Talvez esse seja um bom começo para colocar em discussão o con- ceito de Autonomia. Autonomia Autonomia: auto-nomos (dar a si mesmo suas leis). Heteronomia: normas, regras e leis estabelecidas por outros. Anomia: ausência de leis. A criação pelos gregos da política e da filosofia é a primeira emergência histórica do projeto de autonomia coletiva e individual. Se quisermos ser livres devemos fazer nosso nomos. Se quisermos ser livres, ninguém pode dizer-nos o que devemos pensar. [...] Autonomia, Identidade e Diversidade– a complexidade da trajetória entre o ideal da proposta e sua operacionalização 34 A autonomia surge, como germe, assim que a interrogação explícita e ilimitada se manifesta, incidindo não sobre “fatos” mas sobre as significações imaginárias sociais e seu fundamento possível. Momento de criação, que inaugura não só outro tipo de sociedade; mas também outro tipo de indivíduo. Eu falo exatamente de germe, pois a autonomia, tanto social como in- dividual, é um projeto.[...] o que se pergunta é, no plano social: nossas leis são boas? Elas são justas? Que leis devemos fazer? E no plano individual: o que eu penso é certo? Posso saber se é certo e como? [...] O momento do nascimento da democracia e da política, não é o reinado da lei ou do direito, nem o dos “direitos do homem”, nem mesmo a igualdade dos cidadãos como tal: mas o surgimento, no fazer efetivo da coletividade, da discussão da lei. Que leis devemos fazer? Nesse momento nasce a política; em outras palavras nasce a liberdade como social-historicamente efetiva. (CASTORIADIS, 1992, p. 139-140) Propor no espaço escolar a discussão da Autonomia implica o difícil rompi- mento com um modelo heterônomo de funcionamento da escola, que se estende por toda a sociedade. Tal rompimento deve se dar sob duas perspectivas: internamente, envolvendo todos os sujeitos que compõem as unidades educacionais na elaboração de um projeto coletivo, numa ação reflexiva e deliberante estabelecendo de forma participativa todas as regras, normas e leis necessárias àquele contexto social; a ou- tra, na relação que as instituições que compõem o sistema de ensino estabelecem entre si, evitando, assim, esbarramentos em entraves burocráticos instituídos e limi- tações de cunho político-econômicas. Posso dizer que estabeleço a minha lei – quando vivo necessariamente sob a lei da sociedade? Sim num caso: se puder dizer reflexiva e lucidamente, que essa é também a minha lei. Para que possa dizer, não é necessário que a aprove: basta que eu tenha a possibilidade efetiva de participar ativamente da formação e do funcionamento da lei. A possibilidade de participar: se eu aceitar a ideia de autonomia como tal, o que evidentemente nenhuma “demonstração” pode me obrigar a fazer, nem tampouco pode me obrigar a colocar de acordo minhas palavras com meus atos, a pluralidade indefinida de indivíduos pertencendo à sociedade leva imedia- tamente à democracia como possibilidade efetiva de igual participação de todos, tanto nas atividades instituintes como no poder explícito. Pois o “poder” fundamental numa sociedade, o poder primeiro do qual dependem todos os outros, o que chamei mais acima de infra- poder, é o poder instituinte. [...] este poder não é localizável, nem formalizável pois está na dependência do imaginário instituinte. A língua, a “família”, os costumes, as “ideias”, uma quantidade inumerável de outras coisas e sua evolução quanto ao essencial, escapam da legislação. Além disso, na medida em que esse poder é participável, todos participam dele. Todos são “autores” da evolução da lín- gua, da família, dos costumes etc. (CASTO- RIADIS, 1992, p. 143-144) No processo de operacionaliza- ção da proposta, atribuir à instituição mantenedora, no caso da escola pública, a proposição de ações que assegurem reais condições para o desenvolvimen- to de um projeto autônomo em cada Imagem 15 – Frostispício da partitura de “A internacio- nal”, hino do movimento operário, composto em 1870 por Eugenio Pottier. Autonomia, Identidade e Diversidade – a complexidade da trajetória entre o ideal da proposta e sua operacionalização 35 unidade de ensino é condição essencial para que a Autonomia não se torne apenas mais uma apropriação indébita de um discurso emancipador, visando isentar o Estado de suas responsabilidades. Entre essas ações podemos citar o orçamento participativo; a corresponsabilidade na elaboração, desenvolvimento e resultados dos projetos; a de- finição conjunta de programas de qualificação profissional; o estabelecimento de um canal de diálogo permanente; a superação de imposições economicistas resgatando o verdadeiro papel do Estado e suas obrigações constitucionais. Nesse sentido, é preocu- pante para todos os envolvidos na ação educativa, a insistência com que o Estado vem sugerindo às escolas públicas que busquem “articulações e parcerias com instituições públicas ou privadas” ou ainda, as “fabulosas” campanhas publicitárias com “estórias sobre os amigos da escola”, num claro “disfarce” para encobrir sua isenção em mais uma forma de exclusão. (PCN, 1999. Adaptado.) Os movimentos emancipadores modernos, sobretudo o movimento operário, mas também o movimento das mulheres, colocaram a questão: pode haver democracia, ou pode haver, para todos que assim quiserem, igual possibilidade efetiva de participar do poder, numa sociedade onde existe e se reconstitui constantemente formidável desigualdade do poder econômico, imediatamente traduzível em poder político? Ou então, pode haver democracia, numa socie- dade que tendo concedido há algumas décadas, os “direitos políticos” às mulheres, continua de fato a tratá-las como “cidadãos passivos”? As leis da propriedade (privada, ou “do Esta- do”) caíram do céu? Em que Sinai foram recolhidas? (CASTORIADIS, 1992, p. 144-145) Toda e qualquer instituição – a escola, a mantenedora, o Estado – é feita pelos indivíduos que a ela pertencem, logo, é essencial a participação dessa coletividade no questionamento irrestrito do funcionamento da instituição. Castoriadis (1992, p. 142) pergunta – “Como compor uma sociedade livre a não ser a partir de indivíduos livres? E onde encontrar esses indivíduos se eles não puderam ser criados na liber- dade?”. Tais questões nos remetem à necessidade de pensarmos sobre a constituição da Autonomia Individual. O que pressupõe o conhecimento da subjetividade humana, da sua psique, da existência de um inconsciente pulsional, da configuração de signifi- cações próprias que atribuem um sentido singular à existência – elementos essenciais para a sua lucidez, para a capacidade de reflexão e de relação com o seu presente e com a história. A autoalteração que se origina a partir da reflexão sobre a sua própria subjetividade, das suas relações com o mundo exterior e da sua capacidade de deli- beração lúcida, liberta o sujeito da condição de produto da sua psique, da história e da instituição que o constituiu. Castoriadis (1992, p. 141) diz que “a formação de uma instância reflexiva e deliberante, da verdadeira subjetividade, libera a imaginação radical do ser humano singular, como fonte de criação e alteração. [...] a instância reflexiva desempenha um papel ativo e não predeterminado.” Ao se chamar a atenção para a importância do desenvolvimento da autonomia individual provoca-se, automaticamente, a discussão sobre a Identidade, não por aca- so, o próximo ponto do trinômio a ser apresentado. Autonomia, Identidade e Diversidade – a complexidade da trajetória entre o ideal da proposta e sua operacionalização 36 Identidade Imagem 16 – Encontro (litogravura) – Escher. A construção de uma Identidade1 Pessoal pressupõe um processo subjetivo. Em tempos globalitários – economia globalizada e a consequente ameaça de totalita- rismo – essa subjetividade aparece ameaçada por uma verdadeira onda homogenei- zadora destruidora de todos os vestígios traçados e marcas singulares que constituem os referenciais identitários. Em sua volta, cada um sente perfeitamente que o álibi da modernidade serve para dobrar tudo sob o implacável nível de uma estéril uniformidade. Um estilo de vida semelhante se impõe de um extremo ao outro do planeta, divulgado pela mídia e prescrito pela intoxicação da cultura de massa de La Paz a Ouagadougou, de Kyoto a São Petersburgo, de Oram a Amsterdam, mesmos filmes, mesmas séries de televisão, mesmas informações, mesmas canções, mesmos slogans publicitários, mesmos objetos, mesmas roupas, mesmos carros, mesmo urbanismo,mesma ar- quitetura, mesmo tipo de apartamentos, muitas vezes, mobiliados e decorados de maneira idên- tica [...] Nos quarteirões abastados das grandes cidades do mundo, o requinte da diversidade cede lugar à fulminante ofensiva da padronização, da homogeneização, da uniformização. Por toda parte, triunfa a world culture, a cultura global. (RAMONET, 1998, p. 47) Referenciais identitários uniformes e flutuantes que mudam ao “sabor dos mo- vimentos dos mercados e com igual velocidade”(ROLNIK, 1997, p. 20) passam a imprimir na identidade dos indivíduos uma marca de insegurança, estranhamento e vazio. A vida humana, reduzida aos interesses estritos da economia, demanda das 1.Identidade (Di-cionário Aurélio) – Conjunto de caracteres próprios e exclusivos de uma pessoa: nome, idade, estado, profissão, sexo, defeitos físicos, impressões digitais etc. Autonomia, Identidade e Diversidade – a complexidade da trajetória entre o ideal da proposta e sua operacionalização 37 pessoas uma adequação imediata às exigências volúveis de um mercado, acirrando relações de competitividade. Essa situação acaba desencadeando na relação desses indivíduos com o mundo circundante o acionamento de mecanismos que promovem reações de indiferença, isolamento, distanciamento da relação social, individualismo. A ameaça à integridade individual encontrou na síndrome do pânico sua mais atual forma de expressão. Surgem então, desse “balcão de negócios” que se transformou a sociedade humana, “iniciativas mitigadoras” visando preservar uma “ilusão iden- titária”, literaturas de autoajuda e esotéricas, evangelização instantânea, vitaminas miraculosas, tecnologias diet/light, drogas farmacológicas e da psiquiatria biológica, produtos do narcotráfico e [...] drogas oferecidas pela TV, pela publicidade, pelo cinema comercial e por outras mídias mais. Identidades prêt-à-porter, figuras glamourizadas imunes aos estremecimentos das for- ças. Mas, quando são consumidas como próteses de identidade, seu efeito dura pouco, pois os indivíduos – clones que então se produzem, com seus falsos self estereotipados, são vulnerá- veis a qualquer ventania de forças um pouco mais intensas. Os viciados nessa droga vivem dispostos a mitificarem e consumirem toda imagem que se apresente de forma minimamente sedutora, na esperança de assegurarem seu reconhecimento em alguma órbita do mercado. (ROLNIK, 1997, p. 22) A Identidade Pessoal é, para além da defini- ção apresentada acima, um projeto, uma história de vida. Está inscrita inicialmente num complexo de significações que vem do outro, do mundo que o rodeia. Nesse sentido, o indivíduo nasce com a sua identidade predeterminada e, é na sua relação com o mundo, com as instituições – língua, famí- lia, escola, igreja, trabalho etc. – que o indivíduo vai delineando os contornos da sua identidade. Reafirma-se, aqui, uma concepção já apresentada anteriormente, que a identidade só pode ser cons- truída a partir da ação. Por ser ação, a identidade é passível de mudança, de transformação. Dentro do universo escolar é importante o reconhecimento dessa característica singular e “mutante” da criança ou do jovem que busca a escola, superando definições homogeneizadoras e simplificadoras. Aquele que frequenta uma escola merece mais que o rótulo identificador – aluno –, devendo ser considerado como um sujeito parti- cular, com experiências de vida, necessidades e expectativas singulares, traduzidas nos contornos de sua identidade. Ao identificá-lo como aluno, parece que pouca coisa ainda resta por dizer. No que tange à identidade do professor, também é necessário romper com as atribuições extraprofissionais e superdimensionadas, quando é exigido do professor que se apre- sente como modelo identitário, responsável por constituir os traços de identidade Imagem 17 – Exiladas na Tanzânia preparam-se para o retor- no a Moçambique – Sebastião Salgado. Autonomia, Identidade e Diversidade – a complexidade da trajetória entre o ideal da proposta e sua operacionalização 38 de seus alunos. Nesse processo fica a singularidade do professor ameaçada por uma padronização moralista imposta pelo imaginário social. O professor, comprometido com o projeto coletivo da escola, consciente da sua função de educador – dentro das perspectivas pedagógica, ética e política – é também um indivíduo autônomo que tem clareza da importância da sua subjetividade. O que se propõe é o rompimento com universais nebulosos e estigmatizados, seja com relação ao aluno ou ao professor. Além de incorporar as várias identidades individuais, a escola também se cons- titui como uma identidade social, que se manifesta por meio do seu projeto político- -pedagógico e da ação de seus professores, funcionários, alunos e pais, quer de forma individual, quer de forma coletiva, através da organização de grêmios, associações, conselhos, sindicatos e outros. A identidade da escola se constrói internamente pelo complexo de relações entre seus protagonistas, como também externamente, por meio de suas articulações com outros setores da sociedade. Nesse sentido, podemos dizer que a escola se configura como um espaço profícuo da democracia partici- pativa. Pensadores de notoriedade no campo da política defendem a tese de que os movimentos sociais, tanto ou mais do que a democracia representativa, se confi- guram como espaço do verdadeiro exercício da democracia. É reconhecida, hoje, a crise que atravessa a representação política decorrente do baixo nível de escolaridade dos eleitores, da truculência da indústria política, do paternalismo e do clientelismo. Segundo Norberto Bobbio, os indivíduos não se sentem hoje representados por seus grupos e, consequentemente, não se sentem protagonistas da vida política. Além disso, o representante eleito para defender os interesses da nação não pode ficar vin- culado aos interesses de grupos particulares, promovendo, assim, uma transgressão ao princípio da representatividade. Entretanto, a perspectiva emancipadora da escola – espaço para o exercício da democracia participativa – não pode encobrir um olhar crítico sobre a dinâmica peculiar de funcionamento dos grupos sociais que dela fazem parte e que, por vezes, na tentativa de construir uma identidade que incorpore as necessidades, expectativas e projetos de seus membros, acabam por promover a exclusão do diferente, da diver- sidade, e correm o sério risco de enclausurarem-se em guetos. Esse processo de fraternidade por exclusão dos “intrusos” nunca acaba, é um círculo cada vez mais fechado, que reclama “autonomia” em relação ao mundo exterior, onde manter a comunidade se torna um fim em si mesmo, e a atividade fundamental é excluir aqueles que a ela não pertencem. (MAHEIRIE, 1997, p. 63) Diversidade A diversidade cultural pode ser tratada como virtude ou como problema. Quan- do é respeitada a singularidade de cada indivíduo, os aspectos culturais presentes na sua vida, a pluralidade de experiências que marca cada sujeito, a trajetória que cons- tituiu sua existência, entre outros, a diversidade é virtude. No entanto, quando se impõe uma homogeneidade, uma integração forçosa, desrespeitando as diferenças, a diversidade é transformada em problema. Autonomia, Identidade e Diversidade – a complexidade da trajetória entre o ideal da proposta e sua operacionalização 39 Imagem 18 – A diversidade racial do Brasil. A discussão sobre a diversidade surgiu com maior efervescência no cenário contemporâneo no início dos anos 1960, quando começaram a eclodir os movimen- tos de minorias, tais como: movimento de mulheres, negros, homossexuais, índios, além de movimentos musicais e culturais, que reivindicavam o direito à diferença. Tais manifestações ganharam espaço e a diversidade passou a ser reconhecida, se não em todos, certamente em setores significativos da sociedade, como a mídia, as universidades, as escolas, os movimentos sociais organizados, o Congresso Nacio- nal etc., conquistando importantesavanços, inclusive no que se refere aos aspectos legais. Contraditoriamente, também em decorrência do direito à diferença, surgem manifestações de minorias racistas de ultradireita que apregoam violentamente uma supremacia direcionada para a exclusão. Os movimentos neorracistas e outros de caráter panicularistas são exemplos de movimentos que têm uma visão dogmática de si e do mundo, reclamando a superioridade da sua exclusão, como os únicos e verdadeiros dignos da inclusão no campo político-cultural. Em nome da autenticidade, da identidade homogênea, caem num “naturalismo”, destroem a ideia de diversidade, reivindicam a universalidade, onde o que antes parecia uma perspectiva aberta, vira uma visão fixa e imutável de si e do mundo,[...] é uma tirania, uma violência, pois o outro, o diferente, o diverso, não é compreendido como sujeito, e sua dimensão subjetiva é negada, excluída. Ou seja, o outro é incluído no campo da pura objetividade, podendo ser manipulado, violentado, portanto excluído do campo da humanidade, como uma espécie de sub-homem. (MAHEIRIE, 1997) Autonomia, Identidade e Diversidade – a complexidade da trajetória entre o ideal da proposta e sua operacionalização 40 Imagem 19 – Grupo de rapazes habitantes de compartimento subterrâneo de águas pluviais – Cidade do México. Outro dilema imposto pela discussão acerca da diversidade é a questão da igualdade. Ao se reclamar tratamento igualitário para todos os cidadãos, o respei- to à diferença acaba relegado a um plano secundário. Para o antropólogo Louis Dumont o reconhecimento da diferença só é possível por meio do conflito e da hie- rarquia. Na tentativa de fugir desse impasse, os PCN propõem tratamento diferencia- do respeitando-se as diferenças individuais para se alcançar igualdade nos resultados de ensino. Na ação educativa, essa proposição, aparentemente simples, assume uma enorme complexidade que envolve desde a formação do professor – para identificar a diferença – passando pelas políticas educacionais de ampliação do número de alunos por sala de aula; pelo pouco tempo disponível do professor para o desenvolvimento de trabalho diferenciado; escassez de recursos múltiplos visando à inclusão da di- versidade e, finalmente, o despreparo das instituições de ensino para funcionar, no espaço e no tempo escolar, de forma menos ritualizada. A escola como espaço de ampliação das experiências de vida gerais, adoles- cência, família, vida social etc., desafia os educadores a desenvolverem posturas e instrumentos metodológicos que possibilitem o aprimoramento do seu olhar sobre o aluno, como “outro”, de tal forma que conhecendo as dimensões culturais em que ele é diferente, possam compreender e incorporar a “diferença como tal e não como deficiência” (DAYRELL, 1996, p. 145). Retoma-se aqui algo que já foi afirmado an- teriormente quando se discutia a questão da Identidade: os alunos uma vez identifica- dos – seres cognitivos com este ou aquele comportamento –, não possuem nenhuma outra identidade, nenhuma diversidade, o que implica uma uniformidade no ato de ensinar – uma linearidade. O que não se percebe, o que não se leva em conta, é a trama de relações e de sentidos existentes em uma sala de aula. Os alunos chegam à escola marcados pela diversidade, reflexo dos desenvolvimentos cogni- tivo, afetivo e social, evidentemente desiguais, em virtude da quantidade e qualidade de suas Autonomia, Identidade e Diversidade – a complexidade da trajetória entre o ideal da proposta e sua operacionalização 41 experiências e relações sociais, prévias e paralelas à escola. O tratamento uniforme dado pela escola só vem consagrar a desigualdade e as injustiças das origens sociais dos alunos. Uma outra forma de compreender esses jovens que chegam à escola é apreendê-los como sujeitos socioculturais. Essa outra perspectiva implica superar a visão homogeneizante e es- tereotipada da noção de aluno, dando-lhe um outro significado. Trata-se de compreendê-lo na sua diferença, enquanto indivíduo que possui uma historicidade, com visões de mundo, escala de valores, sentimentos, emoções, desejos, projetos, com lógicas de comportamentos e hábitos que lhe são próprios. (DAYRELL, 1996, p. 140) 1. Baseado no princípio da Autonomia, quais os limites e possibilidades para elaboração do proje- to político-pedagógico na escola? 2. A partir da compreensão do fenômeno da globalização, comente os conceitos de Identidade e Diversidade. 3. Com a crise da democracia representativa, os movimentos sociais se apresentam como alterna- tiva para o exercício da Autonomia. Dê sua opinião. Autonomia, Identidade e Diversidade – a complexidade da trajetória entre o ideal da proposta e sua operacionalização 42 Cornelius Castoriadis (1922) – filósofo grego, vive na França desde 1945. Foi um dos fundadores da revista Socialismo ou Barbárie. Publicou, entre outras obras: A Instituição Imaginária da Sociedade e Encruzilhadas do Labirinto I, II e III. lgnácio Ramonet – editor do Le Monde Diplomatique. Obras publicadas: A Desordem das Nações e A Geopolítica do Caos. Juarez Dayrell – professor da FAE-UFMG e membro do Núcleo de Estudos, Educação, Cultura e Sociedade. Kátia Maheirie – professora do Departamento de Psicologia da UFSC. Norberto Bobbio – filósofo italiano. Publicou, entre outros: Dicionário de Política (et al.); O Conceito de Sociedade Civil e Direita e Esquerda. Suely Rolnik – psicanalista, professora titular na PUC-SP. É autora de Cartografia Sentimental: trans- formações contemporâneas do desejo e coautora, com Félix Guatarri, de Micropolítica: cartografia do desejo. BOBBIO, Norberto; MATTEUCCI, Nicola; GIANFRANCO, Pasquino. Dicionário de Política. 2. ed. Brasília: Universidade de Brasília, 1986. BRASIL. Ministério da Educação. Secretaria de Educação Média e Tecnológica. Parâmetros Curri- culares Nacionais: Ensino Médio. Brasília, 1999. CASTORIADIS, Cornelius. O Mundo Fragmentado. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992. DAYRELL, Juarez. A escola como espaço sociocultural. In: DAYRELL, Juarez (Org.). Múltiplos Olhares sobre Educação e Cultura. Belo Horizonte: UFMG, 1996. HISTÓRIA do pensamento. Barcelona: Orbis, 1983. MAHEIRIE, Kátia. Identidade: o processo de exclusão/inclusão na ambigüidade dos movimentos sociais. In: ZANELLA, Andréa V. (Org.). Psicologia e Práticas Sociais. Porto Alegre: ABRAPSO Sul, 1997. RAMONET, lgnácio. Geopolítica do Caos. Petrópolis: Vozes, 1998. ______. O Desentendimento: política e filosofia. São Paulo: 34, 1996. ROLNIK, Suely. Toxicômanos de identidade: subjetividade em tempo de globalização. In: LINS, Da- niel (Org.). Cultura e Subjetividade. São Paulo: Papirus, 1997. Buscando respostas para a ação pedagógica Interdisciplinaridade – um diálogo necessário A interdisciplinaridade deve ir além da mera justaposição de disciplinas e, ao mesmo tempo, evitar a diluição delas em generalidades. [...] É importante enfatizar que a interdisciplinaridade supõe um eixo integrador, que pode ser o objeto de conhecimento, um projeto de investigação, um plano de intervenção. [...] O exemplo de projeto é interessante para mostrar que a interdis- ciplinaridade não dilui as disciplinas, ao contrário, mantém sua individualidade. Mas integra as disciplinas a partir da compreensão das múltiplas causas ou fatores que intervêm sobre a realidade e trabalha todas as linguagens necessárias para a constituição de conhecimentos, co- municação e negociação de significados e registro sistemático de resultados. (PCN) Em seu livro Vigiar e Punir, Michel Foucault, ao apresentar a transição do regime punitivo para o regime de controle, afirma que a disciplina se exerce pelo controle de pequenas astúcias, arranjos sutis, de aparência inocente, mas profundamen- te suspeitos. Segundo Foucault, a disciplina é uma anatomia política do detalhe. Ele realiza seus estudos, a partir de um vasto levantamento de dados de instituições, que segundo ele, têm muitas semelhanças entre si, sobretudo no que serefere às questões da organização e controle disciplinar: as prisões, os quartéis, os hospitais e as escolas. Especificamente com relação à decomposição das matérias de ensino, Foucault afirma que “forma-se toda uma pedagogia analítica, muito minuciosa que decompõe até aos mais simples elementos a matéria de ensino, hierarquiza no maior número possível de graus cada fase do progresso”. (FOUCAULT, 1996, p. 144) Evidentemente não se trata de aprofundar a análise sobre esse objeto, mas alguns aspectos podem ser de muita utilidade quando se decide refletir acerca das disciplinas escolares e das possibilidades da incorporação da quase mítica interdisciplinaridade. Henry Giroux (1997, p. 182), que é leitor de Foucault, diz que [...] ser parte de uma disciplina significa fazer certas perguntas, usar um conjunto particular de termos e estudar um conjunto relativamente estreito de coisas. [...] as limitações impostas pela disciplina são reforçadas pelas instituições através de várias recompensas e punições, a maior parte das quais pertencentes à classificação hierárquica. A punição derradeira é a exclusão. Se pararmos de nos expressar dentro do discurso da disciplina, não seremos mais considerados parte da mesma. O texto de Giroux refere-se ao contexto acadêmico, no qual muitas vezes os li- mites das disciplinas se apresentam de forma ainda mais rígida que no Ensino Médio. Entretanto, não é preciso grande esforço para reconhecer que tais limites e até mesmo as citadas punições também estão presentes no cotidiano escolar, afinal, processos de formação com bases neopositivistas costumam ser minimamente competentes. Porém, hoje é bastante compartilhada a ideia de que é fundamental que haja uma extensão social dos conhecimentos ensinados, sejam eles reproduzidos a partir de uma sistematização acadêmica ou produzidos pela própria escola. Logo, podemos afirmar Buscando respostas para a ação pedagógica 44 que o papel do professor é eminentemente político. Trata-se de um professor pluridi- mensional – misto de intelectual, cientista, mediador e articulador. Mas, para atingir tal status, é preciso que ele transcenda os limites da sua disciplina e consiga estabelecer articulações entre os mais variados campos do conhecimento, tantos quantos forem necessários para a compreensão e explicação de um determinado objeto. Cabe então perguntar: o professor está capacitado para desempenhar esse papel? Se o professor não receber uma formação interdisciplinar ou, no caso daqueles que já estão no exercício da profissão, uma capacitação adequada, dificilmente poderá cum- prir a função que lhe está sendo atribuída. É fundamental que as instituições formadoras assumam plenamente a interdisciplinaridade em seus currículos. De nada adianta apre- sentá-la em algumas disciplinas da licenciatura na condição de um discurso meramente formal, aligeirado e descontextualizado. Quanto aos professores que já estão no exercício da profissão (dentro ou fora da sala de aula) e não tiveram formação interdisciplinar, que certamente representam a maioria, cabe às instituições mantenedoras o compromisso de promover capacitações à altura das corretas e extensas exigências dos PCN. Pode-se então concluir que a interdisciplinaridade é, sem dúvida, um dos mais importantes sustentáculos da nova proposta, no sentido da superação da fragmentação dos conteúdos e das perspectivas de reinserção da escola na realidade social. Porém, entre a compreensão do que vem a ser a interdisciplinaridade e a sua efetivação no âmbito escolar, há uma grande lacuna que vai além da formação e capacitação dos pro- fessores. Trata-se da necessidade premente de uma profunda (re)organização do tempo e do espaço escolar e do trabalho de mediação e articulação das coordenações pedagó- gicas. Entretanto, não se pode deixar de considerar que estamos diante de um dilema: tais exigências pedagógicas, demandadas pelos PCN, se chocam frontalmente com as exigências da política econômica restritiva, cuja função maior tem sido determinar cor- tes nos investimentos públicos. É claro que essa cultura economicista permeia também a rede privada de ensino. Economia e educação, serão esses os únicos espaços em que não é possível sequer vislumbrar a interdisciplinaridade? Contextualização – os possíveis vínculos entre a matéria ensinada e a realidade: cidadania e trabalho Resolução CEB/CNE 3/98 que institui as Diretrizes Curriculares Nacionais para o Ensino Médio. Art. 99. Na observância da Contextualização, as escolas terão que: I - na situação de ensino e aprendizagem, o conhecimento é transposto da si- tuação em que foi criado, inventado ou produzido, e por causa dessa transposição didática deve ser relacionado com a do trabalho e do exercício da cidadania; II - a aplicação de conhecimentos constituídos na escola às situações da vida cotidiana e à experiência espontânea permite seu entendimento, crítica e revisão. Parecer CEB/CNE 15.198 Contextualizar o conteúdo que se quer aprendido significa, em primeiro lu- gar, assumir que todo o conhecimento envolve uma relação entre sujeito e objeto. Na escola fundamental ou média, o conhecimento é quase sempre reproduzido Buscando respostas para a ação pedagógica 45 das situações originais nas quais acontece sua produção. Por essa razão, quase sempre o conhecimento escolar se vale de uma transposição didática, na qual a linguagem joga papel decisivo. O tratamento contextualizado do conhecimento é recurso que a escola tem para retirar o aluno da condição de espectador passivo. Se bem trabalhado permite que, ao longo da transposição didática, o conteúdo de ensino provoque aprendizagens signi- ficativas que mobilizem o aluno e estabeleçam entre ele e o objeto do conhecimento uma relação de reciprocidade. A contextualização evoca por isso áreas, âmbitos ou dimensões presentes na vida pessoal, social, cultural, e mobiliza competências cog- nitivas já adquiridas. As dimensões de vida ou contextos valorizados explicitamente pela LDB são o trabalho e a cidadania. As competências estão indicadas quando a lei prevê um ensino que facilite a ponte entre a teoria e a prática. A escola pode ser entendida a partir de duas dinâmicas distintas e complementa- res: a escola institucionalizada e a escola cotidiana. A primeira abarca todo o conjunto de normas de funcionamento, os saberes formalizados, os diversos papéis a serem de- sempenhados pelos protagonistas da ação educativa, as diversas instâncias que com- põem os sistemas de ensino; a outra, que parte da concepção de escola como espaço sociocultural, pressupõe um emaranhado de relações entre os sujeitos pertencentes a esse espaço, constituindo uma identidade peculiar em cada unidade de ensino. O processo educativo se faz, então, a partir da integração dessa escola institucionali- zada com a escola cotidiana, quando se [...] recoloca a cada instante a reprodução do velho e a possibilidade da construção do novo, e nenhum dos lados pode anteci- par uma vitória completa e definitiva. Esta abordagem permite ampliar a análise edu- cacional, na medida em que busca apre- ender os processos reais, cotidianos, que ocorrem no interior da escola, ao mesmo tempo que resgata o papel ativo dos sujei- tos, na vida social e escolar. (DAYRELL, 1996, p. 137) A abordagem do conhecimento no espaço escolar certamente estará sob maior ou menor influência dessas dinâmicas constitutivas da escola. Quanto mais forma- lizada, expositiva e impessoal for essa abordagem, restringindo-se ao cumprimento convencional de conteúdos, à transmissão formal de saberes, distante das relações que se estabelecem ou poderiam se estabelecer com a realidade dos “principais su- jeitos” envolvidos nessa “trama do ensino”, mais distante estará o conhecimento de potencializar significações, produzir sentido e se fazer aprendizagem. Diante da aula, a pergunta imediata poderia ser: quais são os objetivos desta unidade? Qual a rela- ção que existe com a realidade dosalunos? O que e em que esse tema acrescenta algo ou é impor- tante para cada um deles? [...] o conhecimento é aquele consagrado nos programas e materializado nos livros didáticos. O conhecimento escolar se reduz a um conjunto de informações já construí- das, cabendo ao professor transmiti-las e, aos alunos, memorizá-las. São descontextualizadas sem Imagem 20 – Mostra cultural do Colégio Estadual Paulo Leminski. Buscando respostas para a ação pedagógica 46 uma intencionalidade explícita e, muito menos, uma articulação com a realidade dos alunos [...] O que se questiona não é tanto o conteúdo escolar em si, apesar das muitas aberrações existentes, mas a forma como é entendido e trabalhado pelo professor. Da forma como está posto, o conhe- cimento escolar deixa de ser um dos meios através dos quais os alunos podem se compreender melhor, compreender o mundo físico e social onde se inserem, contribuindo, assim, na elaboração de seus projetos. Também podemos nos perguntar se a escola, mais do que enfatizar a transmissão de informações, cada vez mais dominadas pelos meios de comunicação de massa, não deveria se orientar para contribuir na organização racional das informações recebidas e na reconstrução das concepções acríticas e dos modelos sociais recebidos. Os professores, em sua maioria, presos que estão a essa forma de lidar com os conteúdos, deixam de se colocar como expressão de uma geração adulta, portadora de um mundo de va- lores, regras, projetos e utopias a ser proposto aos alunos. Deixam de contribuir no processo de formação mais amplo, como interlocutores desses alunos, diante das suas crises, dúvidas, perplexidades geradas pela vida cotidiana. (DAYRELL, 1996, p. 156) O processo de contextualização, quando se busca estabelecer os possíveis víncu- los entre um saber constituído – construído sócio-historicamente e a realidade cotidiana dos alunos, deve, também, promover implicitamente o desenvolvimento de estratégias pedagógicas que denunciem o desvirtuamento da função educacional na escola com o descumprimento de seu compromisso com o conhecimento organizado e sistematiza- do. Trata-se, portanto, de não abdicar da qualidade dos conhecimentos, dos conteúdos ministrados em sala de aula. Contextualizar não é oferecer aos alunos um conheci- mento empobrecido, diluído e superficial, sem compromisso com a sua universalidade. A desatenção, a falta de cuidado para com esse desvio, contribuirá significativamente para a ampliação do fracasso escolar, principalmente nas camadas nas quais as experi- ências de vida dos alunos encontram-se extremamente empobrecidas. Os dois principais eixos apresentados pelos PCN para a contextualização dos conteúdos são o exercício da cidadania e o mundo do trabalho. Vamos a eles: Cidadania Cidadão é o indivíduo situado no tecido das relações sociais, portador de direitos e deveres, relacionando-se com a esfera pública do poder e das leis. É, também, o membro de uma clas- se social, definido por sua situação e posição nessa classe, portador e defensor de interesses específicos de seu grupo ou de sua classe, relacionando-se com a esfera pública do poder e das leis. (CHAUÍ, 1994, p. 119) Imagem 21 – No Rio de Janeiro, soldados do Exército revistam crianças à procura de drogas. Buscando respostas para a ação pedagógica 47 O exercício da cidadania, portanto, supõe um sujeito político e ético – capaz da ação e da reflexão de valores na esfera pública. Constituir-se como cidadão no mundo contemporâneo implica, também, percorrer o difícil cami- nho da autonomia individual e social; superar as limitações e imposições iden- titárias da sociedade globalizada e, finalmente, buscar a harmonia possível nas relações sociais, através do respeito à diversidade humana. Para melhor entender as dificuldades inerentes ao exercício da cidadania, es- tudiosos das Ciências Sociais, em pesquisa realizada recentemente com jovens em Curitiba, apresentaram como contraponto inicial à noção de cidadania o tema vio- lência, partindo do seguinte princípio: se cidadania é o “estatuto do cidadão numa sociedade, estatuto baseado na regra da lei e no princípio da igualdade (Dicionário de Ciências Sociais)”, a violência é a [...] negação da cidadania, de uma vida na urbis baseada na relação igualitária entre os indivíduos, assim transformados em cidadãos, com garantia de direitos e exigência de deveres, tendo o Estado como regulador, garantindo uma existência democrática em que a relação entre os cidadãos se conduz em princípios éticos de liberdade, dignidade, respeito às diferenças, justiça, equidade e solidariedade. (SALLAS, 1999, p. 27) Essa violência é decorrente de vários aspectos que ameaçam a conquista da cidadania, sejam eles: a defasagem histórica no Brasil, entre a cidadania como pro- cesso universal e a sua prática concreta; a retirada da responsabilidade do Estado como regulador da garantia dos direitos e da exigência dos deveres – regressão da cidadania social – “demissão do Estado”; a apatia e o desencanto de setores da população por assuntos políticos – negação da participação política, negação dos políticos, negação dos partidos, descrédito com as instituições públicas ligadas ao Executivo, Legislativo e Judiciário; e a privatização de participação do jovem – o jovem mais voltado aos seus interesses individuais. É nessa realidade profundamente adversa que se propõe a contextualização do conhecimento dos conteúdos escolares para o exercício da cidadania. Se o espaço da escola, da sala de aula, pode se configurar como um espaço relevante nessa conquista, no entanto, é importante ter a clareza que sua contribuição po- derá ser maior ou menor, dependendo do quanto ele for investido como fórum de discussão, de debate, de revelação de contradições, de formulação de projetos coletivos, de construção de perspectivas de vida. Trabalho O trabalho é uma condição da existência humana independentemente de qual seja a forma de sociedade; é uma necessidade natural eterna que medeia o metabolismo entre homem e natureza e, portanto, a própria vida humana. [...] O que distingue o homem dos animais é o fato de que as criações humanas constroem-se primeiro na imaginação; somos arquitetos, e não abelhas. (MARX, 1987). A citação acima, extraída do volume 1 de O Capital, publicado em 1867, refere-se ao conceito de trabalho abstrato, portanto, nesse domínio, são ainda plenamente válidas. Marx, além de revolucionário, foi otimista com relação aos avanços tecnológicos e sua possível utilização para a libertação do homem da servidão do trabalho alienado; sonhou com um homem pluridimensional – traba- Buscando respostas para a ação pedagógica 48 lhador, intelectual, artista e bon vivant. Desnecessário discorrer sobre a força e o impacto das ideias libertárias de Marx nas sociedades de todo o mundo. É verdade que o homem pluridimensional continuou muito distante da realidade vivida pelos trabalhadores, mas a consciência de classe e as organizações trabalhistas possibilita- ram avanços importantes nas relações de trabalho durante os séculos XIX e XX. Porém, seria inimaginável supor que ao final do século assistiríamos, graças à inver- são cruel do uso das tecnologias, um assombroso retorno à barbárie – o desemprego estrutural, patrocinado pelo neoliberalismo e pela globalização da economia e que vem explorando, excluindo e ameaçando de extermínio bilhões de seres humanos em todo o mundo. Se durante os séculos XIX e XX, até duas décadas atrás, havia a ne- cessidade de inserir os excluídos no processo produtivo, tal necessidade deixou de existir. E a questão que emerge das atitudes dos mandatários do sistema globalitário é clara: como livrar-se dos que não produzem e, portanto, não são consumidores? Nossos conceitos de trabalho e, por conseguinte, de desemprego, em torno dos quais a política atua (ou pretende atuar), tornaram-se ilusórios e nossas lutas em torno deles, tão alucinadas quanto as do Quixote contra os moinhos. Nãose trata de chorar sobre o que não existe mais, de negar e renegar o presente. Não se trata de negar, de recusar a mundialização, o surto das tecnologias, que são fatos, e que poderiam ser animadores não só para as “forças vivas”. Trata-se, pelo contrário, de levá-los em consi- deração. Trata-se de não ser mais colonizado. De viver com conhecimento de causa, de não mais aceitar tacitamente as análises econômicas e políticas que passam por cima dos fatos, que só os mencionam como elementos ameaçadores, obrigando a medidas cruéis, as quais se tornarão ainda piores se não forem aceitas com toda a submissão. Análise, ou melhor, resenhas peremptórias, segundo as quais a modernidade, reservada apenas às es- feras dirigentes, só se aplica à economia de mercado, e só é operante nas mãos daqueles que decidem. Fora daí, julga-se que vivemos à moda antiga, numa espécie de espetáculo de “Som e Luz”, numa retrospectiva em que o presente não desempenha nenhum papel nem confere nenhum outro, onde somos relegados a um sistema que não existe mais, onde somos condenados. Diante disso, é no mínimo estranho que jamais se pense num modo de organização a partir da ausência de trabalho, em vez de provocar tanto sofrimento, tão estéreis e tão perigosos, desmentindo essa ausên- cia, esse desaparecimento, apresentando-o como um simples intervalo que se ignora ou se pretende preencher, ou até suprimir, dentro de prazos e de tempos imprecisos, incessantemente renovados, enquanto se instalam a desgraça e o perigo. Promessa de uma ressurreição de espec- tros, que permite pressionar ainda mais, enquanto ainda é tempo, ou colocar fora de jogo aqueles que essa ausência logo reduzirá à condição de escravos, se já não o fez. Ou conduzirá ao desaparecimento, à eliminação. (FORRESTER, 1997, p. 7, 144-145) A partir da constatação indubitável que a sociedade baseada no trabalho está em processo de metamorfose, talvez de extinção, afirmações de que “o trabalho é o contexto mais importante da experiência curricular no Ensino Médio”, Imagem 22 – Trabalho infantil e informal em Curitiba. Buscando respostas para a ação pedagógica 49 [...] que o trabalho é o princípio organizador do currículo, e que todos, independentemente da ori- gem ou destino socioprofissional, devem ser educados na perspectiva do trabalho enquanto uma das principais atividades humanas, enquanto campo de preparação para escolhas profissionais futu- ras, enquanto espaço de exercício de cidadania, enquanto processo de produção de bens, serviços e conhecimentos com as tarefas laborais que lhe são próprias. (PCN, 1999) Como dissemos anteriormente, o conceito de trabalho abstrato continua vá- lido, porém, o trabalho nas suas dimensões concretas sempre esteve mais para o campo das duras polêmicas do que para a falsa harmonia imposta pelos interesses ideológicos. Por que, diante de um quadro tão grave, a educação deveria se omitir do debate? A escola não participa da divisão social do trabalho e não tem qualquer responsabilidade na condução desse processo de extinção, porém, as “novas” catego- rias do “mundo do trabalho” estão presentes na realidade de grande parte daqueles que constituem a comunidade escolar e exigem que a escola se posicione. A escola não pode limitar-se a preparar seus alunos para o trabalho, numa sociedade na qual o desemprego é endêmico. Portanto, o desemprego estrutural, o trabalho infantil, a crescente onda do trabalho informal, a exploração dos estagiários (deturpação da lei) e o trabalho como transgressão (para organizações criminosas), devem também fazer parte da organização do currículo, devem ser profundamente analisados e discutidos pela escola. A ambivalência do papel da escola no imaginário social Durkheim concebe a sociedade de seu tempo – que vivia sob o impacto da Revolução Francesa –, como uma sociedade que atravessava uma crise de valores políticos e morais; uma sociedade doente, em estado de anomia – ausência de leis – uma sociedade que depositava unicamente na criança sua esperança de “salvação”, face à impossibilidade de recuperação dos adultos, que em casos mais graves – alco- olismo, loucura, degeneração de ordem sexual e outros – eram confinados em asilos; uma sociedade em que os adultos representavam um problema para a implementação do projeto burguês, restando direcionar todo investimento social na criança, através da escola – agência disciplinadora e heterônoma. Tal concepção deixou marcas pro- fundas e ainda provoca ressonâncias no mundo contemporâneo. A noção de escola permanece, para muitos educadores, vinculada a concepções majoritariamente dis- ciplinadoras, punitivas e normatizadoras. Ainda hoje, se tenta imputar aos alunos os limites da realidade, as regras e as leis da sociedade. Educar é imprimir registros “civilizatórios” na criança superativa, no adolescente selvagem, no jovem inquieto e instável. Para melhor compreender a ambivalência da concepção atual de escola é neces- sário discutir a representação da criança, da “universal estabelecida”, com o surgimen- to da sociedade moderna. Criança imaginária fraturada – de um lado um conjunto de disposições naturais valiosas como o tradicionalismo, a credulidade, a receptividade às ordens; do outro lado, aquilo que há de “bicho no filho do homem” (PCN, 1999), Buscando respostas para a ação pedagógica 50 a curiosidade, a imaginação, a instabilidade de humor. Diante desse quadro, a neces- sidade de se desenvolver estratégias para “a inscrição da sociedade na subjetividade infantil [...] de modo que ele (o educador) seja internamente encarnado nessa voz imperativa de comando, vigilância, repreensão e punição, que seria a voz da própria sociedade vivendo e agindo em nós.” (PCN, 1999) Por mais anacrônicas que possam parecer (ou deveriam parecer) essas ideias, é certamente com bastante frequência que elas se apresentam nos espaços escolares. A defesa da uniformidade da padronização, do retorno à “boa linha dura” – proibindo namoro, bonés e brincos em meninos, defendendo filas e uniformes etc. – da auto- ridade incontestável do professor, da reprovação escolar, de tempos e espaços ritua- lizados, da disciplinação, entre outros, revelam que persistem no imaginário social representações de escola e de criança muito mais próximas daquelas defendidas por Durkheim. Os adultos-professores dão aulas, mas não sabem o que estão fazendo na escola, pois foram incapazes de reconhecer o seu papel formador junto aos jovens. Para os jovens, a escola é a instituição mais importante em suas vidas depois da família. Embora tenham críticas à insti- tuição, aos seus métodos, aos conteúdos distantes de sua realidade, os jovens a avaliaram de modo muito positivo. Já os professores sentem-se impotentes, consideram que seu trabalho nada vale, posta que a família, de um lado, e a mídia, de outro, têm muito mais o poder de formação e de transformação para eles. Em função disso parece recusarem-se a continuar jogando. Consideram “essa juventude alienada, individualista e imediatista”, que nada res- peitam, que não têm limites impostos pela família e assim por diante. Ou seja, os professores identificam fora deles e da instituição da qual fazem parte a responsabilidade de os jovens serem o que são hoje, distanciado-se assim de seu ideal moralizador e socializador fundamen- tal. (SALLAS, 1999, p. 341) Por outro lado, a escola tem potencializado o surgimento de um novo papel, principalmente entre aqueles que vislumbram na sua existência um campo de possi- bilidades para realização de um projeto de vida. A escola adquire, então, a dimensão do encontro, é vista também como um espaço social que permite o aprendizado da convivência em grupo, oportuniza a relação com a diversidade e possibilita a experi- ência do “conflito”. Essa dimensão ocorre, na maioria das vezes, à revelia da própria escola. O espaço físico escolar, por exemplo, é, em muitos momentos, recriado, e a ele são atribuídos novos sentidos que facilitama sociabilidade e promovem a trans- gressão dos regulamentos. Na trilha dessa dinâmica sociabilizadora da escola, tem surgido com certa fre- quência a preocupação, por parte de alguns educadores, de se investir no potencial de criatividade, curiosidade e inquietação, presentes nas crianças e nos jovens. Nes- ses casos, o espaço interessante, que oportuniza uma relação mais prazerosa com o conhecimento. A escola, dessa forma, passa a provocar significações que podem despertar no jovem o verdadeiro sentido de aprender. A função criativa da imaginação pertence ao homem comum, ao cientista, ao técnico; é es- sencial para descobertas científicas bem como para o nascimento da obra de arte; é realmente condição necessária da vida cotidiana [...]. Buscando respostas para a ação pedagógica 51 Germes da imaginação criativa, reforça Vygotsky, manifestam-se nas brincadeiras dos ani- mais: assim, manifestam-se ainda mais na vida infantil. A brincadeira, o jogo, não é uma simples recordação de impressões vividas, mas uma reelaboração criativa delas, um processo através do qual a criança combina entre si os dados das experiências no sentimento de cons- truir uma nova realidade, correspondente às suas curiosidades e necessidades. Todavia, exa- tamente porque a imaginação trabalha apenas com materiais colhidos na realidade (e por isso pode ser maior no adulto), é preciso que a criança, para nutrir sua imaginação e aplicá-la em atividades adequadas que lhe reforçam as estruturas e alongam os horizontes, possa crescer em um ambiente rico de impulsos e estímulos, em todas a direções. [...] Se uma sociedade baseada no mito da produtividade (e na realidade do lucro) precisa de homens pela metade – fiéis executores, diligentes reprodutores, dóceis instrumentos sem vontade própria – é sinal de que está mal feita, é sinal de que é preciso mudá-la. Para mudá-la, são necessários homens criativos, que saibam usar a imaginação. “Criatividade” é sinônimo de “pensamento divergente”, isto é, de capacidade de romper con- tinuamente o esquema da experiência. É “criativa” uma mente que trabalha, que sempre faz perguntas, que descobre problemas onde os outros encontram respostas satisfatórias (na co- modidade das situações onde se deve farejar o perigo), que é capaz de juízos autônomos e independentes (do pai, do professor e da sociedade), que recusa o codificado, que remanuseia objetos e conceitos sem se deixar inibir pelo conformismo. Todas essas qualidades manifes- tam-se processo criativo. (RODARI, 1982, p. 139-140) Imagem 23 – Brincadeiras de Crianças – Bruegel. Buscando respostas para a ação pedagógica 52 1. Considerando o texto, faça uma reflexão sobre as possibilidades de implementação da interdis- ciplinaridade e contextualização. 2. Comente a ambivalência do conceito de cidadania e a violência presente no cotidiano. 3. Apresente uma reflexão sobre a escola que prepara para o mundo do trabalho, numa sociedade de desemprego endêmico. 4. Com base no texto sobre a ambivalência do papel da escola e a sua experiência como educador, discorra sobre a função da educação. Buscando respostas para a ação pedagógica 53 Giani Rodari (1920-1980) – escritor de literatura infantil e jornalista. Principais obras: II Treno delle Filastrocche; II Romanzo di Cipollino; Gerlsomino Paese dei Bugiardi; Filastrocche in Cielo e in Terra; Favole al Telefono, La Torta in Cielo. Henry A. Giroux – pensador e professor na School of Education Miami University, Ohio. Publicou no Brasil: Os Professores como Intelectuais: rumo a uma pedagogia crítica da aprendizagem. Michel Foucault (1926-1984) – historiador e filósofo francês. Principais obras: História da Loucura (1961), Vigiar e Punir (1975), História da Sexualidade – 3 v. (1980-1984). Paulo Sérgio do Carmo (1950) – professor de Sociologia e Filosofia. Publicou, entre outras: A Ideolo- gia do Trabalho; O Trabalho na Economia Global; História e Ética do Trabalho no Brasil. Viviane Forrester – romancista, ensaísta, crítica literária do jornal Le Monde. Principais obras: La Violence du Calme, Van Gogh ou l’Enterrement dans les Blés, Ce Soir, Après la Guerre. BRASIL. Ministério da Educação. Secretaria de Educação Média e Tecnológica. Parâmetros Curri- culares Nacionais: Ensino Médio. Brasília, 1999. CARMO, Paulo Sérgio do. A Ideologia do Trabalho. 6. ed. São Paulo: Moderna, 1992. ______. O Trabalho na Economia Global. São Paulo: Moderna, 1998. CHAUÍ, Marilena. Convite à Filosofia. São Paulo: Ática, 1994. DAYRELL, Juarez. A escola como espaço sociocultural. In: ______ (Org.). Múltiplos Olhares sobre Educação e Cultura. Belo Horizonte: UFMG, 1996. FORRESTER, Viviane. O Horror Econômico. São Paulo: Universidade Estadual Paulista, 1997. FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: o nascimento da prisão. 14. ed. Petrópolis: Vozes, 1996. GIROUX, Henry A. Os Professores como Intelectuais: rumo a uma pedagogia crítica da aprendiza- gem. Porto Alegre: Artes Médicas, 1997. MARÇAL, Jairo. Pós-Modernismo: a agonia da moderna cultura ocidental. Curitiba, 1989. Mono- grafia (Especialização em Antropologia Filosófica – Escola de Frankfurt), Departamento de Filosofia, Universidade Federal do Paraná. MARX, Karl. O Capital. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, [1980]. v. 1. RODARI, Giani. Gramática da Fantasia. 5. ed. São Paulo: Summus, 1982. SALLAS, Ana Luisa Fayet et al. (Coord.). Os Jovens de Curitiba: esperanças e desencantos. Brasí- lia: UNESCO Brasil, 1999. 54 Buscando respostas para a ação pedagógica Organização curricular: a quem serve a escola As competências, as habilidades e as tecnologias A proposta de organização curricular apresentada nos Parâmetros Curriculares para o Ensino Médio está baseada no desenvolvimento de competências e ha-bilidades por áreas do conhecimento e na inserção das diversas tecnologias, visando à integração do aluno no mundo contemporâneo. Essa forma de organização vem atender o caráter de terminalidade do Ensino Médio, conforme artigo 35 da LDB. Explicitamente, está presente a ideia de oferecer aos jovens a base necessária para sua inserção no mercado de trabalho e para o exercício da cidadania. É importante esclarecer que na prática o termo terminalidade refere-se muito mais à terminalidade do compromisso do Estado na oferta de ensino, do que propria- mente à conclusão da formação necessária ao ingresso no mercado de trabalho. Essa formação só se efetivará, de fato, através da continuidade de estudos em nível técni- co ou superior, para o qual o aluno já teria adquirido uma base. Essa continuidade visaria à formação de um técnico ou profissional com capacidade de articular o seu objeto específico de trabalho a outras dimensões da vida. Diferente da Lei 5.692, que embora oferecesse concomitantemente formação geral e formação técnica, à exceção da habilitação magistério, os demais cursos não se preocupavam com a articulação e a contextualização do conhecimento. Assim, na configuração da nova proposta, se por um lado se dá a superação do ensino fragmentado e descontextualizado, por ou- tro, ocorre uma isenção de responsabilidade pública com a formação para o exercício profissional, deixando a grande maioria dos jovens a meio caminho, e, seguramente, sem condições de resgate. Há ainda o agravante de que no mundo contemporâneo as exigências do mercado de trabalho são cada vez maiores e mais específicas, tornando o quadro mais complexo e preocupante. Em virtude do destaque dado aos conceitos de competência e tecnologia pelas Diretrizes Curriculares é necessária uma análise que extrapole o âmbito de aborda- gem presente nos PCN, contribuindo, assim, para uma compreensão mais detalhada de seus sentidos e implicações, na proposta em si, na sua execução e na consequente formação do educando. A finalidade da nova proposta, traduzida na pergunta “A quem serve a escola?” deve ser pensada a partir da articulação dos conceitos priori- zados na organização do currículo – competências e tecnologias – com os elementosenvolvidos na implementação do novo Ensino Médio, sejam eles a proposta consi- derada na sua totalidade, sua execução nas unidades escolares e os resultados na formação dos alunos. Organização curricular: a quem serve a escola 56 A apresentação das competências cognitivas nas Matrizes Curriculares de Re- ferência para o Saeb antecedeu a discussão sobre as competências nas áreas do co- nhecimento propostas nos PCN e trouxe para o cenário educacional a possibilidade de um melhor entendimento do processo de conhecimento, através da identificação dos diferentes níveis – básico, operacional e global, presentes na relação entre o sujei- to cognoscente e o objeto do conhecimento. O reconhecimento desses níveis ofereceu aos envolvidos na ação educacional a compreensão mais detalhada do processo de ensino e aprendizagem e, consequentemente, maior segurança no desenvolvimento de sua trajetória. O pensamento pedagógico brasileiro da década de 1980, ao resgatar as teorias de Vygotsky, Bakhtin, Freinet, Piaget, Freire, entre outros, inovou por meio de concepções educacionais que buscavam a interação, a mediação, a contextualiza- ção e a interdisciplinaridade, porém na práxis educacional persistia a demanda de um amadurecimento teórico e de uma melhor compreensão desses conceitos. Surge as- sim, na década de 1990, com a criação dos fóruns de debate para formulação da nova LDB, o campo propício para investigação e produção de concepções complementa- res, abrindo espaços para a superação do caráter imediatista e de pouca reflexão da cultura dos jargões, presente no “fazer” escolar. Competências cognitivas Entende-se por competências cognitivas as modalidades estruturais da inte- ligência – ações e operações que o sujeito utiliza para estabelecer relações com e entre os objetos, situações, fenômenos e pessoas que deseja conhecer. As habilidades instrumentais referem-se especificamente ao plano de “saber fazer” e decorrem, di- retamente, do nível estrutural das competências já adquiridas e que se transformam em habilidades. O processo de construção do conhecimento passa, necessariamente, pelo “saber fazer”, antes de ser possível “compreender e explicar”, e essa compreensão e a con- ceituação correspondente acabam por influenciar a ação posterior. Há, pois, uma fase inicial em que predomina a ação para obter êxito. Seguida por outra, cuja característica principal é a troca constante de influências entre ação e compreensão, ambas de nível semelhante, e uma terceira em que a compreensão coordena e orienta a ação. Esse pro- cesso é contínuo e culmina, numa fase posterior do desenvolvimento, com a “tomada de consciência” dos instrumentos utilizados e das relações estabelecidas. Podemos dizer que o processo de conhecer comporta um ciclo, pois a compre- ensão e a tomada de consciência dos instrumentos e das relações estabelecidas em um nível influenciam o fazer no nível seguinte. Dessa forma, uma competência adquirida em um nível torna-se facilmente aplicável, como um saber fazer no nível seguinte, sem necessidade de reflexões, dando origem, portanto, às habilidades instrumentais. As competências podem ser categorizadas em três níveis distintos de ações e operações mentais, que se diferenciam pela qualidade das relações estabelecidas entre o sujeito e o objeto do conhecimento. Nível básico: encontram-se as ações que possibilitam a apreensão das ca- racterísticas e propriedades permanentes e simultâneas de objetos compará- veis, isto é, que propiciam a construção dos conceitos. Exemplo: observar, Organização curricular: a quem serve a escola 57 identificar, reconhecer, indicar, apontar, localizar, descrever, estabelecer di- ferenciações etc. Nível operacional: encontram-se as ações coordenadas que pressupõem o estabelecimento de relações entre os objetos; fazem parte desse nível os esquemas operatórios que se coordenam em estruturas reversíveis. Essas competências, que, em geral, atingem o nível da compreensão e a explica- ção, mais que o saber fazer, supõem alguma tomada de consciência dos ins- trumentos e procedimentos utilizados, possibilitando sua aplicação a outros contextos. Exemplo: classificar, seriar, compor e decompor, fazer antecipa- ções, calcular por estimativa, interpretar, medir, justificar etc. Nível global: encontram-se ações e operações mais complexas, que envolvem a aplicação de conhecimentos a situações diferentes e a resolução de problemas inéditos. Exemplo: analisar, avaliar, aplicar relações, criticar, julgar, explicar causas e efeitos, fazer generalizações, fazer prognósticos etc. Por outro lado, a questão das competências nas áreas do conhecimento impõe uma discussão sobre a concepção ideológica presente nos PCN. Afinal, é a partir da definição das competências que está determinada a finalidade da nova proposta. Trata-se do privilégio atribuído a determinados aspectos, dos critérios de inclusão e exclusão de competências, evidenciando-se a presença de um pensamento instituído e acabado que se coloca como pano de fundo. É inquietante o fato de que os prin- cípios éticos, políticos e estéticos, de raízes questionadoras e instituintes, tenham perdido força e importância, exatamente na parte da proposta na qual se definem as ações pedagógicas. Fica a impressão de que as ideias fundadoras e fundamentais da nova Educação Básica não passam de uma alusão romântica, de uma miragem, sem qualquer perspectiva concreta de realização, persistindo no seu lugar as mesmas ideias legitimadoras de um mundo dominado pelas tecnologias a serviço do mercado. A quem serve a escola? O que é discurso competente enquanto discurso de conhecimento? Sabemos que é o discurso do especialista, proferido de um ponto determinado da hierarquia organizacional. Sabemos também que haverá tantos discursos competentes quantos lugares hierárquicos autorizados a falar e a transmitir ordens aos degraus inferiores e aos demais pontos da hierarquia que lhes forem paritários. Sabemos também que é um discurso que não se inspira em ideias e valores, mas na suposta realidade dos fatos e na suposta eficácia dos meios de ação. Enfim, também sabemos que se trata de um discurso instituído ou da ciência institucionalizada e não de um saber instituinte e inaugural e que, como conhecimento instituído, tem papel de dissimular sob a capa de cientificidade a existência real da dominação. [...] A condição para o prestígio e para a eficácia do discurso da competência como discurso do conhecimento depende da afirmação tácita e da aceitação tácita da incompetência dos homens enquanto sujeitos sociais e políticos. Nesse ponto, as duas modalidades do discurso da competência convergem numa só. Para que esse discurso possa ser proferido e mantido é imprescindível que não haja sujeitos, mas apenas homens reduzidos à condição de objetos sociais. [...] Invalidados como seres sociais e políticos, os homens seriam revalidados por in- termédio de uma competência que lhes diz respeito enquanto sujeitos individuais ou pessoas privadas. Ora, essa revalidação é um logro na medida em que é apenas a transferência, para o plano individual e privado do discurso competente do conhecimento cujas regras já estão dadas pelo mundo da burocracia e da organização. Ou seja, a competência privada está sub- metida à mesma reificação que preside a competência do discurso do conhecimento. Basta que prestemos uma certa atenção ao modo pelo qual opera a revalidação dos indivíduos pelo conhecimento para que percebamos sua fraude. (CHAUÍ, 1997, p. 11-12) Organização curricular: a quem serve a escola 58 A formulação de competências se configura como um aspecto favorável quan- do torna possível a abertura de um campo de análise e reflexão sobre os objetivos das áreas do conhecimento e consequentemente das diversas disciplinas, quando tam- bém promove a integração e a articulação dos diversos conhecimentos, superando a fragmentação. No entanto, não se pode adotar uma atitude ingênua ignorando que a formulaçãodas competências nos PCN acaba por tornar distante e até mesmo por cercear a possibilidade do saber instituinte, na medida em que apresenta a proposta sedutora de colocar a escola no contexto de uma realidade moderna, referendada pela notoriedade do conhecimento científico, sua aplicação prática – as tecnologias e, da sua “possível” inserção no mundo do trabalho. Trata-se de questionar se a integra- ção da escola e do aluno ao mundo contemporâneo pode ser reduzida à condição de submissão e de simples apropriação de um vocabulário científico/tecnológico, de um saber pronto e instituído. Imagem 24 – Por meio das fi- bras ópticas, a luz de um laser pode ser desviada para assu- mir trajetos curvos. Imagem 25 – Os mursi, povo do sudoeste da Etiópia, assistem a um documentário sobre eles mesmos feito por uma equipe de televisão que os visitou. Para tal povo, a televisão é uma faca de dois gumes: ao mesmo tempo em que os ajuda a com- preender seu lugar no mundo moderno, pode levá-los a abandonar suas crenças e seu estilo tradicional de vida. (Nova Enciclopédia Ilustrada da Folha, 1996) [...] Como escreve Lefort. Homem passa a relacionar-se com seu trabalho pela mediação do discurso da tecnologia, a relacionar-se com o desejo pela mediação do discur- so da sexologia, a relacionar-se com a alimentação pela mediação do discurso dietético, a relacionar-se com a criança por meio do discurso pedagógico e pediátrico, com o lactente, por meio do discurso da puericultura, com a natu- reza pela mediação do discurso ecológico, com os demais homens por meio do discurso da psicologia e da sociologia. Em uma palavra, o homem passa a relacionar-se com a vida, com o seu corpo, com a natureza, e com os demais seres humanos através de mil pequenos modelos científicos nos quais a di- mensão propriamente humana da experiência desapareceu. Em seu lugar sur- gem milhares de artifícios mediadores e promotores de conhecimento que constrangem cada um e todos a se submeterem à linguagem do especialista que detém os segredos da realidade vivida e que, indulgentemente, permite ao não especialista a ilusão de participar do saber. Esse discurso competente não exige uma submissão qualquer, mas algo profundo e sinistro: exige a interio- rização de suas regras, pois aqueles que não as interiorizarem correm o risco de ver-se a si mesmo como incompetente, anormal, a-social, como detrito e lixo. (CHAUÍ, 1997, p. 11-12) [...] A ciência da competência tornou-se bem-vinda, pois o saber é perigoso apenas quando é instituinte, negador e histórico. O conhecimento, isto é, a competência instituída e institucional não é um risco, pois é a arma para um Imagem 26 – Uma carteira para dois em Ortigueira, Paraná: esforço leva supletivo à zona rural. Organização curricular: a quem serve a escola 59 fantástico projeto de dominação e intimidação social e política. Como podemos notar, não basta uma crítica humanista ou humanitária ao delírio tecnocrata, pois este é apenas um efeito da superfície de um processo obscuro no qual conhecer e poder encontraram sua forma particular de articulação na sociedade contemporânea. (CHAUÍ, 1997, p. 10-13) Cabe ainda alertar e aprofundar o debate apresentando outro problema, este de ordem operacional, traduzido nas seguintes questões: quais tecnologias são acessíveis ao conhecimento escolar? As tecnologias de ponta estarão disponibilizadas? Dentro dos limites da estrutura física e das instalações disponíveis na maioria das escolas, sobretudo nas da rede pública, que conhecimento científico/tecnológico será possível oferecer? E por fim, qual a formação profissional necessária ao docente do Ensino Médio para transi- tar com desenvoltura e propriedade nos domínios das ciências e tecnologias? 1. Quais as contribuições que o estabelecimento das competências cognitivas pode oferecer à prá- tica educativa? 2. De que forma é possível superar, na ação educacional, a supremacia da ideologia na determina- ção das competências propostas nas áreas do conhecimento? BRASIL. Ministério da Educação. Secretaria de Educação Média e Tecnológica. Parâmetros Curri- culares Nacionais: Ensino Médio. Brasília, 1999. CHAUÍ, Marilena. Cultura e Democracia. 7. ed. São Paulo: Cortez, 1997. PESTANA, Maria Inês Gomes de Sá et al. Matrizes Curriculares de Referência para o SAEB. 2. ed. Brasília: Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais, 1999. 60 Organização curricular: a quem serve a escola Linguagens e suas representações Plurissignificação das linguagens Em meados dos anos 1980 iniciou-se uma discussão sobre a necessidade de re-modelação da escola brasileira. Tal discussão culminou na elaboração dos PCN (Parâmetros Curriculares Nacionais) – cujas diretrizes fundamentaram-se na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional 9.394/96 e no Parecer do Conse- lho Nacional da Educação/Câmara de Educação Básica 15/98. Assim, os PCN não podem ser entendidos como “a nova regulamentação” para o ensino, mas como um documento que traz sugestões para o trabalho do professor. Dessa forma, os PCN não são um trabalho pronto, acabado, mas uma “obra aberta” na qual o trabalho do professor e da escola é fundamental para que se atinja o objetivo: adaptar o Ensino Médio às exigências do mundo contemporâneo. Esta unidade aborda a área de Códigos e Linguagens, que agrega as seguintes disciplinas: Língua Portuguesa e Literatura, Língua Estrangeira Moderna, Educação Artística, Educação Física e Conhecimentos de Informática. O respeito à diversidade é o princípio básico da proposta desta unidade. Vivem em nós inúmeros; Se penso ou sinto, ignoro Quem é que pensa ou sente. Sou somente o lugar Onde se sente ou pensa. Fernando Pessoa Torna-se necessário, dessa forma, que antes de abordarmos o tópico códigos e linguagens tracemos um paralelo entre diversidade e linguagens. A partir da Revolução Francesa pretendeu-se um Estado cuja ação garantisse a igualdade dos cidadãos perante a lei. Neste final de século nos deparamos com inúmeras transformações por que passa o mundo – como, por exemplo, as diversas culturas e iden- tidades que se evidenciam no leste europeu, as guerras étnicas em Ruanda e Etiópia etc., – o desafio que se coloca, então, é como pensar a diferença. Dessa perspectiva, a luta atual não se limita apenas a lutar pela igualdade, mas essa luta estende-se também à luta pelo direito à diferença. A questão que se coloca, então, é a [...] diferença entre povos, culturas, tipos físicos, classes sociais: estará fadada a ser eternamen- te compreendida e vivida como desigualdade? Como relações entre superiores e inferiores, evoluídos e primitivos, cultos e ignorantes, ricos e pobres, maiores e menores, corretos e incor- retos, com direitos e sem direitos, com voz e sem voz? (SILVA; GRUPIONI, 1995, p. 17) Linguagens e suas representações 62 De modo particular, cabe-nos perguntar: como a comunidade escolar (entenda- -se aqui professor / aluno / escola) trata e vivencia a diferença, o diferente?. A tendência da escola sempre foi a de valorizar uma determinada manifestação cultural, uma determinada modalidade de língua em detrimento de outras modalidades e de outras manifestações, ou seja, a tendência da escola é reproduzir valores da cultura dominante (determinadas quase sempre pelo poder econômico), ignorando qualquer outra manifestação que fuja desse padrão. Ao colocar-se o respeito à diversidade como eixo dos PCN chama-se a atenção para o reconhecimento de manifestações culturais, linguísticas e históricas de comunidades historicamente marginalizadas. No processo pedagógico não se trata de substituir uma variedade por outra (porque uma é mais rica do que a outra, porque uma é certa e outra errada etc.), mas se trata de construir pos- sibilidades de novas interações dos alunos (entre si, com o professor, com a herança cultural), e é nestes processos interlocutivos que o aluno vai internalizando novos recursos expressivos, e por isso mesmo novas categoriasde compreensão do mundo. Trata-se, portanto, de explorar semelhanças e diferenças num diálogo constante e não preconceituoso entre visões de mundo e modos de expressá-las. (GERALDI, 1996, p. 69) O papel que o professor assume diante dessa perspectiva é de suma importância e o coloca como um dos possibilitadores da transformação esperada pela sociedade, pois não basta que a escola apenas reconheça a diversidade, seu papel é muito mais amplo; cabe à instituição escolar não apenas reconhecer diversas manifestações, mas também valorizá-las. Trata-se aqui de mudanças de concepções que fundamentam os currículos es- colares brasileiros. No ensino de Língua Portuguesa, por exemplo, mais do que res- peitar a língua do aluno, é preciso compreender que esse aluno também constrói a língua que todos usamos. Um aluno falante da variedade não padrão, numa escola que possibilite interlocuções com outras variedades (inclusive a padrão, mas não só ela, já que numa mesma sala de aula con- vivem diferentes variedades, por menores que sejam as diferenças que as identifiquem), não se apropria do dialeto de prestígio, mas ao contrário, enquanto locutor e interlocutor por seu trabalho linguístico, participa da construção desse dialeto. O dialeto de prestígio também se constrói historicamente, modificando-se, ainda que suas mudanças formais sejam mais len- tas. (GERALDI, 1996, p. 60) Finalmente, é preciso não perder de vista que é inerente ao ser humano a necessida- de de comunicar-se e buscar meios para isso. Dessa necessidade resultam manifestações diversas marcadas pela história sociocultural de cada indivíduo e de cada comunidade. Área de Códigos e Linguagens Desde que um homem foi reconhecido por outro como um ser sensível, pensante e semelhante a si próprio, o desejo e a necessidade de comunicar-lhe seus sentimentos e pensamentos fizeram-no buscar meios para isto. Rosseau A área de Códigos e Linguagens, coerente com o princípio da diversidade, agrupa disciplinas que trabalham as diferentes manifestações da linguagem: Língua Linguagens e suas representações 63 Imagem 27 – Coppélia. Espe- táculo apresentado pelo Grupo Petit Ballet – Curitiba. Imagem 28 – Máscara indígena. Imagem 29 – Adorations des Bergers – Georges de La Tour. Embora a linguagem verbal permaneça a forma de comunicação mais utilizada pelo homem, existem outras formas de manifestar seu pensamento, seus sentimen- tos, como a dança, as artes plásticas, a música, o teatro etc. É tão importante para um ser humano comunicar ao outro o que sente que estamos sempre buscando formas de manifestar isso e, nesse processo, todos somos ao mesmo tempo produtores e “con- sumidores” de várias formas de linguagens. Assim, se as linguagens são fruto de criação coletiva, a escola não pode mais privilegiar apenas uma manifestação para fundamentar seus ensinamentos. No seu trabalho com as linguagens, o professor deve proporcionar ao aluno um contato mais amplo possível com as diversas manifestações, sem esquecer que, como parte de uma comunidade, o aluno também tem papel ativo na sociedade, logo, produz novas linguagens e renova as já existentes. Face a essas colocações, [...] não se quer mais somente um cidadão que reconheça a herança cultural, mas que se torne um produtor de cultura. E aqui uma nova heterogeneidade: a escola tradicional reconhecia como cultura apenas certas manifestações do homem; o mundo contemporâneo (e em conse- quência a escola) reconhece culturas e cada vez mais essas culturas se interpenetram, cons- Portuguesa e Literatura, Língua Estrangeira Moderna, Educação Artística, Educa- ção Física e Conhecimentos de Informática. Atente para as linguagens abaixo: O poema Mario Quintana Um poema como um gole d’água bebido no escuro. Como um pobre animal palpitando ferido. Como pequenina moeda de prata perdida para sempre na floresta noturna. Um poema sem outra angústia que a sua misteriosa condição de poema. Triste. Solitário. Único. Ferido de mortal beleza. Linguagens e suas representações 64 tituindo o mosaico fragmentário do mundo em que vivemos e que precisamos conhecer para nele interferirmos. (GERALDI, 1996, p. 69) Ao entender que existem várias linguagens que se manifestam de modos dife- rentes valorizam-se não apenas as manifestações, mas o ser que produz essas mani- festações. Frei Beto verbalizou algo nessa direção em um texto publicado na revista Caros Amigos (abr./2000): Por isso é errado dizer que uma pessoa é mais culta do que a outra, ensinava Paulo Freire. O que há são culturas paralelas, complementares nas relações que a vida tece entre as pessoas. Você, por exemplo (falava a um agricultor), sabe o que é safra, irrigação, arrendatário, estia- gem, ocupação, assentamento. Talvez muitos estudantes de Medicina não consigam explicar o sentido dessas palavras. Mas conhecem o que é etiologia, diagnóstico, tomografia e terapia, como sei o que é liturgia, pastoral, gregoriano e escatologia. Cada pessoa domina as palavras e as artes de seu mundo. Assim, se retoma o importante papel da escola de proporcionar a valorização do ser humano, a tolerância e a melhora da qualidade de vida através do saber. 1. As variedades linguísticas trazidas pelo aluno para a sala de aula são uma manifestação de “diver- sidade”. A partir das discussões apresentadas, como o professor poderia trabalhar esse fato? 2. As linguagens são manifestadas de várias maneiras pelo homem. Ao reconhecer e valorizar essas manifestações, que papel a escola assume diante da sociedade? Linguagens e suas representações 65 BRASIL. Ministério da Educação. Secretaria de Educação Média e Tecnológica. Parâmetros Curri- culares do Ensino Médio: linguagens, códigos e suas tecnologias. Brasília, 1999. GERALDI, João Wanderley. Linguagem e Ensino: exercícios de militância e divulgação. Campinas: Mercado de Letras ALB, 1996. QUINTANA, Mário. 80 Anos de Poesia. 7. ed. São Paulo: Globo, 1996. SILVA, A. L.; GRUPIONI, L. D. B. A Temática Indígena na Escola: novos subsídios para professo- res de primeiro e segundo graus. Brasília: MEC/MARI/UNESCO, 1995. SPIESS, Dominique. Encyclopédie de la Peinture des Origines aux Impressionistes. Lausanne: Edita, 1993. Linguagens e suas representações 66 A condição humana como objeto de reflexão Diversidade de representações humanas Tempo, espaço, subjetividade, relações sociais e pensamento/ação O filósofo contemporâneo Karl Jaspers, num ensaio sobre teoria do conheci-mento, apresenta a ideia de que o conhecimento humano da realidade é sem-pre relativo e provisório, jamais absoluto, como pretendem os dogmáticos. Jaspers argumenta que o sujeito cognoscente nunca poderá atingir a essência do objeto e que todo conhecimento humano é uma representação. A verdade não está no sujeito, nem no objeto, mas na relação de conhecimentos que se estabelece entre ambos. A Filosofia e as Ciências Naturais e Humanas, formas de conhecimento sistemático e rigoroso, são alternativas criadas pelo ser humano, a fim de buscar representações mais seguras dos objetos que com ele se relaciona. No espaço escolar, as diversas disciplinas têm a responsabilidade de apresentar conhecimentos produzidos, bem como, conside- rando a concepção de competências, produzir novos conhecimentos – novas represen- tações acerca da realidade que virão a se postular como verdadeiras. Considerando a complexidade e a abrangência no processo de apresentação, com- preensão e produção do conhecimento, torna-se evidente que, por mais estruturada e organizada que seja uma disciplina, sozinha ela não poderá corresponder a esse nível de exigência. Nesse sentido, as estratégias apresentadas pela nova proposta – agrupamento por áreas de conhecimento, interdisciplinaridade e contextualização –, representam pos- sibilidades para sua efetivação. A organização das disciplinas por área do conhecimento se constitui num aspecto significativo da composição curricular, uma vez que acena para a superaçãoda fragmen- tação e da particularização do conhecimento e propõe, implicitamente, uma aproxima- ção, um diálogo entre os saberes propostos pelas diversas disciplinas que compõem cada área, na busca de uma compreensão mais elaborada e diversificada do seu objeto de estu- do, ampliando o campo de representações desse objeto. Pressupõe uma relação dialética entre as disciplinas, rompendo com um saber estanque e limitado à mera formalização. As três áreas estabelecidas para organização da base nacional comum, pelas Diretrizes Curriculares Nacionais do Ensino Médio são: Linguagens, Códigos e suas Tecnologias; Ciências da Natureza, Matemática e suas Tecnologias; Ciências Huma- nas e suas Tecnologias. Este módulo tem como objetivo apresentar uma discussão sobre a área de Ciências Humanas. Repensar o papel das Ciências Humanas na escola básica e organizá-las em uma área de co- nhecimento do Ensino Médio implica relembrar as chamadas “humanidades”, nome genérico que engloba as línguas e culturas clássicas, as línguas e literaturas vernáculas, as principais línguas estrangeiras modernas e suas literaturas, a Filosofia, a História e as Belas Artes. A finalidade educacional inscrita nesse humanismo respondia por uma formação moral e cultural de caráter elitista, que remontava tanto à cultura clássica antiga quanto ao humanismo renascentista, que a “modernizou”. [...] O regime republicano nascido sob a marca do positivismo instituindo “ordem e progresso” como lema, iniciou um redimensionamento do papel das Ciências Naturais no ensino do país, rompendo com a tradição “bacharelesca” na promessa de introduzir na escola secundária os conhecimentos voltados para a solução de problemas práticos, que levassem a superar o nosso “atraso”, como se dizia. [...] E, assim, curiosamente o ensino das humanidades era posto em cheque no momento em que principiavam os estudos que constituíam os primórdios de nossas Ciências Humanas, tocadas pelo mesmo pragmatismo que presidia os estudos dedicados à compreensão da natureza. As transformações socioeconômicas e políticas por que passou o Brasil na virada do século XIX para o século XX foram acompanhadas por uma série de trabalhos voltados para as ques- tões sociais, apoiados, porém, em um viés fortemente racista.[...] amparados pelos pressupostos teóricos e metodológicos extraídos de autores europeus, especialmente de língua inglesa e alemã, refletiram sobre a realidade brasileira produzindo estudos jurídicos, literários, históricos etnológi- cos, folclóricos e de psicologia social.[...] A partir dos anos 30 e 40 deste século, as Ciências Humanas, no Brasil, encontraram enor- me renovação, [...] dando origem às seguidas gerações de sociólogos, economistas, historiadores, antropólogos e cientistas políticos, que se dedicaram ao estudo da sociedade brasileira, em uma perspectiva de forte engajamento político, que acabaria esbarrando no enrijecimento da reação, no período que se seguiu a 1964. Ao longo desse processo de desenvolvimento das Ciências Humanas, as humanidades foram progressivamente superadas na cultura escolar.[...] Em sua constituição, voltaram-se para o ho- mem, não com a preocupação de formá-lo, mas de compreendê-lo. Assim fazendo, passaram a cir- cundar em torno de um mesmo objeto principal: o homem, explorado em todas as suas vertentes. A caracterização desses estudos como ciências está intimamente ligada às transformações sofridas pelas sociedades modernas, a partir das chamadas “Revoluções Burguesas” dos séculos XVIII e XIX, que introduziram novos paradigmas no campo da produção – a indústria – e do convívio social – a democracia representativa. [...] as Ciências Humanas [...] seguindo a inspiração positivista, transpunham para o campo da cultura os mesmos pressupostos aplicáveis ao estudo da natureza. Assim, incorporando as determinações que as fizeram se desenvolver como ciências autôno- mas, a História cumpriu a tarefa de construir uma identidade e uma memória coletivas, a fim de glorificar e legitimar os feitos dos Estudos Nacionais; a Sociologia traçou estratégias para ordenar e reordenar as novas relações sociais; a Ciência Política ocupou-se do poder, de como constituí- lo e regrá-lo; o Direito encarregou-se de construir um aparato legal e processos jurídicos para conservação ou renovação da ordem social; a Economia voltou-se para a otimização e o controle da produção e das trocas de bens; a Psicologia procurou compreender e amenizar o impacto das transformações sobre os comportamentos humanos; a Antropologia, em sua vertente etnográfica, lançou-se à descrição dos povos “exóticos”, que a expansão econômica e política das grandes po- tências capitalistas necessitava submeter; e a Geografia serviu para mapear as potencialidades dos A condição humana como objeto de reflexão 68 territórios nacionais ou daqueles a serem conquistados, além de exaltar as riquezas de cada “solo pátrio”. No século XX, a progressiva penetração dos pressupostos teóricos de Marx e Engels nas pesquisas da área instituiu ricos debates, cruzando perspectivas diferentes e antagônicas. O mar- xismo fez aumentar, embora sob enfoque diferente, as responsabilidades das Ciências Humanas perante o social.[...] [...] Sem que desaparecessem as concepções anteriores, no século XX, novas perspectivas teóricas têm procurado minar as certezas positivas, incorporando orientação mais relativista às análises. A crise de confiança gerada pelo desastre da Primeira Guerra Mundial e as crises econô- micas que a ela se seguiram deram origem, nos anos 30; a um esforço de revisão dos pressupostos positivistas, como o da fragmentação dos estudos. Deu-se, então, importante experiência inter- disciplinar, unindo-se historiadores, economistas, geógrafos e sociólogos, no esforço de tentar entender as razões da crise. [...] No Brasil, entretanto, os anos de autoritarismo institucionalizado, pós-64, tornaram as Ciên- cias Humanas suspeitas e banidas do “ensino de 1.º grau.” A História e a Geografia, desenvolvidas nos Estudos Sociais, que incluíam a “Educação Moral e Cívica”, tentativa de atualização para as massas de uma educação de caráter moral, sem o componente cultural próprio às humanidades. No Ensino Médio, a História e a Geografia sobreviveram, ao lado da “Organização Social e Polí- tica do Brasil”, espécie de geopolítica aplicada a noções básicas de Sociologia, Política e Direito. A “área” podia enriquecer-se ora pela Filosofia, ora pela Sociologia, ora pela Psicologia, com conteúdos diversificados, mas não obrigatórios. O estudo da Filosofia, fundamental na formação dos jovens, mas incômodo pelas questões que suscita, foi relegado ao exílio, juntamente com as Artes e o Latim.[...] Ecoando a definição curricular oficial, o imaginário social e o escolar ratificavam a impressão de que tais disciplinas, “absolutamente inúteis” do ponto de vista da vida prática, roubavam pre- cioso tempo ao aprendizado da Língua Portuguesa e das “Ciências Exatas”. Estes conhecimentos eram os que realmente importavam na luta pela aprovação nos exames vestibulares de ingresso aos cursos superiores de maior prestígio social. A lógica tecnoburocrática ali presente, embora assumisse um viés autoritário explícito, não fazia mais do que acompanhar uma tendência geral das sociedades contemporâneas. Pressionadas pelas necessidades de uma civilização cada vez mais apoiada nas Ciências Naturais e nas tecnolo- gias das decorrentes, tanto as humanidades quanto as Ciências Humanas perderam o prestígio. O momento, hoje, porém, é o de se estruturar um currículo em que o estudo das ciências e das humanidades sejam complementares e não excludentes. (PCN, 1999, p. 13-19) As Ciências Humanas têm no próprio homem seu objeto de estudo e, para melhor compreender o enfoque das diversas disciplinas que compõem essa área, sugere-se eleger a condição humana como elemento articulador das múltiplas representações do conhecimento. Assim, a área de Ciências Humanas discutirá, noEnsino Médio, a Condição Humana no espaço (Geografia), no tempo (História), sua subjetividade (Psi- cologia), sua sociabilidade (Sociologia), seu pensamento/ação (Filosofia). Trata-se de uma diversidade de abordagens, que somadas, diferenciadas, articuladas, relacionadas, analisadas, refletidas, apreendidas, irão compor, para o aluno, um conjunto de signifi- cações sobre o mundo e sobre a sua própria existência, oportunizando, portanto, novos A condição humana como objeto de reflexão 69 sentidos de vida. Cabe lembrar que outras disciplinas, como, por exemplo, Direito e Economia, podem também oferecer contribuições relevantes ao currículo escolar. Ao contrário do que em geral se crê, sentido e significado nunca foram a mesma coisa; o sig- nificado fica-se por aí, é direto, literal, explícito, fechado em si mesmo, unívoco, por assim di- zer, ao passo que o sentido não é capaz de permanecer quieto, fervilha de sentidos segundos, terceiros e quartos, de direções irradiantes que se vão dividindo e subdividindo em ramos e ramilhos, até se perderem de vista, o sentido de cada palavra parece-me com uma estrela quando se põe a projectar marés vivas pelo espaço afora, ventos cósmicos, perturbações mag- néticas, aflições. (SARAMAGO, 1997, p. 134-135) É importante esclarecer que ao se propor articulação e aproximação entre os diver- sos conhecimentos não se pretende subtrair a identidade de cada disciplina, pulverizando saberes de forma genérica e superficial. A educação vem perdendo muito em credibilidade e reconhecimento pelo pouco investimento, principalmente na formação de professores, na extensão e profundidade dos conhecimentos que considera de sua responsabilidade. Para finalizar a discussão sobre a área de Ciências Humanas cabe alertar sobre as possíveis contribuições e implicações, das diversas correntes de pensamento, na sua práxis. Como ciência, todo conhecimento por ela produzido se coloca em es- treita relação com uma ideologia. “A relação ciência/ideologia é entendida de modo peculiar pelas correntes metodológicas, dependendo de como concebem ideologia por um lado e de como fundamentam e relacionam cada um dos ramos da ciência à ideologia, por outro lado” (ARAÚJO, 1993, p. 141). A epistemologia contemporânea, na medida em que apresenta um leque amplo de leituras acerca das relações entre ciência e ideologia, transformou o debate dessa questão numa exigência. O enfo- que dialético marxista, o enfoque crítico de Habermas, o enfoque hermenêutico de Ricoeur, o enfoque anarquista de Feyrabend e o enfoque arqueogenealógico de Foucault, inviabilizam a defesa de uma concepção de neutralidade para as ciências em geral e, sobretudo, para as Ciências Humanas. Geografia Obstinada, a vida expande-se, portanto, e prolonga-se no espaço e no tempo, por pequenas caixas individuais. Há, então, que pensar essa propagação pagus por pagus, parcela ou nicho por área ou sítio, página por página, indivíduo por indivíduo de espécies diferentes, esta invasão por lugares distintos ou, dito de outro modo, meditar sobre a globalidade das localidades, soma que padece do mesmo paradoxo que a pretensão de há pouco, encontrar o universal do ser vivo na singularidade do lugar. [...] Michel Serres A Geografia tem como objeto de estudo o espaço geográfico, definido por Mil- ton Santos como um conjunto de sistemas de objetos – prédios, ruas, pontes, rede de iluminação e saneamento – e um conjunto de sistemas de ações – produção, cir- culação de mercadorias, rede de comunicação, consumo, que funcionam de forma indissociável e revelam as práticas sociais dos diversos grupos, que nesse espaço produzem, lutam, fazem projetos, vivem, sobrevivem e “fazem a vida caminhar”. Por meio do conhecimento geográfico é possível compreender a forma de apro- priação dos lugares pelos homens revelando sua identidade social, suas relações de consenso e conflito, de dominação e da resistência; a constituição das diversas paisa- A condição humana como objeto de reflexão 70 gens que revelam a complexidade da vida social; o estabelecimento dos territórios, entendidos como espaços delimitados e definidos por relações de poder, domínio de apropriação; enfim, é possível ampliar o entendimento sobre o mundo atual. Por pensamento geográfico entende-se um conjunto de discursos a respeito do espaço que substantiva as concepções que uma dada sociedade, num momento determinado, possui acerca do seu meio (desde o local ao planetário) e das relações com ele estabelecidas. Trata-se de um acervo histórico e socialmente produzido, uma fatia da substância da for- mação cultural de um povo. Nesse entendimento, os temas geográficos distribuem-se pe- los variados quadrantes do universo da cultura. Eles emergem em diferentes contextos discursivos, na imprensa, na literatura, no pensamento político, na ensaísta, na pesquisa científica etc. Em meio a essas múltiplas manifestações vão sedimentando-se certas vi- sões, difundindo-se certos valores. Enfim, vai sendo gestado um senso comum a respeito do espaço. Uma mentalidade acerca de seus temas. Um horizonte espacial, coletivo. Esse processo não é isento de tensões, antagonismos, e muito menos autônomo em relação ao movimento político da sociedade. Ao contrário, tais valores são componentes funda- mentais desse movimento, na medida em que o espaço (sua gestão, sua representação, os projetos e imagens a seu respeito) representa um dos condutos mais eficazes do poder; o que se apreende facilmente na leitura de Ratzel ou de Foucault. Assim, os discursos geográficos engatam-se com algumas problemáticas centrais postas na prática social do mundo contem- porâneo. Geralmente, essas discussões não se revestem da denominação de Geografia, porém é através delas que a Geografia material do planeta vai sendo desenhada. As transformações efetuadas na superfície da terra seguem muito mais esta “Geografia dos Estados Maiores”, da “mídia” etc., do que da que flui nos currículos, nos tratados e nas academias. Se bem que ambas se articulem, notadamente na formação da opinião pública. (TEIXEIRA, 1998) História Naquele tempo havia um homem lá. Ele existiu naquele tempo. Se existiu, já não existe. Existiu, logo existe porque sabemos que naquele tempo havia um homem e existirá, enquanto alguém contar sua história. Era um ser humano que estava lá, “naquele tempo”, e só seres humanos podem contar sua história porque só eles sabem o que aconteceu “naquele tempo”. “Aquele tempo” é o tempo dos seres humanos, o tempo humano. Agnes Heller Em Uma Teoria da História, Agnes Heller (1993, p. 15) afirma que [...] a História – com maiúscula – é um projeto da civilização moderna, cujas experiências de vida ela exprime. São esperanças e desesperos, lutas, vitórias e derrotas, ódios e amores, dúvidas e crenças, exaltações e humilhações, tensões e contradições, as catástrofes e a ca- pacidade de superá-las, crimes e castigos, heroísmos e mesquinharias, poesia e prosa, além, é claro, dos valores da modernidade. [...] Em consequência, a “História”, enquanto tal, não constitui a história da humanidade. A “História” transformada em história da humanidade que engloba o passado, presente e futuro é apenas construção mental de nossa história, da moderna forma de existência e de sua história. Como já foi afirmado, todo o conhecimento produzido pela humanidade são re- presentações da realidade e, portanto, resultado das mais diversas concepções. Com a História não poderia ser diferente, ela passa a se organizar como disciplina no final do século XVIII e sua produção tem sido o resultado de interpretações de dados, do- cumentos e aspectos da vida cultural, política e econômica das sociedades através do tempo. É fundamental que se tenha clareza do papel determinante do pesquisador no processo de investigação, bem como no resultado da pesquisa histórica. O recorte do A condição humana como objeto de reflexão 71 passado, feito pelo historiador, está revestido de uma forte interferênciae, mesmo, de uma intencionalidade. Não há neutralidade na pesquisa histórica. O passado histórico é um dado objetivo e não pura fantasia, criada por quem escreve. Mas essa objetividade, composta de relações materiais, de produtos da imaginação social e da cultura, passa pelo trabalho de construção do historiador. [...] ele seleciona fatos, processos sociais etc., e os interpreta de acordo com suas concepções e as informações obtidas. Por isso, ao mesmo tempo em que não é arbitrária, a História – tanto ou mais do que outras disciplinas – se encontra em constante elaboração. (FAUSTO, 1995, p. 15) A manutenção da História nos currículos escolares durante o período obscuro vivido pela sociedade brasileira, na Ditadura Militar, teve como ônus sua mutilação – agravando seu caráter reducionista, já determinado pela supremacia de fundamen- tos positivistas e, cristalizando concepções simplistas e deturpadas dos processos históricos. A História ensinada naquele período era a História oficial, dos “heróis”, eventos e datas, cuja função era impor uma identidade nacional que representasse e garantisse os interesses dos poderes dominantes. Com o processo de redemocratização do ensino, a História vem buscando a superação desse viés conservador, por meio da retomada da articulação com a pro- dução acadêmica e com as novas correntes de pensamento. O debate historiográfico tem sido intenso, com abordagens diversas sobre antigos temas e há a inclusão de novos objetos que constituem as múltiplas facetas da produção humana e que se sustentam em uma pluralidade de fundamentos teóricos e metodológicos. A história social e cultural tem se imposto de maneira a rearticular a história econômica e a política possibilitando o surgimento de vozes, de grupos e de classes sociais antes silencia- dos. Mulheres, crianças, grupos étnicos diversos têm sido objeto de estudos que redimensio- nam a compreensão do cotidiano em suas esferas privadas e políticas, a ação e o papel dos indivíduos, rearticulando a subjetividade ao fato de serem produto de determinado tempo histórico no qual as conjunturas e as estruturas estão presentes. (PCN, 1999. p. 42-43) O trânsito e o diálogo entre as diversas abordagens dos processos históricos – concepções marxistas, estudos do cotidiano e mentalidades – devem se fazer presentes nas propostas de História no Ensino Médio, aprofundando o entendi- mento dos matizes do tempo histórico e das possibilidades de ação dos sujeitos nos acontecimentos estruturais e conjunturais, ampliando as noções de diversidade e diferença e dos possíveis sentidos da identidade individual e social. Nessa pers- pectiva, o ensino da História tem muito a contribuir para a formação da cidadania, pois, como afirmou Boris Fausto (1995, p. 13), “não chega a ser cidadão quem não consegue se orientar no mundo em que vive, a partir do conhecimento da vivência das gerações passadas”. Psicologia Um narciso disperso, fragmentado, um corpo ardente e desengonçado em busca de amor, paixão, atos heróicos, vivências internas. A oscilação entre as manifestações ruidosas, agressivas, em bandos e grupos, e a solidão intensa, o “ninguém me entende”. Clara Regina Rappaport A subjetividade do homem, objeto de estudo da Psicologia, é elemento indispen- sável para uma melhor compreensão da existência humana. Partindo da necessidade A condição humana como objeto de reflexão 72 de criar no espaço escolar condições para o real entendimento dos princípios da Autonomia, Identidade e Diversidade, transformando-os em ações que incluam vi- vências individuais e coletivas, a Psicologia se apresenta como uma ciência capaz de contribuir na formulação de alguns dos conhecimentos necessários. Os campos de investigação da Psicologia como: a estrutura e desenvolvi- mento das diversas operações mentais – percepção, linguagem, imaginação, fan- tasia – os processos de desenvolvimento do comportamento – infância, puberdade, adolescência – as relações estabelecidas em grupos e na sociedade; as noções de consciente, inconsciente, desejo e suas relações com a realidade; as diversas pato- logias e perturbações; entre outros, oferecem contribuições significativas para que o aluno possa compreender melhor a sua singularidade, estabelecendo relações mais harmoniosas ou menos conflituosas com o mundo ao seu redor. Considerando a faixa etária majoritária dos alunos que frequentam o Ensino Médio, a disciplina de Psicologia está fortemente comprometida com o estudo sobre a adolescência, sua crise peculiar, com todas as consequências explícitas ou implí- citas que determinam um “jeito de ser” no mundo. Ressalta-se como fundamental a discussão acerca da sexualidade, das drogas, da violência e das relações de trabalho na perspectiva da escolha profissional ou da sua impossibilidade real. A discussão dessa disciplina deve estar permeada por análises psicossociais, capazes de promover o desenvolvimento de indivíduos mais plenamente capazes de aumentar a visibilidade das relações imbricadas no seu fazer e no seu querer. Portanto, não admite a desvinculação de outros saberes, que vão se configurando como um grande mosaico de significações, cuja finalidade é investir cada sujeito de possibilidades múltiplas para a construção e a realização de seu projeto de vida. Sociologia Contemplar todos os homens do mundo, que se unem em sociedade para trabalhar, lutar e aperfeiçoar-se, deve-lhe agradar mais do que qualquer outra coisa. Antonio Gramsci (carta escrita na prisão ao seu filho) Os prenúncios de um pensamento social organizado de forma sistemática têm sua origem no século XVIII, porém, a palavra sociologia surgiu somente em 1830. O seu nascimento teve espaço numa Europa ainda abalada pelos reflexos da Revolução Francesa e que rumava para uma segunda revolução, a Industrial, consolidando, assim, a sociedade capitalista. O clima de insatisfação generaliza- da que permeava as classes trabalhadoras, excluídas do poder, do conhecimento e da cidadania, era visto pelos burgueses como uma ameaça concreta ao seu projeto. A compreensão científica das novas relações sociais emergentes desse contexto se apresentava como um imperativo para o exercício do controle da so- ciedade pelo Estado. É nessa trama complexa que o Positivismo oferece seus fun- damentos para a constituição da nova ciência, que viria a se chamar Sociologia. Se por um lado a corrente positivista, de Durkheim e Comte, teve forte influência como suporte científico para as análises sociais, bem como para sub- sidiar o desenvolvimento de estratégias de controle social, por outro lado, pensa- dores como Marx e Engels ofereceram à Sociologia contribuições que alteraram profundamente essa abordagem – o conhecimento das relações sociais passa a ser fundamentado pelos princípios da liberdade e transformação. Mesmo com o A condição humana como objeto de reflexão 73 surgimento de outras correntes de pensamento, como a weberiana, esse dualismo continua caracterizando o espaço de discussão e debate dessa ciência. Acontece que Sociologia é uma forma de autoconsciência científica da realidade social. Ex- pressa o entendimento que a sociedade, no seu todo ou em seus segmentos mais importantes, desenvolve a propósito de sua organização e seu funcionamento, refletindo o modo pelo qual ela se produz e reproduz, forma e transforma. Mas a sociedade não é única, idêntica, mesma. Desdobra-se em grupos, classes e movimentos sociais, bem como em relações, processos e estruturas de dominação e apropriação, envolvendo mentalidades, ideologias e utopias, e lançando-se todo o tempo em nível local, nacional, regional e mundial. Nesta altura da história, portanto, vale a pena repensar a Sociologia, refletir sobre suas pers- pectivas, realizar um balanço crítico das suas realizações, focalizar os seus impasses e imagi- nar as suas potencialidades como forma de autoconsciência científica da realidade social. Uma tarefa complexa e difícil, mas que pode ser realizada de modoseletivo. (IANNI, 1997, p. 15) Como disciplina do Ensino Médio, que tem nas relações sociais seus objetos de estudo, é imprescindível que haja um constante processo de reflexão e intercâmbio com as transformações da sociedade e necessariamente das Ciências Sociais. A importân- cia da Sociologia para o entendimento da condição humana reside na possibilidade de revelar a dinâmica de funcionamento da sociedade, suas transformações ou seu caráter conservador, a partir do estudo das classes e grupos sociais, da diversidade cultural, das significações das identidades coletivas, dos movimentos sociais, das minorias orga- nizadas, do Estado e seus mecanismos e da indústria cultural e da cultura de massas. Importante vislumbrar na ação educacional o resgate de um dos principais atribu- tos das Ciências Sociais – a pesquisa. A pesquisa teórica desenvolvida conjuntamente com a pesquisa de campo pode promover a contextualização e um intenso debate sobre as contradições sociais e as perspectivas concretas de participação no processo de trans- formação da sociedade, contribuindo para o exercício da cidadania. Filosofia Se desejamos seriamente aplicar-nos ao estudo da filosofia e à busca de todas as verdades que somos capazes de conhecer, nos libertaremos em primeiro lugar de nossos preconceitos, e mostrare- mos rejeitar todas as opiniões que outrora recebemos em nossa crença, até que as tenhamos mais uma vez examinado; a seguir reveremos as noções que estão em nós, e receberemos como verdadeiras somente aquelas que se apresentarem clara e distintamente ao nosso entendimento. René Descartes O processo de democratização que o Brasil vem vivenciando a partir da década de 1980 trouxe à tona uma série de discussões no âmbito da educação, entre elas, a volta da disciplina de Filosofia ao Ensino Médio. A Filosofia foi “substituída” durante o período da Ditadura Militar por outras disciplinas cujos conteúdos convergiam com os interesses autoritários daquele regime. O retorno da Filosofia ao currículo se apresenta como resultado de um trabalho, uma conquista da democracia. Representa o desafio de oferecer aos estudantes, mais que uma visão panorâmica de conteúdos clássicos e polêmicos acumulados ao longo de 25 séculos, um convite, uma provocação à indagação e à reflexão filosófica. Alguém escreveu, certa vez, que a Filosofia nutre-se daquilo que ela não é, o que de certa forma é verdadeiro, basta uma passada de olhos por seus conteúdos A condição humana como objeto de reflexão 74 clássicos – Ética, Política, Estética, Epistemologia e Teoria do Conhecimento – para se compreender tal afirmação. A filósofa brasileira Marilena Chauí também dirige seu pensamento nessa direção, ao afirmar que a Filosofia não é ciência, não é arte, não é psicologia, nem sociologia, não é política, não é história, mas apresenta-se como uma reflexão crítica sobre os fundamentos, conceitos, procedimentos, conteúdos e significações dessas e de outras criações humanas. Essa característica de síntese do pensamento filosófico é, sem dúvida, uma de suas principais virtudes, pois as diversas disciplinas de formação do Ensino Médio possibilitam uma compreensão específica dentro do seu campo de abordagem, mas somente a Filosofia pode proporcionar a compreensão da existência humana de uma forma geral, não fragmentada. Também é fator fundamental, na formação do cidadão democrático, o exercício do pensamento crítico, sistemático, fundamentado em conceitos rigorosos e encadeados logicamente. Cabe, ainda, ressaltar o seu caráter não dogmático, não absolutizante. Em outras palavras, a Filosofia está sempre disposta a levantar novas questões, a repensar, a recomeçar. Nesses tempos em que o neoliberalismo e os neototalitarismos nos ameaçam com a imposição de um pensamento único e com suas consequências, que já se apresentam de forma muito concreta e avassaladora, a Filosofia continua sendo um instrumento imprescindível na busca da liberdade, por meio da compreensão da realidade e da ação transformadora. 1. Por que a organização das disciplinas por área do conhecimento no currículo representa um avanço para o Ensino Médio? A condição humana como objeto de reflexão 75 2. De que forma as Ciências Humanas podem superar as ameaças de constituir-se como um co- nhecimento dogmático? Agnes Heller – filósofa húngara contemporânea. Publicou, entre outros: A Filosofia Radical e Uma Teoria da História. Boris Fausto (1930) – professor do Departamento de Ciências Políticas da USP. Publicou, entre outros: História do Brasil. Karl Jaspers (1883-1969) – médico psiquiatra e filósofo existencialista alemão. Lecionou Filosofia em Heidelberg (afastado pelo governo de Hitler) e em Basel. Publicou: Introdução ao Pensamento Filo- sófico; A Culpabilidade Alemã; Nietzsche. Michel Serres (1930) – filósofo francês, membro da academia francesa. Publicou, entre outros: O Contrato Natural; O Terceiro Instruído; Diálogo Sobre a Ciência, a Cultura e o Tempo. Milton Santos (1926) – professor titular de Geografia Humana da USP. Publicou, entre outros: Por uma Nova Geografia; Técnica, Espaço, Tempo: globalização e meio técnico-científico informacional; Espaço e Método. Salete Kozel Teixeira – professora de Geografia da UFPR. A condição humana como objeto de reflexão 76 ARAÚJO, Inês Lacerda. Introdução à Filosofia da Ciência. Curitiba: UFPR, 1993. BRASIL. Ministério da Educação. Secretaria de Educação Média e Tecnológica. Parâmetros Curri- culares Nacionais: Ensino Médio. Brasília, 1999. FAUSTO, Boris. História do Brasil. 2. ed. São Paulo: USP, 1995. FOUCAULT, Michel. A Arqueologia do Saber. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense-Universitária, 1986. HELLER, Agnes. Uma Teoria da História. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1993. IANNI, Octávio. A sociologia numa época do globalismo. In: FERREIRA, Leila da Costa. A Socio- logia no Horizonte do Século XXI. São Paulo: Bontempo, 1997. JASPERS, Karl. Introdução ao Pensamento Filosófico. São Paulo: Cultrix, [1976]. RAPPAPORT, Clara Regina (Coord.). Adolescência: abordagem psicanalítica. São Paulo: EPU, 1993. SARAMAGO, José. Todos os Nomes. São Paulo: Cia das Letras, 1997. SERRES, Michel. Atlas. Lisboa: Instituto Piaget, 1994. (Coleção Epistemologia e Sociedade). TEIXEIRA, Salete Kozel. Geografia e consciência do espaço. In: SEMINÁRIO CURRÍCULO DO ENSINO MÉDIO: PERSPECTIVAS DA IMPLANTAÇÃO. Resumos... Faxinal do Céu: SEED/PR, 1998. A condição humana como objeto de reflexão 77 A condição humana como objeto de reflexão 78 Natureza em transformação O conhecimento científico: do ver ao generalizar Da história do conhecimento científico A ciência experimental, tal qual a conhecemos hoje, é recente e data do século XVII. Para afirmar-se como ciência, travou longa e árdua batalha que sig- nificou a substituição da visão de mundo, sustentada e imposta pela aristocracia e pelo clero da Igreja Cristã, detentora do domínio político, religioso e intelectual sobre o mundo ocidental da época. A concepção de ciência vigente no século XVI havia sido recebida dos gregos e fora pouco modificada. A ciência grega buscou o conhecimento pelo conhecimen- to, de forma racional e conceitual, despreocupada de seu uso prático e desligada da religião. Compreender a natureza era encontrar um princípio explicativo para todas as coisas. A reflexão filosófica grega via na ausência do movimento, no repouso, a perfeição e, no movimento, na transformação, a busca pela perfeição. O cosmos foi dividido e hierarquizado: a região superior, os Céus, inalterado, formado pelo éter, de movimentos circulares, perfeita, chamada supralunar e a região inferior, a Terra, com corpos mortais e movimentos diversos, portanto, imperfeitos e constituídos pelo ar, terra, fogo e água, chamada sublunar. As coisas naturais tinham seu lugar e sua essência interior as movimentava. As de essência leve constituídas de ar e fogo direcionavam-se para cima, para os Céus, e as de essência pesada constituídaspela água e terra, movimentavam-se para baixo, para a Terra. Paralela a essa concepção, que faz da Terra imóvel o centro do Universo, ha- via outra corrente de filósofos que pensavam um Universo móvel, cujo centro seria o Sol, entre eles estavam Heráclito e Aristarco. Porém, o paradigma para o conheci- mento, ou seja, a visão sobre a qual procurava-se explicar todas as coisas, predomi- nante na Grécia Antiga, tinha por base um mundo estático, de natureza quantitativa (pesado e leve, imóvel e móvel, perfeito e imperfeito), pensado racionalmente a par- tir da contemplação e não da experiência. Aristóteles e Platão, filósofos de grande influência na época, sustentaram que a Terra era o centro do Universo. Imagem 30 – Pintura de Rafael, Escola de Atenas, mostrando Aris- tóteles (centro, à direita) e Platão (centro, à esquerda), filósofos gre- gos que pensavam a Terra como centro do Universo. Natureza em transformação 80 A humanidade chegou ao século XVI admitindo esse paradigma, porém, vin- culando a ciência aos interesses da Igreja e submetendo a razão humana ao testemunho da fé, é possível pensar racionalmente o mundo desde que não se- jam contrariados os dogmas religiosos. Naquela época, desacreditar o sistema geocêntrico, defendido por Cláudio Ptolomeu, era desacreditar a cria- ção divina e, portanto, opor-se à ordem estabelecida pela Igreja. O sistema de Ptolomeu tinha a forma do círculo, entendido como perfei- to. Mostrava um Universo compos- to pela Lua, pelos planetas Mercúrio, Vênus, Marte, Júpiter e Saturno, pelo Sol e por estrelas fixas, todos corpos ce- lestes redondos, girando em torno da Terra imóvel, dentro de círculos celes- tes, os condutores. Em nome da supremacia da Igre- ja foram torturados e condenados à morte na fogueira, pela Santa Inquisição, como hereges, todos aqueles que ousaram se contrapor ou se recusaram a abjurar de ideias próprias. Coube a Nicolau Copérnico, já idoso, após muitos anos de observa- ções astronômicas e minuciosos cálculos matemáticos, na obra Das Revo- luções dos Corpos Celestes, em 1543, tornar o Sol o centro de um Univer- so ainda finito e de órbitas circulares, trazendo à tona o sistema heliocêntrico. Mais do que mudar o centro do Universo, a teoria de Copér- nico tirou a Terra e o homem do centro de tudo e nos conduziu à revisão da criação do Universo, da vida e do próprio homem. Em 1600, Giordano Bruno foi condenado à fo- gueira por sustentar a bandei- ra do heliocentrismo e incluir nela a ideia de que o Universo seria infinito. A infinitude do Universo desapropriava Deus de sua moradia e os homens não estariam sendo vi- giados tão de perto. A hegemonia da Igreja passou a ser questionada, pois a morte dos homens não representava a morte das ideias. A transformação radical da ciên- cia acontece através de Galileu Galilei. Sua contribuição foi reabilitar o méto- do experimental, em novas bases, es- Imagem 32 – O sistema geocêntrico de Ptolomeu. Imagem 31 – Cláudio Ptolomeu (90-168). Imagem 33 – Nicolau Copérnico (1473-1543). Imagem 34 – Sistema heliocêntrico de Copérnico, pu- blicado em 1543, no livro Das Revoluções dos Corpos Celestes. Natureza em transformação 81 quecido desde o tempo de Arquimedes. O método de Galileu consistia em verificar experimentalmente uma conjectura, uma ideia sobre um fenômeno observado. Se o experimento, repetido várias vezes, concordasse com a conjectura, ela tornava-se ver- dadeira, caso contrário era refutada. Galileu, ao apontar seu telescópio para o céu e verificar que a Lua tinha irregularidades e o Sol manchas, não sendo tão perfeitos quanto se imaginava, que existiam milhares de estrelas muito além das observadas a olho nu e que corpos celestes giravam em torno de Júpiter, permitiu à ciência conquistar espaço próprio, livre do domínio da Igreja, numa sociedade que via renascer as Artes, as Letras e a Filosofia, sustentada pela classe burguesa emergente que garantiria uma revolução comercial e o desenvolvimento da economia capitalista. Sem jamais negar sua fidelidade católica, Galileu não confundia, como o cardeal Belarmindo, a Razão da Igreja e a Razão do Estado. Tampouco procurava identificar pesquisa científica com interpretação bíblico-religiosa. O que ele reivindicou, com muita convicção e tenacidade, foi a completa autonomia da demonstração científica. Defendeu ardorosamente que a ciência da natureza não podia mais ser concebida como uma filosofia ou como uma teologia da natureza. Porque o domínio científico é inteiramente distinto do terreno teológico. Fora de seu campo es- pecífico, os teólogos deveriam se calar. Não poderiam se considerar os garantidores da verdade universal. Doravante, compete à ciência falar da Natureza. [...] Assim, uma das características essenciais da revolução galileana consistiu em ter proclamado a autonomia da razão científi- ca relativamente à revelação bíblica e aos argumentos de autoridade. [...] Há uma inteligibili- dade racional que prescinde de uma garantia da explicação teológica. A explicação científica se dessacraliza. E é a autonomia do discurso científico que justifica, previamente, a síntese newtoniana. Instaura-se, pois, com Galileu, uma ciência da natureza distinta de uma teolo- gia da natureza. Doravante, os teólogos precisam calar-se a propósito de tudo aquilo que não é de sua competência. Seu silêncio é exigido em matéria de ciência natural. Não podem mais ser os donos da verdade universal. (JAPIASSU, 1991, p. 62-64) A partir do século XVII, o método científico é aplicado em diversos cam- pos de pesquisa e o conhecimento científico constituiu, de acordo com o objeto de estudo, diferentes áreas. A Física racional desenvolveu-se com os trabalhos de Kepler, Tycho Brahe, Newton e Einstein; a Química e a Biologia com os trabalhos de Lavoisier, Watson, Pasteur, Mendel e Darwin, entre outros. Dos gregos aos dias atuais, a concepção de ciência modificou-se. Marilena Chauí (1997, p. 252) cita três principais ideais de cientificidade ao longo desse tempo: o racionalista, cujo modelo de objetividade é a matemática; o empirista, que toma o modelo da objetividade da medicina grega e da história natural do século XVII; e o construtivista, cujo modelo de objetividade advém da ideia de razão como conhecimento aproximativo. Este último, relacionado ao desenvolvi- mento do conhecimento científico no século XX. Da base nacional dos currículos – conhecimento científico e educação Compondo a base nacional dos currículos a área de Ciências da Natureza, Matemática e suas Tecnologias abrange o conhecimento elaborado nos campos da Biologia, Física, Química e Matemática. Comum a esses diferentes campos do conhecimento está o caráter científi- co com que foram tratados os conteúdos por eles definidos e que lhes dão corpo. Natureza em transformação 82 Dessa ciência escreve-se: A ciência busca compreender a realidade de maneira racional, descobrindo relações universais e necessárias entre os fenômenos, o que permite prever acontecimentos e, consequentemente, também agir sobre a natureza. Para tanto a ciência utiliza métodos rigorosos e atinge um tipo de conhecimento sistemático, preciso e objetivo. (ARANHA; MARTINS, 1992, p. 89) É necessário compreender, portanto, que os conteúdos específicos elencados nessa área e distribuídos nas diferentes disciplinas têm um mesmo ponto em co- mum (o fato) e percorrem caminhos semelhantes até sua sistematização, ou seja, partem da sensibilidade do sujeito que vê de modo singular um aspecto da realidade ou que tem sua curiosidade aguçada porque o visto não corresponde aos padrões e generalizações ora postos; que em busca de respostas às suas indagações, procura confirmar suas ideias levantando, comparando e analisando dados de forma crite- riosa e, finalmente, sistematizando, conceituando, generalizando aquele primeiro olhar, desvelando um novo aspecto ou uma nova realidade, traduzida na escola em conteúdos. Simplificadamente, o método científico édescrito nos livros didáticos dividido nas seguintes etapas: observação de um fato, formulação de um proble- ma, elaboração de uma hipótese, experimentação e conclusão ou generalização. Inigualável é o papel desempenhado pela Matemática. Caracterizada no mundo ocidental como perfeita, pois é precisa e rigorosos são seus princípios e demonstrações, alicerça toda a construção do conhecimento científico. Enquan- to linguagem, essa disciplina é universal. Sua possibilidade de quantificação e expressão está refletida na música, na pintura, na arquitetura, na escultura, entre outras. A Matemática ciência, pura invenção do espírito humano, constrói e valida conceitos e argumentações, permitindo a interpretação e o estabelecimento de relações entre fenômenos. Influenciando as concepções filosóficas do mundo, da própria existência hu- mana e, compondo todo conhecimento físico, químico e biológico, a Matemática do ocidente chega ao século XX reduzida ao seu caráter lógico-dedutivo. Foi re- legado, a um segundo plano, seu caráter intuitivo e imaginativo, assim como sua dimensão sociocultural e política. Cabe lembrar que a ciência ou o cientista não buscam representar a reali- dade em si mesma, mas aproximar-se da realidade, construindo para isso modelos que expliquem a estrutura e o funcionamento da realidade. [...] o objeto científico é um modelo construído e não uma representação do real, uma apro- ximação sobre o modo de funcionamento da realidade, mas não o conhecimento absoluto dela. (CHAUí, 1997, p. 256) Vejamos alguns exemplos utilizados: Decompositores Cosumidores secundários Produtores Consumidores primários Natureza em transformação 83 Na Biologia, esse modelo nos mostra o caminho que a energia percorre a partir do momento em que é captada pelos organismos fotossintetizantes (produtores), sua transferência de um nível a outro na forma de energia química e o decréscimo da energia entre os diferentes níveis, em função da manutenção do metabolismo dos seres. Em Química usamos modelos para a representação dos elementos químicos, onde vê-se uma parte central – o núcleo, composto por prótons e nêutrons – e uma região periférica – a eletrosfera, na qual transitam elétrons. Por convenção, elétrons são “negativos” e prótons são “positivos”. Cada elemento químico tem característi- cas e propriedades individualizadoras expressas nos modelos. Na Física, o modelo geocêntrico foi substituído pelo heliocêntrico. Imagem 35 – Modelo heliocêntrico mostrando os planetas e as órbitas elípticas. Os diferentes modelos que buscam explicar a posição da Terra, e consequentemen- te dos homens, mostram que, com o decorrer do tempo, explicações acerca dos fatos foram revistas nos aproximando mais da verdade. Por outro lado, em vários momentos da história diferentes modelos científicos para o mesmo fato coexistiram. Popularizou-se a expressão matemática que afirma ser a energia diretamen- te proporcional à massa de um corpo e ao quadrado da velocidade da luz (no vácuo), de Einstein. E = m . c2 Nesse instante podemos estar nos perguntando: qual a importância de saber que as disciplinas da área de Ciências da Natureza e Matemática partilham um co- nhecimento dito científico e utilizam representações para nos aproximar da realida- de que podem ser reelaboradas ou abandonadas? As Diretrizes Curriculares Nacionais para o Ensino Médio, valendo-se do princípio de Autonomia, garantem a cada estabelecimento de ensino a definição de uma proposta pedagógica coerente com as características que lhes são próprias. O trabalho conjunto de toda a comunidade escolar (direção, equipe pedagógica, pais, Natureza em transformação 84 alunos e professores) deve construí-la. A proposta deve resguardar os princípios filosóficos da Política da Igualdade, da Ética da Identidade e da Estética da Sensibi- lidade e, da mesma maneira, os princípios pedagógicos da Identidade, Diversidade e Autonomia, Interdisciplinaridade e Contextualização, sem os quais não se efetiva a formação do cidadão capaz de não só compreender o mundo em que vive, mas nele estar inserido percebendo relações e participando de transformações, portanto, sujeito e agente da história. É no momento de elaboração da proposta para cada uma das disciplinas dessa área que devemos cuidar para não confundirmos conteúdos com modelos explicativos da realidade ou tomarmos os conhecimentos científicos como verda- des absolutas e imutáveis. Temos que ter claros os objetos de ensino de cada dis- ciplina; objetos estes que determinarão tratamentos didáticos específicos e metas formativas (competências e habilidades) particulares. O objeto de estudo da Biologia é o fenômeno vida; na Química são as transforma- ções sofridas pelos elementos e substâncias químicas; na Física, os objetos são a matéria e a energia e, na Matemática, os números, as figuras, as relações e as proporções. Na educação, a divisão em disciplinas foi o caminho encontrado para a trans- missão de conhecimentos. No entanto, não existe um limite rígido, uma fronteira que determine ser um conteúdo dessa ou daquela disciplina. Os conceitos, teorias e modelos transitam entre os diferentes campos do conhecimento. A compreensão do processo de transmissão de caracteres hereditários nos é mais clara quando entendemos a estrutura química do DNA (cromossomo) e qual a estrutura física dos elementos que compõem essa molécula. Os conhecimentos da área de Ciências da Natureza e Matemática estão inter-re- lacionados com o das outras áreas, pois o conhecimento científico é produção humana, portanto, construído em um dado contexto cultural, social, econômico e político. Vivemos numa época em que todo saber teórico busca ser aplicado na prática. Só a possibilidade de ação prática do conhecimento o valida. Cercamo-nos de instrumentos tecnológicos e é inconcebível viver sem o con- forto da luz elétrica, da profusão da indústria alimentícia, do deslocamento rápido possibilitado pelos automóveis e aviões ou da praticidade das roupas sintéticas. Inconteste são os benefícios dos antibióticos, das vacinas, dos recursos ci- rúrgicos disponíveis, da engenharia química e transmissão da energia, do som e da imagem via cabos. Lembremo-nos, porém, das bombas nucleares, dos armamentos bélicos químicos e biológicos, da vigilância individual e coletiva via satélite, da eugenia, do racismo, da fome, das desigualdades sociais. No século XVI a Igreja determinava a concepção de Universo e da exis- tência humana. E hoje? Não vivemos um autoritarismo científico que nos impõe um Universo de espaço infinito, mas finito no tempo, jamais imaginado pelos gregos antigos; e uma visão de homem fragmentado na busca pela compreen- são de sua constituição (células e tecidos) e do funcionamento de seus sistemas fisiológicos (coração, cérebro, músculos) e, no desvelar e manipular dos pro- cessos de reprodução humana (genes, clonagem, inseminação artificial), inter- vindo, inclusive, na relação com o outro, que nos era tão íntima. Natureza em transformação 85 Imagem 36 – O Universo infinito. Desqualificados foram os saberes não científi- cos. A tecnociência determina o que é relevante e irre- levante, o que é real e irreal, o justo e o injusto, o bom e o mau, o verdadeiro e o falso. Interfere em nossa vida social, política, econômica e mesmo afetiva. É importante estarmos alertas para o fato de que a ciência sempre esteve vinculada ao poder do- minante. É o mercado capitalista atual que sustenta os “avanços” e “progressos” da pesquisa científica. Não sem intenção de mercado. Haja vista, a polê- mica ética que o estudo do genoma humano abriu sobre a posse do conhecimento genético. Em que momento de nossa história optamos pelo dogma da ciência em substituição ao dogma da fé? Quando foi que abrimos mão de nossa sub- jetividade e passamos a objeto da ciência que de- Imagem 37 – O homem distanciado de sua humanidade. termina o que somos, o que devemos ser ou fazer? Quando asseguramos poder eautonomia à ciência no fazer juízo de moral? A que canto foi relegada a dimensão filosófica, ética e política do saber e do homem? Cabe a nós, profissionais da educação, em nossas salas de aula, a trans- missão dos conhecimentos sistematizados e, também, as respostas a essas e ou- tras difíceis perguntas, sem as quais caminhamos sem rumo para uma sociedade que não desejamos. 1. Leia com atenção a letra da música “Será”, escrita por Dado Villa-Lobos, Renato Russo e Mar- celo Bonfá, e cantada pelo conjunto Legião Urbana, e procure estabelecer relações com as con- cepções de ciência e de homem vigentes até o século XVII e as do século XX, tendo por base o que foi apresentado nesta unidade. Natureza em transformação 86 Tire suas mãos de mim Eu não pertenço a você Não é me dominando assim Que você vai me entender Eu posso estar sozinho Mais eu sei muito bem aonde estou Você pode até duvidar Acho que isso não é amor. Será só imaginação? Será que nada vai acontecer? Será que é tudo isso em vão? Será que vamos conseguir vencer? Nos perderemos entre monstros Da nossa própria criação Serão noites inteiras Talvez por medo da escuridão Ficaremos acordados Imaginando alguma solução Prá que esse nosso egoísmo Não destrua nosso coração. Brigar prá quê Se é sem querer Quem é que vai Nos proteger? Será que vamos ter Que responder Pelos erros a mais Eu e você Imagem 38 – Homem Andando, 1960. 2. A ilustração ao lado mostra uma escultura de bronze do artis- ta plástico Alberto Giacometti, denominada Homem Andan- do, de 1960. Essa figura descarnada e monumental, com uma superfície encaroçada e texturizada, é assombrosamente forte. Apesar de sua forma alongada e não natural, a escultura pretende significar solidão e a absoluta separa- ção entre nós mesmos e nossos semelhantes. Ela também acentua nossa fragilidade e a natureza efêmera da existência humana. (FONTES, 1999, p. 180) Por quais caminhos o conhecimento científico nos tem con- duzido? Para onde caminha o homem sem perceber os limites e poderes dessa forma de saber? Que homens queremos formar em nossas escolas? Hilton Japiassu – As Paixões da Ciência (1991). Maria Lúcia de Arruda Aranha e Maria Helena Pires Martins – Temas de Filosofia (1992). Marilena Chauí – Convite à Filosofia (1997). O Livro da Arte (1999). Natureza em transformação 87 ARANHA, Maria Lúcia de Arruda; MARTINS, Maria Helena Pires. Temas de Filosofia. São Paulo: Moderna, 1992. CHAUÍ, Marilena. Convite à Filosofia. São Paulo: Ática, 1997. _____. Brasil: mito fundador e sociedade autoritária. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2000. JAPIASSU, Hilton. As Paixões da Ciência. São Paulo: Letras & Letras, 1991. O Livro da arte. São Paulo: Martins Fontes, 1999. Natureza em transformação 88 Construir conhecimentos sobre a natureza Buscando respostas e investigando conceitos – Gatinho inglês – começou ela, meio tímida, pois não tinha muita certeza se ele iria gostar de ser tratado desse modo. O Gato deu um sorriso ainda mais largo. – “Ora vejam só! Parece que ele está gostando muito” – pensou Alice e foi em frente: – Você poderia me dizer, por gentileza, como é que eu faço para sair daqui? – Isso depende muito de para onde você pretende ir – disse o Gato. – Para mim tanto faz para onde quer que seja... – respondeu Alice. – Então, pouco importa o caminho que tome – disse o Gato. – ... contanto que eu chegue em algum lugar... – acrescentou Alice, explican- do-se melhor. – Ah, então certamente você chegará lá se você continuar andando bastante ... – respondeu o Gato. (CARROL, 1997, p. 58) Das intenções O diálogo acima é famoso e, com frequência, utilizado em livros de Filosofia na busca de compreensão das relações entre a Ciência e a Ética. Podemos estender o texto à área de Educação e perguntarmo-nos: exatamente onde, nós, agentes de educação, desejamos chegar? Precisamos ter claro o que buscamos. A Educação, aqui, em nível de Ensino Médio, tem um objetivo: a formação de seus educandos. Não uma formação qual- quer, mas aquela que prevê como resultado o exercício consciente da cidadania, a autonomia intelectual e do pensamento crítico, a compreensão dos processos produ- tivos atuais e o preparo básico para inserção no mundo do trabalho. Certamente essas metas não são pequenas e dependem de interesse e orga- nização coletivos, não bastando, portanto, um desejo individual meu, professor. É essencial a participação das mantenedoras, instituições que, a princípio, represen- tam os interesses sociais coletivos, suprindo, efetivamente, o sistema educacional em suas necessidades de infraestrutura física, material, administrativa e pedagógica, garantindo-lhe um funcionamento de qualidade. Partícipe e responsável pelo processo de formação em nível de Ensino Médio, cabe aos professores de Matemática, Física, Biologia e Química o desenvolvimento de competências e habilidades, previstas nos PCN (Parâmetros Curriculares Nacio- nais), transcritas a seguir: Construir conhecimentos sobre a natureza 90 Representação e comunicação D es en vo lv er a c ap ac id ad e de c om un ic aç ão . Le r e in te rp re ta r t ex to s d e in te re ss es c ie nt ífi co e te cn ol óg ic o. In te rp re ta r e u til iz ar d ife re nt es fo rm as d e re pr es en ta çã o (ta be la s, gr áfi co s, ex pr es sõ es , í co ne s.. .). Ex pr im ir- se o ra lm en te c om c or re çã o e cl ar ez a us an do te rm in ol og ia c or re ta . Pr od uz ir te xt os a de qu ad os p ar a re la ta r e xp er iê nc ia s, fo rm ul ar d úv id as o u ap re se nt ar c on cl us õe s. U til iz ar a s t ec no lo gi as b ás ic as d e re da çã o e in fo rm aç ão , c om o co m pu ta do re s. Id en tifi ca r v ar iá ve is re le va nt es e se le ci on ar o s p ro ce di m en to s n ec es sá rio s p ar a a pr od uç ão , a ná lis e e in te rp re ta çã o de re su lta do s d e pr oc es so s e e xp er im en to s c ie nt ífi co s e te cn ol óg ic os . Id en tifi ca r, re pr es en ta r e u til iz ar o c on he ci m en to g eo m ét ric o pa ra o a pe rf ei ço am en to d a le itu ra , d a co m pr ee ns ão e d a aç ão so br e a re al id ad e. Id en tifi ca r, an al is ar e a pl ic ar c on he ci m en to s s ob re v al or es d e va riá ve is , r ep re se nt ad as e m g rá fic os , d ia gr am as o u ex pr es sõ es a lg éb ric as , r ea liz an do p re vi sõ es d e te nd ên ci as , ex tr ap ol aç õe s, in te rp ol aç õe s e in te rp re ta çõ es . A na lis ar q ua lit at iv am en te d ad os q ua nt ita tiv os re pr es en ta do s g rá fic a ou a lg eb ric am en te , r el ac io na do s a c on te xt os so ci oe co nô m ic os e c ie nt ífi co s o u co tid ia no s. Investigação e compreensão D es en vo lv er a c ap ac id ad e de q ue st io na r p ro ce ss os n at ur ai s e te cn ol óg ic os id en tifi ca nd o re gu la rid ad es , a pr es en ta nd o in te rp re ta çõ es e p re ve nd o ev ol uç õe s. D es en vo lv er o ra ci oc ín io e a c ap ac id ad e de a pr en de r. Fo rm ul ar q ue st õe s a p ar tir d e si tu aç õe s r ea is e c om pr ee nd er a qu el as já e nu nc ia da s. D es en vo lv er m od el os a pl ic at iv os p ar a si st em as te cn ol óg ic os e n at ur ai s. U til iz ar in st ru m en to s d e m ed iç ão e d e cá lc ul o. Pr oc ur ar e si st em at iz ar in fo rm aç õe s r el ev an te s p ar a a co m pr ee ns ão d a si tu aç ão -p ro bl em a. Fo rm ul ar h ip ót es es e p re ve r r es ul ta do s. El ab or ar e st ra tégi as d e en fr en ta m en to d as q ue st õe s. In te rp re ta r e c rit ic ar re su lta do s a p ar tir d e ex pe ri m en to s e d em on st ra çõ es . A rt ic ul ar o c on he ci m en to c ie nt ífi co e te cn ol óg ic o nu m a pe rs pe ct iv a in te rd is ci pl in ar . En te nd er e a pl ic ar m ét od os e p ro ce di m en to s p ró pr io s d as C iê nc ia s N at ur ai s. C om pr ee nd er o c ar át er a le at ór io e n ão d et er m in ís tic o do s f en ôm en os n at ur ai s e so ci ai s e u til iz ar in st ru m en to s a de qu ad os p ar a m ed id as , d et er m in aç ão d e am os tr as e c ál cu lo d e pr ob ab ili da de s. Fa ze r u so d os c on he ci m en to s d e Fí si ca , Q uí m ic a e Bi ol og ia p ar a ex pl ic ar o m un do n at ur al e p la ne ja r, ex ec ut ar e a va lia r i nt er ve nç õe s p rá tic as . A pl ic ar a s t ec no lo gi as a ss oc ia da s à s C iê nc ia s N at ur ai s n a es co la , n o tr ab al ho e e m o ut ro s c on te xt os re le va nt es p ar a a su a vi da . Contextualização sociocultural C om pr ee nd er e u til iz ar a c iê nc ia c om o el em en to d e in te rp re ta çã o e in te rv en çã o e a te cn ol og ia c om o co nh ec im en to si st em át ic o de se nt id o pr át ic o. U til iz ar e le m en to s e c on he ci m en to s c ie nt ífi co s e te cn ol óg ic os p ar a di ag no st ic ar e e qu ac io na r q ue st õe s s oc ia is e a m bi en ta is . A ss oc ia r c on he ci m en to s e m ét od os c ie nt ífi co s c om a te cn ol og ia d o si st em a pr od ut iv o e do s s er vi ço s. R ec on he ce r o se nt id o hi st ór ic o da c iê nc ia e d a te cn ol og ia , p er ce be nd o se u pa pe l n a vi da h um an a em d ife re nt es é po ca s e n a ca pa ci da de h um an a de tr an sf or m ar o m ei o. C om pr ee nd er a s c iê nc ia s c om o co ns tr uç õe s h um an as , e nt en de nd o co m o el as se d es en vo lv er am p or a cu m ul aç ão , p or c on tin ui da de o u ru pt ur a de p ar ad ig m as , r el ac io na nd o o de se nv ol vi m en to c ie nt ífi co c om a tr an sf or m aç ão d a so ci ed ad e. C om pr ee nd er a re la çã o en tre d es en vo lv im en to d e C iê nc ia s N at ur ai s e o d es en vo lv im en to te cn ol óg ic o e as so ci ar a s d ife re nt es te cn ol og ia s a os p ro bl em as q ue se p ro põ e so lu ci on ar . En te nd er o im pa ct o da s t ec no lo gi as a ss oc ia da s à s C iê nc ia s N at ur ai s, na v id a pe ss oa l, no s p ro ce ss os d e pr od uç ão , n o de se nv ol vi m en to d o co nh ec im en to e n a vi da so ci al . Construir conhecimentos sobre a natureza 91 A análise do quadro da página anterior nos permite o destaque de alguns as- pectos que merecem atenção. São eles: As disciplinas de Química, Física, Matemática e Biologia têm objetivos comuns. Deve-se lembrar que não é casual o fato dessas disciplinas compo- rem uma área, pois têm em comum o “caráter científico” que pressupõe uma metodologia experimental específica. Está prevista uma articulação entre as três áreas do conhecimento: Represen- tação e Comunicação refere-se diretamente à área de Linguagens e Códigos, Percepção Sociocultural ligada à área de Ciências Humanas e Investigação e Compreensão, mais estreitamente relacionada à área de Ciências da Natureza e Matemática, o que aponta para um trabalho interdisciplinar. As categorias juntas refletem o esforço das três áreas na formação do educando. As competências e habilidades descritas em Investigação e Compreensão são o conhecimento e a vivência do método científico. A tecnologia é mencionada nos três subgrupos que compõem o quadro. Da ciência e da tecnologia Dos itens apontados tomaremos para análise as relações entre ciência e tecnologia. Convivemos com a utilização de diferentes noções de ciência. É comum refe- rências à Ciência Pura e à Ciência Aplicada. A Ciência Pura seria aquela que busca o conhecimento novo, em si mesmo, sem preocupação com o seu destino, com as aplicações sociais concretas. O seu lugar é o laboratório e, metodologicamente, são controladas as variáveis sociais (pressões sociais, políticas, econômicas etc.) e, por isso, erroneamente, se não ingenuamente, é qualificada, com frequência, como neutra. A Ciência Aplicada (ou tecnologia) seria o conhecimento científico com intenção social própria, ou seja, elaborado para o uso concreto em um dado contexto social. Em Introdução à Teoria da Ciência, Dutra (1998, p. 130) mostra-nos que no período que vai de Bacon até Popper, Hempel e Salmon, esses conceitos não se dis- tinguem. A tarefa da ciência era dar explicações sobre o mundo. Explicar era propi- ciar ao homem condições de dominar a natureza e melhorar sua condição de vida no mundo que habita. O conhecimento científico era um instrumento, uma ferramenta de dominação do homem sobre a natureza. Já Hempel e Popper não descartam o domínio como intenção da ciência, po- rém, acrescem a esta uma segunda, a curiosidade, o desejo humano de saber como a natureza funciona, sem necessariamente, desejar dominá-la ou estabelecer sobre ela relações de poder. Aqui, separam-se as ciências de domínio teórico das de domínio prático. Cabe à Ciência Pura buscar respostas aos fatos despertados pela nossa curiosidade. Para tal, as leis e teorias são necessárias para a formulação de boas explicações ou repre- Construir conhecimentos sobre a natureza 92 sentações do mundo. Instrumentar o homem para se apropriar do mundo é tarefa da Ciência Aplicada. Para van Fraassen a tarefa da ciência não é a busca de explicações, motivadas quer pelo domínio da natureza ou pela necessidade de saber como ela funciona, como querem Popper e Hempel, e também não é a busca da verdade como querem os realistas. Cabe à Ciência Pura uma aproximação da verdade que é representada por modelos, elaborados a partir de leis e teorias. Ao contrário da visão clássica, a tarefa da ciência aplicada (tecnologia) consiste em dar explicações. Essas explicações são dadas a partir da relação entre teorias, fatos e contextos. Teorias só podem fornecer boas explicações dentro de determinados contextos, visto que elas não têm um poder explicativo por si mesmas. Assim como, ao formularmos uma teoria científica, não sabemos ainda todas as implicações tec- nológicas que ela poderá ter (algumas vezes imaginamos algumas e, outras, nenhuma), também no caso da explicação científica, não sabemos exatamente que eventos do mundo ela poderá explicar. Apenas dentro de determinados contextos é possível saber isso. Claro que, como as teorias também são elaboradas dentro de certos contextos experimentais, sabemos de saída que ela pode explicar, mas seu poder explicativo não está determinado antecipadamente, para qualquer contexto. Por isso, para van Fraassen, a explicação é ciência aplicada ou o uso de teorias científicas para, em contextos determinados, dar explicações. (DUTRA, 1998, p. 130) Sinteticamente temos: Francis Bacon – Ciência é exercício de poder. Popper, Hempel e Salmon – Ciência Pura é conhecimento pelo conhe- cimento (teoria). – Ciência Aplicada resulta em objetos tec- nológicos (prática). Van Fraassen – Ciência Pura é aproximação da verdade com a construção de modelos. – Ciência Aplicada é relação entre fato, teoria e contexto Consideremos também que, apesar do uso distinto, Ciência Pura e Ciência Aplicada legitimam-se mutuamente. A Ciência Purapretende-se Ciência Aplicada, ou seja, a ciência desinteressada hoje pode ser útil amanhã, resultando, inclusive, em objetos tecnológicos. Já a Ciência Aplicada valida-se pelo uso que faz de teorias, resultados da Ciência Pura. Das escolhas Nos Parâmetros Curriculares Nacionais, especialmente na área de Ciências da Natureza, Matemática e suas Tecnologias, é preciso cuidar sobre o significado toma- do para as noções de Ciência e de Tecnologia, tão amplamente citadas. Construir conhecimentos sobre a natureza 93 É importante investigar esses conceitos que podem estar carregando, ainda, em nossa prática diária, um ranço da ideia baconiana de dominação da natureza por parte do homem e justificando relações de poder econômico, político ou so- cial, e verificar se a tecnologia é entendida como uma produção contextualizada. A significação que nós professores damos a esses conceitos carecem de análise para não incorrermos no erro de, em sala de aula, passarmos a explicar o fun- cionamento do micro-ondas ou do telefone celular e tomarmos por conteúdo o objeto tecnológico. Por outro lado, ciência e tecnologia não são campos divergentes, até porque uma é legitimada pela outra e porque uma análise profunda nos dirá que todo co- nhecimento científico é Ciência Aplicada quando considerado o fato de que aquele que produz o conhecimento está inserido socialmente e determinado por pressões, inclusive de mercado. A diferença entre ciência e tecnologia deve-se com toda probabilidade à diferença dos lugares sociais nos quais os saberes científicos e tecnológicos são aplicados. Os saberes científicos se aplicam em um lugar restrito, os laboratórios, e se ligam a uma instituição particular: a comunidade científica. Pelo contrário, os saberes tecnológicos ou as ciências aplicadas são utilizados na realidade social tomada globalmente, no mundo exterior. Os dois tipos de saber destinam-se sempre a serem aplicados, portanto, mas em lugares diferentes. Cada um dos sa- beres produz certos poderes: os poderes experimentais e os poderes tecnológicos. (FOUREZ, 1995, p. 203-204) Juntas, ciência (pura) e tecnologia (aplicada) substituíram o mundo industria- lizado pelo mundo globalizado; mundo este que se quer padronizado e de feições humanas. Não podemos atribuir-lhes, no entanto, um poder absoluto sobre o porvir humano. Lembremo-nos que o campo de ação a elas conferido resulta das relações de poder (econômicas, políticas, sociais, culturais, religiosas etc.) que os homens estabelecem entre si e com a natureza, caso contrário, inviabilizaremos uma gestão coletiva da sociedade. Mundialmente instituídos e altamente investidos por saberes especializados, os fatos cien- tíficos e os objetos técnicos são a concretização de redes de relações, de tamanho variável, constantemente mantidas e atualizadas, que ligam entre eles os homens e as coisas. O que, por definição, não exclui os interesses políticos e econômicos e tampouco os valores sociais e morais. (ARAÚJO, 1998, p. 13) Nas escolas, quando da elaboração dos planos curriculares, por parte das equi- pes pedagógicas e dos professores de Matemática, Química, Física e Biologia, a es- colha dos conteúdos a serem trabalhados não pode ser aleatória ou de acordo com interesses e facilidades de abordagem por parte do professor, mas a partir do enten- dimento de que o estudo dessas ciências e da tecnologia devem aproximar os nossos alunos da realidade por meio de representações e explicar de forma contextualizada o mundo; incluídas as relações de poder estabelecidas entre os homens e destes com a natureza. Só assim competências e habilidades serão trabalhadas de forma a garantir a formação pretendida. Construir conhecimentos sobre a natureza 94 1. Leia o texto e identifique as relações entre ciência e tecnologia presentes. Sabe-se com efeito que é possível usar o martelo sem saber absolutamente como funciona a vibração das texturas cristalinas metálicas da cabeça do martelo. Nada mais falso do que esse mito segundo o qual é preciso compre- ender todo o mecanismo de alguma coisa antes de poder utilizá-la. Pelo contrário, a prática científica assemelha- -se bem mais a compreensões locais: pode-se muito bem realizar pesquisas experimentais sobre a aspirina sem compreender em absoluto o que surgirá mais tarde como uma teoria do funcionamento da aspirina. (ARAÚJO, 1998, p. 202) 2. Providenciar um plano curricular de uma das disciplinas desta área, analisar que critérios foram utilizados na seleção dos conteúdos e quais as competências e habilidades que os conteúdos selecionados pretendem trabalhar. Blade Runner – o caçador de androides. Produção americana, 1982, de Ridley Scott, aborda a relação entre ciência e ética. Matrix. Produção americana, dos irmãos Wachowski, 1999, aborda a supremacia tecnológica com a substituição das identidades biológica e social da natureza e do homem. Navigator – uma odisseia no tempo. Produção neozelandesa, 1988, de Vicent Ward, aborda a diferen- ça de significação e representação do mundo através do tempo. O Show de Truman – o show da vida. Produção americana, 1998, de Peter Weir, aborda a perda de identidade no mundo moderno. Construir conhecimentos sobre a natureza 95 ARAÚJO, Hermetes Reis. Tecnologia e Cultura: ensaios sobre o tempo presente. São Paulo: Estação Liberdade, 1998. BRASIL. Ministério da Educação. Secretaria de Educação Média e Tecnológica. Parâmetros Curri- culares Nacionais: Ensino Médio. Brasília, 1999. CARROL, Lewis. Alice no País das Maravilhas. São Paulo: Scipione, 1997. DUTRA, Luiz Henrique de A. Introdução à Teoria da Ciência. [Florianópolis]: UFSC, 1998. FOUREZ, Gérard. A Construção das Ciências. São Paulo: UNESP, 1995. O Livro da arte. São Paulo: Martins Fontes, 1999. 96 Referências Referências de imagens Imagem 1 – LAGO, Pedro Corrêa do. Caricaturistas Brasileiros, 1836-1999. Rio de Janeiro: GMT, 1999. p. 194. Imagem 2 – MARÇAL, Jairo. Estudantes de Curitiba Participam de Manifestação pelo Passe Escolar. Curitiba, 1993. Imagem 3 – HISTÓRIA do pensamento. Barcelona: Orbis; São Paulo: Nova Cultural, 1987, p. 615. Imagem 4 – LAGO, Pedro Corrêa do. Caricaturistas Brasileiros, 1836-1999. Rio de Janeiro: GMT, 1999, p. 194. Imagem 5 – PARANÁ. Governo do Estado. Secretaria de Estado da Cultura. Desejos de Transfor- mação: 30 anos de maio de 1968. Curitiba, 1998, p. 23. Imagem 6 – COSTA, Cristina. Caminhando Contra o Vento: uma adolescente dos anos 60. São Paulo: Moderna, 1995. p. 18. Imagem 7 – MARÇAL, Jairo. Diferenças. Londres, 1992. Imagem 8 – PARANÁ. Governo do Estado. Secretaria de Estado da Cultura. Desejos de Transfor- mação: 30 anos de maio de 1968. Curitiba, 1998, p. 37. Imagem 9 – MARÇAL, Jairo. Largo da Ordem, Curitiba, PR. Curitiba, 1994. Imagem 10 – MARÇAL, Jairo. Grafite em Curitiba. Curitiba, 1999. Imagem 11 – MARÇAL, Jairo. Collin Cooper. Londres, 1992. Imagem 12 – O LIVRO da arte. São Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 180. Imagem 13 – ADES, Dawn. Arte na América Latina: a era moderna, 1820-1980. São Paulo: Cosac & Naify, 1997, p. 36. Imagem 14 – ADES, Dawn. Arte na América Latina: a era moderna, 1820-1980. São Paulo: Cosac & Naify, 1997, p. 136. Imagem 15 – HISTÓRIA do pensamento. Barcelona: Orbis; São Paulo: Nova Cultural, 1987, p. 551. Imagem 16 – ESCHER M. C. Taschen Diary, 1999. (Litogravura). Imagem 17 – SALGADO, Sebastião. Êxodos. São Paulo: Cia das Letras, 2000, p. 232, 324. Imagem 18 – NOVA ENCICLOPÉDIA ILUSTRADA DA FOLHA DE SÃO PAULO. São Paulo, 1996, p. 132. Imagem 19 – SALGADO, Sebastião. Êxodos. São Paulo: Cia das Letras, 2000, p. 232, 324. Imagem 20 – MARÇAL, Jairo. Mostra cultural do Colégio Estadual Paulo Leminski. Curitiba, 1997. (Imagem p. 47). Imagem 21 – DIMENSTEIN, Gilberto. Aprendiz do Futuro: cidadania hoje e amanhã. São Paulo: Ática, 1997, p. 71. Imagem 22 – LIMA, Ingrid Danielle F. de. et al. Trabalho Infantil e Informal em Curitiba. Curi- tiba, 1999. Imagem 23 – HAGEN, Rose-Marie;HAGEN, Rainer. Pieter Bruegel; O velho; Cerca de 1525-1569; Camponeses Loucos e Demônios. Lisboa: Benedikt Taschen, 1995, p. 32. 97 Referências Imagem 24 – NOVA ENCICLOPÉDIA ILUSTRADA DA FOLHA DE SÃO PAULO. São Paulo, 1996, p. 345. Imagem 25 – NOVA ENCICLOPÉDIA ILUSTRADA DA FOLHA DE SÃO PAULO. São Paulo, 1996, p. 932. Imagem 26 – FUNDAÇÃO VICTOR CIVITA. Revista Nova Escola, n. 133, p. 16, jun./jul. 2000. Imagem 27 – COPPÉLIA. Espetáculo apresentado pelo Grupo da Academia Petit Ballet de Curitiba, 23 nov. 1999. (Folder). Imagem 28 – MÁSCARA indígena. Revista Veja, 1 mar. 2000. Imagem 29 – SPIESS, Dominique. Encyclopedie de la Peinture des Origines aux Impressionistes. Lausanne: Edita S.A., 1993. Imagem 30 – VOCÊ sabia? Rio de Janeiro: Reader’s Digest Brasil, 1999, p. 57. Imagem 31 – BAROLLI, Elisabeth; GONÇALVES FILHO, Aurélio. Nós e o Universo. São Paulo: Scipione, 1991, p. 21-22. Imagem 32 – BAROLLI, Elisabeth; GONÇALVES FILHO, Aurélio. Nós e o Universo. São Paulo: Scipione, 1991, p. 21-22. Imagem 33 – BAROLLI, Elisabeth; GONÇALVES FILHO, Aurélio. Nós e o Universo. São Paulo: Scipione, 1991, p. 21-22. Imagem 34 – BAROLLI, Elisabeth; GONÇALVES FILHO, Aurélio. Nós e o Universo. São Paulo: Scipione, 1991, p. 21-22. Imagem 35 – MODELO Heliocêntrico mostrando os planetas e as órbitas elípticas. Imagem 36 – VOCÊ sabia? Rio de Janeiro: Reader’s Digest Brasil, 1999, p. 219. Imagem 37 – ASTOR, Joseph. O homem distanciado de sua humanidade. Revista Veja, n. 51, p. 45, dez. 1998. Imagem 38 – O LIVRO da arte. São Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 393. 98 Referências Análise política/cultural/econômica da implantação da nova proposta Imagem 39 – Lygia Clark, Mandala (1969). Parte da série Ĺ Homme Support Vivant d´une Architecture Biologique et Cellulaire (também conhecida como Corpo Coletivo). As pessoas estão ligadas pelos tornozelos e pelos pulsos por uma rede de elásticos. O movimento de uma repercute em todas as outras. O tema deste trabalho – Ensino Médio: possibilidades e limites da nova proposta – provoca a necessidade de uma distinção inicial entre os as-pectos mais estreitamente vinculados às escolas e àqueles pertinentes ao sistema de ensino responsável pela sua estruturação, legislação, financiamento e acompanhamento. Do ponto de vista daquele que vive co- tidianamente a experiência educativa, na con- dição de protagonista nas unidades escolares, o surgimento de uma nova proposta, por um lado, abre perspectivas de reflexão sobre um trabalho que vem sendo realizado, da supera- ção de dificuldades acumuladas na sua prática e de mudanças na ação educacional, por outro, provoca a inevitável comparação histórica com outros momentos quando outras propostas de ensino também acenaram com tais perspecti- vas. Que expectativas podem ser alimentadas e do que depende sua concretização? O siste- ma de ensino está aberto aos questionamentos e sugestões que possam emergir com a inter- pretação, implantação e aprofundamento dos PCN? Existe, por parte dos governos federal e estadual, a vontade política, a responsabilida- de, a organização e o correspondente investi- mento financeiro para a viabilização da nova proposta? O processo de redemocratização do país na década de 1980 inspirou debates na educa- ção que culminaram em transformações signi- ficativas, porém, na vivência da nossa ainda jo- vem democracia, novas questões se colocaram. Nesse sentido, a emergência dos princípios fi- Análise política/cultural/econômica da implantação da nova proposta 100 losóficos da Política, Ética e Estética e os conceitos de Autonomia, Diversidade e Identidade, representaram a possibilidade de uma abertura e um aprofundamento na concepção do que é o ato de educar e das suas vinculações com o mundo con- temporâneo. Entretanto, esses fundamentos devem se configurar como elementos provocativos de reflexões e significações próprias em cada escola, de maneira a evitar o risco de que se transformem em meras peças de retórica. Alerta-se, tam- bém, para o fato de que se trata de conceitos clássicos, porém, abstratos, passíveis de interpretações ambíguas e contraditórias e, portanto, sujeitos à manipulação. A efervescência da discussão decorrente dos fundamentos presentes nos PCN, envolvendo valores, muitos dos quais fortemente arraigados a uma tradição conservadora, autoritária e subserviente, presentes nas mais diversas instâncias da sociedade, dentro e fora da escola, nas organizações políticas e nas esferas do poder instituído, provacará resistências e reações, nem sempre explícitas, mas que podem inviabilizar a consecução da proposta. No que diz respeito à Identidade e à Autonomia da escola, um desvio sig- nificativo na proposta, a ser superado, é a sua exclusiva vinculação com a res- ponsabilização dos protagonistas da ação educacional, não podendo se colocar, exclusivamente, na posição de quem determina a direção e cobra resultados. Cabe ao Estado assumir sua parcela de responsabilidade na criação de condições que viabilizem a educação pública. Também não se pode aceitar que a Autonomia da escola se restrinja à autonomia para captação de recursos. No que se refere à rede privada de ensino cabe questionar se as escolas que solidificavam suas bases em modelos tecnicistas estão dispostas ou preparadas para promoverem as mudanças estruturais necessárias à implantação da nova proposta. A Interdisciplinaridade é um dos sustentáculos de mudança substancial no ensino e por isso mesmo sua implementação deve vir acompanhada de uma reor- ganização do tempo e do espaço escolares. É necessário investimento público na educação visando à capacitação docente, à criação de um tempo diferenciado para os professores construírem coletivamente um trabalho interdisciplinar. Contudo, tais necessidades se colocam na contramão das atuais políticas econômicas restri- tivas, que acabam por determinar orçamentos que inviabilizam a realização dos objetivos apresentados na atual proposta do Ensino Médio. Em termos práticos, a educação de qualidade apresentada na forma da lei é substituída pela retórica dos já tão conhecidos adiamentos da sua implantação. Com relação aos eixos norteadores da contextualização – cidadania e tra- balho –, cabe destacar alguns aspectos que, se negligenciados, podem comprome- ter o desenvolvimento da proposta. Não é possível se promover a contextualização mantendo representações abstratas e, portanto, distantes do mundo do jovem e do adolescente. No que diz respeito ao Exercício da Cidadania, uma questão que se impõe são as representações culturais que os jovens de hoje possuem acerca dos políticos, dos movimentos sociais e das instituições públicas, geralmente de fundo individualista, de apatia e de falta de credibilidade. A questão do trabalho, que hoje é objeto de profundas análises e preocupações em todo o mundo, não pode ser tratada como já resolvida no âmbito educacional. É vital que paralelamente à Análise política/cultural/econômica da implantação da nova proposta 101 discussão das vinculações entre as novas exigências do mundo do trabalho, dos avanços tecnológicos e do papel da escola nesse contexto, também sejam contem- pladas, com a seriedade que merecem, as novas categorias emergentes, tais como: o desemprego, o trabalho informal, o trabalho infantil, o uso abusivo e deturpado da lei do estágio e o trabalho a serviço do crime organizado. A iniciativa de organização curricular por áreas do conhecimento, presente na nova proposta, revela um interesse em romper o viés neopositivista que marcou profundamente a história da educação brasileira. A proposição de um equilíbrio entre as áreas, manifesto na definição da carga horária, significou um passo im- portante para a superação da hegemonia das disciplinas ligadas às Ciências Exa- tas e da Natureza. Porém, as pressões do mercado, os preconceitos arraigados no imaginário social e a tradição utilitarista que relegou à marginalidade os conheci-mentos da área de Ciências Humanas, persistem na maioria das vezes implícitas, tanto nos PCN como nas próprias unidades escolares. Tais aspectos se evidenciam na definição das competências com a hipervalorização das tecnologias. Finalmente, um fator de vital importância que demanda uma urgente articu- lação com a Nova Proposta para o Ensino Médio é a formação de professores nas Instituições de Ensino Superior. Grande parte das licenciaturas ainda se encontra distante dessa discussão e, consequentemente, a qualificação dos professores não consegue corresponder às exigências de implantação e realização de uma educa- ção de qualidade para esse nível de ensino. No plano das realizações concretas, a história do nosso país tem nos ensina- do que iniciativas que representem mudanças estruturais, sobretudo aquelas que visam aos avanços sociais, precisam ser incorporadas pelo coletivo social e inves- tidas de um processo de análise crítica e constante acompanhamento, para não se diluírem em fracassos. No balanço final dos PCN, além da defesa dos aspectos relevantes que poderão contribuir para a formação dos jovens, é necessário uma disposição constante e um compromisso ético e político de todos os envolvidos, para a discussão, reelaboração e implantação do novo Ensino Médio. Hegel observa em uma de suas obras que todos os fatos e personagens de grande importância na história do mundo ocorrem, por assim dizer, duas vezes. E esqueceu-se de acrescentar: a primeira vez como tragédia, a segun- da como farsa. [...] Os homens fazem sua própria história, mas não a fazem como querem; não a fazem sob circunstâncias de sua escolha e sim sob aquelas com que se defrontam diretamente, legadas e transmitidas pelo passado. A tradição de to- das as gerações mortas oprime como um pesadelo o cérebro dos vivos. E justa- mente quando parecem empenhados em revolucionar-se a si e às coisas, em criar algo que jamais existiu, precisamente nesses períodos de crise revolu- cionária, os homens conjuram ansiosamente em seu auxílio os espíritos do passado, tomando-lhes emprestados os nomes, os gritos de guerra e as roupa- gens, a fim de apresentarem-se nessa linguagem emprestada. Assim, Lutero adotou a máscara do apóstolo Paulo, a Revolução de 1789-1814 vestiu-se al- Análise política/cultural/econômica da implantação da nova proposta 102 ternadamente como a República Romana e como o Império Romano, e a Re- volução de 1848 não soube fazer nada melhor do que parodiar ora 1789, ora a tradição revolucionária de 1793-1795. De maneira idêntica, o principiante que aprende um novo idioma traduz sempre as palavras desse idioma para a sua língua natal; mas, só quando puder manejá-lo sem apelar para o passado e esquecer sua própria língua no emprego da nova, terá assimilado o espírito dessa última e poderá produzir livremente nela. BRASIL. Ministério da Educação. Secretaria de Educação Média e Tecnológica. Parâmetros Curri- culares Nacionais: Ensino Médio. Brasília, 1999. Linguagens e suas representações II Língua Portuguesa Aquilo sobre o que ninguém fala ou escreve não existe. Erico Verissimo A disciplina de Língua Portuguesa, tradicionalmente, reduz-se ao ensino de regras gramaticais a partir do modelo ditado pela gramática normativa, cujo fim é fazer o aluno aprender as regras do “escrever e falar correta- mente”. Nesse contexto, inclui-se também o ensino de Literatura, que resume-se, ainda hoje, a lições sobre História da Literatura; a obra literária serve apenas como pretexto para se ensinar modelos do “bom uso da língua”. Entretanto, a língua é uma atividade humana, histórica e social. Nessa ati- vidade manifestam-se os recursos formais da língua (conjunto de regras sistema- tizado e estruturado), o sistema cultural de representação da realidade e a relação entre essas expressões e a situação real em que são produzidas. A linguagem é, portanto, o sistema linguístico e comunicativo utilizado em uma dada comuni- dade. O aspecto cultural, social, de uma comunidade é refletido em cada texto produzido (oral ou escrito) em situação real. Nessa concepção de linguagem, o ensino de língua não é mera aprendiza- gem de regras, ela deve ser contextualizada, partir do texto – unidade básica da língua –, considerar o contexto em que é produzida e deve oferecer ao aluno co- nhecimentos que o tornem autônomo para prosseguir seus estudos e tenha, cada vez mais, participação ativa na sociedade. Os PCN sugerem, dentro dessa perspectiva, as competências a serem traba- lhadas em Língua Portuguesa: Representação e comunicação Confrontar opiniões e pontos de vista sobre as diferentes manifestações da linguagem verbal. Compreender e usar a Língua Portuguesa como língua materna, geradora de significação e integradora da organização do mundo e da própria iden- tidade. Aplicar as tecnologias de comunicação e da informação na escola, no trabalho e em outros contextos relevantes da vida. Linguagens e suas representações II 104 Investigação e compreensão Analisar os recursos expressivos da linguagem verbal, relacionando tex- tos/contextos, mediante a natureza, função, organização, estrutura, de acordo com as condições de produção, recepção (intenção, época, local, interlocutores participantes da criação e propagação das ideias e esco- lhas, tecnologias disponíveis). Recuperar, pelo estudo do texto literário, as formas instituídas de cons- trução do imaginário coletivo, o patrimônio representativo da cultura e as classificações preservadas e divulgadas no eixo temporal e espacial. Articular as redes de diferenças entre a língua oral e escrita e seus códi- gos sociais, contextuais e linguísticos. Contextualização sociocultural Considerar a Língua Portuguesa como fonte de legitimação de acordos e condutas sociais e como representação simbólica de experiências huma- nas manifestadas nas formas de sentir, pensar e agir na vida social. Entender os impactos das tecnologias da comunicação, em especial da língua escrita, na vida, nos processos de produção, no desenvolvimento do conhecimento e na vida social. 1. Sabe-se que o aluno só interioriza o que lhe é ensinado se isso for ligado, de alguma forma, ao seu dia a dia. Tomando como tema o trabalho dos vereadores da Câmara Municipal (Problemas da cidade X, propostas/soluções das autoridades políticas municipais), elabore um planejamento em que sejam trabalhadas a representação e comunicação; a investigação e compreensão e a contextu- alização sociocultural. Linguagens e suas representações II 105 BRASIL. Ministério da Educação. Secretaria de Educação Média e Tecnológica. Parâmetros Curri- culares do Ensino Médio: linguagens, códigos e suas tecnologias. Brasília, 1999. Linguagens e suas representações II 106 Língua Estrangeira Moderna O ensino de línguas estrangeiras modernas adquire, no mundo de hoje, uma importância fundamental na educação da criança e do adolescente, seja considerado como elemento de formação cultural, como instrumento de trabalho ou como fator de compreensão internacional. Nenhuma nação atualmente, por maior que seja sua autonomia cultural, poderia prescindir, em seu sistema escolar, do ensino de línguas estrangeiras. Sanfelice O problema da Língua Estrangeira pode ser abordado a partir de dois aspec-tos diferentes: a questão da metodologia; a questão da importância do ensino/aprendizagem da língua estrangeira na escola. No que concerne à metodologia, desde o século XIX até nossos dias, já pas- samos por vários modelos: a metodologia tradicional, a metodologia direta, a meto- dologia ativa e a metodologia audiovisual. A evolução dessas metodologias deveu-se às necessidades que foram criadas com as transformações históricas, geográficas, econômicas e culturais da nossa sociedade. No mundo contemporâneo não é admissível que se estude uma língua estran- geira para se ter acesso a “uma cultura modelo”, assim como também não se pode desconsiderar as competências em língua materna naaprendizagem dessa língua. Aqui, fundem-se os dois pontos evidenciados no início deste texto: por que e para que ensinar uma língua estrangeira na escola? Ao aprender uma língua estrangeira, o aluno tem acesso a uma outra cultura, um outro modo de analisar e tirar conclusões sobre o mundo; ao estruturar frases na língua estrangeira ele reflete sobre a língua materna; ao dominar uma segunda língua o aluno amplia seu poder de expressão. Nem sempre o ensino de Língua Estrangeira recebeu a importância que deveria, além de que, a Língua Inglesa monopoliza, há décadas, essa área. Apesar de reconhecer-se a importância dessa língua na economia mundial, não se deve privilegiar apenas o ensino de uma única língua. É preciso ob- servar as necessidades locais, conhecer a história da formação étnico-linguística da comunidade na qual o aluno está inserido, enfim, considerar os interesses da clientela ao decidir-se a língua estrangeira (ou as línguas) a ser ensinada numa determinada escola/comunidade. Ao pensar-se nas competências a serem desenvolvidas em Língua Estrangei- ra o professor deve ter em mente que a mesma é um instrumento de comunicação tão válido quanto a língua materna. O aluno tem o direito de conhecer uma língua estrangeira tão profundamente que lhe seja possível falar, argumentar, interpretar, compreender, enfim, comunicar-se integralmente na língua estrangeira. A proposta de competências a serem desenvolvidas em Língua Estrangeira sugeridas pelos PCN resume-se: Língua Estrangeira Moderna 108 Representação e comunicação Escolher o registro adequado à situação na qual se processa a comunicação e o vocábulo que melhor reflita a ideia que pretende comunicar. Utilizar os mecanismos de coerência e coesão na produção oral e/ou escrita. Fazer uso das estratégias verbais e não verbais para compensar as falhas, favorecer a efetiva comunicação e alcançar o efeito pretendido em situa- ções de produção e leitura. Conhecer e usar as línguas estrangeiras modernas como instrumentos de acesso a informações de outras culturas e grupos sociais. Investigação e compreensão Compreender de que forma determinada expressão pode ser interpretada em razão de aspectos sociais e/ou culturais. Analisar os recursos expressivos da linguagem verbal relacionando textos e contextos mediante a natureza, função, organização, estrutura, de acordo com as condições de produção/recepção (intenção, época, local, interlocu- tores participantes da criação e propagação de ideias e escolhas, tecnolo- gias disponíveis). Contextualização sociocultural Saber distinguir as variantes linguísticas. Compreender em que medida os enunciados refletem a forma de ser, pen- sar, agir e sentir de quem os produz. 1. Material necessário: textos produzidos pelos alunos. A partir da análise de textos produzidos pelos alunos, faça um levantamento dos problemas apresen- tados e proponha trabalhos que poderiam ser feitos para superar as dificuldades listadas. Língua Estrangeira Moderna 109 BRASIL. Ministério da Educação. Secretaria de Educação Média e Tecnológica. Parâmetros Curri- culares do Ensino Médio: linguagens, códigos e suas tecnologias. Brasília, 1999. SANFELICE, E. Proposta para o Ensino de Francês. Curitiba, 1994. (Mimeografado – Projeto apresentado ao Colégio Paulo Leminski em 1994). Língua Estrangeira Moderna 110 Arte O meu olhar Alberto Caeiro O meu olhar é nítido como um girassol. Tenho o costume de andar pelas estradas Olhando para a direita e para a esquerda, E de vez em quando olhando para trás... E o que vejo a cada momento É aquilo que nunca antes eu tinha visto, E eu sei dar por isso muito bem... Sei ter o pasmo essencial Que tem uma criança se, ao nascer Reparasse que nascera deveras... Sinto-me nascido a cada momento Para a eterna novidade do mundo. M arilena Chauí chama de Arte a unidade entre o eterno e o novo e define essas duas palavras aparentemente opostas como “... eterno é o que, fora do tempo, permanece sempre idêntico a si mesmo, enquanto o novo é pura temporalidade, o tempo como movimento e inquietação que se diferencia de si mes- mo”. O artista nos mostra o mundo como se o olhasse pela primeira vez e assim o recria a cada instante. A Arte é dinâmica, com sua eterna “renovação” nos obriga a refletir sobre a nossa própria existência e sobre o mundo que nos cerca. Mesmo reconhecendo a importância da arte na vida do ser humano e apesar dos esforços individuais dos profissionais da área, a disciplina de Arte nem sempre foi valorizada pela instituição escolar como matéria imprescindível na formação do indivíduo. Do ponto de vista do aluno, essa aula, muitas vezes, caracteriza-se pelo seu aspecto de “lazer” ou pelo seu caráter de “relaxamento”. Tradicionalmente, a abordagem dos conteúdos reduz-se ao ensino de técnicas (desenhos, cores, dobradu- ras etc.), não que elas não sejam importantes, mas outros aspectos da Arte devem ser explorados de acordo com os fundamentos filosóficos que norteiam a disciplina. A aula de Arte não pode ser pensada como um curso para formar futuros artistas, nem como aula de “recreação”. Arte 112 O caráter da aula de Arte deve permitir o desenvolvimento da sensibilidade do aluno para perceber o mundo que o cerca, pois a arte é a expressão do sentimento humano. Vivemos numa época em que só tem valor o que é útil, o que representa lucro comercial, o “ser” humano é cada vez mais desvalorizado, cultivar o “belo”, a expressão de sentimento, atualmente, beira o “cafona”. Assim, a aula de Arte não deve ser vista como formadora de futuros artistas, mas como espaço privilegiado de formação de seres que inventam, renovam, refletem sobre a existência, enfim, deve privilegiar a formação de seres capazes de pensar a condição humana. É nesse senti- do que orientam-se as sugestões de competências a serem desenvolvidas pelo aluno na disciplina de Arte: Representação e comunicação Realizar produções artísticas, individuais e/ou coletivas nas linguagens da arte (música, artes visuais, dança, teatro, artes audiovisuais). Apreciar produtos de arte em suas várias linguagens desenvolvendo tanto a fruição quanto a análise estética. Investigação e compreensão Analisar, refletir e compreender os diferentes processos da arte com seus diferentes instrumentos de ordem material e ideal como manifestações so- cioculturais e históricas. Conhecer, analisar, refletir e compreender critérios culturalmente constru- ídos e embasados em conhecimentos afins, de caráter filosófico, histórico, sociológico, antropológico, semiótico, científico e tecnológico, entre outros. Contextualização sociocultural Analisar, refletir, respeitar e preservar as diversas manifestações de arte – em suas múltiplas funções – utilizadas por diferentes grupos sociais e ét- nicos, interagindo com o patrimônio nacional e internacional que se deve conhecer em sua dimensão sócio-histórica. 1. Leia com atenção o texto a seguir e faça o que se pede. Arte 113 Comida Arnaldo Antunes, Marcelo Fromer e Sergio Britto Bebida é água Comida é pasto, Você tem sede de quê? Você tem fome de quê? A gente não quer só comida, A gente quer comida, diversão e arte. A gente não quer só comida, A gente quer saída para qualquer parte. A gente não quer só comida, A gente quer bebida, diversão, balé. A gente não quer só comida, A gente quer a vida como a vida quer. Bebida é água, Comida é pasto, Você tem sede de quê? Você tem fome de quê? A gente não quer só comer, A gente quer comer quer fazer amor A gente não quer só comer, A gente quer prazer pra aliviar a dor. A gente não quer só dinheiro, A gente quer dinheiro e felicidade. A gente não quer só dinheiro, A gente quer inteiro e não pela metade. Arte 114 A música “Comida” fala das necessidades materiais e espirituais do homem. Elabore um texto enfatizando a importância da arte na formação do aluno. BRASIL. Ministério da Educação. Secretaria de Educação Média e Tecnológica. ParâmetrosCurri- culares Nacionais: Ensino Médio. Brasília, 1999. PESSOA, Fernando. O Eu Profundo e os outros Eus. 21. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1980. TITÃS. 84 94 Um. São Paulo: WEA Music, 1994. 1 CD: digital, estéreo. Educação Física Autoconhecimento ou competitividade? O ensino da Educação Física nas escolas era essencialmente voltado para a prática esportiva, na qual valorizava-se apenas a competitividade. Essa vi-são, durante o Regime Militar, foi fortemente difundida nas escolas nas quais buscava-se talentos para representar o Brasil nas grandes competições. Nos anos 1980, esse modelo de atleta não se cristalizou, pois o Brasil não conseguiu se fixar como potência olímpica. Hoje, o ensino dessa disciplina é mais do que moldar estruturas físicas de alu- nos; segundo Vera Lúcia Costa (1987, p. 20), ela deveria enfatizar “as qualidades lúdicas, tais como a espontaneidade e capacidade de desenvolver satisfação pessoal com desempenho e iniciativa características do esporte educativo”. No contexto das transformações que vêm ocorrendo na Educação de um modo geral, cabe à disciplina de Educação Física proporcionar ao indivíduo o autoconhe- cimento como importante para a preservação de sua saúde física e mental. Nesse sentido, o conhecimento do corpo que a Educação Física proporciona deve estimular a autossuperação, a ideia de que o indivíduo não precisa ser melhor do que o outro, mas que ele pode melhorar a si mesmo, visto que somos seres em constante transfor- mação. Representação e comunicação Demonstrar a autonomia na elaboração de atividades corporais, assim como capacidade para discutir e modificar regras, reunindo elementos de várias manifestações de movimento, estabelecendo uma melhor utilização dos co- nhecimentos adquiridos sobre a cultura corporal. Assumir uma postura ativa na prática das atividades físicas e consciência da importância delas na vida do cidadão. Participar de atividades em grandes ou pequenos grupos, compreendendo as diferenças individuais e procurando colaborar para que o grupo possa atingir os objetivos a que se propôs. Reconhecer na convivência e nas práticas pacíficas maneiras eficazes de crescimento coletivo, dialogando, refletindo e adotando uma postura demo- crática sobre diferentes pontos de vista postos em debate. Interessar-se pelo surgimento das múltiplas variações da atividade física, enquanto objeto de pesquisa e área de interesse social e de mercado de tra- balho promissor. Investigação e compreensão Compreender o funcionamento do organismo humano de forma a reconhe- cer e modificar as atividades corporais, valorizando-as como melhoria de suas aptidões físicas. Desenvolver as noções conceituadas de esforço, intensidade e frequência, aplicando-as em suas práticas corporais. Refletir sobre as informações específicas da cultura corporal, sendo capaz de discerni-las e reinterpretá-las em bases científicas adotando uma postura autônoma, na seleção de atividades e procedimentos para a manutenção ou aquisição de saúde. Contextualização sociocultural Compreender as diferentes manifestações da cultura corporal reconhecendo e valorizando as diferenças de desempenho, linguagem e expressão. 1. A partir dos dados estudados elabore um parágrafo especificando como a disciplina de Educa- ção Física contribui para a formação intelectual do indivíduo. Educação Física 116 BRASIL. Ministério da Educação. Secretaria de Educação Média e Tecnológica. Parâmetros Curri- culares Nacionais: Ensino Médio. Brasília, 1999. COSTA, Vera Lúcia M. Prática da Educação Física no 1.º Grau: modelo de reprodução ou perspec- tiva de transformação? 2. ed. São Paulo: IBRASA, 1987. Educação Física 117 Educação Física 118 Caminhos da linguagem I Língua Portuguesa O ensino de Língua Portuguesa na escola deve privilegiar a diversidade lin-guística, ou seja, ao preparar suas aulas, o professor deve ter em mente que a língua não é homogênea, que ela tem variações tanto na modalidade escrita quanto na modalidade oral. O aluno convive com essas variações desde muito cedo, sendo que no Ensino Médio é necessário aprofundar o trabalho com as diferen- ças entre essas modalidades, enfatizando a importância da norma culta. Ao discutir o ensino de Língua Portuguesa, Milanez (1993, p. 39) afirma que [...] a partir do 2.º grau, o ensino deve investir mais na variedade culta, contando com sua utilida- de no âmbito social e profissional, procurando, assim, preparar o aluno para um desempenho linguístico eficaz em sociedade e à altura de seu grau de escolaridade. Entretanto, é preciso ter em mente o significado da palavra eficaz. Marcuschi faz uma crítica aos PCN (versão 1996) no tocante aos objetivos a serem alcançados pelo ensino de Língua Portuguesa no que se refere à “eficácia e adequação às situ- ações sociais”. Segundo esse autor, os PCN reduzem o papel da escola a ensinar o aluno a utilizar a língua de “modo eficaz nas situações adequadas”. Ainda segundo Marcuschi, a língua é também uma atividade em que organizamos o mundo construindo representações sociais e cognitivas. O principal não parece ser apenas dizer as coisas adequadamente, como se os sentidos estivessem prontos em algum lugar, cabendo aos falantes identificá-los. Para a escola caberia a missão de fazer com que o aluno fosse treinado a explicitar esses sentidos de forma adequada. (MARCUSCHI, 1997). Nessa perspectiva, o papel da escola deve ir além de apenas ensinar ao aluno o momento adequado de utilizar determinada variante, deve também “fazer o aluno exercitar o espírito crítico e a capacidade de raciocínio desenvolvendo sua habilidade de interagir criticamente com o meio e com os indivíduos”. A partir das considerações acima sugerimos algumas atividades: Fora da escola, o aluno está exposto a diferentes tipos de linguagens que misturam imagens, sons e linguagem verbal (linguagem escrita). Dessa ma- neira, não faz sentido que o professor reduza seu trabalho ao texto literário e jornalístico. A análise de propaganda pode ser um trabalho bastante pro- dutivo, pode-se verificar o público a que ela se destina, quais os argumentos nela contidos para convencer o consumidor, a relação entre a imagem e a escrita, a importância do que fica implícito na combinação linguagem ver- bal, linguagem não verbal, qual a ideologia veiculada pela propaganda. Na Literatura, um caminho possível é comparar temas retratados em épocas diferentes por meio de linguagens variadas. O índio, por exemplo, aparece Caminhos da linguagem I 120 como tema de músicas, serve de inspiração a artistas plásticos, é apresen- tado como personagem de poemas e romances de escolas literárias desde o Brasil Colônia. Seria interessante trabalhar com os alunos a evolução da imagem do índio nessas linguagens e suas referidas épocas, apresentando- -lhes poemas, músicas, trechos de romances e pinturas. O trabalho com a oralidade deve ir além dos debates, seminários e drama- tizações. Uma atividade interessante seria envolver a turma na gravação de discursos autênticos em situações diversas vivenciadas pelos alunos dentro da própria escola: a conversa informal na hora do recreio, a discussão que antecede o início de uma disputa esportiva, o pedido de documentos na se- cretaria, a compra de um lanche na cantina etc. Quando os alunos apresen- tarem o trabalho para a sala, o professor pode aproveitar para ressaltar a im- portância das pausas, da construção de frases claras e concisas, podendo-se discutir os problemas gerados pela ausência dos gestos que complementam a fala etc. A valorização da leitura de jornais e revistas é um aspecto relevante para a aprendizagem da língua materna. É importante o aluno perceber que muitas notícias prolongam-se por semanas nas páginas dos periódicos, que elas são contextualizadas, que para entendê-las é preciso fazer leituras diárias des- tas publicações. Como atividade, os alunos podem escolher uma notícia e acompanhar seu desenvolvimento durantealgum tempo e depois discuti-la com a classe. A reescrita coletiva de um texto produzido pelos alunos é uma atividade que os valoriza como produtores de textos significativos, além de permitir que o próprio aluno reflita sobre o erro e corrija-o. O professor não deve trabalhar com todos os problemas, pode selecionar um apenas ou aqueles relaciona- dos com o conteúdo que está sendo ensinado. O emprego dos pronomes relativos, por exemplo, é um problema comum entre os estudantes do En- sino Médio; o professor pode selecionar trechos de textos produzidos pelos alunos que apresentem esse problema e discutir com eles. Observando o uso efetivo do pronome e comparando com o uso inadequado o aluno compre- enderá melhor as regras para uso desse elemento da Língua Portuguesa. 1. O professor apresenta à turma uma tira de histórias em quadrinhos conhecidas pelos alunos e com os balões em branco. Os alunos, divididos em grupos ou em pares, analisam a ilustração, discutem sua significação, constroem a história oralmente e depois a escreve nos balões. Caminhos da linguagem I 121 O grupo representa a história para toda a turma. O professor pode levantar uma discussão sobre a validade de se ler histórias em quadrinhos. 2. O professor apresenta aos alunos um texto publicitário turístico. Os alunos, divididos em grupos ou em pares, devem ler e selecionar dados. A partir dos dados selecionados os alunos devem redigir uma carta solicitando uma reserva em hotel ou escrever uma carta solicitando informações complementares que forem sugeridas pelo grupo. 3. O professor apresenta aos alunos um texto informativo cujo assunto seja de interesse dos alunos. Os alunos, divididos em grupos ou em pares, leem o texto e retiram dele dados relevantes. Cada grupo apresenta ao outro os dados que conseguiu extrair e verifica se são pertinentes ao texto lido. Com a ajuda do professor, inicia-se um debate sobre o tema do texto. 4. O professor apresenta um jogo de dominó com números e figuras representativas do cotidiano (imagens de homens, mulheres, crianças, carros, flores etc.). Procede-se ao jogo normal, um aluno retira sua carta e, ao encaixá-la no jogo, produz uma frase referente à figura. O professor registra a frase no quadro. O aluno seguinte, ao dar sequência ao jogo, produz uma frase com a figura que tem em mãos e que se relacione também com a frase colocada no quadro. No final, todos leem o texto e fazem os ajustes necessários. Caminhos da linguagem I 122 BRASIL. Ministério da Educação. Secretaria de Educação Média e Tecnológica. Parâmetros Cur- riculares do Ensino Médio: linguagens, códigos e suas tecnologias. Brasília, 1999. MARCUSCHI, Luiz Antônio. Concepção de língua falada nos manuais de português de 1.º e 2.º graus: uma visão crítica. In: REUNIÃO ANUAL DO SBPC, 49., 1997, Belo Horizonte. Anais... Belo Horizonte, 1997. MILANEZ, W. Pedagogia do Oral. Campinas: SAMA, 1993. Língua Estrangeira Q uando chega ao Ensino Médio, o aluno já teve contato com a Língua Es-trangeira (LE), já conhece um pouco do vocabulário e algumas estruturas básicas da língua. É o momento, então, de aprofundar seus conhecimentos, tornando-se cada vez mais autônomo e verdadeiro agente no processo de aprendiza- gem da LE. No Ensino Médio, espera-se que o aluno possa expressar-se em LE, dar opini- ões, fazer questionamentos, que ele tenha condições de reconhecer as informações relevantes de um texto oral ou escrito. Uma das grandes barreiras que o aluno de uma LE enfrenta é vencer sua timi- dez; “lançar-se” na língua, correr riscos é, então, um grande desafio a ser vencido. As atividades feitas com pares de alunos ou pequenos grupos podem amenizar esse problema. Manter o estímulo para aprender uma LE também é um desafio para o pro- fessor. O aluno só continuará estimulado a aprender uma LE se houver um contexto que o obrigue a se comunicar, a se posicionar, a tomar decisões. É por isso que as atividades propostas devem ser pertinentes, devem desafiar a curiosidade, obrigar o aluno a utilizar informações que ele já detém sobre a língua e sobre o mundo. Será mais estimulante aprender uma LE usando-a no cotidiano. TITÃS. 84-94. São Paulo: WEA, 1994. 1 CD. BRASIL. Ministério da Educação. Secretaria de Educação Média e Tecnológica. Parâmetros Curri- culares do Ensino Médio: linguagens, códigos e suas tecnologias. Brasília, 1999. KLEIN, Wolfang. L’Acquisition de Langue Etrangère. Paris: Armand Colin, 1989. MARCUSCHI, Luiz Antônio. Concepção de língua falada nos manuais de português de 1.º e 2.º graus: uma visão crítica. In: REUNIÃO ANUAL DO SBPC, 49., 1997, Belo Horizonte. Anais... Belo Horizonte, 1997. MILANEZ, W. Pedagogia do Oral. Campinas: Sama, 1993. Língua Estrangeira 124 BRASIL. Ministério da Educação. Secretaria de Educação Média e Tecnológica. Parâmetros Curri- culares do Ensino Médio: linguagens, códigos e suas tecnologias. Brasília, 1999. KLEIN, Wolfgang. ĹAcquisition de Langue Étrangère. Paris: Armand Colin, 1989. Caminhos da linguagem II Arte A arte não reduz o que vemos. Ela nos faz ver. Paul Klee A o trabalhar com Arte, desenvolvendo conteúdos em qualquer área do conhecimento, o profes-sor deve lembrar-se de que a pesquisa, as soluções alternativas e o estudo das diversas épocas são elementos importantes para que os alunos possam, a partir deles, “criar”. Nesta unidade sugerimos atividades que podem ser ampliadas/adaptadas para outros contextos. Trabalho com a obra de Rodin Ao iniciar uma atividade é sempre importante contextualizá- -la, isso permite que o próprio aluno tenha elementos para relacio- nar conteúdos de diferentes disciplinas. Assim, o professor pode introduzir a aula com uma exposição de dados sobre o artista, épo- ca em que ele viveu, influências que recebeu. Essa apresentação pode ser feita através de slides, fotos, recortes de jornal, filmes. Seria enriquecedor apresentar o filme Camille Claudel, que conta um pouco da história do artista, discute valores da época, mostra o duro processo de criação artística. O trabalho com a obra do artista será o motor de atividades variadas: O professor pode dividir a turma em dois grupos: um grupo será “o artista” e fará o trabalho de esculpir; o outro grupo servirá de modelo. Essa é uma forma de os alunos perceberem todo o processo que envolve esse tipo de arte. Atividades que envolvem outras disciplinas: Ao estudar a vida de Rodin e sua época pode-se fazer relações com a História, Literatura, Geografia e Educação Física. Ao discutir e escolher o material que será usado na escultura, o professor poderá relacioná- -lo com Ciência. Por exemplo, se o professor decidir trabalhar com argila, há a possibilidade de se pesquisar as camadas da terra, suas cores, a função da terra na subsistência humana, e, ainda, questões como densidade, peso. Essas discussões devem ser feitas em conjunto com os professores das áreas afins, daí a importância de que todas as atividades façam parte de um projeto pedagógico amplo, que envolva toda a instituição escolar. Imagem 40 – O Pensador. Rodin. Caminhos da linguagem II 126 Trabalho com a obra de Leonardo da Vinci Assim como foi sugerido na atividade anterior, o professor deve apresentar dados sobre o artista e sobre sua época. O Renascimento, época em que as obras de Da Vinci se inserem, é um marco na história do progresso humano, sendo que o professor pode explorar temas que envolvem a tecnologia, a qualidade de vida e a relação homem-religião. A Mona Lisa é uma das telas mais conhecidas no mundo, ela reinventa a pintura, apresentando técnicas desco- nhecidas até então, portanto, estudar essa tela permite ao professor discorrer teoricamente sobre técnicas de pintura. Como já se sabe, a arte reflete to- dos os conflitos e contradições que o ho- mem vive. Qual a imagem da mulher a Mona Lisa representaria? A partir desse questionamento o professor pode: levar para a turma poemas renascentistas que retratem a mulher(Camões fez sonetos lindíssimos exaltando as mu- lheres); trabalhar com os alunos a di- ferença da imagem da mulher representada na poesia/pintura e em dados históricos; solicitar aos alunos que façam uma pesquisa sobre a mulher do ano 2000 retratada em diferentes veículos de comunicação: a mulher que aparece na revista Caras; a mulher que aparece em programas de auditório; a mulher que aparece em peças publicitárias; a mulher que aparece em notícias de jornais; a mulher que aparece nas novelas e letras de músicas. Para finalizar a pesquisa, cada aluno pintaria a sua Mona Lisa. Imagem 41 – Mona Lisa – Da Vinci. Caminhos da linguagem II 127 Trabalho com Tarsila do Amaral Imagem 42 – Os Operários – Tarsila do Amaral. Tarsila do Amaral foi uma artista brasileira preocupada em retratar, nas telas, seu país. Sua obra propicia um trabalho rico de exploração da história e da cultura do povo brasileiro. O estudo da tela Os Operários permite explorar aspectos da sociedade bra- sileira presentes no currículo de outras disciplinas: a formação do povo brasileiro; as relações trabalhistas desde o início do século; a linguagem da classe trabalhadora; a representação do operário na poesia, música, cinema; o valor do trabalho na nossa sociedade. Como vimos, o tema da tela sugere trabalhos que podem ser explorados em História, Geografia, Matemática, Língua Portuguesa etc., por meio da montagem de painéis coletivos com fotos, xerox, recortes de revistas, jornais, colagens, além de elaboração de textos e criação de cenários, peças de teatro. Caminhos da linguagem II 128 Trabalho com música: Movimento Tropicalista Imagem 43. O professor pode trabalhar o contexto da época, analisar letras de música, fazer audições de músicas de outras épocas comparando as inovações trazidas por esse movimento. Além de apresentar aos alunos um movimento marcante da arte brasileira, o professor pode explorar, junto com professores das outras áreas, temas como: Os critérios que determinam a qualidade da música. O papel da arte: estética ou engajada? A comercialização massiva da cultura. A finalização do trabalho pode culminar num festival de música produzido pelos alunos, em painéis sobre a cultura dos anos 1960/1970. Caminhos da linguagem II 129 GOMES, Dias. Campeões do Mundo. São Paulo: Círculo do Livro, 1982. MOTTA, Nelson. Noites Tropicais. Rio de Janeiro: Objetiva, 2000. SANTOS, Joel Rufino dos. Quando eu Voltei, Tive uma Surpresa. Rio de Janeiro: Rocco, 2000. TELLES, Lygia Fagundes. As Meninas. São Paulo: Nova Fronteira, 1984. VELOSO, Caetano. Verdade Tropical. São Paulo: Cia. das Letras, 2002. Caminhos da linguagem II 130 BRASIL. Ministério da Educação. Secretaria de Educação Média e Tecnológica. Parâmetros Cur- riculares do Ensino Médio: linguagens, códigos e suas tecnologias. Brasília, 1999. Educação Física II Há pessoas que nunca se interrogam sobre o que se avista do alto de uma montanha ou sobre se é possível lançar o disco a 100 metros de distância. Essas pessoas nunca arriscam. Leif Kristihansson A disciplina de Educação Física, historicamente, reduziu suas atividades a jogos de caráter essencialmente competitivos. A partir das mudanças su-geridas pelos PCN, essa disciplina quer provocar uma reflexão sobre a cultura corporal em que o estudo desse conhecimento possibilite ao aluno a apre- ensão da expressão corporal como linguagem. As atividades sugeridas a seguir podem orientar o professor nesse caminho. O trabalho do professor será mais produtivo se houver integração com outras disciplinas. Jogos Quando o aluno está jogando (basquete, futebol, vôlei etc.) ele expressa, por meio de gestos e atitudes, suas crenças, suas emoções, seus medos, suas li- mitações. Cabe ao professor, nesse momento, trabalhar com valores como a auto- estima, o autocontrole e a superação de limites. Ao discutir as regras de um determinado jogo, o professor pode chamar a atenção para a importância das regras em qualquer organização social (as regras do futebol, as regras da sala de aula, da escola, da cidade) para o convívio huma- no. O professor estará trabalhando noções de cidadania e de cooperativismo. Exercícios livres A Educação Física não precisa limitar-se às quadras. Uma cami- nhada pela cidade, nos arredores da escola, num ponto turístico ou num parque, pela praia, pela montanha, além de um exercício físico, possi- bilita a relação com outras disciplinas como, por exemplo, a Geografia (a divisão da cidade, o respeito ao meio ambiente). É um momento ideal para se falar em higiene mental e corporal: os benefí- cios que uma caminhada oferece. Afinal, é uma maneira de praticar esporte que não exige recursos financeiros e uma maneira de lutar contra a vida sedentária. O professor pode relacionar essa atividade às noções de Fisiologia que os alunos aprendem em Biologia. Educação Física II 132 Danças As atividades com danças permitem relações com a cultura e a história de um povo. O professor pode pedir aos alunos que façam um levantamento das danças regionais e suas histórias. Cada equipe apresenta sua pesquisa e escolhe uma modali- dade para ser trabalhada com a turma toda. É preciso lembrar, no entanto, que a sim- bologia utilizada na dança está ligada à cultura de um povo ou de uma região, o que dificulta a sua compreensão e interpretação. Portanto, é uma atividade que oportu- niza a participação de outras disciplinas com seus conhecimentos específicos. Imagem 44 – Roda de Capoeira. Uma sugestão de atividade com dança pode ser a capoeira. Os movimentos dessa dança representam a luta pela emancipação do negro, a saudade da liberda- de e da terra perdida. A única arma dos escravos nessa luta era o corpo, daí a im- portância dos gestos, do ritmo por meio dos instrumentos musicais e das palmas. O professor pode identificar na dança os elementos da ginástica, como sal- tos, giros, equilíbrio, utilizar tabelas explicativas sobre a atividade cardiorrespira- tória, assim como textos sobre o tema. Depois do treinamento de movimentos das séries de exercícios, o professor pode pedir aos alunos que elaborem por escrito suas representações e impressões sobre a dança trabalhada. 1. Língua é interação. A língua deve ser usada pelo aluno para interagir criticamente com o meio e com os indivíduos. Proponha um plano de aula cujas atividades proporcionem essa interação. Educação Física II 133 2. Reflita sobre um tema de interesse da comunidade (características do solo, folclore típico, histó- ria da formação da cidade/bairro). Apresente uma proposta de trabalho para a sala de aula que envolva as disciplinas da área de Códigos e Linguagens. Educação Física II 134 BRASIL. Ministério da Educação. Secretaria de Educação Média e Tecnológica. Parâmetros Cur- riculares Nacionais: Ensino Médio. Brasília, 1999. Avaliação: um exercício de autonomia O desenvolvimento cognitivo do indivíduo ocorre através de constantes desequilíbrios e equilíbrios. Piaget A avaliação tem sido sistematicamente usada pela instituição escolar como “me-didora” do conhecimento observável do aluno, reproduzindo uma prática sele-tiva, discriminatória e excludente. Assim, a avaliação reduz-se a aplicar prova, a dar uma nota, a julgar o resultado final de determinada atividade feita pelo aluno. Ela faz parte do processo de ensino-aprendizagem não para excluir o aluno, mas para verificar em que medida o conhecimento apreendido permite organizar, interpretar, compreender a realidade que o cerca, e também para verificar em que medida as escolhas que o professor faz estão adequadas a esse processo. Compreen- der isso significa ir além da avaliação formal, que se presta muito mais a satisfazer as necessidades burocráticas da instituição escolar. Um educador comprometido deve ter em mente que avaliar é um processo contínuo, logo, o profissional deve estar atento a todas as situações de aprendizagem, sem a preocupação de formalizar resultados. Não se querexcluir a avaliação formal (os testes, por exemplo), mas esse não é o único momento em que o aluno deve ser avaliado, pois o que interessa não é avaliar para julgar, mas para investigar o que foi aprendido e quais as dificuldades a serem superadas pelo aluno, possibilitando tam- bém uma análise crítica da prática docente. Quando se fala em processo contínuo de avaliação quer se ressaltar o papel que o educador assume diante de sua turma. A aula é o espaço propício para a apren- dizagem em todos os momentos, há uma troca constante entre professor e alunos, qualquer resposta, comentário, fala espontânea do aluno serve como índice para ava- liar o que foi aprendido, e esses “índices” não podem ser tomados como elementos para quantificar o que foi assimilado pelo aluno; eles servem, sobretudo, para guiar o trabalho do professor. Desse ponto de vista, não se trata de criar um modelo acabado de “avaliação”, pois o que se muda é a postura da escola e do professor, não adianta mudar o formato da prova, dar “trabalhos” no lugar da prova. Deve-se abolir a avaliação formal? É preciso reconhecer que, tanto por exigên- cias da instituição, quanto por exigências sociais, há um momento em que é preciso formalizar a avaliação, transformá-la em números. As sugestões e comentários a seguir têm a avaliação formal como objeto de reflexão. Por avaliação formal enten- de-se as provas, relatórios que são feitos com dia e hora marcados, corrigidos pelo professor e devolvidos aos alunos e dá-se por encerrada uma etapa do ano letivo. O que se quer propor é que essas formalizações do conhecimento do aluno não sejam vistas apenas como um medidor do que foi assimilado ou que não foi assimilado, Avaliação: um exercício de autonomia 136 mas elas são um documento para servir de parâmetro para o professor verificar como cada aluno aprende, quais são as hipóteses que o aluno formula a cada conceito ensi- nado. Caberia ao professor, então, trabalhar com essas hipóteses e ajudar seus alunos a comprová-las ou revalidá-las. As sugestões que seguem são propostas de como formalizar as avaliações. Ca- berá ao professor trabalhar com seus alunos continuamente as questões imprevisíveis que surgem na situação de ensino-aprendizagem. Atividades em Língua Portuguesa Atividade com propaganda A atividade será considerada satisfatória se diante de qualquer propaganda o aluno conseguir perceber qual o público-alvo, qual a relação entre lingua- gem verbal e não verbal, quais as informações implícitas e explícitas desse tipo de linguagem. Atividade com literatura Um bom resultado avaliativo pode ser verificado se ao ler um poema, um romance, o aluno conseguir identificar características de escolas literárias presentes no texto, verificar qual escola literária predomina e quais as rela- ções do texto em questão com outros textos. Atividade com oralidade Quando se tratar de leitura de textos poéticos, uma boa leitura do poema deve ser predominantemente expressiva. Quando se tratar de debates ou seminários, o professor pode avaliar a orga- nização dos dados, o grau de clareza, a eloquência e o grau de envolvimento do aluno com o trabalho. Atividade com jornais A atividade será satisfatória se os alunos conseguirem ilustrar suas conclu- sões com exemplos adequados. Perguntas que o professor pode fazer: a) As matérias de jornais são escritas sempre em linguagem formal? Exemplos que justifiquem a resposta. b) Um mesmo assunto (um assalto) é retratado da mesma maneira por jornais diferentes? c) Quando determinada matéria fica em destaque por vários dias pode-se per- ceber contradições, reformulações entre os fatos apresentados? Atividade com reescrita de texto O professor deve avaliar a coerência, o nível linguístico e a adequação ao tipo de texto solicitado. Não se deve corrigir todos os erros do texto, mas os que se relacionarem ao conteúdo já discutido em sala e que os alunos já dominam. Avaliação: um exercício de autonomia 137 Atividades em Língua Estrangeira As atividades avaliativas que o professor seleciona devem ser coerentes com os objetivos e com o método escolhido. As sugestões aqui apresentadas têm como parâmetro o método comunicativo. A apresentação dessas atividades está dividida em dois grupos: atividade escrita e atividade oral. São instrumentos que o professor pode ampliar/adequar a outras situações no contexto ensino/aprendizagem. Atividade escrita Material: história em quadrinhos. Pré-requisitos necessários: elementos gramaticais que situam no tempo e no espaço e elementos linguísticos mínimos para descrever pessoas e objetos. Depois de ler a história em quadrinhos, os alunos escreverão uma carta a um(a) amigo(a) contando o que aconteceu, considerando que o personagem da história é seu vizinho. Quando os textos estiverem prontos o professor poderá analisar: se o aluno escreveu um texto em forma de carta; se a carta é dirigida a um amigo; se o aluno usa determinantes; se usa pronomes adequadamente; a adequação dos tempos verbais; o uso da interrogação e da negação; a ordem das palavras na frase; a ampliação do vocabulário presente no texto; o uso da pontuação. É preciso lembrar que esse tipo de avaliação é uma das maneiras de avaliar, mas não pode significar a finalização de um processo; é, sobretudo, um documento de investigação do progresso individual de cada aluno. Atividade oral Material: cartões com imagens variadas. Pré-requisitos necessários: elementos mínimos para descrever um objeto. O professor apresenta cartões (com as imagens ocultadas), cada aluno escolhe um e o examina durante alguns minutos. Em seguida, descreverá para a turma a utilidade da imagem que aparece no seu cartão. Nessa descrição é válido usar a imaginação. O professor pode avaliar: se o aluno concentrou a descrição no objeto; se o aluno usou minimamente: determinantes, pronomes, adequação do tem- po verbal. Avaliação: um exercício de autonomia 138 Com relação à pronúncia, o professor pode verificar se os erros cometidos im- pedem a compreensão da mensagem pelos colegas. Atividades em Arte A partir das atividades metodológicas propostas na unidade anterior, o profes- sor pode avaliar: a utilização das ferramentas, de equipamentos, do processo, das técnicas utilizadas para a produção de uma obra artística; a análise e interpretação das obras de arte e os seus significados; se a análise de obras de arte desperta no aluno o espírito criativo, inventivo, inovador e a reflexão de novas ideias; numa exposição oral ou escrita verificar o nível de clareza ao expressar suas ideias sobre a arte; o nível de envolvimento ativo dos alunos em todas as atividades desenvol- vidas; a importância das manifestações artísticas e o papel que elas representam na vida das pessoas. É importante lembrar que em Arte o mais importante não é o produto final, mas o envolvimento do aluno em todas as etapas dos trabalhos propostos. Atividades em Educação Física Sabe-se que a avaliação deve ser um processo contínuo, logo, seria contradi- tório reduzi-la à apreciação do desempenho do aluno numa atividade. Para que a aprendizagem tenha sucesso, o modo de avaliar é fundamental. Inicialmente, é im- prescindível que os alunos saibam como e quando serão avaliados, sendo importante que os instrumentos sejam variados. O professor poderá fazer fichas com observações individuais sobre o desenvol- vimento, o respeito às regras. O professor poderá solicitar fichas feitas pelos alunos de autoavaliação e avaliação das atividades propostas. 1. O texto “Avaliação: um exercício de autonomia” aponta os problemas da avaliação formal e sugere alternativas. Com base no que foi dito neste capítulo explique a expressão: “a avaliação faz parte do processo de ensino-aprendizagem”. Avaliação: um exercício de autonomia 139 2. A partir da definição que você elaborou na questão anterior, aponte os limites e as possibilida- des dessa proposta de avaliação. Avaliação: umexercício de autonomia 140 BECKETT, Sister Wendy. História da Pintura. [S.1. : s. n.], 1994. HOFFMAN, Jussara. Mito e Desafio. Porto Alegre: Mediação, 2000. LOCH, Valdeci. O Construtivismo e o Planejamento Pedagógico. Curitiba: Renascer, 1995. MILANEZ, W. Pedagogia do Oral. Campinas: Sama, 1993. SOARES, Carmem Lúcia. Metodologia de Educação Física. São Paulo: Cortez, 1992. TAGLIANTE, Cristine. L’Evaluation. Paris: CLE, 1994. Avaliação: um exercício de autonomia 141 BRASIL. Ministério da Educação. Secretaria de Educação Média e Tecnológica. Parâmetros Curri- culares Nacionais: Ensino Médio. Brasília, 1999. Avaliação: um exercício de autonomia 142 A condição humana como objeto de reflexão II A compreensão do ser humano na sua relação com o mundo O s termos competência, tecnologia e ciência aparecem nos PCN estreitamente vincu-lados, consequência de uma concepção de razão que fundamenta o pensamento moderno oci- dental. A palavra razão se origina do grego logos e do latim ratio que significam reunir, juntar, separar, contar, calcular, o que supõe a ideia de ordenação e clareza, necessários para representações mais precisas da realidade. No senso comum, o termo razão se apre- senta como sinônimo de certeza e de verdade e tem sua origem na mitologia da cientificidade. O pensamento ocidental, desde a invenção da Filosofia na Grécia Antiga, tem se sustentado em prin- cípios estabelecidos pela razão. Inicialmente, a Filosofia, conhecida como pré-socrática, estava voltada basicamente para a explicação dos fenômenos naturais, tratava-se de uma cosmologia. Com Sócrates, a Filosofia ganha uma nova di- mensão, a dimensão humana, passando a ocupar-se também das relações do homem com o mundo natural, com a socie- dade e com ele próprio. As explicações míticas do mundo foram sendo superadas, dando lugar a explicações racionais, que buscavam compreender por meio de métodos indaga- tivos e reflexivos a essência, a significação, a estrutura e a origem de todas as coisas. Se os mitos representavam o mundo, a partir de revelações divinas, sobre-humanas, por- tanto, dogmáticas e imutáveis, a Filosofia, que nesse período histórico foi sinônimo de todo conhecimento racional, pos- sibilitava à humanidade as competências necessárias para a autonomia do conhecimento e da ação. Não cabe neste trabalho o desenvolvimento de toda a trajetória do pensamento racional do Ocidente, porém, é im- prescindível registrar, ainda que de forma bastante sintética, a autonomia conquistada pelas ciências, que embora tenham Imagem 45 – Atenas. Imagem 46 – Sócrates. A condição humana como objeto de reflexão II 144 sua origem na Filosofia, a partir do século XVI foram delimitando seus espaços. No século XVIII, o Iluminismo reinvestiu na ideia de razão como possibilidade de de- volver à humanidade a condição de autonomia de conhecimento e ação, que durante o longo período da Idade Média ficara circunscrita aos domínios da Igreja. É a partir dessa atmosfera de efervescência e propagação do “projeto iluminista” que tiveram espaço processos que deram uma nova configuração ao conceito de razão – a Revo- lução Francesa (burguesa), o grande desenvolvimento das ciências e, consequente- mente, a Revolução Industrial. Durante os séculos XIX e XX as Ciências não cessa- ram de produzir conhecimentos e tecnologias, que municia- ram os setores produtivos, trazendo avanços e benefícios que atingiram toda a sociedade, em diferentes níveis, de acordo com as classes sociais, fundando assim, no imaginário social, a ideia de um saber científico investido de notoriedade e su- premacia. Essas aplicações do conhecimento científico e suas tecnologias trouxeram para a sociedade moderna ocidental uma mentalidade utilitarista que só reconhece como “conhe- cimento verdadeiro” aquele que produz resultados imediatos. Nesse sentido, os conhecimentos voltados à reflexão e à crí- tica passaram a ser tratados pelas classes dominantes como conhecimentos não produtivos, inúteis e até ameaçadores dos propósitos da sociedade industrial. Dessa forma, instaurou-se a razão instrumental, uma razão voltada exclusivamente aos meios e que prescinde de preocupações com os fins. Uma ra- zão reduzida às atividades práticas e utilitárias, como direção, planejamento, organização, operacionalização, otimização, descomprometidas com uma finalidade social e reduzidas aos imperativos da economia de mercado. O resultado dessa ra- zão instrumental foi a criação do homem unidimensional, ou seja, aquele do qual foram subtraídas todas as demais dimen- sões da vida e reduzido apenas à dimensão do mercado. O que se espera de uma nova proposta de educação é que ela incorpore essa ra- zão instrumental a um projeto de razão mais amplo, no qual estejam contempladas as finalidades das ações humanas – trabalho, conhecimento científico, artes, exercício da cidadania, entre outras, repudiando iniciativas que ameacem retroceder o homem a uma condição de unidimensionalidade. Imagem 47 – O Incrível Homem que Encolheu. Discussão das competências da área de Ciências Humanas: Compreender os elementos cognitivos, afetivos, sociais e culturais que constituem a identidade própria e a dos outros. Compreender a sociedade, sua gênese e transformação e os múltiplos fatores que nela intervêm como produtos da ação humana; a si mesmo A condição humana como objeto de reflexão II 145 como agente social; e aos processos sociais como orientadores da dinâ- mica dos diferentes grupos de indivíduos. Compreender o desenvolvimento da sociedade como processo de ocu- pação de espaços físicos e as relações da vida humana com a paisagem, em seus desdobramentos político-sociais, culturais, econômicos e hu- manos. Compreender a produção e o papel histórico das instituições sociais, po- líticas e econômicas, associando-as às práticas dos diferentes grupos e fatores sociais, aos princípios que regulam a convivência em sociedade, aos direitos e deveres da cidadania, à justiça e à distribuição dos benefí- cios econômicos. Traduzir os conhecimentos sobre a pessoa, a sociedade, a economia, as práticas sociais e culturais em condutas de indagação, análise, pro- blematização e protagonismo diante de situações novas, problemas ou questões da vida pessoal, social, política, econômica e cultural. Entender os princípios das tecnologias associadas ao conhecimento do indivíduo, da sociedade e da cultura, entre as quais as de planejamento, organização e trabalho de equipe e associá-los aos problemas que se propõem resolver. Entender o impacto das tecnologias associados às Ciências Humanas sobre a sua vida pessoal, os processos de produção, o desenvolvimento do conhecimento e a vida social. Entender a importância das tecnologias contemporâneas de comunica- ção e informação para planejamento, gestão, organização e fortaleci- mento do trabalho de equipe. Aplicar as tecnologias das Ciências Humanas e Sociais na escola, no trabalho e em outros contextos relevantes para sua vida. (PCN, 1999, p. 290-296) Na análise das competências da área de Ciências Humanas, propostas nas Dire- trizes Curriculares para o Ensino Médio, percebe-se uma hipervalorização daquelas mais estreitamente vinculadas às tecnologias. Essa hipervalorização se manifesta na relevância e no cuidado excessivo com que foram tratados temas que, na abordagem dos conhecimentos específicos das disciplinas que compõem a área, ocupariam um lugar secundário. Pode-se tomar como exemplo a competência: traduzir os conhecimentos so- bre a pessoa, a sociedade, a economia, as práticas sociais e culturais em condutas de indagação, análise, problematização e protagonismo diante de situações novas, problemas ou questões da vida pessoal, social, política, econômica e cultural. Esta se apresenta de forma ampla, sugerindo uma articulação das disciplinas, contemplando conteúdos essenciais para a formação, visando ao exercício pleno da cidadania. A condição humana como objeto de reflexãoII 146 Por outro lado, três outras competências que envolvem a questão das tecnologias: entender os princípios das tecnologias associadas ao conhecimento do indiví- duo, da sociedade e da cultura, entre os quais as de planejamento, organização e trabalho de equipe, e associá-los aos problemas que se propõem resolver; entender a importância das tecnologias contemporâneas de comunicação e in- formação para planejamento, gestão, organização e fortalecimento do traba- lho de equipe; entender o impacto das tecnologias as- sociado às Ciências Humanas sobre a sua vida pessoal, os processos de pro- dução, o desenvolvimento do conhe- cimento e a vida social, compõem um único argumento, que praticamente se repete e, ao eleger alguns conteúdos para apresentá-los de forma sistematiza- da, exclui tantos outros e reduz sua abrangência. A insistência em elucidar e ressaltar a importância das tecnologias, tentando justificar sua presença nos campos específicos da representação e comunicação, inves- tigação e compreensão e contextualização sociocultural, acaba por provocar a frag- mentação, quando a intenção era promover a interdisciplinaridade. Cabe também sugerir que os temas selecionados nas competências relacionadas às tecnologias da área de Ciências Humanas: comunicação, informação, planejamento, administração, relação de grupos, “confiabilidade” dos dados de pesquisa sociológica, publicidade e propagan- da, devem vir acompanhados de uma discussão crítica e contextualizadora, denunciante de seu caráter ideológico, reveladora das possibilidades de ma- nipulação intrínsecas e extrínsecas, alertando que a não observância desses aspectos podem dar à proposta um viés instrumental e utilitarista. A preocupação excessiva na discussão das com- petências com a questão tecnológica acabou deixando de lado outros aspectos de grande relevância dentro da área de Ciências Humanas, básicos e fundamentais para o processo de ensino e de inserção dos estudan- tes no contexto da modernidade. A ação denunciante das contradições sociais, culturais, políticas, econômicas, tecnológicas, a partir de situações concretas no âmbito das comunidades, onde se situam as escolas, prolongadas para o enten- dimento da realidade nacional, ganhou na proposta Imagem 48 – Desemprego. Imagem 49 – Fábrica robotizada. A condição humana como objeto de reflexão II 147 um espaço inversamente proporcional àquele ocupado no cenário atual. Por exemplo, a escola não pode se omitir da discussão sobre a questão dos alimentos transgênicos, rejeitados para consumo na maioria dos países do Primeiro Mundo, porém defendido e referendado por academias de ciências de vários países, inclusive o Brasil, como forma de combate à fome nos países do Terceiro Mundo; ou, sobre o Projeto Genoma Humano e suas graves implicações ética, política e social, que já deixaram o campo da ficção e se apresentam de forma concreta na vida do cidadão; ou ainda, sobre o impacto das tecnologias que geram o desemprego crescente e vêm gradativamente usurpando do cidadão, principalmente daquele que vive nos países pobres, a tão propagada qualidade de vida, que em última instância deveria ser a finalidade do desenvolvimento tecnológico. É também com estranheza que se registra a ausência de competências direcio- nadas para a organização de movimentos sociais, absolutamente necessários para a construção de uma sociedade democrática e participativa. Considerando-se os prin- cípios filosóficos que fundamentam os PCN, não se encontram justificativas para essa ausência. Ampliar a discussão para a compreensão dos movimentos sociais organi- zados, das suas finalidades e formas de ação, bem como da distorção realizada por parte das classes dominantes, no que se refere à sua representação para a sociedade, em especial na mídia, pode representar a superação da visão de que os movimentos sociais são tratados pelo Estado e pelas elites como legítimos e necessários, somente enquanto não estão operando efetivamente. A não inclusão desses elementos visando ao aprimoramento das competências propostas pode colocar sob suspeição os objetivos últimos do Ensino Médio, levan- do à desconfiança de que os ideais teóricos propostos interessam desde que não se configurem como possibilidades de realização. Se no modelo democrático brasileiro propõe-se um discurso comum às classes sociais e que acena com a possibilidade de reduzir a grande distância existente entre elas, também é necessário o corresponden- te investimento na construção de alternativas concretas que viabilizem mudanças. 1. Relacione o conceito de razão instrumental e a presença das tecnologias nas Diretrizes Curri- culares para o Ensino Médio. A condição humana como objeto de reflexão II 148 2. Identifique as alternativas de contextualização ética e política das tecnologias. 3. Faça uma apreciação crítica das competências da área de Ciências Humanas. BRASIL. Ministério da Educação. Secretaria de Educação Média e Tecnológica. Parâmetros Curri- culares para o Ensino Médio. Brasília, 1999, p. 290-296. A condição humana como objeto de reflexão II 149 HISTÓRIA do pensamento. Barcelona: Orbis, 1983. A condição humana como objeto de reflexão II 150 Os recortes da realidade através de diferentes caminhos e olhares A questão metodológica I E ntendendo a escola como instância de transmissão de conhe-cimento sistematizado a ser compreendido, contextualizado, analisado, criticado e reelaborado e, também, como espaço de produção e criação de conhecimento, é necessário trazer para o universo escolar a discussão acerca da ciência, o que ela é, como se estrutura e se organiza, para que e a quem ela serve. Para iniciar o estudo da questão metodológica em Ciên- cias Humanas é imprescindível que se tenha presente o entendi- mento do significado, da abrangência e da finalidade dessa área. A palavra método tem origem grega e significa um caminho para se atingir um objetivo, uma meta. A escolha desse caminho está estreitamente relacionada com a concepção de ciência do protagonista, na construção do conhecimento. Essa concepção de ciência pode ser consciente ou não, mas determinará os re- sultados que se procuram alcançar. Na conceituação da ciência deve se levar em conta três fatores: a) toda ciência se compõe de um conjunto de hipóteses e teorias resolvidas e a resolver; b) possui um objeto próprio de investigação que é um determinado setor da realidade recor- tado para fins de descrição e explicação; c) possui um método, sem o qual as tarefas acima seriam impraticáveis. Os métodos têm alcance mais amplo que as técnicas. Técnicas são processos definidos e deli- mitados que servem para atingir conhecimentos úteis; servem de guias para a prática de modo geral, podendo servir ainda a propósitos específicos de cada ciência, tais como: mensuração, usos de instrumentos, modos de agir na coleta de dados, emprego de questionários, levanta- mentos estatísticos, projeções gráficas etc. Já os métodos dependem de regras gerais, cujo emprego capacita a avaliar, aceitar ou rejeitar o conjunto bastante amplo das técnicas. O método, como indica a palavra, é um caminho, um conjunto de regras e procedimentos comuns a várias ciências, que permite obter explicações, descrições e compreensão, sendo a compreensão mais adequada para as Ciências Humanas. Tendo em vista este objetivo, o método poderá ser o da observação e descrição, o da experimen- tação, o da construção de sistemas formais e modelos explicativos, o de levantamento e teste de hipóteses, com explicações através de leis e/ou teorias. Todos eles têm caráter dedutivo, indutivo ou ambos. Do emprego de um ou mais desses métodos resultam conhecimentos acerca de um determinado recorte da realidade, suscetíveis de algum tipo de validação, seja o simples teste empírico seja o confronto crítico de hipóteses e teorias. (ARAÚJO, 1993, p. 15) Imagem 50 – Outro Mundo II – Escher. Os recortes da realidade através de diferentescaminhos e olhares 152 As diferenças metodológicas que emergem da organização e constituição das diversas ciências também se apresentam no âmbito da escola, promovendo, em vir- tude da quase inexistência de reflexão, a cristalização de abordagens, muitas vezes preconceituosas, das disciplinas que compõem as áreas do currículo. Por exemplo, o viés neopositivista e o pragmatismo social conferiram às disciplinas da área de Ciências Naturais um status de notoriedade científica a priori, bem como promove- ram sua independência das demais ciências, tornando secundário o diálogo entre as diversas disciplinas. E, se por um lado essa condição simplifica o trabalho dentro de uma metodologia, por outro, traz como problemas o excesso de rigidez, a fragmen- tação e a descontextualização. Já na área das chamadas Ciências Humanas, a rigidez metodológica não se apresenta com a mesma intensidade, e ainda, pode-se afirmar que existe uma maior facilidade para o trabalho contextualizado, porém, observa-se também um distanciamento do seu caráter científico culminando em desvios como o factualismo – se perder na superficialidade dos fatos, deixando de investigar suas origens, sua essência, suas consequências, enfim, banalizando seu objeto de estudo e pesquisa. A discussão metodológica na escola pode representar a possibilidade de su- peração de dificuldades no processo de ensino-aprendizagem. Cabe à escola criar estratégias fundamentadas na sua experiência, nos seus objetivos, no conhecimento da sua realidade – comunidade, alunos e professores e no conhecimento acadêmico produzido –, que venham a oferecer as alternativas necessárias à ação educacional. Trata-se aqui de lançar mão dos diversos recursos, muitos dos quais disponíveis à maioria das escolas; porém, a escolha dos recursos não pode se dar de forma ale- atória e irrefletida, como se a simples utilização de práticas alternativas pudessem representar a garantia de qualidade de ensino. Diante da velocidade de informação e comunicação presentes no mundo moderno, cabe à escola repensar o seu papel de formação do cidadão. As constantes mudanças que se apre- sentam como decorrências de avanços científicos e tecnológicos colocam para a escola o desafio de assegurar ao aluno/cidadão a possibilidade de acesso e produção no mundo do conhecimento. Nessa perspectiva, temos constatado que as “velhas” metodologias de trabalho utilizadas no espaço educacional, calcadas nos princípios da assimilação e reprodução do conhecimento, bem como a apresentação de saberes e verdades incontestes, têm se mostrado superadas e ineficientes. Acreditamos que possibilitar ao aluno a produção do conhecimento, ensiná-lo a buscar e investigar o objeto do conhecimento, prepará-lo para a análise, reflexão e a crítica aos sabe- res estabelecidos e às informações circundantes, constituem-se como princípios essenciais à prática educacional. Como ensinar o aluno a pensar, olhar o mundo, buscar informações, analisar ideias, refletir os fatos e acontecimentos, expressar opiniões, argumentar e convencer, buscar alternativas, propor soluções, inovar, criar...? Embora a escola não tenha respostas prontas e acabadas para essas questões, acreditamos que é seu papel propor alternativas, apresentar métodos e instrumentos e oferecer condições para um melhor aprendizado. (MELO, 1998, p. 2). Delimitar o objeto de estudo, definir o tempo necessário e possível para desen- volvê-lo em sala de aula e escolher metodologias e recursos, são ações pertinentes ao Os recortes da realidade através de diferentes caminhos e olhares 153 planejamento e essenciais no processo de ensino-e-aprendizagem. Na área de Ciên- cias Humanas são inúmeras as opções metodológicas, das quais foram selecionadas algumas que podem dar uma amostra das possibilidades para a consecução da pro- posta. Tais recursos não precisam ser utilizados separadamente e a sua combinação poderá originar trabalhos inovadores e criativos. Algumas sugestões aqui apresen- tadas são fruto de reflexões e experiências desenvolvidas no Colégio Estadual Paulo Leminski, em Curitiba (PR). Escolha do texto O texto ocupa lugar central no desenvolvimento do trabalho nessa área, sejam os textos acadêmicos que compõem uma base de sustentação teórica ou aqueles que viabilizam a articulação com a realidade – o texto jornalístico, o texto de dados es- tatísticos, o texto literário, poético ou ficcional, entre outros. Escolher o texto mais apropriado para se alcançar os melhores resultados de aprendizagem não é uma tare- fa fácil, embora seja tratada como tal em muitas situações. Um texto é um meio codificado, formado por signos linguísticos, pelo qual duas consciências se comunicam, uma passando sua mensagem para a outra. O texto é o código que cifra uma mensagem. Quando alguém escreve um texto, está se colocando como emissor que pretende transmitir uma mensagem para o receptor. A mensagem é pensada pelo autor, codificada através de signos e transmitida ao leitor. Portanto, ao redigir, o autor (emissor) procede à codificação de sua mensagem; o leitor (receptor), ao ler o texto, procede à decodificação da mensagem do autor, para então pensá-la, assimilá-la e personalizá-la, compreendendo-a. Assim se completa a comunicação. Na prática da comunicação, porém, o homem sofre, em todas as fases do processo, uma série de interferências subjetivas e culturais que põem em risco a objetividade de comunicação: daí se fazerem necessárias certas precauções, certos cuidados para se descontar essas alterações. (SEVERINO, 1991, p. 33) Faz-se necessário definir alguns critérios para a escolha de um texto como recurso de aprendizagem, sejam eles: a problematização do conteúdo; a linguagem acessível à faixa etária do aluno e ao nível de escolarização, sem negligenciar a profundidade do conteúdo; a fundamentação teórica de qualidade, pertinente e objetiva; a capacidade de despertar o interesse do aluno para o conteúdo; a extensão do texto compatível com o tempo planejado para a realização do trabalho; a atualidade e confiabilidade dos dados e informações. A escolha do texto deve estar articulada à definição de sua utilização em sala de aula, podendo se caracterizar como complemento de uma aula expositiva; como elemento de provocação para um debate; como sedimentação de um conteúdo; como fonte para elaborações pessoais dos alunos, entre outras. Os recortes da realidade através de diferentes caminhos e olhares 154 Resenhas A elaboração de resenhas aparece junto com a leitura e compreensão de textos como um dos principais recursos metodológicos para o desenvolvimento de uma postura crítica do aluno em relação aos temas abordados nas várias disciplinas. O principal objetivo da resenha crítica é elaborar comentários sobre um texto. Pressupõe uma leitura rigorosa do texto e deve conter: informações gerais sobre o texto; comentários sobre a ideia central do texto; comentários pessoais e críticas. Inicialmente, deve se identificar autor, título, data da publicação. Num segundo momento, faz-se um breve comentário para que se possa compreender os objetivos do texto e sua ideia central. A seguir, deve-se sintetizar cada parte do plano de assunto (no caso de livros, cada capítulo) na mesma sequência lógica em que se apresenta, num esforço pessoal de reflexão sobre os elementos fornecidos pela análise do texto. Quanto aos comentários pessoais, analisar a importância do texto, comentar sua influência dentro da área a que pertence e as consequências mais significativas de sua publicação – análise crítica. É fundamental que o aluno estabeleça um “diálogo” com o autor, identificando os pressupostos teóricos que orientam o texto, assim como os argumentos que o autor teceu em torno da sua ideia central. Uma resenha deve ser clara e sintética. Apresentação gráfica da resenha (MELO, 1998, p. 7): Folha de rosto. Desenvolvimento. Referência bibliográfica. Aula expositiva/dialogada Ensinar é um exercíciode imortalidade. De alguma forma continuamos a viver naqueles cujos olhos aprenderam a ver o mundo pela ma- gia na nossa palavra. O professor, assim, não morre jamais. Rubens Alves Quando se fala em alternativas metodológicas existe uma forte ten- dência por parte de muitos educadores de enquadrarem a aula expositiva den- tro de uma perspectiva conservadora e “tradicionalista”. Entretanto, a natureza da exposição não traz em si as caracte-Imagem 51 – Aula expositiva. Os recortes da realidade através de diferentes caminhos e olhares 155 rísticas a ela atribuídas, tais como monotonia, chatice, autoritarismo, distanciamento etc. Essas dificuldades se originam, na maioria das vezes, na falta de domínio de conteúdo, na falta de planejamento, na má utilização do tempo, na ausência de espaço para a interação com o aluno, no dogmatismo presente no discurso do professor, bem como na falta de um cuidado estético, criativo e imaginativo. A superação desses problemas está estreitamente vinculada ao compromisso ético e político do professor com a educação e no investimento institucional a ele destinado. O termo “dialogada” traduz a defesa do espaço de manifestação e efetiva par- ticipação do aluno no transcorrer das aulas, contribuindo com suas experiências, indagações, inquietações, percepções, tornando o processo de aprendizagem mais original, criativo e contextualizado. Seminários Trata-se de uma metodologia muito utilizada em cursos universitários e que vem sendo cres- centemente aplicada no Ensino Médio. Seu objetivo é o estudo profundo de um tema ou texto, sob orientação do professor, pondo em comum dificuldades teóricas, esclarecimentos e con- clusões obtidas, submetendo, portanto, o trabalho individual à critica do grupo. Procedimento: Fixa-se um texto ou estabelece-se um tema para ser trabalhado em seminário, e este é atri- buído a um indivíduo, ou a um grupo que, orientado pelo professor, vai aprofundar-se em pesquisas (bibliográfica, de campo etc.) e na problematização do texto/tema. Pode-se fixar vários textos/temas para vários grupos ou indivíduos. Para facilitar aos participantes o acompanhamento da apresentação dos resultados, o apre- sentador deve elaborar um texto-roteiro que pode conter, além de informações sobre o texto/ tema, algumas informações complementares e bibliográficas, bem como um roteiro de dis- cussões. A função do apresentador é, primeiramente, expor as principais ideias do texto/tema. Em seguida, trata-se de criticar e problematizar as teses contidas no texto/tema, abrindo a palavra para as considerações dos colegas e do professor. A principal função do professor é anterior à apresentação: delimitar os textos/temas, orientar o apresentador na problematização e na elaboração do texto-roteiro. Na apresentação propria- mente dita, o professor intervirá como um dos participantes. A importância do uso dessa técnica está na sua capacidade de envolver todos os participantes da discussão. Isso implica, de um lado, que todos devem estudar os textos antecipadamente, por outro lado, que o número total de participantes não deve ser elevado, para que seja possí- vel a participação de todos. Queremos destacar como essencial na organização de seminários a definição prévia de um cronograma de apresentação. Outro fator importante a ser considerado é a duração das apre- sentações, pois quando estas se alongam, tornam-se cansativas e contraproducentes. (MELO, 1998, p. 8) Palestras/minicursos A utilização de palestras ou minicursos como recurso metodológico possibilita abordagens diferenciadas do conteúdo, sua complementação e seu aprofundamento. Na sua organização deve estar prevista a orientação prévia do tema pelo professor e/ ou posteriormente o seu resgate por meio da discussão. Como critério preferencial para a escolha do palestrante deve-se considerar o fato de que o mesmo seja um es- Os recortes da realidade através de diferentes caminhos e olhares 156 tudioso do tema proposto. Uma alternativa interessante e possível nessa organização é oferecer as palestras/minicursos por meio do estágio de acadêmicos, que podem, assim, apresentar publicamente suas monografias de encerramento de curso. Para garantir melhor aproveitamento durante essa atividade sugere-se prever mo- mentos para questionamentos e discussões como forma de interação entre alunos e palestrante e de exercício da expressão em público. Para finalizar, sugere-se também a produção de relatório, que além de estabelecer um compromisso do aluno com o even- to, também poderá ser incorporado ao processo de avaliação. Imagem 52 – Palestra sendo ministrada para professores. Trabalho de pesquisa O trabalho de pesquisa escolar constitui-se em importante forma de aprendizagem, pois pres- supõe busca, descoberta, planejamento, desenvolvendo no aluno o espírito investigativo, o que possibilita o estudo independente (autodidatismo). No entanto, essa importância tem sido subestimada no momento em que aceitamos como trabalhos escolares meras reproduções. Não poucas vezes, trabalhos escolares são solicitados para “completar”, “ajudar” na nota do aluno que não alcançou a média. Consideramos premente a tarefa de propor alternativas para encaminhamento dessa ativida- de, resgatando seu caráter de iniciação científica. Cabe à escola oferecer ao aluno a possibili- dade da “descoberta” do conhecimento, da análise de dados e ideias, da elaboração de teses, da apresentação de conclusões, e não somente copiar e repetir. Não podemos adiar essa tarefa para um remoto e quase inacessível Ensino Superior. O desenvolvimento do pensamento autônomo e da criatividade tornam-se necessidades urgentes considerando-se as poucas pers- pectivas de trabalho hoje oferecidas. Este documento pretende dar inicio à discussão sobre esse assunto apontando alguns cami- nhos referentes às normas técnicas de elaboração de trabalhos escolares. Ao contrário do que parece, a normatização, ao invés de complicar ou burocratizar a ativi- dade de pesquisa escolar, consegue justamente auxiliar o aluno na organização das ideias. A sistematização evita o trabalho aleatório, sem reflexão. A proposição de forma planejada de métodos e objetivos que se deseja alcançar leva a resultados mais satisfatórios. Depois de assimiladas, as regras tornam-se mais um instrumento a serviço do aluno. Os recortes da realidade através de diferentes caminhos e olhares 157 Por sua vez, os professores dispondo de critérios comuns para solicitação e apresentação de tra- balhos escolares terão maior segurança ao realizarem sua avaliação. Acrescente-se a isso o fato de que um trabalho esteticamente bem feito facilita a leitura e a correção. (MELO, 1998, p. 3) Para um melhor desenvolvimento do trabalho de pesquisa, a biblioteca deve configurar-se como um espaço essencial, principalmente se dispuser de um acervo diversificado, atualizado e organizado de forma a possibilitar o acesso aos alunos. A ideia de biblioteca deve ir além de um lugar em que se disponibilizam livros, sendo importante sua concepção nos moldes de um centro de documentação, que torne acessível, além de livros, também jornais, revistas, textos, vídeos, discos, jogos inte- lectivos e outros. Outro recurso que pode ser incorporado ao centro de documenta- ção é a pesquisa através da internet. Embora para a maioria das escolas públicas esse recurso ainda esteja muito distante, ele pode oferecer ao aluno uma grande variedade de informações, porém, deve-se estar atento à qualidade do material pesquisado, bem como ao rigor metodológico da pesquisa. Relatórios Relatório é a exposição escrita na qual se descrevem fatos verificados median- te pesquisas ou se historia a execução de serviços ou de experiências. É geralmente acompanhado de documentos demonstrativos, tais como tabelas, gráficos, estatísti- cas e outros. (UFPR, 1992, p. 1) No Ensino Médio, a solicitação de relatórios é uma prática utilizada pelos pro- fessores para o caso da realização de visitas, exposições,palestras, aulas de campo, filmes e outros. Na elaboração de um relatório devem constar itens específicos considerando cada modalidade (MELO, 1998, p. 6): Visita/exposição – identificação do local e data, tema da atividade, descri- ção geral do local da visita ou exposição, relato das atividades realizadas e conclusão do aproveitamento da visita ou exposição. Palestra – nome do palestrante, tema da palestra, registro do desenvolvi- mento do tema pelo palestrante, relato das intervenções e debates e conclu- são do aproveitamento da palestra. Aula de campo – identificação do local e data, tema da aula, relato do desen- volvimento da aula e conclusão do aproveitamento da atividade. Filme – ficha técnica (nome do filme, país onde foi produzido, ano da pro- dução, nome do diretor, principais atores); sinopse (breve relato do filme); articulação do filme com o tema proposto; apreciação crítica. Outros – deve ser organizado de forma a atender os objetivos da atividade. Apresentação gráfica do relatório. Folha de rosto. Desenvolvimento/conclusão. Anexos. Os recortes da realidade através de diferentes caminhos e olhares 158 O recurso da fotografia, música, cinema, pintura, entre outros A área de Ciências Humanas se carac- teriza basicamente pela produção intelectual, mas também pode possibilitar a inserção no universo da sensibilidade, representado pela produção artística. Nesse sentido, a vincula- ção entre razão e sensibilidade representará um salto qualitativo no processo de aprendi- zagem. Embora a produção dessa área seja basicamente intelectual, os seus objetos de estudo não o são exclusivamente, portanto, se a escola tem como finalidade a contextu- alização dessa produção, poderá encontrar na pintura, na música, no cinema, na fotografia, caminhos a serem explorados. O prazer estéti- co proporcionado pela arte por meio das ima- gens e sons, além de contribuir com a diver- sificação das estratégias de ensino, estimula a percepção, facilita a contextualização, libera a criatividade e a imaginação, apresenta situ- ações concretas para o exercício da análise e reflexão e favorece a elaboração mais subjeti- va e singular. A sociedade moderna está cada vez mais permeada pelos estímulos e apelos vi- suais. O mundo das imagens prescinde da mediatização do pensamento e acaba por potencializar o processo de comunicação com enorme velocidade veiculando, muitas vezes, informações subliminares, distorções e mensagens reificadas. A decodificação dos signos e símbolos presentes nos espaços concretos e virtuais da existência humana só se torna possível a partir de um conhecimento pleno que incorpore as dimensões intelectuais e sensíveis. A partir dessas con- siderações é importante estabelecer uma diferenciação entre o ver e o olhar. O ver, em geral, conota no vidente uma certa discrição e passivi- dade ou, ao menos, alguma reserva. Nele um olho dócil, quase desatento, parece deslizar sobre as coisas; e as espelha e registra, reflete e grava. Diríamos que aí o olho se turva e se embaça, con- centrando sua vida na película lustrosa da superfície para fazer- -lhe espelho [...] Como se renunciasse à sua própria espessura e profundidade para reduzir-se a esta membrana sensível em que o mundo imprimiu seus relevos. Com o olhar é diferente. Ele reme- te, de imediato, à atividade e às virtudes do sujeito, e atesta a cada Imagem 53 – A poesia. Imagem 54 – Artista plástico: Júlio Cézar Ferreira Dias – O desenho. Imagem 55 – Transformar raízes e restos de queimadas em esculturas – a arte de Frans Krajcberg. Os recortes da realidade através de diferentes caminhos e olhares 159 passo nesta ação a espessura de sua interioridade. Ele perscruta e investiga, indaga a partir e para além do visto, e parece originar-se sempre da necessidade de “ver de novo” (ou ver o novo), como intento de “olhar bem”. Por isso é sempre direcionado e atento, tenso e alerta no seu impulso inquiridor. [...] Por isso o olhar não acumula e não abarca, mas procura; não deriva sobre uma superfície plana, mas escava, fixa e fura, mirando as frestas desse mundo instável e deslizante que instiga e provoca a cada instante sua empresa de inspe- ção e interrogação.[...] O olhar pensa; é visão feita interroga- ção. (UFPR, 1993) Cabe ainda, como contribuição à discussão acerca desses recursos, resgatar o conceito de re- presentação. As imagens, sejam elas as fotografias, as pinturas, os filmes, podem permitir diversas interpretações, por exemplo, os conhecidos qua- dros do Grito do Ipiranga e da Primeira Missa são apresentados em muitas aulas de História como re- produções fidedignas da realidade; entretanto, os mesmos foram produzidos sob encomenda com o objetivo da construção ideologizada do imaginário social bra- sileiro. As imagens em si, por mais fortes ou signi- ficativas que sejam, não têm, a priori, vinculações com qualquer reflexão ética, política ou estética, necessitam ser investidas de sentido, resultado de um complexo processo de conhecimento. A utilização desses recursos na escola exi- ge uma atenção especial quanto a sua operacio- nalização. A falta de planejamento, muitas vezes, afasta as atividades que envolvem esses recursos da sua verdadeira finalidade, diluindo sua impor- tância, provocando distorções de interpretações, frustrando as expectativas, na medida em que o meio se transforma no próprio fim. Esses recursos devem vir investidos de um direcionamento pe- dagógico, por meio de roteiros de observação que leve em conta o aprofundamento teórico, a articu- lação com a realidade, a análise crítica, o debate, sem cercear a liberdade de pensamento do aluno. Clube de ciências O clube de ciências é apresentado neste trabalho com uma perspectiva de supe- ração de uma tradição de exclusividade da área de Ciências da Natureza. Trata-se de um espaço que favorece a investigação científica numa abordagem ampla e interdis- ciplinar, possibilitando a interação entre áreas que utilizam estratégias diferenciadas de leitura da realidade. As atividades desenvolvidas num Clube de Ciências oportu- nizam ao aluno uma visão de mundo não fragmentada. Imagem 56 – Litogravura – Escher. Imagem 57. Os recortes da realidade através de diferentes caminhos e olhares 160 O Clube de Ciências possibilitará a iniciação do aluno à investigação científica, entendendo que o conhecimento científico pode promover a descrição e a interpretação de uma dada rea- lidade, considerando seus múltiplos aspectos, desenvolvendo assim, no “aluno investigador”, uma ação mais crítica e consciente. Salientamos a importância de considerar o caráter descritivo, presente no conhecimento cien- tífico, uma vez que ele delimita o objeto a ser pesquisado, utiliza método específico, elabora hipóteses e demonstra resultados. Contudo, devemos assegurar que nas ações desenvolvidas no clube esteja presente também o reconhecimento do caráter fragmentário existente nas Ciências Naturais, bem como seus limites e possibilidades. Acreditamos que a busca da su- peração dessa fragmentação se dará através da articulação dos diversos campos das Ciências Naturais e destes com as Ciências Humanas. Em sua fase de implantação essa proposta terá como temática as questões ambientais, dada sua característica de atualidade e interferência na sociedade e na vida do indivíduo, entre as quais podemos citar: o lixo e sua reciclagem; as várias formas de poluição; a importância das águas; o aquecimento da Terra; o impacto do crescimento urbano desordenado; as epidemias de demais problemas sanitários e outros. (CARVALHO, 1997, p. 25) 1. Considerando a estigmatização do planejamento como cerceador da criatividade presente no imaginário de muitos educadores, levando muitas vezes a uma prática espontaneísta, escreva sobre o papel do planejamento na utilização dos recursos metodológicos. 2. A partir da definição de um conteúdo (da sua disciplina), escolha um dos recursos apresentados e elabore um plano de aula.Os recortes da realidade através de diferentes caminhos e olhares 161 ALVES, Rubem. A Alegria de Ensinar. São Paulo: Ars Poética, 1994. ARAÚJO, Inês Lacerda. Introdução à Filosofia da Ciência. Curitiba: UFPR, 1993. CARDOSO, Sérgio. O olhar viajante. In: NOVAES, Adauto. et al. O Olhar. São Paulo: Cia. das Le- tras, 1998. CARVALHO, Agnes Cordeiro de. et al. Projetos Especiais: Colégio Estadual Paulo Leminski. Curi- tiba, 1997. MELO, Aldemara Pereira de. et al. Normas Gerais para Apresentação de Trabalhos Escolares. Curitiba: Colégio Estadual Paulo Leminski, 1998. SEVERINO, Antônio Joaquim. Métodos de Estudo para o 2.º Grau. 4. ed. São Paulo: Cortez, 1991. UFPR. Biblioteca Central. Normas para Apresentação de Trabalhos, 2. ed. v. 3, Curitiba: Ed. da UFPR: Governo do Estado do Paraná, 1992. ALVES, Rubem. A Alegria de Ensinar. São Paulo: Ars Poética, 1994. ARAÚJO, Inês Lacerda. Introdução à Filosofia da Ciência. Curitiba: UFPR, 1993. CARDOSO, Sérgio. O olhar viajante. In: NOVAES, Adauto. et al. O Olhar. São Paulo: Cia das Le- tras, 1998. CARVALHO, Agnes Cordeiro de et al. Projetos Especiais: Colégio Estadual Paulo Leminski. Curi- tiba, 1997. LE GOFF, Jacques. Por Amor às Cidades: conversações com Jean Lebrun. São Paulo: Fundação Editora da UNESP, 1988. MARÇAL, Jairo. Pós-Modernismo: a agonia da moderna cultura ocidental. Curitiba, 1989. Mono- grafia (Especialização em Antropologia Filosófica – Escola de Frankfurt), Departamento de Filosofia, Universidade Federal do Paraná. MARCUSE, Herbert. Tecnologia, Guerra e Fascismo. São Paulo: Fundação Editora da UNESP, 1999. MELO, Aldemara Pereira de et al. Normas Gerais para Apresentação de Trabalhos Escolares. Curitiba: Colégio Estadual Paulo Leminski, 1998. SEVERINO, Antônio Joaquim. Métodos de Estudo para o 2.º Grau. 4. ed. São Paulo: Cortez, 1991. UFPR. Biblioteca Central. Normas para Apresentação de Trabalhos. v. 3. 2. ed. Curitiba: Editora da UFPR, 1992. Os recortes da realidade através de diferentes caminhos e olhares 162 Os recortes da realidade através de diferentes caminhos e olhares II A questão metodológica II Projeto temático – a cidade A forma de uma cidade muda mais depressa, lamentavelmente, que o coração de um mortal. Baudelaire P ropor o projeto temático como estratégia metodológica traz de forma implícita a preocupação de criar alternativas que viabilizem a interdisciplinaridade e a contextualização. Apresentar um tema que articule o conhecimento sob pers- pectivas diversas, que possibilite o diálogo das diferentes disciplinas, que ofereça leituras complementares do objeto de estudo e que oportunize de forma concreta a transposição dos conteúdos para a realidade do aluno, significa lançar mão de um artifício que demonstre ao professor ser possível desenvolver, junto ao aluno, uma interpretação original e própria do mundo, superando concepções abstratas e frag- mentadas, assegurando, porém, a indissociabilidade entre teoria e prática. A relação entre o sujeito e o espaço – fortemente marcada pela significação atribuída ao espaço pelo sujeito, bem como pela multiplicidade de significações acu- muladas historicamente, institucionalizadas à revelia do sujeito – se configura como aspecto determinante da convivência urbana que demanda interpretações, reflexões e análises. A revelação do fenômeno urbano, da cidade, é um processo inquietante que envolve a formulação de questões e a busca de suas respostas será tão instigante e consciente quanto maior for a diversidade de abordagens. Pelos diferentes olhares da Geografia, Psicologia, Sociologia, História e Filosofia pode-se buscar uma repre- sentação mais verdadeira da cidade, que revele sua intensidade, seus sentidos, suas contradições, sua finalidade e sua importância, aspectos quase sempre obscurecidos por concepções desatentas e preconceituosas. O fenômeno urbano foi sempre expressão, espelho das civilizações que o criaram. Nesse sentido pode-se dizer que houve sempre uma cidade que, real ou conceptualmente, realizava a síntese, a encarnação dessa civilização porque a cidade não é apenas o fruto – o “excedente da civilização” –, mas ela é a efetivação mesma dessa vida de trocas, dessa vida econômica, dessa vida política, dessa trama de relações, efetivação mesma da história do homem. Os recortes da realidade através de diferentes caminhos e olhares II 164 A cidade exprime, pois, a própria representação que o homem faz de si mesmo. (CORRÊA, 1981, p. 59) Lewis Mumford, em seu livro A Cidade na História, questiona se [...] existe ainda uma alternativa real a meio caminho entre Necrópolis e Utopia – a possibili- dade de se construir um novo tipo de cidade que, livre das contradições interiores, enrique- cerá e incentivará de maneira positiva o desenvolvimento humano? [...] a sociedade urbana chegou a um ponto em que são dois os caminhos.[...] se irá dedicar-se ao desenvolvimento de sua mais profunda condição humana ou se irá entregar-se às forças hoje quase automáticas, que ele próprio desencadeou, e ceder o lugar a seu desumanizado alter ego, o Homem Pós-Histórico. Esta segunda alternativa trará consigo uma progressiva perda do sentimento, da emoção, da audácia criadora e, afinal, da consciência. Muitas cidades, muitas instituições educacionais e organizações políticas existentes, já firma- ram seu compromisso com o Homem Pós-Histórico. Essa criatura obediente não irá precisar da cidade: o que foi outrora uma cidade reduzir-se-á às dimensões de um centro subterrâneo de controle, pois, nos interesses do controle e do automatismo, todos os demais atributos da vida serão penhorados. Antes que maior parte da espécie humana se deixe levar a aceitar essa perspectiva, seduzida por pequenas promessas de “ventura pneumática”, que obscurecem a ameaça total, será conveniente olhar de novo o desenvolvimento histórico do homem, naquilo em que foi configurado e moldado pela cidade. (MUMFORD, 1998, p. 10) Na sequência serão apresentados os possíveis conteúdos, por disciplina, a se- rem abordados no desenvolvimento desse projeto temático. Geografia Distribuição espacial da cidade. O lugar – o espaço e o mundo. O espaço vivido. O espaço percebido. Geografia física da cidade. A questão do meio ambiente – principais impactos ambientais, ecossis- tema urbano, poluição. A população e as atividades econômicas. Urbanização. As novas relações cidade e campo. Fontes de energia. Globalização e tecnologia. História As origens da cidade – os primeiros habitantes, os imigrantes. Formação econômica e as classes sociais. As contradições sociais e os conflitos urbanos. A cidade e os retratos de uma época. Os recortes da realidade através de diferentes caminhos e olhares II 165 A construção do imaginário da cidade. Sociologia As relações de trabalho resultantes das novas tecnologias e o desempre- go estrutural. O mercado globalizado gerando novas formas de manifestações cultu- rais. O espaço urbano: juventude e velhice; maiorias e minorias; violência institucionalizada (hospitais, prisões, forças paramilitares etc.); violên- cia não institucionalizada, miséria social (explícita e oculta). Indústria cultural – televisão e música, veículos de informação, forma- ção e alienação. Psicologia A angústia e a depressão como sintomas do homem urbano. A identidade do adolescente no espaço urbano – as relações familiares e as relações grupais. O apelo urbano da sexualidade – o adolescente e o corpo. O adolescente e as drogas – uso, dependência, prazer e realidade, desejo, destruição e violência. A cidade como mundo do trabalho – a escolha profissional, a falta de perspectiva, as relações de poder, as expectativas familiares, a sobrevi- vência profissional. Filosofia A pólis: da concepção mítica à concepção filosófica. Fundamentos e finalidades da vida política na cidade. A democracia e a servidão voluntária na cidade contemporânea. Valores, costumes e ação na cidade. A moral como construçãohistórica. Instituições versus liberdade. Violência moral – sujeito transformado em objeto. A cidade e a eclipse da razão. A cidade e as tecnologias – as relações entre ciência e poder. A arte e a sensibilidade no espaço urbano. Artes marginais. Arquitetura da exclusão. Os recortes da realidade através de diferentes caminhos e olhares II 166 Alternativas de recursos metodológicos: Texto 1 Um estudo da cidade José de Anchieta Corrêa O espaço radical é, pois, o espaço afetivo, que define a relação homem-mundo. Explicitar essa relação é, antes de tudo, explicitar não um discurso sobre dois polos, ou dois termos, mas buscar descrever, apreender a imbricação, a tessitura da relação entre esses dois polos. Compreender a cidade é compreender esse espaço vital, esse espaço do homem face a suas tarefas. Falar da cidade é falar de um “Indutor Existencial”, de uma totalidade que só se constitui como tal, como lugar onde se habita, se vive, na medida em que se deixa “reconstruir no imaginá- rio” – e esse imaginário é precisamente o espaço, o lugar da afetividade. Assim nascem as cidades: como dinâmica entre os projetos, os desejos, a história dos homens no espaço. Dinâmica entre um tempo e um espaço vividos. É através dessa dialética que o espaço, concebido antes como um grande aberto, hostil, ame- açador, perigoso, torna-se acolhedor, investe-se de um sentido, orienta. A partir de então esse espaço orientado dá segurança ao indivíduo, protege sua personalidade, realiza sua integração no aqui e no agora, torna-se verdadeira extensão do corpo. [...] O espaço do homem contemporâneo é um sistema de referências móveis.[...] A cidade contemporânea é um espaço de invenção, um espaço realmente do homem, espaço humano, na medida mesma em que ela se define como lugar da comunicação, não apenas pela com- plexidade do sistema viário, da rede aérea, ferroviária ou rodoviária; trata-se aqui de uma variável mais fundamental – a comunicação humana: “... a metrópole é a enorme rede de ‘comunicações’, onde ‘o homem urbano’ está livre para escolher dentro de um campo maior de alternativas”. [...] Mais que imagem, ela será a realização mesma da intercorporeidade, mais que o habitat das individualidades, ela será a edificação da comunidade. A cidade, expressão dessa nova perspectiva, como bem anota Harvey Cox, pode ser definida segundo duas grandes categorias: o anonimato e a mobilidade. A primeira, fator de preservação da “intimidade essencial à vida humana”, e a segunda, a mobilidade, fator de garantia da mudança social, propiciando uma riqueza e um dinamismo à vida urbana. Ambas garantindo o contraste e a diversidade de “ingredientes essenciais ao ambiente humano”. [...] A qualidade do lugar é, pois, resultado da leitura no sentido do lugar, da sua significação. É a expressão sempre inacabada, jamais perfeita, do sistema de relações estabelecidas entre os usu- ários e o espaço. Essa qualidade exprime, pois, uma síntese aberta que tem por termos o projeto político-econômico-social e o campo físico, o lugar de sua efetivação. [...] Melhorar a qualidade da estrutura urbana é intervir, planejando, construindo ou legislando, de tal forma que uma apropriação pessoal ou coletiva sempre maior seja possível. Para que tal Os recortes da realidade através de diferentes caminhos e olhares II 167 apropriação se efetive, é condição primeira que os usuários aprendam o sentido de intervenção, qualquer que seja ela. Sem essa compreensão, sem esse fazer seu, toda intervenção será arbitrária ou coercitiva. [...] Melhorar a qualidade da estrutura urbana significa possibilitar sempre a plurissignificação, a pluriutilização dos lugares; significa não destruir o caráter de ambiguidade que as coisas do ho- mem têm, é compatibilizar sempre que possível diferentes variáveis. [...] Em outras palavras, perguntar pela cidade, enquanto qualidade de lugar, enquanto espaço afetivo, espaço de intencionalidade e não simplesmente espaço físico, espaço geométrico. [...] O estudo e a análise dos problemas da cidade não podem ser reduzidos a um problema de dimensões de avenidas, praças, equipamentos etc., devem ser tratados em termos de estruturas de redes de tensões, de relações dialéticas entre o usuário e o espaço, relações que figuram as dife- rentes atividades da cidade – habitar, trabalhar, circular, divertir, comerciar etc. [...] Difícil tarefa essa de apreender a dinâmica de uma estrutura viva, pois, significa apreendê-la em sua ambiguidade positiva, em sua transgressão sempre possível; partir à procura da genética da cidade, descobrir seu processo de invenção, a geratriz das formas e matrizes selvagens na apa- rente desordem da cidade nascendo e se desenvolvendo. Só assim se manifestará em seu modo a estrutura mesma da cidade – apropriação, ocupação e uso do solo – segundo sua ordem que é mais da diferença que da identidade, mais da invenção que da repetição, mais da qualidade que da quantidade. Texto 2 O mito de Megalópolis Lewis Mumford Para acreditar, pois, que a cultura humana alcançou um maravilhoso ponto culminante final na metrópole moderna, é preciso desviar os olhos dos sombrios detalhes da rotina diária. E é isso precisamente o que o cidadão metropolitano treina para fazer: ele vive não num mundo real, mas num mundo de sombras projetado ao seu redor em todos os momentos, por meio do papel, do celu- loide e de luzes convenientemente manipuladas: um mundo do qual é isolado, por vidro, celofane e pliofilme, das mortificações da vida. Em suma, um mundo de ilusionistas profissionais e de suas crédulas vítimas. O ruído de papel amassado é o som fundamental da metrópole. O que é visível e real no mun- do é apenas aquilo que foi transferido para o papel, ou que foi mais eterizado ainda num microfil- me ou numa fita magnética. Os mexericos essenciais da metrópole não são mais os mexericos de gente que se encontra face a face nas encruzilhadas, à mesa de jantar, no mercado; algumas dúzias de pessoas que escrevem nos jornais, uma dúzia mais a transmitir pelo rádio e televisão proporcio- nam a interpretação dos acontecimentos e movimentos cotidianos, com despreocupada correção profissional. Assim, até as mais espontâneas atividades humanas passam a ter uma supervisão profissional e um controle centralizado. A programação de múltiplos artifícios de toda a natureza Os recortes da realidade através de diferentes caminhos e olhares II 168 dá aos mais efêmeros e medíocres produtos da mente uma durabilidade temporária que não mere- cem: livros inteiros são impressos para justificar as desconexas evacuações da fita magnética. [...] Esse mundo metropolitano é, portanto, um mundo onde a carne e o sangue são menos reais que o papel, a tinta e o celuloide. É um mundo em que as grandes massas humanas, incapazes de ter contato direto com meios de vida mais satisfatórios, passam a viver por procuração, ora como leitores, ora como espectadores, ora como observadores passivos. Assim vivendo, ano após ano, de segunda mão, desligados da natureza que está fora deles e não menos desligados da natureza íntima, não admira que se afastem cada vez mais das funções da vida, até mesmo do pensamento, para as máquinas que seus inventores criaram. Naquele ambiente desordenado, apenas as máqui- nas têm uma parte dos atributos da vida, ao passo que os seres humanos são progressivamente reduzidos a um feixe de reflexos, sem impulso próprio de saída nem meta autônoma: o homem behaviorista. [...] A forma que a metrópole alcança é a forma de multidão: a praia de banhos, enxameante, à beira-mar, o corpo de espectadores no ginásio de boxe ou no estádio de futebol. Com o aumento dos automóveis particulares, as ruas e avenidas tornam-se parques de estacionamento e, para que o tráfego se possa mover, enormes vias expressas atravessam a cidade e aumentam as necessida- des de novos estacionamentos e garagens. No ato de tornar acessível o núcleo da metrópole, já os planejadores do congestionamentoquase o tornaram inabitável. [...] Assim, não explica por que o impulso da tecnologia deve, por si mesmo, determinar as neces- sidades humanas e ser tratado como um fim último, ante o qual todas as outras funções humanas se devem curvar. Tentar tal explicação seria pôr em dúvida as premissas ou mesmo os sagrados dogmas sobre os quais a economia da metrópole foi edificada. Texto 3 Os shoppings são nossa bastilha Marcelo Coelho Estava mesmo ficando meio chata essa coisa de marchas, invasões de terra, paralisações e passeatas. Protesto de índios, então, nem se fala: ninguém aguenta ver um índio vestido de ... ín- dio, batendo boca com os caciques do PFL. Na semana passada, tivemos finalmente uma novidade. Foi a invasão pacífica de um shop- ping carioca, pela Frente da Luta Popular. Cerca de 130 pessoas, entre punks, estudantes e favela- dos, entraram naquele, hum, “templo do consumo”, olharam as vitrines, comeram sanduíches de mortadela, declamaram poemas de Pablo Neruda e, bem, foram embora – deixando apreensões e mal-estar no ambiente. Esse misto de protesto e happening não poderia ser mais criativo e oportuno. Mas as coisas vão ficar bem mais interessantes se a moda pegar. Até onde irá a tolerância de lojistas e donos de shoppings com essa tática de constrangimento social? Os recortes da realidade através de diferentes caminhos e olhares II 169 Por aí podemos começar a entender a profundidade desse tipo de manifestação. Num país onde as desigualdades sociais saltam aos olhos, os shoppings centers sempre foram mais do que um simples aglomerado de lojas a tornarem mais prática a vida do consumidor. São fortalezas urbanas. Num shopping, somos pedestres sem perder o nosso status social. Podemos experimentar o pra- zer de viver entre pares – uma utopia igualitária se concretiza – sem abdicar de nenhum privilégio. Mais do que isso, a certeza de que somos privilegiados se dissipa; tornamo-nos pessoas co- muns, normais, até modestas em nossos hábitos de consumo. Sem mendigos, sem militantes de boné vermelho, sem pobres por perto, o shopping exclui de seu espaço a própria realidade da exclusão. Se os protestos se repetirem, essa exclusão não mais poderá ser denegada, ser vista como “natural” por uma obra de sua própria ausência de nosso campo de visão. Talvez os shoppings centers terminem sendo defendidos com muito mais violência do que, digamos, um prédio público qualquer, um palácio do governo ou uma via pública. Os shoppings são nossa bastilha. Pois o “pú- blico”, no Brasil, não existe, ou é uma propriedade estatal, uma agência administrativa entregue a negócios sigilosos, ou é a terra de ninguém, a praça abandonada, a estrada em petição de miséria. Nada mais sintomático a esse respeito, do que uma multidão protestando diante de um ministério ou do palácio do governo: é como se as autoridades dissessem, invariavelmente, que os militantes foram bater na porta errada. Em mais de um aspecto os shoppings parecem ser a porta certa. Mais que o BNDS ou a Volkswagen, mais do que na fábrica ou no governo, é no shopping que se localiza o foco estraté- gico e dinâmico do “sistema”. Acredito não estar dizendo bobagem se observar que, no capitalismo contemporâneo, as coi- sas só andam para a frente enquanto a publicidade vai criando necessidades de consumo artifi- ciais, vai insistindo na descartabilidade e no modismo, na ostentação e no supérfluo. É possível acumular recordes de prosperidade sem incluir a grande massa da população. Antes, podia se pensar que para o capitalismo funcionar era necessário um grande contingente de assalariados; eles é que vão se tornando os verdadeiros objetos supérfluos do sistema. O curioso é que o luxo, a beleza cada vez maior dos bens de consumo, são em si mesmos fontes de legitimação política. Aquilo que poderia ser mais revoltante – a vitrine de uma butique carésima, o restaurante provençal com toques de cozinha tailandesa, a pizzarias com heliporto, o tênis de crocodilo dotado de computador de bordo – se torna, por si mesmo, testemunho incon- testável de que o capitalismo mais excludente é a melhor coisa que a humanidade já inventou. A prova mais persuasiva de que o comunismo não deu certo, com efeito, parece ser o fato de que não existia McDonald’s e nem Armani na União Soviética. A falta de vitrine surge como mais chocante do que a falta de liberdade política. Vivemos uma espécie de cultura da vitrine. Tudo é liso, transparente e luminoso. A própria televisão, que muitos gostam de considerar uma “janela para o mundo”, é bem mais que uma vitrine impenetrá- vel e ao mesmo tempo sem mistérios. A exclusão, a desigualdade, a miséria são também evidentes – não há ideologia política ou contorção de pensamento que possa negá-las ou justificá-las. Mas sua própria evidência faz como que, de alguma forma, desapareçam enquanto problema – enquanto tragédia que atinge pessoas concretas. De outro lado do vidro Blindex, são muito visíveis, mas não parecem muito reais. Se os excluídos resolvem atravessar essa barreira, pergunto-me se os shoppings saberão reagir com estilo e elegância. Os recortes da realidade através de diferentes caminhos e olhares II 170 Urbanista se assusta com “feudos” de São Paulo Cassiano Elek Machado “São Paulo é a cidade com mais muros por m2 do mundo”, diz Peter Marcuse, filho do pen- sador alemão. O filósofo alemão Herbert Marcuse (1898-1979) ficou célebre como uma das maiores referências intelectuais dos movimentos estudantis que pipocaram em várias partes do mundo em 68. Inspirou e foi inspirado pela utopia daquele período, cujo epicentro foram as barricadas parisienses de maio. Seu único filho, o urbanista Peter Marcuse, se considera um “marcusiano”, embora o horizonte de suas reflexões não seja mais as utopias, mas os seus destroços. Ocupa-se da privatização do espaço público, da formação de guetos urbanos e das formas de marginalização do capitalismo avançado. Com 69 anos, Peter deixa hoje o Brasil, após 28 dias no país. Formado em Direito, ele estu- dou em Harvard, Yale e Berkeley antes de se tornar professor da Columbia University, em Nova Iorque, onde mora atualmente. Veio ao Brasíl a convite do Núcleo de Pesquisa em Informação Urbana da USP para, como diz, “trocar experiências urbanas”. Durante sua estada no país, fez referências sobre a “guetificação” das cidades, o aprofunda- mento da exclusão social e as novas formas de ordenamento urbano. Respondeu muito e pergun- tou ainda mais. Manuseando de forma um tanto desengonçada um mapa amarelo da cidade, com uma câme- ra fotográfica no bolso, percorreu lugares da cidade tão diferentes como o Alto da Boa Vista e o Capão Redondo. Nestes passeios de carro, metrô ou helicóptero, enriqueceu com muitos rolos de filme a sua coleção de fotos de muros e grades que guarda em sua casa perto da Columbia Univer- sity. Aliás, foi no próprio cercado dessa universidade que ele buscou inspiração para começar suas pesquisas sobre guetos urbanos. Marcuse se intrigou com a altura de seus muros e com o rigor do grupo de segurança particular que patrulhava o interior do campus. A compreensão disso, segundo ele, não estava muito longe. Ficava a nove quadras de lá. Essa é a distância que separa a universidade do bairro do Harlem, que mais tarde ele classificou como “um dos três grandes guetos de Nova Iorque” (junto com o Bronx e o Brooklin). No seu vocabulá- rio, gueto não tem apenas o sentido clássico. “É a exclusão que surge da mescla entre pauperização e racismo”. Marcuse ficou assustado com a quantidade e dimensão dos “guetos” paulistanos e com sua distribuição na cidade. Em São Paulo, disse, tantos os “guetos” quando as “cidadelas”, catego- ria que ele inventou para descrever os “feudos” em que os ricos se escondem do resto da cidade, são muito menos concretados e, portanto, menos visíveis. É essa fragmentação social e o aumento da privatização da vida pessoal (fatores que ele havia acompanhado “de forma mais diluída”, na África do Sul), que elevê como o futuro das Metrópoles. “São Paulo está na frente. Nova Iorque caminha para o que é São Paulo hoje”, disse à Folha o urbanista, que nasceu em Berlim, mas mu- dou com seu pai para os Estados Unidos em 1933. Três dias antes de voltar para Nova Iorque, Peter passeou de carro por São Paulo, durante três horas, com a reportagem da Folha e o urbanista Ricardo Toledo, professor da Faculdade de Ar- quitetura e Urbanismo da USP. Escolheu visitar o condomínio de luxo Alphaville (na grande São Paulo), “uma típica cidadela”. No caminho perguntou sobre como funciona a cidade, falou de seu pai, discorreu sobre utopias e se espantou com o número de cercas nos prédios: “é a cidade com mais muros por m2 do mundo”. Texto 4 Os recortes da realidade através de diferentes caminhos e olhares II 171 Folha – O trabalho do senhor é uma continuação dos questionamentos promovidos por seu pai, já que ambos discutem como o que a sociedade produz é distribuído? Peter Marcuse – Meus trabalhos chegam às mesmas conclusões que as dos trabalhos de meu pai, mas em diferentes direções. Ambos concordamos que a sociedade não é organizada para ma- ximizar a satisfação de necessidades humanas. Folha – Quais os fatores que fazem com que o senhor acredite nisso? Peter Marcuse – A Sociedade deixa muitas pessoas acreditarem que estão bem providas e outras sabendo que estão muito pouco providas. Creio que nenhum desses opostos está feliz. Não estão em posição de se desenvolver como gostariam. Isso pode ser aplicado aqui, e revela a exten- são da desigualdade na sociedade brasileira. Não é exatamente uma utopia ter de viver em uma comunidade na qual você precise de permissão para entrar, tenha muros rodeando toda a área em que você mora e tenha que passar a maior parte do seu tempo em congestionamentos. Certamente os que moram em favelas também não vivem uma utopia. Acho que a sociedade atingiu um nível em que poderia dar o melhor para esses dois grupos. Folha – Então a utopia ainda seria possível em nossa sociedade? Peter Marcuse – Creio que sim. Meu pai escreveu certa vez um artigo chamado “O fim da utopia”. Nele dizia que a ideia de uma sociedade utópica não era tão fantasiosa. Era possível que a tecnologia que tínhamos fosse suficiente para satisfazer as necessidades do homem. Utopias não seriam mais utopias. Folha – Quais as principais conclusões do senhor sobre São Paulo? Peter Marcuse – Acho que o processo de privatização da vida pessoal foi mais longe em São Paulo do que em qualquer parte do mundo em que estive. Essa é a cidade com mais muros por m2. Folha – Mas os muros são apenas sinais da desigualdade ou são criados da desigualdade? Peter Marcuse – Os dois. O Alphaville e os outros condomínios murados excluem as pessoas. Folha – O senhor acha que seu pai ainda teria os mesmos pontos de vista depois do fim da União Soviética? Peter Marcuse – Penso que suas teorias seriam ainda mais radicais. Não penso que o fim do sistema soviético lhe surpreenderia. Ele havia previsto a essência disso já nos anos 50. Apontou a contradição de um sistema que pretendia ser socialista, mas que não permitia liberdades públicas ou privadas. Folha – O senhor se diria marxista? Peter Marcuse – Isso me lembra a piada que diz que Marx não se consideraria um marxista. Penso que as maiores contribuições para o tipo de trabalho que faço são de Marx. Porém, creio que sou mais marcusiano que marxista. Texto 5 A sombra das cidades ouvivendo dos excessos Anna Verônica Mautner Eles não são muitos. Vivem nas sombras das grandes verticalidades nas megalópoles. Nos imensos viadutos circulam veículos onde essas pessoas da rua nunca entraram. Em volta deles, como que os contendo, amplas avenidas cheias de veículos, ora velozes, ora parados. Eles sempre de fora. Nos viadutos quase ninguém a pé, a não ser quando exclusivamente para pedestres. O CIDADÃO se Os recortes da realidade através de diferentes caminhos e olhares II 172 encontra dentro e o humano de rua fora dos prédios, dos carros, dos parques, das lojas. Nas megalópoles, no que chamamos centro, downtown, centrum, centreville, convivem pe- destres e veículos, portanto, os cidadãos e os humanos de rua. Todo resto das megalópoles é domi- nado pela alternância ou carros, ou pessoas. Bem longe do centro, nas cidades-dormitórios, vemos algumas pessoas nas calçadas, enquanto veículos passam a caminho de sua própria, individual, pessoal garagem, pertencente ao dono do veículo. Enquanto isso, lá no centro, lá nos viadutos, nos debaixo dos viadutos e das pontes, estão os outros, à sombra dos magníficos produtos de nossa engenharia civil. Há cidade que nem rua tem. Esforço-me para que seja clara essa descrição de como percebo a distribuição das pessoas – as de dentro, as de fora, as paradas e as em movimento. Mas não é só essa distribuição espacial que nos interessa. Esta determina condições peculiares de ser e de se transformar. Quero focalizar a relação homem/objeto externo em toda variedade que nosso aparelho perceptivo é capaz de captar. O que captamos é ingrediente de nosso tornar-se. A condição do que vive fora é determi- nada exatamente pelo que existe fora como meio de vida. Assim como a floresta faz o lenhador, a montanha, o homem das alturas e o mar, todos os mitos do pescador, a sombra das verticalidades da grande cidade gera também uma cultura que eu chamarei de predatória. [...] Minha fantasia, mais minhas observações, mais minhas informações me dizem tratar-se de seres de outros tempos [...] Predadores por excelência que se esgueiram, riem, correm pelos es- paços vagos ou, digamos, públicos. Onde, por acaso, moram também os seres mais evoluídos, criativos, fazedores de opinião de nossa civilização. Pois, como se sabe, os criadores, artistas, jor- nalistas, publicitários, seres que se alimentam de informática, laser, engenharia genética, pensam em ecologia, moram no centro da cidade, onde estão os humanos de rua. É nesse meio, às vezes existe apenas meia parede que os predadores de antes da agricultura e do pastoreio sobrevivem. A megalópole é tão rica quanto as florestas e campos de antes do surgimento da civilização. Na megalópole existe superabundância. Dela se tira o sustento dos párias que nem conhecem o ama- nhã e por isso não o temem. Imagino-os diante das grandes verticalidades como o predador da Pré-História via a paisagem que o rodeava, um imenso enigma a não ser decifrado. Não é só sobre a miséria e falta que falo. Quero dar mais destaque e não ter onde guardar do que a não ter o que guardar. Falo da condição em que o próprio corpo é o limite inexorável, sem extensões. [...] Nós que estamos no limiar do terceiro milênio achamos que temos, na administração da abundância, a chave do bem viver. Mas esse bem viver gera essas diferenças. Exatamente porque existe abundância dentro para os de dentro; e aridez fora. A abundância vaza e fica ao alcance dos que habitam fora, nas sombras. Assim sobrevivem os diferentes. O predador sabe que terá acesso ao excesso de abundância, como o predador da Pré-História, sem entender a natureza, encontrava a sua sobrevivência. É uma riquíssima comunicação sem palavras. É assim a nossa comunicação com esse primo tão perto e tão distante. Assim como eu, ele olha e imagina. A diferença está na quantidade de nomes que conhecemos. Temos abundância de bens e de palavras. Às vezes obser- vamos uma história, como a que contei acima. Adjetivamos fartamente para exorcizar o grande medo que temos do desejo, que imaginamos, que eles tenham de ter tudo o que é meu. O meu olho de possuidor imagina o outro – pura inveja. Causa estranheza quando nos damos conta de que ele está, a menos de um metro de distância. Esse metro tem que conter os milênios que separam o predador do esbanjador [...]. [...] Os recortes da realidade através de diferentes caminhos e olhares II 173 Imagino que os soltos no mundo, os sem eira nem beira, enxerguem a megalópole como uma grande feira livre. Osinimigos – proprietários e seus lacaios policiais que lhes protegem a proprie- dade – misturam-se com outras verticalidades do grande mercado onde estão as coisas que eles precisam agora, já, para que não comecem a morrer. Se aceitarmos a hipótese de que não se passa incólume por essa experiência, se aceitarmos que a subjetividade é formada pelas experiências, teremos, grosso modo, pelo menos duas cate- gorias de subjetividade. A dos predadores e as dos proprietários. A saber: a dos possuídos e dos despossuídos. [...] Músicas e poesias Curitibas (LEMINSKI, 1989) Conheço esta cidade Como a palma da minha pica. Sei onde o palácio, Sei onde a fonte fica. Só não sei da saudade A fina flor que fabrica. Ser, eu sei, quem sabe, Esta cidade me significa. As vitrines (CHICO BUARQUE, 1999) Eu te vejo sair por aí Te avisei que a cidade era um vão – Dá tua mão – Não faz assim – Não vai lá não Os letreiros a te colorir Embaraçam a minha visão Eu te vi suspirar de aflição E sair da sessão, frouxa de rir Os recortes da realidade através de diferentes caminhos e olhares II 174 Já te vejo brincando Gostando de ser Tua sombra a se multiplicar Nos teus olhos também posso ver As vitrines te vendo passar Na galeria Cada clarão É como um dia depois de outro dia Abrindo um salão Passas em exposição Passar sem ver teu vigia Catando a poesia Que entornas no chão A Cidade Chico Science & Nação Zumbi O sol nasce e ilumina as pedras evoluídas Que cresceram com a força de pedreiros suicidas Cavaleiros circulam vigiando as pessoas Não importa se são ruins, nem importa se são bons E cidade se apresenta centro das ambições Para mendigos ou ricos e outras armações Coletivos, automóveis, motos e metrôs Trabalhadores, patrões, policiais, camelôs A cidade não para, a cidade só cresce O de cima sobe e o debaixo desce A cidade se encontra prostituída Por aqueles que a usaram em busca de saída Ilusora de pessoas de outros lugares A cidade e sua fama vai além dos mares No meio da esperteza internacional Os recortes da realidade através de diferentes caminhos e olhares II 175 A cidade até que não está tão mal E a situação sempre mais ou menos Sempre uns com mais e outros com menos A cidade não para, a cidade só cresce O de cima sobe e o debaixo desce Eu vou fazer um embolada, um samba, um maracatu Tudo bem envenenado, bom pra mim e bom pra tu Pra gente sair da lama e enfrentar os urubus Num dia de sol Recife acordou com a mesma fedentina do dia anterior Cidade holograma Comunidade Racional Sei que já ouviu falar muito dela, capital ecológica Que capital é essa, no que vende de um lado tudo em paz Mas a parte boa da periferia ninguém lembra mais Eu falo isso pra todo mundo e não só pra você O pior cego é aquele que não quer ver Será que só eu enxergo essa tristeza Será que o governo não vê essa pobreza Só enxerga a beleza, merchandise é o nome Enquanto isto é feito uma verdade some Ei você, escute seu amigo, comunidade racional canta A cidade sorriso ah ah A cidade sorriso A cidade propaganda A cidade sorriso Curitiba, ah ah Onde está o paraíso É mesmo incrível Ah ah ah ah Os recortes da realidade através de diferentes caminhos e olhares II 176 Preste atenção no seu bairro Seja onde for aposto que tem um barraco amontoado Com uma família pobre sem nada no prato Esquentando na fogueira o resto da feira O resto da comida que você deixou na mesa O quê? Isto te abala? Esta é a vida, não sou eu que dou as cartas Fiz que não sabia nada disso Agora está vendo a cidade sorriso O sorriso da burguesia está na lágrima dos pobres Enquanto o rico come caviar o pobre passa fome Esse é o lado que a mídia encobre Esse é o jogo entre a caça e o caçador Só que a caça tem a alma consciente Vira o jogo atingindo o predador Na Vila Trindade onde é a sede do comércio da desilusão Onde os moleques querem a mesma profissão Crescer vendendo drogas, se tornar grande ladrão Sonham com isso Nossa! Que pretensão. Enquanto isso ocorre lá de cima corre as ordens Pelo poderoso comandante, maldito manda-chuva, o traficante Erva, erva que corre, erva, mais do que farinha, seringa e pedra A polícia não aparece por aqui Às vezes que aparece é só pra destruir Os moradores desconhecem a proteção Adoram o chefão, polícia é que é ladrão Ih, olha eles vêm vindo aí O bicho vai pegar É melhor sairmos daqui A parte pobre pra cá, a parte rica pra lá SE-PA-RE Pode crê, é assim que tá Olha ali ao lado está Pinhais Os recortes da realidade através de diferentes caminhos e olhares II 177 Não é Curitiba mas também está nos jornais A cada dia morrem mais e mais e mais e mais... Cidade propaganda Cidade sorriso Curitiba ah ah Onde está o paraíso É mesmo incrível Roda cutia de noite e de dia A lei do silêncio impera na periferia Traficantes na batalha pelo ponto da farinha Jardim Botânico, Vila Pinto como era chamada Casas amontoadas, quase caindo E aquela menina sorrindo Do que ela está rindo? Está rindo da própria fome e há dias que ela não come Está rindo desse mundo construído pelo homem Na mão um saquinho de cola Ela cheira pra que a fome vá embora Ela ri da própria miséria Das marcas que o pai embriagado deixava nela Olha ali ao lado dois moleques trocando sacos Fazendo tráfico, entregando encomendas Mas desse tamanho e já são traficantes? Ainda não, mas já são integrantes Garotos de quinze anos têm um futuro chocante Ser encontrado na valeta, encharcados de sangue São todos menores de idade mas já tiveram passagem Todos armados e entupidos de crack Garotos do mesmo naipe estão em fogo cruzado Morrem em brigas de gangue Ou morrem chacinados Estou vendo que não vai aguentar Mas a realidade é muito vasta Zona norte, zona leste, zona sul, zona oeste Guerra de torcidas, bombas caseiras Os recortes da realidade através de diferentes caminhos e olhares II 178 Do Maracanã à Vila Tarumã Centenário, Capanema Quero ver paz Chega de problema Solitude, São Domingos Talvez um dia eu mude tudo isso E você vai estar Por dentro dessa trama, desse drama ah De uma cidade holograma ah Cidade propaganda Capital ecológica Se é tudo isso o que é que eu tô fazendo aqui? Momento incrível. Filmes, clipes e documentários Métropolis Direção: Fritz Lang. Atores: Alfred Abel, Gustav Froelich, Rudolf Klein-Rogge, Brigitte Helm e outros. Fotografia: Karl Freund e Günther Rittau. Cenário: Otto Hunte, Erich Kettelhut e Karl Vollbrecht. Alemanha, 1926 – 120 minutos Trabalhadores de uma grande cidade no século XXI vivem nos subterrâneos e veneram como santa uma garota chamada Maria; um cientista cria em laboratório um clone de Maria, que incita os trabalhadores contra os patrões. O grande charme desse filme sombrio e aterrador é o cenário futu- rista. O Urbenauta Filme de: Eduardo Fenianos. Direção: Luciano Coelho. Fotografia: Hans Stempel. Brasil, Curitiba, 1998 – 40 minutos. Os recortes da realidade através de diferentes caminhos e olhares II 179 Durante 100 dias, o jornalista Eduardo Fenianos transformou-se em um viajan- te urbano. Em sua aventura ele conheceu todas as ruas de Curitiba, navegou 216km nos rios que a cortam e revelou imagens que a rotina e o stress das grandes cidades não nos deixam ver. Uma história diferente e criativa que nos leva a pensar que ca- minhos devem seguir as metrópoles no século XXI. Tempos Modernos Direção, roteiro e música: Charles Chaplin. Atores: Charles Chaplin, Paulette Goddard, Henry Bergman e Allan Garcia. EUA, 1936 – 85 minutos. Durante a Depressão nos anos 1930, Carlitos torna-se operário em uma gran- de indústria. Líder grevista por acaso, apaixona-se por uma jovem órfã, que é uma idealista em busca do próprio destino. Obra-prima com a qual Chaplin critica a in- dustrialização “selvagem”, o descaso para com os deserdados da vida em geral e os operários em especial. O filme foi proibido na Alemanha de Hitler e na Itália de Mussolini por ter sido considerado “socialista”. Mágico de Oz Um clipe do grupo de rap Racionais MC. Brasil,1998 – 8 minutos. Analogia do clássico do cinema, o clipe é revelador da perversidade das injus- tiças sociais, das complexas relações de poder, da violência e das drogas que fazem parte do cotidiano das periferias das grandes cidades. Kids Direção: Larry Clark. Atores: Leo Fitzpatrick, Justin Pierce, Chloe Sevigny. Roteiro: Harmony Korine. EUA, 1995 – 96 minutos. Polêmico, dramático e chocante, Kids mostra de maneira nua e crua um dia na vida de um grupo de adolescentes do subúrbio de Nova York. Retrata friamente as drogas, os problemas da aids e o sexo entre os adolescentes. Considerando o filme um grande veículo de conscientização, a censura abriu uma exceção, liberando Kids para 16 anos. O desejo do diretor Larry Clark era fazer um filme de adolescentes que o cinema jamais fez. Ele conseguiu. Os recortes da realidade através de diferentes caminhos e olhares II 180 Imagens – fotos, pinturas e charges Imagem 58 – Software: trabalho sobre grafite. Imagem 59 – Software: trabalho sobre grafite. Os recortes da realidade através de diferentes caminhos e olhares II 181 Através das pichações esses indivíduos emergem do contexto da cidade e marcam com seus gestos estes espaços, apresentam-se e dizem: eu existo, sou fulano de tal, moro em tal lugar. Jean Baudrillard Imagem 60 – Foto de Julien Maculan. Imagem 61 – Foto de Patrícia Santos. A forma que a metrópole alcança é a forma da multidão... O ruído de papel amassado é o som fundamental da metrópole. Lewis Mumford Imagem 62 – Foto de Daniel Augusto Júnior. Os recortes da realidade através de diferentes caminhos e olhares II 182 Imagem 63 – Foto de Alan Marques. O fim da cidade, ou a cidade sem fim... Jacques Le Goff Imagem 65 – Nova York e a estética da verticalidade sem- pre inspiram os pintores do século XX. Imagem 64 – Este quadro é a primeira representação conhecida de paisagem urbana: é uma Manhattan do século XIV. A arquitetura é a vontade de uma época traduzida no espaço. Mies van Der Rohe Os recortes da realidade através de diferentes caminhos e olhares II 183 Imagem 67 – A cidade do século XX desafia o céu, não mais num impulso em direção a Deus, mas numa afirmação do homem. O Empire State Buil- ding, em Nova York. Imagem 66 – As torres de São Gimignano dominam o campo da Toscana, exal- tando o poder do patriciato urbano que se afirma nessa estética da verticalida- de. Vista de São Gimignano, Toscana, na Itália. A partir da escolha do conteúdo proposto em uma das disciplinas da área de Ciências Humanas, apresente uma proposta de trabalho em sala de aula, combinando alguns dos recursos metodo- lógicos apresentados – texto, poesia, música, imagens e filme. Os recortes da realidade através de diferentes caminhos e olhares II 184 _ CORRÊA, José de Anchieta. Um Estudo da Cidade. Curitiba: Sociedade de Estudos e Atividades Filosóficas Regional Paraná, 1981. MUMFORD, Lewis. A Cidade na História: suas origens, transformações e perspectivas. 4. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1998. Os recortes da realidade através de diferentes caminhos e olhares II 185 BUARQUE, Chico. Chico Buarque Ao Vivo. São Paulo: BMG, 1999. 1 CD: digital, estéreo. SCIENCE, Chico; ZUMBI, Nação. Da Lama ao Caos. São Paulo: Chaos/Sony, 1994. 1 CD: digital, estéreo. COELHO, Marcelo. Os shoppings são nossa bastilha. Folha de S.Paulo, São Paulo, 9 ago. 2000. RACIONAL, Comunidade (Grupo de Rap). Curitiba, 1999. 1 CD: produção independente. CORRÊA, José de Anchieta. Um Estudo da Cidade. Curitiba: Sociedade de Estudos e Atividades Filosóficas Regional Paraná, 1981. (Textos Seaf, n. 3). MACHADO, Cassiano Elek. Urbanista se assusta com “feudos” de SP. Folha de S.Paulo, São Paulo: 7 jun. 1998. MARÇAL, Jairo. Pós-Modernismo: a agonia da moderna cultura ocidental. Curitiba, 1989. Mono- grafia (Especialização em Antropologia Filosófica – Escola de Frankfurt), Departamento de Filosofia, Universidade Federal do Paraná. MAUTNER, Anna Veronica. A sombra das cidades ou vivendo dos excessos. In: MAGALHÃES, Maria Cristina Rios (Org.). Na Sombra da Cidade. São Paulo: Escuta, 1995. MUMFORD, Lewis. A Cidade na História: suas origens, transformações e perspectivas. 4. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1998. Os recortes da realidade através de diferentes caminhos e olhares II 186 Avaliação – processo dialético de superação Lei de Diretrizes e Bases para a Educação (9.394/96) CAPíTULO II Da Educação Básica SEÇÃO I Das Disposições Gerais Art. 24. A Educação Básica, nos níveis fundamental e médio, será organi- zada de acordo com as seguintes regras comuns: [...] V - verificação do rendimento escolar observará os seguintes critérios: a) Avaliação contínua e cumulativa do desempenho do aluno, com preva- lência dos aspectos qualitativos sobre os quantitativos e dos resultados ao longo do período sobre os de eventuais provas finais; b) Possibilidade de aceleração de estudos para alunos com atraso escolar; c) Possibilidade de avanço nos cursos e nas séries mediante verificação do aprendizado; d) Aproveitamento de estudos concluídos com êxito; e) Obrigatoriedade de estudos de recuperação, de preferência paralelos ao período letivo, para os casos de baixo rendimento escolar a serem discipli- nados pelas instituições de ensino em seus regimentos. SEÇÃO IV Do Ensino Médio Art. 36. O currículo de Ensino Médio observará o disposto na Seção I deste Capítulo e as seguintes diretrizes: [...] II - Adotará metodologias de ensino e de avaliação que estimulem a inicia- tiva dos estudantes. Parágrafo Primeiro – Os conteúdos, as metodologias e as formas de ava- liação serão organizadas de tal forma que ao final do Ensino Médio o edu- cando demonstre: I - domínio dos princípios científicos e tecnológicos que presidem a produ- ção moderna; II - conhecimento das formas contemporâneas de linguagem; III - domínio dos conhecimentos de Filosofia e de Sociologia necessários ao exercício da cidadania. Diretrizes Curriculares Nacionais para o Ensino Médio – Resolução CEB 23, 26/06/98. Art 3.º Para observância dos valores mencionados no artigo anterior, a prá- tica administrativa e pedagógica dos sistemas de ensino e de suas escolas, as formas de convivência no ambiente escolar, os mecanismos de formulação Avaliação – processo dialético de superação 188 e implementação da política educacional, os critérios de alocação de recur- sos, a organização do currículo e das situações de ensino-aprendizagem e os procedimentos de avaliação deverão ser coerentes com princípios estéticos, políticos e éticos, abrangendo: [...] Art. 7.º Na observância da Identidade, Diversidade e Autonomia, os sistemas de ensino e as escolas, na busca da melhor adequação possível às necessidades dos alunos e do meio social: [...] III - instituirão sistemas de avaliação e/ou utilizarão os sistemas de avalia- ção operados pelo Ministério da Educação e do Desporto, a fim de acompa- nhar os resultados da diversificação, tendo como referência as competên- cias básicas a serem alcançadas, a legislação do ensino, estas diretrizes e as propostas pedagógicas das escolas. É surpreendente o fato de que, embora hoje o país possua instituído um sis- tema de avaliação, organizado externamente às Unidades Educacionais – Enem–, estruturado e desenvolvido a partir das competências propostas para o Ensino Mé- dio, não se encontre, na apresentação dos Parâmetros Curriculares Nacionais, igual correspondência, no que se refere ao processo avaliativo que permeia toda a ação educacional. Registra-se aqui, que em toda a discussão oficial sobre o novos ru- mos dessa etapa final da Educação Básica, pouco ou quase nada foi dito sobre a avaliação contínua, cumulativa, qualitativa e processual a ser realizada com os alunos visando acompanhar o seu rendimento escolar. Ao se garimpar os PCN à procura de alternativas que ofereçam aos professores, no encaminhamento da avaliação, o mesmo caráter instigante, inovador e provocador (no seu melhor sen- tido), oferecido ao se apresentar osprincípios filosóficos norteadores da proposta, bem como a sua organização curricular, o que se encontra está limitado apenas às Bases Legais (ver quadro anterior). Ainda assim, essas Bases Legais se restringem a um direcionamento visando ao controle externo sobre as instituições de ensino e as abordagens generalistas – “avaliação que estimule a iniciativa dos estudantes”, pouco aprofundadas – “procedimentos de avaliação coerentes com princípios esté- ticos, políticos e éticos” e, particularistas – “formas de avaliação organizadas de tal forma que ao final do Ensino Médio o educando demonstre: domínio dos conheci- mentos de Filosofia e Sociologia necessários ao exercício da cidadania”. Uma proposta que se estruture de forma a oferecer ao aluno do Ensino Médio uma nova modalidade de curso inspirado em princípios da Ética, da Política e da Es- tética, baseado na Autonomia, na Identidade e na Diversidade, organizado por áreas do conhecimento, de forma interdisciplinar e tendo a discussão acerca do trabalho e da cidadania como eixos de contextualização, deve também oferecer, ao processo de avaliação, contribuições que visem ao seu aprimoramento. Existe no ato de avaliar duas questões iniciais, em meio a muitas outras, a se- rem formuladas: quais os critérios a serem definidos para se chegar a um resultado, Avaliação – processo dialético de superação 189 quantitativo (uma nota) ou qualitativo (um conceito), que demonstrem o rendimento do aluno? E, em se chegando a esse resultado, representado por uma nota ou um con- ceito, que não atenda às expectativas do ensino, que procedimentos serão necessários adotar para a superação desse resultado, seja pelo professor ou pelo aluno? Coloca-se nessa segunda questão, como aspectos a serem considerados, o tempo escolar e os conteúdos propostos para o ano letivo. Ao se refletir sobre a primeira questão, que envolve a definição de critérios, é necessário também colocar sob análise a subjetividade implícita, o julgamento mo- ral, o fator ideológico presente na área de Ciências Humanas, que interferem desde a abordagem do conteúdo mas, sobretudo, no momento da avaliação. Refletir acerca da clareza necessária ao professor para “cobrar” no processo de avaliação apenas o con- teúdo dado, a capacidade de argumentação e de análise crítica, e não exigir do aluno afinidade ideológica ou doutrinária, não impor valores morais, não julgar atitudes e posições, nem confundi-las com apreensão do conteúdo proposto. Pensar o processo de avaliação como um momento de superação dialética implica também pensar na organização escolar. A alternativa legalmente instituída de recupera- ção paralela não encontra na prática o terreno adequado para o seu desenvolvimento. Os princípios básicos implícitos nessa forma de recuperação, sejam eles um tempo paralelo e uma forma diferenciada de trabalhar os conteúdos não aprendidos, exigem uma escola organizada com contraturno e professores com a capacitação necessária para o desenvol- vimento de trabalhos alternativos. Via de regra, as escolas públicas não contam com esse investimento no professor, bem como, as políticas educacionais não priorizam qualquer ati- vidade paralela. Na maioria das vezes, até mesmo aqueles professores que possuem clareza e compromisso com o ensino acabam por se desviar, face à falta de condições de trabalho e de tempo, para formas de avaliação conservadoras e apressadas. Por outro lado, as escolas particulares, que possuem um investimento maior no tempo escolar e nos recursos mate- riais e humanos, pulverizam tais benefícios com um número excessivo de alunos em sala de aula, que impossibilitam uma avaliação mais individualizada e diagnóstica. A avaliação não deve ser considerada um fim em si mesma e sim um elemento integrador entre o ensino e a aprendizagem, visando oportunizar ao aluno a superação de suas dificuldades, perceber seus avanços e possibilidades e ao professor a reflexão contí- nua sobre sua prática educativa. Os instrumentos de avaliação devem ser criteriosamente pensados e elaborados. É preciso que os critérios adotados sejam claros para o professor e para o aluno, definindo-se o que será avaliado e como será avaliado. Alternativas de avaliação na área de Ciências Humanas No processo de avaliação é aconselhável a utilização de diferentes instrumen- tos. A prova discursiva com ou sem consulta, quando utilizada, deve conter questões reflexivas, por meio das quais o aluno demonstre articulação de ideias, capacidade de análise comparativa, de problematização e resolução de problemas, bem como, capacidade de síntese. Questões que privilegiem a compreensão consciente do que foi estudado e não a mera assimilação mecânica dos conteúdos. Avaliação – processo dialético de superação 190 Com relação à produção de textos, seja na realização de resenhas, comentários críticos ou provas discursivas, é necessário definir claramente os critérios a serem considerados, podendo-se inclusive elaborar uma “grade de correção” que contem- ple os aspectos essenciais do conteúdo proposto, evitando, assim, dispersão, desvios subjetivos e a aceitação desapercebida de possíveis sofismas, por parte do professor. Quando a produção de texto resulta de um trabalho de pesquisa realizado em equipe, sugere-se que o professor solicite conclusões individualizadas. Questões de múltipla escolha podem, eventualmente, ser utilizadas na área de Ciências Humanas, desde que o conteúdo permita e que as questões sejam elaboradas de forma a valorizar o raciocínio e a capacidade de análise do aluno. A avaliação oral pode ocorrer por meio de questões individuais, de questões a pequenos grupos, de entrevistas, ou, ainda, por meio de seminários, debates ou apresentação de trabalhos de pesquisa. No desenvolvimento da oralidade, o aluno ad- quire mais confiança em si mesmo, além de aprender a respeitar a opinião dos outros e a compreender as diferenças. Da mesma forma que nos demais instrumentos de avaliação, nessa modalidade os critérios de capacidade de argumentação, clareza de ideias, capacidade de articulação e contextualização temática, e integração no grupo (quando for o caso), precisam ser previamente esclarecidos aos alunos e os resultados devidamente registrados. Comente os limites e possibilidades para a realização de uma avaliação processual, qualitativa e contínua que busque a superação dialética dos problemas de aprendizagem. Avaliação – processo dialético de superação 191 BRASIL. Ministério da Educação. Secretaria de Educação Média e Tecnológica. Parâmetros Curri- culares Nacionais: Ensino Médio. Brasília, 1999. Avaliação – processo dialético de superação 192 Natureza em transformação II Possibilidade de construção e representação das Ciências O conhecimento matemático O ensino da Matemática está subordinado aos objetivos maiores da educação, conceituado como uma das estratégias das sociedades para sua reprodução e reconstrução. D Ámbrósio T oda reflexão sobre metodologia de ensino deve ter como princípio a clareza de objetivos. Entre os objetivos educacionais, a formação do cidadão é sempre lembrada e, muitas vezes, resposta pronta à indagação sobre nossa pretensão enquanto educadores. Alcançar esse objetivo, no entanto, não é algo simples e ime- diato. No espaço escolar, é um projeto de processo longo, iniciado no Ensino Fun- damental e que acompanha o educando por todo o Ensino Médio. Formar o cidadão requer prepará-lo para o exercício da cidadania, para o exercício de direitos e deveres num Estado democrático. Lellis e Imenes citam a informação, a educação e a autonomia como condições para que o exercício da cidadania se efetive. Fazem considerações sobre a impossibi- lidade de “escolha ou decisão”, sem informação e que a educação deve garantir a ne- cessária interpretação da informação para uma decisão autônoma. Sobre as relações entre o ensino da Matemática e a cidadania os autores escrevem: Nas sociedades modernas, uma boa parte dainformação é veiculada em linguagem matemá- tica. Vivemos num mundo de taxas percentuais, coeficientes multiplicativos, diagramas, grá- ficos e verdades estatísticas. Para decodificar esse tipo de informação, precisa-se de instrução matemática. (LELLIS; IMENES, 1994) O domínio da linguagem matemática é competência a ser desenvolvida no Ensino Médio. A linguagem matemática é utilizada pelo raciocínio para decodificar informações, para compreender e elaborar ideias. É necessário que o aluno aprenda a expressar-se verbalmente e por escrito nessa linguagem, transformando dados em gráficos, tabelas, diagramas, equações, fórmulas, conceitos ou demonstrações matemáticas entre outros. Deve compreender o caráter simbólico dessa linguagem e valer-se dela como recurso na Física, na Biologia, nas Artes, na Sociologia, enfim, nas diversas áreas do conhe- cimento e, do mesmo modo em seu cotidiano, inclusive em sua atividade profissional. Entender que enquanto sistema de códigos e regras, a Matemática é um bem cultural que permite comunicação, interpretação, inserção e transformação da realidade. Natureza em transformação II 194 Imagem 68 – Diagrama mostrando porcentagem de reclamações feitas ao Procon de SP. MÉDIAS HISTÓRICAS Gráfico da média de gols e aproveitamento de passes nos jogos do campeonato paulista, nos últimos seis anos. Desenvolver a forma dedutiva do pensar é competência da Matemática no Ensino Médio. Uma segunda relação, frequentemente imputada ao ensino da Matemática, é a relação entre o desenvolvimento do raciocínio e por consequência o da autonomia. A dedução é a maior forma de expressão do pensamento matemático. A Matemática é milenar e acompanha o homem antes mesmo da escrita. Sur- giu da necessidade cotidiana de contar rebanhos, de medir tecidos, de dividir terras, de marcar ganhos e perdas, de possibilitar o armazenamento de grãos. Com o tempo, de concreta passou à abstrata, de prática à teórica, de representação da realidade a um fantasioso “monstro com sete cabeças”, responsável pelo insucesso de inúmeros educandos. Deixou de estar presente em todas as ações humanas para ser domínio de uns poucos iluminados, entre os quais os professores de Matemática. Na escola pas- sou a desfrutar de supremacia em relação às outras disciplinas sendo-lhe destinada, inclusive, maior número de aulas. Natureza em transformação II 195 Imagem 69 – Clarineta e Garrafa de Rum sobre um Console de Lareira – Georges Braque. Embora tenha contribuído muito e de maneira funda- mental para o desenvolvimento da música, possibilitado pela compreensão de fenômenos sonoros e a estruturação da teo- ria musical; da pintura, com o entendimento da perspectiva; da escultura, por meio do conhecimento das relações de pro- porção ou ainda da arquitetura, cujas obras, sejam igrejas, edifícios ou pontes, impressionam-nos a cada dia, a Matemá- tica distanciou-se do sensorial e tornou-se uma atividade do pensamento. O Cubismo, método desenvolvido por Braque e Picasso, no início do século XX, trabalha com a planificação dos ob- jetos reais, no espaço bidimensional da tela, representando os objetos sob vários ângulos ao mesmo tempo. Nesta obra de Braque, letras e linhas, triângulos e retângulos, espalham-se pela tela em ordem aparentemente casual, no que parece ser uma composição abstrata. Na verdade, o quadro foi pensado minuciosamente. É uma pintura de uma lareira sobre a qual estão colocadas uma clarineta e uma garrafa de rum. Uma página solta de partitura musical está pregada na parede. Além de criar a ilusão de espaço real na tela plana com uso de perspectiva, luz e sombra, Braque sugeriu tridimensionalidade e profundidade mostrando todos os lados dos objetos ao mesmo tempo. (O LIVRO DA ARTE, 1999). A respeito dessa ciência, da qual dizem, de verdades absolutas e eternas, Marilena Chauí coloca: A valorização da Matemática decorre de dois aspectos que a caracterizam: 1. A idealidade pura dos objetos, que não se confundem com as coisas percebidas subjetivamente por nós; os objetos matemáticos são universais e necessários; 2. A precisão e o rigor dos princípios e demonstrações matemáticos, que seguem regras universais e necessárias, de tal modo que a demonstração de um teorema seja a mesma em qualquer época e lugar e a solução de um problema se faça pelos mesmos procedimentos em toda época e lugar. A universalidade e a necessidade dos objetos e instrumentos teóricos e matemáticos deram à ciência matemática um valor de conhecimento excepcional, fazendo com que se tornasse o modelo principal de todos os conhecimentos científicos, no Ocidente; enfim, a ciência exemplar e perfeita. Os objetos matemáticos são números e relações, figuras, volumes e proporções. Quantidade, espaço, relações e proporções definem o campo da investigação matemática, cujos instrumentos são axiomas, postulados, definições, demonstrações e operações... Um axioma é um princípio cuja verdade é indubitável, necessária e evidente por si mesma, não precisando de demonstração e servindo de fundamento às demonstrações... O axioma é um princípio regulador do raciocínio matemático e, por ser universal e evidente, é a priori. Um postulado é um princípio cuja evidência depende ser aceita por todos os que realizam uma demonstração matemática. É uma proposição necessária para o encadeamento de demonstrações, embora ela mesma não possa ser demonstrada, mas aceita como verdadeira... Os postulados são convenções básicas, aceitas por todos os matemáticos... Demonstrações e operações são procedimentos submetidos a um conjunto de regras que garantem a verdade e a necessidade do que está sendo demonstrado, ou do resultado do cálculo realizado... Natureza em transformação II 196 A Matemática é por excelência, a ciência hipotética-dedutiva, porque suas demonstrações e cálculos se apoiam sobre um sistema de axiomas e postulados, a partir dos quais se constrói a dedução coerente ou o resultado necessário do cálculo. (CHAUÍ, 1997, p. 263) Equivocadamente, o ensino tradicional transformou a lógica da Matemática numa sequência de instruções, num exercício repetitivo de regras, no uso da memo- rização, não como recurso, mas como condição para a ação do fazer matemático. A autonomia de pensamento que essa ciência poderia (e pode) possibilitar passou a promover dependência, obediência às regras e automatismo. Matemática e metodologia através do tempo Cabe aqui uma reflexão sobre a natureza e estrutura do conhecimento matemá- tico que é aceito por muitos como perfeito, como modelo da racionalidade humana que enquanto “linguagem simbólica” não admite erros ou contradições. Esse caráter objetivo da Matemática é baseado na crença, de senso comum, na qual as “estruturas matemáticas” e os “sistemas lógicos” são exatos, o que fez do conhecimento cien- tífico voz única para explicar o mundo e, atualmente, sustenta o poder ilimitado da ciência. Acompanhando o desenvolvimento do conhecimento científico, mais estrita- mente o matemático, através do tempo, vemos que os povos pré-helênicos a conce- beram como prática empírica, ou seja, decorrente da ação humana concreta sobre a realidade vivida. Como um constructo primitivo, os sistemas de numeração iniciais tinham origem na conta- gem simples e direta de objetos, não havendo, então, necessidade de uma ideia de números mais complexa do que os números naturais maiores que zero. Esses conceitos possuíam uma articulação interna perfeita, de tal sorte que o saber nesse pe- ríodo é empírico e, ao mesmo tempo, organizado e organizador das sociedades de então, pois, organizado pelo homem pelo prisma empírico da prática diária, dialeticamente é organizador da sociedade na medida em que está a serviço da organização emergente das civilizações primitivas. (SOUZA, 1999, p. 139) A Matemática proposta por Euclides, baseada “no uso do sistema axiomático, no qual os teoremas são inferidos a partir de determinados axiomas e postulados” muda a raiz empírica do conhecimentomatemático no qual as construções mentais davam-se a partir da ação direta do vivido e passam a acontecer por “puro movi- mento intelectual”, portanto, de forma abstrata. “A Matemática passa a ter existência independente da realidade sensorial, isto é, é ato de pura abstração, remotamente reflexiva em relação à realidade circundante.” (SOUZA, 1999, p. 140) Essa concepção de “racionalismo dogmático”, puramente racional, permane- ceu até o final do século XV, quando durante o Renascimento foi substituída pelo “racionalismo científico”, na observação dos fatos e busca das relações matemáticas que explicassem os fenômenos. Resgatou-se com o método científico uma prática de ordem empírica, porém, diferente da pré-helênica. A concepção do mundo e do homem muda radicalmente e, sustentada pela nova concepção, a burguesia põe fim ao antigo sistema feudal e o capitalismo emerge. “A concepção científica do mundo tem, a partir da revolução científica, perspec- Natureza em transformação II 197 tiva racionalista e metódica. A razão é a senhora do mundo. O homem, seus mitos e emoções são substituídos pela explicação cientifica dos fatos.”(SOUZA, 1999, p. 139) Certamente, diferentes formas de concepção de ciência geraram diferentes formas de transmiti-las. Hoje, o que habitualmente vemos nas escolas são metodologias no en- sino da Matemática que enfatizam o saber abstrato e desconsideram o fazer empírico. As representações matemáticas, etapa final do fazer científico, são apresentadas aos alu- nos sem que as relações presentes sejam percebidas ou estabelecidas, como conteúdos prontos. Daí, surgem a memorização e os exercícios repetitivos, como estratégias para a aquisição do conhecimento matemático que, no muito, permitem a resolução de proble- mas modelos e raramente possibilitam a resolução de problemas ligados ao cotidiano ou prática profissional dos indivíduos. Nas últimas décadas, novas linhas metodológicas têm surgido. Linhas que le- vam em consideração as diferenças individuais e dos diversos grupos sociais, sujeitos da educação. Propõem que o ensino da Matemática tenha como base metodológica a análise e interpretação de situações reais, de ordens social, econômica, política, am- biental, entre outras; que tenham significado efetivo no cotidiano, na realidade vivida pelos indivíduos ou grupos sociais. De 95 a 98, proporção de pobres subiu Renda no campo cai 5,8% em 4 anos O trabalhador do campo ficou 5,8% mais po- bre no primeiro mandato do presidente Fernando Henrique Cardoso. De 95 a 98, o Sul e o Nordeste, regiões onde a renda média caiu, concentraram 56% das inva- sões de terra, e houve um aumento de 2,1% na proporção de pobres na agricultura. Em relação a 81, a renda média dos trabalha- dores rurais em 98 cresceu apenas 0,7%, com base em estudo de pesquisadora premiada da Universi- dade Metodista de Piracicaba. O levantamento mostra que o Sudeste (ex- cluído o estado de São Paulo) teve recuo ainda maior (21,2%) na renda do trabalhador durante a primeira gestão FHC. O empobrecimento no campo é uma das alegações do MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra) ao cobrar alterações na atual política fundiária. A concentração de renda agrícola, entretan- to, caiu de 95 a 98: foi de 0,559 a 0,542 (quanto mais próxima de 1, maior a concentração). (Texto extraído da Folha de São Paulo, 20/05/2000) (Modelo de fatura de consumo de fornecimento de água – Paraná). O educando, ao receber em sua casa uma conta de água ou fazer uma leitura de jornal, deve poder interpretá-las tornando significati- va a informação veiculada. Natureza em transformação II 198 Esse retorno à prática social e ao mundo empírico aponta a possibilidade de deslocar o centro de um deus racional – cartesiano e metafísico – para o homem em toda corporeidade possí- vel. Com Descartes e a Metafísica, a ciência, essa entidade divina, baseada na racionalidade científica, adentrou o mundo e transformou o homem em estrangeiro a este. Discursos como a “ciência é objetiva” foram expulsando a subjetividade humana da racionalidade científica. Dessa forma, a subjetividade, sem outra saída, adentrou o “reino do irracional”. O racionalis- mo representa, na cultura ocidental, o desencantamento do mundo, pois retira deste a possibi- lidade de valorização dos dados culturais e humanos, advindos da prática social, na Ciência. Assim, o reencantamento do mundo confunde-se com a procura de valorizar o humano, o imprevisível, o cultural. Em resumo, a busca de valorizar a psique, o sujeito epistêmico de Foucault, como o contraponto fundamental do logos da Epistemologia Genética piagetiana. Ou utilizando uma metáfora comum: buscar a razão de saber no mundo em contrapartida ao mundo de saber da razão. (SOUZA, 1999, p. 143) Geraldo Ávila (1995) também nos lembra que a Matemática está ligada à intui- ção e à imaginação. A intuição, “faculdade mental que nos permite obter o conheci- mento de maneira direta, sem a interveniência do raciocínio” , é anterior ao raciocí- nio nas suas diversas modalidades (analogia, indução etc.). Alerta-nos para [...] o quanto de riqueza existe no pensamento matemático para além de seus aspectos lógicos- -dedutivos. Imaginação e intuição são instrumentos tão importantes na invenção matemática como o são para o pintor que concebe um quadro, para o escritor que planeja uma obra literá- ria ou para o músico em suas criações artísticas. (ÁVILA, 1995, p. 4) Concepções presentes nos PCN Cientes das grandes dificuldades vivenciadas por alunos e professores, da ne- cessidade urgente de superação das mesmas e do papel social que lhe cabe, o Minis- tério de Educação reformulou o ensino da Matemática estabelecendo um conjunto de parâmetros para sua organização no qual [...] pretende-se contemplar a necessidade da sua adequação para o desenvolvimento e promo- ção de alunos, com diferentes motivações, interesses e capacidades, criando condições para sua inserção num mundo em mudança e contribuindo para desenvolver capacidades que deles serão exigidas em sua vida social e profissional. (PCN, 1999, p. 81) Nessa perspectiva, os PCN abordam três concepções que devem ser analisadas e compreendidas a fim de serem consideradas quando da definição do encaminhamen- to metodológico dado à disciplina. São elas: o valor formativo da Matemática como estruturadora do pensamento e desenvolvimento do raciocínio dedutivo; o seu papel instrumental enquanto “sistema de códigos e regras que a tornam uma linguagem de comunicação de ideias e permite modelar a realidade e interpretá-la” (PCN, 1999, p. 82-83) e da qual valem-se outras ciências para construir seu conhecimento. Os Números e a Álgebra devem, assim, ser compreendidos como um sistema de códi- gos; a Geometria como forma de leitura e interpretação de espaços; a Estatística e Probabilidade como compreensão de fenômenos em universos finitos, entre outras subáreas, de modo que possam ser aplicados em diferentes áreas do conhecimento e na atividade profissional possibilitando o trabalho com aspectos quantitativos da rea- lidade. Por fim, a Matemática Ciência com suas características próprias cujas “defini- ções, demonstrações e encadeamentos conceituais e lógicos têm função de construir novos conceitos e estruturas a partir de outras e que servem para validar intuições e dar sentido às técnicas aplicadas”. (PCN, 1999, p. 82) Natureza em transformação II 199 A Resolução de Problemas é apontada nos PCN como possibilidade metodoló- gica para o trabalho em sala de aula com o conhecimento matemático. Investigado sistematicamente por Geordes Polya, na década de 1940, foi a par- tir de 1980 que a resolução de problemas passou a receber maior atenção. Apesar de ter estado sempre presente nos currículos escolares, com Polya passou-se à preocu- pação com o processo da resolução dos problemas e não com a busca de um produto final correto. A prática educacional atual, na grande maioria das escolas, desconsidera os avanços napesquisa sobre a Educação Matemática e, em sala de aula, os educandos convivem com práticas cuja concepção datam do início do século XX, nas quais en- fatizava-se a repetição e na qual a memorização tinha papel fundamental; ou ainda, apesar de entender que seus alunos precisam compreender o conhecimento matemá- tico e não apenas repeti-lo, o professor dirige o trabalho apresentando os conteúdos sem que o aluno participe de sua construção. Tendem, também, a reproduzir o modo pelo qual se deu sua formação e, muitos, formados no auge da Matemática Moderna, enfatizam excessivamente a linguagem simbólica, as propriedades e abstrações da Matemática e, embora seus alunos dominem a forma, não dominam seu significado. Hoje, a Resolução de Problemas não pode ser confundida com o uso de deter- minadas técnicas para treinar a solução de problemas. Enquanto metodologia deve preocupar-se mais com o processo do que com a solução do problema. O problema é olhado como elemento que pode disparar um processo de construção do co- nhecimento. Sob esse enfoque, problemas são propostos ou formulados de modo a contribuir para a formação dos conceitos antes mesmo de sua apresentação em linguagem matemática formal. O foco está na ação por parte do aluno. (ONICHIC, 1999, p. 207) Onichic (1999) sugere que o trabalho com a Resolução de Problemas inicie- -se com a formação de grupos para a realização da atividade, entendendo a educa- ção como um processo de procura conjunta de soluções. Ao receber do professor o problema, os alunos passam a discutir a forma de resolvê-lo. Aqui o professor tem papel fundamental, pois é ele que instiga o pensar, acompanha raciocínios e explora as possibilidades de resolução. Terminada a busca de caminhos para a resolução do problema nos grupos, os diferentes processos são apresentados para o todo da sala, e os alunos são levados a apresentarem argumentações a favor do seu processo de solução do problema. Da análise cuidadosa dos resultados busca-se o “consenso sobre o resultado pretendido” e, só então, faz-se a formalização do conhecimento matemático, em conceitos, propriedades e demonstrações. A síntese é a última etapa do processo. Em nossa visão, a compreensão de Matemática, por parte dos alunos, envolve a ideia de que entender é essencialmente relacionar. Essa posição baseia-se na observação de que a compre- ensão aumenta quando: o aluno é capaz de relacionar uma determinada ideia matemática a um grande número ou uma variedade de contextos; o aluno consegue relacionar um dado pro- blema a um grande número de ideias matemáticas implícitas nele. O aluno consegue construir relações entre as várias ideias matemáticas contidas no problema. As indicações de que um estudante entende, interpreta mal ou não entende ideias matemáticas específicas surgem, com frequência, quando ele resolve um problema. Acreditamos que, ao invés de fazer da resolução de problemas o foco do ensino da Matemática, professores, autores de livros, promotores de currículos e avaliadores de aprendizagem deveriam fazer da compreensão seu ponto central e objetivo. Fazendo isso, eles mudariam a visão estreita de que a Matemática é apenas uma ferramenta para resolver problemas, para uma visão mais ampla de que a Matemática é um Natureza em transformação II 200 caminho de pensar e um organizador de experiências. [...] É importante ter a visão de que compreender deve ser o principal objetivo do ensino, apoiados na crença de que o aprendi- zado da Matemática, pelos alunos, é mais forte quando é autogerado do que quando lhes é imposto por um professor ou por um livro-texto. (ONICHIC, 1999, p. 208) Defendida pelos PCN, a Resolução de Problemas esbarra na qualificação dos profissionais da área. Não raro, o professor percebe que precisa modificar sua forma de “como ensinar” Matemática, porém, não sabe como fazê-lo. A capacitação em serviço deve ser oportunizada pelas instituições mantenedoras, cujas políticas educacionais desejem mudar efetivamente o quadro atual, considerando que a Matemática é res- ponsável por boa parte das retenções dos alunos sendo que muitos aprovados não têm domínio do real significado do conhecimento matemático, compreendendo que ao pro- fessor cabe grande parte do sucesso do aprendizado. Um professor melhor qualificado e atualizado contribuirá para o avanço da educação brasileira. É necessário que os professores, equipes pedagógicas e estudiosos, busquem ope- racionalizar em sala a resolução de problemas, enfocando não só aspectos de natureza cognitiva, mas também os de natureza social, cultural ou política e que as boas expe- riências sejam apresentadas e divulgadas como alternativas nesse processo. O jogo como estratégia possível A universalização e obrigatoriedade escolar são recentes e foi com a Lei de Di- retrizes e Bases 9.394/96 que a Educação Infantil passou a ser considerada parte inte- grante da formação básica dos brasileiros. Instituída em função da educação de jovens e adultos, a escola excluiu de seu espaço o lúdico, no período histórico em que a forma- ção escolar identificava rigor e disciplina com supressão de manifestações das emoções de alegria, prazer e encantamento. Formados a partir das práticas pedagógicas tradicio- nais, os professores as reproduzem e, não raro, são resistentes a inovações. O jogo, enquanto possibilidade lúdica, pode ser uma eficiente estratégia de mo- tivação para a aprendizagem. Ele é assim definido por Huizinga (1980, p. 243): [...] uma atividade ou ocupação, exercida dentro de determinados limites de tempo e espaço, segundo regras livremente consentidas, mas absolutamente obrigatórias, dotada de um senti- mento de tensão e alegria e de uma consciência de ser diferente da vida cotidiana. A ciência e o jogo, aparentemente contraditórios, pois aquela baseia-se na objetividade e este no aleatório, são ambos motivados pela imaginação, representam o real e seus significados são determinados pelos diferentes grupos sociais ao longo do tempo. Utilizar o jogo no espaço escolar como estratégia dinamizadora das aulas e motivadora dos alunos para uma aprendizagem mais significativa requer, no entanto, mudanças por parte dos professores. Passa, primeiramente, pela necessidade de admitir que “métodos unicamente expositivos, que reduzem os papéis do professor e do aluno a meros transmissores e receptadores de conteúdos” precisam ser superados pela percepção de que a natureza do jogo e da ciência passam pela observação de um fato que instiga a imaginação e pela necessidade de resolver um problema a partir da experimentação, com regras preestabelecidas e ainda em lidar com o dinamismo que esse tipo de recurso acarreta. Natureza em transformação II 201 O resultado será o aprendizado do conhecimento matemático e o desenvolvi- mento de estruturas cognitivas, de forma ativa, participativa e vinculada ao contexto social e cultural no qual o aluno está inserido. Essa capacidade que o jogo tem para reunir as antíteses, representando um elemento pelo con- trário, permite que nele se associem a regra e o arbitrário, o secreto e o partilhado, o incerto e o codificado, em ambivalência, já que, como lembrou Wasserman (1982), na linguagem do jogo, a contradição não existe. (EMERIQUE, 1999, p. 186) 1. Considerando o texto, faça uma reflexão sobre os caracteres objetivo e subjetivo da Ciência Matemática. 2. De que forma o ensino da Matemática, em nível de Ensino Médio, pode contribuir para a formação de verdadeiros cidadãos, capazes de inserção, de compreensão e de transformação da sociedade brasileira? 3. Baseando-se no texto, faça considerações quanto à Resolução de Problemas como metodologia proposta nos PCN, suas dificuldades de operacionalização e como superá-las. Natureza em transformação II 202 ÁVILA, Geraldo. Objetivos do ensino da matemática. Revista do Professor de Matemática, Socie- dade Brasileira de Matemática, n. 27, 1995. BRASIL. Ministério da Educação. Secretaria de Educação Média e Tecnológica.