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DESCRIÇÃO O problema das mentalidades na construção política, estudando especificamente os casos do Brasil e da América Latina, com foco nas questões de conciliação, patrimonialismo, impacto das estruturas escravocratas sobre a política, além da relação entre desenvolvimento econômico e política. PROPÓSITO Compreender de que modo as formações políticas são impactadas por mentalidades de longa duração, assim como as relações entre estrutura socioeconômica e relações políticas no Brasil, e o problema do desenvolvimento na América Latina e suas implicações políticas são ferramental imprescindível para qualquer profissional que busque conhecer a realidade brasileira ou latino-americana e, em especial, àqueles preocupados com uma leitura crítica capaz de dar conta de uma análise política dessas sociedades. PREPARAÇÃO Antes de iniciar este conteúdo, é recomendável, mas não indispensável, que tenha em mãos um dicionário de termos políticos e outro de termos econômicos. Recomendamos: BOBBIO, Norberto et al. Dicionário de Política. Brasília: UnB, 1998; SANDRONI, Paulo. Dicionário de Economia. São Paulo: Abril, 1985. OBJETIVOS MÓDULO 1 Reconhecer o impacto de processos históricos de longa duração na conformação do comportamento político e social e suas relações com a comunicação. MÓDULO 2 Identificar a importância da comunicação na relação entre desenvolvimento econômico e estruturas políticas na América Latina INTRODUÇÃO Compreenderemos de que forma as mentalidades de longa duração e o desenvolvimento socioeconômico impactam nas formações políticas em geral, tendo como exemplo específico a formação política brasileira após a Independência e como exemplo mais geral a questão latino- americana. No dia a dia, nos noticiários e na massiva carga de conteúdos circulantes nas redes sociais, é comum que os processos políticos sejam tratados a partir de um olhar de curto prazo, e essencialmente determinados pelas escolhas conscientes dos agentes. Para uma compreensão aprofundada das formações políticas e do desenvolvimento econômico, é indispensável que sejam levados em conta fenômenos de longa duração reproduzidos sistemicamente ao longo de séculos e altamente resistentes à mudança. Por isso, não trataremos de uma história política do Brasil ou da América Latina em seus detalhes, suas sucessões de governos, golpes de Estado etc., mas sim de evidenciar elementos de mentalidades altamente resistentes, e que seguem deixando sua marca ao longo dos últimos dois séculos, independentemente das forças políticas hegemônicas em cada momento. MÓDULO 1 Reconhecer o impacto de processos históricos de longa duração na conformação do comportamento político e social e suas relações com a comunicação O QUE SÃO MENTALIDADES? A vida em sociedade é marcada pelo choque entre diferentes ideias, aspirações, noções morais e opiniões a respeito de acontecimentos (ou melhor, de interpretações sobre acontecimentos!). Tudo isso pode nos fazer acreditar que seres humanos convivendo socialmente, compartilhando uma língua, costumes e território, pautam seu comportamento exclusivamente por noções superficiais e específicas a respeito de seu ambiente social. Imagine, entretanto, que observamos uma formação política a partir de um conjunto de lentes de aumento e estejamos ampliando a imagem para ver bem de perto. Nesse percentual de zoom, a imagem mostra agentes políticos adversários, com ideias completamente antagônicas, disputando no curto prazo a legitimidade de suas narrativas. Nesse nível de aproximação, portanto, esses agentes podem parecer completamente diferentes e inconciliáveis. Lembre-se, contudo, de que estamos investigando as formações políticas utilizando lentes de aumento e esse é apenas o nível de maior aproximação possível. Se olharmos com nossas lentes para essas formações políticas a partir de uma distância cada vez maior, as particularidades dos agentes se perdem, e passamos a enxergar padrões de comportamento comuns entre eles, padrões esses que não seriam visíveis ao olharmos “de perto”. É claro que sempre haverá, em qualquer formação política, elementos que discordem desses padrões comuns, mas que só serão relevantes ou identificáveis a partir de um nível de zoom mais aproximado. É nesse nível de visualização mais distante, coarse-grained, em oposição a um olhar mais aproximado, fine-grained, que somos capazes de identificar as chamadas mentalidades. Elas são fenômenos: COARSE-GRAINED Coarse-grained, em tradução literal do inglês, significa um aspecto granulado grosso, de partículas ou pontos mais grosseiros, mas o significado figurado, por oposição a fine- grained, é o de um olhar distanciado e mais geral. FINE-GRAINED Fine-grained literalmente poderia ser traduzido como grãos, partículas ou pontos finos, mas também é usado em sentido figurado para dizer que algo é mais detalhado, justamente por ter um olhar mais aproximado. MACRODIMENSIONAIS Significa que aparecem no comportamento dos agentes de forma difundida por toda a sociedade (a despeito das múltiplas diferenças entre esses agentes em nível específico). MACROTEMPORAIS javascript:void(0) javascript:void(0) javascript:void(0) javascript:void(0) Significa que se reproduzem ao longo de séculos, a despeito das muitas mudanças de curto prazo pelas quais uma sociedade pode passar. RELEMBRANDO Apesar de toda fúria transformadora da Revolução Russa de 1917, e das profundas mudanças políticas e econômicas empreendidas pelos bolcheviques, persistiu na sociedade russa uma mentalidade política personalista direcionada ao líder, construída lentamente ao longo de centenas de anos, desde o século XVII. Isso tornou Lênin e Stalin, em certa medida, “continuadores” do Imperador Nicolau II, apesar das radicais diferenças específicas entre suas aspirações e visões de mundo. Podemos entender as mentalidades em nível mais geral como padrões cognitivos inconscientes e coletivos. Esses padrões produzem um viés na maneira pela qual os agentes entendem o mundo ao seu redor, as questões éticas, as relações políticas, as práticas culturais, enfim, todo o ambiente social circundante. As mentalidades “rodam em segundo plano”, para usar aqui uma metáfora da informática. Se você não tem familiaridade com essa ideia, seria o mesmo que dizer que as mentalidades estão presentes na sua forma de pensar, mas quase nunca você se dá conta disso. A transformação das mentalidades é um processo muito lento e que tem frustrado gente com a melhor das intenções ao longo dos séculos. Entretanto, tudo na história é mutável, e não devemos nos impressionar pelo fato de que certas coisas mudem a ponto de percebermos e outras não. Nada é eterno, embora alguns fenômenos sejam resistentes e muito longevos. Mentalidades são sistemas de valores, de expectativas a respeito de como o ambiente social e cultural funciona e deve funcionar. Preconceitos estão fortemente enraizados nas mentalidades e, como são fenômenos macrodimensionais e macrotemporais, afetam o comportamento de todos os agentes socializados em uma sociedade. É por isso, por exemplo, que falamos de “racismo estrutural”, algo que provoca a fúria de muita gente que não se vê como racista. Quer você queira, quer não, a experiência escravocrata deixou fortíssima marca no campo das mentalidades na sociedade brasileira e por mais que um agente lute individualmente para “desarmar” a mentalidade racista em seu próprio comportamento, o entorno social o pressionará sutilmente para que desista. Imagem: Inspiring/Shutterstock.com É muito difícil “nadar contra a corrente” das mentalidades, porque há todo um entorno social que se impõe sobre um agente individual a ponto de tentar conformar seu comportamento. Não é necessário qualquer governo, polícia, igreja ou partido para punir os desviantes, embora essas instituições sejam fundamentais na reprodução ou na destruição de complexos de mentalidades: as próprias interações sociais, nodia a dia, funcionam como um sistema de assédio e coerção contra agentes desviantes. Discrepar da norma tem custos sociais, o que leva agentes menos radicais a buscarem alguma acomodação com as mentalidades reinantes. Passemos então aos principais temas ou complexos no campo das mentalidades que são visíveis ao longo de cerca de 200 anos de história do Brasil independente. A NOÇÃO DE CONCILIAÇÃO Na ocasião da independência, o Brasil já compunha um Reino Unido com Portugal desde 1815. RELEMBRANDO A família real portuguesa se transplantou de Lisboa para o Rio de Janeiro em 1808, de onde governou também seus domínios na Europa até o fim das guerras napoleônicas. Com a deflagração do processo de independência, em 1822, a monarquia brasileira foi constituída por uma elite nobiliárquica de origem lusitana, com um imperador também luso. E por mais que a xenofobia contra os portugueses tenha sido percebida nas cidades brasileiras durante o Primeiro Reinado, em momento algum se procedeu a uma radical ruptura entre elites nascidas no Brasil e aquelas nascidas em Portugal. Foto: Governo do Brasil - Galeria de Presidentes / Wikimedia Commons / Domínio público Getúlio Vargas, presidente do Brasil entre 1930 e 1945 e entre 1951 e 1954. Mais de um século depois, Getúlio Vargas, que chegou ao poder em 1930 com um golpe militar, utilizou-se do Estado para promover um intenso projeto de industrialização, contrariando a ideia de “vocação agrária” do Brasil. Mesmo tendo sido o principal líder na derrubada dos fazendeiros paulistas no poder desde pelo menos 1894 e tendo buscado reorientar a economia brasileira em um sentido urbano-industrial, Vargas buscou a conciliação com seus antigos adversários fazendeiros: por exemplo, fez com que a legislação trabalhista recém-criada permanecesse restrita ao ambiente urbano e não afetasse a exploração do trabalho na economia agrícola. Imagem: Presidência da República do Brasil / Wikimedia Commons / Domínio público CLT publicada no Diário Oficial de 9 de agosto de 1943 Foto: Dan Simonsen/Shutterstock.com Ao final da segunda década do século XXI, um governo nascido da “onda populista de direita” global, com uma estridente retórica reacionária e contrária à dita “velha política”, mergulhou em uma relação de conciliação intensa com os chamados “partidos fisiológicos” (ou seja, partidos sem um claro programa ideológico e dispostos a se adaptar a quaisquer agendas políticas que lhes garantissem cargos e prestígio), que deram suporte a governos progressistas da década anterior. Essa história não figura aqui como fábula. Ela é apenas um brevíssimo exemplo de como a conciliação de elites políticas é um padrão de comportamento esperado na formação política brasileira, mesmo por parte de atores que se dizem contrários a essa conciliação. Manifesta-se uma expectativa por parte dos agentes políticos socializados no âmbito das instituições brasileiras — família, escola, universidade, partidos etc. — de que a luta entre as elites deve prosseguir até o limite da ruptura ou da ameaça representada pelas classes subalternas, momento esse em que a conciliação deverá ser buscada. O ideário de conciliação na formação política brasileira transforma a luta entre elites em um “espetáculo ordeiro”, uma “dança das cadeiras” em termos de poder e prestígio, mas sem que qualquer dos grupos em luta perca prestígio de forma radical ou tenha sua condição de superioridade em relação às massas populares contestada. Como disse o historiador José Honório Rodrigues (1982, p.11), a conciliação era, em síntese, “um apelo à reconciliação da ordem com a liberdade, invocações antes, depois e muitas vezes renovadas sempre que a minoria dominante sentisse a ameaça aos seus interesses pela maioria”. Foto: pcruciatti/Shutterstock.com O PATRIMONIALISMO Estritamente falando, um Estado marcado pela presença do patrimonialismo é aquele em que os limites entre o público e o privado são fluidos, a despeito da existência de leis que estabeleçam claramente esse limite. Isso significa dizer que os chamados “agentes públicos” utilizam-se não só de sua posição de poder e prestígio como vantagem na condução de assuntos pessoais, como também são capazes de empregar os recursos do Estado para fins particulares. Referindo-se ao passado português, que estaria supostamente na origem do patrimonialismo brasileiro, diz Raymundo Faoro: javascript:void(0) RAYMUNDO FAORO Historiador, jurista, sociólogo e cientista político, Raymundo Faoro (1925-2003) foi um grande estudioso da realidade sociopolítica brasileira. É autor do livro de referência Os donos do poder – formação do patronato político brasileiro. A PROPRIEDADE DO REI — SUAS TERRAS E SEUS TESOUROS — CONFUNDEM-SE NOS SEUS ASPECTOS PÚBLICO E PARTICULAR. RENDAS E DESPESAS SE APLICAM, SEM DISCRIMINAÇÃO NORMATIVA PRÉVIA, NOS GASTOS DA FAMÍLIA OU EM BENS E SERVIÇOS DE UTILIDADE GERAL. (FAORO, 2001, p.23) Embora recentemente no Brasil a denúncia contra o patrimonialismo tenha se tornado a principal arma de ataque de determinadas forças políticas dispostas a controlar patrimonialmente o Estado (a partir de medidas “anticorrupção” que eliminem oponentes políticos), há de se dizer que a ideia é, quando muito, um “tipo ideal”. Cunhada inicialmente por Max Weber, a noção de patrimonialismo é na verdade um instrumento abstrato para determinarmos em que medida agentes políticos em Estados modernos cruzam a fronteira entre o público e o privado. Isso significa dizer, então, que todo Estado moderno traz em si, em alguma medida, certa dimensão patrimonialista na conduta dos seus agentes (não há Estado “perfeito” nesse sentido). Especificamente falando, o entendimento de Raymundo Faoro pode ser falho ao tentar contrapor de forma radical a experiência política luso-brasileira e a de outras sociedades modernizadas. No Brasil, o patrimonialismo aparece nas mentalidades seja como padrão de comportamento informal (e não oficial) dos agentes políticos, seja como elemento abstrato motivador de uma agenda política moralista por parte de agentes políticos ligados às classes médias urbanas. O moralismo de costumes, somado a denúncias de “corrupção”, têm sido parte recorrente do comportamento político da classe média brasileira desde o início do século XX. Classe média essa justamente privada do acesso patrimonialista ao Estado e desejosa de deslocar as elites políticas tradicionais de suas posições de poder para também ela prosseguir com o uso patrimonialista da estrutura estatal e dos recursos legalmente públicos. A MENTALIDADE ESCRAVOCRATA Após muitas décadas de contestação, rebelião e pressão por parte das massas escravizadas e do movimento abolicionista, e de intenso assédio do governo britânico contra o tráfico de escravos no Atlântico, o governo imperial, em seus momentos finais de existência, viu-se na circunstância de tornar ilegal a escravidão no Brasil através da Lei n. 3.353, de 13 de maio de 1888, a famosa Lei Áurea. Imagem: Arquivo nacional / Wikimedia Commons / Domínio público Cartaz, do acervo do Arquivo Nacional do Brasil, feito em 1888 por uma fábrica de tecidos em que figuram um cidadão branco e um cidadão negro se cumprimentando, com uma flâmula da Bandeira do Império do Brasil, pelo fim da escravidão do Brasil. Enquanto apologistas da monarquia comemoraram esse suposto ato de “civilidade” concedido pela família real (ignorando que, na verdade, a Lei Áurea só foi assinada após muitas décadas de pressão política das classes subalternas), devemos considerar que séculos de escravidão não são apagados por uma canetada em um papel. Para além do fato de que os escravos foram emancipados sem quaisquer direitos econômicos garantidos – o que tornou a população negra no Brasil vítima de “pobreza estrutural” superada apenas por poucas famílias negras a cada geração –, também é grave o fato de que uma “mentalidade escravocrata” entranhou-se no comportamento político e social do Brasilindependente e está longe de ser eliminada. Uma mentalidade escravocrata, geralmente, se opõe de forma radical a uma mentalidade liberal-democrática. Mas, sim, você pode ser liberal e ter uma mentalidade escravocrata ao mesmo tempo — são os famosos “liberais na economia e conservadores nos costumes”. COMENTÁRIO “Liberal” não se refere, aqui, a uma opção por desregulamentação econômica e mercados livres, mas sim uma mentalidade liberal-democrática, relacionada a padrões de comportamento que vão se sedimentando de modo lento e desigual pelo mundo desde a Revolução Francesa. Mentalidade liberal-democrática diz respeito às seguintes expectativas: A cor de sua pele, seu modo de falar, sua origem social e regional (e mais recentemente, sua identidade de gênero) não guardam qualquer relação com seu valor enquanto cidadão. Não há uma “escala de valor” inviolável que hierarquize os indivíduos. A ascensão social é facultada a qualquer cidadão (embora se saiba que a distribuição de riqueza prévia inviabilize coletivamente a chamada “meritocracia”, já que as condições iniciais são desiguais). Todos são iguais perante a lei. A mentalidade escravocrata presente no inconsciente cultural da formação política brasileira opõe-se às transformações em termos de costumes, hábitos, comportamento e expectativas advindas do processo de modernização das sociedades europeias desde o século XVIII. Lembre-se de que, enquanto mentalidade, ela roda “em segundo plano”, o que significa dizer que mesmo indivíduos francamente contrários à mentalidade escravocrata podem, eventualmente, comportar-se segundo ela. Há, no Brasil, uma aceitação tácita de que determinados grupos sociais desfrutem de “direitos informais” (ou seja, não previstos em lei), e esses grupos confundem-se, normalmente, com os mesmos setores herdeiros da concentração de riqueza e poder do passado escravocrata, ou a ele ligados (como as classes médias). Perceba que a existência de uma “mentalidade escravocrata” na formação política brasileira não significa (na maior parte dos casos) que os agentes políticos achem legítimo manter pessoas presas em correntes e trabalhando de sol a sol sem pagamento. Significa que, nas mentalidades, há uma expectativa de que “cada um tenha seu lugar”, determinado por raça, gênero e origem social. Foto: Ollyy/Shutterstock.com EXEMPLO A expressão “a conversa ainda não chegou à cozinha” indica claramente que há espaços superiores ocupados por pessoas também superiores, onde haverá certas conversas importantes, e outros espaços subalternos, ocupados por gente também subalterna, que serão privados de acesso a essa conversa e às decisões dela advindas. A mobilidade social e a cidadania plena, conquistas das revoluções liberais-democráticas, são firmemente entravadas pela mentalidade escravocrata. Nosso passado de sociedade escravista nos deixou um complexo de mentalidades que justifica, de forma inconsciente, as seguintes afirmativas: Embora em lei se possa garantir que todos são iguais, na prática, alguns têm mais privilégios que outros; assim é a vida, e não há nada a ser feito. O homem branco de alta renda encontra-se em uma “escala de valor” mais elevada, e tem por direito exercer o mando e proferir a última palavra, embora a lei a isso se oponha. Grupos com outras identidades de raça e gênero, e com diferentes níveis de renda, têm seu status definido em contraste ao topo da pirâmide (os homens brancos de alta renda). O nível de status desfrutado segundo a posição de um indivíduo na pirâmide de prestígio o leva a exigir “direitos informais” para si; como exemplos disso, temos a prática da “carteirada” e do “você sabe com quem está falando?”. O ensino superior, sendo tradicionalmente uma marca de “branquitude” e de status, garante privilégio legais (prisão especial, por exemplo), é um critério de distinção social informal, e não deve ser universalizado. A eventual ascensão social, por meio da riqueza, de indivíduos pertencentes a grupos raciais e de gênero diferentes do grupo alfa (homens brancos de alta renda) só se torna legitimada no inconsciente cultural mediante seu “branqueamento” (por meio da adoção de marcadores culturais e estéticos do grupo dominante, salvo raras exceções). Um homem branco brasileiro, residente em bairro nobre e de alta renda, pode ser um militante de esquerda ou um reacionário saudoso da ditadura militar, mas independentemente disso, ele desfrutará dos “direitos informais” de pertencer a uma “casta superior” na formação de inspiração escravocrata brasileira. Um claro exemplo disso é que as abordagens policiais diferem de acordo com o “perfil” do abordado (mesmo que o crime em flagrante seja de mesma natureza), homens brancos de alta renda são mais capazes de subornar agentes públicos do que outros indivíduos em escalões inferiores da pirâmide de status etc. Foto: LightField Studios/Shutterstock.com QUAIS SÃO AS IMPLICAÇÕES POLÍTICAS DESSA ESTRUTURA DE MENTALIDADES? Nutre-se uma expectativa inconsciente de que o mando político deve ser exercido por indivíduos pertencentes ao grupo alfa. Tentativas jurídicas e políticas de alterar o perfil da representação política brasileira, ampliando-se a diversidade de raça e gênero, encontram fortíssima oposição não só de membros do grupo alfa, mas de indivíduos em escalões inferiores da pirâmide de status (lembre-se de que as mentalidades são um fenômeno amplo e coletivo). Não à toa, têm crescido a violência verbal, simbólica e física contra parlamentares que divergem do “perfil de dominância” nas mentalidades políticas, como senadores, deputados e vereadores LGBTQ+, mulheres, negros e indígenas. A mentalidade escravocrata também tem impacto na resistência à adoção de políticas públicas compensatórias (cotas, por exemplo). Foto: Rido/Shutterstock.com Padrões de comportamento cristalizados na forma de mentalidades exigem esforços intensos para serem desconstruídos, de modo que a formação política brasileira encontrará ainda muitos desafios para livrar-se de tendências deletérias como a legada pelo passado escravocrata. Mas, como tudo na história, também a mentalidade escravocrata tem prazo de validade, embora seu esgotamento ainda pareça algo muito remoto. Nas palavras de Jessé Souza: JESSÉ SOUZA Importante teórico social brasileiro, Jessé Souza formou-se em direito, mas tem mestrado e doutorado em sociologia. Tem três pós-doutorados, além de uma livre-docência pela Universität Flensburg, na Alemanha. Publicou A Ralé Brasileira: quem é e como vive, A Radiografia do Golpe, A Elite do Atraso e A Classe Média no Espelho, A construção social da subcidadania, entre outros. Foto: Fabio Rodrigues Pozzebom/Agência Brasil / Wikimedia Commons / CC BY 3.0 br Jessé de Souza, durante cerimônia de posse do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) javascript:void(0) O QUE PERMANECE DO ESCRAVISMO É A SUB- HUMANIDADE CEVADA E REPRODUZIDA, A CRENÇA DE QUE EXISTE GENTE CRIADA PARA SERVIR OUTRA GENTE [...]. É NECESSÁRIO REPRODUZIR UMA CLASSE DE CARENTES PELA AUSÊNCIA DE PRESSUPOSTOS PARA O SUCESSO ESCOLAR COMO UMA FORMA DE CONTINUAR A ESCRAVIDÃO COM OUTROS MEIOS. UMA RAÇA/CLASSE CONDENADA A SERVIÇOS BRUTOS E MANUAIS DESVALORIZADOS. (SOUZA, 2017) COMUNICAÇÃO E DEMOCRACIA O mestre Muniz Sodré dá uma aula sobre Comunicação e Política! Assista! VERIFICANDO O APRENDIZADO 1. POR QUE PODEMOS CONSIDERAR A CONCILIAÇÃO, O PATRIMONIALISMO E O PENSAMENTO ESCRAVOCRATA COMO FENÔMENOS PRESENTES NAS MENTALIDADES? A) Porque se manifestam a partir do desejo consciente do agente. B) Porque não têm qualquer relação com a vida material, apenas com as ideias. C) Porque se manifestam de modo inconsciente e estrutural. D) Porque estão presentes apenas nas ideologias e não na vida política. E) Porque podem ser ativados ou desativados de acordo com as circunstâncias. 2. O QUE DEFINE, PRECISAMENTE, A MENTALIDADE ESCRAVOCRATA, HERDADA DO PASSADO COLONIAL E IMPERIAL? A) O desejo por partedas elites de anular legalmente a abolição. B) A noção de que trabalhadores escravizados são mais produtivos. C) A ideia de que todos são iguais perante a lei. D) A noção de que a hierarquia social é predeterminada e imutável. E) A ideia de que a economia brasileira deve ser agrária e não industrial. GABARITO 1. Por que podemos considerar a conciliação, o patrimonialismo e o pensamento escravocrata como fenômenos presentes nas mentalidades? A alternativa "C " está correta. Podemos entender as mentalidades em nível mais geral como padrões cognitivos inconscientes e coletivos. Politicamente, elas são importantes por serem aspectos estruturais e de longa duração. A conciliação, o patrimonialismo e o pensamento escravocrata são mentalidades que participaram na construção política brasileira. 2. O que define, precisamente, a mentalidade escravocrata, herdada do passado colonial e imperial? A alternativa "D " está correta. Na mentalidade escravocrata há uma expectativa de que “cada um tenha seu lugar”, determinado por raça, gênero e origem social. É por isso que a mentalidade escravocrata, mais de um século depois da Lei Áurea, é um entrave à mobilidade social e à cidadania plena. MÓDULO 2 Identificar a importância da comunicação na relação entre desenvolvimento econômico e estruturas políticas na América Latina POLÍTICA: A CIÊNCIA DOS CONFLITOS O prof. Muniz Sodré agora traz suas lições sobre o Poder, o Estado, as sociedades civil e política e sua importância para o desenvolvimento. VOCAÇÃO PRIMÁRIO-EXPORTADORA E INTEGRAÇÃO SISTÊMICA A centralidade do agronegócio no Brasil do século XXI, e da economia extrativa por toda a América Latina, é um reflexo de uma história mais longa. Não que uma economia moderna não possa — e não deva — contar com um setor primário (i.e., de produção de matérias-primas e energia) dinâmico, ambientalmente responsável, capaz de gerar não só divisas estrangeiras pela via das exportações, como também oferta interna. A questão é que as economias latino- americanas patinam desde seus primeiros dias no terreno escorregadio da especialização de seus mercados. Foto: William Potter/Shutterstock.com A diversificação econômica – ou seja, uma bem equilibrada distribuição em termos de presença das diferentes atividades econômicas – é um elemento importante para uma trajetória de desenvolvimento sustentada no tempo. Isso vale para qualquer país. Foto: Andrii Yalanskyi/Shutterstock.com Entretanto, a América Latina — o Brasil incluído — luta contra a chamada “vocação primário- exportadora”, que exerce um peso estrutural, de longo prazo tanto sobre a própria economia quanto sobre a sua formação política — tal como as mentalidades, que discutimos no módulo anterior. A vocação primário-exportadora é uma justificativa simplista defendida por atores externos e internos à América Latina, que busca legitimar a especialização das economias latino- americanas na produção e exportação de commodities para os mercados desenvolvidos do centro sistêmico do capitalismo global. Por trás dessa justificativa, repousa a chamada “teoria das vantagens comparativas”, formulada pelo economista britânico David Ricardo, no início do século XIX. COMMODITIES Commodities são produtos primários (ou seja, não industrializados) produzidos em larga escala e que podem ser estocados sem perda de qualidade, o que os torna importantes na economia por influenciarem muitas produções e atividades. javascript:void(0) Segundo essa teoria, em uma economia mundial de mercado livre, os países devem se especializar na produção daquilo que fazem “melhor” em comparação com os demais — leia- se, com menor custo e maior qualidade. De acordo com essa lógica, se a Grã-Bretanha produz melhores máquinas, e o Brasil o melhor café, todos saem ganhando se o Brasil exportar o café para os britânicos, e estes exportarem suas máquinas para o Brasil. Imagem: Azyn/Shutterstock.com Imagem: DataPic/Shutterstock.com Por trás da noção de vantagens comparativas residem categorias arraigadas no mundo ocidental no que diz respeito ao processo de desenvolvimento econômico. A principal delas é a noção de que uma economia desenvolvida é fruto de processos fundamentalmente endógenos. Processos endógenos são fenômenos econômicos, políticos e mesmo culturais, próprios de uma sociedade, de seu funcionamento interno, e que não levam em conta o contato com outras sociedades. A teoria do desenvolvimento consagrada pelo economista norte-americano W. Rostow nos anos 1950, por exemplo, serviu de base para difundir a noção de que todas as economias no mundo estariam submetidas ao mesmo tipo de evolução, com fases determinadas. Cada economia, então, estaria em determinada “etapa” do seu processo de alcançar o ponto final em uma escala evolutiva, o desenvolvimento pleno (mercado interno avançado, industrialização de ponta, uma grande classe média). Sendo assim, se todas as economias do mundo estariam em algum degrau da escala evolutiva em direção ao desenvolvimento, conclui-se que: Todas as economias poderiam alcançar o degrau máximo. Tudo que precisaria ser feito seriam reformas internas, capazes de permitir saltar degraus. Não haveria qualquer papel das relações econômicas internacionais no processo de desenvolvimento. É nítido que a noção de vantagens comparativas, e a própria compreensão das “etapas para o desenvolvimento” da teoria rostowiana, desconsideram os fatores ditos exógenos, ou seja, provenientes das relações entre diferentes economias. Ainda que fatores endógenos sejam relevantes, a dimensão sistêmica da economia mundial talvez seja o elemento mais importante em configurar as alternativas para o desenvolvimento econômico. Nesse sentido: O subdesenvolvimento não aparece como atraso, mas como uma etapa a ser superada. O chamado subdesenvolvimento é um processo simultâneo e paralelo ao desenvolvimento das economias centrais. Logo... Existiria um processo de “desenvolvimento do subdesenvolvimento”, e a superação das condições econômicas na periferia latino-americana não viria de seguir uma “cartilha do progresso”, nem de repetir os passos já dados pelas economias desenvolvidas. Assim, uma relação de feedback se estabelece: ou seja, a expansão dos mercados internos dos países ricos, do padrão de vida medido em termos de consumo e da complexidade de suas economias, são reforçados pela pobreza, pela especialização econômica em exportação de commodities, pela contração dos mercados internos e pelo baixo nível de renda nas economias ditas periféricas. Seria preciso “pensar fora da caixa” de modo a contornar uma estrutura pesada, cristalizada, que mantinha as economias da América Latina presas à primeira marcha, e que era dada pela sua inserção no mercado mundial. Imagem: Shutterstock.com, adaptado por Thiago Lopes Entre os anos 1940 e 1950, Raúl Prébish e os economistas da Comissão Econômica para a América Latina (CEPAL), ligada à Organização das Nações Unidas, concluíram que a condução dos negócios econômicos internacionais, tendo por orientação a teoria das vantagens comparativas escondia uma realidade complicada — a chamada deterioração dos termos de troca. Em linhas gerais, isso implicava dizer que não havia simetria, no longo prazo, entre economias primário-exportadoras e economias exportadoras de manufaturados. Contrariando o sugerido por David Ricardo, progressivamente as economias exportadoras de commodities precisariam exportar mais produtos — por preços cada vez menores, dadas as condições de competição internacional — para serem capazes de importar os mesmos produtos manufaturados, configurando assim uma situação nítida de dependência, desigualdade e desequilíbrio no balanço de pagamentos. Quanto mais especializadas na produção de bens primários — e, portanto, quanto mais os investimentos infraestruturais fossem voltados para a produção e o escoamento de commodities —, mais distantes estariam os países latino-americanasde diversificarem suas atividades econômicas, uma vez que o custo para isso seria cada vez maior. Surge a questão de como sair desse ciclo vicioso. Seria preciso considerar que, desde o século XVI, uma elite econômica surgira na América Latina, cujo lucro, poder político e status social provinham da integração da economia ao sistema econômico internacional, justamente exportando produtos primários. Os desafios eram muitos, e o desenvolvimento latino-americano passaria, portanto, por uma necessária intervenção por parte de Estados reformistas, dispostos a alterar o padrão de inserção externa das economias dependentes. A CRISE SISTÊMICA E A INDUSTRIALIZAÇÃO Multidão no “American Union Bank” de Nova York durante uma corrida ao banco no início da Grande Depressão. A crise sistêmica do capitalismo após a quebra da bolsa de Nova York, em 1929, e consequente depressão global na década de 1930, ofereceu a oportunidade para uma virada na inserção externa das economias latino-americanas e para a construção de um padrão de desenvolvimento capitalista diferenciado. Após a Segunda Guerra Mundial, e inspiradas pela própria CEPAL, algumas economias latino-americanas tiveram maior sucesso em minimizar os impactos de sua “vocação primário-exportadora” através de programas de industrialização acelerada, com forte presença estatal, especialmente no setor de bens de capital. O colapso javascript:void(0) do mercado mundial havia atingido fortemente o poder político e econômico das elites latino- americanas, tradicionalmente amparadas na exportação de commodities, permitindo a ascensão de grupos políticos reformistas. BENS DE CAPITAL Bens de capital ou bens de produção são um setor de produtos intermediários (entre a matéria-prima e os bens de consumo), por exemplo, motores ou máquinas para determinados setores, como a metalurgia. Foto: William Potter/Shutterstock.com Ficava claro, então, que o problema da dependência e do subdesenvolvimento envolvia não só componentes endógenos (ou seja, internos às economias latino-americanas) mas, principalmente, o funcionamento do sistema capitalista mundial. Foto: Andrii Yalanskyi/Shutterstock.com Pelo lado endógeno, as baixas taxas de investimento, os gargalos infraestruturais (falta de estradas, ferrovias, produção de energia etc.), a baixa renda da população (reduzindo o tamanho do mercado interno) e a própria resistência política das elites primário-exportadoras entravavam o desenvolvimento econômico sustentado. Mas, principalmente, era a própria divisão internacional do trabalho que contribuía fortemente para o subdesenvolvimento latino-americano. Com a já citada depressão mundial dos anos 1930, e com a contração da demanda por commodities, após a Segunda Guerra Mundial, abriu-se uma oportunidade para reorientar as economias da América Latina, uma vez comandadas por grupos políticos dispostos a isso. Após a Segunda Guerra Mundial, economias como a brasileira, a mexicana e a argentina prosseguiram com seus projetos de industrialização por “substituição de importações”, incentivados por meio de políticas econômicas (ou seja, programas para a produção interna de bens até então importados), que tiveram sucesso variado até a década de 1980. EM QUE CONSISTIAM ESSES PROJETOS DE SUBSTITUIÇÃO DE IMPORTAÇÕES? Considere que as economias latino-americanas eram razoavelmente abertas até a Grande Depressão (ou seja, os governos não estabeleciam políticas claramente discriminatórias no que diz respeito a importações de bens, serviços e capitais). Como havia sido previsto pelo economista alemão F. List em meados do século XIX, economias abertas competindo em mercados nos quais as condições de entrada são absolutamente desiguais, aprofundarão seu processo de integração subalterna e dependente, e não serão capazes de complexificar suas estruturas internas pela via de uma industrialização coerente e soberana; isso porque não serão jamais capazes de competir industrialmente com potências já estabelecidas. COMENTÁRIO Veja que, para David Ricardo e sua teoria das vantagens comparativas, esse fato não seria um problema, uma vez que todos sairiam ganhando se cada economia se especializasse naquilo que faz “melhor”. Para List, contudo, parecia algo completamente sem sentido permitir que seu país (Prússia) se submetesse como uma economia periférica no mercado mundial; ele almejava transformá-la em um competidor industrial à altura da economia inglesa. O sucesso de suas ideias é demonstrado pelo desenvolvimento econômico alemão após a unificação de 1870-1871. As lições de List foram absorvidas não só pela CEPAL, mas também por governos latino- americanos a partir da Grande Depressão. Era fundamental fazer com que os Estados nacionais na América Latina fossem dotados de capacidade operacional (com agências, com uma estrutura burocrática eficaz, com um arcabouço legal adequado) para intervir nos mercados e alterar as condições de inserção daquelas economias no mercado mundial. Era preciso estabelecer políticas que organizassem o mercado de importações, visto que as economias latino-americanas sofriam com constantes dificuldades cambiais (elas eram exportadoras de matérias-primas e recursos naturais e sofriam com a falta de moeda estrangeira sempre que a demanda internacional diminuía, ou quando os preços baixavam). Isso significava dizer que determinados itens deveriam ter prioridade ao serem importados e outros deveriam ser francamente desencorajados. Por exemplo, uma economia em processo de industrialização apresentará provavelmente uma forte propensão à importação de maquinário (já que inicialmente essa economia em processo de industrialização por substituição de importações não será capaz de produzir suas próprias máquinas). Ao mesmo tempo, essa economia, por não ser industrializada, também sofrerá forte pressão pela importação de bens de consumo, em muitos casos, supérfluos. Deixada ao sabor das “forças de mercado”, a importação de bens de consumo competiria com a importação de máquinas pelo mesmo estoque de moeda estrangeira disponível em determinado momento; além disso, qualquer empresário interessado em abrir uma firma industrial veria seus negócios inviabilizados pela pesada concorrência das firmas estrangeiras, detentoras de mais capital, mais tempo de mercado e melhor acesso à tecnologia. RESUMINDO Em uma situação de mercado livre, as chances de uma economia agroexportadora industrializar-se eram próximas de zero, de modo que os Estados se puseram a intervir nos mercados, priorizando, por exemplo, a oferta de divisas (Moeda estrangeira ou crédito em moeda estrangeira. ) para a importação de maquinário (necessário para a industrialização) e limitando essa mesma oferta quando destinada à importação de manufaturados potencialmente substituíveis por produtos nacionais. A manipulação das taxas de câmbio e a transferência intersetorial de renda foram iniciativas igualmente cruciais para o sucesso da substituição de importações. Por exemplo, privilegiava- se os exportadores de commodities com taxas de câmbio depreciadas (que lhes permitia, então, obter maior quantidade de moeda nacional por unidade de moeda estrangeira obtida com as vendas no exterior), e em seguida, extraía-se parte substancial desses ganhos via tributação; os recursos tributados permitiam que o Estado investisse em infraestrutura (geração de energia, construção de estradas e ferrovias etc.), em empresas públicas atuantes em setores cuja iniciativa privada não contava com capitais nem tecnologia suficiente. Mais adiante, já nos anos 1950, a tomada de empréstimos junto a governos estrangeiros e a participação em grandes projetos internacionais de suporte ao desenvolvimento se somaram à geração de divisas via exportações. Ao mesmo tempo, praticava-se taxas de câmbio valorizadas quando o objetivo da oferta de divisas era o de importar maquinário (barateando, assim, o custo da importação em moeda nacional).Interferências estatais dessa natureza no funcionamento dos mercados eram vistas com desgosto por atores de orientação liberal, que insistiam no caráter perturbador e ineficiente do Estado. Não obstante isso, mediante essas políticas, a industrialização ocorreu na América Latina, e não há qualquer evidência empírica de que, mantidos os mercados livres e desregulados, esse mesmo processo de industrialização ocorresse. TRANSFORMAÇÕES POLÍTICAS COM A INDUSTRIALIZAÇÃO E URBANIZAÇÃO Com o processo de industrialização acelerada, países como Brasil, Argentina e México foram fortemente impactados pelo avanço da urbanização. Foto: Autor desconhecido / Library of Congress Prints and Photographs Division Washington / Wikimedia Commons / Domínio público Avenida Rio Branco na década de 1910, no Rio de Janeiro. Até meados do século XX, o percentual de população vivendo em cidades era bastante reduzido, e as grandes metrópoles latino-americanas (Buenos Aires e Rio de Janeiro, principalmente) cresceram desacopladas de uma economia industrial sólida durante todo o século XIX e primeira metade do século XX. Imagem: IuliaIR/Shutterstock.com A geopolítica se reconfigurou após a Segunda Guerra Mundial Entretanto, após a Segunda Guerra Mundial, a expansão da economia urbano-industrial começou a exercer impactos sobre as formações políticas. Foto: Autor desconhecido / Archivo Gráfico de la Nación / Wikimedia Commons / Domínio público Manifestação do movimento sindical argentino "FORA" em 1915. A concentração populacional nas cidades fazia crescer um importante componente político – as massas operárias organizadas no movimento sindical. Partidos trabalhistas, socialistas e comunistas, alguns dos quais já nascidos na primeira metade do século, ganharam relevância como atores políticos. Foi nesse contexto, que a democracia latino-americana acabou se vendo afrontada por regimes ditatoriais na segundo metade do século XX. Ouça alguns comentários sobre Comunicação e Política, feitos pelo jornalista e resistente à ditadura brasileira Cid Benjamin. Utilize o player abaixo para ouvir. Objeto com interação. " LIMITES DO PROCESSO DE SUBSTITUIÇÃO DE IMPORTAÇÕES E AS MULTINACIONAIS Nem a industrialização por substituição de importações teria o poder de alterar por completo o padrão de dependência estrutural desenvolvido entre as economias latino-americanas e o centro do sistema capitalista. Processos de desenvolvimento econômico sustentado não podiam depender exclusivamente de substituição de importações. Isso porque economias como as latino-americanas, com baixo nível técnico e tecnológico — consequência dos muitos séculos de “vocação primário- exportadora” —, eram capazes de substituir produtos importados (produzindo-os por meio de empresas nacionais, públicas ou privadas) até certo ponto. Havia uma barreira tecnológica que impedia que fosse substituído todo tipo de importação. COMENTÁRIO Tecnologias não surgem do nada, nem podem ser desenvolvidas de forma independente no curto prazo; além disso, as tecnologias são protegidas por patentes. Foi quando as multinacionais entraram em jogo. Foto: Michael Warwick/Shutterstock.com Tradicionalmente, as economias dependentes latino-americanas importavam produtos manufaturados provenientes das economias centrais do sistema capitalista (países da Europa Ocidental e os Estados Unidos). Alcançado o teto tecnológico da possibilidade de substituir importados por similares nacionais nos anos 1950-1960, e diferentemente da estratégia tradicional, empresas multinacionais transfeririam suas operações fabris para o interior de algumas economias latino-americanas mais sofisticadas – como a brasileira. Foto: RMMPPhotography/Shutterstock.com Isso significava dizer que as empresas estrangeiras, em vez de exportar seus produtos elaborados em fábricas localizadas nos países de origem, passariam a exportar não os produtos, mas seu capital, implantando fábricas nos países dependentes latino-americanos para atender aos seus mercados. Foi assim que a Volkswagen e a Ford, por exemplo, implantaram-se no Brasil, iniciando a produção de veículos especificamente voltados ao mercado nacional ou regional. À primeira vista, parece uma estratégia sem contraindicações: As economias latino-americanas não dispõem de empresas com tecnologia necessária para o desenvolvimento de setores mais sofisticados (como o de automóveis, por exemplo). As economias latino-americanas precisariam acumular crescente volume de divisas estrangeiras (dólares, fundamentalmente) caso fossem importar esses produtos (lembre-se da deterioração dos termos de troca). Quando as multinacionais se transferem para países latino-americanos, passam a produzir localmente, o que significa dizer que divisas estrangeiras não são mais necessárias para a importação dos produtos (que são vendidos em moeda nacional). Essa nova etapa, de desenvolvimento dependente-associado, pareceu resolver todos os problemas econômicos latino-americanos. Tornava-se possível ter um setor industrial de ponta, mesmo que os latino-americanos não tivessem a propriedade da tecnologia necessária para esse mesmo setor. Pode-se imaginar, porém, que multinacional alguma implantaria filial na América Latina por mera filantropia. Essas empresas vinham aproveitar-se de vantagens em economias periféricas com trabalho barato e mercados consumidores em crescimento puxados pela expansão da classe média urbana. As vendas de veículos, eletrodomésticos etc., produzidos por essas multinacionais geravam receita na moeda nacional do país onde estava localizada. Entretanto, aquelas não eram empresas latino-americanas. Elas tinham sede em países centrais e, naturalmente, repatriariam seus lucros (ou seja, remeteriam esses lucros de volta para as matrizes nos países centrais). Para tal, essas empresas precisariam converter seus lucros, feitos em moeda nacional, em dólar. Elas pressionariam, então, os governos latino-americanos a providenciarem a oferta de dólares para a repatriação de lucros, e as únicas formas pelas quais uma economia dependente obteria dólares seria ou pela exportação de commodities, ou pela contração de dívidas com instituições financeiras no exterior. Nos dois casos, o padrão de dependência ao sistema internacional capitalista se repetia. Por conta disso, governos foram derrubados quando tentaram interferir nas remessas de lucros das empresas multinacionais. NEOLIBERALISMO E DEPENDÊNCIA Na década de 1970, o governo ditatorial de Augusto Pinochet, no Chile, surgiu como campo de testes para políticas econômicas de corte neoliberal. Isso antes mesmo de o neoliberalismo implantar-se como força no centro do capitalismo global, a partir da eleição de Ronald Reagan nos Estados Unidos, e pela ascensão da conservadora Margareth Thatcher ao cargo de primeiro-ministro. Foto: Ministerio de Relaciones Exteriores de Chile / Wikimedia Commons / CC BY 2.0 cl Augusto Pinochet em 1974 Neoliberais entendiam que os processos de substituição de importações tinham produzido desequilíbrios insustentáveis, uma vez que seria colocar “o carro na frente dos bois”. Se as economias subdesenvolvidas fossem mesmo alcançar um patamar industrial, isso devia ser feito através “do mercado”, “naturalmente”, e não por meio da intervenção do Estado, considerada uma intromissão “artificial”. COMENTÁRIO Em suma, os neoliberais advogavam em favor de algo análogo à teoria das vantagens comparativas, como “remédio” para o subdesenvolvimento. Sua alternativa ao desenvolvimento econômico amparado pelo Estado era a abertura irrestrita de mercados, a privatização, a especialização produtiva e, principalmente, a diminuição do Estado. Desde o início do processo de industrialização latino-americano, a concentração populacional urbana e a expansão do emprego industrial levaram à organização política da classe operária e, como tal, existiam expectativas por parte dos trabalhadoresquanto à expansão dos programas de bem-estar e de amparo ao emprego. Os neoliberais rejeitavam qualquer movimento que lembrasse o estado de bem-estar social e entendiam que, para garantir tanto postos de trabalho quanto o rendimento das firmas, era necessária a redução dos direitos trabalhistas. Foto: WebTV Sinttel-Rio / Wikimedia Commons / CC BY 3.0 Prédio do Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo do Campo. Mercados foram desregulados e o controle sobre os fluxos de capitais desimpedido, produzindo crises especulativas de grande porte, como na Rússia (1998) e no Brasil (1999) . Uma das principais orientações provenientes de pressão do Fundo Monetário Internacional sobre as economias periféricas ao final dos anos 1980 havia sido o fim da manipulação cambial por parte dos governos, mesmo que anteriormente essa manipulação se justificasse como um instrumento para fomentar a industrialização. As políticas do chamado “Consenso de Washington” convergiram para a liberação e desregulação dos mercados de dinheiro e de capitais. Então, com taxas de câmbio flutuantes e ampla facilidade para que capitais estrangeiros entrassem e saíssem dos países, os governos periféricos — e latino-americanos em particular — passaram a ter de praticar políticas de atração de capitais caso não desejassem enfrentar crises resultantes da fuga de “investidores”. Entre essas políticas, estavam o reforço à exportação de commodities e, principalmente, o emprego de taxas de juros elevadas, capazes de atrair capitais para a compra de papéis públicos bem remunerados. A segunda dessas medidas teve consequências graves em todo o mundo: Imagem: m3ron/Shutterstock.com Lembremo-nos da euforia com o Plano Real em seus primeiros anos, quando a classe média urbana comemorava a abertura comercial (com seus carros importados e eletrônicos) e o “dólar a um real”. javascript:void(0) Imagem: RHJPhtotoandilustration/Shutterstock.com Mas ignorava completamente o custo da empreitada. Para garantir o volume de dólares necessários para sustentar a paridade entre a moeda brasileira e a norte-americana, foi preciso contrair massivos empréstimos no mercado internacional. Imagem: RHJPhtotoandilustration/Shutterstock.com Os empréstimos fizeram elevar a dívida externa de forma brutal. Em 1999, a fatura chegava, e o próprio governo neoliberal de Fernando Henrique Cardoso seria obrigado a aceitar a depreciação do real. javascript:void(0) javascript:void(0) A VOCAÇÃO PRIMÁRIO-EXPORTADORA RETORNAVA COM FORÇA NA AUSÊNCIA DE INICIATIVAS CAPAZES DE CONTROLAR AS FORMAS DEPENDENTES DE INSERÇÃO DAS ECONOMIAS LATINO-AMERICANAS NO MERCADO MUNDIAL, E CONTROVERSOS PROCESSOS DE DESINDUSTRIALIZAÇÃO FORAM DIAGNOSTICADOS DESDE ENTÃO. A acelerada modernização das economias latino-americanas, após a abertura neoliberal, com a oferta de produtos e serviços de ponta, não esconde o fato de que não se trata de uma modernização autônoma, e sim, dependente dos humores do mercado mundial e de seus agentes mais poderosos, todos eles localizados nos mesmos países centrais do capitalismo global. VERIFICANDO O APRENDIZADO 1. POR QUE ECONOMIAS DEPENDENTES LATINO-AMERICANAS TIVERAM DE EMPREENDER POLÍTICAS ECONÔMICAS INTERVENCIONISTAS (COM FORTE PRESENÇA DO ESTADO) COM O OBJETIVO DE SE INDUSTRIALIZAR? A) Porque somente o Estado é capaz de criar indústrias. B) Porque fatores endógenos são os que importam no desenvolvimento. C) Porque havia pressão dos países ricos para a intervenção estatal. D) Porque era preciso estatizar toda a propriedade privada. E) Porque o livre mercado reforçava o perfil agrário-exportador. 2. QUAL O LIMITE DO DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO A PARTIR DO PROCESSO DE SUBSTITUIÇÃO DE IMPORTAÇÕES? A) A falta, nas economias subdesenvolvidas, de tecnologia capaz de gerar certos bens mais sofisticados nacionalmente; B) A ineficiência dos Estados, que o são por definição. Assim, um projeto de desenvolvimento a partir do Estado estará fadado ao fracasso. C) Não há limites, o livre mercado permitiu à América Latina superar sua vocação agrária, industrializando-a sem que fosse necessário o Estado. D) O impedimento, por parte dos países capitalistas ricos, de que suas empresas multinacionais implantassem filiais nos países subdesenvolvidos. E) Não há necessariamente limites, mas o desenvolvimento a partir da exportação de bens primários era mais capaz de oferecer um perfil equilibrado para a economia GABARITO 1. Por que economias dependentes latino-americanas tiveram de empreender políticas econômicas intervencionistas (com forte presença do Estado) com o objetivo de se industrializar? A alternativa "E " está correta. A substituição de importações requeria romper com o mercado livre, incentivando a produção de bens manufaturados nacionais similares aos importados. 2. Qual o limite do desenvolvimento econômico a partir do processo de substituição de importações? A alternativa "A " está correta. Economias como as latino-americanas, com baixo nível técnico e tecnológico – consequência dos muitos séculos de “vocação primário-exportadora”. CONCLUSÃO CONSIDERAÇÕES FINAIS Vimos que as formações políticas dependem não só da disputa política diária, da ação social por meio dos partidos, dos grupos de pressão e das entidades da sociedade civil, mas também de padrões de comportamento de lenta transformação, que chamamos de mentalidades. Na formação política brasileira, alguns temas nas mentalidades políticas chamam atenção pela sua recorrência ao longo dos séculos: a ideia de conciliação de elites, o patrimonialismo (que não é uma exclusividade brasileira, nem ibérica) e o impacto do passado escravocrata no comportamento político e social. Cada um desses componentes presentes nas mentalidades políticas não funciona como “camisa de força”, impedindo que os agentes deles discrepem; mas, na medida em que são estruturais, todos os agentes são pressionados pelo entorno social a se comportarem de acordo com essas mentalidades arraigadas. Sem dúvida, o problema das mentalidades políticas deve ser levado em conta por todos aqueles que pretendem trabalhar pela transformação política e social, porque as permanências comportamentais podem dificultá-la. Vimos ainda que o problema do desenvolvimento econômico latino-americano também é impactado por fenômenos estruturais, tal como as mentalidades. Nesse caso, foi a divisão internacional do trabalho, calcada na noção de vantagens comparativas, somada ao interesse de parcela das elites econômicas latino-americanas, que fez perdurar o padrão de inserção internacional primário-exportador até meados do século XX. E, ainda, percebemos como a Comunicação, em suas diversas concepções, é fundamental para a Política (também em diferentes entendimentos). A Comunicação pode promover ou cercear a liberdade e a democracia, assim como ser embasada por estruturas mais ou menos profundas da história sócio-política de um povo. AVALIAÇÃO DO TEMA: REFERÊNCIAS BIELSCHOWSKY, Ricardo (org). Cinquenta anos de pensamento da CEPAL. Rio de Janeiro: Record, 2000. FAORO, Raimundo. Os Donos do Poder: formação do patronato político brasileiro. 3. ed. Rio de Janeiro: Globo, 2001. RODRIGUES, José Honório. Conciliação e Reforma no Brasil. 2. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1982. SOUZA, Jessé. A elite do atraso: da escravidão à Lava Jato. Rio de Janeiro: Leya, 2017. EXPLORE+ Para saber mais sobre os assuntos tratados neste tema, assista: Quem Somos Nós? Que País é Esse?, com o professor Jessé Souza. O Pensamento sobre o Desenvolvimento Econômico em Perspectiva Histórica, palestra com o professor Ricardo Bielschowsky do Instituto de Economia da UFRJ. CONTEUDISTA Daniel Barreiros CURRÍCULO LATTES javascript:void(0);
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