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Comunidade, cultura e identidade surda Apresentação A Língua Brasileira de Sinais ou LIBRAS é um idioma gesto-visual da comunidade surda, que faz uso das mãos, do corpo e das expressões faciais para produzir a comunicação e a visão como forma de perceber o que está sendo sinalizado dentro de um determinado espaço. Algumas pessoas acreditam que a língua de sinais são apenas gestos ou mímicas que copiam as palavras e expressões da língua oral-auditiva (português). No entanto, como qualquer outro idioma, ela possui regras e uma estrutura de sentenças gramaticalmente peculiares e uma cultura e identidades próprias que moldam a língua com o passar do tempo. Contudo, apesar das diferenças apresentadas, ela é totalmente capaz de expressar ideias complexas e abstratas segundo suas próprias regras, assim como qualquer outro idioma, o que legitima seu status como língua e não como linguagem. Nesta Unidade de Aprendizagem, você verá sobre comunidade surda, cultura surda e as diferentes identidades entre os falantes da língua. Bons estudos. Ao final desta Unidade de Aprendizagem, você deve apresentar os seguintes aprendizados: Perceber a importância da cultura surda. • Identificar o processo de construção da identidade surda. • Comparar as diferenças entre a comunidade surda e a ouvinte.• Desafio Comunidade, cultura e identidade surda são três elementos que geram inúmeros questionamentos para aqueles que não frequentam a comunidade surda, que não entendem sobre a cultura dela nem sobre a identidade que os falantes da língua de sinais assumem. Você é irmão de um surdo que participa da comunidade e da cultura surda e é fluente em língua de sinais, e, certo dia, uma pessoa de fora da comunidade e da cultura surda, isto é, que não saiba nada sobre língua de sinais, lhe questiona o seguinte: por que o seu irmão não foi oralizado e por que ele não usa aparelho auditivo ou implante coclear? Esses recursos não são importantes para ele sobreviver em sociedade? Responda a esses questionamentos em, no mínimo, 15 linhas, explicando, ao mesmo tempo, sobre o valor e a importância da Comunidade, da Cultura e da Identidade Surda para os sujeitos surdos. Infográfico É importante respeitar as diferenças e em não impor a cultura ouvinte em detrimento da cultura surda. A comunidade surda existe e a cada dia fica mais forte, o que não significa que a cultura ouvinte deixará de existir, mas que a comunidade surda tem direito de espaço em nossa sociedade, o qual foi conquistado com muita luta e sofrimento. Forçar uma criança a oralizar, a usar aparelho auditivo ou a ser implantado é inicialmente errado, devendo o próprio sujeito surdo decidir se prefere seguir pelo caminho ouvinte ou se acha melhor seguir pelo caminho surdo, assumindo sua identidade como sujeito surdo, integrando a comunidade surda e sendo atuante para perpetuar a cultura surda por outras gerações. Este Infográfico mostra as definições e os conceitos sobre a comunidade, a cultura e a identidade surda de forma clara e sucinta. Conteúdo do livro Anular o passado imerso na obrigação de serem ouvintes, e requerer um novo presente, tem se mostrado como um artefato cultural para os surdos. Diante disto, surgem novos feitos e novas interpretações no cotidiano que reforçam a convicção e o reconhecimento dos sujeitos sobre comunidades, culturas e identidades surdas. Neste sentido, novos caminhos merecem ser trazidos à tona, com lutas de significação quais pela busca por educação bilíngue, por políticas para a língua de sinais no Brasil, pela abertura das portas das universidades, por posições de igualdade, por ter intérpretes de língua de sinais e por serem válidos os direitos do povo surdo. Cultura são as experiências, as vivências e uma identidade, que é constituída pela forma como as pessoas se relacionam, se comunicam e se transformam. A identidade sociocultural é o resultado da intersecção entre a história da pessoa, do seu contexto histórico, cultural e social e de seus projetos de vida. Uma sociedade se compõe de comunidades. No capítulo Comunidade, cultura e identidade surda, base teórica desta Unidade de Aprendizagem, serão destacados o conceito e a importância da cultura surda como um modo de vida e conhecimentos acerca da identidade surda, a qual destaca a inserção plena dos sujeitos surdos às comunidades surdas. Boa leitura. LIBRAS OBJETIVOS DE APRENDIZAGEM > Perceber a importância da cultura surda. > Identificar o processo de construção da identidade surda. > Comparar as diferenças entre a comunidade surda e a ouvinte. Introdução O tema deste capítulo tem como base, talvez de forma implícita, a interação de sujeitos por meio da comunicação humana. De forma mais objetiva, trata- -se da comunicação especificamente de um grupo mais restrito de sujeitos (os surdos), apenas em termos de números, que se comunica de forma paralela e diferente da usada por um grupo dominante (os ouvintes). A comunicação é inerente à condição humana. É a comunicação entre os indivíduos que permite a criação de uma sociedade. Sem comunicação, não há transmissão de conhecimento ou partilha de emoções. Sem ela, há ape- nas indivíduos isolados, que vivem unicamente dos seus instintos ou das suas experiências individuais. Na comunicação, fazem parte da linguagem os gestos, os sons, as expressões faciais e corporais, identificados e utilizados para manifestar desejos, necessidades, opiniões e posicionamentos. No ser humano, o desenvolvimento da linguagem permitiu-lhe expressar as suas ideias e desenvolvê-las com as ideias dos outros. A partilha de informação permitiu-lhe obter conhecimento e criar cultura. Entretanto, a comunicação e a linguagem não se restringem ao ouvir e falar, nem tampouco a formas universais ou a uma Comunidade, cultura e identidade surda Claudio Luciano Dusik mesma língua para todo o planeta. Ao contrário, as formas de comunicação, os tipos de língua e de linguagem são diversos, como é a diversidade humana. A humanidade não é uniforme nem homogênea. Embora a consciência de humanidade global se amplie, com ela também se amplia a consciência da diversidade como característica natural, a consciência de que o outro é implacavelmente diferente, pois a diferença é o que existe, a igualdade é inventada e a valorização das diferenças impulsiona o progresso humano. Assim, em vez de se definirem comunidade, cultura e identidade, é o seu plural que se define na espécie humana: comunidades, culturas e identidades. Como grupo humano, o grupo de pessoas surdas também se caracteriza com suas particularidades de comunidade, cultura e identidade. E cabe, ainda, esclarecer a distinção entre surdos e pessoas com deficiência auditiva. O que difere surdez de deficiência auditiva é a profundidade da perda da audição e o uso da linguagem surda. As pessoas que têm perda profunda e não escutam nada são surdas. Já as que sofreram uma perda leve ou moderada e têm parte da audição são consideradas com deficiência auditiva. Aqui, portanto, vamos nos limitar à abordagem sobre surdos. Neste capítulo, vamos destacar, inicialmente, o conceito e a importância da cultura surda como um modo de vida dos surdos. Ou seja, uma cultura própria, que acolhe a participação social dos surdos entre eles e deles com os ouvintes. Na sequência, vamos refletir sobre a identidade surda, que destaca a inserção plena dos sujeitos surdos nas comunidades surdas. Ao final do capítulo, serão abordadas as características da comunidade surda em relação à comunidade ouvinte. A cultura e a cultura surda Os elementos que constituem o conceito de cultura são tão diversos que dificultam uma definição única para ele, mas, em termos gerais, não é razoável falar de cultura sem falar de troca, aspecto que caracteriza as culturas ao redor do mundo. Cultura são as experiências, as vivências e uma identidade, que é constituída pela forma como as pessoas se relacionam, se comunicam e se transformam. ConformeLaraia (2016), cultura é o conjunto de artefa- tos complexos que inclui o conhecimento, as crenças, a arte, a moral, a lei, os costumes, a língua e todos os outros hábitos e capacidades adquiridos pelo ser humano como membro de um determinado grupo social. Ela se forma por uma rede de compartilhamento de símbolos, significados e valores pelos membros de um grupo ou sociedade. A cultura é também um mecanismo cumu- lativo, porque as modificações trazidas por uma geração passam à geração Comunidade, cultura e identidade surda2 seguinte. Ela perde e incorpora outros aspectos, numa forma de melhorar a vivência das novas gerações e acrescentar novos elementos. Sendo assim, a cultura está sempre em transformação, motivada, em grande parte dos casos, pela troca entre diferentes povos e gerações. Na constituição da cultura, a privação do sentido da audição de nenhuma forma inviabiliza a interação linguística, a participação social ou a produção cultural. Os surdos, como grupo social, têm uma cultura própria, que acolhe sua participação social como um modo de vida entre eles e deles com os ouvintes. A cultura surda, suas manifestações e sua ampla propagação buscam ampliar os direitos de inclusão dos surdos na sociedade geral (IFPB, 2018a, 2018b). A cultura surda engloba possibilidades e elementos próprios da vida dos sujeitos que se reconhecem como surdos, abrangendo não apenas aspectos mais corriqueiros da vida de cada um, mas também o grupo social que cons- tituem. A privação do sentido da audição abriu possibilidades alternativas para a sua atuação no mundo, na interação linguística, na participação social e na produção cultural (IFPB, 2018a, 2018b). Vygotsky (1997), um dos principais estudiosos do pensamento e da lingua- gem como funções psicológicas superiores, diz que os princípios do desen- volvimento são os mesmos para todos; contudo, o que define o destino da pessoa não é a deficiência em si, mas suas consequências sociais, já que uma pessoa com necessidades especiais não é uma pessoa menos desenvolvida, mas uma pessoa que se desenvolve de outra maneira. Portanto, muito mais do que observar as limitações, devem-se obser- var questões que perpassam o olhar sobre a pessoa surda. Assim, a busca de alternativas para atender a essas expectativas sociais é, muitas vezes, encarada como um fator motivador para o sujeito com necessidades especiais. Isso é o que o autor chama “compensação”, ou seja, o que era um “defeito” de ordem orgânica passa a ser um estímulo na busca pela superação. O sujeito procura formas diferentes ou outros meios para realizar atividades da vida cotidiana (VYGOTSKY, 1997). Nesse sentido, Vygotsky e Luria (1993, p. 226) pontuam que: [...] não podemos olhar um defeito como algo estático e permanente. Ele põe em ação e organiza grande número de dispositivos que não só podem enfraquecer o impacto do defeito, como por vezes até mesmo compensá-lo. Um defeito pode funcionar como poderoso estímulo no sentido da reorganização cultural da perso- nalidade, [...] só precisa saber como descobrir as possibilidades de compensação e como fazer uso delas. Comunidade, cultura e identidade surda 3 Assim, os recursos de comunicação de cada pessoa ou grupo são cons- truídos de forma totalmente personalizada e levam em consideração várias características que atendem às suas necessidades. Ao se aproximar da reali- dade surda, pela vivência e pelo estudo, descobre-se que ela abrange um rico, complexo e instigante conjunto de elementos culturais caracterizados pelas formas alternativas de produção e interação dessas pessoas, enriquecidas nas comunidades surdas e, infelizmente, ainda pouco conhecidas entre os ouvintes. Witchs e Lopes (2018) e IFPB (2018a, 2018b) descrevem alguns elemen- tos que fazem parte da cultura surda, chamados de “marcadores culturais”. A seguir, apresentamos cada um deles. � Visualidade: a vivência surda é visual. A visão é o principal sentido de contato com o mundo, de apreensão e significação das informações com variáveis de movimento, de espaço e de comunicação de base visual. � O olhar, não apenas como um sentido: o olhar é um marcador que permite a contemplação de um modo de vida de diferentes formas, o cuidado de uns sobre os outros, o interesse pelas coisas particulares, o interpretar e ser de outra forma. � Linguístico: as línguas de sinais, de características visuoespaciais, são as línguas naturais para as pessoas surdas. A língua de sinais é tão complexa quanto qualquer outra. Não se trata de uma versão em sinais de uma língua oral, como o português, nem de simples gestos ou mímica, embora estes possam ser usados quando ainda não se sabe a língua de sinais, mas trata-se de um sistema complexo, com regras próprias. Na necessidade de tradução entre a língua oral e a de sinais, isso é realizado por um intérprete. � Família: ligada ao nascimento de filhos surdos em lares ouvintes e de filhos ouvintes em lares surdos, ou mesmo de filhos surdos em lares surdos. Nesse âmbito, muitas questões ligadas à aceitação, à super- proteção, à concepção sobre a surdez são discutidas. Inicialmente, a linguagem oral não é a mais importante na comunicação de qualquer criança com sua família; o contato depende mais da sensibilidade, que se traduz em um toque, uma expressão de felicidade ou de tristeza. No caso da deficiência auditiva ou da surdez, os pais não devem se desesperar, mas, sim, aprender como participar da educação de sua criança. Comunidade, cultura e identidade surda4 � Comunidade surda: composta por surdos e por ouvintes militantes da causa, como professores, familiares, intérpretes, amigos, entre outros. � Imagem de luta: travada constantemente, marca a diferença surda, alimentada por muitos surdos porque, com ela, conseguem estabelecer a tensão que possibilitará a demarcação das diferenças e de uma iden- tidade surda. Configura-se como uma bandeira, uma causa pela qual os surdos, na condição de grupo, lutam para conquistar um lugar social. � Associações e organizações: centros cuja importância se manifesta, por exemplo, na possibilidade de o surdo interagir com outras pessoas surdas, o que favorece a construção da sua identidade, a possibilidade de aprender a língua de sinais, as lutas sociais do segmento por vezes abraçadas nessas organizações, etc. � Identidade surda: corresponde a um sentir-se surdo em relação ao outro ouvinte e em normalidade na condição de surdo em relação ao outro surdo. � Literatura surda: arte que abarca produções literárias em língua de sinais e produzidas por pessoas surdas. � Artes visuais: englobam o teatro surdo e as artes plásticas. � Criações e transformações materiais: exemplificadas pelas soluções alternativas para as pessoas surdas, como campainhas luminosas; sistemas de alerta táctil-visual; telefones adaptados, como os tele- communications device for the deaf (TDDs) e os telefones com teclado teletipo (TTY); dispositivos de vibração (relógios, celulares, etc.) que substituem o despertador; celulares com mensagens escritas e chama- das por vibração; softwares de reconhecimento de voz e de conversão de texto em voz; livros, textos e dicionários em Libras; e sistema de legendas (closed caption/subtitles). Na condição de grupo social, como são reconhecidos hoje, os surdos podem ser considerados parte dos movimentos de tantos outros grupos humanos que buscam a inversão do estigma de uma identidade que foi historicamente reduzida a pessoas incapazes. Aristóteles, por exemplo, na Idade Antiga, proferia que quem não podia ouvir não tinha linguagem nem pensamento e que, de todos os sentidos, a audição era o que contribuía para a inteligência e o conhecimento; portanto, os nascidos surdos eram insensatos e natural- mente incapazes de razão. Entendimentos como esse mostram a dimensão da representação que a sociedade tem sobre determinados grupos e à qual a pessoa com deficiência esteve sujeita em meio aos vários aspectos doentendimento social diante do seu “estar no mundo”, havendo períodos que Comunidade, cultura e identidade surda 5 vão da perplexidade e do misticismo até os encaminhamentos meramente assistencialistas. Para que o passado não perdure no presente, é necessário compreender que o conceito de inclusão que se busca hoje é vinculado ao seu oposto, ou seja, ao conceito de exclusão que se busca com muito esforço combater. Torna-se possível entender que a história, que deveria ser passado, ainda se faz presente nas representações de mundo de hoje e no modo como os seres humanos se relacionam para produzir e reproduzir a vida. Sendo assim, a compreensão das políticas de inclusão social surge em oposição ao conceito de exclusão (CARMO, 1991; IFPB, 2021; STROBEL, 2009; WITCHS; LOPES, 2018). Aspectos históricos sobre a surdez De acordo com o pensamento de Aristóteles, no século XVI as famílias nobres de surdos começaram a ter iniciativas para ensiná-los a falar e a escrever, pois tinham preocupações relacionadas com a herança dos títulos e dos bens. Alguns educadores famosos nesse período foram Ponce de León e Juan Pablo Bonnet. No século XVIII, a educação para surdos começa a se caracterizar por duas vertentes educacionais completamente antagônicas: o oralismo puro, filosofia que valoriza apenas a oralização, difundida principalmente por Samuel Heinicke e Alexander Graham Bell; e a comunicação por sinais, que foi adotada na educação de surdos por Abade Charles Michael de L’Epée. Assim, diante das reivindicações em relação ao uso da língua de sinais e o desblo- queio dessa língua no campo educacional como condições de possibilidade, os surdos passaram a destacar suas diferenças culturais e linguísticas para tomar posição entre outras identidades (IFPB, 2021; WITCHS; LOPES, 2018). Abade Charles Michael de L’Epée (1712–1789) aprendeu a comunicação por sinais que os surdos pobres de Paris utilizavam para se comunicar uns com os outros. Então, L’Epée adotou a comunicação por sinais para a educação e fundou em sua casa aquela que viria a se tornar a primeira escola pública para surdos. O sucesso na instrução dos surdos a partir daí foi extraordinário, e o método se expandiu para fora da França. Os surdos puderam ter instrução, revelar seus talentos e exercer diferentes profissões. Foi o período áureo na história do povo surdo, identificado como o período de “revelação cultural”. Os surdos, antes não vistos como pessoas, privados de seus direitos, andarilhos, passaram a ter condições reais de educação, de acesso ao conhecimento, de desenvolver seus talentos e ocupar posições socialmente valorizadas (IFPB, 2021). Comunidade, cultura e identidade surda6 Apesar da crescente revelação de uma cultura surda, surgiu um longo período de isolamento cultural dos surdos, cujos resquícios históricos per- duram até hoje no entendimento capacitista e excludente em alguns âmbitos educacionais. Por iniciativa e influência do professor oralista Graham Bell, crescia o movimento que afirmava que os surdos deveriam ser instruídos apenas por meio do oralismo puro. Então, em 1880 esse preceito foi mun- dialmente oficializado no Congresso Internacional de Educadores, em Milão, ordenando-se que, nas escolas para surdos, o uso de sinais fosse reprimido até mesmo com punições. Entretanto, isso não impediu os surdos de usar os sinais quando estavam fora dos olhares ouvintes, escondidos nos banheiros, às costas dos professores, nos dormitórios e até por debaixo das carteiras, e começou uma árdua jornada dos povos surdos de não permitir a extinção de sua cultura e suas línguas, havendo maior união das associações de surdos (IFPB, 2021; STROBEL, 2009). Até a primeira metade do século XX, não havia condições epistêmicas para dizer sobre uma cultura surda; tal noção não estava na ordem do discurso. Além disso, a língua de sinais — artefato primordial que dá sustento à noção dessa cultura — ainda não tinha legitimidade ou reconhecimento linguís- tico (WITCHS; LOPES, 2018). Porém, estudos foram mostrando que os sinais utilizados pelos surdos são na verdade uma língua, indo ao contraponto do entendimento do oralismo puro que imperava nas escolas para surdos. Foram surgindo, então, novas filosofias, como a comunicação total e o bilinguismo, descritos a seguir (IFPB, 2021). � Comunicação total: essa concepção nasceu nos Estados Unidos, nos anos 1960, e chegou ao Brasil nos anos 1980. Ela propõe o uso simultâneo de diversos recursos para a comunicação com os surdos, abrangendo a oralização, a sinalização e o uso de sinais para tentar uma corres- pondência com a língua oral. � Bilinguismo: essa concepção surgiu na Suécia, em 1970, e chegou ao Brasil em 1990. Nesse modelo, a língua de sinais e a língua oral são usadas em momentos distintos, e não há tentativa de fazer a língua de sinais corresponder à língua oral. A língua de instrução para as pessoas surdas é a língua de sinais, considerada sua língua materna; e a língua oral do país é ensinada na modalidade escrita, sendo a participação do intérprete muito importante. Comunidade, cultura e identidade surda 7 O mesmo Congresso Internacional de Educadores, que havia abolido o uso de língua de sinais como língua para instrução dos surdos, aprovou, cem anos depois, o bilinguismo como sua única forma de instrução. O Brasil tem duas línguas oficiais: a língua portuguesa e a Libras. A Lei nº 10.436, de 24 de abril de 2002, oficializa e reconhece a Libras como meio legal de comunicação (BRASIL, 2002). O Decreto nº 5.626, de 22 de dezembro de 2005, entre outras providências, regulamenta o ensino bilíngue e a formação de professores, de instrutores, de tradutores e de intérprete de Libras (BRASIL, 2005). Nesta seção, abordamos a cultura surda e a importância do uso de lín- gua de sinais. Considera-se importante, entretanto, destacar o cuidado em não reduzir a diferença cultural surda ao uso da língua de sinais, visto que, construindo cultura, as histórias apresentadas pelos surdos enfatizam e reforçam suas lutas pela legitimação e pelo reconhecimento da identidade e da cultura surda. Também é importante destacar a expressividade linguística e a diversidade de temas encontrados nessas produções de diferentes tipos de artefatos da cultura surda (literatura, teatro, vida social e esportiva, histórias, artes plásticas, musicalidade em sinais, movimentos políticos, associação de surdos, etc.), que possibilitam a promoção dessa cultura nas comunidades surdas e em ambientes escolares. Na próxima seção, serão enfatizados os elementos que compõem uma cultura e que são compartilhados com a so- ciedade, criando-se, assim, uma identidade cultural. Identidade sociocultural e a identidade surda A identidade social e cultural é uma percepção subjetiva que faz com que o sujeito se identifique com algum grupo social que tenha elementos e ca- racterísticas de seu interesse, querendo, assim, ser parte daquele contexto. As transformações sociais advindas da modernidade produzem profundos efeitos na maneira como o indivíduo entende a si mesmo e é entendido social- mente. Dessa forma, a identidade sociocultural é o resultado da intersecção entre a história da pessoa, o seu contexto histórico, cultural e social e os seus projetos de vida (CIAMPA, 1987; DUBAR, 1997; HALL, 2006). Comunidade, cultura e identidade surda8 Isso porque o homem só se torna humano com a presença do outro. Segundo a teoria sociointeracionista de Vygotsky (1991), o desenvolvimento humano só se constitui com o papel preponderante das relações sociais nesse processo, em que o social e o cultural constituem duas categorias fundamentais, uma vez que a existência social humana pressupõe a pas- sagem da ordem natural (homem biológico) para a ordem cultural (homem social). Dessa forma, a identidade para si não se separa da identidade para o outro, pois a primeira é correlata à segunda: reconhece-se pelo olhar do outro (DUBAR, 1997). O ser humano,tão logo nasce, vê-se envolvido em um mundo social. É justamente por encontrar-se nesse entorno humanizado e, portanto, cultural e histórico que o bebê humano pode sobreviver. Assim, todo tra- balho do desenvolvimento consiste em converter o sujeito biológico em sujeito humano, que aprende a se comunicar, que aprende a fazer escolhas, que aprende coisas concretas e abstratas, que aprende regras, que aprende a sentir, a querer e a planejar (VYGOTSKY, 1991). Dessa forma, é por meio do outro que o sujeito se reconhece. O que está no centro do processo de constituição identitária é, portanto, a identificação ou não identificação com as atribuições que são sempre do outro, visto que esse processo só é possível no âmbito da socialização. No mecanismo de comparação social, a pessoa faz comparação dela com outros indivíduos e de seu grupo com outros, fazendo com que se aproxime daqueles que tenham características que considera semelhantes às suas, agregando uma dimen- são motivacional, por se sentirem valorizadas, mantendo uma autoestima positiva. Portanto, a identidade é a articulação entre igualdade e diferença (CIAMPA, 1987). Quanto às identidades surdas, elas se referem aos modos de pessoas surdas compreenderem a surdez e a si próprias no contexto social, relacio- nando sua história e o contexto histórico da surdez, formulando concepções que impactam sua postura e seu comportamento. As pessoas surdas têm em comum muitas características, que vão além da especificidade biológica e abarcam experiências sociais, que marcam o processo de constituição identitária (IFPB, 2018a, 2018b). Comunidade, cultura e identidade surda 9 As experiências de vida narradas por surdos de todo o mundo apresentam características, com semelhanças e diferenças, em torno da percepção indi- vidual e coletiva sobre a surdez, e essas experiências são produzidas a partir da interação com o outro, o ouvinte. É preciso reconhecer que a experiência de ser surdo é diversa da experiência de ser ouvinte, e tais diferenças se concretizam das mais variadas formas e relações. A identificação pessoal é marcada pela vivência coletiva, entre o surdo e o ouvinte e entre o surdo e outro surdo (CEARÁ, 2013). A identidade surda é heterogênea, havendo desde os surdos que se apro- priam da cultura surda, valorizam e militam pelos direitos da sua coletividade específica, posicionando-se politicamente em favor dos direitos dos surdos, até os que, de maneira contrária, se comportam de forma a tentar se apropriar da cultura ouvinte e vivenciá-la no seu modo de participar do meio. Esse fato se refere ao próprio processo comum de formações identitárias que, para Dubar (1997), se constitui em um movimento de tensão permanente entre os atos de atribuição (que correspondem ao que os outros dizem ao sujeito) e os atos de pertença (em que o sujeito se identifica com as atribuições recebidas e adere às identidades atribuídas). Ao passo que a atribuição corresponde à identidade para o outro, a pertença indica a identidade para si, e o movimento de tensão se caracteriza justamente pela oposição entre o que esperam que o sujeito assuma e seja e o desejo do próprio sujeito em ser e assumir determinadas identidades. Hall (2006) diz que o sujeito pós-moderno se caracteriza pela mudança, pela diferença e pela inconstância, mantendo sua identidade aberta; e que se, de um lado, essa visão é incômoda pelo seu caráter de imprevisibilidade, de outro, é positiva por desestabilizar identidades do passado e abrir-se à possibilidade de desenvolvimento de novos sujeitos. A identificação vem do outro, mas pode ser recusada para se criar outra. De qualquer forma, a identificação utiliza categorias socialmente disponíveis (DUBAR, 1997). Desse modo, a construção da identidade da pessoa surda é influenciada por fatores diferentes, como o contexto familiar, a inclusão ou rejeição, os discursos sociais sobre surdez, o contato ou a falta dele com comunidades surdas, entre outros. Há pelo menos sete tipos de identidade manifestos por diferentes pessoas surdas. Esses tipos são apresentados na Figura 1. Comunidade, cultura e identidade surda10 Figura 1. Tipos de identidades surdas. Surda Híbrida Flutuante EmbaçadaDe transição Diáspora Intermediária Como mostra a Figura 1, os tipos de identidades surdas são as seguintes: surda, híbrida, flutuante, embaçada, de transição, diáspora e intermediária. A seguir, descrevemos cada uma dessas formações identitárias (CEARÁ, 2013; IFPB, 2018a, 2018b; PERLIN, 2011). � Surda, ou política: é percebida nos surdos que utilizam a comunicação visual como meio de expressão. Surgida dentro dos movimentos surdos, trata-se de uma identidade política que busca os direitos relativos ao povo surdo. � Híbrida: é encontrada nos sujeitos que nasceram ouvintes e com surdez adquirida. São sujeitos que aprenderam inicialmente a estar e participar do meio e construir o pensamento como ouvintes, utilizando também uma língua oral para se comunicar, e que passaram a estar imersas no contexto da surdez, como pessoas surdas. Tais pessoas têm a língua oral e também a comunicação visual como língua de expressão. Comunidade, cultura e identidade surda 11 � Flutuante: característica de pessoas que não foram inseridas em al- guma comunidade surda. Essas pessoas costumam ter dificuldades de se reconhecer/se aceitar como surdas e buscam sua referência na cultura ouvinte. � Embaçada, ou incompleta: são surdos que não aprenderam nem a língua portuguesa nem a Libras, o que torna a comunicação um obstáculo para eles — tanto com ouvintes quanto com surdos. Na falta do por- tuguês e da Libras, eles acabam se comunicando em mímicas, sendo as expressões que usam, por vezes, incompreensíveis. � De transição: é percebida nos surdos que estão em fase de transição para outra identidade, a identidade surda. Esses sujeitos nunca tiveram contato com outros surdos, convivendo somente com ouvintes, e, ao conhecer outros surdos, se reconhecem como tal. � Diáspora: é observada nos sujeitos surdos que têm sua identidade surda, mas que estão de passagem de um país para outro, de uma região para outra, de um estado para outro ou de um grupo surdo para outro, estabelecendo, assim, contato com surdos de outras origens e que se comunicam com uma língua de sinais que é distinta da sua. Dessa forma, tais sujeitos adquirem maior bagagem cultural para seu repertório. � Intermediária: são surdos oralizados, que falam e entendem bem a língua portuguesa e que podem pertencer tanto à comunidade ouvinte quanto à comunidade surda, pois também sabem sinalizar com a Libras. Diante dos elementos que constituem o conceito de cultura, que são tão diversos e fazem parte das formações identitárias, é importante lembrar que vários estereótipos historicamente traçados e distorcidos sobre os surdos po- dem dificultar o processo de aceitação da identidade surda e da representação da surdez. Esses estereótipos têm reforçado preconceitos e discriminações em torno da diferença cultural e linguística, e estão presentes de formas explícitas e implícitas. Observa-se que o coletivo de pessoas surdas, como é característico das coletividades humanas, é heterogêneo, sendo necessário compreender e respeitar essa diversidade, sem desrespeitar o direito de a pessoa assumir o posicionamento que considere melhor diante dos tipos de identidade manifestos por diferentes pessoas surdas. Entretanto, é de fundamental importância oportunizar, principalmente na infância da criança surda, o contato com outras pessoas surdas, o que permitirá que ela possa se apropriar de formas de vida e artefatos que facilitem a sua vida e a comuni- cação com os demais. Independentemente da identidade e da cultura com as Comunidade, cultura e identidade surda12 quais um surdo possa identificar-se, o senso de mudança para a construção de uma sociedade inclusiva, o respeito à diversidade humana e a empatia são fundamentais para impactarpositivamente a vida em comunidade. Nesta seção, descrevemos a identidade surda como modo de as pessoas compreenderem a surdez e a si próprias no contexto social. Na próxima seção, serão destacadas as características da comunidade surda em relação à comu- nidade ouvinte, com vistas à inserção plena dos sujeitos surdos na sociedade. A comunidade surda e a sociedade inclusiva A sociedade compõe um grupo amplo, e muitas vezes abstrato, de pessoas que compartilham culturas, sendo formada por uma teia de relações sociais. A comunidade, por sua vez, é um grupo limitado de pessoas que apresentam semelhanças, coexistem e se relacionam em prol de interesses e objetivos comuns. Uma sociedade se compõe de comunidades. No paradigma da sociedade inclusiva, os sujeitos em comunidade buscam sua socialização, que é a ação ou efeito de desenvolver, nos indivíduos de uma comunidade, o sentimento coletivo, o espírito de solidariedade social e de cooperação (HOUAISS, 2001). Objetivando a socialização, a comunidade surda, portanto, refere-se às pessoas surdas, aos familiares dos surdos, aos tradutores e intérpretes da Libras e às demais pessoas que trabalham ou socializam com pessoas surdas. O desconhecimento da maioria da popula- ção acerca de algumas particularidades relacionadas aos surdos, à surdez e à língua de sinais faz com que essa parcela minoritária da população seja, muitas vezes, excluída (IFPB, 2018a, 2018b). Dessa forma, a comunidade surda abrange todas as pessoas que de al- guma forma utilizam a comunicação visual como meio de expressão (língua de sinais), apresentam características culturais e formas de estar no mundo baseadas na visualidade e defendem e militam pelo direito de ser diferente e de vivenciar a cultura surda. Essas pessoas partilham sua concepção e suas experiências com outros surdos e participam de espaços de encontro entre pessoas surdas, como grupos e associações. Trata-se de um posicio- namento político ante a surdez, que vai muito além do encontro de pessoas com as mesmas características biológicas. Não há, na comunidade surda, uma concepção inferior de surdez ou de uma superioridade da perspectiva ouvinte, mas, sim, a busca de aceitação e valorização das diferenças e do que é pertinente à cultura surda (IFPB, 2018a, 2018b). Comunidade, cultura e identidade surda 13 Ser surdo ou ouvinte, ou ter diferentes tipos e graus de surdez não fazem com que os indivíduos se diferenciem na comunidade surda — eles se igualam como comunidade pela apreensão do mundo de forma visual e por comparti- lharem a língua de sinais. Conforme Strobel (2009), os sujeitos surdos não se diferenciam uns dos outros de acordo com o grau de surdez; o importante é o pertencimento ao grupo usando língua de sinais e cultura surda, que ajudam a definir suas identidades surdas. Cabe enfatizar, então, que a comunidade surda não se forma pela perspec- tiva clínica-terapêutica ou pela classificação médica das deficiências auditivas. Essa comunidade se forma pelas variáveis da dimensão social, tais como: [...] o tipo de experiência educativa dos sujeitos, a qualidade das interações comuni- cativas e sociais em que participam desde tenra idade, a natureza da representação social da surdez de uma determinada sociedade e a língua de sinais na família e na comunidade de ouvintes em que vive a criança (ALPENDRE; AZEVEDO, 2008, p. 6). A comunidade surda alinha-se aos movimentos sociais da pessoa com deficiência apenas no sentido de que as deficiências não podem ser negadas, mas precisam ser afirmadas, não como uma tragédia ou defeito, e sim como parte da identidade dos que as vivem. Isso não objetiva atenuar as dificuldades que são vividas por essas pessoas, atender às suas necessidades ou realizar ajustes que devem ser promovidos pelo meio, mas afirmar a sua identidade e as suas potencialidades. A inclusão social é definida por Sassaki (2006, p. 13) como: [...] o processo pelo qual a sociedade se adapta para poder incluir, em seus sis- temas sociais gerais, pessoas com deficiência, e simultaneamente estas se pre- param para assumir seus papéis na sociedade. A inclusão social constitui, então, um processo bilateral no qual as pessoas, ainda excluídas, e a sociedade buscam, em parceria, equacionar problemas, decidir sobre soluções e efetivar a equiparação de oportunidades para todos. Dentre os mecanismos comunitários de inclusão social e equiparação de oportunidades para todos, a educação escolar mostra-se como porta de entrada para o sentimento de pertencer. As escolas são instituições impor- tantes para a ampliação do acesso aos bens culturais, materiais e imateriais, e para romper com o isolamento cultural a que estão submetidos diversos segmentos sociais. Na comunidade surda não é diferente. A escola tem o mesmo encargo de instruir e socializar as crianças e os adolescentes e, como uma instituição, tem por objetivo manter de pé a máquina social e até mesmo Comunidade, cultura e identidade surda14 produzi-la, sendo um sistema de normas que estruturam um grupo social de forma a produzir e reproduzir as relações sociais (LAPASSADE, 1977). A definição da educação como promotora do “pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho”, conforme o Art. 205 da Constituição Federal de 1988, intensifica a dimensão do quanto as perdas nas aprendizagens e na qualidade do ensino podem representar para o desenvolvimento econômico, social e cultural das pessoas e das localidades (BRASIL, 1988, documento on-line). Isso acontece na medida em que determinados estudantes que não se moldam ao tipo de estrutura escolar vigente são excluídos dos processos de aprendizagem, reforçando que a escola se constituiu como mais uma forma de divisão social, gerando em diversos alunos a noção de que o espaço educacional no qual estão inseridos não lhes pertence (KUENZER, 2005). Justamente esse sentimento de não pertencer ao espaço educacional, diante do tipo de estrutura escolar oralista vigente, é que tem motivado lutas constantes do povo surdo e das comunidades surdas, em trajetórias históricas em defesa das escolas bilíngues para surdos. A história faz emer- gir as memórias das experiências do “ser surdo”, especialmente os corpos amordaçados por políticas institucionais, os embates no campo dos sistemas opressivos educacionais, as lutas por identidade e por significados culturais. O desafio é construir uma nova história cultural, registrando as lutas pela identidade surda, pela construção da identidade cultural, pelo reconhecimento da língua de sinais, pela emancipação dos sujeitos surdos de todas as formas de opressão e pelo seu livre e espontâneo desenvolvimento, bem como pela pedagogia surda presente no povo surdo (CAMPELLO; REZENDE, 2014). Entretanto, a história de lutas do movimento surdo brasileiro ainda tem um longo caminho a percorrer para o reconhecimento da cultura surda e linguística, de forma real e sem demagogia. O Brasil, principalmente com a realização da Conferência Nacional da Educação (Conae), em 2010, começou a enfrentar retrocessos com atravessamentos produzidos por uma política pública educacional que não atendeu e não atende às imperativas demandas linguísticas e culturais surdas. O governo da época, por meio do Ministério da Educação (MEC), realizava iminentes ameaças de fechamento das escolas bilíngues, sob as justificativas de que elas reforçavam a organização de escolas segregadas com base na diferenciação pela deficiência e de que contrariavam a concepção ideológica do governo acerca do que entendiam como educação inclusiva, que insistia em colocar crianças surdas junto com as ouvintes, sem haver um compartilhamento linguístico entre elas, exceto no contraturno da Comunidade, cultura e identidade surda 15 escolarização, na sala de atendimento educacional especializado (CAMPELLO; REZENDE, 2014). Como exemplo desse retrocesso, podemos destacar um comunicado do MECsobre o fechamento do Colégio de Aplicação do Instituto Nacional de Educação de Surdos à Revista da Federação Nacional de Educação e Integração dos Surdos (Feneis). Quando perguntada sobre a importância das escolas de surdos para a valorização da cultura e das identidades surdas, a diretora de políticas de educação especial Martinha Claret respondeu o seguinte: [...] do ponto de vista da educação inclusiva, o MEC não acredita que a condição sensorial institua uma cultura. As pessoas surdas estão na comunidade, na socie- dade e compõem a cultura brasileira. Nós entendemos que não existe cultura surda e que esse é um princípio segregacionista. As pessoas não podem ser agrupadas nas escolas de surdos porque são surdas. Elas são diversas. Precisamos valorizar a diversidade humana (FENEIS..., 2010, p. 23). Esse discurso era totalmente em linha contrária aos entendimentos cien- tíficos, sobretudo aos estudos culturais e aos estudos da área da linguística. Isso provocou uma mobilização sem precedentes para a inclusão das escolas bilíngues para surdos no Plano Nacional de Educação (PNE), inclusive com apoio internacional. O órgão da sociedade civil internacional de diversos segmentos das pessoas com deficiência International Disability Alliance (IDA), a principal articuladora social responsável pela realização da Convenção Internacional das Pessoas com Deficiência, no âmbito das Nações Unidas manifestou, na Reunião da Cúpula do Conselho Econômico e Social (Ecosoc), realizada em julho de 2011, o seguinte texto para a Revisão Ministerial Anual, que trata da educação bilíngue de surdos: As crianças surdas precisam ser incluídas primeiramente através da língua e da cultura mais apropriada antes de serem incluídas nas diferentes áreas da vida em estágios posteriores, por exemplo, no ensino médio e superior, bem como na vida profissional. O apoio dos pares é necessário (ONU, 2011, documento on-line). Entre as proposições e comprovações científicas, a pesquisa intitulada “Programa de avaliação nacional do desenvolvimento da linguagem do surdo brasileiro” divulgou que, em escolas bilíngues (escolas especiais que ensinam em Libras e português), os estudantes surdos aprendem mais e melhor do que em escolas monolíngues (escolas comuns que ensinam apenas em portu- guês). Nos resultados, evidenciou-se que competências como decodificação e reconhecimento de palavras, compreensão de leitura de textos, vocabulário Comunidade, cultura e identidade surda16 em Libras, entre outras, foram significativamente superiores em escolas bilíngues em comparação com escolas comuns (CAPOVILLA, 2011). A comunidade surda conquistou, então, ainda que não na totalidade das propostas, a valorização da Libras e que se incluísse no relatório do PNE: Garantir a oferta de educação bilíngue, em língua brasileira de sinais (Libras) como primeira língua e na modalidade escrita da língua portuguesa como segunda língua, aos alunos surdos e com deficiência auditiva de 0 (zero) a 17 (dezessete) anos, em escolas e classes bilíngues e em escolas inclusivas, nos termos do art. 22 do Decreto nº 5.626, de 22 de dezembro de 2005, e dos arts. 24 e 30 da Convenção Sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, bem como a adoção do sistema braille de leitura para cegos e surdocegos (BRASIL, 2010, documento on-line). Na Conae, no ano de 2010, os especialistas presentes pontuaram a necessi- dade de um documento nacional que orientasse uma base comum do currículo escolar. No mesmo ano, surgiram as Diretrizes Curriculares Nacionais Gerais para a Educação Básica, e em 2018 foi homologada a Base Nacional Comum Curricular (BNCC), que tem caráter normativo e define o conjunto orgânico e progressivo de aprendizagens essenciais que todos os alunos devem desen- volver ao longo das etapas e modalidades da educação básica (BRASIL, 2018). Entretanto, diante da BNCC, diferentes profissionais da educação cons- troem diferentes olhares sobre ela perante a educação para surdos. Pesquisas como a de Pereira (2021), por exemplo, demonstram que a BNCC não contempla a alfabetização das crianças surdas, ou seja, não traz distinções das diferenças inerentes ao aprendizado da escrita pela criança surda e preconiza o uso da oralidade como prática cotidiana e como base para a alfabetização. Já pes- quisas como a de Melo, Santos e Fronza (2020) referem que a BNCC considera a língua em uso, mas oportuniza ao aprendente surdo situações de interações comunicativas que viabilizem o aprendizado partindo de várias formas de manifestação da linguagem, sejam elas verbais (oral, escrita ou sinalizada), sonora, corporal, visual ou, mais recentemente, digital. De qualquer forma, um currículo escolar inclusivo deve garantir a oferta de educação bilíngue, em Libras como primeira língua (L1) e na modalidade escrita da língua portuguesa como segunda língua (L2), e de maneira alguma documentos normativos serão suficientes para produzir qualquer trans- formação educacional se não houver o comprometimento, a disposição, a convicção e o reconhecimento dos sujeitos sobre comunidades, culturas e identidades surdas. Comunidade, cultura e identidade surda 17 Neste capítulo, você pôde perceber a surdez como parte da diversidade humana, que precisa ser reconhecida como uma entre as múltiplas formas de ser e estar no mundo. Como dizem Perlin e Strobel (2014), anular o passado imerso na obrigação de serem ouvintes e requerer um novo presente se mostrou como artefato cultural para os surdos. Diante disso, surgem novos feitos e novas interpretações no cotidiano. Nesse sentido, outros caminhos merecem ser trazidos à tona, com lutas de significação, quais sejam: a busca por educação bilíngue, por políticas para a língua de sinais no Brasil, pela abertura das portas das universidades, por posições de igualdade, por ter intérpretes de língua de sinais e por serem válidos os direitos do povo surdo. Referências ALPENDRE, E. V.; AZEVEDO, H. Concepções sobre surdez e linguagem e a aprendizagem de leitura. Curitiba: Secretaria de Estado da Educação do Paraná, 2008. 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Para ela se perpetuar e se desenvolver, precisa que a língua seja usada como canal ou fonte de acesso. Tratando-se da cultura surda, temos um caso bem peculiar, em que o sujeito surdo desenvolve a sua cultura dentro de uma outra cultura dominante: a cultura ouvinte. Na Dica do Professor, você verá um rápido bate-pronto de perguntas e respostas que irão ajudar no melhor entendimento sobre as temáticas estudas: Comunidade, Cultura e Identidade Surda. Conteúdo interativo disponível na plataforma de ensino! Exercícios 1) O pertencimento a um grupo é de grande importância para o pleno viver de um indivíduo surdo. Selecione a alternativa que apresenta corretamente o conceito de comunidade surda. A) Um lugar onde convivem surdos e ouvintes conversando, interagindo e discutindo sobre diversos assuntos por intermédio da Libras. Sendo assim, as comunidades surdas são os locais onde ocorre a interação com outros surdos e com ouvintes que ali frequentam, recriando-se as identidades surdas, as narrativas pessoais, os marcadores culturais, as lutas e os discursos que permeiam os grupos surdos. B) Compartilhar experiências em um grupo homogêneo, isto é, somente surdos, sem a interação com pessoas ouvintes. C) É uma comunidade seleta, em que somente surdos podem participar da comunidade, pois é a única forma de se proteger da opressão ouvintista. D) Grupo de surdos puros unidos por uma série de afinidades e vínculos com Libras, onde ouvintes não são permitidos, apenas pessoas com deficiência auditiva. E) A busca pelo semelhante, por segurança, conforto e interlocutores possíveis que compartilham formas de comunicação visual, além de expectativas e projetos comuns, fazem das comunidades surdas espaços exclusivamente de surdos, excluindo qualquer pessoa que não seja surda, até mesmo familiares de surdos. 2) A cultura surda possui semelhanças em relação a cultura ouvinte, no entanto, a cultura surda também tem algumas peculiaridades que a caracterizam. Marque a alternativa correta sobre o conceito de cultura surda. A) A cultura surda é igual à cultura ouvinte no que diz respeito ao registro escrito de suas histórias. B) Por intermédio da cultura, os surdos constituem sua comunidade, valores, crenças, costumes, hábitos e identidade, que são passados de geração para geração, valorizando as experiências visuais e a Libras como meio de comunicação e interação com o outro e com o mundo. C) A cultura surda é a cópia fiel da cultura ouvinte, pois os surdos querem ser como as pessoas ouvintes e, por isso, a sua cultura é nada mais que um espelho que reflete a cultura deles. D) Por meio da valorização da cultura é que surgem as datas comemorativas dentro da comunidade surda. Por intermédio dela, os surdos constituem sua comunidade, valores, arte, costumes, hábitos e identidade, que são passados de geração para geração por familiares de surdos por meio da fala. E) Cultura surda é um conjunto de comportamentos que são aprendidos ao decorrer das gerações de um determinado grupo de pessoas daquelacomunidade, que têm uma língua própria, valores, regras, comportamentos e tradições, centralizados no mundo ouvinte e na língua oral-auditiva. 3) Assinale a alternativa correta sobre a identidade surda. A) O sujeito surdo que assume a sua identidade está inserido na comunidade, ele se enxerga dentro dela e vivencia todas as suas experiências nos espaços culturais ouvintes. B) Há surdos que, por fatores sociais ou familiares, têm suas primeiras experiências visuais relacionadas apenas com as referências do mundo ouvinte. Por esse viés, todas as suas memórias e relação com o mundo se dão por intermédio do som, desvinculadas das experiências e perspectivas visuais, o que constitui sua identidade. C) A identidade surda é espelhar-se nas representações e manifestações do mundo ouvinte, desvinculada do mundo visual e sem a necessidade de desenvolver as experiências, habilidades e competências dos sinais gesto-visuais e da Libras. D) Para que o sujeito surdo construa a sua identidade, ele tem de se apropriar da identidade ouvinte primeiro, isto é, ser oralizado visando facilitar sua adaptação a cultura surda. E) O fator cultural está estritamente ligado à construção da identidade surda, isto é, o sujeito precisa ter contato e conhecer a comunidade e sua cultura para, então, poder tomar a decisão de se integrar a ela (assumindo sua identidade como surdo) ou não. 4) A Libras é a língua utilizada para a comunicação surdo com surdo ou entre surdos e os ouvintes que saibem Língua de Sinais. Analise as sentenças a seguir e marque a alternativa correta sobre a língua natural dos surdos (Libras). A) A língua natural é dispensável para a constituição da identidade surda. B) A Libras é uma língua natural criada pela comunidade surda para se comunicar. C) Na língua natural surda, a construção de sentenças e diálogos são limitados, sendo necessário recorrer à língua adicional (Português) em casos específicos. D) A língua natural do sujeito surdo nada mais é do que sinais soltos no ar, sem sentido algum, incapaz de expressar ideias, sentimentos ou coisas abstratas. E) Língua natural para o sujeito surdo é a língua portuguesa, e a ela estão associados as regras gramaticais e os sons (fonemas). 5) Dos itens apresentados a seguir, qual deles se adapta aos fatores de constituição da identidade surda? A) Usar a língua da comunidade surda, importar-se com a busca por direitos e conquistas que beneficiem a comunidade e fortaleçam a cultura surda. Mas não basta usar a língua natural da comunidade surda e se importar com a manutenção da cultura, é essencial também se considerar um integrante dela e ter orgulho de ser surdo. B) Convívio com surdos e ouvintes, participando ativamente tanto na cultura ouvinte como na cultura surda. Ao fazer isso, o sujeito cria uma identidade híbrida a qual consegue transitar entre as duas culturas, ouvinte e surda. C) Grande parte dos surdos são filhos de pais ouvintes e, por isso, eles desenvolvem apenas a identidade ouvinte, sem ter a chance de construir a identidade surda com base em um modelo surdo que só pode ser encontrado no contato com a comunidade surda. D) Durante o processo de constituição da identidade, os surdos não têm momentos de transição conflituosa; isso ocorre de forma tranquila e natural. E) A identidade surda se constitui por intermédio do próprio surdo, sem a necessidade de interação com outros surdos, com a comunidade surda ou com elementos da cultura surda. Na prática Existem diversos elementos que compõem a cultura da comunidade surda, tipo: Histórias Infantis, como o Feijãozinho Surdo e o Patinho Surdo que auxiliam as crianças surdas a se identificar e criar uma identidade surda. Temos também como elemento da cultura surda a tradição do Batismo de Sinal, em que aqueles que fazem parte da comunidade surda ou que interagem com ela recebem um sinal que irá ser o equivalente ao nome da pessoa em língua de sinais. Acompanhe no vídeo a seguir, alguns relatos que a professora nos apresenta em LIBRAS. Aponte a câmera para o código e acesse o link do conteúdo ou clique no código para acessar. https://fast.player.liquidplatform.com/pApiv2/embed/cee29914fad5b594d8f5918df1e801fd/68b732261ce9e252aa827ff6acbe7d53 Saiba + Para ampliar o seu conhecimento a respeito desse assunto, veja abaixo as sugestões do professor: Libras? Que língua é essa? Crenças e preconceitos em torno da língua de sinais e da realidade surda. No link a seguir, você terá acesso a uma resenha sobre este livro que traz mitos, crenças e preconceitos em torno da língua de sinais e da realidade do sujeito surdo. Aponte a câmera para o código e acesse o link do conteúdo ou clique no código para acessar. Língua de Herança: Língua Brasileira de Sinais Neste link, você terá acesso a este livro, que discute as relações entre língua de sinais e língua falada, apresentando um amplo panorama, com estudos, definições e exemplos de histórias pessoais e interações das comunidades surda e ouvinte. Conteúdo interativo disponível na plataforma de ensino! Documentário: Sou surda e não sabia Neste link, você terá acesso a um documentário em que Sandrine, uma menina aparentemente “normal”, mas que devido a algumas atitudes despertou nos familiares a possibilidade de ela ser surda. O filme narra a trajetória de Sandrine e suas dificuldades enfrentadas durante a infância, a resistência da família em aceitar o fato de ela ser surda, assim como nos mostra as opiniões de especialistas da área de surdez. Aponte a câmera para o código e acesse o link do conteúdo ou clique no código para acessar. http://www.scielo.br/pdf/rbla/v14n4/v14n4a18.pdf https://www.youtube.com/embed/Vw364_Oi4xc Travessia do Silêncio - Parte 1 Neste link, você terá acesso à parte de um documentário em que podemos observar a visão de diferentes pessoas com relação à temática da surdez. O documentário expõe a opinião de surdos e ouvintes e as relações de poder construídas entre eles. Aponte a câmera para o código e acesse o link do conteúdo ou clique no código para acessar. Travessia do Silêncio - Parte 2 Neste link, você terá acesso à parte dois de um documentário em que podemos observar a visão de diferentes pessoas com relação à temática da surdez. O documentário expõe a opinião de surdos e ouvintes e as relações de poder construídas entre eles. Aponte a câmera para o código e acesse o link do conteúdo ou clique no código para acessar. https://www.youtube.com/embed/B_0nFpHNwz8 https://www.youtube.com/embed/-jH52ky3YKk
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