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0 1 SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO ......................................................................................................... 2 2 AS ORIGENS DAS NEUROCIÊNCIAS .................................................................... 3 2.1 Definindo as neurociências .................................................................................... 9 2.2 Neurociências e suas aplicações ........................................................................ 11 3 AS FUNÇÕES COGNITIVAS ................................................................................. 15 3.1 Aspectos psicológicos do comportamento humano ............................................. 21 3.2 Funções neurobiológicas e psicológicas do comportamento humano ................. 27 4 FELICIDADE E BEM-ESTAR NA NEUROCIÊNCIA .............................................. 31 4.1 A felicidade por dentro do cérebro ....................................................................... 34 4.2 Neurociência e felicidade: descobertas e possibilidades ..................................... 38 5 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ...................................................................... 41 2 1 INTRODUÇÃO O Grupo Educacional FAVENI, esclarece que o material virtual é semelhante ao da sala de aula presencial. Em uma sala de aula, é raro – quase improvável - um aluno se levantar, interromper a exposição, dirigir-se ao professor e fazer uma pergunta, para que seja esclarecida uma dúvida sobre o tema tratado. O comum é que esse aluno faça a pergunta em voz alta para todos ouvirem e todos ouvirão a resposta. No espaço virtual, é a mesma coisa. Não hesite em perguntar, as perguntas poderão ser direcionadas ao protocolo de atendimento que serão respondidas em tempo hábil. Os cursos à distância exigem do aluno tempo e organização. No caso da nossa disciplina é preciso ter um horário destinado à leitura do texto base e à execução das avaliações propostas. A vantagem é que poderá reservar o dia da semana e a hora que lhe convier para isso. A organização é o quesito indispensável, porque há uma sequência a ser seguida e prazos definidos para as atividades. Bons estudos! 3 2 AS ORIGENS DAS NEUROCIÊNCIAS Novas descobertas sobre o sistema nervoso humano emocionam a maioria das pessoas, tanto pelos avanços na saúde quanto pela necessidade de melhorias em muitas outras áreas que se beneficiam desse conhecimento. Atualmente, quando pensamos em saúde e sistema nervoso, vivemos muitas situações problemáticas, como demências, sequelas de doenças ou acidentes de todo tipo. No entanto, a aplicação da neurociência vai além da medicina; suas descobertas são de grande importância para diversas áreas, como as ciências sociais. Neste material você verá como podemos definir a neurociência. Iniciaremos nosso estudo com uma breve visão geral. O que os cientistas pensaram sobre o sistema nervoso ao longo dos anos? Quem são os neurocientistas de hoje e como eles lidam com isso? Você provavelmente já sabe que o sistema nervoso, o cérebro, a medula espinal e os nervos são vitais para o corpo e permitem que você sinta, se mova e pense. Como surgiu essa ideia? Compreenderá sobre o desenvolvimento de estudos neurocientíficos e como o cérebro e suas estruturas funcionam. Por fim, aprenderá como aplicar as descobertas da neurociência em diferentes áreas. Os humanos sempre foram fascinados pelo que os tornava humanos, ou seja, o que os tornava diferentes dos animais. Desde que, houve uma revolução cognitiva (HARARI, 2011) e usamos linguagens estruturadas como meio de simbolizar o mundo, nos perguntamos sobre o significado das coisas e de onde vêm os pensamentos e sentimentos. Não surpreende, portanto, que desde a antiguidade os estudos neste campo tenham tentado fornecer essas respostas. Várias disciplinas estudaram o encéfalo, incluindo filosofia e medicina, e mais tarde biologia e psicologia, entre outras. Para entender a neurociência, devemos primeiro ver como é construído nosso sistema nervoso central (SNC). (Figura 1). 4 FIGURA 1 – Estruturas do SNC Fonte: Adaptada de Kandell et al. (2014). O que chamamos muitas vezes de cérebro quando nos referimos ao que está em nossa cabeça é apenas parte de um todo chamado encéfalo. O encéfalo é composto de cerebelo, ponte, bulbo, cerca de estruturas antigas acima da ponte, o cérebro e a medula. A medula sempre participa no sistema que envia e recebe sinais entre o encéfalo e nervos do corpo (KREBS; WEINBERG; AKESSON, 2013). O cérebro é uma estrutura que participa de processos cognitivos superiores, como pensamento e linguagem. As demais estruturas do SNC estão muito mais relacionadas à regulação dos movimentos humanos e dos sinais vitais. Agora que observamos a divisão básica do SNC, continuaremos a história da neurociência. Há registros de estudos realizados no antigo Egito. Os egípcios realizavam o procedimento de trepanação quando uma pessoa tinha problemas cerebrais. A trepanação era a técnica de realizar buracos no crânio para fins de cura. Também neste período, começou a crença de que o coração, e não o encéfalo, era o responsável pelas emoções e memórias (BEAR; CONNORS; PARADISO, 2017). (Figura 1.1). FIGURA 1.1 – Evidência de cirurgia cerebral pré-histórica 5 Fonte: Alt et al. (1997). Este crânio, de um homem com mais de 7.000 anos, foi aberto para cirurgia enquanto ele ainda estava vivo. As setas indicam dois locais de trepanação. É plausível que os egípcios e outros povos não entendessem a importância do encéfalo e dessem prioridade ao coração. Finalmente, após a morte, o encéfalo se desintegra rapidamente e assume uma consistência gelatinosa, tornando o impossível de estudar sem materiais como o formaldeído. Essa ideia sobre o coração foi sustentada na Grécia antiga quando o filósofo Aristóteles descreveu que a função do encéfalo era resfriar o sangue. Com base nos estudos de Hipócrates, considerado o pai da medicina ocidental, definiu-se que o encéfalo seria um órgão de sensação e inteligência, ampliando a noção de suas funções. Os estudos neurocientíficos, na verdade, partem dessa ideia de uma mente no cérebro, pois consideram a importância do encéfalo (TIEPPO, 2019). Em Roma, o médico Claudio Galeno, no século II, observou o encéfalo, notando que havia uma parte mais mole (o cérebro) e uma parte mais firme (o cerebelo). Galeno postulou, portanto, que o cérebro seria a sede das sensações porque é mais macio, enquanto o cerebelo seria a sede dos músculos, sendo mais rígidos, como o próprio cerebelo. 6 Ele também observou que os cérebros tinham espaços, conhecidos hoje como ventrículos, e fluidos correndo por eles, que ele chamou de humores. Assim, para o médico, os humores (quatro tipos de fluidos vitais) eram conduzidos ao corpo pelos nervos, que ele pensava serem como fios ocos por onde passava o líquido. No período do Renascimento, da metade do século XIV até o fim do século XVI, aconteceu a maior descrição do encéfalo feita até então, pelo médico belga Andreas Vesalius. Entretanto, ainda havia a crença dos ventrículos como centros dos humores. Nessa época, o encéfalo foi comparado a uma máquina, bombeando os fluidos para fora. O filósofo do século XVII René Descartes descreveu que, embora a teoria da mecânica dos fluidos que acreditava neste bombeamento de humores fosse até certo ponto correta, ela não poderia explicar comportamentos que são apenas humanos. A partir desta conclusão, Descartes passa a descrever que então haveria uma mente, algo fora do encéfalo, que daria origem a comportamentos exclusivamente humanos. Segundo ele, a mente seria uma essência espiritual que realizava uma conexão com o encéfalo por meio da glândula pineal, umapequena estrutura hormonal envolvida na regulação do sono e da reprodução. (BEAR; CONNORS; PARADISO, 2017; KREBS; WEINBERG; AKESSON, 2013). Depois do século XVII, os estudiosos rompem com a teoria dos fluidos e começam a identificar que o cérebro é formado por uma substância branca e outra cinza (Figura 1.2). Conforme os pesquisadores da época, a substância branca servia como condutora de informações para a massa cinzenta. FIGURA 1.2 – As substâncias branca e cinzenta podem ser vistas em corte coronal. Fonte: Adaptada de [Arteria...] (2008). 7 Na Figura 1.2, pode-se observar que há uma leve coloração diferenciada: entre as partes mais internas e externas do cérebro. A substância cinzenta a mais externa, é formada pelos corpos celulares dos neurônios, enquanto a substância branca é formada pelos axônios, ou filamentos de neurônios, dentre outras células que auxiliam o SNC. No final do século XVIII, o SNC já havia sido descrito em detalhes e era dividido em encéfalo e o sistema nervoso periférico (SNP), composto pela medula e nervos. Além disso, a partir deste século o cérebro foi dividido em lobos (Figura 1.3) e giros que foram estudados. Giros são as voltas e mais voltas que o cérebro deve encaixar na caixa craniana. Os lobos têm funções distintas sendo divididos em quatro com o nome do osso mais próximo. FIGURA 1.3 – Lobos cerebrais. Fonte: Martin (2013). Os lobos têm funções diferentes, mas se comunicam entre si. Eles são encontrados em ambos os hemisférios. Embora a maioria das funções cognitivas sejam refletidas, ou seja, ocorram em ambos os hemisférios, algumas são estabelecidas principalmente em um deles, como a linguagem, que ocorre quase exclusivamente no hemisfério esquerdo. Veja abaixo algumas funções de cada um dos lobos (KANDELL et al., 2014; MARTIN, 2013; KREBS; WEINBERG; AKESSON, 2013). Lobo Frontal: suas diversas funções incluem comportamento, cognição, pensamento, raciocínio lógico, planejamento, entre outras. Lobos parietais: funções como dor, toque e posição do corpo e suas extremidades. Lobo occipital: visão, forma, cor, reconhecimento facial, etc. 8 Lobo temporal: linguagem, audição, memória, emoções, etc. Lobo insular: equilíbrio, dor, paladar, entre outras funções. Como pode ser visto, há muitos séculos existe uma conexão entre o encéfalo e o espírito ou alma. No entanto, à medida que as pesquisas avançavam e novas visões do SNC foram desenvolvidas, os cientistas começaram a entender o órgão mais complexo do corpo humano, exceto por teorias que o vinculam a algo intangível e tão completo quanto o conceito de mente. Kandell et al. (2014) afirmam que já avançamos muito. Esse avanço, em especial, ocorreu a partir do século XIX. Segundo Bear, Connors e Paradiso (2017), os 100 anos do século XIX representaram um avanço gigantesco em comparação a todos os séculos anteriores, moldando as neurociências atuais. Uma das grandes descobertas foi a existência de potenciais elétricos gerados no sistema nervoso que percorrem os nervos provocando movimentos musculares, pondo fim à teoria dos fluidos e humores. Foi também no século XIX que cientistas entenderam a localização de algumas funções a partir de observações e experimentos com animais. Flourens descobriu as funções motoras do cerebelo, enquanto Broca identificou a região responsável pela expressão da linguagem, ou seja, pela produção da fala. Outros estudiosos ainda descobriram diversas áreas envolvidas em funções motoras e na visão. Portanto, a partir dessas pesquisas iniciais, hoje sabemos que há diversas áreas especializadas em funções distintas. Atualmente, estamos avançando a passos largos na tentativa de decodificar o encéfalo, e isso só é possível com o desenvolvimento de tecnologias que permitem investigações cada vez mais precisas e detalhadas. No entanto, além dos equipamentos, é necessário investimento em pesquisa tanto para a fabricação quanto para a produção de conhecimento que viabilize seu uso. Entretanto, é importante que existam estudos e experimentos diferentes que nos esclarecem mais sobre o sistema nervoso, sua formação, desenvolvimento, funcionamento e capacidade regenerativa. É muito importante lembrar dos cientistas que tornaram cada vez mais possível o progresso na neurociência. Entre eles podemos citar o neurocientista brasileiro naturalizado Ivan Izquierdo, falecido em 2021. Sua contribuição para o estudo da base biológica da memória com o estudo das vias hormonais no cérebro tem sido extremamente importante em muitas áreas como a aprendizagem. 9 2.1 Definindo as neurociências Quando pensamos em neurociência, às vezes nos referimos ao campo no singular. No entanto, como vimos, esse campo de estudo é formado por disciplinas diferentes que tentam explicar o funcionamento do nosso sistema nervoso. Não podemos, portanto, falar de uma única neurociência, pois há ciências diferentes que se interessam pelo “neuro”. O Quadro 1 mostra a distribuição das diferentes neurociências. QUADRO 1 – Áreas das neurociências. Fonte: Adaptado de Lent (2001). Como você pode observar no Quadro 1, existem muitas disciplinas que se complementam no estudo do sistema nervoso, pois é impossível uma disciplina apresentar tudo. Veja que é necessário passar pelo estudo das moléculas, as menores partículas, para entender as células, o conjunto de células (o sistema), o 10 comportamento e a cognição. Todos esses estudos caminham juntos para entender como os humanos funcionam neurologicamente. Profissionais que estudam todos esses campos podem ser chamados de neurocientistas. Eles conduzirão seus estudos a partir de um dos pontos de vista; descritos no Quadro 1. Assim, neurocientistas são aqueles que realizam a ciência; relacionada às descobertas nesse campo, trabalhando, em sua maioria em universidades, laboratórios e centros de pesquisa. Eles tentam decifrar como o encéfalo funciona e como ajudá-lo em suas dificuldades (LENT, 2001). Definir neurociência, portanto, significa entender que diferentes campos tentam entender como o sistema nervoso funciona. De acordo com Kandell et al. (2014, p. xv): O objetivo das neurociências é a compreensão de como o fluxo de sinais elétricos através de circuitos neurais origina a mente — como percebemos, agimos, pensamos, aprendemos e lembramos. Embora ainda estejamos muitas décadas distantes de alcançar tal nível de compreensão, os neurocientistas têm feito progressos significativos na obtenção de informações acerca dos mecanismos subjacentes ao comportamento, os sinais de saída que podem ser observados em relação ao sistema nervoso de seres humanos e outros organismos. Estamos também começando a compreender os transtornos do comportamento associados a doenças neurológicas e psiquiátricas. Portanto, conhecer como somos e quem somos requer uma visão de como nossos neurônios se formam e se comunicam, criando sinais que moldam pensamentos, ações e emoções. Muitos profissionais estão envolvidos nesse contexto porque ainda estamos nos estágios iniciais de compreensão dos transtornos e comportamentos associados às disfunções encefálicas. Dessa forma, é possível identificar duas categorias para classificar os profissionais engajados no estudo do sistema nervoso. Uma é a área de pesquisa onde os pesquisadores realizam experimentos para entender como tudo funciona. A outra categoria é a de saúde, educação, engenharias, ciências sociais e humanas que aplicam o conhecimento adquirido pelos cientistas. Tudo o que se descobre sobre o cérebro exerce grande fascínio sobre o público. No entanto, quando o consenso usa alguns desses achados, muitas vezes o faz erradamente, criando alguns mitos que a sociedade acaba perpetuando. Um desses mitos roda há um bom tempo entre nós: o de que utilizamos apenas 10% da capacidade do nosso cérebro. Essaideia surgiu provavelmente com os estudos de Lahsley sobre a estimulação de partes lesionadas, na década de 1930. 11 Outro grande mito muito difundido é que há cérebros que aprendem diferentemente, como cérebros visuais ou auditivos (LOPES et al., 2020). No entanto, algumas descobertas são bem aceitas e parcialmente compreendidas pelo consenso, como o próprio sistema nervoso e a evolução das espécies. Com base nesse conhecimento iniciado por Darwin, os cientistas conseguiram realizar estudos comparativos entre espécies e entender que existem famílias comuns que compartilham semelhanças no sistema nervoso. Outra descoberta muito importante foi a de como funcionam os neurônios, as células do sistema nervoso. Esses achados só foram possíveis por meio de melhorias nos equipamentos, principalmente o microscópio. Todos esses experimentos em diferentes campos formam o que hoje chamamos de neurociência. Então, quando pensamos em uma definição da área, estamos descrevendo-a como um campo formado por disciplinas diferentes que buscam entender o funcionamento do sistema nervoso em seus níveis diferentes: biológico, químico, elétrico, sistêmico, cognitivo e comportamental. 2.2 Neurociências e suas aplicações Como vimos, a neurociência pode vir de diversas áreas e produzir inúmeros conhecimentos. Portanto, podemos ter mais pesquisas experimentais, teóricas ou aplicadas. A neurociência teórica usa tecnologias e cálculos para entender o sistema nervoso, enquanto a pesquisa experimental inclui experimentos em todas as áreas mencionadas na seção anterior. As neurociências aplicadas abordam a prática. A primeira aplicação das neurociências aplicadas é a aplicação clínica. Na clínica psicológica, médica ou farmacológica, os conhecimentos produzidos pelas neurociências teóricas e experimentais enriquecem muito a compreensão de inúmeros transtornos, como Parkinson, Alzheimer, ansiedade, depressão, epilepsia, esquizofrenia, entre outros. Além de esclarecer o funcionamento de doenças e distúrbios que afetam o sistema nervoso, eles também apontam maneiras pelas quais os domínios podem descobrir meios de avaliação e tratamento. Pense em um transtorno depressivo como um exemplo. No caso de um experimento, é muito provável que neurocientistas em psicologia queiram avaliar as funções cognitivas envolvidas na depressão, produzindo ferramentas diferentes. Talvez os biólogos estudem as conexões neuronais e as deficiências hormonais na depressão. Os farmacêuticos podem realizar testes de 12 diferentes medicamentos. Portanto, esse conhecimento é aplicado na clínica psicológica e psiquiátrica, informando como conduzir o melhor tratamento para os transtornos depressivos. Outras aplicações podem ser vistas, por exemplo, na neuropsicologia, quando pessoas sofrem alguma lesão cerebral, como um acidente vascular cerebral (AVC). Nesses casos, a neuropsicologia pode avaliar os danos a funções cognitivas e propor processos de reabilitação, como no caso de afasias (problemas na compreensão ou na expressão da linguagem). Agora que entendemos como funciona em um ambiente clínico, passaremos para a educação. Há muito tempo os pesquisadores tentam decifrar como podemos aprender mais e melhor. A neurociência trouxe um maior conhecimento de que emoção e aprendizado andam de mãos dadas. Então, se para aprender bem você tem que ser emocional e motivado, para que o sistema nervoso consolide o aprendizado, então temos que repensar como ensinamos. Quando pensamos em aprendizagem, temos que considerar que ela é facilitada por outras funções ou pela cognição. A cognição é uma função desempenhada por diversos processos (memória, atenção, emoção, pensamento, linguagem, entre outros). Portanto, utilizar os conhecimentos da neurociência na educação significa olhar para o espaço escolar, as metodologias utilizadas, os conteúdos e as atividades realizadas em sala de aula, considerando uma conexão emocional entre alunos e ensino. Além da emoção, compreender o funcionamento da memória, bem como os processos atencionais, possibilita compreender que, para cada faixa etária, são necessárias atividades condizentes com o grau de atenção sustentado pelo aluno. Também precisamos considerar por quanto tempo podemos estar atentos e quanta informação podemos absorver e armazenar na memória. Tudo isso impacta as pessoas que pensam nos currículos escolares, acadêmicos e de outros cursos. Afinal, passar o conteúdo é importante, mas igualmente fundamental é como esse é passado. Outra área que promete empregar tecnologia baseada em pesquisas neurocientíficas é a neuropsicologia forense. Esta área estuda os comportamentos envolvidos no contexto forense. Isso inclui os famosos casos de serial killers ou até mesmo situações de divórcio e custódia de filhos. Atualmente, são vários estudos que tentam, por meio de exames de imagem, detectar sinais de mentira em depoimentos. Infelizmente, isso ainda está longe de ser utilizado em tribunais, pois não é possível ter uma sala de ressonância em cada sala de julgamento (SERAFIM; SAFFI, 2015). 13 Outra área que se beneficia muito da neurociência é o esporte. Os estudos de rastreamento ocular ou rastreamento visual ajudam em esportes como o basquete, que exigem um bom contato visual com a bola e o conjunto espacial para realização das jogadas. No entanto, entender como os músculos e o sistema nervoso central se comunicam é a base para entender como melhorar o desempenho dos atletas. Existem várias aplicações na comunicação. Uma delas prevê a compreensão; de como os mecanismos neurocognitivos estão relacionados à recepção de mensagens, como a aceitação de notícias falsas ou discursos de ódio (BATISTA; MARLET, 2018). O direito também se beneficia de conhecimentos, especialmente em criminologia, que estão ligados à psicologia forense já mencionada. O marketing é outra área que se beneficiou muito. Você já se afastou de um site porque não entendeu seu design confuso? Você já se sentiu pressionado a fazer uma compra que nem precisava? Tudo isso acontece porque nosso cérebro possui um sistema de gratificação, sempre em busca da recompensa. Goste ou não, comprar algo que você quer é uma atividade prazerosa. Portanto, a pesquisa em neurociência se beneficia muito de como o marketing pode alcançar melhores resultados em seu mercado consumidor. Esta área examina situações como o design do site, o fluxo de informações e a estética dos produtos para transformar a experiência do cliente em algo muito agradável, visando tornar a compra efetiva. A neurociência é abrangente e ainda está em constante desenvolvimento, podendo ser utilizada em diversas áreas do conhecimento humano ou mesmo em áreas que nem imaginamos. Para determinar o que você aprendeu até agora, veja o Quadro 2 abaixo, que resume alguns dos conceitos que você viu. QUADRO 2 – Síntese de termos empregados. 14 Fonte: Adaptado de Bear, Connors e Paradiso (2017) e Kandell et al.(2014). Neste capítulo, vimos um histórico de como as neurociências se desenvolveram desde a antiguidade, buscando entender como funciona o encéfalo. A partir desse reconhecimento histórico, definimos as áreas distintas que atuam nas neurociências, compreendendo amplamente como os conhecimentos levantados pelas disciplinas podem afetar nosso cotidiano. Vale ressaltar que, embora o correto seja utilizar neurociências no plural, o uso no singular, neurociência, se popularizou, mas não há prejuízos à compreensão. 15 3 AS FUNÇÕES COGNITIVAS Como cada ser humano é, reage e se manifesta sempre fascinou a ciência, que desenvolveu diversas disciplinas e teorias sobre o comportamento humano. Desde seus primórdios, quando a ciência ainda se baseava fortemente em explicações mecanicistas de fenômenos naturais e biológicos, até hoje, com os avanços da tecnologiae inteligência artificial, houve o desejo de decifrar a mente humana. Considera-se que a personalidade de cada indivíduo e os comportamentos; manifestados são um entrelaçamento de aspectos neurobiológicos e psicológicos, numa integração entre fenômenos psíquicos conscientes e inconscientes. Somos mente e corpo, sem espaço para dualismo e dissociação. No entanto, a pesquisa sobre as influências neurobiológicas e psíquicas na formação de nossa personalidade e comportamento continua sendo fundamental. Neste capítulo, você compreenderá e avaliará as funções cognitivas e seu papel no comportamento e nas emoções. Examinará as condições e determinantes neurobiológicas e psicológicas na formação da personalidade humana e, consequentemente, seu comportamento. Para isso, você fará uma breve viagem pelas teorias da personalidade propostas pela psicologia durante sua evolução e pelas influências que sofreram de outras ciências. Além disso, examinará as contribuições da neurociência para a divulgação e previsão de comportamentos. Seguimos com os primeiros estudos sobre a cognição e suas funções. A cognição implica a capacidade de processar informações advindas do meio e construir, a partir delas, conhecimentos a serem utilizados em novas situações. Para ocorrer, a cognição se dá por meio de habilidades mentais como percepção, associação de ideias, raciocínio, juízo crítico, memória, atenção, imaginação, linguagem, entre outras. Ela está intimamente relacionada à aprendizagem e ao processamento do conhecimento e envolve a associação entre as habilidades mentais e emocionais vivenciadas por um indivíduo. Quando lidamos com funções cognitivas, temos que falar sobre psicologia cognitiva. A psicologia cognitiva usa conhecimentos da neurociência para entender a cognição, ou seja, as relações entre o cérebro e os comportamentos. Estudar a atividade e a estrutura do cérebro serve para entender a cognição humana e como ela influencia o comportamento e as decisões. Logo que, relacionamos com o ambiente e agimos sobre ele, quando tomamos decisões sobre os comportamentos mais 16 adequados para determinada situação, utilizamos processos cognitivos (EYSENCK; KEANE, 2017). De modo geral, a cognição precisa que o cérebro da pessoa se desenvolva para perceber estímulos, aprender com as situações, lembrá-las e usá-las no momento certo. Esse processo é mediado pelos órgãos dos sentidos: audição, tato, visão, paladar e olfato. Desde muito cedo, aprendemos a interagir com o meio ambiente para garantir nossa sobrevivência e interações sociais com outras pessoas. Para tanto, o cérebro, órgão principal de nosso sistema nervoso, capta as informações provenientes de nossos sentidos, as traduz e as devolve como respostas, voluntárias ou não, de atuação de nossos corpos sobre o meio. O funcionamento do cérebro, através dos circuitos nervosos e de um número impressionante de células nervosas, os neurônios, garante todos esses processos. Hoje, a evolução dos estudos da neurociência nos permite conhecer cada vez mais precisamente essas complexas conexões, mas houve um tempo em que se acreditava que tudo acontecia por interferência mística, como espíritos e deuses. Agora sabemos que não são problemas externos ao ser humano, mas sim aos neurônios que processam e transmitem informações por meio de estímulos elétricos, que percorrem todo o nosso corpo. Os neurônios emitem impulsos repetidos e muito rápidos através de seus dendritos (fibras nas extremidades dos neurônios), e a informação desejada é transmitida através da extensão final das células nervosas, chamado de axônio, para outras células através das sinapses (área comunicação entre células), processos facilitados por diferentes tipos de substâncias químicas, denominados neurotransmissores. Seguidamente, nossos músculos são ativados para ações, nossas emoções são disparadas e conseguimos entender o que está acontecendo no ambiente e em nossos corpos ou, ao menos, ficamos em posição de alerta, de expectativa. O cérebro também governa nosso comportamento durante o sono. São inúmeras as possibilidades de ação decorrentes: “[...] movimentos, pensamentos, esperanças, aspirações, sonhos — a própria consciência de que somos humanos” (FELDMAN, 2015, p. 50). De forma geral, a mensagem química recebida pode ser de tipo excitatória, dirigida à ação; ou inibitória, que impede ou diminui a probabilidade de ação. Deve-se considerar que ambos os tipos de mensagens 17 chegam ao mesmo tempo, exigindo uma grande e complexa especialização de todo o processo de recepção e transmissão nervosa. E, nesse processo, os diferentes neurotransmissores são importantes para o estudo de nossas mentes e comportamentos, especificamente na pesquisa psicológica, por seu papel em determinadas ações e estados mentais. Alguns exemplos: a acetilcolina tem a ver com o controle motor e de processos mentais, como a memória; a serotonina relaciona-se com os estados emocionais, sonhos e controle de impulsos; a dopamina tem importância na motivação e no controle motor; as endorfinas minimizam as dores; o glutamato tem a ver com inibição e excitação. Assim, após a descrição do processamento cerebral, podemos dizer que; o sistema nervoso não é formado apenas pelo cérebro, que, embora seja o órgão central, não conseguiria fazer tudo o que ele faz sozinho. Existem muitos nervos, órgãos e conexões entre eles e substâncias químicas que transmitem impulsos. Devido à complexidade desses processos e ao papel que desempenham no comportamento humano, muitos psicólogos, com outros profissionais, fazem desses estudos a essência de sua compreensão. Algumas questões que orientam esses profissionais são: como o cérebro controla o corpo? Como as partes do corpo se comunicam? Como isso desencadeia ou afeta comportamentos? E quanto aos transtornos ou deficiências mentais? Como esse conhecimento pode se traduzir em benefícios para as pessoas e no desenvolvimento de tratamentos? (FELDMAN, 2015). Sabemos que o conhecimento do funcionamento do sistema nervoso já impulsionou os avanços nos estudos e intervenções em comportamentos, experiências sensoriais, emoções, estados de consciência, transtornos, entre outros. Além disso, o conhecimento dos mecanismos e processos do ciclo de vida associados à saúde física e mental levou ao surgimento de novos medicamentos e tratamentos. A neuropsicologia e a psicologia cognitiva aprofundam o conhecimento da constituição biológica, particularmente a neurociência para compreender o comportamento humano. 18 Para entender as diferentes funções do cérebro e do sistema nervoso, os estudos têm evoluído continuamente, assim como o cérebro. Atualmente três tipos de cérebro são considerados, para entender os seus múltiplos papéis em nossas vidas: cérebro reptiliano, cérebro límbico e neocórtex. O primeiro é o responsável por nossas funções básicas ou primitivas, como outros animais. É o cérebro que nos faz reagir frente a perigos, ter comportamentos de sobrevivência e proteção. É responsável também por funções involuntárias, como a respiração, a temperatura, etc. O cérebro reptiliano não é reflexivo, ou seja, ele não reage diretamente aos estímulos, ele funciona instintivamente, para preservar a nossa vida. O cérebro límbico está conectado às nossas respostas fisiológicas e emoções. É formado por estruturas no cérebro e recebe estímulos de nossos órgãos dos sentidos. Essas estruturas são responsáveis pela memória, prazer e dependência, ativação do sistema nervoso autônomo e outras funções de autopreservação. Regula as respostas de nosso organismo aos estímulos emocionais, por exemplo, estados de alerta, batimentos cardíacos, medo, pânico, inquietação, prazer, etc. O neocórtex, no que lhe concerne, abriga as nossas funções cognitivas mais sofisticadas,como atenção, pensamento, memória, percepção. É responsável por decisões, informação sensorial, percepção visual consciência espacial, relacionamentos sociais, entre tantas outras funções e atividades. Como é possível perceber, os estudos da psicologia, para o entendimento do comportamento e da cognição, têm relações mais próximas com o cérebro límbico e com o neocórtex. As funções cognitivas são: percepção, atenção, memória, linguagem, raciocínio e funções executivas. Percepção e atenção são essenciais para nosso cotidiano; nossas atividades diárias como ler e entender sinais, comunicar e nos dar a dimensão de distâncias, interações, operar máquinas e dispositivos, etc. A percepção é responsável por absorver estímulos do ambiente por meio dos órgãos dos sentidos, processando-os para aumentar o conhecimento sobre o mundo, formando um repertório de ações e utilizando-os em situações semelhantes. A atenção, ou a seletividade dos estímulos, é importante para o funcionamento cerebral, porque seria impossível para o cérebro e os órgãos sensoriais perceberem todos os estímulos aos quais estão expostos simultaneamente. Prestando atenção, podemos nos concentrar em alguns aspectos e deixar em segundo plano o que não é essencial para a situação atual. Ao mesmo tempo, percebemos uma infinidade de 19 coisas, movimentos, pessoas, e a atenção seleciona o que é importante no momento. Essa capacidade pode ser alterada por diferentes estados de vigília ou mudanças na capacidade de atenção, como sono ou ansiedade, para citar alguns. A memória registra as informações e as salvas para referência posterior sempre que a situação assim o exigir. É uma das funções cognitivas mais estudadas em psicologia e como tal existem vários tipos catalogados. Alguns deles são mostrados no Quadro 1. QUADRO 1 – Dificuldades nas funções cognitivas de atenção e memória. 20 Fonte: Adaptado de Fonseca (2020). Agora que entendemos a percepção e os tipos de atenção e memória, seguimos para explicar a função da linguagem. A linguagem é a capacidade de retornar informações ao ambiente quando conseguimos perceber, abstrair e nos comunicar com outras pessoas. O pensamento refere-se à formulação e organização de conceitos por meio de relações entre eles e associações com outras funções mentais. Desta forma, o pensamento está associado à resolução de problemas, tomada de decisão e julgamento. Todas as funções cognitivas têm infinitas aplicações, integram-se, influenciam-se mutuamente para tornar a nossa vida mais completa. E como última função cognitiva, apresentamos as funções executivas, habilidades cognitivas necessárias para a regulação e controle de nossos; pensamentos, ações e emoções. São combinações de habilidades cognitivas essenciais para resolver problemas de vários tipos, dos mais simples aos mais 21 abstratos, incluindo a aquisição de habilidades sociais. As funções executivas são divididas em três categorias de competências: 1. Autocontrole, que seria a capacidade de escolher fazer algo correto e resistir a uma tentação (por exemplo, a procrastinação de uma atividade e de seu prazo); 2. Memória de trabalho, ou a capacidade de ter em mente informações necessárias à execução de uma atividade, por um determinado período; 3. Flexibilidade cognitiva, ou a capacidade de usar o pensamento criativo para a adaptação a novas demandas, utilizando recursos aprendidos. Com funções executivas resolvemos problemas matemáticos complexos, mas também entendemos e nos relacionamos com outras pessoas. A metacognição nos ajudas com essas necessidades, ou seja, é a capacidade e consciência de suas ações em situações de aprendizagem cognitiva e emocional. À medida que desenvolvemos, também aumentamos nossa sensibilidade aos objetivos, emoções e desejos de outras pessoas. Para colocar a metacognição em ação, são necessários processos de acompanhamento, nos quais cuidamos de nossos estados mentais internos e passamos para estados externos direcionados a outras pessoas. As funções cognitivas são essenciais para a compreensão do funcionamento da nossa mente desde a psicologia, que as inclui como promotoras do aprendizado; dos próprios comportamentos e, formadores de nossa personalidade até por meio de interações com o meio. A personalidade é composta por nossas; características pessoais e nos torna únicos, diferentes de todos os outros seres. Para a psicologia, a personalidade pode ser dada como a soma de nosso aprendizado, como o conjunto de comportamentos aprendidos em experiências. Também pode ser focado em nossas experiências emocionais da primeira infância. Na próxima seção, discutiremos os aspectos psicológicos da formação da personalidade, para diferentes e relevantes abordagens da psicologia. 3.1 Aspectos psicológicos do comportamento humano Como vimos até agora, a ciência psicológica estuda a mente, o cérebro e o comportamento, enquanto tenta decifrar suas inter-relações. Ao contrário da psiquiatria ou da neurologia, a psicologia não se preocupa com as medicações, nem necessariamente com a patologia. No caso particular da cognição, a psicologia pode atuar tanto no campo educacional quanto no terapêutico. A mente é a sede da 22 atividade mental, como as experiências perceptivas que temos de nossas interações sociais. Desta forma, o estudo da mente é inseparável do estudo do comportamento humano. A mente armazena memórias, pensamentos e sentimentos, por isso resulta de processos biológicos em nosso sistema nervoso. O comportamento, por outro lado, envolve ações observáveis, como comer, beber, acasalar, dormir, algumas comuns em humanos e animais, e está sujeito à atividade mental, o cérebro. Desde sua fundação, diferentes abordagens da psicologia tentaram explicar essas inter-relações e o fizeram sob múltiplos pontos de vista. Nesta seção, por meio de uma retomada histórica, desde o nascimento da psicologia até os dias atuais, avaliamos os aspectos psicológicos envolvidos no comportamento humano para as principais escolas de pensamento. A psicologia nasceu em meados do século XIX, sob a influência das ciências naturais, que também eram utilizadas para o conhecimento da mente e dos sentidos humanos. Pode-se dizer que sua fundação dependeu dos avanços na metodologia experimental dessas ciências, para o estudo da experiência consciente. Wilhelm Wundt (1832-1920) foi o fundador da psicologia como ciência, organizou o primeiro laboratório de pesquisa e acreditava que as experiências humanas formavam estados de consciência. A consciência seria autônoma, até mesmo ao ponto de organizar seu próprio conteúdo, processo que Wundt chamou de voluntarismo. Em contraste com as abordagens atuais, Wundt aceitou a ideia de elementos estáticos e passivos da consciência dos mantidos juntos por um processo mecânico de associação. O método da psicologia então era a introspeção ou percepção interna, baseada na crença de que somente pessoas experimentando sensações e experiências poderiam descrevê- las. A introspecção teve uma influência filosófica na psicologia, como já mencionado no tempo de Sócrates. A psicologia de Wundt deu início a uma nova ciência, com ideias e métodos próprios, que deveria ser continuada, aprimorada e superada por novas abordagens (SCHULTZ; SCHULTZ, 2005). A psicologia, em sua evolução histórica, produziu muitas teorias para a compreensão das habilidades mentais, dos comportamentos e da vida psíquica, pois é um campo do conhecimento que utiliza conceitos e métodos de diferentes aspectos da natureza humana. 23 No entanto, muitas abordagens da psicologia propõem o estudo da personalidade como elemento essencial para o conhecimento do psiquismo humano e o sistematizam a partir de conceitos fundamentais da ciência, como determinantes conscientes e inconscientes;fatores hereditários e ambientais; liberdade e determinismo; estabilidade e mudança. O Quadro 2 resume as principais abordagens teóricas da psicologia e seu posicionamento em relação aos conceitos fundadores da explicação da personalidade. Personalidade, em geral, designa o conjunto de características pessoais, que representam as formas de pensar, sentir, agir, decorrentes de nossa constituição biológica, associadas às nossas experiências. Com base no Quadro 2, podemos ver como as perspectivas da psicologia; diferem na forma como explicam os conceitos e suas influências na formação da personalidade humana. Para entender os aspectos psicológicos do comportamento humano, a psicologia faz parte do estudo dos processos mentais, com o estruturalismo e o funcionalismo; centrado na aprendizagem como base do comportamento, no período de predominância do behaviorismo; introduz com a psicanálise o conceito de vida inconsciente e intrapsíquica; investiu em livre arbítrio e liberdade humana, com humanismo; na percepção em além dos órgãos dos sentidos, com Gestalt; assumiu os processos de aquisição de conhecimento e organização mental, com a psicologia cognitiva. A psicologia continua a examinar e revisitar conceitos importantes de cada abordagem, bem como a inovar na contemporaneidade. Devido à diversidade de formas de conceber o funcionamento mental e psicológico, a psicologia é considerada uma ciência pré-paradigmática, ou seja, em seu estágio de desenvolvimento como ciência, ainda possui várias escolas de pensamento concorrentes, que discordam das mesmas interpretações e os meios metodológicos para obtê-las. O paradigma é um modelo, um padrão de perguntas e respostas, formas aceitas de pensar em uma disciplina científica. A psicologia não possui essas propriedades que podem ser chamadas de paradigmáticas, pois não há uma escola dominante e unificadora de posições teóricas e metodológicas. Em sua evolução foi construída fragmentadamente, como uma colcha de retalhos de cores e padrões diferentes. Pode-se dizer que as escolas de pensamento, que reúnem psicólogos afins, são numerosas, independentes e muitas vezes antagônicas (SCHULTZ; SCHULTZ, 2005). 24 QUADRO 2 – As múltiplas perspectivas da personalidade. Fonte: Adaptado de Feldman (2015). Cada abordagem ou escola de pensamento teve sucesso em uma esfera da psicologia e atendeu aos desejos de diferentes momentos históricos. Algumas escolas ainda persistem hoje, outras extinguiram-se com as condições que as criaram. 25 Apresentamos um resumo das principais escolas de pensamento e, em seguida, discutimos as abordagens mais recentes. Estruturalismo: sistema da psicologia que considera a experiência consciente como dependente das pessoas que as vivenciam. Funcionalismo: sistema da psicologia que se dedica ao funcionamento da mente na adaptação do organismo ao ambiente. Behaviorismo: ciência do comportamento que considera apenas o comportamento passível de observação e descrição objetivos. Psicologia da Gestalt: sistema que se dedica à aprendizagem e à percepção, sugerindo que a combinação de elementos sensoriais produz novos padrões, com propriedades que eram inexistentes nos elementos individuais. É conhecido pela expressão “o todo é maior que a soma das partes”. Psicanálise: a teoria de Freud sobre a personalidade e o modelo de psicoterapia. Introduz a ideia de inconsciente na vida psíquica. Inconsciente como lugar de armazenamento de conteúdos reprimidos, esquecidos ou suprimidos da consciência. Psicologia humanista: sistema de psicologia que enfatiza o estudo da experiência consciente e a integridade da natureza humana. Psicologia cognitiva: sistema de psicologia que se concentra nos processos de aquisição do conhecimento, especificamente na forma de organização das experiências na mente. Novas abordagens, além das já referidas, moldaram o panorama teórico e de pesquisas que temos hoje, a partir das décadas de 1960 e 1970. Como visto, a psicologia cognitiva nasce em oposição às crenças do behaviorismo, principalmente expressas no manifesto behaviorista de seu fundador John Watson (1878–1958), que baniu da psicologia os estudos e termos relacionados à mente. Com o cognitivismo, porém, a consciência é resgatada nos estudos e a mente volta a ocupar um lugar privilegiado nas discussões, antes focadas em descrições do funcionamento do cérebro. A psicologia cognitiva nasceu em das objeções de vários autores comportamentais (Edward Tolman, Edwin Guthrie, por exemplo) que se frustravam com a visão limitada e mecânica de sua escola de pensamento, em sua insistência na relação estímulo-resposta, com nenhuma compreensão mais profunda do que o que estava acontecendo na mente humana. 26 A obra do biólogo e psicólogo suíço Jean Piaget (1896-1980) também foi importante para o surgimento da psicologia cognitiva, que descreve o desenvolvimento da criança por meio de estágios cognitivos e não psicossexuais, como proposto por Freud na psicanálise. Assim, a psicologia cognitiva não nasceu como uma revolução ou vinculada ao nome de um único fundador. Surgiu como reação ao desgaste de explicações teóricas anteriores e para seguir as transformações da sociedade e de outras ciências, como, por exemplo, a teoria da relatividade na física, que rompe com a crença do conhecimento objetivo, até nas ciências naturais Assim como o relógio, máquina característica do período mecanicista (século XVII), marcou as primeiras explicações da mente humana na psicologia, o desenvolvimento dos computadores serviu de metáfora para a mente, a partir do século XX. Essas máquinas marcaram o que se convencionou chamar de “revolução cognitiva” (SCHULTZ; SCHULTZ, 2005). A história dos computadores está ligada ao matemático e engenheiro mecânico Charles Babbage (1791-1871) e ao inventor Henry Hollerith (1860-1929). Os computadores demoraram muito para chegar às versões que conhecemos, mas a ideia de transferir pensamentos para a máquina nasceu nessa época. O desenvolvimento mais decisivo dos computadores, incluindo o conceito; de computadores pessoais e difundido na sociedade, marcou o período desde meados do século XX até os dias atuais e contribuiu para a reintrodução da mente nos estudos da psicologia e outras ciências. Hoje, o chamado capitalismo cognitivo exige uma maior participação das capacidades mentais das pessoas na vida e no trabalho e concebe a informação como recurso e geração de riqueza (CAMARGO, 2011). A chamada metáfora do computador repercutiu nos estudos cognitivos, comparando a mente humana a softwares e operações do computador, como memória, linguagem, inteligência, processamento de informações, etc. Os psicólogos cognitivos tentam entender como a informação é processada pela mente. A psicologia cognitiva estuda a aquisição de conhecimento por meio de processos mentais, e a mente adquire relevância, em detrimento da centralidade do comportamento. O comportamento continua sendo importante como pista, como algo que serve para decifrar os processos mentais associados a ações. Além disso, ao contrário das abordagens comportamentais tradicionais, a capacidade criativa dos sujeitos torna-se central na organização dos estímulos recebidos e não apenas como 27 emissor de respostas. Sujeitos produzem, escolhem, atuam na aquisição e aplicação do conhecimento. Outro desenvolvimento importante na psicologia cognitiva é o estudo da atividade cognitiva inconsciente. No entanto, o inconsciente difere aqui do que Freud propôs na psicanálise, que consistia principalmente em memórias e desejos reprimidos. O inconsciente cognitivo é mais racional e surge das primeiras respostas a estímulos que podem ser armazenados e estudados e acessados em situações de aprendizagem. Em vez de inconsciente, palavra intimamente associadaà psicanálise, os psicólogos cognitivos empregam o termo “não consciente”, que tem propriedades muito diferentes do inconsciente freudiano. Não é mais um reservatório de impulsos, mas um motor de resolução de problemas, mobilizando a criatividade e construindo o raciocínio. Entre os estudos amplamente utilizados na sociedade está o da cognição subliminar, ou seja, a possibilidade de as pessoas serem influenciadas por estímulos que não percebem diretamente, que não veem ou ouvem. Portanto, o conhecimento é produzido consciente e inconscientemente. Como visto até aqui, a psicologia orienta-se por muitas e diferentes correntes teóricas, mas atualmente a tendência é de retorno aos estudos das funções mentais conscientes e não conscientes e de formas de aprendizagem. Distúrbios do sono como insônia e apneia podem causar déficits cognitivos. Apneia está associada à déficit de atenção, insônia a prejuízos nas funções executivas, por exemplo (FUENTES et al., 2014). Nesse sentido, na próxima seção, integraremos as esferas psicológicas e neurobiológicas do comportamento humano. 3.2 Funções neurobiológicas e psicológicas do comportamento humano Como visto nas seções anteriores, funções neurobiológicas e psicológicas são integradas para gerar comportamentos humanos. Da resposta automática a um estímulo, com a ativação de células nervosas, à transmissão da resposta, que permanece como repertório para uso futuro, comportamentos são construídos, mediados por experiências pessoais no meio social. Esta seria a base neurobiológica do comportamento e da atividade mental. A neurociência cognitiva remonta ao mapeamento das funções cerebrais, com o trabalho do anatomista francês Paul Broca (1824-1880), entre outros autores, que 28 tentaram determinar quais partes do cérebro correspondiam a funções cognitivas específicas (SCHULTZ; SCHULTZ; 2005; KANDEL et al., 2014). O sistema nervoso é o responsável pelo que pensamos, sentimos e fazemos. Ele se divide em duas estruturas relacionadas: o sistema nervoso central (SNC), formado pelo cérebro e pela medula espinal, com os seus conjuntos inumeráveis de neurônios; o sistema nervoso periférico (SNP), composto pelas outras células nervosas do corpo. O SNP envia as informações para o SNC, que as seleciona e avalia, devolvendo-as ao SNP para realizar as condutas e ajustes orgânicos necessários. O SNP é dividido em somático e autônomo, sendo o primeiro responsável por comportamentos voluntários e o segundo por ações menos voluntárias, como batimentos cardíacos (GAZZANIGA; HEATHERTON; HALPERN, 2018). No Quadro 3, podemos conhecer algumas das estruturas cerebrais e suas funções. QUADRO 3 – Estruturas cerebrais básicas e suas funções. Fonte: Adaptado de Gazzaniga, Heatherton e Halpern (2018). Como pode ser visto no Quadro 3, as neurociências consideram as emoções um conjunto de respostas fisiológicas que ocorrem quando o sistema nervoso, mais precisamente o encéfalo, detecta situações a serem enfrentadas. Essas respostas 29 fisiológicas causam mudanças nos níveis de atenção e em outras funções cognitivas, resultando em um estado de alerta e mobilização de recursos para ações e decisões. Já os sentimentos são respostas conscientes a essas alterações somáticas e cognitivas. De acordo com Kandel et al. (2014, p. 938): [...] emoções são respostas comportamentais e cognitivas automáticas, geralmente inconscientes, disparadas quando o encéfalo detecta um estímulo significativo [...]. Sentimentos são as percepções conscientes das respostas emocionais. Enquanto as emoções são relativamente fáceis de perceber e medir, os sentimentos não são. Nas emoções, após a detecção do estímulo pelo cérebro, há uma cadeia de reações, com o envolvimento de glândulas endócrinas (secreção de hormônios no sangue), o sistema nervoso autônomo (controle fisiológico do organismo) e o sistema musculoesquelético (comportamentos e expressões faciais). Em conjunto, essas cadeias de reações, ou os três sistemas, controlam e expressam fisiologicamente as emoções. Por outro lado, os sentimentos humanos são, ainda, um desafio para as neurociências. Em experimentos com animais, autores como o médico Walter Cannon (1871–1945), os psicólogos Philip Bard (1898–1977) e Heinrich Kluver (1897–1979), e o neurocirurgião Paul Bucy (1904–1992) detectaram a manifestação de sentimentos como raiva ou medo, mesmo após a secção de partes importantes do sistema nervoso, como a amígdala, o hipotálamo ou os lobos cerebrais (KANDEL et al., 2014). Como o sentimento é definido como a experiência consciente de uma emoção, tem sido difícil estudar seus equivalentes neurais em animais porque é subjetivo e, humano. Experimentos do tipo feito com animais não são viáveis em humanos, exceto por ressonância magnética ou tomografia em que são solicitados a reviver situações que evocam sentimentos como tristeza, raiva, medo. Os exames de imagens, como tomografias e ressonâncias magnéticas, mostram alterações nas atividades cerebrais frente a estímulos diversos. Esses resultados, entre outras coisas, demonstram que o processamento neural das emoções e seus efeitos sobre o comportamento são amplamente inconscientes, semelhantemente ao preconizado por Freud na psicanálise. No entanto, mesmo o processamento neural sendo inconsciente, ele ocasiona sentimentos, percepções conscientes das respostas fisiológicas aos estímulos. 30 A integração entre emoções e sentimentos, ou seja, a “revelação” consciente de processos inconscientes serve para a aprendizagem e a predição de situações semelhantes às vividas. De acordo com Kandel et al. (2014, p. 949): [...] estados emocionais inconscientes são sinais automáticos de perigo e proveito, ao passo que os sentimentos conscientes, [...] recrutam capacidades cognitivas, dão maior adaptabilidade nas respostas a situações perigosas ou vantajosas. A combinação de emoções e sentimentos contribui importantemente para o comportamento social. Por outro lado, a função psicológica do comportamento, como vimos acima, divide a opinião entre diferentes escolas de pensamento. No entanto, podemos considerar uma série de fatores biológicos e psicológicos, ou seja, a genética e o ambiente, que contribuem para o desenvolvimento da criança e a formação da personalidade dos indivíduos. As crianças conseguem aprender, embora a formação de memórias explícitas de longo prazo não ocorra até aproximadamente 18 meses de idade. Todos os seres vivos experimentam amnésia infantil, a incapacidade de recordar eventos antes dos 3 ou 4 anos. A amnésia infantil pode desaparecer com o desenvolvimento da linguagem. O apego é uma forte conexão emocional que pode motivar o cuidado, a proteção e o apoio social. O apego se forma em razão do recebimento de conforto e aconchego, e não de comida. Grande parte das crianças, em torno de 65%, apresenta um estilo de apego seguro, expressando confiança em ambientes desconhecidos desde que o cuidador esteja presente. Cerca de 35% de crianças apresentam um estilo de apego inseguro e podem evitar o contato com o cuidador, ou, ainda, alternar entre comportamentos de aproximação e de evitação. O hormônio oxitocina influencia o apego. O apego é um forte vínculo entre as pessoas que persiste ao longo do tempo e das circunstâncias e contribui para uma vida social e emocional bem-sucedida. Este é um comportamento inato, ligado à tendência de formar laços protetores 31 desde tenra idade. As crianças precisam de cuidados e proteção para sobreviver, e o padrão de apego estabelecido marca o futuro emocional. Os choros, as expressões, os movimentos corporais, ou seja, as interações cada vez mais variadas com os cuidadores, estabelecem a comunicação de necessidades e afetos. Essas relações definem a experiência de um bebê, ainda limitado em suasações, pois nesta fase ele é mais receptivo do que interativo. É a socialização precoce que influenciará os relacionamentos futuros, autoimagem, identidade pessoal, entre outros. Pode-se citar a teoria de Piaget sobre como as crianças aprendem; entre muitas teorias mais antigas e mais recentes do desenvolvimento humano. As abordagens são muitas e variadas, como já mencionamos, mas é sempre necessário adotar uma abordagem teórica. No entanto, se podemos falar; de um fio comum que de alguma forma conecta as diferentes abordagens, como observamos no Quadro 2, na seção anterior, pensemos nas bases biológicas e psicológicas, suas integrações, diferenças e interpretações. É inegável que a discussão dos antecedentes fisiológicos e filosóficos cimentou a evolução da psicologia. Mais recentemente, constatamos o estabelecimento de abordagens cognitivas como predominantes. Este último tenta integrar influências ambientais e hereditárias de forma inédita, pois o peso dessas influências sempre foi um fator de desacordo entre as principais correntes de pensamento da psicologia. Hoje, são conhecimentos suficientes para essa integração e pesquisadores, profissionais, clientes e pacientes podem se beneficiar dessas sistematizações. As influências da neurociência também continuam avançando na explicação de eventos e formas de ação, pois são cada vez mais aplicadas a diferentes esferas da vida. 4 FELICIDADE E BEM-ESTAR NA NEUROCIÊNCIA Nossas emoções e sentimentos surgem do funcionamento do nosso cérebro, mais precisamente da nossa atividade neural. O avanço da neurologia na pesquisa científica forneceu novas explicações para a dinâmica do cérebro e como ele funciona. Com os avanços tecnológicos, a robótica busca cada vez mais reproduzir artificialmente o corpo humano e seu funcionamento, com o uso da inteligência artificial. 32 No entanto, compreensões neurobiológicas de emoções e sentimentos ainda representam desafios para a compreensão científica, especialmente nas ciências naturais, entre hipóteses e verificações. Dentre as diferentes formas de manifestação de sentimentos e emoções, a felicidade tem, temporalmente, suscitado um intenso debate sobre sua origem, organização neurocelular, ativação/desativação/liberação de neurotransmissores, entre outros. Ao mesmo tempo, é possível especificar em qual área do cérebro ocorrem as reações que determinam a expressão desse fenômeno complexo e dinâmico. Descobertas importantes na neurociência revelam o impacto dos neurotransmissores em nossas emoções. Neste capítulo, você estudará o conceito de felicidade no âmbito das neurociências, a relação entre felicidade e mecânica neuronal, bem como os novos achados sobre a neurociência da felicidade. Embora o caminho das descobertas sobre o cérebro e o comportamento humano seja longo, a compreensão do funcionamento cerebral com base na química de nossas emoções é mais recente. Psicólogos, psiquiatras, médicos, biólogos e neurocientistas fizeram progressos na compreensão de funções cerebrais, como elas afetam como agimos e até que ponto como pensamos e organizamos pode estar relacionada à dinâmica cerebral. Medo, tristeza, ansiedade e pânico, por exemplo, são sentimentos que também são explorados pela dinâmica química de neurotransmissores secretados e recebidos nas sinapses que promovem pensamentos negativos. No que lhe concerne, sucessos, comemorações e felicitações podem promover pensamentos positivos e criar a tão esperada felicidade em nosso cérebro (ALVES, 2019). Mas, afinal, o que é felicidade? Na Grécia antiga, século VII a.C., Tales de Mileto definiu o indivíduo feliz como aquele que tem corpo são e forte, uma boa sorte e alma bem formada. Para os gregos, felicidade era eudaimonia (eu = bom + daimon = espírito), uma espécie de semideus ou de gênio que acompanhava os seres humanos (PAIVA, 2015). O dicionário Houaiss da Língua Portuguesa (TAVARES; ZILBERMAN, 2007) define a felicidade como: “1. Qualidade ou estado de ser feliz, estado de uma consciência plenamente satisfeita, satisfação, contentamento, bem-estar; 2. Boa fortuna, sorte; 3. Bom êxito, acerto, sucesso”. Percebe-se que as condições de estar bem e de sorte ainda estão atreladas à noção de felicidade ao longo dos séculos, considerando-se como sinônimos com causas e circunstancias idênticas que possam provocá-las. Segundo Cortella, Karnal e Pondé (2019, p. 45), no livro Felicidade: modos de usar, descrevem: 33 Felicidade é uma vibração intensa, um momento em que sinto a vida em plenitude dentro de mim, e quero que aquilo se eternize. Felicidade é a capacidade de você ser inundado por uma alegria imensa por aquele instante, por aquela situação. No âmbito das neurociências, a felicidade “[...] é uma descarga neural intensa e momentânea na região do sistema límbico, produzindo hormônios que descarregam no corpo todo” (FUENTES et al., 2008, p. 34). Cada emoção é primeiramente sentida pelos órgãos sensoriais, depois é decodificada pelos neurônios, que desencadeiam a produção de hormônios, sentidos pelo corpo e dão origem a movimentos e/ou comportamentos. Nesse sentido, a felicidade segue o mesmo caminho, mas em quantidades e intensidades diferentes, para causar uma sensação agradável. Entre outras coisas, a neurociência está tentando identificar as regiões cerebrais responsáveis pela sensação da felicidade, a fim de criar um fluxograma com as etapas e formas pelas quais ocorrem as mudanças fisiológicas até que a felicidade plena seja alcançada. De uma perspectiva neurocientífica, quanto mais entendemos como o cérebro funciona em termos de suas divisões e funções, mais perto chegamos de poder replicar movimentos e interações internas para alcançar a felicidade. A busca pela identificação e mapeamento da forma como os pensamentos se organizam no cérebro (estimulação, barreiras, componentes), em particular os negativos, é, portanto, óbvia, pois sabemos que esses pensamentos podem gerar psicopatologias. Watson (2000) apresenta discussões sobre a relação entre felicidade e psicopatologia, indicando que altos níveis de pensamento negativo estão associados a psicopatologias de tipos diferentes. No que lhe concerne, baixos índices de pensamentos positivos podem ser associados com transtorno de humor e depressão. Por outro lado, descobriram que crença e pensamentos otimistas podem proteger contra o agravamento de determinadas doenças. Na prática, já existem mecanismos para exercitar nosso cérebro para promover sua reorganização, incluindo técnicas de reorganização cognitiva, mapeamento de emoções e estimulação de neurofeedback. Eles nos permitem transformar pensamentos negativos em fluxos positivos, que levam à felicidade, a terminologia neurociências da felicidade. Portanto, essas descobertas sobre a neurociência e a felicidade nos levam a refletir sobre nosso comportamento e como ele afeta nossas emoções, tanto para organizar quanto para desorganizar. O grande interesse da comunidade científica em entender com mais detalhes como isso ocorre nas micro instâncias do cérebro, 34 considerando também as reações fisiológicas do nosso corpo. E é sobre isso que falaremos na próxima seção. 4.1 A felicidade por dentro do cérebro A ideia de vincular a felicidade ao funcionamento do cérebro levanta uma relação complexa entre a atividade biológica/química do nosso corpo e nossa atividade psíquica/comportamental. Você já ouviu falar da pílula da felicidade ou neurotransmissores? Muitas vezes, quando lemos sobre medicamentos para depressão, fobias, pânico, ansiedade e outras psicopatologias, vemos relações com neurotransmissores. Como resultado desse debate, também conhecemos nomes como dopamina, serotonina, endorfina, noradrenalina e ocitocina. Esses neurotransmissores são produzidos e regulados pelo cérebro, gerando um efeito em todo o corpo, comopode ser visto na Figura 2, com a descrição dos neurotransmissores relacionados às emoções. FIGURA 2 – Neurotransmissores da emoção. 35 Fonte: Adaptada de desdemona72/Shutterstock.com A partir disso, entenderemos como funcionam e como podem afetar a felicidade. Do ponto de vista neurológico, nosso cérebro possui dois hemisférios (esquerdo e direito), cada um com suas funções e responsabilidades. O cérebro humano é composto por três encéfalos: tronco-encefálico — o mais primitivo, também chamado como sistema reptiliano, que mantém o funcionamento do sistema o tempo todo; límbico-hipotalâmico — conhecido como sistema emocional, pois processa todo e qualquer evento que chega ao cérebro; tálamo-cortical — conhecido por ser racional, onde ficam arquivas todas as nossas informações e conhecimento acumulado durante toda a vida. Vejamos um exemplo: você já se pegou relembrando coisas engraçadas ou momentos felizes que vêm à mente sem esforço, fazendo você (re)esperar pela 36 mesma felicidade que sentiu durante a experiência em determinado momento e em determinado lugar? Pois bem, neste processo podemos destacar a ação dos três encéfalos, permitindo que eles transportem as lembranças que ficaram armazenadas em sua memória, movimentando suas emoções e experiências e tudo isso possibilitado pelo funcionamento dos sistemas coordenadamente e integrada. Essas estruturas compõem o sistema nervoso central (SNC) e o sistema nervoso periférico (SNP), sendo o primeiro responsável por receber e enviar impulsos elétricos formados pelo encéfalo e medula espinhal, e o segundo por nervos e gânglios (JUNQUEIRA; CARNEIRO, 2008). O SNC pode ser dividido em quatro lóbulos: frontal (funções executivas), temporal (linguagem e comunicação), parietal (memória) e occipital (visão) (Figura 3). Esse conglomerado de estruturas e perspectivas sobre o mesmo objeto explicita a complexidade da dinâmica cerebral, considerando o fluxo desde a percepção do estímulo até a resposta por meio de comportamento. FIGURA 3 – lustração esquemática do SNC. Fonte: Adaptada de shopplaywood/Shutterstock.com. Entendemos como esse fluxo funciona? Seguem algumas etapas: 1. Nossos órgãos dos sentidos percebem a informação e impulsos elétricos são enviados para o cérebro, recebido pelo SNC. 2. As regiões da comunicação fazem o processamento e identificação do estímulo/objeto e, em simultâneo, buscam na memória os sentimentos e emoções. 37 3. Os impulsos recebidos no cérebro, em conjunto com a memória, produzem hormônios e ativam os neurotransmissores, conforme o armazenamento. Se for algo positivo, reações positivas decorrem; já memórias negativas levam a pensamentos negativos. 4. Os pensamentos são gerados e direcionados para uma resposta em relação ao estímulo recebido. Dessa forma, impulsos elétricos são disparados e comandam as áreas do cérebro responsáveis pelas emoções. 5. Ao ativar as emoções, os hormônios provocam no corpo as respostas, que podem ser comportamentais, fisiológicas ou emocionais. O sistema límbico, por sua vez, é constituído por um conjunto de estruturas responsáveis por nossas respostas emocionais, pois nele existem áreas que estão diretamente ligadas às relações de felicidade, como hipocampo (memórias), amígdala (emoções) e hipotálamo (equilíbrio químico do corpo). Nossas emoções são definidas pelos marcadores cognitivos que se incorporam em nossas memórias, particularmente a memória emocional: onde estávamos quando comemoramos um aniversário, ou quando recebemos a aprovação de uma entrada, ou quando descobrimos que teríamos temos nosso primeiro filho. Recordamos facilmente os momentos que fizeram parte da nossa experiência de vida. Assim, delimitaremos sendo bom para nós e o que não é. Portanto, quando nos deparamos com situações ou fatos que nos fazem bem, nosso cérebro capta a informação, processa-a e busca no registro as sensações desencadeadas naquele momento, nos momentos felizes. Isso ocorre, por exemplo, a partir da produção e liberação de serotonina e noradrenalina. Sua ausência pode desencadear a produção de cortisol, o hormônio do estresse. Por sua vez, a duração da felicidade pode ser analisada sob outras perspectivas, quer de uma vida feliz ou de momentos felizes. Com relação a isso, Cortella, Beto e Boff (2018, p. 59) argumenta que “[...] felicidade não é um estado contínuo, [...] mas uma ocorrência eventual”. Nos momentos/experiências felizes, ocorrem registros neurológicos a partir de uma descarga intensa, onde o corpo produz e libera os neurotransmissores com intensidade extrema, o que nos leva à sensação de bem-estar/felicidade. Na psicologia, felicidade e bem-estar são sinônimos, principalmente pelo prisma da psicologia positiva. Os autores Scorsolini-Comin e Santos (2010) explicam que felicidade corresponde à diferença entre afetos positivos e negativos, ambos 38 vivenciados diariamente em diferentes situações e intensidades, subjetivamente intrínsecos reciprocamente. Nossos neurônios carregam informações através de sinapses para outros neurônios. Esse processo ocorre por meio de trocas (potássio e cálcio), resultando no que é conhecido como trocas químicas sinápticas que produzem insights (reações de resolução de problemas). Portanto, nesse turbilhão de processos neurais, após identificar um pensamento negativo, o cérebro consegue compreendê-lo e provocar novas percepções reorganizadoras que evocam novos pensamentos, como os positivos. Nesta dinâmica, é importante ressaltar que a serotonina influencia positivamente a felicidade e o bem-estar. Além disso, marcadores cognitivos, ou seja, nossas memórias, são os gatilhos para que nosso corpo produza os neurotransmissores necessários. Finalmente, à medida que a ciência avança na descoberta bioquímica da felicidade, os pesquisadores estão se aproximando da possibilidade de reproduzir/programar artificialmente esse fluxo, mesmo em situações onde o não seria propício à felicidade. É realmente possível reprogramar o cérebro para direcionar o que pensamos e gerar apenas pensamentos positivos? Embora a resposta não seja simples e direta, vamos discuti-la na próxima seção, com base nas descobertas mais importantes sobre a felicidade. 4.2 Neurociência e felicidade: descobertas e possibilidades O ser humano é, antes de qualquer aplicação epistemológica, um movimento contínuo, plástico, maleável desde sua constituição, que contém suas experiências sociais, culturais e psíquicas, pautadas por seu sistema funcional neurocognitivo. A interação com o meio favorece as alterações neurológicas, assim como o inverso também é verdadeiro. Ocorre que atualmente é possível provocar essas alterações por meio de estímulos com práticas interventivas e instrumentos e manejos clínicos. Essas possibilidades estão intimamente ligadas aos avanços da neurociência que buscam compreender aproximadamente mecanismos cerebrais, visando desvendar o funcionamento de sentimentos e emoções. A leitura desse circuito neural é uma forma de reproduzir um certo fluxo que estimula reações de bem-estar e felicidade. 39 Por alguns anos, acreditou-se que o cérebro humano de um bebê recém- nascido já continha todos os neurônios de uma vida inteira. No entanto, no início do século XX, essa verdade foi refutada, pois a neuropsicologia cognitiva descobriu que, desde o nascimento até a morte, produzimos e perdemos continuamente neurônios (JACOBS, 2000). Nos últimos anos, pesquisadores do mundo todo, como Laersen e Diener (1992), Diener (2000) (apud FERRAZ, TAVARES, ZILBERMAN (2007) e Fuentes et al. (2008), têm investido em produzir novas descobertas relacionadas a temas como neuroplasticidade, neurofeedback, exoesqueleto (movimento por transmissão sináptica para próteses), estimulação intracraniana, entre outros (JACOBS,2000), com o intuito de auxiliar no direcionamento assertivo de como produzir mais felicidade. Em julho de 2015, um estudo dos pesquisadores Michele Sessoto e demais autores (2015) a partir de imagens cerebrais demonstrou que pessoas felizes e otimistas têm uma região do cérebro, o estriado ventral, com destacadas atividades, o que explicaria as emoções positivas. Esses resultados representam novas descobertas sobre como o cérebro funciona, especificamente como ele é reorganizado. Pacientes com sequelas de acidentes vasculares cerebrais e lesões cerebrais traumáticas que danificam partes do cérebro e causam perda neuronal automática podem ser estimulados a reorganizar e ter reaprendido funções tudo devido à neuroplasticidade, a capacidade de o cérebro de organizar os neurônios de atividade para recompensar funções prejudicadas. A neuroplasticidade é a capacidade de os neurônios de alterarem suas funções, perfil químico e estrutura, o que é essencial para facilitar a recuperação após lesão no SNC. No entanto, ambos os mecanismos trabalham juntos para que os arranjos cerebrais possam ser reorganizados para trazer benefícios na vida do indivíduo. A plasticidade neuronal pode ser pensada como a capacidade de o cérebro de recuperar a função através da proliferação neuronal, migração e interação sináptica. A plasticidade funcional, por outro lado, é o grau de possível recuperação de uma função graças a estratégias comportamentais modificadas. Talvez esse fenômeno constitua um mecanismo de reparo endógeno pelo qual o cérebro tenta minimizar as perdas neuronais. Assim, tratamentos intervencionistas tentaram minimizar o impacto de pensamentos negativos no cérebro, favorecendo o reforço de provocações positivas. 40 Eventos traumáticos criam experiências resultando em baixa produção de neurotransmissores, como já estudamos anteriormente, levando a sentimentos ruins, baixa autoestima, sensação de vazio e perda de vontade de fazer coisas que antes eram prazerosas. Pensar positivamente, lembrar de coisas boas, relembrar momentos felizes, celebrar a vida e parabenizar outras são ações que acionam o cérebro para produzir substâncias que criam a sensação de felicidade. O estudo dos fenômenos da felicidade e a relação das neurociências está em evidência, tendo como marco histórico o sucesso da mesa-redonda promovida pela Universidade de Yale em 2019 em Davos, Suíça, com o tema “A neurociência da felicidade” (ALVES, 2019). O encontro debateu a relação entre pensamento e comportamento, o que demonstrou como a felicidade pode afetar a vida das pessoas para torná-las mais criativas, solidárias e produtivas, capazes de alcançarem resultados favoráveis no estado biopsicossocial e de aprender a lidar com as adversidades. Já pesquisadores da Universidade de Tóquio reuniram um grupo de voluntários e compararam imagens de ressonância magnética do cérebro de cada um deles com questionários sobre o estado emocional de cada indivíduo. Ao cruzarem os dados, descobriram que as emoções positivas, combinadas com senso de satisfação, ativam uma área do cérebro conhecida como pré-cúneo, localizada no lobo parietal. Existem resultados similares nas pesquisas que se debruçam sobre a felicidade, as quais trazem afirmações de que emoções e pensamentos positivos geram transformações cerebrais positivas, favorecendo processos de melhora ou transformações na vida das pessoas (ALVES, 2019). Desse modo, ao pensarmos nas possibilidades de intervenções na vida individual e coletiva, pessoal e profissional, é possível, pela lente das neurociências, compreender os fenômenos que cercam o comportamento humano, bem como os processos cognitivos e sinápticos. O ser humano se modifica na intensidade de suas possibilidades, proporcionais à sua condição neuroplástica. De certo modo, pode-se afirmar que o estado de ser feliz é um processo íntimo, subjetivo e variável, cabendo a cada sujeito definir situações, estados e processos que lhe fazem feliz ou trazem felicidade, podendo, do ponto de vista de ações externas, serem direcionados ou replicados. 41 5 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ALVES, R. A neurociência da felicidade. São Paulo: MK books, 2019. BATISTA, L. L.; MARLET, R. Q. Comunicação, neurociência e a recepção não- declarada. Revista Famecos, v. 25, n. 1, p.1 – 20, 2018. BEAR, M. F.; CONNORS, B. W.; PARADISO, M. A. Neurociências: desvendando o sistema nervoso. 4. ed. 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