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Apresentação O tema da salvação é central na doutrina cristã. No fundamento do Cristianismo, estão a encarnação, a morte e a ressurreição de Jesus – eventos que produzem profundos efeitos em nossas vidas. Assim, a salvação em Cristo trata do evangelho, do plano eterno de Deus para nós, da transformação do coração no presente e do destino do ser humano na eternidade. Entretanto, embora seja matéria basilar na doutrina cristã e de fundamental importância para nossa vida, observamos que ao longo de cerca de dois mil anos de história da Igreja houve muito debate teológico e controvérsia em torno da salvação em Cristo. Atualmente verificamos vários aspectos concernentes ao assunto que não foram objeto de consenso no diálogo encadeado no decorrer dos séculos. Assim, a Igreja contemporânea herdou um vasto e rico legado das gerações anteriores, além de diferentes tradições de pensamento teológico, que representam correntes distintas de elaboração reflexiva e histórica da fé cristã. Nesse contexto nós nos inserimos como igreja. As Igrejas de Cristo Internacionais têm sua história própria, identificada com o chamado Movimento de Restauração (séc. XIX), com a Reforma (séc. XVI) e com a tradição apostólica e dos pais da igreja. Nossa identidade vem dessa vasta gama de pensamentos e construções, não havendo como negar qualquer desses vínculos e influências, pois isso é história. A respeito disso, escrevemos em 2018 o documento “Jornada de fé: uma breve história da Igreja de Cristo Internacional no Brasil”, que trata basicamente de aprendizados colhidos de nossas experiências proporcionadas e permitidas por Deus, em especial as mais recentes. Em 2021, iniciamos o Ministério de Ensino CJ2 (https://www.ministerioensinocj2.org/), no âmbito da família de Igrejas de Cristo Internacionais de língua portuguesa (ICI). As primeiras ações do CJ2 evidenciaram uma deficiência clara em nosso meio: a carência de elaborações, especialmente documentos escritos em língua portuguesa, que propiciassem reflexões mais densas sobre a fé e sobre o delineamento da identidade alicerçada em boa tradição cristã. Este texto a respeito da salvação em Cristo foi escrito com o propósito de contribuir para o preenchimento dessa lacuna. O objetivo é que, a partir das ideias aqui descritas, as convicções e o diálogo sejam fortalecidos, cooperando para a construção mais sólida de boa tradição teológica, pautada essencialmente na Bíblia, no âmbito de nossa família das Igrejas de Cristo Internacionais de língua portuguesa. Trata-se de um documento sintético a respeito de um tema vasto; por isso, a intenção não é esgotar o assunto, nem tocar em todos os seus possíveis aspectos, mas trazer com alguma profundidade elementos que julgamos relevantes. Nesse eixo, acreditamos ser muito importante reforçar uma ideia que faz parte de nossa essência como família de igrejas: somos um movimento. Isso significa que não estamos (e nem queremos estar) petrificados pelo engessamento oriundo de tradições espiritualmente mortas (contrárias à Palavra de Deus)1. Sobretudo, queremos ser sempre guiados e capacitados pelo Espírito Santo para atuar na obra de Cristo, para a glória do Pai. Ao longo do caminho, vamos, por um lado, aprofundar convicções e firmar nossa boa tradição; e, por outro, renovar a fé, a esperança e o amor, por meio da ação da Palavra e do Espírito em nós. 1 Sobre esse tema, veja o item 3.4 do documento “Jornada de fé: uma breve história da Igreja de Cristo Internacional no Brasil”, especialmente páginas 44 e 45. https://drive.google.com/file/d/1Kn86CNpbYWeMLeUIRM1quTdSSWMwba3Y/view https://drive.google.com/file/d/1Kn86CNpbYWeMLeUIRM1quTdSSWMwba3Y/view É importante frisar ainda que diferentes tradições de pensamento teológico têm sido elaboradas por inúmeros estudiosos sinceros e comprometidos com Cristo, além de muito capazes intelectualmente. Assim, nessa seara, entendemos que proposições diferentes daquelas apresentadas neste documento, desde que coerentes com o núcleo central de doutrinas que identificam o cristianismo bíblico, não implicam, por si só, na impossibilidade de salvação, ou mesmo na não caracterização como discípulos de Jesus, daqueles que abraçam essas percepções diferentes. Em vista disso, trazemos no texto referências de vários autores, de diferentes linhas teológicas. Em especial destacamos Jack Cottrell, Wayne Grudem e Norman Geisler, cujas obras citadas constituíram o núcleo de consulta para a elaboração do texto. Entretanto, como diferentes teólogos aplicam muitas vezes termos diversos para sintetizarem a mesma ideia ou conceito doutrinário, procuramos definir os termos principais em cada tópico, visando à melhor compreensão e comunicação. Usamos a Nova Versão Internacional para a citação de textos bíblicos, exceto quando explicitamente é mencionada outra versão. Com isso, o propósito deste texto não é contrapor diferentes visões doutrinárias, mas expor a visão construída ao longo de nossa história (ICI), mostrando sua base bíblica sólida e sua lógica interna coerente. Iniciamos com ênfase na alegria trazida pelas boas notícias da salvação em Cristo (Introdução) e seguimos esclarecendo aspectos básicos da doutrina: é Cristo quem nos salva, para a glória de Deus (Item 1), do domínio do pecado e da ira vindoura (Item 2), e essa salvação é somente pela graça, jamais pela lei (Item 3). Na sequência expomos a dupla cura propiciada pela salvação: a justificação é o remédio para a condenação trazida pela culpa moral (Item 4) e a regeneração cuida da corrupção humana produzida pelo pecado (Item 5). Destacamos que Deus escolheu nos justificar e nos dar nova vida, com a habitação do Espírito em nós, no momento do batismo. Com isso, somos adotados na família de Deus (Item 6) e iniciamos o processo de santificação (Item 7). Tratamos dos aspectos eternos da salvação, ao abordarmos os temas da eleição (Item 8) e da glorificação (Item 9). Por fim, descrevemos as condições bíblicas para recebermos e retermos a graça redentora (Item 10) e encerramos o estudo com uma breve conclusão. Por fim, ressaltamos que a essência da salvação é relacionamento com Deus, ou seja, conhecer o Pai e o Filho por meio da revelação do Espírito Santo (Jo 17.3; 14.17; 1 Jo 2.20; 4.6). A doutrina é parte importante para compreendermos a graça redentora vinda de Deus. No entanto, nesse contexto, podemos supervalorizar o aspecto doutrinário, pendendo para o legalismo; como podemos minimizar a importância da doutrina, pendendo para o relativismo. Nosso propósito é conhecer com profundidade a doutrina, guiados pelo Espírito Santo, para fortalecer o relacionamento que nos liberta: “onde está o Espírito do Senhor, ali há liberdade” (2 Co 3.17). Dezembro, 2021. Ministério de Ensino CJ2 Equipe de Coordenação Sumário Introdução: Uma mensagem de grande alegria! ...................................................................... 5 (1) Salvação: por quem e para quê? ......................................................................................... 5 (2) Cristo nos salva! Mas de quê? ............................................................................................. 6 (3) Dois caminhos para a salvação? .......................................................................................... 7 (4) Culpa, condenação e justificação em Cristo ........................................................................ 8 4.1 A culpa moral do ser humano ................................................................................. 9 4.2 Justificação em Cristo: o remédio para a condenação da culpa. ............................. 10 4.3 Pecadores injustos declarados justos por um Deus justo. ...................................... 11 4.4 Um único meio: a fé. .............................................................................................13 4.5 Paulo x Tiago. ........................................................................................................ 13 4.6 Quando somos justificados?.................................................................................. 15 (5) Corrupção da natureza humana e regeneração em Cristo................................................. 17 (6) Adoção na família de Deus ................................................................................................ 20 (7) Santificação ....................................................................................................................... 21 (8) Eleição e predestinação .................................................................................................... 24 8.1 Conceitos primários .............................................................................................. 24 8.2 O ser humano, imagem do Criador. ....................................................................... 26 8.3 O livre-arbítrio ou a liberdade humana.................................................................. 26 (9) Glorificação ....................................................................................................................... 29 (10) Condições para a salvação. ............................................................................................. 30 10.1 As condições para receber a salvação. ................................................................. 32 10.1.1 Fé salvífica ........................................................................................... 33 10.1.2 Arrependimento .................................................................................. 34 10.1.3 Confissão de fé .................................................................................... 35 10.1.4 Batismo ............................................................................................... 36 10.2 Uma vez salvo, sempre salvo? ............................................................................. 40 Conclusão ............................................................................................................................... 42 5 Introdução: Uma mensagem de grande alegria! Toda a mensagem da Bíblia aponta para o evangelho, que trata das boas notícias a respeito do Senhor Jesus Cristo, nosso Salvador! Isso foi anunciado pelo anjo de Deus aos pastores, nos arredores de Belém, naquela noite bendita que marcou a intervenção definitiva de Deus na história da criação: “Estou lhes trazendo boas novas de grande alegria, que são para todo o povo: Hoje, na cidade de Davi, lhes nasceu o Salvador que é Cristo, o Senhor” (Lc 2.10-11). Inicialmente, é importante destacar que a salvação em Cristo é motivo de “grande alegria”. Um júbilo que flui intensamente do interior de todo aquele que crê. A obra perfeita do Salvador vem ao encontro do mais profundo clamor dos seres humanos (ainda que muitas vezes expresso de forma inconsciente): a necessidade de redenção. O maior e mais precioso presente gera a maior alegria. Com certeza, o que Jesus fez é impossível para qualquer outro ser humano realizar. Com a salvação somos perdoados, regenerados, justificados, unidos com Deus e com nossos irmãos e irmãs em Cristo – a Igreja do Senhor Jesus – e com todo o povo de Deus resgatado por Cristo ao longo dos séculos. Essas são as boas novas anunciadas, cuja mensagem afirma: “são para todo o povo”. Entretanto, Satanás, o inimigo de nossa fé, tenta (e, infelizmente, muitas vezes consegue) trazer divisão, dor, sofrimento, ofensas e brigas, a partir de temas maravilhosos como a salvação. Subitamente, a mensagem que veio para alegrar e unir, torna-se grande fonte de desunião e tristeza. As perversas sementes satânicas encontram terreno fértil no coração humano corrompido e ainda não totalmente regenerado pela graça salvadora de Deus, quando se vê a servidão e o amor cedendo lugar a atitudes defensivas, medo, raiva e ódio. Precisamos definitivamente compreender que o que demonstra sermos verdadeiros discípulos de Cristo não é o arcabouço doutrinário defendido por nossa tradição religiosa, mas o verdadeiro amor (elo perfeito – Cl 3.14): Um novo mandamento lhes dou: Amem-se uns aos outros. Como eu os amei, vocês devem amar-se uns aos outros. Com isso todos saberão que vocês são meus discípulos, se vocês se amarem uns aos outros. (Jo 13.34-35). Também importa ressaltar que a salvação, conforme descrita na Bíblia, não é uma doutrina etérea e seca, descolada da realidade prática da vida. A salvação em Cristo, que nos conduz à vida eterna, é sobretudo relacionamento: “Esta é a vida eterna: que te conheçam, o único Deus verdadeiro, e a Jesus Cristo, a quem enviaste” (Jo 17.3). Creio que, no geral, sabemos dessas coisas, pois são básicas na vida cristã. Mas agora, como certa vez disse nosso único Mestre e Senhor, após lavar os pés de seus discípulos: “felizes serão se as praticarem" (Jo 13.17). (1) Salvação: por quem e para quê? Deus nos salva, por meio da obra perfeita de Cristo, mediante a ação do Espírito Santo em nossas vidas. Jesus é o grande autor de nossa fé (Hb 12.2) e de nossa salvação (Hb 2.10). Jesus é o Filho de Deus (Jo 1.14; 3.16; 1 Jo 4.9), eternamente gerado pelo Pai. Jesus também é o Filho do Homem, tanto no sentido de ser o Messias (Dn 7.13-14) quanto no sentido de ter sido 6 concebido pelo Espírito Santo (Lc 1.35) e nascido de Maria (Lc 1.30-33). Jesus, nosso Salvador, nasceu num estábulo em Belém da Judeia e pelo poder do Espírito Santo tornou-se o Cordeiro de Deus que tira o pecado do mundo (Jo 1.29). Por tudo isso, ele é o único mediador entre nós e o Pai (1 Tm 2.5) e o único nome (poder) pelo qual devemos ser salvos (At 4.12). Nesse sentido, C. R. Sproul comenta: [...] é importante notar outro aspecto central do conceito bíblico de salvação. A salvação é do Senhor. Salvação não é uma iniciativa humana. Os seres humanos não podem se salvar. A salvação é uma obra divina, que é realizada e aplicada por Deus. Somos salvos pelo Senhor e do Senhor. É ele quem nos salva da sua própria ira2. Deve-se ainda enfatizar que o propósito final de nossa salvação (e da redenção de todo o cosmos)3 é a glória de Deus. Uma leitura no primeiro capítulo de Efésios é suficiente para apreender essa afirmação com clareza. Por exemplo, Paulo escreve nos versículos 13 e 14: Quando vocês ouviram e creram na palavra da verdade, o evangelho que os salvou, vocês foram selados em Cristo com o Espírito Santo da promessa, que é a garantia da nossa herança até a redenção daqueles que pertencem a Deus, para o louvor da sua glória. (Ef 1.13-14). Na verdade, fomos formados e existimos para a glória de Deus: “De longe tragam os meus filhos, e dos confins da terra as minhas filhas; todo o que é chamado pelo meu nome, a quem criei para a minha glória, a quem formei e fiz” (Is 43.6-7). E, na qualidade de filhos e filhas de Deus, dizemos: “Pois dele, por ele e para ele são todas as coisas. A ele seja a glória para sempre! Amém” (Rm 11.36). (2) Cristo nos salva! Mas de quê? De forma ampla, salvação significa resgatar ou libertar de perigo, de situação difícil e ameaçadora. O ser humano se colocou numa posição de perigo e perdição (perda de direção, propósito, significado, identidade), ao se rebelar (Gn 3) contra o Criador, quando o pecado entrou no mundo (Rm 5.12). Com a perda do acesso à árvore da vida4 pelo ser humano (Gn 3.22- 24), Deus demonstrou sua graça, dando sequência ao seu plano eterno de salvação (Gn 3.15), por meio de Cristo. Basicamente o pecado nos torna escravos e nos confronta com a ira do Deus-Criador, Santo e Todo-Poderoso. A escravidão é manifestada pelo domínio exercido sobre nós, oriundo de nossa carne, entendida como a natureza humana corrompida (Rm 8.8); do mundo, visto como a ordem moral criada que estáem ativa rebelião contra Deus (1 Jo 2.15-17); e do Maligno (1 Jo 5.19). A ira vindoura (juízo final) de Deus está reservada a todos que se mantêm desobedientes ao 2 SPROUL, Richard C. Salvo de quê? Disponível em: https://reformados21.com.br/2017/05/10/salvo-de-que/. Acessado em 19 ago 2021. Destaque acrescentado. 3 Passagens como João 3.16 (“Porque Deus tanto amou o mundo que deu o seu Filho Unigênito [...]”) apontam para o fato de que a obra redentora de Jesus tem efeito em toda a criação (em todo o mundo ou cosmos). 4 A árvore da vida, proibida ao homem em Gênesis (2:9; 3:22-24) e oferecida gratuitamente aos que foram purificados e redimidos pelo sacrifício de Cristo em Apocalipse (2:7; 22:14), caracteriza a comunhão plena e a vida eterna com Deus. Assim, a história bíblica mostra como o paraíso perdido em Gênesis é totalmente recuperado em Apocalipse por meio da execução do plano eterno de Deus. 7 Senhor, apegando-se até o fim à sua rebeldia moral (Rm 5.9; 1 Ts 1.10; 5.9). Contudo, Cristo veio para a nossa salvação, com poder para nos libertar da escravidão e nos livrar da ira do Deus que é fogo consumidor (Hb 12.29). Dessa forma, a partir do maravilhoso plano de Deus, a salvação é um processo que se desenvolve no tempo e no espaço. O escritor C. R. Sproul expressa essa verdade do seguinte modo: A Bíblia usa o termo salvação não só em muitos sentidos, mas em muitos tempos. O verbo salvar aparece em praticamente todos os possíveis tempos da língua grega. Há o sentido de que fomos salvos (desde a fundação do mundo); estávamos sendo salvos (pela obra de Deus na história); somos salvos (por estarmos em um estado justificado); estamos sendo salvos (por estarmos sendo santificados ou tornado santos) e seremos salvos (por experimentarmos a consumação da nossa redenção no céu). A Bíblia fala da salvação em termos de passado, presente e futuro5. Com relação aos efeitos do pecado, a rebeldia produz no ser humano duas consequências terríveis: a corrupção de sua natureza e a culpa (que traz consigo a condenação). No entanto, Deus oferece duas curas para as pessoas, com a manifestação de sua graça na salvação: a justificação (libertação da condenação da culpa) e a regeneração (resgate da corrupção do pecado, pela realidade da nova criação em Cristo). O momento singular da regeneração marca o início de um processo que podemos chamar de santificação. Abordaremos cada um desses conceitos em tópicos específicos deste documento. Mas, por ora, voltaremos a atenção para uma questão mais ampla: qual o caminho a seguir para obtermos a salvação em Cristo? (3) Dois caminhos para a salvação? Nos três primeiros capítulos da carta aos romanos, Paulo demonstra que judeus e gentios (a totalidade dos seres humanos) são pecadores e estão naturalmente distantes de Deus: “pois todos pecaram e estão destituídos da glória de Deus” (Rm 3.23). Conclui-se daí que, de fato, precisamos de salvação. Mas como podemos dirimir os efeitos do pecado (culpa e corrupção ou depravação) em nossas vidas? Como escapar de suas terríveis consequências (escravidão e ira de Deus)? Dois grandes caminhos ou sistemas de pensamento surgem para responder essas questões. Dentro de cada um deles há praticamente uma infinidade de ramificações, mas qualquer atitude do ser humano com relação ao tema (pecado-salvação) poderá ser classificada em um desses sistemas. De forma simples, podemos chamá-los de Graça e Lei. A Graça baseia-se no esforço divino para, do início ao fim, nos encontrar e salvar. A Lei baseia-se no esforço humano para agradar a Deus e conquistar a salvação. No escopo da Lei encontram-se todas as iniciativas humanas para sua própria redenção, desde o fundamentalismo religioso até o humanismo exclusivo6. A Lei aponta para a conquista humana, diante de seu próprio esforço e trabalho. A Graça aponta para a conquista de Deus ofertada a nós de forma gratuita, imerecida e extremamente generosa. 5 SPROUL, Richard C. Salvo de quê? Disponível em: https://reformados21.com.br/2017/05/10/salvo-de-que/. Acessado em 19 ago 2021. Destaque acrescentado. 6 SMITH, James K.A. Como (não) ser secular. Brasília: Editora Monergismo, 2021. P. 222; em referência a TAYLOR, Charles. Uma era secular. Unisinos, 2010. 8 Numa visão ampla do significado da palavra graça no AT e do NT, inferimos que significa a ação amorosa de Deus a favor do homem e de sua criação; presentes de Deus que produzem alegria, incluindo as bênçãos de Deus da criação, da providência (graça comum), bem como a redenção (graça especial)7. Encontramos três sentidos para o termo (graça) na Bíblia8: (i) atributo da natureza de Deus, que o faz desejar nossa salvação e o impeliu a torná-la possível, por meio de Cristo; (ii) conteúdo de nossa salvação, o real presente que recebemos de Deus quando ele nos salva que se refere à dupla cura da salvação (justificação e regeneração/santificação); e (iii) o caminho pelo qual Deus nos salva com seu poder, ou seja, o método ou a maneira que Deus usa para derramar sobre nós o poder da salvação. Por meio desse poder, Deus nos dá muito além de nossas forças naturais, como a graça pela qual Paulo trabalhou mais que todos (1Co 15.10) e pela qual os macedônios deram além do que podiam (2Co 8.1-4)9. Paulo menciona esses dois sistemas antagônicos quando diz: “porque vocês não estão debaixo da lei, mas debaixo da graça” (Rm 6.14). A mensagem cristã afirma que o ser humano não pode alcançar Deus por si mesmo, mas Deus vem ao encontro do homem e o resgata: “Porque a graça de Deus se manifestou salvadora a todos os homens” (Tt 2.11) e, “vocês são salvos pela graça, por meio da fé, e isto não vem de vocês, é dom de Deus; não por obras, para que ninguém se glorie” (Ef 2.8-9). Assim, a salvação bíblica é por pura graça de Deus, e não por qualquer abordagem legalista ou mesmo híbrida, com a combinação de graça e obras10. Há um caminho para a salvação proposto e empreendido pelo homem que, na verdade, leva à completa perdição; mas há um caminho para a salvação planejado e executado pelo Pai, por meio do Filho, no poder do Espírito Santo, que verdadeiramente nos salva. Por isso, não precisamos de regras religiosas ou de doutrina morta, mas de espírito e vida (Jo 6.63) que vêm da revelação da Palavra de Cristo por meio do Espírito de Deus. A prática do cristianismo consiste em receber o presente de Deus e responder com gratidão àquilo que Deus tem feito por nós11. A atitude de receber é ativa (ao invés de passiva, imposta por alguém), enquanto a gratidão é a característica que flui do coração constrangido e quebrantado pelo precioso presente recebido de Deus. (4) Culpa, condenação e justificação em Cristo. No tópico 2 deste texto, apontou-se duas consequências do pecado para o ser humano (culpa e corrupção de sua natureza) e duas curas providenciadas por Deus (justificação e regeneração). 7 COTTRELL, Jack. The faith once for all. College Press, 2011. P. 307. 8 COTTRELL, Jack. The faith once for all. College Press, 2011. P. 307-308. 9 BOOR, W. Comentário Esperança - Carta aos Coríntios. Curitiba: Editora Evangélica Esperança, 2004. P.236 e 424. 10 COTTRELL, Jack. The faith once for all. College Press, 2011. P. 315. 11 COTTRELL, Jack. The faith once for all. College Press, 2011. P. 308. Em referência a RIDENOUR, Fritz. How to be a christian without to be a religious. Regal Books, 1967. 9 Neste tópico falaremos da justificação, que trata da condenação pela culpa ao remover todo o castigo merecido por causa do pecado. 4.1 A culpa moral do ser humano A consciência culpada faz parte da vida; é um elemento próprio da condição humana natural. A culpa é um senso de responsabilidade por algum mal cometidoou um sentimento de estar em falta com alguém; por vezes associada a constrangimento, remorso, medo, consciência pesada, vergonha, timidez e outros fatores. Ela pode ser caracterizada a partir de uma abordagem relacionada à própria pessoa (como na linguagem psicológica de C. G. Jung), atrelada ao nosso caráter existencial (como nos escritos de Martin Buber) ou associada à ruptura de nosso relacionamento com Deus (como na linguagem bíblica)12. O psiquiatra e escritor cristão Paul Tournier, que contribuiu muito para a melhor compreensão desse tema, faz importante distinção entre o que ele chama de culpa verdadeira e culpa falsa, com base nos ensinamentos bíblicos: À luz da Bíblia, a culpa verdadeira nos aparece como uma culpa em relação a Deus, uma ruptura da ordem de dependência do homem em relação a Deus. [...] A referência a Deus que a Bíblia nos traz esclarece acentuadamente o nosso problema: a falsa culpa, em primeiro lugar, é a que resulta dos julgamentos dos homens e de suas sugestões. [...] Pensamentos de Deus e pensamentos dos homens; julgamento de Deus e julgamento dos homens; eis aí, claramente formulada, a oposição entre a culpa verdadeira e a culpa falsa13. Podemos lidar pessoalmente com a culpa moral de diversas formas: reprimi-la, tentar ignorá-la, ou reconhecê-la e tratá-la diante do trono de Deus, de acordo com as direções do Senhor. Sobre isso, o psiquiatra e escritor cristão Paul Tournier, que contribuiu muito para a melhor compreensão desse tema com suas obras, diz o seguinte: Parece bastante claro que o homem não vive sem culpa. Ela é universal. Mas pouco a pouco ela desencadeia, quer seja reprimida ou reconhecida, dois mecanismos inversos: quando reprimida ela dá lugar à ira, à revolta, ao medo e à angústia, a uma insensibilidade da consciência, a uma impossibilidade crescente de reconhecer os próprios erros e a uma exaltação crescente de impulsos agressivos. Quando reconhecida conscientemente, ela leva ao arrependimento, à paz e à segurança do perdão de Deus, a um refinamento progressivo da consciência e a um enfraquecimento progressivo dos impulsos agressivos14. O Deus que nos criou e sabe como devemos viver não poupou nada para que tivéssemos uma vida plena e eterna (Jo 10.10; Rm 6.23). Ele deseja transformar o íntimo de nosso ser, à semelhança de Cristo, e nos libertar de tudo que aprisiona nossa alma. Esse processo pode ser contraintuitivo e até mesmo contracultural, mas quanto mais nos aproximamos de Deus em relacionamento pessoal, a luz do Pai ilumina os recônditos de nossa alma, revela o pecado lá existente e nos proporciona arrependimento, perdão, libertação, cura e acolhimento. É um 12 TOURNIER, Paul. Culpa e graça. Viçosa, MG: Ultimato; São Paulo, SP: ABU Editora, 2015. Pag. 79. 13 TOURNIER, Paul. Culpa e graça. Viçosa, MG: Ultimato; São Paulo, SP: ABU Editora, 2015. Pag. 79, 84. Destaques acrescentados. Neste trecho do livro, Tournier menciona como base passagens como Mt 16.22-23; Mt 12.46-50; Jo 19.26-27. 14 TOURNIER, Paul. Culpa e graça. Viçosa, MG: Ultimato; São Paulo, SP: ABU Editora, 2015. Pag. 187. Destaques acrescentados. 10 processo glorioso de transformação e paz. Novamente, Paul Tournier trata esse tema com precisão: É de degrau em degrau que a consciência da nossa culpa e a do amor de Deus crescem juntas. “São os santos que têm o senso do pecado” – escreve R.P. Daniêlou – “o senso de pecado é a medida do senso de Deus numa alma”. [...] O que a graça remove não é a culpa, mas a condenação: “Portanto, agora já não há condenação para os que estão em Cristo Jesus, porque por meio de Cristo Jesus a lei do Espírito de vida me libertou da lei do pecado e da morte” (Rm 8.1-2). [...] A paz consigo mesmo e com os outros está em aceitar a própria culpa e confessá-la15. 4.2 Justificação em Cristo: o remédio para a condenação da culpa. De fato, Deus apresenta um remédio para a questão da culpa e da condenação a ela atrelada, conhecido da teologia cristã como justificação. Para tratarmos de temas importantes com precisão e minimizar ruídos de comunicação, precisamos nos atentar bem para as definições dos principais termos. Entendemos justificação em dois sentidos: (i) ato específico de Deus pelo qual o pecador passa do estado de perdido para o estado de salvo; e (ii) estado contínuo de existência da pessoa salva. Assim, o cristão pode dizer “fui justificado por Deus” (ato) e “sou justificado por Deus” (estado). O termo grego para justificação é da mesma família de palavras como reto, direito e retidão. A teologia cristã mais ampla, desde a Reforma, expressa duas linhas de pensamento sobre o significado de justificação como ato de Deus, ou seja, de como Deus nos faz justos perante ele: (i) Deus nos declara justos, atribuindo (imputando) sua justiça sobre nós, por estarmos em Cristo; (ii) Deus nos torna justos, transmitindo sua justiça a nós. A primeira concepção é uma declaração de Deus, atribuindo a nós a justiça de Cristo; a segunda diz respeito mais ao processo de santificação, atrelado às boas obras que Deus preparou para executarmos. Esses dois entendimentos resumem a principal diferença de pensamento entre a corrente católico-romana e a corrente reformada-protestante. Ao passo que a maioria dos cristãos reformados creem que Deus age de ambas as formas em nossas vidas, mas identifica a concepção (ii) como santificação e não como justificação propriamente dita, a Igreja Católica firmou o seguinte entendimento, no Concílio de Trento (1545-1563): “Justificação não é apenas uma remissão de pecados, mas também a santificação e renovação do homem interior através da recepção voluntária da graça e dons pelos quais o homem injusto se torna justo”. Jack Cottrell explana essa questão do seguinte modo: De acordo com esta visão [do concílio de Trento, acima], a justificação é um processo subjetivo que ocorre dentro do indivíduo, uma mudança interior em seu caráter moral. Isso significa que a justificação está ligada às obras de uma pessoa de forma direta e, 15 TOURNIER, Paul. Culpa e graça. Viçosa, MG: Ultimato; São Paulo, SP: ABU Editora, 2015. Pag. 197-198. Destaques acrescentados. 11 por ser um processo, nunca se pode ter certeza de que atingiu um nível de obras que o torna aceitável a Deus. Aqui está uma das principais diferenças entre o Catolicismo Romano clássico e o Protestantismo da Reforma. Para a maioria dos protestantes, essa visão da justificação está seriamente errada e é a principal pedra de tropeço para uma compreensão geral adequada da salvação e para uma vida cristã de paz e segurança. Eles entendem que o ato de justificação de Deus não é a transmissão da justiça [concepção (i)], mas a imputação da justiça [concepção (ii)]. “Justificar” significa não tornar justo, mas declarar justo, contar ou aceitar como justo. O estado de justificação não é uma santidade de caráter cada vez maior, mas uma situação legal correta e completa perante a lei de Deus e uma liberdade da penalidade da lei. Este é geralmente o entendimento da Reforma (protestante), e estou apresentando-o aqui como a visão bíblica16. Esta percepção é importante: a justificação resolve o problema da culpa. Deus trata da questão da corrupção ou depravação da natureza humana com a regeneração e a santificação. Mas a justificação muda nosso relacionamento com Deus e não tem por foco imediato nosso caráter e natureza. A partir do perdão dos pecados outorgado com a justificação, o relacionamento com Deus muda e profundas transformações de caráter e hábitos acontecem na vida daquele que crê. Assim, firmamos o entendimento de que a justificação é a declaração de Deus que nos apresenta justos perante ele, atribuindo a nós a justiça obtida por Cristo na cruz. Nesse sentido, justificaré sempre o oposto de condenar: “agora já não há condenação para os que estão em Cristo Jesus [...] Quem fará alguma acusação contra os escolhidos de Deus? É Deus quem os justifica” (Rm 8.1,33). Essa imputação de justiça é superior a todas as outras vistas na dimensão humana, como Cottrell menciona no trecho seguinte: Há uma grande diferença entre a justificação como um ato de um juiz humano e a justificação como um ato salvador de Deus. Os juízes humanos, a menos que sejam corruptos (Pv 17:15), justificam apenas os inocentes; eles declaram alguém justo apenas se ele já for justo ou inocente. Isso é o que a lei exige. Mas, no ato da salvação, Deus justifica os pecadores culpados (Rm 4.5); ele declara que os injustos são justos!17 De imediato, porém, surgem outras perguntas: com esse ato, Deus não contraria seus próprios padrões, expostos em sua Lei (Dt 25.1)? Como que nós, mesmo sendo pecadores como bem sabemos, podemos estar “em conformidade” com a Lei? 4.3 Pecadores injustos declarados justos por um Deus justo. Refletindo sobre essas questões anteriores, vislumbramos que Deus poderia nos declarar justos por um desses três caminhos: (i) se jamais tivéssemos cometido pecado; seríamos declarados justos pelo reto Juiz. Esse caminho é inviável, pois todos pecamos; (ii) se, tendo cometido pecado, pudéssemos pagar pessoalmente por esses pecados, cumprindo a devida pena e sendo declarados justos pelo reto Juiz. Esse caminho também é inviável, pois a pena requerida pelo pecado é a morte, no 16 COTTRELL, Jack. The faith once for all. College Press, 2011. P. 319. Tradução livre e destaques acrescentados. 17 COTTRELL, Jack. The faith once for all. College Press, 2011. P. 320. Tradução livre e destaques acrescentados. 12 sentido de separação de Deus). Além disso, os atos pecaminosos que cometemos vêm de uma natureza corrompida; (iii) se, Deus, sendo santo e justo, de alguma forma tomasse sobre si nossos pecados, pagasse o devido preço por eles, e depois imputasse essa justiça sobre nós. Pela revelação das Escrituras e a intervenção visível na história da humanidade do Deus invisível, sabemos o que o Senhor fez! Sabemos o que aconteceu próximo a Jerusalém, num lugar chamado Caveira (Gólgota ou Calvário). Houve uma data, uma hora e um lugar definidos, nos quais Jesus derramou seu sangue por mim e por você. O principal propósito da encarnação do Filho de Deus foi estabelecer a retidão divina, usada como base para a justificação de pecadores (“em Adão todos morrem, em Cristo todos serão vivificados” - 1 Co 15.22). Somente por causa disso, Paulo, inspirado pelo Espírito Santo pode dizer mais tarde: “não tendo a minha própria justiça que procede da lei, mas a que vem mediante a fé em Cristo, a justiça que procede de Deus e se baseia na fé” (Fl 3.9); por isso “Não me envergonho do evangelho, porque é o poder de Deus para a salvação de todo aquele que crê: primeiro do judeu, depois do grego. Porque no evangelho é revelada a justiça de Deus, uma justiça que do princípio ao fim é pela fé, como está escrito: "O justo viverá pela fé" (Rm 1.16-17). Utilizando-se da figura de roupas sujas e limpas, mencionadas em Isaías, Cottrell traz o seguinte comentário: A única alternativa, e a única base verdadeira para justificar os pecadores, é a própria justiça de Deus imputada ou creditada na conta do pecador. Se tentarmos estar diante de Deus no dia do julgamento vestidos apenas com nossa própria justiça - uma “vestimenta suja” (Is 64.6) - seremos condenados, não justificados. É por isso que Deus se oferece para nos vestir com “um manto de justiça” que ele mesmo preparou (Is 61.10). [...] Qualquer um que rejeita a justiça de Deus e busca estabelecer sua própria justiça como base para a aceitação por Deus está condenado a ser rejeitado (Rm 10.3). A retidão de Deus que serve de base para a justificação não é o atributo divino da retidão ou da justiça como tal, especialmente se isso for entendido como o próprio caráter moral perfeito de Deus e sua justiça legal perfeita que exige que o pecado seja punido. A justiça de Deus que justifica é antes um presente dado aos pecadores, como um manto tecido por Deus então oferecido e aceito pelo pecador, que o usa como se fosse seu (Is 61.10). É uma justiça que está fora de Deus e “vem de Deus” (Fl 3: 9) e se aplica a nós. Quando Deus vê essa justiça em nossa posse, ele declara: "Sem penalidade para você!" [...] Jesus não apenas cumpriu os mandamentos da lei; ele também cumpriu os requisitos da lei para a pena. Ele recebeu sua punição em nosso lugar por meio de sua morte substitutiva e propiciatória na cruz. [...] Assim, a justiça de Deus revelada no evangelho e imputada em nossa conta é a satisfação de Cristo, em nosso nome, da exigência da lei para a penalidade. Em essência, a justiça de Deus é o sangue de Cristo. É por isso que eu disse que ser justificado (declarado justo) não significa que sou tratado como se nunca tivesse pecado, mas como se já tivesse pago a pena do inferno eterno18. 18 COTTRELL, Jack. The faith once for all. College Press, 2011. P. 322. Tradução livre e destaques acrescentados. 13 A pergunta que surge na sequência pode ser esta: como recebemos esse presente de Deus? Como somos justificados por meio do sangue de Cristo? 4.4 Um único meio: a fé. Sabemos que não recebemos automática e incondicionalmente a justificação de Deus conquistada para nós por Cristo. Então, por qual meio podemos obtê-la? A Bíblia demonstra que há somente um meio de recebermos esse magnífico presente de Deus: a fé. Isso é completamente coerente com o fato de a justificação ser pela graça, pois, se envolvesse de alguma forma obras humanas, implicaria na existência de ganho, conquista, merecimento e glória para o ser humano. Mas a essência do presente (dom) é a gratuidade para quem o recebe: “Pois o salário do pecado é a morte, mas o dom gratuito de Deus é a vida eterna em Cristo Jesus, nosso Senhor” (Rm 6.23). Nesse versículo há alguns contrastes e, dentre eles, observamos que o pecado (obra humana) é recompensado com salário (morte) enquanto a vida eterna (salvação, incluindo a justificação) é dom gratuito (providenciado por Cristo). A nossa justificação (e completa salvação) foi alcançada por meio de uma obra, mas uma obra (perfeita) realizada por outra pessoa: o Senhor Jesus Cristo (“fomos justificados pelo seu sangue” – Rm 5.9). Assim, as obras como meio de obtenção da justificação são excluídas à luz da Palavra de Deus: Ora, o salário do homem que trabalha não é considerado como favor, mas como dívida. Todavia, àquele que não trabalha, mas confia em Deus que justifica o ímpio, sua fé lhe é creditada como justiça. [...] Portanto, a promessa vem pela fé, para que seja de acordo com a graça” (Rm 4.4-5,16). E, se é pela graça, já não é mais pelas obras; se fosse, a graça já não seria graça (Rm 11.6). Diante disso, podemos ainda perguntar: perante todas essas coisas, como fica a afirmação de Tg 2.24? Inspirado pelo Espírito Santo, Tiago escreve: “Vejam que uma pessoa é justificada por obras, e não apenas pela fé”. 4.5 Paulo x Tiago. A Bíblia é magnífica! Tesouro infinito de sabedoria que reflete a natureza do Deus Eterno, que a revelou. Retrata todo o amor do Senhor para nos instruir, aconselhar e guiar na vida e no conhecimento dele. Nesse sentido, Deus não apenas deixa claro que a justificação se dá exclusivamente pela fé (tema especialmente tratado em cartas paulinas, a exemplo de Romanos, Gálatas, etc.), mas também nos ajuda a identificar em nossa vida a fé salvífica (especialmente com os escritos de Tiago). De certa forma, o próprio Paulo na carta aos romanos, por exemplo, traz o que Tiago registra em sua epístola sobre a relação da genuína fé cristãcom as obras preparadas por Deus para seus santos: Que diremos então? Continuaremos pecando para que a graça aumente? De maneira nenhuma! Nós, os que morremos para o pecado, como podemos continuar vivendo nele? Ou vocês não sabem que todos nós, que fomos batizados em Cristo Jesus, fomos batizados em sua morte? 14 Portanto, fomos sepultados com ele na morte por meio do batismo, a fim de que, assim como Cristo foi ressuscitado dos mortos mediante a glória do Pai, também nós vivamos uma vida nova. Portanto, não permitam que o pecado continue dominando os seus corpos mortais, fazendo que vocês obedeçam aos seus desejos. Não ofereçam os membros dos seus corpos ao pecado, como instrumentos de injustiça; antes ofereçam-se a Deus como quem voltou da morte para a vida; e ofereçam os membros dos seus corpos a ele, como instrumentos de justiça (Rm 6.1-4,12-13). O amor e a gratidão de quem entende e recebe a graça da salvação do Senhor não podem ser contidos, antes se derramam em servidão a Cristo e ao próximo, em boas obras, que glorificam a Deus. A figura19 a seguir, demonstra esquematicamente a mensagem de Deus trazida por Paulo e Tiago: Cottrell descreve seu entendimento sobre o esquema anterior da seguinte forma: A fé tem uma relação imediata e direta com a justificação, pois é o único meio compatível com a justificação como um dom gratuito, disponibilizado unicamente pela obra de Jesus Cristo. [...]. Mas também há uma relação indireta necessária entre as obras e a justificação, uma vez que a verdadeira fé salvadora por sua própria natureza produzirá obras, ou seja, desejará obedecer e buscará obedecer às leis de Deus. [...]. Em resumo, a preocupação de Paulo é negar que a justificação está igualmente relacionada à fé e às obras, enquanto Tiago nos lembra que as obras não podem ser excluídas do quadro, visto que são o resultado inevitável da fé. [....] Essa compreensão de Paulo e Tiago nos ajuda a entender como um cristão pode ser justificado pela fé e julgado pelas obras. Que seremos julgados pelas obras é uma verdade ensinada nas Escrituras. Por exemplo, Jr 17.10 diz: “Eu, o SENHOR, esquadrinho o coração, provo a mente, sim, para dar a cada um segundo os seus caminhos, segundo os resultados das suas obras”. Jesus diz em Mt 16.27: “Porque o Filho do Homem virá na glória de Seu Pai e com os Seus anjos, e então retribuirá a cada homem segundo as suas obras”. Ele declara em Ap 22.12: “Eis que cedo venho, e a Minha recompensa está 19 Fonte: COTTRELL, Jack. The faith once for all. College Press, 2011. P. 330. Tradução livre, com adaptações na figura. 15 comigo, para retribuir a cada um segundo o que fez”. Que isso inclui os salvos e os não salvos é claro em 2 Co 5.10, “Pois todos devemos comparecer perante o tribunal de Cristo, para que cada um seja recompensado por suas obras no corpo, de acordo com o que tem feito, seja bom ou ruim”. Certamente, uma razão pela qual os cristãos serão julgados de acordo com suas obras, boas e más, é determinar o grau de recompensa a ser recebido por cada um (Wayne Grudem, Doutrina, 456-457). Mas outra razão para expor todas as nossas obras no dia do julgamento será demonstrar a presença ou ausência da fé que justifica. Tal exame não é necessário para o próprio amor de Deus, mas será feito para demonstrar que o julgamento de Deus é imparcial ou sem favoritismo, que ele não “faz acepção de pessoas” (At 10.34-35; Rm 2.6,11; Ef 6.8-9; Cl 3.25; 1 Pd 1.17)20. Por fim, é válido considerar o comentário feito por Douglas Jacoby a respeito da passagem de Tg 2.24, pois traz à baila o exemplo de Abraão, também utilizado por Paulo em suas cartas: Deve haver uma correspondência entre o que professamos e o que fazemos, entre o nosso caminhar e o nosso falar. Jesus insistiu nisso muitas vezes (Mt 7.21-23, por exemplo). Abraão foi justificado quando creu em Deus (Gênesis 15). Sua fé e suas ações estavam trabalhando juntas em Moriá (Gn 22), como Tiago apontou21. Lembrando ainda que, posteriormente, o próprio Deus testemunha a respeito de Abraão ao seu filho Isaque, dizendo: Tornarei seus descendentes tão numerosos como as estrelas do céu e lhes darei todas estas terras; e por meio da sua descendência todos os povos da terra serão abençoados, porque Abraão me obedeceu e guardou meus preceitos, meus mandamentos, meus decretos e minhas leis (Gn 26.4-5). Outros aspectos da fé, em especial da fé salvífica, são abordados no item 10.1.1 deste estudo. 4.6 Quando somos justificados? Vimos que justificação, como ato, é uma declaração da parte de Deus de que somos retos perante ele (o que implica em perdão, remissão de pecados), mediante a obra de Cristo na cruz. Também entendemos que Deus é supremo para declarar o que ele quiser, quando desejar, pois tanto o poder para salvar quanto a ação de salvar emanam soberanamente do Eterno Deus. Entretanto, fica claro nas páginas do Novo Testamento que, de forma geral e para o nosso bem, Deus escolheu um momento específico para outorgar a nós a dupla cura de sua salvação (justificação e regeneração). Esse momento é o batismo. Abordaremos com mais profundidade o tema do batismo em tópico próprio mais a frente neste texto; no entanto, adiantaremos aqui algumas passagens que vinculam a declaração da justificação da parte de Deus ao batismo. O início da igreja é marcado pela orientação do Espírito Santo, por meio de Pedro, àqueles que foram quebrantados pelo evangelho: “Arrependam-se, e cada um de vocês seja batizado em nome de Jesus Cristo, para perdão dos seus pecados, e receberão o dom do Espírito Santo” (At 2.38). 20 COTTRELL, Jack. The faith once for all. College Press, 2011. P. 330. Tradução livre e destaques acrescentados. 21 JACOBY, Douglas. Q&A 0562 – Faith alone? Disponível em: <https://www.douglasjacoby.com/q-a-0562-faith- alone/>. Acessado em 20 ago 2021. Destaques acrescentados. 16 Pedro diz que o batismo em nome (no poder) de Jesus Cristo é para perdão dos pecados. Cerca de cinquenta dias antes, na última ceia, Pedro tinha ouvido de Jesus que ele derramaria seu sangue para perdão dos pecados (Mt 26.28). A bênção salvadora oriunda da cruz se tornou efetiva no batismo dos primeiros cristãos. Sobre isso o teólogo Werner de Boor comenta: “Quando os que se convertem chegam a Jesus, todo o seu passado de culpa é enterrado em seu batismo, e são presenteados com a nova posição reconciliada perante Deus”22. Na carta aos Colossenses, Paulo menciona o tema da seguinte forma: “Isso aconteceu quando vocês foram sepultados com ele no batismo, e com ele foram ressuscitados mediante a fé no poder de Deus que o ressuscitou dentre os mortos” (Cl 2.12). O “isso” do início do versículo se refere ao “despojar do corpo da carne” (Cl 2.11), que significa a velha vida dominada pelo pecado dos não regenerados. Ou seja, pela justificação e regeneração aplicadas por Deus, no batismo, somos redimidos de nossos pecados e nascemos para uma nova vida, no poder de Deus. Somos enterrados com Cristo no batismo para receber todos os benefícios salvíficos de sua morte expiatória, inclusive o perdão dos pecados por meio de seu sangue justificador. Sobre esse versículo, o britânico especialista em Novo testamento Ralph Martin afirma: O meio sacramental mediante o qual a vitória de Cristo fica sendo a deles [cristãos] é o batismo, em que a fé é um ingrediente vital. É mediante a fé e no batismo que a nova vida do crente começa23. Ao escrever para os romanos, Paulo disse algo semelhante ao que falou para os colossenses: “Portanto, fomos sepultados com ele na morte por meio do batismo, a fim de que, assim como Cristo foi ressuscitado dos mortos mediante a glória do Pai, também nós vivamos uma vida nova” (Rm 6.4). Ao comentar este texto, o erudito da BíbliaFrederick Bruce, com honestidade intelectual, diz o seguinte: Desta e doutras referências ao batismo nos escritos de Paulo é certo de que ele não considerava o batismo como um ‘extra optativo’ na vida cristã, e que não teria pensado no fenômeno de um ‘crente não batizado’. Podemos concordar ou não com Paulo, mas devemos ser justos para com ele, deixando-o defender e ensinar suas próprias crenças, e não torcê-las para fazê-las amoldar-se àquilo que nós preferimos que ele tivesse dito24. A justificação é uma declaração de Deus que atribui a nós a justiça proveniente da cruz e nos torna retos perante o Senhor. Como tal, não depende de ritos, pessoas ou de qualquer outra coisa no mundo. O poder para justificar e regenerar vem de Deus, não vem do sacramento25 ou das águas batismais. Por isso, Deus pode salvar quem ele quiser, da forma que ele quiser, quando ele quiser26. No entanto, o soberano Deus por sua graça, de forma geral e para o nosso 22 BOOR, W. de. Comentário Esperança, Atos dos Apóstolos. Curitiba: Editora Evangélica Esperança. P. 56. Destaques acrescentados. 23 MARTIN. Ralph P. Colossenses e Filemon: introdução e comentário. São Paulo: Vida Nova, 2007. P. 93. Destaques acrescentados. 24 BRUCE. Frederick F. Romanos: introdução e comentário. São Paulo: Vida Nova, 2007. P. 110. Destaque acrescentado. 25 Sacramento neste texto é entendido como ordenança instituída por Cristo que manifesta a graça de Deus (meio de graça) e, mediante sinais externos, aponta para realidades espirituais advindas da aliança com o Senhor, permitindo que os cristãos participem de aspectos transcendentes do reino divino, ao expressarem a fé e a fidelidade a Jesus. O Novo Testamento registra dois sacramentos: o batismo e a ceia do Senhor. 26 Obviamente isso não quer dizer que Deus contraria a sua Palavra (Jr 1.12) ou age como o ser humano mudando de ideia levianamente ao longo do tempo. 17 bem, escolheu outorgar-nos esse dom num momento que seria especial para todo o cristão e poderia ser lembrado durante toda a vida. De modo amplo, os pais da igreja (Tertuliano, Cipriano, Irineu, etc.) tinham esse entendimento, como escreveu Agostinho: “É Ele quem perdoa todas as tuas culpas, ou seja, no sacramento do batismo”27. Isso, em si, é uma bênção que expressa o cuidado de Deus por nós, pois, seguindo as Escrituras, o cristão sempre poderá dizer: houve um dia, uma hora e um local determinado, nos quais meu Senhor me salvou! Esse ato visível (batismo) sintetiza e marca na memória elementos invisíveis que nos une a Cristo: a fé salvífica e o coração rendido a Deus, disposto a obedecer. Isso pode dirimir muitas dúvidas relacionadas à salvação em Cristo e ser instrumento que leva paz e segurança ao coração. Sobre isso, o professor Álvaro Pestana comenta: A fé é uma resposta interior que deve manifestar-se no batismo e no arrependimento. Estas ações concretas visíveis e exteriores nos ajudam a olhar para trás e lembrar que a conversão aconteceu ‘de verdade’ e não foi apenas um devaneio. Os grupos que não fazem batismos e não pregam o arrependimento produzem pessoas cheias de dúvidas sobre ‘o que aconteceu’ ou ‘se a conversão realmente aconteceu’. Contudo, a Bíblia, um livro holístico, levando em conta a nossa materialidade, deu-nos no batismo e na decisão do arrependimento um bom marco do início de nossa caminhada na fé28. Encerramos este tópico com a conclusão exposta por Jack Cottrell, contemplando tanto o ato de justificação concedido por Deus a nós quanto nosso estado de justificados perante o Senhor: Assim, podemos concluir que o único meio de justificação é a fé na obra salvadora de Cristo. É essa fé que inicialmente recebe a justificação (no batismo, Colossenses 2.12); e é essa fé que nos mantém em um estado justificado. Em outras palavras, o cristão continua a ser justificado - totalmente perdoado por todos os pecados - enquanto ele continua a acreditar no sangue salvador de Cristo. Nós entramos “pela fé nesta graça em que permanecemos” (Rm 5.2), e “vocês estão firmes na sua fé” (Rm 11.20); “estais firmes na vossa fé” (2 Co 1.24). O Espírito fortalece você com poder interior “para que Cristo habite em seus corações pela fé” (Ef 3.16-17). Assim, “somos protegidos pelo poder de Deus pela fé” (1 Pd 1.5)29. (5) Corrupção da natureza humana e regeneração em Cristo. Às vezes, igualamos a salvação presente à nossa justificação. Mas salvação é mais que remissão de pecados. Jack Cottrell, no livro A fé de uma vez por todas30, trabalha com o conceito de dupla cura, na qual a justificação age na questão da condenação trazida pela culpa, enquanto a regeneração atua na questão da corrupção da alma (enfermidade ou fraqueza interior) produzida pelo pecado. Nesse contexto, a regeneração é uma obra do Espírito Santo, efetivada na alma pecadora, que produz uma mudança interior no coração do ser humano. Cottrell oferece uma analogia simples para assimilarmos o conceito de regeneração (e de santificação), 27 AGOSTNHO. Patrística – A Graça (I) – Vol 12: O espírito e a letra. São Paulo: Paulus, P. 71. 28 PESTANA, Álvaro C. Como dialogar com o mundo? Web Aula FT09-06, Teologia Sistêmica. Escola de Teologia em Casa – ETC, 2013. Destaques acrescentados. 29 COTTRELL, Jack. The faith once for all. College Press, 2011. P. 327. Tradução livre e destaques acrescentados. 30 A edição em português do original em inglês The faith once for all foi publicada em setembro de 2020 pela Editora Reflexão, com o título A fé de uma vez por todas. O livro é encontrado em diversas livrarias e na Editora Reflexão: <https://www.editorareflexao.com.br/teologia/a-fe-de-uma-vez-por-todas-doutrina-biblica-para-hoje>. 18 ao comparar a cura espiritual da alma corrompida pelo pecado com a cura de uma doença física31: Doença corporal Doença do pecado Dimensão Corpo Alma Quem atua? Médico Deus Tratamento inicial Remédio (Ex: injeção) Regeneração Processo de cura Período de recuperação Santificação É importante ressaltar que a Bíblia trata o ser humano como uma unidade (corpo e alma), tendo o coração como centro de interseção do ser, e é assim que devemos vê-lo. O fato de a regeneração, por exemplo, ter lugar na alma, implicará obviamente em algum reflexo no corpo. No entanto, a obra regeneradora do Espírito Santo, como estamos tratando neste tópico, é a administração da nova vida em Cristo no coração humano. Isso não faz, como bem sabemos, com que todas as doenças sejam necessariamente curadas e que o corpo (nossa temporária habitação terrena) não mais se desgaste (2 Co 4.18 – 5.5). Deus cuidará de nossos corpos físicos, transformando-os em corpos espirituais na glorificação, tema do item 9 deste documento. Paulo descreve regeneração utilizando-se da figura de morte e ressurreição em Rm 6.1-14 e em Cl 2.11-13. Ambas as passagens são claras ao afirmarem que a regeneração ocorre “por meio do” (Rm 6.4) ou “no” (Cl 2.12) batismo. De fato, a morte de Cristo na cruz e sua ressurreição quebraram a maldição da morte por causa do pecado e são nossa fonte de vida. Por isso, inúmeras passagens bíblicas falam de vivificação (regeneração) de nossa alma, como por exemplo: Ef 2.5-6; Jo 5.24; 1 Jo 3.14. Outras expressões usadas com o mesmo significado (de regeneração) são “nascer de novo” (Jo 3.3-8; 1 Pe 1.3,23), “nova criação” (Ef 2.10; 1 Co 5.17; Gl 6.15) e “lavar regenerador” (Tt 3.5). Assim, regeneração é diferente de mudança moral. A regeneração é a obra divina operada secretamente em nós para nos conceder nova vida espiritual (nascer de novo – Jo 3.3-8), enquanto a mudança moral relaciona-se com a conversão primária32, sendo esta última a resposta inicial de uma pessoa ao evangelho de Cristo. Wayne Grudem descreve da seguinte forma o que aqui chamamos de conversãoprimária: É nossa resposta espontânea ao chamado do evangelho, pela qual sinceramente nos arrependemos dos nossos pecados e colocamos a confiança em Cristo para receber a salvação. A palavra conversão significa ‘volta’ – aqui ela representa uma volta espiritual, voltar-se do pecado para Cristo. O voltar-se do pecado é chamado arrependimento, e o voltar-se para Cristo é chamado fé. [...] Um não pode ocorrer sem o outro [fé e arrependimento], e eles devem ocorrer juntos quando se dá a verdadeira conversão33. Dessa forma, a Bíblia descreve que fé e arrependimento (At 20.21) são pré-requisitos para a regeneração. A fé é necessária porque “a verdadeira fonte da salvação [justificação e 31 COTTRELL, Jack. The faith once for all. College Press, 2011. P. 333. Tradução livre. 32 Usamos a expressão conversão primária para diferenciar este período inicial daquele processo de conversão mais amplo que inclui, além da conversão primária, o período de santificação. Essa percepção de conversão enfatiza que ao longo da vida de santificação é primordial voltar-se (converter-se) para Deus diariamente. 33 GRUDEM, Wayne. Teologia sistemática. São Paulo: Vida Nova, 2009. P. 592. Destaques acrescentados. 19 regeneração] está em uma obra feita por outra pessoa – Jesus”34 (Ef 2.8), exigindo assim aceitação e confiança. O arrependimento é necessário porque sem ele perecemos em nossos pecados (Lc 13.3,5; 2 Pe 3.9). Diante disso, no trecho transcrito a seguir, Cottrell reforça a regeneração como obra exclusivamente divina e descreve a ação do Espírito Santo ao nos conduzir à conversão e ao nos dar nova vida em Cristo: Na Bíblia, regeneração é uma obra de Deus, não uma obra do ser humano. Renascemos espiritualmente na família de Deus “não do sangue, nem da vontade da carne, nem da vontade do homem, mas de Deus” (Jo 1.13). Nossa morte com Cristo e ressurreição com ele são “a operação de Deus” (Cl 2.12); assim em nossa nova natureza, “somos feitura dele” (Ef 2.10). As imagens bíblicas escolhidas para representar esse ato poderoso - ressurreição, nova criação, renascimento – em si mesmas apontam para a atividade divina; dificilmente são feitos que somos capazes de realizar com nossa própria força insignificante. [...] O Espírito trabalha nos corações dos pecadores para influenciá-los a crer e se arrepender, mas esta obra é indireta (por meio da Palavra) e resistível. Alguns optam por acreditar e se arrepender, e alguns optam por não fazê-lo. Somente depois que alguém escolheu crer e se arrepender, ele se submete ao toque de cura do Grande Médico, e só então o Espírito Santo trabalha diretamente em seu coração para efetuar a regeneração35. Assim, entendendo regeneração como o início do longo processo de cura e reparo da alma em virtude dos danos causados pelo pecado, o que vem depois de sermos vivificados com Cristo? A santificação é justamente essa obra progressiva que nos acompanha ao longo da vida na terra. Abordaremos o tema santificação em um tópico mais adiante. Antes, porém, trazemos no quadro seguinte o resumo das principais diferenças relacionadas aos conceitos de justificação, regeneração e santificação, adaptado da formulação apresentada por Jack Cottrell36: Justificação Regeneração/Santificação Lida com nosso problema com a Lei Lida com nossa condição de pecadores Resolve o problema de quebrar a Lei Resolve o problema do cumprimento da Lei Remove a condenação da culpa Remove a corrupção do pecado Deus age como juiz Deus age como médico Ação externa e objetiva Ação interna e pessoal Somos declarados justos por decreto Somos feitos justos aos poucos Um ato concluído desde o início Um processo contínuo até morrermos Cristo morreu por nós Nós morremos com Cristo Justiça imputada Justiça transmitida A grande necessidade do pecador A grande necessidade do cristão 34 COTTRELL, Jack. The faith once for all. College Press, 2011. P. 353. 35 COTTRELL, Jack. The faith once for all. College Press, 2011. P. 335. Tradução livre e destaques acrescentados. 36 COTTRELL, Jack. The faith once for all. College Press, 2011. P. 332. Tradução livre, com adaptação. 20 (6) Adoção na família de Deus. Há um contraste apresentado nas Escrituras entre os filhos de Deus (Jo 1.12) e os filhos da ira (ARA37 - Ef 2.3), filhos da desobediência (ARA - Ef 2.2; 5.6) ou filhos do diabo (Jo 8.42-44). Certamente queremos ser filhos de Deus. Mas como nos tornamos filhos do Deus Pai de nosso Senhor Jesus Cristo? A Bíblia nos mostra que nossa adoção como filhos na família de Deus é também obra da graça do Senhor. A salvação em Cristo, nossa justificação (direito de estarmos diante de Deus) e nossa regeneração (nova vida pelo dom do Espírito Santo que recebemos no batismo), abre caminho para a filiação na família de Deus: “Mas, a todos quantos o receberam, deu-lhes o poder de serem feitos filhos de Deus, a saber, aos que creem no seu nome” (ARA - Jo 1.12). Assim, o presente da adoção segue a conversão inicial (fé salvífica e arrependimento) e está no contexto de nossa salvação em Cristo. Wayne Grudem define essa adoção como o “ato de Deus por meio do qual ele nos faz membros de sua família”38. Essa maravilhosa realidade da vida cristã, de sermos ascendidos à posição de filhos e filhas de Deus, é tratada em diversas passagens bíblicas. Seguem alguns exemplos: Pois todos os que são guiados pelo Espírito de Deus são filhos de Deus. Porque não recebestes o espírito de escravidão, para viverdes, outra vez, atemorizados, mas recebestes o espírito de adoção, baseados no qual clamamos: Aba, Pai. O próprio Espírito testifica com o nosso espírito que somos filhos de Deus. Ora, se somos filhos, somos também herdeiros, herdeiros de Deus e coerdeiros com Cristo; se com ele sofremos, também com ele seremos glorificados (ARA - Rm 8.14-17). [...] vindo, porém, a plenitude do tempo, Deus enviou seu Filho, nascido de mulher, nascido sob a lei, para resgatar os que estavam sob a lei, a fim de que recebêssemos a adoção de filhos. E, porque vós sois filhos, enviou Deus ao nosso coração o Espírito de seu Filho, que clama: Aba, Pai! De sorte que já não és escravo, porém filho; e, sendo filho, também herdeiro por Deus (ARA - Gl 4.4-7). Vede que grande amor nos tem concedido o Pai, a ponto de sermos chamados filhos de Deus; e, de fato, somos filhos de Deus. Por essa razão, o mundo não nos conhece, porquanto não o conheceu a ele mesmo. Amados, agora, somos filhos de Deus, e ainda não se manifestou o que haveremos de ser. Sabemos que, quando ele se manifestar, seremos semelhantes a ele, porque haveremos de vê-lo como ele é (ARA - 1 Jo 3.1-2). Vemos um pouco mais nitidamente a grandiosidade dessa bênção de Deus sobre nós, quando ouvimos o Senhor Jesus nos chamar de irmãos: “[...] é que ele não se envergonha de lhes chamar irmãos, dizendo: A meus irmãos declararei o teu nome, cantar-te-ei louvores no meio da congregação” (ARA - Hb 2.11-12). Nesse sentido, Jesus é o primogênito entre muitos irmãos (Rm 8.29) no contexto da nova humanidade (família de Deus) que ele inaugurou (resgatou). Obviamente sempre haverá a distinção entre Jesus, Senhor e Filho de Deus eternamente gerado pelo Pai, e nós, criaturas tornadas filhos de Deus em Cristo. Por isso, devemos demonstrar por Jesus ao mesmo tempo a intimidade diante de um amigo (Jo 15.15) e a reverência diante do Senhor e Rei (Ap 19.16). O próprio Jesus esclarece a nossa filiação e a nossa distinção com relação a ele, quando diz a Maria Madalena, após a ressurreição: “Subo para meu Pai e vosso Pai, para meu Deus e vosso Deus” (Jo 20.17). Mas é ainda mais constrangedor (2 Co 5.14) quando percebemos que o Pai nos ama na mesma medida que ama Jesus Cristo: “Que eles sejam levados37 ARA: Versão Almeida Revista e Atualizada. 38 GRUDEM, Wayne. Teologia sistemática. São Paulo: Vida Nova, 2009. P. 615. 21 à plena unidade, para que o mundo saiba que tu me enviaste, e os amaste como igualmente me amaste” (Jo 17.23). Como visto nas referências bíblicas citadas neste tópico, muitos são os privilégios advindos de nossa adoção. Nós nos tornamos coerdeiros com Cristo, partilhamos com Jesus tanto da sua glória quanto dos seus sofrimentos, recebemos a direção e o testemunho interno do Espírito Santo que nos afirma como filhos e filhas de Deus (Aba, Pai!), deixamos completamente a escravidão típica da velha vida, temos plena esperança de nossa realidade futura com o Pai. Entretanto, gostaria de destacar o privilégio da comunhão, que nos é outorgado com a adoção. Por um lado, temos comunhão com Deus na qualidade de Pai bom e amoroso (Mt 6.9; 7.11). Essa comunhão na casa do Pai nos traz descanso para a alma e nos afirma como filhas e filhos amados, restitui nossa honra, revela nossa verdadeira identidade, satisfaz necessidades profundas de nosso ser. Por outro lado, a adoção também nos leva à comunhão com a comunidade cristã, na qualidade de irmãs e irmãos em Cristo, como membros de uma família. A visão da igreja sob esse aspecto (igreja como família de Deus) traz muita luz sobre nossos relacionamentos na comunidade cristã: não de competição, acusações, condenação e cobranças, mas de cooperação, encorajamento, correção e exortação em amor; não de atitudes defensivas e desconfiança, mas de servidão e transparência; de tal forma que quando um sofre todos sofrem e quando um se alegra todos se alegram com ele (1 Co 12.12-27). Assim imitaremos e honraremos nosso Pai celestial (Ef 5.1; Mt 5.16). (7) Santificação. A Bíblia menciona claramente a santidade como um dos atributos de Deus. E o Deus santo nos chama à santidade, tanto no Antigo quanto no Novo Testamento: “Vocês serão santos para mim, porque eu, o Senhor, sou santo, e os separei dentre os povos para serem meus” (Lv 20.26) e “Mas, assim como é santo aquele que os chamou, sejam santos vocês também em tudo o que fizerem, pois está escrito: ‘Sejam santos, porque eu sou santo’" (1 Pe 1.15-16). Adotamos aqui o significado de santo como “separado”, a partir do entendimento de que a palavra hebraica (qadosh) quer dizer “cortar, dividir, separar”39. Podemos compreender a santidade de Deus em dois sentidos: primeiro, o Senhor é transcendente (Deus é eterno e não criado, sendo distinto – separado – de toda sua criação); segundo, o Senhor apresenta pureza moral perfeita (Deus está separado do pecado: “Deus não pode ser tentado pelo mal, e a ninguém tenta” – Tg 1.13). Ao nos chamar para sermos santos, Deus deseja que sejamos moralmente puros e que nos relacionemos em íntima comunhão com o Eterno. A partir disso, podemos entender santificação como a “obra progressiva da parte de Deus e do homem que nos torna cada vez mais livres do pecado e semelhantes a Cristo em nossa vida presente”40. Assim, observamos que santificação é um processo que, a partir da regeneração (nascer de novo), continua por toda a jornada terrena, sem alcançar a perfeição nesta vida. Esse processo abrange corpo e alma (2 Co 7.1; 1 Ts 5.23) e se completará em nossa alma, com a morte física (Hb 12.23), e em nosso corpo, quando o Senhor Jesus retornar (Fl 3.21; 1 Co 15.23,49). 39 COTTRELL, Jack. The faith once for all. College Press, 2011. P. 338. 40 GRUDEM, Wayne. Teologia sistemática. São Paulo: Vida Nova, 2009. P. 622. 22 Por um lado, o Pai opera em nós o querer da sua vontade e nos concede o poder para obedecermos (Fl 2.13), além de nos disciplinar como seus filhos amados (Hb 12.5-11). Em Cristo, Deus conquistou para nós o caminho da santificação (1 Co 1.30-31) e tornou-se em tudo o exemplo a ser seguido por nós (1 Jo 2.6). Mas é o Espírito de Cristo, o Espírito Santo de Deus que habita no cristão, que age em nosso interior para nos santificar e nos transformar à semelhança de Jesus. E o Espírito usa a Palavra em sua obra santificadora para nos instruir e corrigir em justiça (2 Ts 2.13; 2 Tm 3.16). Wayne Grudem descreve a ação santificadora do Espírito em nós da seguinte forma: Pedro fala da santificação do Espírito (1 Pe 1.2), assim como também Paulo (2 Ts 2.13). É o Espírito Santo que produz em nós o ‘fruto do Espírito’ (Gl 5.22), os traços de caráter que geram santificação cada vez maior. Se crescemos na santificação, andamos ‘no Espírito’ e somos ‘guiados pelo Espírito’ (Gl 5.16-18; Rm 8.14), isto é, somos cada vez mais suscetíveis aos desejos e às orientações do Espírito Santo em nossa vida e caráter. O Espírito Santo é o Espírito da santidade e produz santidade dentro de nós41. Por outro lado, há o papel do ser humano na santificação, no desenvolvimento da salvação (colocar em ação a salvação - Fl 2.12). Grudem ressalta duas vertentes dessa ação humana e pondera algo importante sobre uma tendência de nossa cultura eclesiástica contemporânea, no trecho a seguir: O papel que desempenhamos na santificação é tanto passivo, pelo qual dependemos de que Deus nos santifique, como ativo, pelo qual nos esforçamos para obedecer a Deus e dar os passos que aumentarão a nossa santificação. [...] Infelizmente, hoje esse papel ‘passivo’ na santificação, a ideia de oferecer-se a Deus e de confiar que ele efetue em nós ‘tanto o querer como o realizar, segundo a sua boa vontade’ (Fl 2.13), é às vezes tão fortemente enfatizado que é a única coisa que as pessoas conhecem sobre o caminho da santificação. Às vezes, a expressão popular ‘entregar nas mãos de Deus’ é usada como um resumo de como viver a vida cristã. Mas isso é uma trágica distorção da doutrina da santificação, porque fala apenas de metade do que devemos desempenhar e, por isso, leva os cristãos a se tornarem indolentes e a negligenciar o papel ativo que as Escrituras ordenam que desempenhem na sua própria santificação42. A Bíblia trata desse papel passivo do ser humano na santificação, por exemplo, quando fala: Ofereçam-se a Deus como quem voltou da morte para a vida; e ofereçam os membros dos seus corpos a ele, como instrumentos de justiça. [...] ofereçam-nos agora em escravidão à justiça que leva à santidade. [...] rogo-lhes pelas misericórdias de Deus que se ofereçam em sacrifício vivo, santo e agradável a Deus (Rm 6.13,19; 12.1). Em outras passagens bíblicas, tanto Paulo quanto Pedro tratam também do papel ativo humano na santificação: 41 GRUDEM, Wayne. Teologia sistemática. São Paulo: Vida Nova, 2009. P. 629. 42 GRUDEM, Wayne. Teologia sistemática. São Paulo: Vida Nova, 2009. P. 629. 23 Fujam da imoralidade sexual. [...] purifiquemo-nos de tudo o que contamina o corpo e o espírito, aperfeiçoando a santidade no temor de Deus. [...] empenhem- se para acrescentar à sua fé a virtude; à virtude o conhecimento [...] empenhem- se ainda mais para consolidar o chamado e a eleição de vocês [...] empenhem- se para serem encontrados por ele em paz, imaculados e inculpáveis (1 Co 6.18; 2 Co 7.1; 2 Pe 1.5,10; 3.14). Nesse sentido, podemos também nos referir à santificação como um processo de conversão contínua, no qual a cada dia nos voltamos para Deus, rendendo-lhe glórias e graças, buscando e nos submetendo à sua vontade, em jubilosa comunhão de paz e descanso. Como o Senhor Jesus nos chama ainda hoje: “Se alguém quiser acompanhar-me, negue-se a si mesmo, tome diariamente a sua cruz e siga-me” [...] "Venham a mim, todos os que estão cansados e sobrecarregados, e eu lhes darei descanso. Tomem sobre vocês o meu jugo e aprendam de mim, pois sou manso e humilde de coração, e vocês encontrarão descanso para as suas almas” (Lc 9.23; Mt 11.28-29). Somente negando a nós mesmos, conseguimos nos livrar do egoísmoe da pequenez de nossas próprias ideias e projetos; somente morrendo para nossa vida humana natural de pecado, abraçamos a novidade libertadora e transcendente que Deus nos oferece; e somente seguindo a Cristo, deixamos de seguir nossos caminhos tortuosos de tropeços e trilhamos pelo reto caminho da justiça de Deus. A força e a providência vêm de Deus, a decisão e o esforço para a santificação vêm do ser humano. Nesse contexto, Deus nos abençoa com inúmeros meios de graça, a exemplo das disciplinas espirituais, da celebração da ceia, da comunhão na comunidade cristã e do discipulado. Grudem trata desses aspectos e comenta sobre a importância da vida comunitária no processo de santificação, mencionando o seguinte: O Novo testamento não sugere quaisquer atalhos pelos quais possamos crescer na santificação, mas simplesmente nos encoraja repetidamente a dedicar-nos à antiga e consagrada fórmula de leitura da Bíblia e meditação (Sl 1.2; Mt 4.4; Jo 17.17), oração (Ef 6.18; Fl4.6); adoração (Ef 5.18-20), testemunho (Mt 28.18-20), comunhão cristã (Hb 10.24-25) e autodisciplina ou domínio próprio (Pv 23.12; Gl 5.23; Tt 1.8). [...] A santificação é comumente um processo corporativo no Novo Testamento. É algo que ocorre em comunidade. Somos admoestados: ‘E consideremo-nos uns aos outros para incentivar-nos ao amor e às boas obras. Não deixemos de reunir-nos como igreja, segundo o costume de alguns, mas encorajemo-nos uns aos outros, ainda mais quando vocês veem que se aproxima o Dia’ (Hb 10.24-25). Juntos, os cristãos são ‘edificados casa espiritual’ para serem ‘sacerdócio santo’ (1 Pe 2.5); juntos são uma ‘nação santa’ (1 Pe 2.9); juntos se consolam uns aos outros e edificam-se reciprocamente (1 Ts 5.11). Quando Paulo diz ‘vivam de maneira digna da vocação que receberam (Ef 4.1), está dizendo que se deve viver de modo especial em comunidade – ‘completamente humildes e dóceis, e sejam pacientes, suportando uns aos outros com amor. Façam todo o esforço para conservar a unidade do Espírito pelo vínculo da paz’ (Ef 4.2-3). [...] É interessante notar que o fruto do Espírito inclui muitas coisas que edificam a comunidade, enquanto as obras da carne destroem a comunidade (Gl 5.19-23)43. Por fim, importa destacar a verdadeira motivação do discípulo de Jesus para buscar a santificação de todo o coração. Obrigação é a razão pela qual devemos obedecer, mas 43 GRUDEM, Wayne. Teologia sistemática. São Paulo: Vida Nova, 2009. P. 630-631. 24 motivação é a razão pela qual realmente obedecemos44. Jack Cottrell ressalta esse fator primordial que deve transbordar dos nossos corações ao longo da caminhada cristã: O motivo principal é simplesmente amor, amor grato [gratidão]. Amor e medo estão em extremos opostos do espectro de motivos: ‘Não há medo no amor; mas o amor perfeito lança fora o medo’ (1 Jo 4.18). Esse amor é aceso e nutrido por nossa gratidão pelo sacrifício amoroso de Cristo em nosso favor (1 Jo 4.19). Esse amor é movido a fazer tudo o que o Amado exigir: ‘Se me amas guardareis os meus mandamentos’ (Jo 14.15). A fé salvadora opera por meio do amor (Gl 5.6); seu fruto é um trabalho de amor (1 Ts 1.3). Obedecemos aos comandos do Criador não para sermos salvos, mas porque somos salvos (Ef 2.8-10). Boas obras são o resultado, não a causa de nossa salvação. Deus não nos salva porque somos bons; somos bons porque Deus está nos salvando. Não precisamos de motivo maior para a santificação45. Até aqui vimos aspectos importantes da salvação e como Deus aplica seu plano redentor em nossas vidas. Mas como tudo começou? Onde se originou nossa salvação? (8) Eleição e predestinação. Nossa salvação começou no coração do Deus onisciente, na eternidade, antes da criação dos céus e da terra. Assim, podemos enxergar nossa salvação como um processo que se desenvolve de eternidade a eternidade, da eleição até a glorificação eterna em Cristo. Neste tópico trataremos sobre eleição e no próximo abordaremos a glorificação. Então: que eleição é essa? 8.1 Conceitos primários. Conforme Wayne Grudem46, eleição é a decisão de Deus de nos escolher para sermos salvos desde antes da fundação do mundo. Assim, eleição é a escolha de Deus daqueles que serão salvos. A morte de Cristo na cruz possibilitou a aplicação dessa eleição em nós, para a nossa efetiva salvação. O conceito de eleição está intimamente associado a outro importante conceito bíblico: predestinação. O termo predestinação, de forma geral, refere-se à decisão anterior de Deus de realizar um determinado ato, cumprir certo propósito ou fazer alguma coisa acontecer47. Essa predeterminação de Deus, por sua vez, relaciona-se à sua presciência, pois, sendo onisciente48 o Senhor eternamente conhece todos aqueles que foram, são ou serão salvos: “Pois aqueles que de antemão conheceu, também os predestinou” (Rm 8.29); “[...] porque desde o princípio Deus os escolheu para serem salvos mediante a obra santificadora do Espírito e a fé na verdade” (2 Ts 2:13); ou, nas palavras de Pedro: “escolhidos de acordo com o pré-conhecimento de Deus Pai, pela obra santificadora do Espírito, para a obediência a Jesus Cristo e a aspersão do seu sangue” (1 Pe 1.2). Ou seja, de acordo com as Escrituras, o Deus Eterno e onisciente sempre conheceu aqueles que o amariam e creriam nele, e a estes predestinou para salvação eterna, 44 COTTRELL, Jack. The faith once for all. College Press, 2011. P. 345. 45 COTTRELL, Jack. The faith once for all. College Press, 2011. P. 345. Tradução livre e destaques acrescentados. 46 GRUDEM, Wayne. Teologia sistemática. São Paulo: Vida Nova, 2009. P. 559. 47 COTTRELL, Jack. The faith once for all. College Press, 2011. P. 388. 48 Onisciência é o atributo de Deus que aponta para seu infinito (total e perfeito) conhecimento. O Deus santo e infinito não está limitado nem mesmo pelo tempo, que ele criou: “pois sua plena consciência transcende o momento agora e abraça a totalidade da história – passado, presente e futuro – em um único ato de conhecimento”. (COTTRELL, Jack. The faith once for all. College Press, 2011. P. 86). 25 providenciada por meio de Cristo. Com isso, vemos que as doutrinas da eleição e da predestinação, com referência à salvação, são essencialmente bíblicas e, quando bem compreendidas, demonstram a glória de Deus e fortalecem a fé cristã no íntimo do coração. O texto mencionado anteriormente, de Rm 8.28-29, traz elementos importantes que nos ajudam no entendimento dessa questão: Sabemos que Deus age em todas as coisas para o bem daqueles que o amam, dos que foram chamados de acordo com o seu propósito (v. 28). Pois aqueles que de antemão conheceu, também os predestinou para serem conformes à imagem de seu Filho, a fim de que ele seja o primogênito entre muitos irmãos. (v. 29). Nesses versículos, verificamos que aqueles que Deus de antemão conheceu (precognição) e predestinou para a salvação (v. 29) foram aqueles que Deus antecipadamente soube que em algum momento da vida o amariam e continuariam amando até o fim (v. 28). Foram esses que o Senhor chamou de acordo com seu propósito para serem à imagem de Jesus. Como Paulo diz em 1 Co. 8.3: “Mas quem ama a Deus, este é conhecido por Deus”. Isso é fonte de grande júbilo e de segurança, pois sabemos que amamos a Deus e que Deus nos salvou, concedeu-nos a vida eterna em Cristo, e que “ninguém poderá nos arrancar das mãos do nosso Senhor” (Jo 10.28- 29). Sobre essa segurança da salvação que Deus nos concede, Jack Cottrell comenta o seguinte: [...] tendo sabido desde a eternidade que eles o amariam, ele já os predestinou para este estado de glória eterna! Assim podemos ter certeza de que as provações temporárias desta vida não são capazes de anular o que próprio Deus Todo-Poderoso já predestinou que ocorrerá!
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