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EDUCAÇÃO E TRABALHO AULA 1 Prof. Rui Valese 2 CONVERSA INICIAL Ao iniciarmos o estudo de determinada disciplina, é de fundamental importância começarmos por delimitar alguns conceitos sobre as quais esta está organizada. Assim, iniciaremos nosso estudo com base nos conceitos do que é educação, trabalho, relações sociais, cultural, social, entre outros que consideramos fundamentais. Porém, antes desses conceitos, precisamos fazer uma reflexão ontofilosófica. A educação é um ato especificamente humano, feito por e entre humanos. Assim, primeiramente, precisamos deixar explícita nossa compreensão de ser humano. Da mesma forma, afirmamos que todo educador, antes de iniciar seu trabalho, precisa, necessariamente, também encontrar sua definição de ser humano, com base na qual organizará toda a sua atividade profissional e pedagógica. Por fim, iniciaremos nossas reflexões sobre as relações entre trabalho e educação nas denominadas comunidades primitivas. Muito mais do que afirmações, pretendemos trazer algumas reflexões e provocações que levem a outras reflexões sobre a importância do fazer pedagógico e seu compromisso ético, político, cultural e emancipatório. TEMA 1 – ONTOLOGIA E EDUCAÇÃO Segundo o filósofo alemão Immanuel Kant, se “O homem é a única criatura que precisa ser educada” (Kant, 2002), é porque, também pela educação, o ser humano vai se humanizando. Desta forma, precisamos pensar a educação para além do processos ensino-aprendizagem. E, para tal, precisamos partir de alguns fundamentos sob os quais a educação será orientada. Assim, começaremos tratando da educação a partir de uma perspectiva ontológica. Por ontologia entendemos, a partir de seu sentido etimológico – onto (ente) + logia (logos) – a Ciência do Ser, o estudo do Ser enquanto Ser. Por Ser, aqui, estamos falando não do verbo, mas do seu sentido substantivo. Assim, o que caracteriza o Ser como Ser? Isto é, qual é a sua essência? O que caracteriza a sua identidade? Qual a sua substância? Por substância não estamos falando em sentido material, mas, aquilo que é permanente no Ser, que não se altera, mas, que o identifica. Da mesma forma, o que faz com que os indivíduos possam ser agrupados em determinada categoria de Ser. Por exemplo: qual é a 3 substância que nos caracteriza como ser humano? O que está presente em todos os indivíduos, sem nenhuma distinção de cor, etnia, gênero, crença ou não crença religiosa, condição social etc., que os coloca na condição de seres humanos? Ao longo da história do pensamento humano, é possível distinguir diferentes compreensões de ser humano, que implicam em diferentes consequências para o trabalho e educação. Por termos uma forte influência da cultura grego-judaica-latina em nossa formação, partiremos das compreensões de ser humano oriundas dessas três bases. Porém, faz-se necessário observar que as preocupações com a compreensão e definição de Ser não são exclusividade grega, e eles também não foram os primeiros. Em A filosofia antes dos gregos, o professor português catedrático da Universidade de Lisboa, José Nunes Carreira, afirma que O pensamento egípcio lançou a base mais importante para a criação de uma autêntica ontologia, a saber, os meios linguísticos necessários à formulação de noções filosóficas. Há na língua egípcia dois verbos para “ser”, um dos quais (wn/n/) com dois particípios, designando o “ente” e “o que foi”, uma capacidade que o latim não possui. E também na forma finita e fazem afirmações sobre a existência dos seres. (1994, p. 55). Da mesma forma, também na filosofia chinesa, em particular Confúcio, a ideia de Ser já estava presente. Por exemplo, quando ele afirma que, para realizar nossa vida moral de forma plena, é preciso “encontrar a pista central (shung) do nosso ser moral e ser harmonioso (yung) com o universo”, (Wing-tsit, 1978 – sem página indicada). Porém, dado que a nossa maior influência, como já dissemos, é a cultura judaico-grego-latina, partiremos delas para refletir sobre concepções de ser humano. Primeiramente, vejamos três definições de Ser, das quais derivam diferentes concepções. A primeira delas é a concepção essencialista. Segundo essa concepção, cada Ente (como também é chamado o Ser), tem uma essência que é fixa e pré- determinada. E, por consequência, cada indivíduo, dentre uma categoria de Ente, tem uma essência que também é fixa e pré-determinada. Por exemplo: todos os indivíduos da espécie humana, apesar das diferenças que os individualizam, têm uma essência em comum, que é fixa e pré-determinada, que os coloca na mesma categoria de Ser Humano. Essa essência é, também, nossa potência, como afirma Aristóteles. Somos constituídos da “substância” 4 humanidade, que é a nossa essência e que nos define, mas também somos constituídos de atributos acidentais, que não nos definem, mas nos individualizam: cor de pele, sexo, altura, cor dos olhos, cabelos etc. Em oposição à concepção essencialista, temos a naturalista, que também podemos chamar de empirista. Essa concepção afirma que os Entes são de acordo com as suas experiências. Isto é, quando nascemos, por exemplo, nada está pré-determinado, mas vamos nos constituindo com base nas experiências que vivemos. Fruto do pensamento de Descartes e Locke, a perspectiva naturalista concebe o ser humano pelo viés do dualismo psicofísico. Isto é, conforme o pensamento de Descartes, o ser humano é constituído de duas substâncias: res cogitans (espírito) e res extensa (matéria). A primeira, é parte pensante; a segunda, não pensante. Ambas, porém, em seu entender são imperfeitas, finitas e dependentes. Por fim, temos a concepção histórico-social, segundo a qual os Entes são naturais, históricos e sociais. Essa compreensão do ser humano surge com os pensadores alemães do século XVIII e XIX, entre eles Hegel, Marx e Engels, e se dividem entre os idealistas (que seguem o pensamento hegeliano) e os materialistas (que seguem o pensamento marxiano). Ao longo do século XIX e XX, outros pensadores também se opõem às perspectivas tradicionais e na direção do pensamento materialista, entre os quais podemos destacar Kierkegaard, Stirner, Nietzsche, Max Scheler, Heidegger, Merleau-Ponty, Sartre, Simone de Beauvoir etc. Apesar das muitas diferenças entre esses pensadores, o que há de comum entre eles é o fato de que consideram o ser humano como produtor de sua própria existência, e, para compreendê-lo, assim como para educá-lo, se faz necessário tomar como base o modo como ele se organiza para produzir os bens, materiais e imateriais, para produzir e reproduzir a sua existência material e imaterial. Retomando o que afirmamos com Kant anteriormente – de que o ser humano é o único animal que precisa ser educado – para realizarmos tal intento, se faz necessário ter claro de qual concepção de ser humano partirmos: essencialista, naturalista ou histórico-social? Independentemente de qual concepção partimos, é ela que fundamenta a nossa prática pedagógica, sendo o ponto de partida, o processo e o ponto de chegada. A educação é uma ação tipicamente humana. Feita por e para seres humanos. Da mesma forma, ao educarmos, buscamos alcançar determinados objetivos que estão, 5 necessariamente, vinculados a determinados fins. Por fim, aqui a entendemos não no sentido de terminalidade, mas de finalidade, isto é, de algo que se almeja alcançar por meio de determinada ação e após realizá-la. Da mesma forma, cada uma dessas concepções tem suas respectivas consequências e/ou finalidades. Se tomamos a concepção essencialista como fundamento, concebemos a nós e aos nossos educandos com as respectivas naturezas já dadas, definidas previamente. Quando partimos da concepção naturalista/empirista, nos concebemos e aos nossos educandos, inicialmente, como tábulasrasas, folhas de papel em branco sobre as quais vamos depositando, por meio das experiências, os conhecimentos. Por fim, se adotamos a perspectiva histórica-social, nem somos definidos previamente, nem a posteriori, mas, no próprio existir, em como existimos, em como produzimos e reproduzimos a nossa existência material e imaterial. Seja em qual delas nos fundamentamos, é importante ter clareza e coerência com ela. TEMA 2 – TRABALHO NAS RELAÇÕES SOCIAIS Uma das palavras-chave dessa disciplina é trabalho. Porém, o que é trabalho? Para respondermos a essa questão, começaremos pelo seu significado etimológico e histórico. Em seguida, trataremos do tema pela perspectiva materialista e histórico-social. Etimologicamente, a palavra trabalho vem do latim tripalium, que era um instrumento de tortura utilizado durante o Império Romano. Inicialmente, era a junção de três paus – daí o nome tripalium – que os agricultores utilizavam para bater o trigo, as espigas de milho e o linho. A partir do século VI da nossa era, passou a substituir a cruz nos suplícios aplicados a determinadas pessoas que eram julgadas e condenadas. Assim, ao invés de serem crucificadas, os condenados eram amarrados em um instrumento feito de um pau na vertical sobre o qual colocavam dois outros em forma de “X” e, cada um dos membros era amarrado em uma das extremidades. Desta forma, uma primeira representação de trabalho que temos é a de sofrimento, castigo, punição. Antes, porém, desse sentido etimológico, herdamos dos gregos a distinção entre trabalho manual e trabalho intelectual. O trabalho intelectual estava destinado às pessoas que tinham tempo livre, que tinham direito ao ócio. Com esse tempo livre, podiam se dedicar a atividades políticas, intelectuais, físicas, artísticas e educativas. Essas atividades, na Grécia 6 Antiga, estavam restritas apenas a uma parcela pequena da sociedade: os que eram considerados cidadãos – homens adultos livres e descendentes dos primeiros habitantes da Grécia Antiga. Já as atividades manuais, tais como a agricultura e pecuária, os serviços domésticos, enfim, todos os trabalhos manuais eram destinados aos não cidadãos: as mulheres, livres ou não, os escravos, os ex-escravos e os estrangeiros. Nessa mesma sociedade, o trabalho valorizado era o intelectual, já o trabalho manual, ainda que essencial, era desvalorizado. O trabalho intelectual somente era possível de ser ocupado por quem não precisava trabalhar manualmente para garantir sua subsistência, na medida em que tinha quem o fizesse. Essa divisão entre trabalho manual e trabalho intelectual, na sociedade ocidental, persiste até os dias atuais, sendo que o segundo é mais valorizado, financeira e socialmente, do que o primeiro. Herdeira do dualismo platônico da divisão entre corpo e alma: sendo o corpo e o que está relacionado a ele considerado inferior, corruptível; e, por outro lado, tudo que está relacionado à alma, superior, perfeito e incorruptível. Como forma de superarmos essa falsa oposição – trabalho manual X trabalho intelectual – passaremos, agora, a pensar o trabalho e sua relação com a educação considerando seu sentido dignificante, sem esquecermos, é claro, das condições degradantes de trabalho que tivemos ao longo da história humana. Primeiramente, por que consideramos a oposição trabalho manual X trabalho intelectual como falsa? Porque toda ação humana implica em esforço físico e intelectual. Não existe ação que seja exclusivamente física ou intelectual. O que chamamos de atividade intelectual, em realidade, é onde predomina o esforço mental, mas, que demanda, também, algum esforço físico. Entre os trabalhos que classificamos como intelectual, está a educação, como também o trabalho do médico, do engenheiro, do advogado, do administrador, do escritor, entre tantos outros. Da mesma forma, chamamos trabalho manual aquele para o qual o esforço físico é maior; no entanto, demanda, necessariamente, algum esforço intelectual. O pedreiro, o motorista, o agricultor, o trabalhador doméstico, o gari, o cozinheiro, entre outros profissionais são, da mesma forma, imprescindíveis à produção e reprodução da existência humana. 7 Ainda sobre a natureza do trabalho e da educação, podemos estabelecer duas outras distinções: assíncrono e síncrono. Por assíncrono, entendemos a interação que não acontece em tempo real, isto é, há uma distância temporal entre a sua realização/produção e sua apropriação. Por exemplo: entre a escrita de um livro e o seu consumo, há uma distância temporal. Da mesma forma, a obra escrita pode ser consumida mais de uma vez pela mesma pessoa e também por várias pessoas, uma vez que são publicados vários exemplares. O trabalho de escrita, produção, apropriação e consumo de um livro consideramos um processo assíncrono. No entanto, determinados produtos/serviços somente podem ser consumidos no exato momento de sua produção. A esses processos chamamos síncronos, ainda que possam se realizar de maneira assíncrona também. Porém, nesse caso, há a necessidade de estes serem gravados/filmados, disponibilizados por alguma forma midiática e tornado acessível a quem queira consumir/apropriar de maneira assíncrona. Por processos síncronos chamamos aqueles que são consumidos/apropriados no exato momento de sua produção (presencial ou remoto). Por exemplo: aulas ao vivo (remotas ou não), as mais diferentes modalidades de shows ao vivo (remotos ou não), entre outras atividades. As aulas nas modalidades presenciais são sempre síncronas, isto é, são produzidas e consumidas simultaneamente. Se essa aula não foi gravada para ser, posteriormente, disponibilizada para outras pessoas, não pode mais ser consumida. Mas, diante dos avanços tecnológicos alcançados nos dias atuais, uma aula presencial pode ser gravada/filmada e disponibilizada em plataformas digitais de compartilhamento de conteúdo. Porém, independentemente da modalidade de trabalho – se síncrono ou assíncrono; majoritariamente intelectual ou manual – o fato é que o trabalho educacional, mesmo passando por um processo profundo e necessário de transformações, não pode perder de vista aquilo que está previsto para o Ensino Superior – ensino, pesquisa e extensão (e que poderia ser ampliado para a Educação Básica, respeitadas as suas especificidades) – do mesmo modo que, para que aconteça, precisa, necessariamente, de um objeto a ser aprendido/ensinado, e de dois sujeitos que interajam nesse processo de ensino/aprendizagem: de um lado o docente, e, de outro, o discente. E, para que esse processo se efetive, comungamos com a afirmação de Freire: 8 É que não existe ensinar sem aprender e com isto eu quero dizer mais do que diria se dissesse que o ato de ensinar exige a existência de quem ensina e de quem aprende. Quero dizer que ensinar e aprender se vão dando de tal maneira que quem ensina aprende, de um lado, porque reconhece um conhecimento antes aprendido e, de outro, porque, observado a maneira como a curiosidade do aluno aprendiz trabalha para apreender o ensinando-se, sem o que não o aprende, o ensinante se ajuda a descobrir incertezas, acertos, equívocos. (2005, p. 19). A relação entre ensinar e aprender não é simplesmente de causa e efeito, mas, dialética, dialógica. Assim como também deve ser a relação entre docente e discente. TEMA 3 – TRABALHO E EDUCAÇÃO Apesar de, ao longo da história humana, sempre ter havido uma relação estreita entre educação e trabalho, essa relação poucas vezes foi pensada de forma a romper com uma perspectiva superficial, ingênua e, até certo ponto, preconceituosa em relação tanto à educação quanto ao trabalho. Por muito tempo, a educação foi vista como “missão”, “sacerdócio” ou “extensão das atividades domésticas”. Esses equívocos ainda permeiam o imaginário de muitos governantes brasileiros quando estes pensama educação. Da mesma forma o trabalho que, por sua divisão histórica em trabalho manual e trabalho intelectual, acabou por estabelecer, ao longo da história, principalmente nas sociedades influenciadas pela cultural hebreia-greco-latina, uma supervalorização do intelectual em detrimento do manual. Desta forma e, ao mesmo tempo, predominou a visão de trabalho como tortura, sofrimento, punição, castigo etc. Neste tema, abordaremos a relação educação e trabalho na perspectiva de ambas. São ações exclusivamente humanas e, portanto, conscientes e intencionais. Na mesma medida em que são ações por meio das quais agimos sobre e no mundo, também sofremos as consequências destas em nós. Igualmente, o trabalho tem uma dimensão educativa, assim como a educação é uma forma de trabalho. Comecemos por explorar um pouco o conceito de educação. A palavra “educação” deriva do latim educare, educere – ex (de dentro de, para fora) + ducere (tirar, levar). Nesse sentido, educar significa, numa tradução literal, levar alguma coisa de dentro para fora, provocar um processo de mudança, de movimentação. Ao pensarmos a educação considerando sua raiz 9 etimológica, percebemos que ela tem, pelo menos, dois sentidos: tirar algo de dentro da pessoa e levar a pessoa de um estado a outro. Assim, quando pensamos em educação, para além do processo ensino-aprendizagem, a entendemos como algo que acontece dentro do indivíduo que aprende, como uma tomada de consciência das coisas que aprende. Ao mesmo tempo, essa tomada de consciência o tira de determinada condição. A título de ilustração, pensemos sobre o processo de alfabetização e letramento de uma pessoa. Ao aprender a ler e a escrever, uma pessoa qualquer passa a olhar todas as coisas e seres que via antes, sabendo, além do nome que cada uma dessas coisas tem, representar de forma escrita o nome delas. Da mesma forma, não precisa mais da presença ou da representação imagética dessas mesmas coisas, mas pode percebê-las ao ler a palavra que a representa em determinado texto. Antes da alfabetização e do letramento, havia a necessidade da presença física de determinado ser ou de sua representação imagética. Agora, é capaz de compreendê-la por meio da palavra que a representa. Por conseguinte, a mudança não ocorre somente internamente, mas, a tira da condição de estabelecer apenas uma relação empírica com estes ao transitar por entre as coisas e seres. Agora, a relação pode ser, num estágio mais avançado, em nível abstrato, percebendo, ao mesmo tempo, que as letras e sílabas que compõem o nome das coisas e seres podem ser reagrupadas em novos pares e formar novas palavras, que nominam outras coisas e seres que tenham ou não relação com os anteriores. Trata-se do estágio em que o sujeito toma consciência de sua presença no mundo, mas, de uma forma distinta que os demais seres vivos e/ou coisas inanimadas. Para que a educação aconteça, nessa perspectiva, precisa orientar-se pela maiêutica socrática, adotando o viés dialógico, apontado por Paulo Freire como um dos pilares do processo de ensino-aprendizagem. Isto é, a ideia de que a educação é um processo de transmissão de conhecimento de alguém que sabe para alguém que não sabe, não faz sentido quando retomamos seu sentido etimológico. O pensador grego Sócrates não fazia pregações e/ou discursos em praça pública, mas inquiria as pessoas sobre suas supostas verdades. E o fazia por meio de perguntas que, necessariamente, levavam seus interlocutores a, primeiramente, refletirem sobre aquilo que afirmavam, para, somente depois, responderem aos questionamentos socráticos. Da mesma forma, o patrono da 10 educação brasileira, Paulo Freire, entendia a educação como uma ação dialética e dialógica. Para tratarmos do outro polo desse tópico – trabalho – faremos uso de uma narrativa mítica grega: o mito de Prometeu. Existe várias versões para a história sobre a qual nos basearemos. A que utilizaremos é a mais comumente utilizada. Conta-se que Zeus encarregou os titãs Prometeu e Epimeteu de criarem todas as criaturas e dotarem-nas das respectivas qualidades. No entanto, por sua natureza precipitada, Epimeteu foi distribuindo as mais diferentes qualidades aos seres vivos, sem atentar se a distribuição estava sendo equilibrada, para que todos os seres fossem contemplados com alguma qualidade. Ao chegar, porém, a vez de criar os seres humanos, Epimeteu percebeu que os deixara desprovidos de qualquer qualidade que os colocasse em condições de sobreviver ante às adversidades da vida. Ao perceber tal situação, recorre a seu irmão Prometeu. Este, para corrigir o erro, rouba o fogo dos deuses e o dá aos seres humanos. Desta forma, os seres humanos podem se proteger dos animais ferozes, como também cozer seus alimentos, aquecer- se nos momentos de frio e transformar os objetos, seja pela queima, derretimento ou aquecimento. Ao perceberem que os seres humanos tinham o fogo – que era privilégio dos deuses – e descobrirem que fora Prometeu quem o entregara, após roubá- lo do Monte Olimpo, os deuses castigam o titã com a sentença de ficar amarrado a uma rocha e ter seu fígado comido durante um dia inteiro por uma águia. À noite o fígado se regenerava e, no dia seguinte, o fato e repetia. Se, por meio do fogo, como uma tecnologia, o ser humano se liberta da natureza, podendo transformá-la – isto é, trabalhar (lado dignificante do trabalho) – também por meio do fogo, ao desafiarmos os deuses aceitando o presente de Prometeu, herdamos o lado indignificante do trabalho: ao longo do dia somos explorados em nossa energia física e intelectual (o nosso fígado) que, entre uma jornada e outra, precisa se regenerar (momento do descanso) para, no dia seguinte, recomeçar todo o processo novamente. Se Prometeu foi libertado por Hércules de sua punição, talvez a educação seja a nossa heroína que poderá nos libertar desse suplício. Afinal de contas, por meio da educação tomamos consciência de nós mesmos como sujeitos e do mundo, podendo, dessa forma, nos mover em direção à nossa emancipação. Assim, tanto o trabalho quanto a educação têm 11 uma dimensão ontológica e política: por meio do trabalho e da educação tomamos consciência de nós e do mundo, e nos construímos. Ao nos construirmos, somente o podemos fazer de forma coletiva, pois, como nos definiu Aristóteles: somos zoo politikon, isto é, somos um animal político. Viver na polis, isto é, em sociedade, é da nossa natureza. TEMA 4 – CONCEPÇÕES DE TRABALHO E A CULTURA SOCIAL Comecemos esse tópico relembrando de uma cena clássica do cinema. O filme é 2001: Uma Odisseia no Espaço (1968), de Stanley Kubrick: um primata/hominídeo, após descobrir que um osso (ao que parece, uma tíbia) poderia ser utilizado como ferramenta para intervir no mundo, transformando-o, protagoniza um salto cronológico espetacular ao lançar esse mesmo osso no espaço, que se metamorfoseia em nave espacial, refletindo, em poucos segundos, a evolução humana de uma condição de completa dependência da natureza, para um ser que busca a conquista do Universo. Quando nos deparamos com essa cena, podemos compreender a extensão da dimensão do trabalho na constituição da existência humana. Quando afirmamos que o ser humano se constitui por meio do trabalho, e que, por meio do trabalho nos libertamos da condição de completa dependência da natureza, se analisarmos apenas do ponto de vista teórico, a compreensão parece prejudicada. Porém, quando a fazemos a partir dessa cena, nossa compreensão se amplia. Os primeiros ancestrais dos seres humanos atuais, segundo as pesquisas arqueológicas e paleontológicas mais recentes, surgiram por volta de 3 a 4 milhões de anos atrás, pertencentes ao gênero Australopithecus. Por possuírem uma postura ereta, já andavam somente sobre duas pernas e tinham uma arcada dentária próxima danossa. Nesse processo de evolução, Homo habilis (2,4 milhões de anos) e Homo erectus (1,8 milhões de anos) tinham uma caixa craniana maior, maxilares com dentes mais largos e habitaram diversas regiões da África e da Ásia. Já a espécie que mais se aproxima de nós foi a Homo sapiens, que surgiu há cerca de 200 mil anos e apresentava habilidades físicas, uma linguagem complexa, a capacidade de criar ferramentas e, por conseguinte, havia conseguido iniciar esse processo de libertar-se da natureza. Esse é um período da história da evolução humana que ainda permanece bastante obscuro e que vem passando por redefinições por parte dos pesquisadores. Foi há cerca 12 de 150 mil anos que o Homo sapiens, dominando o fogo, começou a construir as ferramentas que foram aos poucos, libertando-o da natureza e, por conseguinte, possibilitando o desenvolvimento de uma linguagem mais complexa. Nesse processo de evolução, o outro grande momento é o do Período Paleolítico, que se iniciou há cerca de 2,5 milhões de anos e terminou em 8000 a.C., seguido do Período Neolítico (8000 a.C. – 5000 a.C.). No Paleolítico, o ser humano ainda era completamente dependente da natureza, vivendo basicamente da caça e da pesca e morando em cavernas, apesar de já dominar o fogo. Porém, é no Neolítico que se dão as grandes transformações: a criação da agricultura e da pecuária possibilitaram aos seres humanos deixarem a vida nômade e, construindo os primeiros vilarejos e cidades, tornarem-se sedentários. Ao mesmo tempo que as relações de poder se tornaram mais complexas, a escrita apareceu, e, por vários séculos, este será um instrumento de poder e controle nas sociedades. Em algumas culturas, inclusive, a escrita é tomada como de caráter divino e, por isso mesmo, restrita apenas aos sacerdotes e escribas. Sobre o aparecimento da escrita, novas descobertas têm colocado em xeque as explicações tradicionais. Costumou-se convencionar que o aparecimento da escrita havia se dado por volta do ano 3 mil a.C. Porém, descobertas recentes na China têm considerado que a escrita pode ter sido inventada cerca de 8.600 anos atrás. Todo esse processo é de fundamental importância para compreendermos o que nos diferencia dos demais seres vivos. Enquanto os demais seres são completamente dependentes da natureza, ao longo do nosso processo evolutivo, fomos nos libertando dela num primeiro momento, para, na sequência, buscarmos a sua compreensão (passagem de uma consciência mítica para uma consciência racional) e, posteriormente, identificarmos e elaborarmos leis que explicam o seu funcionamento (surgimento da mentalidade racional-científica – século XVII até os dias atuais). Não somos os únicos seres que transformam a natureza e constroem certa autonomia em relação a ela. Existem várias espécies que também conseguem interagir com a natureza com certa autonomia em relação a ela. No continente africano, gorilas e chimpanzés fazem uso de galhos e pedras para resolverem problemas diários na procura por alimentos. Nas Américas, o 13 macaco-prego utiliza-se de pedras para quebrar alimentos. As abelhas, por exemplo, têm todo um sistema complexo para a construção da colmeia e a coleta da matéria-prima para a fabricação do mel. Basta nós analisarmos um único item para termos uma dimensão de toda a engenharia utilizada por elas: existe uma única entrada para a colmeia, e esta é recoberta com própolis, um agente que impede a entrada e o desenvolvimento de qualquer agente infeccioso que possa contaminar o interior da colmeia, afetando os favos, os ovos e o próprio mel. Aliás, a palavra própolis significa “defesa da pólis”. A construção de teias pelas aranhas, assim como de ninhos por determinadas espécies também demonstram essa engenhosidade. Da mesma forma que determinadas aves, como os corvos, fazem uso de pequenos galhos para alcançar insetos nos troncos de árvores. Porém, o que diferencia as ações desses seres vivos das ações humanas? Ou seja, por que chamamos nossas ações de trabalho, e a dos demais seres vivos, não? Eis as principais características das nossas ações que nos levam a nominar nossa intervenção sobre a natureza como trabalho: intencionalidade, sociabilidade, historicidade, relação histórico-cultural com o meio e, por fim, as ferramentas que fabricamos manifestam o que somos – as nossas relações econômicas, políticas e simbólicas. Quando agimos sobre a natureza, o fazemos com intencionalidade. Essa intencionalidade se traduz no fato de que, antes de executarmos a nossa ação, nós a projetamos mentalmente e, somente depois, a executamos. Ao mesmo tempo, ainda que algumas das nossas ações possam ser feitas individualmente, elas tanto são feitas social e coletivamente quanto cumprem o papel de reforçar os laços de sociabilidade. Porém, essas ações não as fazemos sempre do mesmo jeito, muito menos da mesma forma que a fizemos desde a primeira vez. Isto é, nossas ações são históricas. Por exemplo: se o topo das árvores ou as cavernas foram as nossas primeiras moradas, hoje em dia, construímos casas que podem ser de madeira, pedra, alvenaria, papelão, zinco ou o que estiver ao alcance das nossas condições materiais. Por fim, para realizarmos todas essas ações, estabelecemos relações que são econômicas, políticas e simbólicas. Se, num primeiro momento, os seres humanos trabalhavam de maneira mais colaborativa, promovendo uma divisão de tarefas com base no sexo, com a criação da agropecuária e dos primeiros vilarejos, houve um excedente de produção e, consequentemente, alguns braços 14 foram liberados do trabalho produtivo e direcionados ou para a proteção do grupo, ou para a sua administração. Ao longo da história, diversas formam as relações de trabalho estabelecidas: coletiva, escravagista, servil, assalariada etc. E, dessa forma, surgiram as primeiras estruturas de poder que, para poderem se manter, precisaram explicar, justificar e legitimar a si mesmas. Isso significou o aparecimento da política e das representações simbólicas que caracterizam a cultura. TEMA 5 – TRABALHO E EDUCAÇÃO NAS COMUNIDADES PRIMITIVAS Iniciamos, a partir de agora, uma retrospectiva histórica das relações entre educação e trabalho nas mais diferentes sociedades e tempos históricos. Porém, antes de continuarmos, se faz necessário observar que não temos a pretensão de abarcar todo o período histórico da humanidade, muito menos de todas as sociedades. Partiremos dos períodos e das sociedades mais clássicas. Nosso objetivo é discutir as relações que se estabeleceram entre educação e trabalho. Uma segunda observação diz respeito ao uso do termo “sociedade primitiva”. O termo “primitivo” quase sempre vem carregado de sentido pejorativo e ideológico; além de ambiguidades. Os primeiros escritos sobre sociedades primitivas foram produzidos por juristas e tinham como preocupações centrais os problemas relacionados à propriedade dos bens e das relações matrimoniais entre os indivíduos dessas sociedades. No século XIX, numa interpretação enviesada e equivocada do darwinismo, o conceito de primitivo foi oposto ao de civilização, sendo esse segundo apresentado como superior àquele. Ao mesmo tempo, os povos europeus foram classificados como civilizados, enquanto os povos dos demais continentes foram categorizados como primitivos. Desta forma, era legítima a dominação do branco europeu sobre o negro africano, os povos originários das Américas e também sobre os asiáticos. Nos primeiros anos dos estudos antropológicos, essa qualificação serviu para justificar e legitimar o eurocentrismo que vinha sendo praticado desde que fora iniciado o expansionismo marítimo ibérico dos séculos XV e XVI. No entanto, esse não é o sentido que trataremos aqui e, por isso mesmo, optaremos pela expressão sociedades primevas. Ainda que nos dicionários também verificamoso termo “primitivo” como sinônimo de primevo, o sentido que 15 entendemos é como primeiro, primário; sem que, com isso, estejamos emitindo e/ou reforçando qualquer juízo de valor. No entendimento do senso comum, e mesmo do preconceituoso, as sociedades primevas são vistas como aquelas que não têm Estado, não têm classes, não têm escrita, não têm comércio, não têm história, não têm escola, não têm educação, não têm cultura, não são civilizadas etc. Porém, essa é uma visão equivocada, pois os parâmetros utilizados para julgamento são os etnocêntricos. Entretanto, ao analisarmos essas mesmas sociedades com base em estudos antropológicos científicos e sérios, observamos uma série de características que as tornam particulares. Nessas sociedades há o predomínio de uma consciência mítica, e nisso não há nenhum desmerecimento. São constituídas por agrupamento de famílias, caracterizadas por relações patriarcais ou matriarcais de poder. A oralidade é importantíssima na transmissão dos saberes e histórias dos antepassados, bem como a organização de determinados momentos e rituais em que essas memórias são transmitidas aos integrantes do grupo. Nas sociedades primevas, também, a organização do trabalho é bastante característica, predominando, quase sempre, o trabalho coletivo, com a divisão sexual deste. Por serem sociedades em que a subsistência era uma característica muito forte, atividades como caça, pesca, coleta de frutos e raízes e até mesmo as primeiras atividades de agricultura e pecuária não passavam pela posse privada da terra e/ou dos recursos. Curiosamente, isso acabava por se traduzir até mesmo nas próprias línguas faladas, pois, em boa parte delas, o pronome possessivo é inexistente. Mas, e a educação? O que sabemos sobre os processos educacionais nessas sociedades? Não existia um momento formal e institucionalizado de ensino- aprendizagem. Ela acontecia, ao que parece, ao longo do dia e da vida, a partir de situações corriqueiras, como nos afazeres de preparar as refeições, confeccionar instrumentos de caça e pesca, bem como de defesa e utensílios domésticos. Desta forma, o aprendizado se dava por imitação e em situações reais. Da mesma forma, não havia alguém especificamente encarregado para essa tarefa. A criança poderia aprender com qualquer adulto que estivesse por perto. Ou seja, todos os adultos são responsáveis pela educação das crianças. 16 Igualmente, há atenção e paciência com o ritmo de desenvolvimento e aprendizagem das crianças, sendo descartados os castigos físicos e as repreensões. Apenas as tarefas vinculadas ao sagrado e à cura medicinal por meio de plantas e rituais eram aprendidas por meio de um processo de formação, que começava com a identificação de vocação e/ou chamado para exercer tal tarefa; que também poderia ser por hereditariedade. Porém, mesmo nessa hipótese, há uma longa preparação que passa pelo conhecimento profundo das plantas medicinais, bem como de um conhecimento integral de toda a natureza. NA PRÁTICA Quando os portugueses e espanhóis chegaram em solo ameríndio, trouxeram também religiosos jesuítas, franciscanos e dominicanos. Esses religiosos realizaram duas tarefas diretamente: atuaram na educação e na conversão dos povos originários ao catolicismo. As consequências desse processo nós as conhecemos pelos estudos de história, sendo a principal delas a desaculturação. Nos dias atuais, algumas denominações religiosas ainda insistem nessas mesmas práticas. Faça uma pesquisa científica sobre os impactos que essas “missões” têm sobre a vida e a organização dessas comunidades. Procure sites especializados e artigos publicados em revistas de antropologia e sociologia para fundamentar suas pesquisas. FINALIZANDO Nesta aula, exploramos alguns conteúdos que são fundamentais e fundantes de uma disciplina relacionada à educação e, em particular, educação e trabalho. Começamos por refletir sobre os aspectos relacionados à ontologia e educação. Quando falamos de educação, precisamos partir de uma concepção de ser humano. O trabalho educacional fundamenta-se numa ontologia. Assim, quando atuamos como educadores, qual a concepção de ser humano que fundamenta a nossa prática, e, que tipo de ser humano queremos formar? Vimos também que a educação faz parte das nossas relações sociais e, ao longo da história humana, trabalho e educação sempre estiveram vinculados. Por isso, foi de fundamental importância refletirmos sobre as diferentes concepções de trabalho e suas relações com a cultura social de determinada 17 sociedade. Por fim, refletimos sobre as relações entre trabalho e educação nas comunidades primitivas. 18 REFERÊNCIAS CARREIRA, J. N. Filosofia antes dos gregos. Mem Martins: Publicações Europa-América, 1994. FREIRE. P. Professora sim, tia não. Cartas a quem ousa ensinar. São Paulo: Editora Olho d´Água, 1997. KANT, I .Sobre a pedagogia. Trad.: Francisco CockFontanella. Editora Unmep, 2002. WING-TSIT, C. A história da filosofia chinesa. Disponível em: <https://voluntas.tripod.com/Hp/fchinesa.htm>. Acesso em: 30 out. 2021.
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