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Para o meu pai, que teria adorado este livro. Capítulo 1 Subi os degraus da estação de Venezia Santa Lucia a correr, a poucos minutos de o comboio partir sem nós e a tentar acompanhar o ritmo do Si, que ia vários metros à minha frente e já a atravessar as portas de vidro da entrada da estação. — Vá lá, Hannah! — gritou, desaparecendo-me de vista. Resmunguei baixinho enquanto corria aos ziguezagues pelo meio de um grupo de cerca de 150 turistas que tinham decidido que aquele era o lugar ideal para se porem a olhar para os mapas como se estivessem perdidos. — Desculpem — disse eu, passando por eles aos encontrões, com a respiração entrecortada e o coração a palpitar no peito. Perder o comboio estava fora de questão. Se não o apanhássemos, teríamos uma discussão completamente desnecessária. Acelerei pelos últimos degraus acima com suor a escorrer-me pelas costas, a encharcar-me a camisola muito �na e a acumular- se na cintura das calças de ganga, que estava cada vez mais arrependida de ter trazido com os 30 graus que se faziam sentir. Pensava que estava a ser inteligente: tinha a certeza de que o comboio iria �car gelado a meio da noite, pelo que me vestira em conformidade. No entanto, naquele momento, com o sol de julho a bater-me diretamente na cabeça, aquela roupa estava longe de ser a ideal. Entrei na estação atrás do Si, com di�culdade em manter o ritmo e a ver-lhe o cabelo louro a aparecer e a desaparecer. A minha mala, que, claramente, não tinha sido concebida para ser manobrada a alta velocidade, estava sempre a cair para o lado ou a embater-me dolorosamente no tornozelo. Era como se tudo o que Veneza tinha de bom se tivesse evaporado no segundo em que atravessei as portas da estação a correr. Já não ouvia táxis aquáticos a buzinar uns para os outros nem podia tirar fotogra�as do re�exo do sol a pôr-se no Grande Canal. Em vez disso, ouvia um burburinho incessante, anúncios demasiado altos num italiano frenético e birras de crianças cansadas e cheias de calor. Era uma pena que a minha impressão futura da bela cidade de Veneza pudesse vir a �car manchada por aquele bloco de cimento caótico e iluminação �uorescente a que chamavam estação. — Estás a abrandar! — gritou o Si por cima do ombro. Esperou que eu o alcançasse, pegou-me pela mão e puxou-me para o acompanhar. Devia parecer ridícula, com o meu casaco de malha a voar atrás de mim como a capa de um super-herói enquanto o meu namorado me rebocava pelo átrio da estação sem qualquer cerimónia. Os meus pés nunca tinham andado tão depressa. Serpenteámos por entre a multidão, contornando as �las assustadoramente compridas para as máquinas de bilhetes porque, antes de sairmos de Londres, o Si tinha tido o discernimento de imprimir os nossos. — Ora bem. Qual é a linha? — disse ele, ofegante, depois de pousar a mala e parar tão repentinamente que eu tropecei no calcanhar do sapato dele e por pouco não fui a voar direta para o chão. Na verdade, uma parte de mim só queria acabar com aquilo tudo e admitir a derrota. Podíamos passar mais uma noite em Veneza, jantar descansadamente, passear ao �m da noite nas tão românticas ruas secundárias de Cannaregio, que era a zona que não tivéramos tempo de explorar como devia ser. Isto se a Catherine, irmã do Si, não tivesse casamento marcado para Amesterdão na tarde seguinte, claro. Nunca nos perdoaria se chegássemos atrasados ou, pior ainda, se não chegássemos. Pousei as mãos nas ancas, esbaforida, a olhar para o rosto do Si, enquanto ele estava concentrado a ler o painel de partidas e a murmurar baixinho: Roma Termini, Milano Centrale, Verona Porta Nuova. Fiquei surpreendida com a excelente pronúncia com que ele dizia os nomes daqueles lugares italianos, um talento que eu não fazia ideia de que ele possuía. — Amesterdão, linha 5 — disse ele, lançando-me um olhar de relance e dando-me a mão. — Vamos, Hannah. Acho que conseguimos chegar a tempo. Recomeçámos a correr, passámos apressadamente por um lugar chamado Relax and Caffé, cujo nome seria decerto uma ironia. Segui na pista do Si e abri caminho por entre a multidão, sem deixar de, a cada passo, me desviar das perigosas e sorrateiras rodas das pequenas malas que não paravam de aparecer à nossa frente a cada curva que fazíamos. — Estamos quase a chegar — gritou ele, apontando para algo mais à frente. O nosso comboio, decorado patrioticamente com as três cores da bandeira italiana, pairava sobre os carris, esguio e imóvel, de portas abertas como que para nos tentar: podíamos chegar a tempo, mas será que chegaríamos? O Si estendeu o braço em direção ao meu, puxou a pega da minha mala do meu punho fechado e acelerou à minha frente com uma mala levantada em cada braço. Arquejante, e apesar de estar a sentir uma pontada de dor lancinante, inclinei-me para a frente como uma velocista prestes a cruzar a meta. Ouviu-se uma buzina. — Raios! — gritou o Si. — Espere! — berrou para um segurança. Precipitámo-nos para a carruagem mais próxima. O Si atirou as nossas malas para o interior e empurrou-me pelas escadas acima atrás delas. Eu virei-me para veri�car que ele estava atrás de mim e estremeci ao ver as portas fecharem-se contra ele e voltarem a abrir-se quando ele as forçou para entrar e, por �m, a fecharem- se de�nitivamente. O comboio começou a mover-se quase de imediato, trepidante de início, e, depois, a acelerar suavemente e a sair das sombras da estação. — Estás bem? — perguntou-me o Si enquanto limpava o suor da testa com a palma da mão. — Acho que sim — respondi, sem fôlego, a esfregar o meu �anco direito. Despi o casaco de malha, atei-o à volta da cintura e recostei- me, demasiado exausta para me incomodar por ter a boca do extintor a fazer-me pressão nas costas. Quando levantei os braços e os estiquei à minha frente, reparei, à luz dourada que entrava pelas janelas, que estavam bastante bronzeados depois de alguns dias debaixo do sol de Veneza e que o meu cabelo, habitualmente castanho-escuro, parecia ter laivos louros. Ao nosso lado estava a lagoa, havia táxis aquáticos privados a seguir a toda a brida pela água, provavelmente trazendo e levando passageiros de e para o aeroporto. Custavam uma fortuna, pelo que escusado será dizer que passei a viagem inteira a observá-los com inveja a partir das longas �las para o autocarro aquático. O Si dobrou-se, abriu o fecho da mala dele e mergulhou os braços no interior, de onde retirou os nossos bilhetes com um gesto teatral. — Pelo menos um de nós é organizado — disse ele, rindo-se consigo próprio. — A sério, Hannah, o que farias sem mim, hem? — Tenho a certeza de que me desenrascaria — murmurei baixinho. Não estava com paciência para os gracejos dele sobre a minha falta de préstimo. Ele ouviu-me e levantou a cabeça, com um semblante cético. — A avaliar pela última hora, não me parece. Até parecia que eu tinha deixado a minha carteira de propósito no balcão da simpática lojinha de lembranças perto do hotel. Não me tinha apercebido de que a tinha perdido até ao momento em que ia pagar os bilhetes do autocarro aquático e, claro, tivemos de voltar para a irmos buscar, a correr como perdidos no meio da multidão e a evitar as hordas de turistas com mochilas às costas a vaguearem a passo de caracol pelas passagens empedradas. A bonita rapariga de cabelo preto que lá trabalhava tirou-a de baixo do balcão e entregou-ma com um sorriso radiante. Quando chegámos de volta à paragem do autocarro, a �la estava quatro vezes maior. Sugeri que juntássemos os poucos euros que nos restavam e chamássemos um táxi privado, mas o Si recusou terminantemente, apontando para os preços escandalosos. Tendo em conta o dinheiro que ele já devia ter gastado na viagem, pareceu-me que não era a melhor altura para impor um limite. Ele levantou-se e afagou-me o cabelo. — Conseguimos. Isso é que importa — disse-me. Eu assenti com a cabeça. Peguei na minha mala e tive di�culdade em puxar a pega extensível para cima, pelo que acabei por prender o dedo ao fazer força. Estremeci, chupando o dedo para aliviar a dor.O Si, que não tinha reparado, bateu com a base da palma da mão no botão para abrir as portas e passarmos para a carruagem seguinte. Eu segui-o como um lemingue, a pisar os dedos dos pés de outras pessoas segundo sim segundo não e a desfazer-me em desculpas logo de seguida. — Cá estamos nós — disse o Si alegremente, quando parou à porta do compartimento da carruagem-cama de primeira classe que reservara para me fazer uma surpresa. Eu esperei que ele abrisse a porta. — Oh — exclamou ele. Espreitei por cima do ombro dele. Já havia uma família lá dentro, um casal e um menino pequeno, com coisas espalhadas por todo o lado e uma confusão de brinquedos de plástico coloridos a cobrir o chão. — Desculpe, mas este é o nosso compartimento — disse o Si, mostrando os bilhetes ao homem e pousando as malas no chão para marcar território. — Está a ver? Compartimento 4, carruagem H. Talvez o vosso seja mais lá à frente. O homem virou-se e disse algo em francês à mulher, que estava sentada na beira da parte de cima do beliche com as pernas a baloiçar. Tinha um daqueles penteados lisos, brilhantes e completamente simétricos que iam só até ao queixo, e eu levei instintivamente a mão aos meus caracóis, que tinham �cado frisados e despenteados com o calor. Ficámos ambos à espera, especados e um pouco constrangidos. Senti pena do rapazinho, que estava a brincar, envergonhado, atrás das pernas do pai, mas também pensei que, em princípio, eles não �cariam sem um compartimento para eles. Tinham-se apenas enganado. Depois de muito ruge-ruge de documentos e de trocas de palavras demasiado rápidas para que eu fosse capaz de compreender o que quer que fosse, o homem mostrou um papel ao Si. Olhámos ambos para o documento: o bilhete era idêntico ao nosso: comboio de Veneza para Amesterdão às 19h20, carruagem H, compartimento 4. — Por amor de Deus — disse o Si entre dentes. Era óbvio que tinha havido uma sobreposição de reservas. E eles tinham um �lho, pelo que era claro que deviam �car onde estavam. No entanto, eu começava a descon�ar que o Si detestava sair a perder, fosse qual fosse a situação. Um ano juntos não era assim tanto tempo no cômputo geral e ainda havia muito que tínhamos de descobrir acerca um do outro, sobretudo desde que partilhávamos um apartamento. — Vamos procurar o responsável pelo comboio, não é melhor? — disse o Si, sem ceder. — Como queira — disse o francês, encolhendo os ombros com desprezo. Eu recuei para o corredor. — Anda, Si. Deixa lá isso. O Si acabou por desistir e por me seguir, após o que se encaminhou diretamente para a primeira funcionária da companhia de caminhos de ferro que vimos. Disse-lhe que queria fazer uma reclamação o�cial. Ela explicou (para grande irritação do Si) que não podia fazer nada a bordo e que teríamos de ir à bilheteira assim que chegássemos a Amesterdão. Apesar de, a meio do caminho, ele ter tido outra discussão com a empregada que trazia o carrinho das bebidas, acabámos por �car num par de bancos apertado e duro como pedra, na classe económica, duas carruagens mais à frente. O Si estava a fumegar de raiva, mas fazia de conta que estava tudo bem. — Vamos �car bem aqui — disse ele, enquanto tentava en�ar a mala no compartimento para bagagens superior. Acabou por a empurrar com os pés para debaixo do assento quando �nalmente percebeu que não ia caber. Eu afastei os joelhos para o deixar passar. Tinha-lhe cedido o banco do lado da janela porque já tinha estado numa viagem com ele num comboio e lembrei-me de que ele não parara de resmungar que as pessoas estavam «sempre» a bater-lhe no ombro. Além disso, eu sabia que, assim que nos instalássemos, ele não demoraria a adormecer, pelo que seria melhor para ele se pudesse encostar-se ao vidro. O único senão era que eu ia �car presa naquele lugar nas 15 horas seguintes e nem sequer iria poder devanear enquanto olhava pela janela ou passar o tempo a tirar fotogra�as tremidas à paisagem. Passei os dedos pela alça da máquina fotográ�ca que estivera pendurada quase em permanência ao meu pescoço nos dias anteriores a perguntar-me se teria tempo de gastar meio rolo em Amesterdão antes do casamento. — Peço desculpa por isto, Han — disse o Si, com um ar encabulado. — Que confusão. — Pegou-me na mão e afagou a pele entre o polegar e o indicador. — Isto era para ser uma surpresa especial. A�nal, só se faz 30 anos uma vez. Eu rodei os joelhos para o encarar e fechei as mãos no seu rosto. — Não há problema, Si. A sério. Estou a gostar muito da nossa viagem. — Mas eu tinha tudo tão bem planeado — continuou. — No Tripadvisor, as pessoas adoravam os compartimentos de primeira classe, diziam que eram acolhedores e românticos. De outra forma, eu teria reservado um voo. — E é romântico — insisti. — E �car sem cama durante a noite só aumenta a aventura. — Não era bem em aventura que eu estava a pensar — disse ele, apoiando o cotovelo no peitoril da janela e beliscando o cimo do nariz com o polegar e o indicador. Era evidente que estava fulo por as coisas não terem corrido exatamente como ele tinha planeado. Bem-vindo ao meu mundo, pensei. — Tenta descontrair-te — disse-lhe, enquanto, à falta de um leque, procurava arejar-me com a mão, pois já estava com demasiado calor. — E aqui nem sequer há ar condicionado, pelo que vejo — disse o Si, limpando o lábio superior ao ombro da t-shirt. — Também não deve haver no compartimento, então — calculei, enquanto pegava no meu livro, decidida a deixá-lo a ferver de raiva durante algum tempo. Estava a meio do livro Em Parte Incerta, que a minha amiga Ellie me emprestara porque, pretensamente, eu era a única pessoa que não o tinha lido. Não obstante as tendências psicóticas da protagonista feminina, achei que havia algo muito apelativo na ideia de deixarmos a vida que tínhamos para trás e nos reinventarmos como pessoas completamente diferentes. Creio que, de uma forma muito mais limitada, eu também mudara depois de conhecer o Si. Tinha-me tornado uma versão mais contida e mais resolvida de mim própria. O tipo de namorada que eu achava que ele merecia e que eu sempre suspeitara que tinha capacidade de ser quando conhecesse a pessoa certa. E depois do que eu descobrira em Veneza, parecia que estava a resultar. Mordi o lábio, incapaz de conter um sorriso quando tentava aconchegar-me no banco e pousar a cabeça no ombro do Si. — Tenho de ir à casa de banho — sussurrou-me ele ao ouvido ao �m de algum tempo, enquanto me afagava a coxa. — Desculpa, amor. Sentei-me direita, sufocando um bocejo. — Que horas são? O Si olhou para o relógio. — Dez e dez. Um pouco menos de doze horas para chegar, portanto. Um dia inteiro de trabalho mais meio dia de outro. Doía-me o pescoço e queria desesperadamente esticar o corpo todo, adormecer de costas com as pernas estendidas e abertas como uma estrela-do- mar. Quando me pus em pé para o deixar passar, senti as pernas a cederem. — Já volto — disse ele, avançando até ao fundo do corredor. Eu �quei a vê-lo, maravilhada pelo facto de, mesmo naquelas circunstâncias, ele conseguir continuar a apresentar-se todo alinhado e arranjado com o polo verde-esmeralda e as calças de ganga anil. Aos 33 anos, o cabelo louro apresentava o mesmo tom cor de mel natural que, segundo diziam, tinha aos 5 anos, o que o fazia continuar a parecer muito jovem. Tinham-lhe pedido a identi�cação na Marks & Spencer pouco tempo antes, por exemplo, o que era algo que não me acontecia havia mais de uma década. Para piorar as coisas, numa manhã da semana em que íamos viajar, eu estava a escovar o cabelo e a puxar a minha franja curta para o lado para a prender, só para variar um pouco, e eis que o vi: o meu primeiro cabelo branco. Como seria possível, quando eu estava literalmente a acabar de sair dos vintes? Começara imediatamente a ter ideias macabras sobre a minha morte iminente (que parecia mais próxima do que nunca) e a pensar que ainda não tinha alcançado metade daquilo que queria alcançar. Nem sequer podia culpar os meus genes: a minha mãe tinha 57 anos e eu nunca tinha visto nenhumcabelo branco a manchar o seu belo cabelo louro-escuro. E não fazia ideia se o meu pai tinha �cado grisalho ou não. Ele tinha o cabelo escuro como o meu e também a pele morena como a minha. Além disso, também era pequeno e maciço, como eu pensava que eu era, pelo que talvez devesse culpar o meu pai pelo cabelo branco. Porque não, já que ele não estava por perto para me contrariar? Voltei a sentar-me e pus-me à procura de sinais de vida do outro lado da janela, algo que me pudesse dizer onde estávamos. À medida que o comboio seguia a matraquear pelos carris adiante, eu tinha perdido a noção do país em que nos encontrávamos, como se o comboio pudesse estar a levar-me para qualquer lugar e eu estivesse a deixar-me ir. Lá fora, só ocasionalmente aparecia uma luz no horizonte, como um salpico de tinta amarela numa tela negra. Via os miúdos americanos conversadores do outro lado do corredor re�etidos no vidro. Estavam a dormir, �nalmente, cada um caído sobre um dos pais, os olhos fechados, mas não completamente, pelo que ainda se via um vislumbre de branco entre as pálpebras. Perguntei-me se aqueles pais seríamos eu e o Si dali a alguns anos: os dois a viajar pela Europa com duas crianças atrás de nós. A acabar com discussões por causa de doces e de quem tinha estado mais tempo a jogar na consola da Nintendo. Ouvi o telefone do Si a vibrar. Não era costume dele ir aonde quer que fosse sem aquele objeto precioso: um iPhone em tons de ouro e cobre que estava praticamente soldado à mão dele. Depois de apalpar o chão com o pé, acabei por o encontrar na junção dos dois bancos. Tinha uma pré-visualização de mensagem no topo do ecrã e eu olhei para ela de relance, pensando que era a irmã dele, que estava sempre e enviar-lhe mensagens nas vésperas do casamento. Pousei-o na mesa rebatível do lado dele. Quando olhei para cima, o Si estava ao meu lado. — Trouxe umas bebidas para nós — disse ele. — Ótimo — disse eu, sorrindo-lhe. Aí estava algo que era capaz de animar as coisas. Ele passou junto aos meus joelhos, deixou-se cair no banco e pegou no telefone. — Oh — disse ele. — Pensava que o tinha levado comigo. Olhou para o ecrã. — Recebeste uma mensagem — disse eu. — Ai sim? Premiu um botão, impaciente. — Quem era? — Trabalho — respondeu, levando o telefone ao bolso. — Não me digas que era o Dave? — disse eu, referindo-me ao seu novo e impertinente supervisor. O Dave tornara a vida do Si um inferno desde que chegara, alguns meses antes da nossa viagem, e estava sempre a implicar com ele por tudo e por nada. Ou isso ou estava a tentar atribuir a culpa ao Si por algum erro que ele próprio tinha cometido. — Não, graças a Deus, e ele é a última pessoa em que quero pensar esta noite — disse o Si, puxando a minha mesa para baixo com mais força do que seria necessário. — Toma. Trouxe-te um vinho. Eu abri a garrafa com cuidado, e verti o néctar vermelho-rubi perfumado num frágil copo de plástico. Oh, o glamour das viagens de comboio. O Si fez o mesmo com a sua água com gás. Eu tinha orgulho nele por ele manter a regra autoimposta de não consumir álcool, mas, dadas as tensões do dia, pensei que ele �caria muito melhor com um brandy. Era estranho que ele já não bebesse, e eu tinha �cado aliviada ao veri�car que não era a única a ter essa opinião. A Ellie e o namorado, o John, �caram espantados quando foram ao meu jantar de aniversário no mês anterior à espera de que a noite redundasse na habitual farra bem regada. — Esse é exatamente o tipo de som que eu gosto de ouvir ao entrar numa sala — dissera a Ellie, ao assomar à porta no preciso momento em que eu estava a abrir uma garrafa de Prosecco. Aproximara-se da mesa para me puxar e me dar um abraço. — Feliz aniversário, Han. Eu retribuíra o abraço com afeto. — Obrigada aos dois por terem vindo. — Toma, põe isto no frigorí�co — dissera ela com um piscar de olhos cúmplice, depositando-me uma garrafa de vinho nas mãos. O Si e o John seguiram-na até à cozinha, já em plena conversa sobre futebol. Aparentemente, o Arsenal estava a jogar bem, o que parecia agradar a ambos. Eu tinha catalogado o Si como um adepto de futebol nas boas ocasiões, uma vez que só mostrava interesse no clube dele quando a equipa estava a ganhar. Além disso, eu achava que ele �ngia gostar de futebol mais do que na verdade gostava, dependendo da pessoa com quem estava. Creio que não o podia censurar por isso. Não fazemos todos o mesmo: não mostramos um entusiasmo relativo por algo com base no quanto queremos fazer parte de um grupo? — Bem, bebidas — dissera eu, enquanto as distribuía. — Ups! Desculpa, Si — desculpara-me e voltara para trás, indo ao frigorí�co buscar o sumo de laranja e enchendo uma �ute com ele. — Quase me esquecia de ti. A Ellie parecera confusa. — Não bebes, Si? O Si passara atrás de mim e eu sorrira-lhe instintivamente quando ele me apertara os quadris. — Na verdade, deixei de beber — dissera ele, sem mostrar preocupação alguma. — O quê? Para sempre? — perguntara o John, já a emborcar o Prosecco como se se pudesse estragar. — Acho que sim — respondera o Si enquanto punha o avental. — Ando numa de ser mais saudável. A Ellie olhara para mim, eu encolhera os ombros. Não lhe tinha dito nada porque sabia que ela não se ia calar, além de eu não saber bem como haveria de lhe explicar aquela decisão, porque parecia vinda do nada. Quando começámos a viver juntos, eu adorava a forma como falávamos sobre o nosso dia com um copo de vinho nas mãos à noite, um a pôr a mesa enquanto o outro cozinhava. Era algo por que ansiava quando estava pregada à secretária no trabalho à tarde, a tentar a todo o custo concentrar-me. Uma oportunidade para relaxarmos juntos e para eu deixar as frustrações do dia para trás das costas. Depois, as coisas tornaram-se um tudo-nada mais distantes. Ele passou a ir direto do trabalho para o ginásio na maioria das noites, pelo que, quando chegava a casa e jantávamos, eu já estava exausta e pronta a ir para a cama. No entanto, por outro lado, eu também estava a beber menos. Não era tão divertido beber sozinha, o que se tornou mais do que evidente em Veneza. Num agradável �m de tarde, estávamos sentados numa belíssima praça empedrada e, enquanto eu tentava desfrutar de um copo de vinho branco aveludado e gelado, o Si passou o tempo todo a discorrer sobre o preço exorbitante da água com gás. Ao �m de uma hora, que passou angustiantemente devagar e durante a qual o comboio parecia quase parado, eu estava desesperadamente aborrecida e nem um pouco cansada. Entretanto, o comboio acelerou e seguiu a bom ritmo, embalando-nos de um lado para o outro numa cadência regular. O vinho estava a ajudar tanto que eu fui buscar mais. — Vamos divertir-nos um pouco — disse eu, passando os dedos no joelho do Si. Ele tirou os auscultadores e inclinou-se na minha direção até que as pontas dos nossos narizes se tocassem. — E o que propões que façamos exatamente? A escolha acabou por recair na observação de pessoas, com os comentários brilhantes do Si, que, qual David Attenborough, contava a história de vida imaginada de cada passageiro que decidíamos observar. — Aquele vai visitar uma rapariga holandesa que conheceu numas férias no Bali e, embora pareça todo fanfarrão, no fundo está a tremer de nervos que ela o venha a rejeitar, tal como todas as outras ex-namoradas antes dela — disse o Si. — Achas? — perguntei, com dúvidas acerca da avaliação que ele estava a fazer do rapaz cheio de bazó�a e com barba de hipster. — Ele parece-me muito seguro de si. — É tudo fachada — disse o Si, convincentemente, estendendo o braço para me puxar o cabelo comprido para trás das orelhas. — E aquela — disse ele, apontando com a cabeça para a mulher de ar nervoso que regressava da carruagem-bar com uma garra�nha de vinho branco e um copo de plástico nas mãos — vai visitar a meia-irmã há muito esquecida, com quem retomou o contacto no Facebook. Está apavorada com a perspetiva de que venham a odiar-se. Ainda vai beber outra antes do �m da noite, vais ver. Eu ri-me. — Tens umas ideiasmuito estranhas. O telefone do Si tocou e ele levou a mão ao bolso para o ir buscar. — Estou? Calculei logo que seria a Catherine. Ele disse com os lábios: A minha irmã. Eu sabia. Comecei de imediato a ouvir voz estridente da Catherine a debitar os pormenores da mais recente pequena contrariedade que ela tinha decidido transformar em catástrofe. Ao �m de muitos anos a namorar com amigos de amigos da Universidade de Durham, bem-parecidos mas pouco inteligentes (pelo menos segundo o que ela me contara), a Catherine conhecera o noivo, o Jasper, numa viagem de trabalho a Amesterdão. Ele era dez anos mais velho do que ela, era curador de arte — uma pro�ssão que eu ainda não compreendia bem — e vinha de uma família holandesa rica que, ao que parece, tinha propriedades no mundo inteiro. Talvez aquela fosse a primeira vez que a Catherine estava a sentir-se tão insegura como é normal acontecer ao resto das pessoas. No entanto, estava a preparar-se para a sua nova vida com grande desembaraço e, juntamente com a mãe, Pauline, estava praticamente transformada num equivalente de Berkhamsted da Pippa e da Carole Middleton. Mãe e �lha tinham-se atirado aos preparativos do casamento com uma intensidade assustadora, tendo mandado fazer convites personalizados numa loja na Mount Street e encomendado marshmallows exclusivos, porque, ao que parece, fora o que a Pippa �zera. Quanto ao vestido… bem, não me tinham sido con�ados os detalhes do vestido. Sabia que era de uma loja caríssima da New Bond Street, mas o desenho da peça estava envolto em segredo e, sempre que eu perguntava, por mera educação, qual o tecido que ela escolhera, ou que tom de branco, ou se iria usar um véu, ela fazia um movimento de fecho- éclair sobre os lábios e eu era posta �rmemente de volta no meu lugar. — O pai não pode fazer isso? — perguntou o Si com cautela, a revirar os olhos na minha direção numa tentativa de mostrar bom humor. Eu esbocei-lhe um sorriso encorajador e abri o meu livro para me distrair do som da voz da Catherine, que ia aumentando de volume à medida que a conversa avançava e ela ia �cando mais nervosa. A sério, era assim que uma pessoa �cava ao planear um casamento? Todas as suas neuras eram ampliadas? — Não, de certeza que a Hannah não se importa de pôr as argolas nos guardanapos — disse o Si. Eu arregalei-lhe os olhos, esperando transmitir a mensagem de que aquilo já era demais e de que ele precisava de mostrar alguma �rmeza. Já me tinham sido atribuídas várias tarefas para assegurar que o casamento do ano corresse de forma perfeita no dia a seguir, entre as quais compilar mais de 200 cartões de marcação de lugares (a Catherine dizia que eu era a única pessoa que ela conhecia com uma caligra�a aceitável) e atar uma faixa magenta em redor dos caules dos ramalhetes personalizados das damas de honor. Teria sido muito mais fácil lidar com todos aqueles problemas se ela não tivesse despedido a organizadora de casamentos do hotel, mas quando a mulher se atreveu a sugerir que o esquema de cores da Catherine iria colidir com a decoração da sala de jantar, não havia volta a dar. Além disso, a Pauline não era propriamente a voz da razão. Na verdade, pela forma como ela e a Catherine se comportavam, poder-se-ia pensar que a cerimónia iria ser transmitida em direto pela televisão para o mundo inteiro. — Olha, Cath — disse o Si, enquanto massajava o espaço entre as sobrancelhas —, vou ter de desligar não tarda, está bem? Estamos num comboio. E, oh, olha, estamos a abrandar e a chegar a uma estação. Acho que vou ter de desviar umas malas. Eu franzi o sobrolho na direção dele na brincadeira e dei-lhe um toque com o pé no tornozelo. Nós não íamos parar, o comboio parecia era estar a acelerar ainda mais. Inclinei a cabeça para o corredor para ver o que as outras pessoas estavam a fazer (a dormir, sobretudo) e ouvir apenas os ecos da conversa do Si a acalmar a irmã, a dizer-lhe que ia correr tudo bem, que ela iria estar bonita, que o Jasper iria �car orgulhoso dela e que ele, o Si, tinha orgulho nela independentemente do que viesse a acontecer. Até os dois tipos à nossa frente pareciam estar divertidos: vi-os a virar a cabeça para olharem dissimuladamente para nós pelo espaço entre os bancos, sem dúvida admirados pelo estranho tom grave que o Si reservava exclusivamente para a irmã e que era cerca de uma oitava mais baixo do que o seu tom de voz habitual. Quando eu conheci a Catherine, alguns meses depois de eu e o Si termos começado a namorar, assumi de imediato que não tínhamos nada em comum. Ela era uma daquelas raparigas bonitas e populares que andaram em escolas privadas e, tanto quanto me era dado a perceber, nunca tivera nenhuma di�culdade real, pelo que possuía o tipo de con�ança extrema com que eu só podia sonhar. Mas quando ela não estava a falar sobre casamentos, acabei por descobrir que não éramos tão diferentes como eu pensava. Criámos laços graças ao nosso gosto pelo vinho e pelos reality shows, e cheguei a pensar que podíamos estar a criar as bases para uma verdadeira amizade. — Vou mesmo ter de desligar agora, Cath, está bem? Vemo-nos amanhã, sim? — disse o Si. Desligou o telefone e olhou para mim, incrédulo. — É mau que eu �que aliviado depois de tudo isto acabar? Eu escolhi as minhas palavras com cuidado. — Ela, de facto, tornou-se um pouco controladora demais. — Tornou-se? Sempre foi. Só se acentuou um pouco com o casamento — disse ele, recostando-se na cadeira e soltando um resmungo de frustração. — Vá, vamos dar uma olhada às tuas fotogra�as de Veneza — disse eu, enquanto o comboio seguia o seu caminho ruidoso e depois de alguém com uma voz desnecessariamente alta decidir fazer um telefonema, apesar de ser uma da manhã. — Isso vai animar-nos. Estava demasiado cansada para ler o meu livro e demasiado elétrica para dormir, presa num qualquer limbo de terrível desassossego. Ele deu-me o telefone. — Não são grande coisa, Han. As tuas vão ser muito melhores. — Não, não vão — garanti-lhe, embora achasse que provavelmente seriam. Parecia que tinha �nalmente encontrado algo em que era bastante boa e raramente saía de casa sem a minha adorada Canon AE-I comprada em segunda mão. Tinha sido uma prenda de Natal do Si e o presente mais atencioso que eu alguma vez recebera de alguém. Fui passando as fotogra�as da galeria do telefone do Si, a começar pela que ele me tinha tirado quando chegáramos a Veneza. Estávamos no aeroporto, à espera na �la para o autocarro aquático. Por uma vez, não estava preocupada com a minha aparência: apresentava-me descontraída com uns calções de ganga cortados, chinelos de en�ar o dedo e uma t-shirt preta, o cabelo mais encaracolado do que era habitual devido à humidade, um guia aberto na mão e um sorriso enorme no rosto porque estava felicíssima por estar naquele lugar que eu sonhava visitar desde que era pequena, quando a minha mãe me mostrava fotogra�as de todos os locais de interesse e inventava histórias sobre eles. Depois vinha a sel�e de nós os dois que ele tinha tirado à porta da Basílica de San Marco e que não era a fotogra�a mais bem enquadrada, já que o Si media um metro e oitenta e oito e era dez centímetros mais alto do que eu, pelo que era praticamente impossível não lhe cortar o cimo da cabeça ou tudo abaixo do meu nariz. Enquanto eu enviava à minha mãe pelo WhatsApp uma sequência de fotogra�as que eu e o Si tínhamos tirado no Palácio do Doge, o telefone dele vibrou e começou a aparecer outra mensagem. — Deixa ver — disse ele, tirando-me o telefone da mão e olhando para o ecrã. — Raios partam! — disse, com uma interjeição teatral. — Trabalho outra vez. — O que é que eles querem agora? — perguntei. Não que eu fosse perceber grande coisa do que ele viesse a dizer-me. Eu ainda não tinha a certeza absoluta sobre o que fazia ele diariamente. Sabia que tinha algo que ver com a venda de produtos farmacêuticos e que implicava viajar muito e �car em hotéis e fazer apresentações. Sabia também que ele não considerava falar em público a pior coisa do mundo. — Não avou ler, por uma questão de princípio — disse o Si. — A�nal de contas, estou de férias, não estou? Olhei para ele, hesitante. — Está tudo bem? — Claro que está — respondeu, com um sorriso vazio. — Já tinhas terminado o que estavas a fazer no telefone, não já? — Nem por isso. — Li algures que não devias estar ao telefone. A luz azul dá cabo do nosso padrão de sono — disse ele. — Seja como for, está demasiado barulho para dormir, por isso não faria grande diferença. — Porque é que não pões os teus auriculares nos ouvidos? — Deixei-os em Veneza — respondi, imaginando-os na mesinha de cabeceira do hotel, os meus salvadores verdes �uorescentes. Tinha de ir comprar outros quando chegássemos a Amesterdão. — Bem, se tu não tens intenção de descansar um pouco, eu tenho — disse o Si enquanto en�ava o telemóvel no bolso. — Caso contrário, amanhã não vou estar em condições de ajudar ninguém. Inclinou o corpo para longe de mim, enrolou-se contra a janela, fechou os olhos e cada inspiração foi-se tornando cada vez mais longa e profunda. O Si era sempre brusco comigo quando estava cansado, ele próprio o admitira. Ficaria bem ao �m de algumas horas de sono. Eu, por outro lado, provavelmente teria de passar por aquele casamento com um caso grave de dé�ce de sono. Imaginei que iria �car embriagada demasiado depressa na festa de casamento e acabaria por dizer anedotas impróprias antes de ter uma discussão alimentada a vinho com alguém. A minha ansiedade disparou e duplicou a sensação de desconforto e mal- estar que tinha no fundo do estômago. Já era capaz de imaginar a Pauline a fazer comentários presunçosos nas minhas costas: Este não é o mundo dela, Simon. Ela não se sabe comportar num evento exclusivo como este. Sim, a Pauline referia-se constantemente ao casamento como um «evento», o que, secretamente, eu achava deveras irritante. Massajei o maxilar com as pontas dos dedos e tentei entrar naquele estado de serenidade que nos leva ao sono, o que não era fácil quando o casal nos bancos de trás sussurrava tão alto que mais valia estar a falar normalmente, ao mesmo tempo que alguém mais atrás devorava um pacote de batatas fritas com sofreguidão. O telemóvel do Si voltou a vibrar. A sério, o que é que estava a acontecer? Só podia ser a Catherine. Aproximei os dedos do bolso do Si e puxei o telemóvel o mais cuidadosamente que conseguia. Ia pô-lo em silêncio. Ele tinha acabado de adormecer, a última coisa de que precisava era que ela estivesse a enviar-lhe uma data de mensagens em catadupa. Não valia a pena �carmos ambos cansados no casamento. O telemóvel tornou a vibrar quando eu digitei a senha que ele me dera há muito tempo, que era 1956, o ano do nascimento da sua mãe. Havia uma mensagem no cimo do ecrã, de um número desconhecido. Estás acordado? Sou eu, a Al. Franzi o sobrolho. Devia ser alguém do trabalho, embora ele nunca tivesse falado de ninguém chamado Al e a única Al que eu conhecia era a Alison, uma das damas de honor da Catherine. Ela tinha organizado a festa de despedida de solteira, um �m de semana estupidamente caro em Marbella a que eu tentara esquivar-me porque não tinha dinheiro e porque não conhecia ninguém além da Catherine. Acabara por ir, claro, sobretudo porque não tinha sido capaz de pensar numa boa desculpa para não o fazer. Lembrei-me de que a Alison parecia simpática até se ter embriagado, discutido com um tipo espanhol ao qual estivera a dar conversa a noite inteira e vomitado na piscina. Se era ela, era possível que houvesse algum problema de última hora. A Catherine estaria provavelmente a moer-lhe o juízo também. Passei o dedo pela noti�cação. Havia mais mensagens do mesmo número. Sou eu, podes falar? E antes dessa: Estou no casamento. Quando é que chegas? Preciso urgentemente de falar contigo. Era mesmo a dama de honor da Catherine, a�nal. De qualquer forma, pus o telemóvel em silêncio: o que quer que se estivesse a passar, não havia muito que ele pudesse fazer naquela noite. Tentei en�ar-lhe o telemóvel de volta no bolso sem o perturbar, mas escorregou-me da mão e caiu na alcatifa. Estremeci e rezei para que não o tivesse partido. O Si �caria fulo. Ele agitou-se e eu olhei a medo para cima. Ele tinha os olhos meio abertos e juntou as mãos, esticando-as em cima da cabeça. — O teu telemóvel caiu — sussurrei, tocando-lhe levemente no braço. Ele apalpou o bolso e passou a mão por entre os nossos bancos. — Está no chão — sussurrei alto. Algures entre a vigília e o sono, ele dobrou-se e apanhou-o. Reparei que o pôs no bolso mais distante antes de voltar a pousar a cabeça no vidro. Era estranho ele não me ter dito que as outras mensagens eram da Alison, mas eu estava certa de que havia uma explicação simples. Ele sabia que eu estava cansada dos constantes pedidos da Catherine. Devia ser só isso. Provavelmente pensou que eu não iria querer saber. De manhã iria perguntar-lhe o que era. Fechei os olhos, apertando-os o mais possível. O Si começou a ressonar levemente. As portas continuavam a abrir-se e a fechar- se, sibilantes, a cada poucos minutos e eu ouvia um grupo de rapazes a dar gargalhadas na carruagem seguinte. Haveria seguramente algum sítio mais sossegado naquele comboio. Poderia ir sentar-me noutro lugar só por um bocadinho. A mudança de cenário talvez me �zesse bem. Puxei a minha mala de ombro de palha para cima do colo com cuidado para não acordar o Si. Depois pus-me em pé e atirei o casaco de malha para cima do banco, porque ainda estava demasiado calor e achava que não ia precisar dele. A minha mala estava no bagageiro junto à porta, �caria bem lá e eu voltaria para a ir buscar de manhã. Hesitei por um segundo ou dois enquanto passava os dedos pela alça da máquina fotográ�ca a pensar se deveria deixar um bilhete a avisar. De qualquer forma, seria só uma ou duas horas. Provavelmente, ele nem iria reparar que eu tinha saído. Depois de olhar uma última vez para o Si, dirigi-me a cambalear para a parte da frente do comboio. Capítulo 2 Acabei por encontrar dois bancos vazios na carruagem A e atirei- me para cima deles, deitando-me atravessada para poder encostar-me à janela. Não tinha intenção de andar tanto, mas três tipos bêbedos estavam a provocar uma tremenda algazarra na carruagem junto à nossa e a outra a seguir cheirava a mofo, como se alguém tivesse deixado a roupa a apodrecer na máquina de lavar durante dias sem �m. Era ridículo ser tão esquisita, na verdade. Estávamos a atravessar a Europa de comboio, de que é que eu estava à espera? No meu caso, �car ali na carruagem A naquele momento parecia ser a opção menos ofensiva, mesmo que tivesse de suportar o som baixo de música de dança de má qualidade que um tipo qualquer estava a ouvir com os auscultadores em altos berros alguns bancos mais atrás. Estaria a ouvir sempre a mesma canção? Olhei-o por cima do ombro, com intenção de o censurar com os olhos, mas ele estava caído sobre a mala com os olhos bem fechados. Que tipo de pessoa conseguia adormecer com a música tão alta? Em desespero, voltei a remexer na minha mala, decidida que o melhor era eu pôr a minha música como antídoto contra a dele. Quase dei um grito de alegria quando encontrei os auriculares, que, a�nal, não tinha deixado em Veneza, mas estavam escondidos dentro de um folheto de publicidade de visitas guiadas da Gallerie dell’Accademia. Pu-los nas orelhas, tirei os sapatos e tentei dormir um pouco. Quando voltei a abrir os olhos, a luz do início da manhã jorrava pelas janelas da carruagem. Desorientada, estendi o braço na direção do Si, esquecida de que ele não estava ao meu lado, mas algures mais atrás, sem saber — esperava eu — que eu tinha mudado de lugar. Tirei os auriculares e virei a cabeça para a esquerda e depois para a direita, enquanto esfregava o pescoço dorido, irritada comigo mesma por não me ter lembrado de levar o casaco de malha para que, pelo menos, o pudesse usar como almofada. Olhei pela janela, tentando perceber onde estávamos, e vi o mundo a passar silenciosamente, os detalhes completamente inde�nidose difusos, como um daqueles �lmes caseiros antigos feitos com câmara de vídeo. O sol estava quase totalmente escondido por nuvens baixas, que eram cinzentas como um elefante no meio e tinham um tom brilhante de prata nas pontas. Encostei o nariz ao vidro quando passávamos a velocidade de torpedo por uma bela aldeia composta por 15 ou 20 casas, todas elas com paredes caiadas e telhados de terracota. A estação, minúscula e deserta, lembrava-me uma peça de um brinquedo que eu tivera quando era pequena: o comboio e respetivos acessórios que o meu pai me dera no meu sétimo aniversário. Ainda me lembrava daquele dia, sentada com as pernas cruzadas no sofá de bombazina castanha da nossa sala, à espera de que ele chegasse a casa do trabalho para que pudéssemos abrir o bolo em forma de ouriço-cacheiro que a minha mãe tinha feito. Lembrava-me de que ele vinha de um dia inteiro num estaleiro de construção, coberto de terra e cansado, e a brandir uma enorme caixa embrulhada num papel vermelho brilhante. Viria a deixar- nos poucas semanas mais tarde, e essa era provavelmente a razão pela qual aquele dia estava tão entranhado na minha memória. Os aniversários nunca mais foram os mesmos depois disso. Rodei os tornozelos para lhes dar alguma vida e apanhei o cabelo num coque, com um elástico gasto que me tinha deixado uma marca rosada bem visível em volta do pulso durante a noite. Apalpei o chão debaixo do banco da frente em busca das sabrinas beges que tinha atirado para o chão nas primeiras horas da manhã, até que as encontrei e voltei a calçar. Depois, bocejei e endireitei-me para me levantar, estiquei os braços e olhei para ambos os lados do corredor da carruagem. A maioria das pessoas parecia estar acordada, a folhear guias e revistas e a encher a boca com tostas húmidas aquecidas no micro-ondas. O cheiro estava a fazer o meu estômago dar horas. Quando voltasse para trás, iria passar pelo carrinho do buffet e pegar em algo para tomar ao pequeno-almoço com o Si. Croissants com compota e manteiga era o que ele mais gostava para começar o dia. Iria levar-lhe dois e um belo café bem forte. Peguei na minha mala e segui corredor fora, reconstituindo os meus passos da noite anterior. O comboio estava sempre a dar solavancos para a frente, pelo que tive de me concentrar bastante para não cair para o lado, o que acabou por acontecer pelo menos uma vez em que a minha anca embateu no ombro de alguém. À medida que eu avançava para o meio da composição, o comboio parecia mais agitado, cada carruagem mais cheia do que a anterior. Segui em frente, a cravar as unhas no tecido de feltro dos bancos e a espreitar por cima dos ombros das pessoas para ver o que estavam a comer até que, de repente, não consegui avançar mais. Havia uma porta sem janela nem botões que eu pudesse premir a bloquear-me o caminho e eu não via nenhuma forma de passar para a carruagem seguinte. Fiquei a olhar para ela, confusa. Talvez a falta de sono me tivesse deixado a delirar. Precisava de pensar. Devia ter-me enganado em algum lugar, ter passado, sem reparar, pelo meu lugar e pela prateleira com a minha mala, que continha a roupa interior, que estava desesperada por trocar, e o meu nécessaire para poder ir à casa de banho lavar a cara e escovar os dentes. Tentei rodar o puxador, mas a porta não cedeu. Só tinha passado por quatro carruagens e sabia, sabia que o comboio era mais comprido do que isso. Dei meia-volta e regressei pelo mesmo caminho que me levara até ali, agarrando-me aos bancos quando o comboio virava e se inclinava, com a cabeça a rodar de um lado para o outro, à procura do rosto do Si, da sua cabeça loura e do casaco de malha preto que eu tinha deixado no meu banco. Já estávamos mais a norte, em França, talvez, ou até já na Holanda e eu estava com frio só de camisola �na de verão. O ar condicionado tinha sido �nalmente ligado e eu estava longe de ter roupa su�ciente vestida. Passei pelo banco onde tinha dormido e cheguei a outra porta cinzenta, que, dado que dizia Entrada proibida em três línguas diferentes, supus tratar-se da cabina do maquinista. Encostei as costas à porta e olhei para o corredor e para o mar de cabeças e pés a sair dos bancos. Respirei fundo. Não devia estar boa da cabeça. Era óbvio que me tinha escapado alguma coisa. Provavelmente, o Si estava na casa de banho quando eu passara. Seria algo tão simples como isso. Bastaria voltar a percorrer os corredores do comboio e iria encontrá-lo. Olhei para as horas no meu telefone: 6h14 da manhã. Só devíamos chegar a Amesterdão depois das 9 horas, pelo que tinha muito tempo. Comecei a andar de novo, desta vez em busca de qualquer rosto que fosse capaz de reconhecer: a família americana, o casal holandês que estava sentado atrás de nós, mas não consegui ver nenhum deles. Senti o coração a acelerar. Cheguei ao �m do comboio de novo, dei meia-volta e dirigi-me para a frente, em busca de pistas. Depois de mais uma ida e volta infrutífera, sentei-me de novo no banco em que tinha dormido com os dedos entrelaçados no colo, as palmas das mãos escorregadias devido ao suor. Voltei a olhar pela janela para tentar ler a paisagem e ver se conseguia perceber onde íamos parar a seguir. Procurei algo que pudesse reconhecer: um edifício, um sinal rodoviário. Havia nomes de estações, mas estávamos a passar tão depressa que não conseguia lê-los. Senti os ecos de uma memória distante, um vislumbre de algo que me veio à cabeça e depois voltou a escapar-me. Só havia uma coisa a fazer. Teria de acordar o Si e perguntar- lhe onde é que ele estava. Peguei no telemóvel e comecei a mexer no ecrã atabalhoadamente com os dedos para lhe ligar e esperar que ele atendesse. Ele não iria �car contente quando descobrisse o que eu tinha decidido fazer. O telefone tocou e tocou, até que a ligação acabou por ir parar ao voicemail. O melhor seria perceber o que se estava a passar, antes que ele se apercebesse de que algo não estava bem. Espetei a cabeça para o corredor, a pensar se poderia perguntar alguma coisa a alguém e a imaginar o que poderia dizer. Desculpe, mas sabe para onde foi o resto deste comboio? Ou talvez: Olá, acho que perdi o meu namorado. E depois ouvi alguém a gritar para um rádio que debitava um som alto e agudo e empoleirei-me na extremidade do assento, pronta para atacar. — Mi scusi — garganteei quando um revisor passava por mim com a cabeça erguida e a fazer os possíveis para evitar cruzar o olhar com quem quer que fosse. — Minha senhora? — disse ele, alongando o «m» do início da expressão e o «a» do �m e abrindo os lábios num sorriso de dentes escondidos. Apresentava-se resplandecente numa farda de tom azul-marinho e um chapéu com apontamentos de dourado e trazia uma máquina de picar bilhetes nas mãos. Dava para ver que era um daqueles funcionários muito apegados às normas. — Un problema — disse-lhe, pensando que ele poderia gostar de ver uma tentativa de falar a sua língua materna. Tentei lembrar- me de algumas palavras que tinha aprendido no clube de italiano da escola, ao qual só tinha aderido porque a Ellie me convencera de que iríamos �car bem preparadas para fazer um interrail de verão em Itália, onde iríamos ter conversas atrevidas com rapazes italianos, o que, claro, acabámos por nunca ter dinheiro para fazer. — Não consigo encontrar o meu assento. Era lá atrás, acho eu. Carruagem F? — Fiz um gesto com as mãos para o outro lado do comboio. — Qual é o seu destino, minha senhora? — Amesterdão. Ele inspirou por entre os dentes. — Nããão — disse ele, abanando a cabeça devagar, como que para se assegurar de que eu reparava. — Não, minha senhora, não está no comboio certo. Estamos em Paris, neste momento. Olhe — indicou ele. — O quê? — perguntei, os meus olhos a dispararem para a janela. Por entre os enormes prédios brutalistas de apartamentos e escritórios que acompanhavam a linha de comboio e bloqueavam quase toda a luz, viam-se vagamente as avenidas largas ladeadas de árvores. Paris. Claro. Reconheci-a �nalmente. Voltei-me para ele, de novo, a engolir em seco.— Mas eu estava num comboio para Amesterdão! — exclamei. — Minha senhora, o comboio separou-se em Genebra às 3h38 da manhã. Houve muitos anúncios a avisar. Não os ouviu? — Não — disse eu, cobrindo a boca com as mãos. — Não ouvi nada. Os auriculares, pensei. — As oito carruagens traseiras vão para a Estação Central de Amesterdão, e esta secção aqui — disse ele, fazendo um gesto circular com o dedo anafado — irá chegar à Gare de Lyon, em Paris, dentro de cerca de sete minutos. Isto acontece muitas vezes em viagens internacionais, minha senhora. E certi�camo- nos sempre de que os nossos passageiros estão na parte correta do comboio. — Bem, desculpe, mas não �zeram isso desta vez, isso é certo. Mordi o lábio com tanta força que conseguia senti-lo a latejar. Era uma loucura. Não parecia possível que, depois de termos entrado para o mesmo comboio e de estarmos sentados juntos durante várias horas, eu estivesse num país e o Si não demorasse a estar a chegar a outro. E o casamento? E as minhas coisas? E os planos do Si, que estavam, com certeza, completamente arruinados? Eu já sabia que ele não iria reagir bem. Olhei em volta como uma louca na esperança de encontrar outras pessoas que tivessem cometido o mesmo erro, um grupo que pudesse manter-se unido, encenar um protesto, embora não estivesse a ver muito bem de que é que serviria, já que eles não iriam virar o comboio para o outro lado com certeza. Seria eu realmente a única pessoa naquela situação? Poderia eu ser a única pessoa em todo o comboio que não fazia ideia de que ele ia ser dividido silenciosamente em dois na calada da noite? Reparei que o rapaz com os auscultadores gigantes e o mau gosto musical estava a esticar a cabeça por cima dos assentos. Quando viu o revisor, levantou-se e dirigiu-se, cambaleante, até nós com um ar ensonado. — Estava a dizer que este comboio vai para Paris, monsieur? — perguntou ao revisor enquanto passava as mãos pelo cabelo escuro e espetado para todos os lados. Parecia tão confuso como eu me sentia. Era francês, a julgar pelo sotaque. Olhei para ele com cara de poucos amigos. Se não fosse ele, eu teria ouvido os anúncios. — Senhor, como já expliquei a esta jovem senhora, o comboio separou-se em Genebra às 3h38 da manhã — disse o revisor cautelosamente. — Não vamos para Amesterdão? — perguntou o tipo francês, batendo dramaticamente com a mão no peito. Pelo menos, eu não era a única. — Não, não vamos — disparei, chamando a sua atenção. — Estamos em Paris. Olha bem lá para fora — disse eu, esticando o dedo para o vidro da janela. Ele olhou para mim como se tivesse acabado de reparar que eu estava ali. — E, já agora, se não tivesses incomodado toda a gente — disse eu, virando-me no banco para poder �tá-lo —, talvez ambos tivéssemos ouvido os anúncios durante a noite. Ele olhou para mim, com o rosto contraído por um aparente desconcerto. — Estás a culpar-me a mim? — Estou, pois — respondi. Pensei que podia estar a ser pouco razoável, mas já estava lançada. — Tive de pôr os meus auriculares para abafar o barulho que estavas a fazer. — Que barulho? — perguntou ele, aparentemente incrédulo. — A tua música! — disse eu com impaciência. — Estava demasiado alta. Provavelmente mantiveste metade da carruagem acordada. Ele abanou a cabeça na minha direção, como se não valesse a pena incomodar-se comigo, e focou a atenção no revisor, que estava a olhar para o relógio com uma irritação maldisfarçada. — Monsieur — disse ele ao revisor —, isto não é aceitável. De maneira nenhuma. Tenho uma reunião muito importante em Amesterdão e não posso faltar de forma absolument nenhuma. — Desculpa, mas eu estava a falar com o revisor primeiro. Todos nós temos coisas importantes para fazer em Amesterdão — disparei na direção dele. — Houve muitos anúncios, senhor — disse o revisor — e minha senhora — acrescentou com um sorriso forçado, claramente sem saber bem a qual de nós se deveria dirigir. — Bem, não foram su�cientemente altos! — disse o tipo francês, com ar de quem estava prestes a começar a dar pontapés em tudo o que o rodeava. — Deve haver algo que o senhor possa fazer — disse eu ao revisor, decidida a tentar apelar ao seu lado mais razoável. Devia ter um. — Qual é a melhor maneira de resolver isto? — Se deseja chegar a Amesterdão de comboio, vai ter de atravessar Paris para chegar até à Gare du Nord, minha senhora. Eu fechei os olhos por um segundo ou dois, tentando exibir uma atitude menos derrotista. — E qual é o primeiro comboio a sair de lá? — perguntei, fazendo o que podia para não perder o controlo. Só conseguia pensar no Si e no que ele iria dizer quando �nalmente percebesse onde eu estava. Às vezes, já me tratava como uma criança e, ao meter-me em situações como aquela, estava a dar-lhe as munições de que ele precisava para continuar a fazê-lo. — Tem de perguntar na bilheteira da Gare du Nord — disse o revisor. — Lamento, mas não posso fazer mais nada por si aqui. — Os seus lamentos não nos ajudam — reclamou o tipo francês, que estava a remexer freneticamente no telefone com o polegar. — Suponho que ambos tenham bilhetes para a vossa viagem — disse o revisor. — Claro que temos bilhetes — disse o tipo francês, levantando a cabeça. — Acha que somos idiotas? Eu, por outro lado, comecei a apalpar o interior da minha mala, quase imediatamente ciente de que quem tinha os nossos bilhetes — e os passaportes, diga-se — era o Si e ambos estavam no bolso de trás das suas calças de ganga. Voltei a fechar a mala. — Quem tem o meu é o meu namorado — disse eu. O Si era muito melhor a tomar conta das coisas do que eu, pelo que fazia sentido que fosse ele a �car com tudo. No canto do olho, tive a certeza de ver o tipo francês a revirar os olhos. Estive quase a confrontá-lo por ser tão mal-educado, mas pensei melhor antes de o fazer. Tinha de me manter focada no que era importante: chegar a Amesterdão a tempo de ver a Catherine casar-se. Era só isso que interessava. — Desejo-lhes sorte a ambos — disse o revisor, com uma palmada na máquina que trazia nas mãos. Era evidente para mim que aquilo lhe dava imenso prazer. Mais tarde iria certamente rir- se com os colegas ao contar a história da rapariga britânica sonsinha que acordou no comboio errado na cidade errada. O tipo francês abanou a cabeça para mim e para o revisor e dirigiu- se com o passo pesado para o banco onde estava sentado, a murmurar baixinho. Pelo menos, quando tivesse de explicar tudo ao Si, podia dizer-lhe que tínhamos sido duas pessoas a acabar no comboio errado. Podia abafar o golpe. Regressei à janela e encostei a face ao vidro para arrefecer a pele, que sentia a formigar e a ferver, como era habitual quando começava a entrar em pânico com alguma coisa. Tentei acalmar a respiração contando oito linhas de caminhos de ferro para a direita e um sem-�m de �os emaranhados em cima das nossas cabeças. As paredes que delimitavam as linhas estavam cobertas de grafítis, a maioria dos quais não passava de palavras gordas em branco que eu não entendia. Perguntei-me se estariam ali há muito tempo, se teria havido a possibilidade de as ter visto da última vez que ali estivera, quase dez anos antes. Quando as outras pessoas falavam de passeios românticos ao longo das margens do Sena, eu sentia o estômago a dar voltas, porque não tinha estado na cidade numas aprazíveis miniférias. Estivera lá completamente sozinha à procura de uma pessoa que não queria ser encontrada. Ainda me doía. As memórias pareciam estar impregnadas em cada centímetro daquela cidade e eu preferia estar em qualquer outro lugar do mundo que não aquele. Um anúncio com um som cheio de interferência, primeiro em francês, depois em italiano e, �nalmente, em inglês informava que estávamos a chegar à Gare de Lyon, em Paris, e que eram 6h31, hora local. Um comboio azul de dois andares passou de fugida na direção contrária e eu perguntei-me para onde iria, a di�culdade que iria ter em encontrar o caminho para Amesterdão a partir dali. As pessoas estavam a levantar-se dos bancos, a sacudiros membros, a arrumar o lixo que tinham feito e a recolher todas as suas coisas. Peguei de novo no meu telefone e voltei a ligar ao Si, roendo a unha do polegar enquanto tocava. Voicemail novamente. Porque é que ele não estava a atender o telefone? Eu sabia que não era por causa da bateria, porque ele carregava sempre o telemóvel, sem falha, durante a noite. Além disso, tinha-o visto a andar pelo quarto do hotel de manhã, a desligar o carregador da tomada e a arrumá-lo com cuidado na mala. Dado que deveria chegar a Amesterdão em menos de três horas, provavelmente ainda estava a dormir. Só podia ser isso. Depois lembrei-me: eu tinha posto a porcaria do aparelho em silêncio. Deixei uma mensagem constrangida, sentindo-me paranoica por metade da carruagem poder estar a ouvir. «Si, sou eu. Estou a chegar a Paris. Ao que parece, o comboio separou-se em Genebra. Não fazia ideia. Tu sabias? O que achas, devo apanhar o comboio de Paris para Amesterdão? Parece que tenho de atravessar a cidade e ir para outra estação. Desculpa, Si. Liga-me, está bem? Logo que possas. Preciso muito de falar contigo.» Pousei o telefone no colo e �quei com os olhos pregados ao ecrã a fazer força para que tocasse. O Si saberia o que fazer. Ele era excelente em situações adversas. O comboio parou e ouviu- se o barulho do chão de metal nas rodas de metal e os travões a soltarem um silvo de alívio. O cais de embarque do outro lado da minha janela estava debruado de carrinhos de bagagem à espera de serem carregados, ou, no meu caso, nem por isso. Vasculhei a mala de palha para ver exatamente o que tinha lá dentro que pudesse usar, se é que tinha alguma coisa. Tinha o cartão de crédito, pelo menos, embora tivesse quase a certeza de que já atingira o limite. Em retrospetiva, percebi que tinha sido uma estupidez deixar a minha carteira na mala do Si, porque ele a tinha en�ado lá dentro quando a fomos buscar à loja de lembranças em Veneza e pagara tudo desde então. Tinha apenas alguns euros comigo — 30 no máximo — além do meu livro, três canetas, uma bolacha esmagada e uma data de recibos. E, à volta do pescoço, trazia ainda a minha máquina fotográ�ca. Se o Si não me devolvesse a chamada rapidamente, iria dirigir-me à Gare du Nord para ver o que seria capaz de descobrir sobre os comboios enquanto esperava que ele me retribuísse. Encaminhei-me para a porta, reparando que, claro, o francês insolente já estava na frente da �la para ser o primeiro a descer para o cais de embarque. Capítulo 3 A luz permeava o telhado de vidro da Gare de Lyon em faixas turvas de prata. Aproximei a máquina fotográ�ca do olho direito e tirei uma sequência de fotogra�as. Não estava com grande disposição e não me lembrava de nada do que tinha aprendido no livro de Fotogra�a para Principiantes sobre composição e enquadramento, mas era uma visão demasiado bonita para não fazer uma tentativa. Era a primeira coisa bonita que eu via em Paris, fazia sentido registá-la. Segui os outros passageiros pelo cais. O ar estava impregnado de gases, como acontece sempre em estações tão gigantescas, e a brisa fria pôs-me os pelos da parte de trás do pescoço em sentido. Cruzei os braços sobre o meu próprio corpo, com a mala de ombro a balançar para cima e para baixo no braço. Era fácil perceber quem era francês e quem não era, pensei. As mulheres locais tinham um aspeto so�sticado e imperturbável, mesmo depois da longa e desconfortável viagem que �zéramos. Usavam casacos leves e malhas �nas com um ar caríssimo e traziam lenços delicados pousados despreocupadamente em cima dos ombros. Eu, por outro lado, estava com uma camisola �na quase transparente e calças de ganga muito justas que tinham �cado lassas nos joelhos. Uma vez que estava a �car para trás do resto da multidão, o ambiente �cou sinistramente silencioso. Não se ouvia nada a não ser um motor a ser ligado numa linha distante e o guincho isolado da roda de uma mala. Segui, hesitante, em direção às baias de controlo de bilhetes, ciente de que teria de ser descarada para me desenrascar. Prendi os cabelos soltos atrás das orelhas, �xei um sorriso e fui direita ao revisor com um aspeto menos agressivo dos dois que nos esperavam. Tentei mostrar con�ança, fazendo tudo aquilo que pensava que as pessoas con�antes faziam: olhei-o nos olhos, relaxei os ombros e, inexplicavelmente, comecei a murmurar baixinho uma canção do espetáculo Hamilton. Ele levantou a mão quando eu me aproximei. — Não tenho o meu bilhete comigo, infelizmente — disse-lhe, com uma expressão lamentosa, mas segura, e na esperança de que acreditasse em mim quando eu lhe dissesse que não era uma trapaceira. — Quoi? — disse ele, resmungando quando uma mulher lhe passou com uma mala enorme por cima do pé. — Eu não sabia que o comboio se separava em Genebra — expliquei com a voz a sair muito monocórdica, dada a pressa que tinha de me desculpar. — E a questão é que tenho um casamento em Amesterdão, ao qual tenho de ir. É hoje, daqui a poucas horas. Pode dizer-me o que preciso de fazer? Ele riu-se, com a cabeça caída para trás e a boca tão aberta que eu conseguia ver-lhe as amígdalas. — Porque é que não �cou com o bilhete? É seu, non? — disse ele. — É o meu namorado que o tem — expliquei, com di�culdade em manter a calma. — E, neste momento, ele vai a caminho de Amesterdão. Que é para onde eu devia estar a ir. A sério, o que se passava com os revisores de bilhetes e que atitudes eram aquelas? Toda a gente erra. Umas pessoas mais do que outras, como diria o Si. Ele suspirou e abanou a cabeça, incrédulo. — Un moment, madame. Fiquei a observá-lo enquanto se afastava para falar com outro revisor, provavelmente um superior. Como um mal nunca vem só, estava a chover, claro. Conseguia ouvir a chuva a bater no telhado da estação em rajadas curtas e violentas. Típico de Paris, com o seu tempo escuro e deprimente. A continuar assim, iria �car encharcada, o que era a última coisa de que eu precisava antes de mais uma longa viagem de comboio. Se conseguisse chegar lá, claro. O pior de tudo era se me obrigassem a pagar uma multa avultada por não ter o bilhete comigo. E eu teria de tentar usar o cartão de crédito, e não iria funcionar porque provavelmente já tinha ultrapassado o limite. E depois o que iriam fazer comigo? Iriam mandar-me de volta para Londres? Deter-me? Nesse caso, nunca chegaria ao casamento, o que, atendendo à forma como o dia estava a correr, era um cenário cada vez mais provável. Chegou mais um comboio a serpentear pelo túnel em direção ao �nal da linha, o limpa-para-brisas a deslizar de um lado para o outro no vidro da frente. Vi-o a parar com um chio, a abrir as portas e a deixar centenas de pessoas sair em catadupa. O que estaria toda aquela gente a fazer naquele lugar? Nunca tinha conseguido perceber o apelo de Paris, era capaz de pensar num milhão de sítios para onde preferiria ir. Num momento de rebeldia, pensei que poderia esconder-me no meio da multidão, transpor a barreira atrás de uma daquelas pessoas, como alguns passageiros faziam no metro de Londres. Até havia um nome para isso, uma expressão só para o efeito, mas não me lembrava de qual era. Tinha-a na ponta da língua. Ir à boleia? Bem, uma Hannah mais jovem e mais destemida poderia ter tentado fazer algo parecido, mas, en�m… eu já não tinha coragem su�ciente para fazer esse tipo de coisas. O revisor voltou. — Vamos deixá-la passar — disse ele, abrindo a barreira com uma corrente. — Está com sorte por o permitirmos, está a compreender? Eu assenti com a cabeça, obedientemente. — Tem de ir diretamente para a Gare du Nord, onde poderá comprar um bilhete de comboio para Amesterdão. D’accord? Eu voltei a assentir em concordância, avancei rapidamente antes que ele mudasse de ideias e gritei um obrigada por cima do ombro. O relógio no painel de partidas dizia 6h37. Precisava de café, mas não tinha tempo nem dinheiro para o comprar. Não dormira o su�ciente, nem perto disso, e tinha a sensação de estar com um profundo jet-lag ou a acordar de uma anestesia. Continuei a andare dirigi-me a um conjunto de máquinas de bilhetes pintadas em tons garridos de cor de laranja e verde, pensando que devia haver um comboio ou metro que pudesse apanhar. Parei em frente a uma das máquinas e �quei a olhar para o ecrã enquanto premia todos os botões antes de perceber que tinha de rodar um disco para mover o cursor. Acabei por encontrar a Gare du Nord, mas não consegui perceber que bilhete devia comprar ou que caminho devia seguir para chegar lá. Dei meia-volta e procurei algum género de balcão de informações e vi o tipo francês do comboio a desaparecer pelas escadas do metro abaixo com a mala demasiado grande ao ombro. Tinha a certeza de que ele não teria problema nenhum em perambular por Paris como se aquele lugar lhe pertencesse. Quando estava a resignar-me ao facto de que iria ter de abordar alguém para pedir informações, vi um sinal para os táxis e pensei que seria muito mais fácil se apanhasse um. Apalpei o fundo da minha mala e tirei uma nota de 20 euros que tinha visto lá minutos antes. Era um risco usar todo o meu dinheiro tão cedo, mas, seguramente, o mais importante era apanhar o próximo comboio para Amesterdão, mesmo que para isso tivesse de �car de mãos a abanar. Poderia �car sem comer durante algumas horas, não seria o �m do mundo. Teria oportunidade de me empanturrar no casamento mais tarde. Corri para a chuva lá fora, a segurar o meu livro aberto em cima da cabeça. Por milagre, talvez por ser demasiado cedo para os turistas, a �la na praça de táxis era muito curta. Vi os carros a chegarem, um atrás do outro, todos eles sóbrios e pretos com um logótipo verde e vistoso na parte lateral. Quando chegou a minha vez, abri a porta de trás, entrei e deslizei pelo banco de couro escorregadio. — Bonjour, monsieur — disse eu, enquanto esticava o braço para fechar a porta. — Fala inglês? — Um pouco — disse ele, a olhar para mim com descon�ança pelo espelho retrovisor. Será que eu lhe ia dar problemas, estaria ele a pensar. Será que a tarifa iria valer o trabalho? — Preciso de chegar à Gare du Nord, mas só tenho 20 euros. Será su�ciente? Ele encolheu os ombros. Bem, que prestável! Fosse como fosse, estava ali, teria de arriscar. — Se o taxímetro chegar aos 20 euros, eu saio e vou a pé o resto do caminho. Está bem? — Oui, madame — disse ele, desviando-se da calçada com uma guinada, o cotovelo pousado na janela e uma canção pop pirosa na rádio. A chuva tinha abrandado e eu abri a minha própria janela, na esperança de que o ar fresco me espevitasse. Ouvia uma sirene, um som lamentoso e arrepiante, como algo que poderia ser ouvido num daqueles dramas policiais franceses puros e duros. Um carro de polícia descaracterizado contornava a curva a toda a velocidade na nossa direção. Era um Citroën bege com uma luz azul pregada no tejadilho. No banco do passageiro ia uma mulher que parecia uma atriz a desempenhar o papel de detetive. Era naturalmente bonita, com o cabelo preto comprido, um cigarro entre os dedos e a mão pousada sobre a janela, como se perseguir criminosos em Paris numa quinta-feira de manhã não fosse nada de extraordinário. Recostei-me no banco do táxi e comecei a pentear o cabelo com os dedos, desemaranhando um nó e voltando a atá-lo num coque. Apoiei o queixo na palma da mão. Estávamos a sair da rotunda da Place de la Bastille. Reconheci a coluna com o anjo dourado alcandorado no topo. Peguei no telemóvel e procurei no Google as direções da Place de la Bastille até à Gare du Nord. Abri um mapa no telemóvel e senti-me melhor e com a situação mais controlada, em vez de estar à mercê daquele taxista, que tinha um emblema de uma equipa de futebol tatuado no pescoço e acelerava e travava de modo tão brusco que eu começava a sentir-me enjoada. Olhei para o taxímetro: já ia em quase 10 euros. Enviei uma mensagem escrita ao Si a pensar se ele já teria ouvido a mensagem que eu lhe tinha deixado no voicemail. Estava tão focada em chegar à estação que não tinha re�etido bem sobre o que ele pensaria quando acordasse e descobrisse que eu não estava sentada ao seu lado. O que iria ele fazer quando percebesse que o comboio tinha sido desengatado durante a noite e que a namorada não estava na casa de banho nem na carruagem-bar, mas a centenas de quilómetros de distância, num país em que ela não tinha desejo nenhum de estar? Olá. Deixei-te uma mensagem no voicemail há pouco, mas provavelmente ainda não a ouviste. Estou bem, por isso, não te preocupes. Estou num táxi a caminho da Gare du Nord. Ligo-te quando tiver novidades sobre os comboios. Bjs. Eu sabia que ele iria �car preocupado, independentemente do que eu dissesse. Era o que ele estava programado para fazer. Não só acabaria por sentir que tinha falhado por não me levar em segurança do ponto A ao ponto B, como partiria do princípio de que eu �caria sem saber o que fazer sem ele por perto. Tinha alguma razão: era algo que eu sempre adorara nele, o facto de o Si ser tão capaz e estável e de, desde o início, me ter feito sentir mais amada e protegida do que qualquer outra pessoa que eu tivesse conhecido. Pela primeira vez na vida, não tinha de tentar resolver tudo sozinha: ele fazia-o por mim e muito melhor do que eu alguma vez �zera. Por isso, deixava-o, de bom grado, tratar de tudo o que tivesse alguma coisa que ver com organização. Segundo a Ellie, ele era uma daquelas pessoas que tinha de ter sempre tudo certinho, e descon�o que para ela isso não era nenhum elogio. Voltei a olhar para o taxímetro. Dezassete euros e dez cêntimos. — Hum, falta muito para chegarmos? — perguntei ao taxista, inclinando-me para a frente e projetando a voz pela divisória de acrílico. — Dois quilómetros — murmurou ele. Dezassete euros e oitenta cêntimos. E o trânsito estava terrível. — Não se esqueça de que eu só tenho 20 euros — disse eu, no que esperava que fosse uma voz autoritária. — Não me esqueci. Olhei pela janela a tamborilar com os dedos no joelho e a reparar, contrariada, na beleza dos edifícios com as varandas trabalhadas em ferro, as �oreiras penduradas a explodir de cores e as janelas francesas abertas atrás delas. Tentei seguir a viagem no telemóvel, virando-o para um lado e para o outro, a perguntar-me onde estaríamos em relação ao Sena. Era o que eu me lembrava melhor da última vez que estivera na cidade: de andar ao longo do rio revolto, zangada com cada um dos turistas presumidos de máquina fotográ�ca em riste que passavam em grande algazarra nos barcos de passeios turísticos e a insurgir- me interiormente contra a injustiça da vida em geral. A matar o tempo antes de regressar ao comboio, embora, em retrospetiva, pudesse muito bem ter-me limitado a sentar-me num banco do terminal do Eurostar a remoer-me, dado que estava demasiado deprimida para apreciar a cidade. Virámos para uma daquelas avenidas movimentadas que se veem na televisão sempre que há alguma greve dos transportes e que, mesmo nos melhores momentos, pareciam estar permanentemente repletas de carros e autocarros com cores extravagantes e ciclistas malucos a serpentear pelo meio daquilo tudo. Paris era uma cidade vastíssima e ainda mais agitada do que Londres, embora talvez fosse eu que me sentisse perdida naquela cidade que não conhecia e não tinha grande vontade de conhecer. Era desconcertante saber que havia apenas uma pessoa no mundo — na verdade, talvez nem ele, ainda — que sabia que eu estava lá. — Chegou aos 20 euros, madame — disse o taxista. Merda. — Pare, s’il vous plaît. Ele encostou o carro e eu estendi-lhe a nota suada e saí do táxi. Dei uma volta completa para tentar perceber onde estava. O taxista buzinou, acenou-me e apontou para a frente, numa tentativa de me ajudar. Eu �z-lhe um meio aceno, aliviada, e comecei a correr. Paris estava no pior momento da sua hora de ponta, com buzinas a soar sem parar e o fumo dos escapes dos autocarros a tornarem o ar mais denso. Como a rua era a subir, �quei sem fôlego ao �m de um minuto ou dois e tive de optar por um passo apressado, com as sabrinas a bater e a escorregar no passeio. O céuapresentava uma cor cinzenta ameaçadora, com nuvens tão baixas que parecia que estavam a roçar o cimo dos edifícios. Como não podia deixar de ser, senti uma gota de chuva a cair-me na testa e depois outra até que, por �m, começou a chover a sério. Tinha de começar a chover num momento em que eu estava completamente exposta e não tinha tempo de parar e procurar abrigo. Comecei a correr devagar e soltei um palavrão a plenos pulmões quando pisei em cheio uma poça e encharquei as sabrinas. Continuei a chapinhar pela mesma rua interminável acima, com os seus restaurantes característicos e os aborrecidos toldos escarlates, até que, �nalmente, vi um sinal a indicar a Gare du Nord. Com a cabeça baixa para proteger o rosto da chuva quase horizontal, saí da rua principal para o pátio de entrada da estação, precipitei-me por entre os carros com as bagageiras bem abertas e passei pela entrada mais próxima a passo de corrida. Capítulo 4 A Gare du Nord estava ridiculamente movimentada, como a de Waterloo nos seus piores momentos. Era um edifício deslumbrante, tenho de o admitir, com os telhados inclinados e as janelas em arco, mas não bonito o su�ciente para compensar a multidão, o barulho, o piso escorregadio e os taxistas irados na praça de táxis. Nem o facto de eu estar gelada, totalmente encharcada e vestida com o que descon�ava ser uma camisola já completamente transparente. Juntei-me a um aglomerado de pessoas concentradas em volta dos ecrãs de partidas e chegadas, com os pulmões a arder devido ao esforço de subir a rua durante cerca de 15 minutos e os olhos a ler na diagonal uma lista de lugares de que nunca ouvira falar. Precisava que estivesse lá um comboio muito rápido para Amesterdão a partir quase imediatamente, o que talvez fosse pedir um pouco de mais, dado que parecia não estar a ter uma ponta de sorte naquele dia. No entanto, encontrei um, a meio da lista: o das 7h20 com paragens em Bruxelas, Antuérpia, Roterdão, Schiphol (que eu achava que era o aeroporto) e, �nalmente, Estação Central. Não fazia ideia do tempo que iria demorar, embora a Holanda parecesse estar longe e eu tivesse de passar por outros dois países até lá chegar. Eram 7h01. Tinha 19 minutos para comprar um bilhete e entrar no comboio para, pelo menos, me pôr a caminho. Assim, teria boas notícias para dar ao Si quando ele me ligasse. Vi um sinal a dizer Billets no fundo do edifício, embora se tratasse da mais so�sticada bilheteira que eu alguma vez vira e parecesse mais um escritório em open space de algum tipo de startup criativa, com secretárias de madeira, ecrãs de computadores e enormes candeeiros de peltre numerados de 1 a 13 pendurados sobre cada secção. Corri para o fundo da �la. As pessoas estavam a resmungar umas com as outras e a olhar para os relógios, e ninguém parecia estar a andar para a frente e, mesmo quando avançavam, discutiam e hesitavam em relação ao balcão a que deviam dirigir-se. Havia dois homens na frente da �la vestidos de preto. Eu não fazia ideia sobre se eram seguranças que estavam lá para controlar as multidões ou funcionários da bilheteira estrategicamente colocados para ajudar. Pus-me em bicos de pés a tentar perceber qual era a situação. Havia pelo menos 15 pessoas à minha frente e, embora houvesse vários balcões abertos, cada transação parecia estar a demorar uma eternidade, com as pessoas a pegarem em mapas e a apontarem para coisas, para depois se porem a remexer nas mochilas. Eu tinha quase a certeza de que já podiam ter pegado no que quer que precisassem enquanto estavam à espera na �la. Apetecia-me gritar: Comprem o raio do vosso bilhete e ponham-se na alheta! Nas profundezas da minha mala, ouvi o toque de um telefone. Devia ser o Si. — Estou? — disse eu, tapando a orelha com o dedo. — Hannah? Sou eu. — Oh, Si, graças a Deus. — O que é que aconteceu, Hannah? É mesmo verdade que estás em Paris? — Quer dizer que recebeste as minhas mensagens — disse eu, encolhendo-me. Estava a imaginar o rosto dele, a forma como os olhos passavam do verde ao cinzento-ardósia quando ele se irritava com alguma coisa. — Acabei por receber, sim — disse ele —, mas só depois de andar a percorrer o corredor do comboio de lés a lés umas cinco vezes a pensar no que raio teria acontecido. Estava a morrer de preocupação, Han. A �la avançou uns quantos centímetros. Se conseguisse arranjar coragem, tentaria avançar disfarçadamente, suplicaria a alguma pessoa que tivesse pena de mim e convencê-la-ia a deixar-me passar à frente. — Desde quando é que os comboios são divididos assim, a�nal? — disse ele, aparentemente sem fôlego, como se tivesse acabado de dar uma das voltas ao comboio. — Vou telefonar à empresa dos comboios assim que chegar a casa. As instruções que nos deram não foram nada claras. — Eu sei — disse eu, aliviada por ele não me estar a culpar, pelo menos por completo. Ele suspirou. — Bem, o que interessa é que estás bem. Estás, não estás? — Claro — tranquilizei-o. — Céus, Han. Vais conseguir chegar a tempo do casamento? Houve um assomo repentino de atividade e eu avancei uns cinco lugares. — Há um comboio daqui a dez minutos — disse-lhe, relanceando para o ecrã por cima do ombro. — Estou quase na frente da �la. — Liga-me de volta, então, quando souberes o que vai acontecer. — Onde estás agora? — perguntei. — Ainda estou no comboio. Faltam pelo menos mais duas horas. Céus, vou ter de explicar isto à minha mãe e à Catherine quando chegar. Deseja-me sorte. Um balcão �cou livre e eu dirigi-me atabalhoadamente para lá e disse à funcionária da bilheteira o que queria numa mistura de inglês e francês. — Si, falamos mais tarde. — Tenho aqui a tua mala, está bem? Não te preocupes com isso. Vai estar à tua espera no hotel. — E diz à Catherine que estarei lá, seja como for. Depois tornei-me uma daquelas pessoas que tinha acabado de vilipendiar, freneticamente em busca do meu cartão de crédito, a despejar coisas da mala, a atirar o telemóvel e o livro e um punhado de moedas para o balcão. Sentia-me agitada, como quando bebia mais do que um café expresso de seguida. Porque é que o cartão não estava no bolso fechado da minha mala onde eu o tinha posto? Depois de vasculhar mais um pouco, encontrei o cartão da conta conjunta, que o Si me tinha dito que era só para ser usado para as contas e as emergências da casa. Devia ter-me caído da carteira em algum momento em Veneza e, uma vez que me encontrava claramente numa situação de emergência, entreguei-o à funcionária sem hesitar. O Si iria compreender. Via-a a digitar os algarismos na máquina, surpreendida ao perceber que o bilhete me iria custar 180 euros. — Esse é o bilhete mais barato? — perguntei, frustrada por uma viagem só de ida custar tanto dinheiro. — É, sim, madame — disse ela, a olhar-me de cima a baixo. Admito que não devia estar no meu melhor, toda suada e peganhenta e a molhar o balcão todo. — Quero um — disse, já que não tinha muita escolha. Se era o que era preciso para voltar a pôr tudo nos eixos, valeria cada cêntimo. — O seu cartão foi recusado, madame — disse a funcionária alguns momentos depois, levantando a cabeça do ecrã. Eu segurei-me ao balcão. — O quê? Não pode ser. — Mas foi — disse ela, aparentemente prestes a perder o que restava da pouca paciência que estava a ter comigo desde o início. Não sabia se devia chorar ou rir às gargalhadas com a ridícula maré de má sorte que estava a ter a manhã toda. Nada tinha corrido bem, absolutamente nada, e só faltava mais aquela, no último obstáculo, quando havia a possibilidade de eu chegar ao casamento e de voltar a �car tudo bem. Com a funcionária da bilheteira a olhar para mim, voltei às buscas nas profundezas da minha mala como uma louca. Quando me aprestava a despejar todo o conteúdo no chão numa última tentativa desesperada de encontrar o cartão de crédito, achei-o debaixo de um pacote de lenços de papel e entreguei-lho. Com as mãos a tremer, digitei o meu código, fazendo força para que o cartão fosse aceite. Não fazia ideia do que iria fazer, caso não fosse. — Voilà, madame— disse a funcionária com um ar ligeiramente desiludido, como se desejasse obter aquele pequeno triunfo de me negar o bilhete. Agradeci-lhe, ainda assim, tornei a en�ar tudo no saco, pu-lo ao ombro e desatei a correr. Linha 19, dissera a funcionária. Ficava, claro, ao fundo do átrio da estação. Perguntei-me se haveria algo estranho a acontecer no Universo, algum planeta a girar ao contrário que pudesse explicar por que razão eu não �zera nada a não ser correr freneticamente em estações ferroviárias e quase perder os comboios ao longo de 24 horas. Acelerei o passo ao mesmo tempo que procurava o telefone para ver as horas. Enquanto corria, a minha mão andava de um lado para o outro, a apalpar todos os cantos e recantos da mala, para cima e para baixo, debaixo das coisas, entre páginas, em toda a parte. Não o conseguia encontrar. Engoli em seco e abrandei. Aquilo não podia estar a acontecer-me, não naquele momento, não depois de tudo o resto. Veio-me à cabeça uma ideia terrível: teria voltado a pegar nele depois de ter esvaziado a mala na bilheteira? Não conseguia pensar, o meu cérebro tinha-se transformado numa nuvem. Teria eu, no afã de apanhar o comboio, deixado o telefone no balcão? Dei meia-volta para correr em direção ao painel de partidas mais próximo e ver as horas. Eram 7h16. Dei uma corrida de volta à bilheteira. Se não tivesse o telefone comigo, o Si não me poderia contactar, e eu não queria que ele se preocupasse ou — o que era mais importante — pensasse que eu não era capaz de me desenrascar sozinha. Desta vez, passei pela �la e segui diretamente para a frente, onde expliquei aos seguranças com ar enfurecido, um dos quais levantara a mão para me parar, que tinha deixado o telefone no balcão número 11 e que não estava a meter-me à frente de ninguém, só queria ver se estava lá. Ele deixou-me passar com renitência e, ignorando os gritos de protesto de alguém na �la, precipitei-me para o balcão em que tinha estado alguns momentos antes. A funcionária da bilheteira estava a atender outra pessoa, um homem de negócios de meia-idade que, sem surpresa, me �tou com estranheza quando eu comecei a olhar para o balcão de uma ponta à outra e depois me arrojei ao chão e comecei a gatinhar junto aos pés dele para ver se o telefone tinha caído. — Desculpe — disse à funcionária, quando me levantei, a gesticular como um sinaleiro. — Desculpe, mas viu se eu deixei o meu telemóvel aqui há um minuto? Ela abanou a cabeça, o mais ín�mo dos sorrisos presunçosos a tingir-lhe o rosto. Ótimo, acabava de lhe provar que era a tontinha que ela pensava que eu era. Tapei a boca com a mão, precisava de manter a cabeça fria. Se quisesse apanhar o comboio, tinha de esquecer o telemóvel e correr. Era mais importante chegar a Amesterdão, custasse o que custasse. Os telemóveis podiam ser substituídos, mas a Catherine nunca mais teria um dia de casamento. Por isso, desatei a correr. Saí da bilheteira, atravessei o átrio da estação e segui em direção à linha do comboio, com a respiração ofegante e o bilhete agarrado na mão quente e húmida. Estava a meio caminho da linha 19 quando, vinda de nenhures, uma enorme mala preta apareceu a deslizar pelo chão à minha frente. Reagi bastante depressa, diga-se. Abri as mãos para o lado para tentar abrandar e cravei os calcanhares no chão, mas não serviu de nada. Não consegui parar nem desviar-me a tempo de a evitar. Voei em frente, o piso da estação a aproximar-se de mim a uma velocidade tão alarmante que eu pensei que ia �car inconsciente. Pus as mãos à frente para me proteger, mas caí desamparada de lado e acabei por torcer o tornozelo. Fiquei deitada durante um segundo ou dois, sem fôlego e algo aturdida, antes de tudo voltar a �car claro e eu me aperceber de pernas à minha volta, de dedos dos pés com unhas pintadas em sandálias, de bainhas de calças de ganga, de um anúncio no altifalante sobre um comboio para Lille e de uma dor aguda no tornozelo. Quando pestanejei e olhei para cima, havia uma pessoa em pé junto a mim, um homem com um blusão de cabedal preto. Não podia acreditar. Ou, na verdade, até podia, porque, com o dia que estava a ter, tinha de ser o parvalhão do francês do comboio, claro. Devia ter adivinhado que seria egoísta o su�ciente para deixar as coisas dele espalhadas por todo o lado. — Je peux vous aider? — disse ele com uma respiração arquejante e estendendo a mão, que eu ignorei. — Não, não podes — disse eu, sabendo que tinha de me levantar e continuar a correr. Tentei levantar-me, mas senti uma pontada de dor no tornozelo, pelo que usei a outra perna para me erguer e a mala dele para me apoiar. — Estás em condições de andar, assim? — perguntou o tipo francês, já a recuar. Presumi que ele ia apanhar o mesmo comboio que eu e, como é óbvio, não tinha intenção de �car ali para ver se eu estava bem ou não. — Podes ir — disparei, dobrando-me para pegar no conteúdo da minha mala, que se tinha espalhado pelo chão. — Posso chamar alguém para te socorrer — disse ele enquanto olhava desenfreadamente à sua volta e pegava no meu livro e num pacote de lenços para mos dar. — O que eu preciso é de apanhar este comboio — disse eu, tirando-lhe o livro e os lenços da mão. A linha parecia ainda mais distante do que antes e eu di�cilmente seria capaz de correr a toda a velocidade depois da queda, não era? E correr já não era o meu forte, mesmo quando tinha as pernas em bom estado. — Vai lá apanhar o comboio. A sério — disse-lhe. Porque é que ele ainda estava ali especado sem se mostrar útil para ninguém? — Se tens a certeza... — disse ele enquanto levantava a mala para cima do ombro. — Não adianta perdermos o comboio os dois, pois não? — disse eu, já a cambalear em direção à linha. Ele acompanhou-me o passo, ao meu lado, esfregando a boca com a mão. — Vai lá! — disse eu, totalmente enfurecida. Não queria que ele me culpasse se não apanhasse o seu precioso comboio. Ele começou a andar mais rapidamente e olhou por cima do ombro, como se não tivesse a certeza do que deveria fazer até que, por �m, acelerou e desatou a correr tão depressa que, ao �m de poucos segundos, eu já não o via. Segui em frente, tentando uma corrida lenta porque havia sempre a possibilidade de o comboio se atrasar. Alguém poderia premir o botão de emergência, por exemplo. Poderia haver um pequeno problema de sinalização capaz de atrasar um pouco os procedimentos. Quando estava a chegar ao �m do átrio e olhei para a linha 19 à minha esquerda, ouvi uma buzina e o comboio — o meu comboio — começou a movimentar-se, rolando serenamente para fora da estação como se não tivesse acabado de acrescentar mais uma camada de infelicidade àquele dia infernal. Encostei-me a um carrinho de bagagem para me apoiar e tentei acalmar a respiração, aliviando o peso que estava a fazer sobre o tornozelo. Foi então que o vi, o tipo francês, a caminhar a passos largos na minha direção, a mala monstruosa sobre o ombro e o comboio a serpentear para longe atrás dele. — Então? — disse ele, deixando cair a mala ao chão. Eu pus as mãos nas ancas e olhei-o de frente. — Como é que conseguiste perdê-lo? — Eu estava aqui — disse ele, abrindo os braços. — Um minuto antes, às 7h19. Mas eles tinham fechado as portas mais cedo e aquele imbécile — pronunciou, a olhar por cima do ombro para o segurança com cara de poucos amigos — não as quis abrir outra vez. — Certo — disse eu, demasiado aborrecida para sequer �ngir que me importava. — Eu deveria estar naquele comboio — disse ele. — Agora vou chegar atrasado a algo muito urgente e importante para mim. — Junta-te ao clube — retorqui. — Bem, talvez se olhasses por onde andas — disse ele, puxando a franja irritante e murcha da frente dos olhos. — Espero que não estejas a sugerir que a culpa é minha — disse eu. Ele olhou para mim. — Tens de assumir alguma responsabilidade, não? Eu olhei-o com um pasmo escarninho. — Explica lá isso — disse-lhe. Ele riu-se. — E não te rias de mim. — Não conseguia suportar aqueles parisienses arrogantes. Quem é que ele pensava que era? — Sentes-teculpada — disse ele, ainda a rir-se consigo próprio. — Admite-o. — Não, não sinto. — Sentes, sentes. — Porque é que haveria de me sentir culpada? Ele olhou para o teto, a �ngir que estava a pensar. — Hum. Vejamos… talvez seja porque ias a correr como uma louca numa estação de comboios cheia de gente. A tropeçar nas coisas das outras pessoas. A atrasá-las. Fiquei boquiaberta. Aquele tipo era inacreditável. — Bem, lamento não ter visto a tua mala enorme, que, por alguma razão, decidiste atirar mesmo para a frente do meu caminho. Ele bufou pesadamente. — Pousei-a por um segundo para procurar o meu bilhete. Se tivesses aberto os olhos, tê-la-ias visto ali mesmo à tua frente. — Eu podia ter �cado gravemente ferida. — Se não tivesses caído em cima da minha mala, terias caído em cima da mala de outra pessoa qualquer. Cerrei os lábios. Aquela conversa não levava a lugar nenhum. Eu deveria estar a tentar saber quando partiria o próximo comboio e não �car ali a discutir com alguém que agradeceria nunca mais ver na vida. — Certo. Bem, gostei muito desta nossa conversa, mas agora tenho de ir — disse eu, abanando a cabeça de forma exagerada para ter a certeza de que ele reparava. Até �quei um pouco tonta depois, na verdade. — Talvez seja melhor abrandares o passo desta vez — disse ele, baixando-se para tirar alguma coisa do interior da mala. — És muito mal-educado, sabias? — disse-lhe eu para o cocuruto. Ele nem sequer levantou a cabeça. Ia dizer mais alguma coisa, mas detive-me: não precisava de me meter nisso. De cabeça bem erguida, virei-me e comecei a andar decidida pelo cais fora, o que não era fácil com uma entorse no tornozelo. — E tu és muito precipitada! — gritou nas minhas costas. Cravei as mãos nas ilhargas para me conter e não lhe mostrar o dedo do meio. Não conseguia acreditar que ele estava a tentar atribuir-me a culpa, eu podia ter partido o pescoço naquela queda. Quando cheguei ao �m do cais, espreitei de relance para trás, para veri�car se ele me estava a seguir, porque já estava farta daquela atitude execrável. Não precisava de me ter preocupado. Era óbvio que ele já me tinha esquecido e estava sentado em cima da mala a dedilhar no telefone como um louco. Fiz um gesto de reprovação para mim mesma e continuei a andar, tentando manter-me otimista. Ainda tinha 10 horas para chegar a Amesterdão a tempo do casamento. Seria assim tão difícil? Capítulo 5 Havia um conjunto de bancos de madeira debaixo da escada rolante que dava para o terminal do Eurostar e, depois de me baixar para ocupar o último lugar vazio, estiquei e dobrei o pé para o examinar. Esperava que não fosse inchar, caso contrário, não conseguiria calçar os sapatos do casamento. Estava ocupada a apalpar a pele em volta do osso do tornozelo quando uma enorme mala preta — a enorme mala preta — caiu vinda de nenhures e aterrou com estrondo no chão ao meu lado. Levantei a cabeça, incrédula. — O que é que estás aqui a fazer? Ele encolheu os ombros. — O teu pé está bem? — Não percebo muito bem porque estás a fazer de conta que estás preocupado — disse eu, sentindo-me petulante. Por alguma estranha razão, de repente estava a portar-me como uma adolescente rabugenta. Ele ajoelhou-se no chão à minha frente e tirou-me a sabrina do pé com cuidado. — O que estás a fazer? — perguntei, puxando o pé para trás, envergonhada. — Estou a examinar o teu pé — respondeu ele pacientemente, enquanto puxava o pé de novo na sua direção com suavidade e pousava o meu calcanhar na coxa dele. — Quem é que está a sentir-se culpado agora? — disse eu. — Não �cou vermelho, o que é bom — disse ele, a olhar para baixo e a ignorar o meu comentário infantil. — O quê? Não me digas que és médico. — Não — disse ele, com um olhar condescendente. — Não sou médico. Mas identi�co um tornozelo partido quando o vejo. — Partido? — disse eu, em choque. Não estava partido, seguramente. Como é que eu haveria de ir para o trabalho todos os dias de muletas? Nunca conseguiria subir e descer as escadas rolantes no metro. — Dói-te? — perguntou, virando-o para a esquerda. — Dói — disse eu a estremecer. — E assim? — Virou-o para o outro lado, mais delicadamente do que eu estava à espera. Eu inspirei fundo e depois expirei. — Um pouco. Ele passou o polegar pelo peito do meu pé, no exato local onde os dedos acabavam e o pé começava. — Bem, já podes parar — disse eu, conseguindo �nalmente afastar o pé e ciente de que a adolescente que estava sentada ao meu lado, ocupada a mexer no telemóvel, tinha �cado subitamente muito interessada no que se estava a passar. — Acho que é uma entorse — disse ele com con�ança. — Tenho quase a certeza de que conseguia chegar a essa conclusão sozinha — disse eu. Claro que ele tinha de se armar em importante ao dizer o óbvio. Levantei a cabeça e olhei para o ecrã de partidas mais próximo. Eram 7h28. O nosso comboio tinha sido apagado da lista como se nunca tivesse existido. Eu não só perdera o telemóvel, como tinha muitas dúvidas de que conseguisse sequer chegar ao casamento. Já imaginava a Catherine e os pais a acordar nos seus trajes de festa e a abrir o champanhe. Não tinham olhado a custos naquele casamento, pelo menos isso eu sabia. Quando o Si me levara a conhecer a sua família, eu tivera de esconder a minha surpresa ao ver a enorme vivenda em que ele morava e que era pelo menos cinco vezes maior do que a casa em que eu tinha crescido. Eu olhara para aquela casa com duas frentes em toda a sua glória a tentar conter um suspiro ao ver a perfeição das janelas de duplo vão, a porta majestosa com ornamentos de bronze e a estrutura de tijolos revestida com hera. O amplo passeio de entrada, rodeado por extensos relvados cuidadosamente mantidos, tinha espaço su�ciente para seis carros. Seria, provavelmente, para quando faziam jantares elegantes em que toda a aldeia marcava presença. — Aqui estamos — dissera o Si alegremente. — Lar doce lar. — Bem, isto é muito bonito — dissera eu, a sorrir estupidamente para ele, enquanto tentava esconder a irritação que estava a sentir por ele não me ter avisado de que a família era podre de rica. Depois, lembrara-me de que, para ele, aquela vida devia ser algo tão normal que nem lhe passara pela cabeça que eu iria querer saber. Que eu poderia ter querido preparar-me. Sentira-me imediatamente mal vestida com as minhas calças de ganga baratas e uma camisola de gola alta com borbotos, que eu estava convencida de que parecia elegante e francesa, quando estava encostada à parede do quarto minúsculo da porcaria da minha casa partilhada em Manor House a ver-me ao espelho. Estava a enganar-me, claro: estava longe de ser su�cientemente so�sticada para aquela casa espetacular. A Gare du Nord estava a �car mais movimentada, o que eu não pensava ser possível. Fiquei a observar as pessoas a entrarem apressadas com as roupas de verão molhadas devido à chuva, a sacudirem a água dos guarda-chuvas e a deixarem poças reluzentes no chão. Eu não sabia quanto tempo ia �car presa naquela estação, mas já tinha tido a minha conta. — Está a escapar-me alguma coisa ou não há comboios para Amesterdão no painel? — perguntei, apontando para o ecrã mais próximo. O tipo francês levantou-se para olhar e sacudiu o pó dos joelhos. — Eu também não vejo nada — disse ele, a olhar para mim por cima do ombro e a esfregar o cabelo, desconcertado. Quando vi um segurança a passar, agarrei a oportunidade e abanei os braços para o chamar. — Excusez-moi, monsieur! — gritei. — Pode dizer-me quando é o próximo comboio para Amesterdão, por favor? O segurança tirou um horário do bolso do casaco e foi passando o dedo por cima dele durante alguns segundos angustiantes, enquanto abanava a cabeça. Não me parecia um sinal particularmente animador. — Esta tarde, madame — disse ele. — O das 13h40, que chega à Estação Central de Amesterdão às 16h57. Pousei a cabeça nas mãos para tentar pensar. O casamento era às 17h30. Teria tempo su�ciente? Se não houvesse atrasos, meia hora bastaria para chegar ao hotel? Quando olhei para cima,o tipo francês estava a pavonear-se de um lado para o outro e a gesticular como um louco enquanto o segurança lhe explicava que havia obras de engenharia na linha, que tinham sido cancelados dois comboios e que não havia nada a fazer. Eu desviei o olhar porque estava a tentar manter a calma e ele não estava a ajudar. Era possível. Se tudo corresse bem e o comboio partisse à hora devida, eu podia chegar em cima da hora. Tinha de me agarrar àquela minúscula réstia de esperança. — Está tudo bem? — perguntou o tipo francês ao �m de algum tempo, parado à minha frente de braços cruzados e a bloquear completamente a vista do átrio da estação. — Está — menti. — O que é que tens de fazer em Amesterdão? — perguntou. — Tenho de ir a um casamento. Ele encolheu os ombros. — Então não é uma tragédia assim tão grande. Eu olhei para ele com os olhos semicerrados. — Achas que perder o casamento de alguém, o dia que passam meses a planear, que devíamos estar a ajudar a organizar, cuja família está à nossa espera, não é uma tragédia? — Não, não é — insistiu, fazendo uma espécie de beicinho irritante. — E em que evento transcendente é que tu tens de estar esta tarde? — perguntei. — Trabalho — disse ele, pousando as mãos nas ancas e expelindo o ar pelos lábios cerrados. — Uma reunião que pode mudar tudo para mim. — Tens razão, isso parece realmente muito mais importante — disse eu, revirando os olhos. — E não quero saber do que o segurança do comboio disse, os anúncios não foram su�cientemente altos. Como é que havemos de os ouvir quando estamos a dormir? Estávamos a meio da noite — resmungou. — Eu sei — disse eu, a concordar com ele com renitência. — Eu também não ouvi nada. — Quem me dera ter �cado onde estava — disse ele. — Mudei de lugar porque havia uns tipos a rir-se e a gritar na minha carruagem e eu não deixava de os ouvir, mesmo com a música no máximo. — Era por isso que tinhas a música tão alta, é isso? Ele suspirou e virou os olhos para os meus. — Ainda estás a tentar culpar-me? — É claro como a água agora: se aquela música de dança tão terrível não estivesse a bombar para fora dos teus auscultadores, eu não teria de pôr os auriculares. Ele levantou as sobrancelhas. — Música terrível? — Na minha opinião. — E agora aqui estamos nós — disse ele, olhando de forma enigmática em volta do átrio da estação. — Mas tu és francês, não és? Ele assentiu com a cabeça. — Vivo aqui em Paris. Eu �z um som de reprovação com a língua. — Não é uma grande tragédia para ti, então, pois não? Ele dobrou-se para pegar na mala. — Pensas sempre que as tuas coisas são muito piores do que as dos outros? — perguntou. — Só quando realmente são — disse eu, embora tivesse sentido o comentário dele. Era algo que a minha mãe costumava dizer, que eu estava sempre a ter pena de mim própria. — Pronto — disse ele, levantando a mala para o ombro. — Vou andando. — Adeus, então. Ele hesitou. — Precisas de alguma coisa? — Consegues fazer aparecer um comboio? — E depois lembrei- me de uma coisa. — Na verdade, se estás a falar a sério, emprestas-me o teu telemóvel? Eu não estava com vontade de lhe dar a satisfação de me ajudar, mas, ao vê-lo ali com o telemóvel na mão, parecia uma imbecilidade não perguntar. Além disso, queria evitar usar um dos telefones públicos nojentos e com cheiro a mofo da Gare du Nord. — Bem — disse eu, vasculhando o meu saco. — Tenho aqui alguns trocos, posso dar-te algum dinheiro pela chamada. Tentei entregar-lhe um punhado de moedas, que ele recusou com um aceno. — Porque é que não tens um telemóvel? — perguntou. — Perdi-o. Deixei-o no balcão da bilheteira. Ele parecia não acreditar. — Não me parece que tenha sido isso. — Só pode ter sido. Ele abanou a cabeça. — Non. A Gare du Nord tem um problema com carteiristas. É muito mau. Tiram-nos as coisas tão rapidamente que nós nem reparamos. — Acho que o perdi. Estou sempre a perder coisas. — E porque é que não to devolveriam, se o deixaste no balcão com os funcionários mesmo ali? — Não sei — disse eu, já irritada e a descon�ar que ele era uma daquelas pessoas que tinha de ter sempre razão. Tinha de admitir que a ideia de poder ter sido vítima de um carteirista não me passara sequer pela cabeça, mas eu era um pouco lenta a assimilar aquele tipo de informação. Acontecia o mesmo com os �lmes: o Si adivinhava o enredo ainda mal o �lme tinha começado e eu precisava de estar sempre a ser elucidada sobre o que se estava a passar. Não era particularmente dotada na resolução de problemas. — Oh, bem... Seja como for, �quei sem ele. Não interessa muito como, pois não? Ele emprestou-me o telemóvel. — Eu acho que interessa. Porque de uma forma é um erro teu, de outra forma não é. Abanei a cabeça. Quanto mais depressa pudesse usar o telemóvel dele e devolver-lho, mais depressa ele se iria embora. Para minha infelicidade, quando a adolescente se pôs a andar, com o telemóvel colado à orelha, ele sentou-se no banco ao meu lado, estendeu as pernas num ângulo agudo e entrelaçou os dedos das mãos atrás da cabeça como se estivesse a ver televisão no sofá em casa. A chamada para o Si foi direta para o voicemail de novo. Estava a pensar deixar-lhe uma mensagem, mas depois �quei paralisada com o tipo francês ao meu lado a ouvir tudo o que eu dizia. Reparei que a bainha das calças dele estava levantada e revelava umas meias pretas caneladas e uns ténis Converse brancos e surrados. O Si nunca se apresentaria nuns ténis em tão mau estado. Devolvi-lhe o telemóvel. — Ninguém atende? Abanei a cabeça. — Não. Como, naquele momento, ele estava ao nível dos meus olhos, foi a primeira vez que reparei que era muito bem-parecido, o que provavelmente explicava a atitude presunçosa. Diria que era um pouco mais novo do que eu. Andaria na casa dos 20 e muitos. Os lábios eram da cor de framboesas esmagadas e a pele bronzeada era brilhante e dourada, como se ele passasse os verões a divertir-se nu nas praias da Riviera francesa (o que provavelmente era verdade). Ele apanhou-me a olhar e eu �ngi que estava à procura de alguma coisa na minha mala, da qual retirei o meu �el batom. Pus um pouco nos lábios, cerrando-os e tentando dar-lhe a entender que estava completamente fascinada por um cartaz a publicitar visitas de um dia a Versalhes. Pelo canto do olho, vi-o a sorrir consigo mesmo. Provavelmente achava que eu tinha um fraquinho por ele ou algo parecido. Os homens franceses pensam que são um presente de Deus para as mulheres, não é? — O teu tornozelo ainda está dorido? — perguntou. Eu rodei-o com precaução. — Nem por isso. Ele olhou para mim como se não acreditasse no que eu estava a dizer. — Precisas de fazer um raio-X. — Não quero fazer um raio-X. — Posso indicar-te o hospital mais próximo. — Não, obrigada. — Porque é que não queres veri�car? — perguntou ele, girando no banco. A sério, qual era a dele, com aquelas perguntas exploratórias? — Porque já te disse que não está assim tão mal. E porque pre�ro esperar aqui. Tenho de garantir que não perco o próximo comboio também. — E então vais �car sentada no mesmo lugar toda tristonha? — perguntou. — Exatamente — respondi, a raspar o verniz vermelho estalado da minha unha do polegar e a perguntar-me se teria tempo de a pintar no hotel. A Catherine teria com certeza algo a dizer, se eu me apresentasse com a unha naquele estado. A outra razão por que não queria ir ao hospital era porque não tinha seguro de viagem e uma consulta com um médico é cara e eu não tinha como a pagar. Não tinha pensado no seguro até já estarmos a bordo do avião para Veneza e, estranhamente, o Si, que habitualmente era muito precavido, também não. Até ele me tinha tranquilizado, dizendo-me que nada podia correr mal no espaço de alguns dias. Que piada. Se tivesse o tornozelo partido, estaria metida num grande sarilho. — Falta muito tempo para o comboio — disse o tipo francês. — Obrigada pela informação. Ele olhou para mim com os olhos semicerrados, como se não fosse capaz de decidir qual era o meu problema. Como tinha aquele aspeto, provavelmenteestava habituado a ter mulheres a adulá-lo. Embevecidas a ouvir tudo o que ele dizia. Bem, eu não, de maneira nenhuma. — Não tens mala! — anunciou, tendo acabado de reparar. Levantou-se para revistar a área em redor dos meus pés numa atitude trocista. — Eu viajo com pouca coisa — respondi de chofre, esperando que ele percebesse a dica e se fosse embora. — Eu não, como podes ver — disse ele, tocando na mala dele com o pé quando voltou a sentar-se e a virar-se para mim. — Claramente. Ele quase sorriu. — Demasiado? — O que tens aí dentro? Eras capaz de fazer graves estragos com isso. — Parece-me que agora estás a culpar a minha mala pelo teu tornozelo magoado. — É mais ou menos isso. — Não tem nada que ver com correres demasiado depressa? — Nem um bocadinho — disse eu. Tinha a minha versão dos acontecimentos e ia manter-me �el a ela. — Então, vais dizer-me o que trazes aí dentro ou não? De outro modo, posso começar a descon�ar de que é alguma coisa ilegal. Um cadáver, possivelmente? — Nada assim tão sinistro. São vinis. Discos. Compro-os aonde quer que vá. — E arrasta-los para todo o lado? — Acho que sim. Gostas de música? — Claro que gosto — disse eu, imediatamente na defensiva. O meu conhecimento era muito, muito limitado. — De que tipo de música gostas? — De todo o tipo — respondi. Olhei para cima. A chuva tinha �cado mais pesada e estava a fustigar o telhado. Perfeito. Nem sequer podia ir lá fora apanhar ar fresco. — Gostas de música de dança? — perguntou. — Espera, já sei que não gostas, uma vez que já disseste que era «terrível». — Gostos não se discutem. — Rock, então? Classique? — De tudo, na verdade — disse eu, mostrando-me propositadamente vaga. Os meus gostos musicais eram duvidosos, até eu era capaz de o admitir. Tinha um álbum do Olly Murs, por exemplo, embora, em minha defesa, tivesse sido uma prenda de Natal da minha mãe e do meu padrasto, Tony. Além disso, a Ellie e eu tínhamos ido ao concerto do reencontro dos Take That no O2 Arena, o que não tinha muita vergonha de admitir, mas não ia, de forma nenhuma, dizê-lo àquele tipo. Porque eu tinha quase a certeza de que não conhecia nenhuma das bandas modernas e alternativas que ele gostava de ouvir, fossem elas quais fossem. Provavelmente, ele só estava a fazer-me aquela pergunta para poder tecer algum tipo de comentário pretensioso sobre o que eu dissesse para se sentir bem e estimular o seu ego já a rebentar. Ele tirou um maço de tabaco do bolso. — Seis horas de espera, hem? Isso não é bom. Ofereceu-me o maço, mas eu abanei a cabeça, embora estivesse desesperada por um cigarro. Não fumava há quase um mês. O Si andava a tentar convencer-me a deixar de fumar praticamente desde o momento em que nos tínhamos conhecido. Obviamente, eu já tinha tentado deixar de fumar antes, durante anos, mas o momento nunca era o mais adequado, eu gostava demasiado de fumar e tinha muito pouca força de vontade. Mas quando eu e o Si fomos viver juntos e eu comecei a passar a maior parte do tempo com ele, comecei a reduzir, até que acabei por conseguir deixar de fumar por completo. Já nem tinha aquela vontade de fumar. Exceto em momentos como este na estação. Aí sim, sentia falta de um cigarro. Ele pegou num cigarro do maço e colocou-o atrás da orelha. — Conheces alguém em Paris? — perguntou. Tinha a voz baixa e rouca, como se estivesse com dor de garganta ou tivesse �cado a pé até tarde durante demasiadas noites. Provavelmente este último caso. — Não. Ninguém. Estremeci, desejando ter algo quente para pousar sobre os ombros. Tinha sido uma estupidez deixar o casaco de malha no banco do comboio. Acima de tudo, tinha sido ridículo pôr-me a andar de carruagem em carruagem com o comboio em movimento a meio da noite. Em que é que eu estava a pensar? Acho que não estava a pensar. O problema era esse. — Espera — disse ele, atirando a mala para o chão e revistando o interior. Tirou um casaco vermelho com capuz. — Acho que podes �car com isto. Eu estendi a mão para o impedir, horrorizada. — Não. De maneira nenhuma. — Aceita — disse ele. — Tenho muita roupa aqui. E está a chover. Não podes andar em Paris só com essa camisola. Atirou-o para cima de mim, sem chegar a olhar-me nos olhos e eu apanhei-o desajeitadamente, subitamente complexada por ter tão pouca roupa vestida. — Obrigada — disse eu. Depois vesti-o e envolvi-o no meu corpo como um robe. Normalmente não vestiria a roupa de uma pessoa que tinha conhecido uma hora antes. Na verdade, provavelmente sentiria asco só de pensar nisso. Mas ninguém �caria contente se eu aparecesse no casamento com hipotermia. Reparei que o casaco tinha o mesmo cheiro que ele: tabaco, cabedal e vinil. — És fotógrafa? — perguntou ele, apontando para a máquina fotográ�ca enquanto fechava a mala. — Nem por isso — disse eu, passando com o polegar e o dedo do meio pela alça. — É só um passatempo. Ele tirou o cigarro de trás da orelha e hesitou, deixando-o a pairar a um centímetro do lábio inferior. — Alors, vou andar um pouco a pé — disse ele. — Este tempo todo na Gare du Nord? Não é possível. Eu pensei que também a mim me parecia um pesadelo, mas não podia arriscar-me a abandonar a estação, para o caso de, por milagre, ser anunciado algum comboio a sair mais cedo. — Boa sorte — disse eu. Quando ele saísse e eu �casse sozinha de novo, poderia pensar mais claramente. Fazer um plano como devia ser. — Podes vir comigo, se quiseres — disse ele de repente, como se não houvesse nada que lhe apetecesse menos. Eu ri-me. — Acho que passo. — Demasiado arriscado para ti? Eu �quei a remexer nas mangas do casaco com capuz que ele me tinha emprestado. — Chama-se ser prudente. — Ah. Achas que eu sou um criminoso. Um assassino. Que te vou raptar e obrigar-te a �car em Paris para sempre. — Muito engraçado. Como se eu fosse sabe Deus para onde com um homem que mal conhecia. Não, iria �car na estação, beber o café mais barato que conseguisse encontrar, ler o meu livro e, provavelmente, �car muito aborrecida, mas quieta. Era a coisa mais madura a fazer. — Não vais conhecer nem um bocadinho da cidade? — perguntou ele, com ar desiludido. Custava-me perceber porque é que ele se importava se eu conhecia a cidade ou não. Seria ele um embaixador da autoridade de turismo francesa ou algo assim? — Bem, há este problema com o meu tornozelo — apontei. Ele fechou o casaco e pôs as mãos nos bolsos, deixando os polegares do lado de fora. — Ah, sim — disse ele, olhando para mim como quem pensa que uma ligeira entorse no tornozelo era uma desculpa esfarrapada para não sair da estação e ir ver as vistas da sua preciosa cidade. — Chamo-me Léo, já agora. Et toi? — perguntou, com o cigarro já a pender dos lábios. — Hannah — disse-lhe, hesitante. Ele assentiu, ajustou a alça da mala por um segundo ou dois e depois saiu, fundindo-se discretamente no meio da multidão e ziguezagueando pelo átrio. Era alto e magro, como um corredor de fundo ou um daqueles parisienses loucos que saltavam de edifício em edifício. Abanei a cabeça pela forma como a mala lhe caía sobre as costas como a carapaça de uma tartaruga, tão grande que ocupava tanto espaço como uma outra pessoa. A roupa dele não tinha nada de espetacular: um casaco de motociclista e calças de ganga com uma cintura tão baixa que eu conseguia ver um vislumbre da cintura dos boxers brancos, mas, no cenário da Gare du Nord, com centenas de viajantes que não eram mais do que manchas insigni�cantes à sua volta, ele conseguia fazer com que a cena parecesse um destaque de duas páginas numa revista de moda. Fiquei a olhar até ele desaparecer quase por completo. No último segundo, ele virou a cabeça para olhar para mim, afastou o cabelo dos olhos e levantou a mão numa espécie de aceno displicente. Resisti ao impulso de lhe retribuir o aceno, e depois ele desapareceu. Capítulo 6 Levantei-me para testar o meu pé e coxeei até ao café mais próximo a pensar que a Gare du Nord era ligeiramente menos sombria do que eu me lembrava. Desta vez, não consegui deixar de reparar na iluminação quentee amarelada e nos pastéis de aspeto delicioso a brilhar nas vitrinas. Pus-me na �la a olhar, cobiçosa, para as pilhas de baguetes repletas de recheios coloridos e para o leque de macarons das cores do arco-íris. Fazendo uso de enorme contenção, comprei um pain au chocolat e um cappuccino pequeno e �z �gas para que o meu cartão fosse aceite. Era uma sensação familiar. A Ellie dizia em jeito de brincadeira que eu era mais velha do que os meus anos, com o tipo de vida social mortiça que seria de esperar de alguém na casa dos 60 anos, não dos 20. Mas é o que nos acontece quando estamos falidos. Estava determinada a não ter dívidas um dia. A ter um emprego melhor e algum rendimento disponível. Iria ao teatro na zona leste de Londres, iria jantar fora a bons restaurantes, passaria �ns de semana fora nos hotéis de charme elegantes sobre os quais leio na revista Stylist. No entanto, ali estava eu, com 30 anos e ainda sem saída, a viver numa das cidades mais entusiasmantes do mundo e incapaz de a apreciar porque estava permanentemente sem saldo. Fui até ao Of�ce de Tourisme, que, de acordo com o horário pendurado na porta, estava fechado até às 9 heurs. Encostei-me ao vidro e en�ei a massa doce e reconfortante na boca, bebi o cappuccino e senti-me a aquecer de dentro para fora. Depois dirigi-me ao átrio principal, completando o círculo, à procura de algum sinal de telefones. Era uma sensação estranha estar sem telemóvel e incontactável. Tinha algo de libertador, mas, ao mesmo tempo, deixava-me a pensar: e se acontecesse algo terrível e ninguém conseguisse entrar em contacto comigo? Apercebi-me de que esse seria exatamente o tipo de ideia irracional de que a minha mãe se lembraria. Ela tinha o costume de se lembrar do pior e mais improvável cenário e de se convencer de que iria garantidamente acontecer-lhe a ela ou a mim ou a alguém que ela conhecesse. Lembrei-me de outra coisa: e se eu perdesse uma oportunidade extraordinária de emprego (não era capaz de imaginar qual) por não ver um e-mail a tempo? Disse a mim mesma que essa era uma possibilidade ainda mais improvável do que a emergência médica que me estava a preocupar um segundo antes. Vi um comboio a chegar. Estava pintado de vermelho e tinha a frente pontiaguda como a de um foguetão. Eram muito rápidos aqueles comboios europeus. Tinha lido algo sobre eles algures. Por isso, haveria seguramente uma possibilidade de ainda chegar ao casamento, se não houvesse mais atrasos. Ainda não tinha desistido dessa ideia. Vi um Eurostar a chegar noutra linha e senti uma pontada de saudades de casa. Provavelmente estava mais perto de Londres do que de Amesterdão. Poderia estar sentada no sofá da minha casa com os pés para cima no espaço de três horas. À procura de um telefone público (ainda existiriam telefones públicos?), encaminhei-me cuidadosamente para a saída mais próxima, fazendo o possível por não pressionar o tornozelo. A zona pavimentada do lado de fora da estação estava reluzente e molhada, as gotas de chuva gigantes a respingar em pequenos salpicos viciosos. Fiquei a ver as pessoas a sair do autocarro e a correr até à entrada da estação com casacos e jornais a cobrir a cabeça. Puxei tanto o fecho do casaco com capuz do Léo que o meu rosto só seria visível do nariz para cima e aventurei-me a sair para a chuva. Reparei que estava na rua onde o táxi me tinha deixado de manhã e parecia que toda a gente tivera a mesma ideia porque contei pelo menos 15 táxis a chegar, com as portas a abrir e a fechar, as bagagens a serem arrastadas das bagageiras, as buzinas a soar, os pneus a passar por poças do tamanho de pequenos charcos. Tirei duas ou três fotogra�as com grão ao edifício em frente: cinco andares de apartamentos parisienses tradicionais empilhados em cima de uma �la de restaurantes com toldos vermelhos. Os meus olhos foram direitos a uma divisão num sótão, onde alguém estava, sem grande resultado, tendo em conta o clima, a pendurar toalhas a secar do lado de fora da janela embutida no telhado de zinco cinzento. Depois deixei-me �car a observar as pessoas durante algum tempo e a ler os sinais rodoviários e os cartazes para testar o meu francês. Apercebi-me de que, pela primeira vez em muito tempo, estava a desenvencilhar-me bem sozinha. Não conseguia falar com o Si, pelo que não fazia sentido �car à espera de que ele me fosse salvar, que era a dinâmica em que parecíamos ter caído. Era como se estivéssemos a viver a nossa versão de um conto de fadas e o Si fosse o belo príncipe a galopar no seu �el corcel branco. Eu adorava ter alguém ao meu lado para tratar das coisas por mim. O Si encontrava sempre uma forma de me dar o que quer que eu precisasse. Eu só tinha de pedir. Mas estávamos a viver juntos e a pensar passar o resto da vida como um casal e eu não conseguia deixar de me perguntar se o Si tinha aparecido para me salvar antes de eu ter possibilidade de descobrir se era capaz de me desenrascar sozinha. Depois de ver pelo menos mais cem passageiros a passar pela entrada do terminal, encontrei uma �la de telefones públicos junto à parede do fundo. Um sem-abrigo com tiques nervosos andava sorrateiramente de um lado para o outro junto à calçada, trazendo nas mãos uma corda com um laço, o que era inquietante. Mantive-o na minha visão periférica, pus o cappuccino no chão ao meu lado, peguei no auscultador do telefone mais próximo e limpei-o com o último lenço do meu pacote. Era escusado, na verdade, uma vez que, tanto quando eu sabia, o lenço não tinha nenhuma propriedade germicida, mas, ainda assim… fez-me sentir ligeiramente menos enojada. Pensei em tentar ligar à minha mãe em primeiro lugar. Era uma estratégia arriscada. Ela iria ter um ataque quando eu lhe contasse o que tinha acontecido. Mas precisava que alguém soubesse onde eu me encontrava, que estava em segurança e que estava bem. E, conhecendo o Si, sabia que ele acabaria por lhe ligar de qualquer forma, sobretudo se estivesse em pânico. Preferia que ela soubesse de tudo pela minha boca e que os factos fossem transmitidos de uma forma calma e factual, que eu já sabia que era a melhor maneira de dar qualquer tipo de informação — boa ou má — à minha mãe. De qualquer modo, ela até podia surpreender-me: andávamos a falar mais do que era habitual nos dias mais recentes. Eu tinha-lhe enviado uma data de fotogra�as e ela adorara ouvir o que andávamos a fazer. Ela sempre quisera ir a Veneza, mas nunca tivera a possibilidade de o fazer e eu senti-me um pouco culpada por, essencialmente, lhe roubar o sonho e o realizar em vez dela. Marquei o número da casa da minha mãe. Eram 7h55 em Paris, pelo que seria uma hora menos em En�eld. Imaginei a minha mãe, toda enrolada debaixo da colcha no mesmo quarto em que dormia há mais de 30 anos. Não a conseguia imaginar a sair da Thirlmere Drive, uma rua que, para mim, sempre tivera um quê de lúgubre e desesperante. Para começar, todas as casas sem varandas eram iguais umas às outras, tirando aquelas em que os moradores tinham construído um alpendre ou convertido o sótão. Era como se a rua tivesse um uniforme. Perguntava-me porque é que ninguém tinha fugido do molde. Porque é que ninguém se lembrara de pintar a casa rosa-clara com uma cor diferente e mais viva ou até decidido livrar-se dos cortinados. Preparei-me para ouvir a voz da minha mãe passar de um pouco ensonada para quase histérica logo de imediato, quando despertasse e pusesse o carro à frente dos bois ao imaginar o terrível destino que esperava a �lha com queda para os desastres. Seria de pensar que, com a minha idade, eu já tivesse deixado de me preocupar com o que ela pensava, mas, por alguma razão, talvez por só a ter a ela e não um pai, magoava-me que ela pensasse sempre o pior de mim. Tinha de estar sempre a fazer um esforço adicional para a desenganar. Para lhe mostrar que não era o caso perdido que ela parecia achar que eu era. Embora nada disso fosse fácil quando eu tinha feito asneira — como era o caso. O telefone tocou sete vezes antes de ela o atender. — Estou? A voz era vaga, comose ela pensasse que estava a sonhar. — Mãe, sou eu. Silêncio. — Hannah? — Sim. — O que aconteceu? Respirou fundo para o auscultador. — Nada. Está tudo bem — disse eu com a voz mais apaziguante que era capaz de fazer. — Graças a Deus — disse a minha mãe. — Não estás metida em nenhum sarilho, então? — Claro que não — disse eu despreocupadamente. — Nada de grave, pelo menos. É só que perdi o Si. Mais silêncio. E depois: — Como assim, perdeste o Si? Eu sabia que ela tentaria resistir à tentação de recorrer ao dramatismo. Tentei explicar-lhe. — O comboio de Veneza dividiu-se em dois a meio da noite sem nós sabermos e agora eu estou em Paris e o Si está a caminho de Amesterdão. — Oh, meu Deus, Hannah! — E as minhas coisas estão todas com ele. A minha mala. A minha carteira, embora por sorte eu tenha dois cartões comigo — acrescentei rapidamente. — Ah, e roubaram-me o telemóvel. Mais valia dizer logo tudo o que havia para dizer. — E o casamento da Catherine? — perguntou com voz estridente. — Não vais chegar a tempo, Hannah! A sério, o que se há de fazer contigo? Porque é que estas coisas te acontecem sempre a ti? A minha mãe iria �car chateada com o sucedido porque sempre esteve mais interessada no casamento da Catherine do que eu. Obrigou-me a contar-lhe todos os detalhes do dia e estava particularmente obcecada com o vestido da Pauline, que eu evitei dizer-lhe que custou mais do que o guarda-roupa todo dela. — Não sei, mãe, porque será? — respondi, com a exaustão a consumir-me. A nossa relação sempre esteve do lado mais volátil do espetro. Houve discussões, portas a bater e dias inteiros sem uma troca de palavras quando eu era adolescente. Mesmo depois de adulta, ela tinha a capacidade de me esgotar a paciência em poucos segundos, uma vez que sabia exatamente quais eram as minhas inseguranças, mas não deixava de fazer um esforço consciente (ou talvez, para lhe dar o benefício da dúvida, inconsciente) para pôr o dedo na ferida. — Tony! — ouvi-a a gritar. — Acorda. É a Hannah. Meteu-se numa bela alhada. Fechei os olhos um segundo ou dois. Teria telefonado à Ellie, se soubesse o número dela de cor. — Mãe, não entres em pânico. Eu vou resolver tudo. Tenho um bilhete para o próximo comboio para Amesterdão. Se não se atrasar, devo chegar mesmo a tempo da cerimónia. É só às cinco e meia. — E Paris. É seguro sequer? Tu nunca estiveste em França, Hannah! — Hum. Não era exatamente o momento adequado para lhe contar sobre aquela malfadada viagem. O Tony resmungou ao fundo — era capaz de dormir em qualquer situação, o Tony — e eu ouvi a minha mãe a dizer-lhe numa voz aguda e distorcida o que tinha acontecido. Fez a situação parecer pior do que já era. — O Tony disse para nos dares o número do telefone que estás a usar e nós ligamos-te daqui. Tens de poupar dinheiro, Hannah. Já comeste alguma coisa? Estás bem agasalhada? Lá estava ela, a começar o sermão e a falar comigo como se eu tivesse o discernimento de uma criança de 4 anos. Dei-lhe o número, pousei o auscultador e esperei. Tocou mais ou menos um minuto depois. — Hannah? — Non, pardon, devem ter o número errado — disse eu com um sotaque francês numa tentativa de aligeirar a atmosfera e também porque sabia que a iria irritar. — Quem fala, por favor? Estou à procura da minha �lha, Hannah. Eu ri-me baixinho. — Sou eu, mãe. Estava a brincar. — Por amor de Deus. Estou a morrer de preocupação e o Tony também. — Ele ainda não voltou para a cama, foi? Uma pausa. — Bem, sim, mas isso não quer dizer… — Não interessa. Imaginei o Tony com as entradas cada vez maiores, os calções beges, que ele insistia em usar independentemente do tempo, pendurados nas costas da cadeira junto à cama. Ele tinha-me dito que era por ter sido carteiro e ter desenvolvido uma imunidade ao frio ao longo dos anos. No que a padrastos dizia respeito, até era bastante porreiro. Gostava dos Rolling Stones e de futebol e de ver documentários sobre crimes reais. E nunca tomava partido, mesmo no início, pouco depois de ele e a minha mãe se terem conhecido. Eu tinha 15 anos na altura, tinha-me zangado com um grupo de amigos da escola e odiava a minha mãe (e toda a gente), e ele tinha sido muito paciente e muito gentil comigo e deixado que a nossa relação se desenvolvesse devagar ao longo do tempo. Nunca foi um substituto do meu pai, acho que ambos o sabíamos, mas eu descon�ava que, se alguma vez precisasse dele, ele estaria lá num abrir e fechar de olhos. Não que alguma vez tivesse testado essa teoria, mas en�m. Era bom saber. — Bem, calculo que o Si ainda não tenha falado contigo, mas se ele te telefonar, diz-lhe que eu estou bem e que estarei lá logo que puder — disse eu à minha mãe. Ouvi um suspiro e o roçagar de lençóis. Ela estava a voltar para a cama. Levantava-se às 8 da manhã e nem um segundo antes. — Pobre Si, vai andar a trepar paredes — disse ela. Claro que era do Si que ela ia ter pena. Ele era como o �lho que ela nunca teve. Nos últimos tempos, quando ela me ligava para o telefone �xo, eu reparava que ela parecia desiludida quando era eu quem atendia e não o Si. — Ele é adorável, Hannah — comentara ela num raro assomo de excitação quando o levei a nossa casa pela primeira vez. Estávamos na cozinha a fazer chá para toda a gente. — Não te mostres tão surpreendida — disse eu, enquanto tirava as canecas do armário. — Ele é muito bem-parecido — sussurrou a minha mãe, como que a conspirar. Eu ri-me baixinho. — É, não é? Ela arranjou quatro guardanapos de papel em forma de leque no tabuleiro. — Detesto dizê-lo, mas já estava a começar a convencer-me de que nunca ias encontrar ninguém. Eu concentrei-me em reordenar as canecas para as manter todas à mesma distância. — A sério? Não sabia que tinhas desistido de mim tão depressa. A minha mãe pigarreou. — Não é isso. É só que, bem… só de pensar nos outros namorados que trouxeste cá a casa. Ela tinha razão, claro, eram todos um horror, mas não era ela quem o devia dizer. — É o que acontece quando estamos na casa dos 20, não é? — disse eu de forma petulante, porque queria manter a ligeireza da conversa. — Fazemos experiências. Temos relações que não funcionam. Cometemos erros. A minha mãe tinha tirado o leite do frigorí�co e despejou-o no seu melhor jarro de porcelana branca, que pousou no tabuleiro ao lado de um prato de bolachas digestivas de chocolate. — Todos nós cometemos a nossa quota-parte de erros — disse ela. Eu enchi o bule com água da chaleira e levei-o para o tabuleiro. — Estás a falar do pai? — perguntei com calma. Raramente mencionávamos o nome dele. Não o fazíamos há anos. Eu aprendera a não o fazer. Tinha 7 anos quando ele nos deixara e não fazia ideia do que se passava, a não ser que ele já não estava em casa e eu sentia falta dele. Sempre que perguntava à minha mãe por ele, ela desaparecia pelas escadas acima e voltava mais ou menos dez minutos depois com os olhos raiados de vermelho e eu �cava a sentir-me mal. Como se eu tivesse sido a única responsável por a deixar transtornada. — Não percas tempo a pensar nele, Hannah. Porque posso garantir-te que, onde quer que ele esteja neste mundo, não estará a pensar em ti. — Tu não sabes isso — disse eu na defensiva, mesmo passado tanto tempo. Ela suspirou. — Acredita no que quiseres, Hannah. Se é mais fácil para ti assim. Guardei as saquetas do chá no armário e fechei-o com cuidado. — Anda, vamos levar isto, está bem? — disse a minha mãe, pegando no tabuleiro e lançando-me um sorriso curto. Eu sabia o que o olhar dela signi�cava. Era a forma de ela me dizer que a conversa tinha acabado, que aquele não era o momento. Era óbvio que não era o momento, com o Si sentado na sala ao lado, mas a questão era que nunca era o momento. Desliguei o telefone e encostei a testa ao teclado, mas afastei-me imediatamente quando me lembrei da quantidade de dedos, nem todos eles limpos, que tocavam naqueles botões todos os dias. Inseri mais algumas moedas e marquei o número do Si. Calculei que era melhor avisá-lo de que tinha perdido o comboio. Tranquilizá-loe dizer-lhe que ainda estava a fazer os possíveis para chegar lá. Era estranho �carmos tão incontactáveis, porque normalmente conseguia falar com ele num instante sempre que precisava dele. Ele era muito �ável nesse sentido, ao contrário de outros namorados anteriores. Nas poucas ocasiões em que ele saía com os amigos — o Si preferia �car em casa comigo nos últimos tempos, dizia ele —, fazia-me sempre uma descrição detalhada ponto por ponto de onde andava e do que estava a beber e das horas a que chegava a casa, pelo que eu acabava por sentir que fazia parte do grupo, quase como se estivesse lá com ele. Ao �m de alguns toques, a chamada foi direita para o voicemail. Levei a base da palma da minha mão ao olho e deixei outra mensagem. Certamente ele já teria percebido que o telefone estava sem som. Não queria ser eu a avisá-lo, porque teria de lhe explicar como é que sabia. Seria muito melhor se ele assumisse que tinha alterado as de�nições sem querer. «Olá, Si. Sou seu. Há um atraso nos comboios, infelizmente. Obras de engenharia, ao que parece. Acho que não vou chegar a Amesterdão antes das cinco da tarde, pelo que vai ser muito apertado, mas vou conseguir chegar a tempo. Pede desculpa à Catherine por mim. Ah, e também me roubaram o telemóvel. Parece que a Gare du Nord é conhecida por isso. Não há nada que me corra bem hoje, não é? Bem. Não sei bem como é que vais poder contactar-me daqui em diante. Acho que vou ter de ser eu a ligar-te. Até logo.» Fiquei parada durante algum tempo, à espera de que o meu batimento cardíaco voltasse ao ritmo normal de descanso e a encher os pulmões de ar frio e húmido. Não sabia porque é que não lhe tinha contado a verdade sobre ter perdido o comboio. Ou sobre a mala do Léo e o meu tornozelo. É engraçado como as relações mudam com o tempo. Como algumas das coisas que amamos uns nos outros acabam por nos irritar além do imaginável mais tarde. E vice-versa. E vice-versa, claro. E, uma vez que o Si e eu éramos muito diferentes, tanto no que respeitava àquilo de que gostávamos e de que não gostávamos como às nossas infâncias, havia muitas coisas um no outro a que tínhamos de nos habituar. De certa forma, era um milagre que nos tivéssemos sequer conhecido. Lembro-me muito bem desse dia: o perfume de madressilva e cerveja no ar, uma daquelas noites temperadas do verão de Londres. Eu estava a caminho da casa da Ellie, a sair da escada rolante da estação de metro de Highgate, à procura dos óculos de sol na mala, que tinha acabado por encontrar, pousado no nariz e tirado logo de seguida porque não precisava de óculos de sol no metro. Virara-me para ler um cartaz de uma nova produção de teatro protagonizada por alguém que tinha a certeza de ter visto num �lme do Channel 4 sobre uma rapariga desaparecida e, depois, distraída, quando ia prender o cabelo num coque, deixara cair os óculos de sol e estremecera quando os ouvira embater no degrau abaixo. — Merda — dissera, virando-me para olhar. Tinha pago 25 libras na Zara por aquele par de óculos e, provavelmente, estavam feitos em pedaços. A pessoa atrás de mim dobrara-se para os apanhar. — São teus? — dissera ele, estendendo o braço para mos dar. — São, obrigada. — Eu tinha estendido a mão e pegado nos óculos, os meus dedos a bater nos dele sem querer. Os nossos olhares cruzaram-se e eu sorri, apanhada desprevenida por ele ser tão atraente. Era louro, tinha ar de quem fazia exercício, era muito alto e estava ligeiramente bronzeado. Tinha um rosto completamente simétrico, com tudo perfeitamente alinhado, do nariz ao maxilar. Fazia lembrar um membro de uma boys band irlandesa ou um apresentador de programas infantis. Eu �cara tão distraída a examinar a sua estrutura óssea que só me apercebi de que o cimo da escada estava atrás de mim quando os meus saltos embateram no metal e eu tropecei para o átrio. Nervosa, tentei recuperar a compostura tirando o passe da mala de uma forma brusca e apressada, como se estivesse terrivelmente atrasada. — Vives aqui perto? — perguntara ele nas minhas costas quando eu me encaminhava apressadamente para os torniquetes. Eu olhara para ele por cima do ombro e abanara a cabeça. — Não. Vou ter com uma amiga. Mora já ali à frente, junto à Archway Road. — Ah, eu também — dissera ele. Perguntei-me se ele teria namorada. Mulher, até. Provavelmente. Não era o meu tipo, diga-se. Preferia homens com falhas e um pouco aluados como eu, homens que não me deixassem a sentir-me eternamente inferior. — Bem, gostei de te conhecer, ainda que por pouco tempo — dissera ele, passando rapidamente atrás de mim. Tinha um sorriso aberto e muito rasgado que era perfeitamente simétrico, tal como tudo o resto nele. E devia ter feito madeixas, ninguém tinha o cabelo daquela cor. Tomei nota mental dos traços dele para o poder descrever à Ellie mais tarde. — Igualmente — dissera eu. Gostava da forma como ele trazia o casaco do fato pendurado despreocupadamente no braço, da forma como tinha desapertado os dois primeiros botões da camisa. Eu virara-me e começara a caminhar em direção à saída para a Archway Road. Imediatamente antes de começar a subir as escadas, ouvi passos atrás de mim. — Desculpa? Era ele de novo, uma mão no bolso, um brilho de suor no lábio superior. — Olá — disse eu, afastando-me para o lado para ele poder passar. — Hum, eu sei que isto é estranho e �ca à vontade para dizer que não — disse ele —, mas queres ir beber qualquer coisa comigo um dia destes? Lembro-me de ter tentado manter a calma, de fazer de conta que ser convidada para sair no metro era algo corriqueiro na minha vida. Ele não só parecia ter saído de um �lme, como estava a criar uma cena retirada diretamente de uma comédia romântica do Richard Curtis. Talvez a sequela do Notting Hill. Highgate Village soava-me bem. Quando descrevera a cena à Ellie mais tarde, ela dissera que parecia algo que poderia acontecer à Jennifer Aniston, o que eu achara que era um resumo perfeito. Seja como for, partira do princípio de que não voltaria a vê-lo, porque era capaz de contar com os dedos de uma mão o número de vezes que um homem tinha �cado com o meu número e realmente ligado. Percebera ao longo dos anos que era algo que eles (os homens) faziam para se desembaraçarem de momentos incómodos, uma cláusula cobarde de escape quando decidiam que a�nal não estavam assim tão atraídos por nós. Capítulo 7 Eram 8h10, de acordo com o enorme relógio à frente da estação. Céus, era como se o tempo estivesse parado. Mesmo de fora da estação, os anúncios contínuos sobre comboios a chegar e comboios a partir e as buzinas a soar pareciam estar a perfurar- me o cérebro. Pelo menos, a chuva tinha amainado, transformada naquele tipo de morrinha �na e nublosa que dava a Paris o seu aspeto nevoento e romântico tão característico. Perguntei-me se a sensação que eu tinha ao estar de novo naquela cidade seria diferente se as circunstâncias tivessem sido outras? Se o Si estivesse comigo? Se fôssemos ver os locais de interesse juntos e tivéssemos apanhado o elevador até ao cimo da Torre Eiffel para tirar fotogra�as da vista? Perguntei-me se teria sido capaz de me esquecer do passado e de �car livre para apreciar a cidade por aquilo que ela era. Porque eu não conseguia encontrar muito que gostar em Paris. Havia um negrume na cidade, embora eu descon�asse que também pudesse vir de dentro de mim e não só da cidade. No entanto, tinha �nalmente provas de que me aconteciam coisas más por aqui: já tinha perdido um comboio, torcido um tornozelo e sido vítima de um furto de telemóvel. Só podia imaginar qual seria o terrível acontecimento que o destino me reservava em seguida. Quanto mais cedo pudesse sair deste lugar, melhor. Depois de matar alguns minutos a deambular à porta da estação, provavelmente com um ar muito suspeito, reparei numa mulher loura com um casaco de malha azul brilhante a atravessar o pátio de entrada a correr e houve algo nela que me lembrou a Alison, a dama de honor. Não que fosse capaz de me lembrar dela com grande pormenor. Era muito bonita,recordo-me de ter pensado isso no �m de semana de despedida de solteira. Ainda mais baixa do que eu, talvez tivesse um metro e meio ou um metro e sessenta. Sotaque do norte. Creio que ela disse que era de Manchester e que se tinha mudado para Berkhamsted depois de os pais se terem divorciado e a mãe ter voltado a casar-se com um qualquer proprietário de um negócio local. Era uma velha amiga da família do Si e, depois de se licenciar com distinção em Cambridge, trabalhava em direito societário (ou algo assim). Senti uma pontada de inveja por ela parecer tão resolvida, para depois me repreender imediatamente por me estar a comparar com outras mulheres. Ninguém, a não ser eu, tinha culpa por eu estar presa a um emprego que detestava. A questão era que havia montes de pessoas no mesmo barco. Tinham contas a pagar e �lhos para alimentar e tinham desistido muito cedo de quaisquer sonhos que pudessem ter tido. Se eu não tivesse cuidado, sabia que acabaria como uma delas. Perguntei-me como estariam as coisas a correr no casamento, se o drama que a levara a enviar mensagens ao Si a meio da noite teria sido resolvido. Pensei em todas elas a prepararem-se no quarto da Catherine sem mim, a bebericarem champanhe para tentarem manter a calma. Eu estaria a andar de um lado para o outro, a ir buscar bebidas, a transmitir mensagens e a tranquilizar uma Catherine cada vez mais enfurecida dizendo-lhe que tinha feito tudo o que ela pedira. O Si e eu estaríamos a sorrir um para o outro devido a algum pedido ridículo que ela �zesse. — Hannah! Virei a cabeça, imaginando que tinha ouvido alguém a chamar o meu nome. Mas não podia ser, uma vez que, tanto quanto eu sabia, nenhuma pessoa que eu conhecesse estava em Paris. — Hannah! Aqui! E foi então que vi o Léo, de pé ao lado de uma moto, com um capacete na mão, a coxa encostada ao quadro do veículo. Dei-lhe um aceno hesitante enquanto me perguntava onde teria ele desencantado a moto tão depressa. Parti do princípio de que vivia por perto. Sem saber bem o que fazer a seguir, comecei a caminhar na direção contrária para regressar ao interior da estação. Quando relanceei por cima do ombro, vi que ele estava a passar em frente a um táxi e corria na minha direção. — Va te faire foutre! — gritou o taxista, travando a fundo. Buzinou para o Léo, mas ele mandou-o calar-se com um aceno, aparentemente pouco preocupado por ter escapado à morte por um triz. — Un moment, Hannah! — gritou na minha direção. Eu detive-me. O que quereria ele? — Olá — disse ele, parando à minha frente a recuperar o fôlego. — Olá. — O que tens estado a fazer? — perguntou em jeito de conversa, com o capacete no braço. — Nos 30 minutos que passaram desde que saíste? Não muito, curiosamente — retorqui. O que pensaria ele que eu estaria a fazer? O ar continuava enevoado devido à chuva, mas quando estendi a mão para a sentir, era tão �na que mal dava por ela. Além disso, o ar estava quente, como se houvesse a possibilidade de o sol aparecer. — Ah, está bem — disse eu, quando me apercebi do que ele queria. — Vieste buscar isto — disse eu, desapertando o casaco com capuz. Ele levantou a mão para me parar. — Claro que não. Podes �car com ele. Eu olhei-o com um ar interrogador. — Tens a certeza? — Tenho — respondeu com um ligeiro sorriso. — Dás sempre as tuas coisas a estranhos, é? — perguntei, puxando o cabelo para trás da orelha. — Habitualmente, não. Não �caria surpreendida se houvesse uma miríade de outras mulheres a perambular por Paris com peças de roupa dele vestidas. — Estava a pensar — disse ele. — Devias fazer uma queixa à polícia a dizer que te roubaram o telemóvel. Se tiveres seguro. Senão, vais ter de comprar outro. São caros, non, esses telemóveis? Não tinha pensado nisso, claro. É o que dá ser sempre desorganizada. No entanto, pensei que devia ter algum tipo de seguro, porque as mensalidades custavam uma fortuna e estava sempre a queixar-me delas, sobretudo porque o meu débito direto era descontado mesmo no �nal do mês. Suspirei, ele tinha razão. Precisaria, pelo menos, do número de referência da queixa ou um qualquer equivalente francês, se fosse apresentar queixa. Não podia dar-me ao luxo de não o fazer. — Achas que teria de ir a uma esquadra de polícia? — Sim — disse ele. — Claro. — Não há nenhuma na estação? — Já houve, há algum tempo, mas agora está fechada. Tens a esquadra central de polícia na Rue Louis Blanc, não muito longe daqui. — Apontou vagamente na direção da cidade. — Não posso simplesmente perguntar a um agente? Deve haver montes deles lá dentro — sugeri. Tinha um medo incapacitante de sair da estação, de �car presa a preencher formulário atrás de formulário e de perder o comboio seguinte, mesmo que só fosse partir dali a várias horas. — Não — disse ele, aparentemente irritado pelas minhas perguntas incessantes. — Não podes. Porque vais ter de preencher um documento. E o documento só está disponível na esquadra. Fiz um som reprovador com a língua nos dentes. — Típico. — Anda. Eu levo-te. — Levas-me? — perguntei, confusa, de sobrolho franzido. — Pedi a moto emprestada a um amigo — disse ele, levantando o braço em direção à estrada. — Tem um capacete a mais, acho eu. Eu ri-me, incrédula. — Não estás realmente à espera de que eu me ponha em cima disso. Ele olhou para mim com um ar de tremendo desconcerto. — Porque não? Eu abanei a cabeça, espantada. — Porque eu nem sequer te conheço. — E? — E não estou com vontade de morrer. Ele inclinou a cabeça para um lado. — Preocupas-te muito, Hannah — disse ele, depois de uma longa pausa. — Isso não é, de todo, verdade. — É, é. Percebe-se logo. Estás sempre a pensar. Era frustrante perceber que era assim tão óbvio, mesmo para alguém com quem só tinha trocado meia dúzia de palavras. — Tens de ir à esquadra, sim? E não consegues andar como deve ser, non? E o próximo comboio é daqui a mais de cinco horas. Por isso, a solução é esta. Vamos demorar meia hora, nada mais. E depois podes sentar-te no teu banco e esperar pelo teu comboio. Olhei em volta e pensei no que outras pessoas fariam no meu lugar. A Ellie iria com ele? Não que fosse importante. Não era ela quem estava ali. Era eu quem precisava de tomar uma decisão, algo em que era reconhecidamente má. — Fazemos o seguinte — disse eu, chegando a uma solução de compromisso. — Eu vou à polícia sozinha. Tu podes indicar-me qual é a morada correta. Ele cruzou os braços e olhou para mim, pensativo. — Deixa-me levar-te. De outra forma, vou �car a sentir-me mal — disse ele. Eu abanei a cabeça. — A sério? Então, isto é por tua causa? Ele mudou o peso do corpo de um pé para o outro. — Tens razão. É um pouco por minha causa. Mas é sobretudo por tua causa. — Ainda estás a sentir-te culpado por me teres feito tropeçar — disse eu, triunfante. — É isso, não é? Ele esticou o polegar e o indicador para mostrar que estava só um bocadinho. Eu olhei-o nos olhos. Poderia con�ar nele? O que aconteceria, pensei, se arriscasse e concordasse ir com ele? Precisava realmente de apresentar queixa por causa do meu telemóvel desaparecido, senão teria de comprar um novo quando voltasse a casa e estava longe de ter dinheiro para o fazer. E provavelmente seria mais rápido se fosse com ele do que se tentasse ir a pé sozinha até à esquadra sem ter a menor ideia de onde �cava. — Sou um condutor muito cauteloso — disse ele, de modo tentador. — Porque é que eu não acredito em ti? Ele esboçou um sorriso. — Tens medo de Paris, Hannah? É esse o problema? — Isso é ridículo — protestei. Será que ele pensava que eu era assim tão patética? — Então uma moto é a melhor forma de viajar pela cidade — apontou, como se eu já tivesse concordado. Era exasperante. — Será mesmo? Ah, se eu conseguisse voltar a olhar para o mundo como fazia no passado. Teletransportar-me de volta para um tempo em que eu arriscava e fazia coisas só para me divertir e em que partia do princípio de que as pessoas eram intrinsecamente boas até prova em contrário. Tinha perdido alguma dessa chama, estava ciente disso. Com aidade, estava a tornar-me mais cautelosa e paranoica. Era como se me estivesse a transformar na minha mãe, o que era precisamente a última coisa que eu queria. Mordi o lábio. — Tens de conduzir devagar. — Claro. — E não me posso demorar. — Por mim, tudo bem. Segui-o, hesitante, até junto da moto, uma monstruosidade preta e brilhante que parecia ter vida própria. Ainda ia a tempo de mudar de ideias. Até ao último segundo, se fosse preciso, disse a mim mesma. — Onde está a tua mala, já agora? — perguntei-lhe, pensando que, se ele estava a planear pôr aquela coisa enorme nos ombros, provavelmente nos faria cair a ambos. — Estás preocupada com o cadáver que tenho lá dentro? Lancei-lhe um sorriso sarcástico. — Está no apartamento do meu amigo. Vou buscá-la mais tarde — disse ele, abanando a cabeça para si mesmo. Enquanto esperava que o Léo encontrasse o segundo capacete, testei o meu tornozelo, para o que tirei a sabrina e comecei a rodar o pé. Ainda sentia algum desconforto, mas a dor estava realmente a desaparecer. Tornei a calçar a sabrina e �z uma careta. Estavam encharcadas e começava a entrar água, até tinha lama castanha nos espaços entre os dedos. Agachei-me para a sacudir com o polegar. — Ah! Cá está — disse ele, depois de abrir um compartimento debaixo do assento. Eu levantei-me, soltei o cabelo e voltei a prendê-lo num coque mais bem feito e mais apertado. Nunca tinha estado numa daquelas motoretas que se usam nas estâncias de férias na Grécia para andar de um lado para o outro porque sempre partira do princípio de que, se o �zesse, seria a rapariga envolvida no acidente fatal na estrada principal à saída de Kavos. Quando �z 14 anos e comecei a ser mais independente e a ir para Londres sozinha, entre outras coisas, a minha mãe deu início à campanha que me informava de que o mundo era um sítio terrivelmente inseguro, cheio de pessoas más que andavam atrás de mim. Des�ava o rosário de tudo o que de mau poderia acontecer e contava-me — com minucioso e desnecessário detalhe — histórias horríveis que ela ouvira ao longo dos anos, habitualmente retiradas do jornal local ou dos artigos de «vida real» da revista Take a Break. De início, eu ignorava-a e fazia tudo aquilo que ela me aconselhava a não fazer, como beber até cair durante sete noites seguidas, quando fui com a Ellie e os pais dela a Tenerife, e aceitar boleias de rapazes mais velhos que tinham acabado de passar nos exames de condução. Mas, ao �m de algum tempo, comecei a perceber que aquele comportamento estava a afetar a minha mãe. Ela chegara até a chorar, numa noite, quando eu lhe tinha dito que voltaria da casa da Ellie às dez da noite e só cheguei quase à meia-noite. A minha mãe queria proteger-me como qualquer outra mãe faria, eu percebo isso. Mas, em retrospetiva, perguntei-me se não haveria também uma parte dela que não queria que eu saísse de casa para me divertir. Ela estava sempre em casa, a fazer o possível para pagar as contas, enquanto eu ainda tinha a vida inteira à minha frente. Eu podia viajar pelo mundo inteiro, ter uma carreira compensadora e apaixonar-me por quem eu quisesse. Antes de ter conhecido o Tony, a minha mãe sempre se sentira uma vítima e, mesmo depois, ainda carregava consigo alguma daquela tristeza. Nunca parecia feliz. Era como se quisesse mais da vida e estivesse zangada consigo própria por não o conseguir. — Não tenho a certeza se devia fazer isto — disse eu, o meu coração a começar a bater com mais força no peito. — De que é que tens medo? — perguntou o Léo. Eu olhei em volta para as outras motos alinhadas ao nosso lado. — E se tivermos um acidente? — Não vamos ter. Mordisquei o polegar. — Mas também ninguém sobe para uma moto à espera de cair, não é? — Pensas muito na morte, Hannah. — Não é verdade — disse eu, embora soubesse que era. Ele deu-me o capacete. — Se nós imaginássemos as coisas mais terríveis que poderiam acontecer sempre que saímos de casa, nunca faríamos nada, non? — Creio que não. Peguei no capacete e balancei-o como um haltere kettlebell. Ele tinha dito que era a forma mais e�ciente de andar em Paris. E as possibilidades de sobreviver à viagem estavam estatisticamente a meu favor. — Está bem — disse eu, respirando fundo. — Vamos lá. Pus o capacete na cabeça antes de ter a tentação de mudar de ideias. Ele ajudou-me a regulá-lo e a apertá-lo, com os dedos a roçarem a parte de baixo do meu queixo quando se ocupava da �vela. — Pronto. Tudo a postos — disse ele, enquanto tirava o blusão de cabedal. — É melhor vestires isto — advertiu. — Para quê? — perguntei, reparando que o som parecia abafado, como se eu estivesse debaixo de água. — Às vezes é ventoso no lugar de trás. Eu pensei que seria mais para o caso de cair: o cabedal dar-me- ia alguma proteção à pele. Não seria isso? De qualquer forma, peguei no blusão e en�ei os braços nas mangas. Ainda conseguia sentir o calor do corpo dele no forro almofadado. — Tens a certeza de que sabes conduzir esta coisa? — gritei. Ele riu-se e subiu para a moto. Ele era parisiense, provavelmente todos sabiam conduzir motos. Pensei por instantes no que a minha mãe diria se me pudesse ver naquele momento, o que iria o Si pensar. E depois subi na mesma. — Pronta? — perguntou o Léo por cima do ombro com a voz alta. — Nem por isso — gritei em resposta. O capacete pesava-me na cabeça e sentia a alça demasiado apertada, mas não queria armar-me em esquisita. Ele ligou o motor e eu senti a trepidação a sacudir-me o corpo todo e a fazer-me vibrar os ossos. Não sabia bem o que devia fazer com as mãos, pelo que as pousei, hesitante, nos quadris dele. — Agarra-te melhor — gritou-me de novo. Era uma situação mais embaraçosa do que eu tinha previsto. Seria mesmo necessário estarmos tão juntos? Contraída, arrastei a anca na direção dele, pus os braços em volta da sua cintura e entrelacei os dedos do outro lado. Tentei não reparar nos músculos do estômago do Léo quando os meus polegares roçaram sobre eles. De seguida, o Léo virou a cabeça para a esquerda, veri�cou a estrada atrás dele e arrancou. De início, fechei os olhos, com receio de olhar e sem querer saber a que distância estávamos dos carros e se podíamos estar ensanduichados entre dois autocarros e um camião articulado. Depois, à medida que os minutos passavam e continuávamos em cima da moto, entreabri-os muito ligeiramente, e, de seguida, um pouco mais até estarem completamente abertos e o meu queixo estar quase pousado nas costas do Léo. Quando espreitei por cima do ombro dele, vi que estávamos numa estrada principal frenética rodeada de mercearias com vegetais exóticos e restaurantes chineses dos quais já conseguia sentir o cheiro a pastéis cozidos a vapor ao passarmos. Havia lojas com um sem- �m de bandejas de joalharia de ouro em exibição e um estabelecimento com belos tecidos indianos enrolados na montra. A estrada estava escorregadia por causa da chuva e, como havia muitos carros, autocarros e táxis, estávamos sempre a parar e a arrancar e não conseguíamos ganhar muita velocidade, o que, para mim, estava ótimo. Mas depois virámos para a direita e entrámos numa rua lateral mais calma e o Léo começou a acelerar. — Tudo em cima? — gritou. — Não! Abranda! Ele ignorou-me, claro. Passámos a voar por lojas abandonadas com as portadas fechadas, restaurantes de hambúrgueres com aspeto manhoso e cabeleireiros com letreiros cor-de-rosa berrantes a indicar Coiffure. Quando �nalmente encostámos à borda da calçada e ele desligou o motor, eu ainda conseguia sentir as suas vibrações a latejar sob a minha pele. Desci da moto e cambaleei, uma vez que pus demasiado peso no pé dorido. O Léo segurou-me com a mão. — Ça va? Assenti enquanto desapertava o capacete e o tirava da cabeça. Tinha as pernas rígidas por terem estado afastadas num ângulo aberto pouco natural e estiquei-as, rodando o tornozelo bom para fazer o sangue correr de novo. — Estás a ver? Não te matei — disse o Léo, tirando-me o capacete das mãos. — Foi por muito pouco, uma vez ou outra — disse eu enquanto alisava o cabelo.A verdade era que eu não sabia ao certo o que pensar. Sabia que o meu coração estava a bater descontroladamente, que tinha experimentado o meu primeiro pico de adrenalina em muito tempo e que pensei que ia morrer pelo menos uma vez. Mas não era capaz de dizer se era uma sensação boa ou má. O Léo indicou-me as escadas da esquadra de polícia, um edifício de escritórios preto e intimidante do outro lado da rua. Lá dentro havia uma sala enorme, mal iluminada e escassamente decorada: tinha apenas três �las de cadeiras de plástico cinzentas sobre um piso de linóleo e uma secretária de madeira atrás da qual estava sentado um agente com o rosto escondido pelo ecrã do computador. Hesitei por um segundo até o Léo me dar um empurrãozinho para a frente e se deixar �car para trás quando me aproximei da secretária. Tossi, constrangida. — Bonjour, monsieur — disse ao agente de polícia. — Pourriez- vous m’aider, s’il vous plaît? Ele estava ocupado a digitar no teclado e demorou uma eternidade a olhar para cima. — Oui, madame? Não me estava a lembrar de francês nenhum e as palavras vinham-me à ideia e desapareciam antes de eu conseguir fazer o que quer que fosse com elas. As palavras francesas para «perdido» e «roubado», por exemplo, pareciam ter-me fugido para sempre. Talvez me sentisse demasiado exposta para me lembrar de expressões que não usava havia muitos anos, ali com o Léo a olhar para mim e o agente a lançar-me o estereotípico olhar inescrutável. Recorri ao: — Parlez-vous anglais? — Um pouco — disse ele, a olhar para mim inexpressivamente. Eu lancei uma olhadela nervosa ao Léo, que estava ocupado a escrever no telemóvel. — Hum, eu estava na bilheteira da Gare du Nord e pousei o telemóvel no balcão enquanto estava à procura de outra coisa. E, quando o fui procurar, cerca de cinco minutos depois, não estava na minha mala. De início, pensava que o tinha deixado no balcão, por isso… — Roubado? — disse o agente. — Carteirista? — Talvez. Sim. Penso que sim. — Preencha isto, por favor. O agente empurrou um documento pelo balcão e eu fui sentar- me ao lado do Léo, que já estava refastelado a ocupar duas cadeiras na �la de trás. Comecei a preencher o formulário e consegui completar toda a informação básica: nome, morada, número de telefone. Quando cheguei à parte em que tinha de descrever a natureza do crime que tinha sido cometido, �quei bloqueada. — Qual é mesmo a palavra para bilheteira? — perguntei ao Léo, que estava a esfregar o rosto e a espreguiçar-se. — Guichet — disse ele, a alongar-se. — Guichet? — Sim. Guichet. Eu tinha quase a certeza de que aquela não era a palavra que eu tinha aprendido quando estava a estudar para o exame de francês no secundário, mas não podia discutir muito sobre o assunto. Provavelmente, ele estava a usar algum termo mais coloquial ou algo parecido, mas teria de servir. Escrevi a palavra no formulário. — Como se diz «roubado»? — perguntei cerca de um minuto depois. — Volé. Para dizer a verdade, nenhuma daquelas palavras me parecia sequer vagamente familiar. Além disso, estava sempre a ser distraída pelas entradas e saídas da esquadra. A certa altura, um polícia atravessou a sala decidido, com uma metralhadora no cinto, o que me fez pensar que Paris podia ser uma cidade muito volátil e insegura e que aventurar-me numa moto com uma pessoa que mal conhecia era má ideia. E se acontecesse alguma coisa? O que é que eu diria ao Si? Alguns minutos depois, um tipo embriagado foi levado a pulso para dentro da esquadra e começou a gritar e a gesticular, titubeante, quando alguém lhe perguntou o nome. Quel est votre nom? Votre nom! Apressei-me a preencher o resto do formulário, entreguei-o, recebi uma espécie de recibo do agente e saí com o Léo. Foi tudo muito rápido, mas era o tipo de coisa que eu habitualmente deixaria para depois durante dias em que pensaria nos prós e contras de apresentar queixa devido ao meu telemóvel roubado e teria di�culdade em chegar a uma decisão. Fiquei aliviada ao sair da esquadra e levantei o rosto para as nuvens, mas tive de semicerrar os olhos devido à luz que me ofuscou depois de ter estado na penumbra da esquadra. — Pelo menos, o tempo está a abrir — comentei. A chuva tinha parado �nalmente e havia um minúsculo laivo de azul a espreitar por entre o céu cinzento. — Talvez o sol ainda apareça — disse o Léo, dirigindo-se para a moto e limpando a chuva dos espelhos retrovisores com um pano que encontrou na mala nas traseiras. Fiquei a observá-lo por alguns instantes, sem saber bem o que fazer. — Acho que é melhor voltar para a estação, então — disse eu. Porque e se, por algum milagre, as obras de engenharia terminassem mais depressa do que o esperado e fosse anunciado um comboio que me levaria para Amesterdão mais cedo? — Claro. Um momento — disse ele enquanto polia o guiador com a�nco. — Toma — disse eu enquanto tirava o blusão. — Parece que estou a �car com a tua roupa toda, deves estar com frio. — Não, por favor, eu estou bem — disse o Léo, embora quando eu olhei para os braços dele, conseguisse ver os pelos pretos arrepiados, eriçados e pontiagudos. Até parecia que me podia picar, se passasse a mão sobre eles. Voltei a vestir o blusão. As mangas eram demasiado compridas para mim, pelo que só as pontas dos meus dedos saíam do punho. Ele pegou num maço de cigarros do bolso. — Não fumas, pois não? — Não — disse eu, sem deixar de pegar num. Ele mostrou-se surpreendido e encolheu os ombros. Eu pensei que não haveria mal nenhum, certi�car-me-ia de que seria só aquele. Ele acendeu o meu cigarro e depois o dele. Quase resfoleguei de êxtase quando a primeira passa me encheu a boca e a nicotina se arrastou até ao meu sangue. Oh, as saudades que eu tinha de um cigarro. O Léo olhou para mim. — Bom? Assenti com a cabeça enquanto segurava o cigarro com o braço estendido, reparando em como me sentia bem com ele na mão. — Eu devia ter deixado de fumar. Pus-me a olhar para um polícia dentro do edifício. Estava em pé junto à janela a vociferar instruções para um telefone. — Fazes bem — disse o Léo. — Um dia vou fazer o mesmo. — Porque é que tudo o que nos dá prazer tem de nos fazer tão mal? — perguntei em voz alta. Ele encolheu os ombros. — Talvez seja a excitação da coisa que te dá prazer e não a coisa em si, não? A ideia de que estás a fazer algo que não devias estar a fazer. Eu tinha a sensação de que as excitações eram escassas e raras nos últimos tempos. Era capaz de contar com os dedos de uma mão o número de vezes que eu e o Si tínhamos saído para uma noite como devia ser desde que tínhamos ido viver juntos. Não me queixava: adorava partilhar uma casa com ele, tê-lo a voltar para casa todas as noites. Experimentar receitas que eu encontrava online, conversar sobre o dia dele enquanto jantávamos. O que era bom era que eu também estava a conseguir evitar os intensíssimos pontos baixos que costumavam abater-se sobre mim no meio de todos os pontos altos. Eu preferia as coisas como estavam, uma corrente estável de normalidade, sentir-me acarinhada, resolvida e amada. Achava que não trocaria isso por mais nada. — Quais são os teus planos em Amesterdão, então? — perguntei. Sentámo-nos na beira da calçada. Vi-o a enviar anéis de fumo silenciosamente para o éter. O Si �caria louco se pudesse ver-me ali. Ele tinha �cado em êxtase quando eu conseguira deixar de fumar de vez e estava empenhado numa cruzada para me convencer a aderir ao ginásio. — Uma reunião — disse ele. — Para discutir um projeto em que tenho estado a trabalhar. — O que é que fazes? O telefone dele tocou e ele olhou para o ecrã, abanou a cabeça e rejeitou a chamada. — Componho música — respondeu. — És compositor? — perguntei. Criar música exigia uma certa sensibilidade que eu não adivinharia que ele tinha. — Compositor — disse ele, a re�etir sobre o assunto. — Parece muito majestoso dito assim. Pus os braços em volta dos joelhos. — Tocas algum instrumento, então? — Piano — disse ele. — E guitarra. Arregalei os olhos. Não consegui evitá-lo. — Não era o que estavasà espera — disse ele a sorrir. Eu olhei para o chão e esfreguei o cetim manchado da minha sabrina. — Nem por isso. — E tu? — perguntou ele. — Tocas alguma coisa? Abanei a cabeça. — Sempre quis experimentar o piano, mas nós não tínhamos dinheiro para as aulas. Ele olhou para mim com a testa franzida. — Então porque é que não aprendes agora? Pensei sobre a pergunta dele. — Talvez porque tenha a sensação de que é tarde demais. Ele abanou a cabeça, como se eu tivesse voltado a dar a resposta errada. — Quer dizer que a tua vida acabou aos, o quê, 26 ou 27 anos? — Tenho 30, na verdade. — Então a tua vida acaba aos 30. — Às vezes parece que sim. Porquê, que idade tens tu? — Tenho 28. — Um bebé. Ele levantou-se, alongou-se para um lado e depois para o outro. — Parece que tens menos de 30 anos, de qualquer modo. Eu �z um som de reprovação com a língua nos dentes. — Sim, certo. — Não acreditas em mim. — Não. — Tens algum complexo em relação a isso, à tua idade? — perguntou ele, atirando o cigarro para a estrada. — Não, não tenho. Na verdade, tinha. Um pouco. — És sempre assim tão negativa? — perguntou ele, esmagando a beata no chão com a biqueira dos ténis. — Não, nem sempre — disparei, cansada daquela constante implicância. Na verdade, ele não gostava de mim, só estava ali porque se sentia culpado por me ter feito perder o meu comboio. Já tinha percebido. — É só uma observação — disse ele, levantando as mãos em rendição. — Por exemplo, eu elogiei-te por causa da tua idade e tu partiste do princípio de que eu estava a mentir. É negativo, non? Encolhi os ombros. — Como queiras. Se eu quisesse um assassínio de caráter, poderia ter telefonado de novo à minha mãe. Ele sentou-se ao meu lado outra vez e recostou-se sobre os ombros. Um grupo de mulheres passou por nós, a rir-se de algo que uma delas tinha dito. — Deixei-te transtornada — disse ele. — Só estou a lamentar-me de algumas coisas, mais nada. — Não tiveste um dia bom. Muita má sorte junta. — Normalmente não sou tão depressiva, a sério. Ele arqueou as sobrancelhas. — Não és? Não havia como enganá-lo. — Bem, assim tanto não. Não era propriamente uma surpresa, na verdade, com tudo o que tinha acontecido. O choque de descobrir que estava do lado errado do comboio. A transação tensa na bilheteira, os cartões recusados, a queda e a entorse no tornozelo, a dor que ainda sentia quando andava. Engoli em seco e senti subitamente as lágrimas a subir-me aos olhos. O que era estranho, porque quase nunca chorava. E, nas raras ocasiões em que não me conseguia conter, certi�cava-me de que chorava em segredo, completamente sozinha, envergonhada por chegar àquele ponto. Pus-me em pé tão depressa que me senti tonta. Sacudi o pó das calças de ganga, arranjei o cabelo e tentei desesperadamente impedir que as lágrimas me jorrassem dos olhos, porque depois de começar, não parecia conseguir parar. — Estás bem, Hannah? — perguntou o Léo, levantando-se e aproximando-se de mim. Uma rapariga que ele mal conhecia a chorar era provavelmente o seu pior pesadelo. Desviei o olhar e limpei freneticamente a lágrima que teimava em escorrer pela minha bochecha no pior momento possível. — Estou bem — disse eu, aclarando a garganta. O que se passava comigo? Ele não tinha dito nada assim tão mau, na verdade. — É por minha causa? — perguntou ele, mordendo o lábio. Abanei a cabeça. — Nem por isso. — Mas foi… como é que se diz… insensível da minha parte. Dizer que eras negativa. Não te conheço, pois não? Até podes ser uma pessoa muito positiva habitualmente. Felicíssima o tempo todo. Outra lágrima a surgir, no outro olho. Céus, o que é que aquele tipo tinha? Por um lado, era a pessoa mais irritante que eu já tinha conhecido, por outro, �quei mais comovida perto dele numa hora do que era habitualmente em qualquer momento com qualquer outra pessoa que conhecia. — Agora �quei a sentir-me muito mal — disse o Léo. — Parece que isso acontece muito, não é? Ele voltou a pôr a mão à frente da boca, como eu o vira a fazer na estação. — Bem, não tem nada que ver contigo — disse eu. — O que acredito que deva ser muito difícil de compreenderes. Ele sorriu. — Mesmo que não tenha nada que ver comigo, deve haver algo que eu possa fazer, non? — Acho que não, a não ser que sejas capaz de fazer o tempo andar para trás para que eu não mude de banco no comboio — disse eu, remexendo na mala à procura de um lenço, que acabei por encontrar no meio de toda a restante parafernália. — Deixa-me mostrar-te Paris — disse ele com uma exuberância exagerada. — Queres ver a Torre Eiffel? Os Champs Élysées? O Arc de Triomphe? Eu assoei o nariz. — Vi a maior parte dessas coisas da última vez que cá estive. — Já estiveste aqui antes, Hannah? Porque é que não me disseste? Porque é que eu falei no assunto? — Já foi há muito tempo — disse eu evasivamente, na esperança de que ele se esquecesse. — Quanto tempo passaste cá? — perguntou. — Um dia. — Um dia? Então é óbvio que não viste tudo. Andaste de barco pelo Sena? Tomaste um café em Montmartre? Passeaste pelo Jardin des Tuileries? Abanei a cabeça. — Não era uma viagem desse tipo. Ambos levantámos a cabeça para seguir o alvoroço vindo das escadas da esquadra e �cámos a ver um homem a ser arrastado pelos degraus acima com algemas nos pulsos. — Que tipo de viagem foi? — perguntou ele. Tirei o cabelo do elástico e enrolei-o sobre o ombro. — É uma longa história. Mas digamos apenas que não sou a maior fã de Paris. O Léo �cou calado por uns instantes e depois estendeu os braços e pousou as mãos nos meus ombros. — Gostava de te mostrar a minha cidade, Hannah. E provar-te que é tão bonita como toda a gente diz que é. Abanei a cabeça. — Tenho de voltar para a estação. Ele tirou as mãos dos meus ombros e eu quis imediatamente que voltasse a pô-las. Era porque estava exausta, disse a mim própria, e me sentia perdida e tinha a cabeça a andar à roda. Teria sentido a mesma coisa se qualquer outra pessoa fosse em meu auxílio. O Léo olhou para o relógio. — Ainda só são 8h40. Temos muito tempo. Comecei a sentir-me a ceder. Depois de me habituar à sensação, tinha-me sentido completamente livre no banco de trás da moto. Quando é que eu iria ter oportunidade de fazer algo parecido de novo? Seria assim tão mau se �zesse um pequeno desvio no caminho de regresso à estação? — Vens? — perguntou o Léo. — Uma pequena viagem por Paris? Eu abri e fechei o fecho do blusão dele algumas vezes e reparei onde encravava e onde corria sem problemas. — Teríamos de ser rápidos. — Sem problema. Também tenho coisas para fazer. Tenho de dar uma coisa a um amigo. Fitei-o com as sobrancelhas levantadas enquanto voltava a enrolar o cabelo. — Nada de ilegal — disse ele com um piscar de olho. Tinha uma covinha na bochecha esquerda em que eu só reparava naquele momento. — Vamos? — perguntou, estendendo-me o capacete. Eu olhei para ele com os olhos semiabertos. — Está bem. — Isto deve ser assustador para ti, non? — disse ele, à espera de que eu pusesse o capacete, que ele tornou a ajudar-me a fechar. — O quê? — Estás fora do teu elemento, Hannah. Não estás habituada a isto, vê-se perfeitamente. Teria discordado dele, se tivesse energia su�ciente. Ele não era capaz de me ler tão bem como pensava. Houve uma altura em que eu estava sempre a correr riscos. Talvez não nos tempos mais recentes, mas no passado. Subi para a moto atrás dele, já a arrepender-me de ter concordado acompanhá-lo. — Segura-te bem — gritou por cima do ombro ao ligar o motor. Capítulo 8 Estávamos a percorrer a cidade há cerca de 15 minutos quando o Léo encostou ao passeio. A minha adrenalina estava a bombar por causa da viagem, um conjunto de curvas e contracurvas a alta velocidade ao longo de ruas secundárias estreitas e a atravessar praças calcetadas com a moto a inclinar-se tão violentamente quando atacávamos algumas das curvas mais apertadas, que eu só nos imaginava a cair a qualquer segundo e a rebolar pelo alcatrão como pinos. Tive de me agarrar a ele com mais força do que nunca, o meu rosto encostadoao pescoço dele numa espécie de pânico cego. — Chegámos — disse ele, estendendo-me o seu capacete e descendo da moto, com o joelho a falhar o meu rosto por cerca de um centímetro. — Espera aqui um minuto. Dei-lhe o sinal universal de assentimento porque não estava para me dar ao trabalho de projetar a minha voz das profundezas do capacete. Gostava da forma como me fazia sentir desligada do mundo. Estava um silêncio quase completo ali dentro, um lugar onde ninguém me via e eu mal conseguia ouvir quem quer que fosse, que era o que eu preferia na maior parte das vezes. Fiquei a ver o Léo correr até um lugar algumas portas mais abaixo. Havia uma �la para a rua, que ele pareceu ter ignorado completamente antes de desaparecer no interior. Pousei o capacete dele no guiador e desapertei o meu. Devia procurar uma forma de ligar ao Si. Mas como é que eu poderia explicar-lhe onde estava? Levantei a cabeça para observar a colunata extraordinariamente bem preservada diante de mim, com lanternas antiquadas a pender em cada arco. Tínhamos estacionado mesmo em frente ao Le Meurice, um hotel de luxo, a julgar pela aparência. Era um daqueles lugares com porteiros fardados e carros pretos de executivo a entrar e a sair pela rampa à frente da entrada e a largarem passageiros, enquanto a bagagem Louis Vuitton era retirada discretamente das bagageiras. — Olá. O Léo estava de volta no que parecia um nanossegundo, com dois copos de papel cor-de-rosa-velho nas mãos. — O melhor chocolat chaud de Paris — disse ele, enquanto me estendia um dos copos, à espera de uma reação da minha parte. — Ótimo — disse eu, pouco impressionada. Eu gostava de chocolate quente, mas poderia ser assim tão bom? Claro que ele pensava que era o melhor. Para ele, o melhor de tudo vinha de Paris. — Que sítio é aquele? — perguntei, mais impressionada pelo aspeto tão esteticamente agradável do copo descartável que ele me tinha dado. A cor fazia-me lembrar os convites de casamento da Catherine: ela tinha escolhido convites beges com aquele mesmo tom de cor-de-rosa a preencher os contornos. — Chama-se Angelina — disse-me, antes de arrancar a tampa do copo e beber com avidez. — O café já está neste local da Rue de Rivoli há mais de cem anos. Senti o cheiro do chocolate derretido ainda antes de começar a bebericá-lo, graças a um buraco minúsculo na tampa que deixava passar o aroma. Olhei para o café, que tinha um majestoso toldo preto com o nome em letras douradas a pender sobre a porta. — A Coco Chanel costumava beber chá aqui — disse o Léo. — E o Proust. Era o local onde era preciso estar, se se quisesse ser notado no início do século XX. Tirei a tampa com cuidado e soprei para a superfície antes de dar o meu primeiro gole. Era diferente de tudo o que já tinha provado: denso e suave e rico e doce, tudo ao mesmo tempo, como uma sobremesa de chocolate derretida. Resisti à tentação de dar um gemido alto, porque não lhe queria dar a satisfação de admitir que aquele chocolate quente era sensacional. — É bom — disse eu, por �m, �ngindo não estar demasiado impressionada. O Léo debruçou-se sobre a parte da frente da moto a olhar para mim, descon�ado. — Só bom? — Hum — disse eu. — Ótimo. — Inacreditável, non? — disse ele, devorando o seu. Eu assenti com a cabeça. — Nada mau mesmo. Fui bebericando devagar aquela espuma deliciosa para tentar prolongar a experiência o máximo de tempo possível. Era uma atmosfera absolutamente parisiense a que se respirava naquela zona de lojas luxuosas e so�sticadas. Até o operário que passou por nós com um capacete amarelo e tinta espalhada pelas calças de ganga tinha umas maçãs do rosto com contornos esculpidos na perfeição. Inclinei o copo, levando à boca os últimos sedimentos do chocolate, já a desejar mais. O Léo pegou no copo que eu tinha na mão. — Posso ir buscar-te outro, se quiseres? — disse ele, como se fosse capaz de me ler os pensamentos. — É melhor não — disse eu, fazendo uma nota mental para procurar «Angelina» no Google quando chegasse a casa. Perguntei-me se teriam loja online. Era capaz de imaginar uma versão daquele chocolate quente em casa, sobretudo no inverno, eu e o Si enrolados em frente à televisão cada uma com a sua bebida quente. O Léo foi deitar os copos fora e voltou em passo de corrida. Reparei que ele tinha uma tatuagem no braço direito: o desenho de um arame farpado que se enrolava no bíceps. Eu tinha decidido fazer uma tatuagem pouco tempo antes, embora toda a gente a quem o contara se tivesse atirado a mim com ferocidade e me tivesse dito que era uma péssima ideia. A minha mãe tinha- me advertido dos perigos de passar por uma entrevista de emprego com «o corpo coberto de tatuagens», como se eu estivesse a planear encher-me delas do pescoço para baixo. O Si considerava-as de mau gosto em mulheres, o que eu lhe dissera que era insultuoso e misógino, e a Ellie achava que eu me ia arrepender quando fosse mais velha e a minha pele �casse murcha e distorcesse a imagem, a ponto de a tornar irreconhecível. No entanto, eu continuava a ter toda a intenção de fazer uma. Queria encontrar uma citação realmente bonita. Algo sobre esperança e seguir em frente sem olhar para trás. Iria gravá-la no pulso para poder lê-la todos os dias. — Próxima paragem: Champs Élysées — anunciou o Léo. Passei os dedos pelo guiador da moto. Deveria recusar. Deveria pensar no Si e dizer que não, que era melhor ele levar-me de volta à estação sem mais demoras. — Temos tempo? — perguntei. — São 9h20. O comboio só parte daqui a mais de quatro horas — disse ele. — Podes relaxar um pouco, Hannah. Eu voltei a subir para a moto, ainda sem estar certa de estar a fazer o que devia. Antes de poder decidir se estava ou não, ele já estava a encostar de novo e a apontar para o Jardin des Tuileries à nossa esquerda, que eu pensei que devia ia ter ao Louvre. Agarrei-me com mais força quando avançávamos aos esses pelo meio do trânsito engarrafado cheio de carros a buzinar na maior e mais caótica rotunda que eu tinha visto na vida. Era como um faroeste selvagem de carros, motos e motoretas a aparecer vindas de todas as direções até onde a vista alcançava. Além disso, não havia marcações na estrada, pelo que não fazia ideia como podíamos saber em que faixa estávamos ou como mudar de faixa para virar para a saída certa. — Onde estamos? — gritei. — Na Place de la Concorde — gritou ele em resposta. — A Marie Antoinette foi decapitada aqui mesmo nesta praça. — A sério? — gritei e virei a cabeça como que para ter um vislumbre de alguma relíquia do passado. — Por isso, podes voltar a pensar na morte — disse ele, a sorrir para si próprio. Não sei bem como, mas conseguimos abrir caminho até ao outro lado e passámos pelo Hôtel de Crillon à nossa direita. Não era lá que faziam aqueles bailes de debutantes ridiculamente antiquados? Uma equipa de �lmagens estava a reunir-se à porta, as câmaras pousadas aos pés, uma espécie de carrinha de exteriores estacionada na rampa em frente. — Um belo hotel — disse o Léo, quando parámos para deixar uma �la de carros passar à nossa frente. — Mas até o quarto mais simples custa mais de mil euros por noite. E depois virámos para uma estrada muito longa e reta. Os Champs Élysées, pensei, ao ver o Arc de Triomphe a erguer-se majestosamente à distância. Luzes de travão vermelhas piscavam à nossa frente como a �ta de um teleimpressor, centenas delas ao longo de quatro faixas. — O que é aquilo? — perguntei-lhe quando parámos num cruzamento, atrevendo-me a agarrá-lo só com uma mão enquanto, com a outra, apontava para um edifício com cúpulas de vidro e quadrigas de bronze a brotar do telhado. — O Grand Palais — respondeu o Léo por cima do ombro. — Um espaço de exposições e uma galeria de arte de muita qualidade. No inverno, podes andar de patins no maior rinque de gelo do mundo. Mais uma coisa que era «a maior do mundo». Comecei a pensar que os factos — interessantes, sem dúvida — sobre Paris eram sempre um pouco parciais. Saímos dos Champs Élysées e, com menos para-arranca, o Léo aceleroue passou como uma �echa por hotéis modernos com janelas de vidros fumados, pastelarias �nas e boutiques so�sticadas a publicitar alta-costura. Consegui ver a Alaïa e o Atelier Christian Dior. Aquela rua parecia saída de outro mundo. Eu já estava a imaginar as mulheres ricas que faziam compras naquelas bandas a entrar e a sair de carros conduzidos por motorista e a pararem para almoços longos que provavelmente custavam tanto como o meu salário semanal. — Agarra-te melhor — gritou ele, quando nos dirigimos a uma ponte e passámos a correr sobre o Sena. O vento soprava o meu cabelo, que já se tinha soltado havia muito tempo. O sol aquecia- me a parte de trás do pescoço e eu conseguia ver a Torre Eiffel a apontar para o céu à nossa frente. Sempre a desprezara porque a considerava pirosa e dizia que não era mais do que um chamariz para turistas, mas, ao vê-la como devia ser, ou talvez devido ao ângulo a partir do qual a estava a observar, �quei sem fôlego. Do outro lado da ponte, virámos para uma rua lateral, onde o Léo encostou a moto e desligou o motor. — Anda. Quero mostrar-te uma coisa — disse ele ao descer da moto. — O que é? — perguntei-lhe, uma vibração de entusiasmo a atravessar-me o corpo. Não me sentia assim há muito tempo. Ele fez-me sinal para que eu o seguisse. — Já vais ver — disse o Léo, de modo misterioso, começando a atravessar a passadeira, apesar de eu estar com receio de que o autocarro que se aproximava não parasse. Hesitei. — O que estás a fazer, Hannah? — perguntou ele, levantando os braços. — Quem é que tem direito de passagem? Os carros ou as pessoas? — perguntei-lhe em voz alta. Ele acenou-me para que o seguisse. — As pessoas, claro. Tens de mostrar ao trânsito que pretendes atravessar a estrada e depois atravessas. — Mas… e se eles não nos virem? Ele abanou a cabeça e seguiu em frente. Eu fui atrás dele, nervosa, sem saber ao certo para que lado olhar primeiro e, claro, os carros limitaram-se a parar para eu passar, tal como eu devia saber que fariam. Em que estaria eu a pensar? Em carros a buzinar cheios de parisienses enfurecidos a brandir-me os punhos? Num acidente em cadeia e eu especada no meio da rua rodeada por metal empenado? Vi o Léo a avançar decidido, totalmente despreocupado e seguro de si, e desejei também ser assim e limitar-me a fazer as coisas, sem pensar como uma louca em todas as razões para não as fazer. Havia uma pequena multidão aglomerada num canto e o Léo já estava junto dela no momento em que me aproximei. Perguntei- me qual seria a razão de todo aquele tumulto, mas quando olhei para cima e vi o que eles estavam a ver, a minha boca abriu-se de espanto. Ensanduichada entre dois prédios de apartamentos beges com varandas estava a vista mais perfeita da Torre Eiffel mesmo ali à nossa frente. Com a rua calcetada, o céu limpo e azul, o rasgo de verde das árvores a crescer sob a sua arcada, percebi porque era a fotogra�a de sonho de qualquer utilizador do Instagram. Levei imediatamente a máquina fotográ�ca ao olho para tentar captá-la de uma forma que lhe �zesse justiça. Queria sentir a essência da torre e do seu tamanho, que era muito mais imponente do que eu me lembrava da outra vez, embora nessa altura a tivesse visto de mais longe. — Como podes ver, não somos os únicos que conhecemos este lugar — disse o Léo, a olhar, divertido, para uma rapariga de camisola às riscas a tirar fotogra�as a si própria com um sel�e stick. Havia também um tipo japonês a tirar uma fotogra�a ao amigo, que estava com as mãos nos bolsos a olhar enigmaticamente para o cimo da torre. — É uma vista tão bonita — disse eu, enquadrando uma fotogra�a abstrata do pico da torre. — Gostas de tirar fotogra�as? — perguntou o Léo, quando me acocorei para captar a vista de uma perspetiva diferente. Assenti, sentindo-me subitamente incapaz de refrear o meu entusiasmo. — Sempre gostei, desde pequena — disse-lhe. — Todos os anos pedia uma daquelas máquinas descartáveis no Natal. Lembras-te delas? E passava uma eternidade a decidir qual seria a melhor forma de utilizar as 27 fotogra�as ou sei lá quantas eram. Tirava fotogra�as às escondidas de pessoas a fazer algo que representava o que elas eram enquanto pessoas: a minha mãe a passar a ferro, por exemplo. Os rapazes do outro lado da rua a passar a toda a brida nas suas BMX, levantados sobre os pedais. Ou ia para o parque e tirava o que considerava serem fotogra�as muito artísticas de uma parede de escalada velha e enferrujada. — Parece fascinante — disse o Léo, a sorrir consigo próprio. — Bem, era o que eu achava. — Ficavas satisfeita com o resultado? — perguntou. Encolhi os ombros. — Não me lembro. Nunca as mostrava a ninguém, por isso era difícil ser objetiva. Ao �m de mais alguns minutos a disparar a máquina fotográ�ca e depois de trocar o rolo, aproximámo-nos da torre, evitando as multidões de in�uencers a tirar a melhor fotogra�a para dizerem: «Estou em Paris!» Passámos por um restaurante com a esplanada cheia de mesas. O Léo deteve-se, virou-se para trás e espreitou pela janela. — Un moment — disse, a olhar para mim com um dedo no ar para depois abrir a porta e entrar. O que estaria ela a fazer? Enquanto esperava, vi uma mulher glamorosa com um vestido vermelho e saltos altos, aos pulos no ar enquanto um fotógrafo com ar de pro�ssional tentava captá-la com ambos os pés fora do chão. — Voilà! — disse o Léo, quando reapareceu com uma garrafa de vinho tinto e dois copos de plástico. — Não se pode apreciar Paris em todo o seu esplendor sem um vinho francês na mão — disse ele. — Anda, vamos sentar-nos. Conduziu-me até um banco e deu-me um dos copos. Aceitei-o, hesitante. — Não é um bocado cedo para isto? — perguntei, tapando a boca do copo com a mão. — Não quero chegar ao casamento já bêbeda, sabes? Além disso, estás a conduzir. — Prometo-te que vou ter cuidado — disse ele. Vi-o a verter um pouco de vinho no copo dele. — Descansa, Hannah. Ainda faltam muitas horas para chegares a Amesterdão. Diverte-te um pouco. — É interessante que estejas tão ciente dos defeitos dos outros — comentei, indignada. Retirei a mão para que ele pudesse encher-me o copo. — Calculo que também estejas a par das tuas lacunas. — Claro — disse ele, tocando com o copo no meu num brinde. — Sei exatamente quais são. Bebi alguns goles rápida e repetidamente, enchendo a boca com aquele vinho arrojado e picante para provar todos os seus sabores. — É bom — disse eu. O meu olhar pousou nos lábios do Léo quando ele começou a beber, a maçã de Adão a subir e descer ao engolir. — Qual é a altura desta coisa, então? — perguntei, com a cabeça levantada a olhar para a torre. Do local onde nos encontrávamos, estávamos su�cientemente perto para ver o elevador a subir e a descer pelo centro e para distinguir os vultos dos turistas a vaguear pela primeira plataforma, o fragor dos aglomerados de pessoas a aproximar-se do vidro, os �ashes das máquinas fotográ�cas a disparar. Ele encolheu os ombros. — Não me lembro da medida exata. Cerca de 300 metros, talvez. — É enorme. Muito maior do que eu pensava. — Quando foi construída, em 1889, era para ser apenas uma estrutura temporária — explicou. Era parte de uma exposição para comemorar a Revolução Francesa. — Parece muito trabalho para ser desmontada logo a seguir — disse eu. — Exatamente. O arquiteto, Gustave Eiffel, tinha de provar que não só atraía muitos visitantes, como tinha outros atributos. Foi usada como torre emissora de rádio na Primeira Guerra Mundial, por exemplo. Eu tirei o blusão de cabedal e pousei-o no banco entre nós. — Já não tens frio? — perguntou o Léo. Abanei a cabeça e aproximei a máquina fotográ�ca do olho para tirar mais algumas fotogra�as da torre e da relva suave e aveludada em volta, repleta de pessoas espalhadas por todo o lado a descansar ao sol e deitadas sobre camisolas já despidas, com a cabeça apoiada em malas enquanto folheavam os guias ou manuseavam os telemóveis. Não me lembrava da última vez que tinha feito algo parecido, como fazer um piquenique improvisadono parque ou �car sentada ao sol toda a tarde com amigos. Talvez fosse o que acontecia ao chegarmos aos 30 anos. As pessoas mudavam-se, compravam casas fora da cidade, todos os encontros exigiam um pouco mais de planeamento. Estar ali, naquele banco com o Léo, parecia-me a coisa mais espontânea que eu tinha feito em meses. — Então que casamento é esse em Amesterdão a que queres ir tão desesperadamente? — perguntou o Léo, com as pernas compridas estendidas à frente dele e cruzadas no tornozelo. — A irmã do meu namorado vai casar-se às cinco e meia num hotel todo pretensioso. — É uma pena que não vás chegar a tempo — disse ele, olhando para mim de relance pelo canto do olho. Fiz um clique com a língua nos dentes em reprovação. — Ainda dizes que eu sou negativa. Se o comboio chegar mesmo antes das cinco, não vejo porque não posso apanhar um táxi e chegar à cerimónia a tempo. Amesterdão é uma cidade minúscula, comparada com Paris, não é? — Acho que sim — disse ele. Girei o vinho no meu copo. — Não achas que vá conseguir, pois não? Ele alongou-se. — Talvez. Vi a t-shirt branca que ele trazia vestida a subir e a mostrar um pouco da barriga lisa e bronzeada e afastei os olhos, levei a máquina fotográ�ca ao olho e �quei a mexer no botão do zoom. — Vamos — disse eu, levantando-me ao �m de algum tempo. — Tenho de voltar. Iria telefonar ao Si da Gare du Nord de novo. O Léo levantou-se do banco e olhou para o relógio. — São 9h55 — disse ele, entregando-me a garrafa e o copo para que eu os arrumasse na minha mala. — É melhor despacharmo- nos, non? — sugeriu, retomando a passada e rindo-se para mim por cima do ombro. Capítulo 9 Passei os dedos pelo quadro de metal da moto. Uma vez que o motor tinha sido desligado há pouco tempo, ainda estava quente sob as polpas dos meus dedos. — Tudo bem? — perguntei. Tendo em conta a forma como o meu dia estava a correr, não me surpreenderia se a moto tivesse avariado, deixando-nos presos no lado errado de Paris, a quilómetros da estação de comboios. Esfreguei a parte de trás do pescoço, tentando manter a calma. Era uma aventura, dizia a mim mesma, uma exceção no resto da minha vida normal. E, fosse como fosse, se tivesse de ser, poderia ir a pé até à Gare du Nord. Ainda nos sobrava tempo. — Estava a fazer um barulho estranho — disse o Léo com a voz abafada, quando se dobrou para veri�car o pneu da frente e depois o de trás, a testa franzida em concentração, os dedos compridos a apalpar a borracha. — Parece-me que está tudo bem — disse ele, levantando-se, limpando o rosto à bainha da t-shirt e voltando a mostrar os abdominais perfeitos. Provavelmente mostrava-os sempre que tinha oportunidade. — É seguro conduzi-la? — perguntei. Ele deu-me uma palmadinha tranquilizadora no ombro. — Não te preocupes, Hannah, a moto não vai explodir debaixo de nós. Lancei-lhe um olhar fulminante. — Então, vamos — disse ele com um encolher de ombros tipicamente parisiense. — Damos uma olhada ao rio e depois temos de ir. — É só um rio — disse eu, enquanto pegava no blusão e o seguia, contrariada, pelo passeio coberto de erva. Não tinha nenhuma vontade de ver a miserável vista do Sena, de que ainda me lembrava. — Nós temos o Tamisa em Londres, sabias? Debruçámo-nos no muro que dava para a água, mesmo em frente do terminal de barcos turísticos Bateaux Mouches na outra margem. Os barcos deslizavam elegantemente para um lado e para o outro, a chegar e a sair do cais, com turistas entusiasmados de máquinas fotográ�cas em riste no convés. Surpreendentemente, estava longe de os achar tão irritantes como da última vez. — Impressionante, non? — disse o Léo. — Se tu o dizes — disse eu, levando a máquina fotográ�ca ao olho e focando o telhado de vidro do Grand Palais a brilhar à distância. Apanhei-o a observar o que eu estava a fazer. — Gostas de fotogra�a? — perguntei. Dissera-lhe montes de coisas sobre mim e ele era cheio de perguntas, mas apercebi-me de que sabia muito pouco sobre ele. — Nunca experimentei — respondeu, a espreitar para a minha máquina fotográ�ca com interesse. — Queres experimentar? Ele assentiu e eu puxei a alça por cima da minha cabeça e passei-a por cima da dele. Ele levou a máquina ao olho esquerdo e girou de um lado para o outro, à procura de um alvo. Fixou-se num barco liso e elegante chamado Catherine Deneuve, que vogava rapidamente à nossa frente, e premiu o botão. — Como é que focas? — perguntou, a voz pesada de concentração, e eu tive de me conter para não sorrir. — Aqui. Aproximei-me, as nossas bochechas quase a tocar-se, o osso do meu pulso no ombro dele. Senti o pescoço a aquecer. — Rodas este botão devagar, até a imagem �car bem nítida. Ele tirou algumas fotogra�as e depois virou a máquina para mim. Eu pus a mão em cima da lente. — Não te atrevas — disse a sorrir. — És tímida? — perguntou, a rir-se para mim, e eu �quei surpreendida por já nos sentirmos à vontade para aquelas pequenas provocações. — Muito — respondi. — E não �co bem nas fotogra�as. — Não acredito nisso — retorquiu. Devolveu-me a máquina fotográ�ca, esfregou o cabelo e virou o olhar de novo para a água. Eu olhei para ele de relance pelo canto do olho. — Não me disseste como é que estás aqui sozinha — disse ele. — Sem mala nem roupas quentes. Ele puxou um cigarro do maço, acendeu-o e deu-mo. Eu abanei a cabeça e entrelacei as mãos atrás das costas. Sabia que, se fumasse mais um, entraria em terreno escorregadio. Eu não era o tipo de pessoa capaz de fumar de vez em quando, só quando estava sob tensão ou com um grupo especí�co de pessoas. Não funcionava assim: para mim, sempre tinha sido tudo ou nada. As coisas ou eram ótimas ou terríveis, ou amava ou odiava alguém. — Bem, nós estávamos em Veneza. — Nós quem? — Eu e o Si. Ele parecia confuso. — O meu namorado. O Simon. O vento soprava com mais força junto ao rio e o ar estava alguns graus mais frio, embora o sol ainda reluzisse no rio. Pus o blusão dele por cima dos ombros. — Simon… — disse o Léo. O nome �cava mais bonito em francês. — Ah. Foi a ele que tu ligaste. Quando estávamos no comboio. Eu virei-me para o encarar e �rmei as mãos nos quadris. — Não me digas que estavas a ouvir a nossa conversa. Ele esboçou um sorriso. — Era difícil de evitar. Toda a carruagem podia ouvir. — Não podia nada. — Estavas a falar muito alto. Olhei, amuada, para o Sena. Passou por nós um dragador com um cão que não parava de se mexer no convés, o que não ajudou em nada os meus nervos, porque estava convencida de que o animal ia saltar para a água e afogar-se diante dos meus olhos. — Era porque estavas chateada, non? — disse o Léo, a insistir no assunto. — A tua voz estava bastante alta — apontou, levantando a mão para o céu para mostrar até que ponto eu me tinha revelado uma idiota. — Estás a exagerar — disse eu. Eu estava a fazer um esforço consciente por falar com calma. O Léo riu-se. — Diz-me: o que �zeram em Veneza? — O habitual. Fomos ver os sítios de interesse. Comer o equivalente ao meu peso em pizza. Quase lhe disse que durante todo o tempo em que lá estivera, tivera uma sensação de familiaridade, como se já tivesse estado ali antes. Talvez fosse por causa das fotogra�as que eu tinha visto no passado, das brochuras que folheara, das imagens do dia de casamento do George e da Amal Clooney. — Ele deve querer mesmo impressionar-te, se te leva a Veneza — disse o Léo. Eu pensei que talvez quisesse mesmo, mas não deixara de ser um tremendo choque quando descobrira onde íamos, sobretudo porque ele nunca tinha sido do tipo de fazer grandes atos simbólicos. Dissera-mo no jantar do meu aniversário em frente à Ellie e ao John. Não tinha bem a certeza porque o tinha feito e, para dizer a verdade, preferia que tivesse sido quando estivéssemos a sós. Detestava ter vários pares de olhos �xados em mim e nunca conseguia sentir-me descontraída quando era o centro das atenções. — Como vocês sabem melhor do que ninguém, no próximo sábado faz um ano que eu e a maravilhosa Hannah estamos juntos — anunciara o Si de forma pomposa no momentoem que terminámos o jantar. — Boa, Si — dissera a Ellie, piscando-me o olho. O Si aclarara a garganta. — Tem sido, e posso dizê-lo sem hesitação, uma viagem excecional. Quando eu ia a subir aquelas escadas rolantes da estação de metro de Highgate, não fazia ideia de que a minha vida estava prestes a mudar. Que estava prestes a conhecer a mulher que provaria que o amor à primeira vista existe mesmo. Eu tinha posto a cabeça entre as mãos, envergonhada. O que é que ele estava a fazer? — Que falinhas-mansas — dissera a Ellie, provocando-me jocosamente com o cotovelo. — Por isso — continuara ele, depois de parar para beber um copo de água —, queria oferecer-te algo extraespecial. Um presente que servisse ao mesmo tempo para o teu trigésimo e para o nosso primeiro aniversário. Para te mostrar a importância que tens para mim. — Muito bem — dissera eu, cautelosamente, a espreitar por entre os dedos. Ele retirou uma caixa de baixo da mesa. Eu engoli em seco e rasguei o papel de embrulho, em parte curiosa e em parte embaraçada. Não achava que tivesse feito nada para merecer tudo aquilo. Dentro do embrulho estava uma caixa cinzenta com o logótipo da Mulberry estampado na parte da frente. Fiquei confusa. O dinheiro sempre fora um assunto delicado entre nós, embora eu assumisse que era porque ainda estávamos a perceber a logística da vida em conjunto: abrir contas bancárias conjuntas para pagar as despesas de casa e de�nir débitos diretos e toda essa organização em que eu nunca tinha sido grande coisa. Ele estava sempre a insistir em que tínhamos de poupar para uma entrada para comprarmos uma casa juntos. A mim, parecia-me um exercício inútil porque não estava a ver como poderíamos poupar o su�ciente para comprar uma propriedade em Londres. Preferia ter gastado o dinheiro a divertir-me e deixar para mais tarde a ponderação dos prós e contras das hipotecas, embora isso fosse o que eu pensava sempre. Não admirava que estivesse permanentemente nas lonas. — Abre a caixa — dissera ele. Havia algo plano e retangular no fundo da caixa. Afastei o lenço e vi uma carteira para passaporte em pele vermelho-escura. — Si — disse eu, de boca literalmente a escancarar-se. — Abre — disse ele, agachando-se junto a mim. Mirei-o com ar inquiridor e �z o que ele pedia. O meu passaporte já estava lá dentro juntamente com um bilhete da British Airways. Abanei a cabeça, incrédula, com di�culdade em assimilar o que se estava a passar: Londres Heathrow para Veneza Marco Polo. Domingo, 30 de junho de 2019. — Vou levar-te a Veneza — disse ele, radiante. — Eu sei que sempre quiseste lá ir. — Caramba — disse a Ellie, com um ar inusitadamente aturdido, como se não fosse capaz de encontrar as palavras certas para dizer. — Mas nós já íamos para Amesterdão em julho — disse eu, confundida. — Para o casamento? — zombou a Ellie. — Isso não são propriamente férias. — Exatamente — disse o Si, aceitando o reparo de espírito aberto. — Eu sei que marcámos férias para a semana inteira, por isso pensei que podíamos passar alguns dias em Veneza antes. Eu passei os dedos pelo cabelo. Não conseguia compreender. — E depois comprei bilhetes para um comboio noturno de Veneza para Amesterdão na quarta-feira à noite. Achei que era mais romântico do que ir de avião. Vamos ter o nosso próprio compartimentozinho com camas de abrir. Podemos beber um copo enquanto o comboio atravessa os Alpes a todo o vapor. Cheguei a pensar que ia entrar em choque. O Si parecia muito satisfeito consigo próprio e entusiasmado como um miúdo no Natal. — Diz alguma coisa, por amor de Deus — disse a Ellie. Subitamente, eu dei um salto da minha cadeira, atirei os braços para cima do Si e puxei-o para mim. — Amo-te — sussurrei-lhe ao ouvido, de coração acelerado. — E não consigo acreditar na sorte que tenho em ter-te. O sol do meio da manhã cintilava no Sena e eu tirei uma série de fotogra�as, abrindo o ângulo para registar a agitação do rio. — São 10h20 — disse o Léo, quando olhou para o relógio pela centésima vez naquele dia. — Queres que te leve de volta para a estação? — Pode ser — disse eu, pegando na minha mala do chão, surpreendida por sentir um assomo de desilusão. — Eu podia oferecer-me para te mostrar um pouco mais de Paris. Mas como odeias tanto a cidade… — Eu nunca disse que a odiava — protestei. Ele lançou-me um olhar. — Está bem, odeio-a um bocadinho. — Já tinhas visto isto tudo antes? O rio? A Torre Eiffel? — Mais ou menos — respondi, ao lembrar-me de como tudo me parecera sombrio naquele dia. Como eu me repreendera a mim mesma por ter ido para lá, por ter pensado por um segundo que fosse que ele me iria querer ver. Por me abrir e estar preparada para esquecer tudo o que se tinha passado antes. — Acho que tens demasiado medo de ver as partes mais autênticas da cidade — disse o Léo já a dirigir-se para a moto. Eu dei uma corrida para o alcançar. — O que queres dizer com isso de eu ter medo? — Eu sou um completo estranho para ti. Tu não arriscarias vir comigo ao meu arrondissement, por exemplo. Seria demasiado arriscado, non? Deu-me o capacete, que eu consegui apertar sozinha pela primeira vez. — Onde é o teu arrondissement? — É o décimo — respondeu ele, enquanto se montava na moto. — Conheces? Abanei a cabeça. — É muito bonito — assegurou, ajustando o espelho retrovisor. — É uma pena que não o possas ver, podias tirar algumas fotogra�as muito boas. — É muito longe daqui? — perguntei, subindo para a moto atrás dele e levantando a voz quando ele rodou a chave. — Fica a norte da Gare du Nord. Quinze minutos, talvez. Ele acelerou o motor. — Está bem — disse eu com um ar de tranquilidade antes que pudesse mudar de ideias. Podia sempre usar o telefone dele para ligar ao Si de lá. O Léo girou a cabeça para olhar para mim por cima do ombro, os olhos desa�adores. — Está bem o quê? — Está bem, eu vou ver o teu arrondissement. — Vais? — Mas não me posso demorar. Mais meia hora ou algo parecido não faria mal nenhum, disse a mim mesma, quando pus os braços em volta da cintura do Léo. Ele arrancou para a estrada e, quando parámos num semáforo, virou-se para olhar de novo para mim. — Surpreendes-me, Hannah — gritou. — Talvez não sejas tão medrosa em relação a tudo como eu pensava. Capítulo 10 Havia tanto para ver na viagem até ao décimo arrondissement. Era como descobrir um lado de Paris completamente diferente, uma parte que não tinha sido fotografada até à exaustão. Reparei em pequenos detalhes ao longo do caminho, como uma mulher a limpar um balcão de uma boulangerie vazia e os brinquedos coloridos de madeira na montra de uma lojinha de brinquedos muito original. Eu adorava a sensação de percorrer a cidade a alta velocidade e de poder descer ruas estreitas que os carros teriam di�culdade em atravessar. Fiquei quase desiludida quando encostámos junto a um cais calcetado. — É aqui que eu passo a maior parte do meu tempo — disse o Léo, apontando para jusante. — Nestes cafés aqui ao longo. Há um bar de sumos que vende uns smoothies deliciosos, consegues ver? E ali é um espaço de exposições e uma galeria. Têm alguns artistas novos muito porreiros a exibir lá as suas obras. A zona já estava animada, com os habitantes locais sentados nas esplanadas dos restaurantes naquelas cadeiras entrelaçadas tipicamente francesas. Empregados com aventais brancos entravam e saíam apressados das portas com bandejas de ovos, torradas e café. Era óbvio que também era um lugar popular para praticar desporto, porque contei pelo menos 20 pessoas que passaram a correr no espaço de um minuto. Do outro lado do canal, um grupo de rapazes estava a gritar e a rir-se enquanto se divertia no jogo de basquetebol matutino. — Como disseste que se chamava este lugar? — perguntei-lhe. — Canal Saint Martin — disse ele. — O canal foi construído por Napoleão no início do século XIX para trazer água potável para Paris. Peguei na máquina fotográ�ca e tirei algumas fotogra�as da água verde-escura que estava tão plácida que parecia vidro. — Até onde vai? — perguntei.— Até chegar ao Sena. Mas ali mais à frente, na Place de la Republique, corre em túneis subterrâneos escuros e sinistros ao longo de dois quilómetros. Pode-se ir de barco até lá. Tirei uma fotogra�a de um barco de passeios turísticos sobre um fundo de grafítis muito bons e depois virei-me para montante e fotografei um prédio de apartamentos quadrado no meio de um renque de plátanos. — Conheces a canção Les Mômes de la Cloche? — perguntou o Léo, pousando a cabeça nas grades junto a mim. Eu tirei uma bela fotogra�a de três edifícios à distância, exatamente na curva do canal: estavam pintados de verde-menta, cor-de-rosa e um amarelo luminoso, um atrás do outro, como um trio de gelados. — Nunca ouvi falar. — A Édith Piaf cantou uma versão. É sobre o Canal Saint Martin e as crianças que viviam nestas ruas. Há um verso que diz: «Quando a morte nos levar, será o dia mais bonito das nossas vidas.» — Céus — disse eu, levando a mão ao peito. Ele sorriu. — Não gostas de canções tristes? — Não — respondi. — É isso que tu compões? Ele abanou a cabeça evasivamente. — Nem por isso. Estás com fome? Olhei para ele com os olhos semicerrados. — Estás a mudar de assunto? — Não, de maneira nenhuma — disse ele, com ar inocente. — Agora voltemos a ti. Precisas de comer, non? — Estou bem — disse eu, a olhar descon�ada para ele. Era claro que estava a evitar alguma coisa. — Não foi o teu estômago que eu ouvi a rugir? — perguntou. — Não pode ter sido — menti. — Seja como for, posso comer no casamento. Ele olhou para mim como se eu fosse louca. — Faltam muitas horas, Hannah. Revolvi a minha mala e encontrei um velho pacote de pastilhas elásticas no fundo. Iria enganar a fome por algum tempo. — Estou a ver que gostas de comida — disse eu, oferecendo-lhe o pacote. — Claro. Tu não? — perguntou ele e pegou numa pastilha, atirou-a ao ar e apanhou-a com a boca aberta. — Sim, claro. Mas não penso nisso todos os segundos do dia. Não sabia porque não podia admitir que estava com muita fome. Era uma questão de orgulho, pensei: não queria que ele tivesse pena de mim ou se sentisse obrigado a comprar-me alguma coisa. — Anda — disse o Léo, incitando-me a segui-lo. Eu �quei no mesmo sítio. — Aonde vais? — Comer um bolo — disse ele. — Eu disse-te que não tinha fome — disse-lhe em voz alta já à distância. Ele fez de conta que não ouviu e, depois de atravessar a rua, parou à frente de uma loja cor de vinho com a inscrição La Patisserie pintada a dourado na janela. Quando percebeu que não o tinha seguido — o que, descaradamente, esperava que eu tivesse feito como se eu fosse incapaz de tomar as minhas próprias decisões —, virou-se para me encarar, de mãos nas ancas. — Anda, Hannah, vá lá! À porta da pastelaria, grupos de parisienses jovens e cheios de estilo reuniam-se à volta de mesas com tampo de zinco brilhante a encher a boca de pastéis folhados. Teria de comprar a coisa mais barata que encontrasse e esperar que o meu cartão fosse aceite. Tinha o estômago a dar horas e dirigi-me para junto dele, seguindo um passo propositadamente lento. — Porque é que demoraste tanto? — perguntou ele, com um ar de verdadeira perplexidade. — É embaraçoso admitir isto, mas não tenho dinheiro nenhum, na verdade — disse eu, depois de decidir que a honestidade era a melhor política. Ele parecia confuso. — Nenhum mesmo? — Nem por isso. Usei o resto do dinheiro que tinha para pagar o táxi até à Gare du Nord. E tenho um cartão de crédito, mas, en�m… não tem grande crédito. Ele parecia surpreendido. — Deixei a carteira na mala do meu namorado — disse-lhe. — O meu dinheiro está lá, claro. — Não queria que ele pensasse que eu era um caso de caridade. — Já devias ter dito — disse ele com um ar chateado. — Eu dou- te alguns euros, Hannah. Não podes �car tantas horas sem dinheiro, isso é uma loucura. — Não quero o teu dinheiro — disse com �rmeza. Ele acenou com a mão em frente do rosto. — Isso não é problema. — Bem, é um problema para mim. Eu consigo aguentar-me mais algumas horas. Estar com um pouco de fome não é exatamente o �m do mundo, pois não? — disse eu. — Ah, a�nal tens fome. — Um sorriso irónico rasgou-lhe os lábios e a irritação cresceu dentro de mim. Eu detestava que ele soubesse que tinha razão. Avançámos na �la e entrámos na loja, mas as pessoas que estavam ao balcão tapavam-me a visão. — Vais ser tão orgulhosa que não me deixas comprar-te alguma coisa? — perguntou o Léo. — Não precisas de fazer isso — apressei-me a dizer, embora a oferta fosse verdadeiramente tentadora. — Eu sei que não preciso. Já estávamos ali e parecia uma pena estar em Paris e não provar pelo menos uma especialidade local. Acabei por ceder. — Bem, só se tiveres a certeza — disse, ignorando o sorriso demasiado presunçoso que ele tinha no rosto. A �la avançou e eu pude �nalmente ver a vitrina em todo o seu esplendor. Atrás do vidro inclinado havia �las e mais �las dos bolos mais bem apresentados, coloridos e primorosamente decorados que eu já tinha visto. — Melhor do que as vossas pastelarias inglesas, non? — disse ele. — O que é cada um? — perguntei, sem saber como haveria sequer de escolher. — Bem, estes são Baba au Rhum — disse ele, agachando-se para poder ver pelo vidro e apontando para uma �leira de bolos de massa levedada com aspeto húmido e cobertura de creme. — E estes são os Paris-Breton, uma massa suave com praliné no interior. Depois há vários tipos diferentes de éclair, tarte tatin, clafoutis, puits d’amour e, no �nal, Mont Blanc, uma espécie de merengue de puré de castanha. Abanei a cabeça, boquiaberta. — Não consigo decidir — a�rmei. — O que é que nunca comeste antes? — perguntou ele. — Tens de provar algo novo. — Nunca provei o Mont Blanc, isso é certo. — Boa escolha — disse ele com um aceno de cabeça e depois tomou o seu lugar junto ao balcão. — Bonjour madame, comment allez-vous? Alors... deux Monts Blancs, s’il vous plaît. A empregada pegou num saco de papel branco com o logótipo da patisserie com uma mão e, com a outra, en�ou dois bolos em forma de montanha lá dentro. — Pronta? — perguntou ele depois de pagar. — Claro — disse eu, descontraidamente, tentando mostrar-me tranquila quando, na verdade, estava a salivar ao pensar nas dentadas que ia dar naquele bolo açucarado. Sentámo-nos numa grade de estacionamento para bicicletas com vista para a água. Tive o cuidado de manter o máximo possível de espaço entre nós, o que não era fácil naquele pedaço de metal tão estreito. O Léo pegou no bolo dele e deu-me o saco. — Como raio é que eu como isto? — perguntei enquanto espreitava para o interior do saco. O bolo parecia frágil ao tato, como se fosse desintegrar-se no momento em que desse uma dentada. Olhei para ele, maravilhada com a base de massa crocante e o creme de castanhas parecido com esparguete amontoado em cima, formando uma espécie de montanha. Presumivelmente, o Mont Blanc, que eu pensei que seria nos Alpes. — Espera — disse eu subitamente. — Segura aqui só um segundo, está bem? Quero tirar uma fotogra�a. — Rápido — advertiu o Léo, que estava incaracteristicamente calado enquanto desbastava a maior parte do seu próprio Mont Blanc, que já não passava de um monte de pedaços. — Se não, vai desfazer-se e �cas sem ele. Foquei o bolo pousado na palma da mão dele e tirei a fotogra�a. — Perfeito — disse. Ele devolveu-me o bolo. — Então, a que é que gostas de tirar fotogra�as agora? — perguntou o Léo, limpando as mãos com um guardanapo. — Já te deixaste das paredes de escalada enferrujadas? Nunca ninguém me tinha feito aquela pergunta. Nem sequer o Si, que eu descon�ava que considerava que a minha paixão pela fotogra�a não passava de um pequeno passatempo para me divertir. Um incentivo para passear e tirar fotogra�as bonitas da Portobello Road num domingo à tarde ou algo parecido. Mas, para mim, nunca fora apenas isso. Simbolizava a parte de mim que queria mais. Pensei que o meu pai também poderia sentir a mesma coisa. — Gosto de edifícios bonitos — disse, devagar. — Tanto velhos como novos. E da forma comoa luz incide sobre os objetos: umas escadas, um telhado ou uma árvore. E de re�exos. Do modo como a água distorce tudo e dá a algo sólido e in�exível uma espécie de traço sobrenatural. — E que mais? — perguntou, cruzando uma perna sobre a outra e virando-se para mim de tal forma que o joelho dele estava quase a tocar na minha coxa. — Adoro a sensação que tenho quando a composição está perfeita — disse eu, deixando-me levar. — Quando consigo captar a essência de alguma coisa. Ou quando registo um momento que nunca mais vai voltar a acontecer, pelo menos exatamente daquela maneira. Tentei concentrar-me em não deixar cair o meu Mont Blanc na parte da frente do casaco com capuz do Léo. Fotogra�a era o assunto sobre o qual eu era capaz de falar pelos cotovelos, mas achava que era um pouco demais para a maioria das pessoas. — Mas dizes que não és fotógrafa? — perguntou o Léo com voz amável. Abanei a cabeça para indicar que não, não era o meu trabalho. Na verdade, não lhe podia dar uma resposta porque tinha a boca cheia do creme mais suave e com o melhor sabor a frutos secos que eu já provara na minha vida. — Nhamm — disse eu, levantado o polegar na direção dele. — O que é que tu fazes, então? — Sou administradora de recursos humanos. Para uma pequena empresa de advogados na cidade — respondi entre dentadas. — Gostas do que fazes? — Pelo contrário — disse com um leve sorriso. — Não consigo suportá-lo. Peguei num pedaço da massa crocante e levei-o à boca. — Na verdade, o problema não é bem o trabalho. Sou eu — disse enquanto mastigava. — Há três anos que penso em deixar aquele emprego. Estão sempre a tentar mandar-me para um daqueles cursos de formação de gestão, mas eu invento desculpas para não ir. Da última vez, disse que não podia ir porque tinha tido uma intoxicação alimentar e depois tive de tirar mais um dia para tornar a história mais credível. E o pior é que no dia seguinte era o aniversário de uma pessoa da empresa e havia bolo no escritório e tive de �ngir que me sentia indisposta e não podia arriscar comê-lo, embora, como já sabes, bolo seja a coisa de que mais gosto no mundo. Ele riu-se. — És engraçada, Hannah. — E tu fazes demasiadas perguntas. — E ainda tenho outra. Porque é que continuas nesse emprego, se o detestas assim tanto? — perguntou o Léo, a olhar-me de soslaio. Limpei os cantos da boca com os dedos e lambi um pedaço de creme do polegar. Eu própria me perguntara a mesma coisa centenas de vezes. Medo do desconhecido, provavelmente. A ideia de que, se �casse onde estava, não teria de lidar com a inevitável desilusão de tentar algo que eu gostasse realmente de fazer e ser uma porcaria a fazê-lo. Por isso, continuava a levantar-me, a ir para o trabalho, a sentar-me no metro juntamente com milhões de londrinos e a aceitar a minha sorte, partindo do princípio de que não podia ter tudo. — É a realidade, não é? — disse-lhe. — Não me posso dar ao luxo de correr riscos. Tenho contas para pagar. Compromissos. Coisas para que tenho de poupar. — Tais como? Um barco de passeios turísticos fez soar a sua buzina ao passar, o convés cheio de turistas a aproveitar o sol com as máquinas fotográ�cas a cintilar à frente de um céu azul reluzente, apenas encoberto aqui e ali por uma penugem de nuvens brancas. — Não sei. Um apartamento? Ele parecia surpreendido. — Queres comprar uma casa? — Quer dizer, um dia, sim. — E, entretanto, continuas aborrecida e farta nesse emprego de que não gostas. — Bem, sim. É o sacrifício que temos de fazer, não é, quando vamos crescendo? A maior parte das nossas esperanças e dos nossos sonhos tem de ser posta de lado. — Tem? — Sim. — Tem mesmo? Eu baixei a cabeça e olhei para o meu tornozelo, virando-o para ver se estava inchado. — Na verdade — disse eu, perguntando-me se devia dizer-lho —, há um curso de fotogra�a que estou a pensar fazer. Ele pegou no saco de papel vazio das minhas mãos e lançou-o para um caixote do lixo a cerca de um metro de distância. Caiu lá dentro sem tocar em mais nada. — Na faculdade? — perguntou. Eu levantei a máquina fotográ�ca e tirei uma fotogra�a rápida da ponte abobadada verde-hortelã a jusante. — É um curso de meio ano na Central Saint Martins. Quando falara do assunto com o Si, tinha �cado com a sensação de que ele me desencorajara. Ele disse que parecia uma boa forma de gastar dinheiro que eu não tinha. Que não percebia porque é que eu haveria de querer abdicar de todos os sábados durante seis meses quando podíamos passar mais tempo juntos. Apontara que nunca poderíamos ir para fora um �m de semana, ao que eu respondera: e quando é que nós vamos para fora ao �m de semana? Não voltei a falar do assunto desde essa altura. — É uma escola de arte em Londres — acrescentei. — Eu conheço a Central Saint Martins, Hannah. Aquele tom de sabichão fez-me querer deixar de falar. — Desculpa — disse ele, num tom mais neutro. — Continua. Tive di�culdade em encontrar as palavras certas depois de perder o �o ao raciocínio. Como é que eu tinha começado a falar daquele assunto, a�nal? — O curso tem um nome complicado — disse eu, hesitante, e a pensar qual seria o comentário mordaz que ele iria fazer sobre o assunto. — Algo sobre prática pro�ssional e portefólio. É só a tempo parcial, mas há muito trabalho a fazer fora das aulas. Ele tirou o telemóvel do bolso, digitou um pequeno texto e voltou a guardá-lo, centrando a atenção de novo em mim. — Isso é possível para ti? Assenti com a cabeça. — Acho que sim. — E já te candidataste? Rodei a tampa da lente para um lado e para o outro. — Ainda não. O prazo termina na próxima quarta-feira. Ele levantou-se, foi acocorar-se na ponta do banco e pôs-se a olhar para algo na água. — Tens de o fazer, oui? — disse ele, a olhar para mim por cima do ombro. — Não sei — disse eu, desejando não lhe ter dito nada. — Tinha de enviar um portefólio de 15 a 20 fotogra�as. — E tens essas fotogra�as? — Tenho — disse baixinho. — Provavelmente. Para ele — para a maioria das pessoas, na verdade —, não teria nada que saber. Não passava de um pequeno curso, não me estava propriamente a comprometer com anos de estudos. E, embora fosse à justa, podia pagá-lo. Teria de abdicar de todos os pequenos extras, como o meu Starbucks pela manhã e a minha dose de revistas de moda. Levaria os meus almoços para o trabalho. Esse tipo de coisas. A questão era que a ideia de levar a fotogra�a a sério, de pensar em fazer disso uma verdadeira carreira parecia algo que não era para alguém como eu. E, de certa forma, a reverberar no fundo da minha mente sentia um rebate de consciência por fazer algo que sabia que o meu pai adoraria fazer se tivesse tido oportunidade. O Léo levantou-se e eu levei a lente ao olho. — Não te mexas — pedi. Ele fez o que eu lhe pedi e levou uma mão ao olho a fazer de conta que era tímido para ser fotografado. — Relaxa — disse eu, enquanto ajustava o foco para tirar cinco ou seis fotogra�as. — Pareces estar tenso. Ah, e limpa o nariz. Está cheio de creme. Ele riu-se e passou a mão pelo nariz e eu apanhei-o num momento em que estava descontraído e a agir naturalmente antes de começar a posar e tudo voltar a �car mal. — Sou um bom modelo? — Não sei enquanto não as revelar, não achas? — respondi. — Gostas de usar rolo? — perguntou. Eu con�rmei com um aceno. — Sim, pre�ro. Gosto do romantismo de não saber o que vou encontrar. Às vezes deixo passar meses até revelar um rolo, pelo que acabo por me esquecer completamente do que estava lá. Depois posso olhar para as imagens com um olhar renovado. Ainda �cava entusiasmada ao ir buscar o tradicional envelope selado, o conteúdo a cheirar a tinta quente. Abri-lo, passar as fotogra�as a brilhar uma a uma e separar as minhas preferidas. — Acontece o mesmo com a minha música — disse ele. — Em que sentido? Ele hesitou e começou a procurar algo no bolso do casaco. — Na verdade, não importa. Diz-me mais sobre esse curso. — Oh, não — disse eu, percebendo o que estava a acontecer. — Não te vais safar assim tão facilmente. Acabei de te dizer um montede coisas que nunca tinha dito a ninguém. Agora é a tua vez. O que é que ias dizer sobre a tua música? O Léo inclinou a cabeça para o lado. — És boa a ler as pessoas, não és, Hannah? — Sou, sim. Agora, desembucha. Ele passou a mão pela cabeça, virou-se para o canal e depois para mim. Ainda não o tinha visto tão desconfortável. — Quando estou a trabalhar numa canção… — disse ele, passando a mão pela boca. — Sim? — Preciso de me distanciar dela. Durante algum tempo, se for possível. Depois de a pôr de lado durante algumas semanas, um mês ou mais, é possível que consiga ouvir o que não está bem. O que está a funcionar e o que não está. — Certo — assenti em incentivo. — Continua. — Mas é claro que isso não é possível se eu tiver um prazo. Se tiver de seguir o calendário de outra pessoa. Chegar a um produto �nal quando outra pessoa decide e não eu. Eu bati com as unhas na grade para bicicletas. — Tens um prazo neste momento? — Mais ou menos. — Tem algo que ver com Amesterdão, não tem? Eu esperei. Depois arregalei-lhe os olhos como que a dizer: tem ou não tem? — Tem — disse ele, com ar de alguém para quem admitir aquilo já era demasiado. — Porque é que tu tens tanta di�culdade em falar sobre isso? — perguntei. — Estou mais habituado a ser a pessoa que faz as perguntas — respondeu. — Não gostas de falar sobre ti? Ele abanou a cabeça. — Não, não gosto mesmo — respondeu. — E nem penses sequer em perguntar-me porquê, que eu sei que vai ser essa a tua próxima pergunta. — Está bem, está bem — disse eu, levantando as mãos em rendição. — Céus, e eu que pensava que era fechada. Levantei o rosto para o céu e respirei fundo. Aquela parte de Paris tinha um cheiro diferente dos outros locais onde tínhamos estado antes. Mais doce, mais amadeirado. Menos a escapes de carros. — Anda — disse ele, levantando-se e protegendo os olhos do sol. — Segue-me. A cinco minutos de moto daqui �ca o Parc des Buttes-Chaumont. As vistas são uma loucura. Vais tirar umas fotogra�as muito giras para o teu portefólio. Eu mordi o lábio. — É melhor não, sabes? Já me tinha demorado muito mais do que pretendia. Não podia arriscar. — Pensa no teu projeto, Hannah. — Agachou-se para apertar os atacadores. — E não é um grande desvio — assegurou-me, a olhar para cima. — Só um minuto ou dois, então — disse eu, passando a mão pelas grades como se fossem um instrumento musical do qual eu ouvia as diferentes notas. — São 10h52, antes que perguntes — disse ele, brandindo o pulso à frente dos meus olhos e olhando para o relógio num gesto muito teatral. — Ainda temos muito tempo. Capítulo 11 Arrancámos na moto, atravessámos os canais e subimos por uma zona que parecia mais suburbana e habitada do que os outros lugares onde tínhamos estado. Menos prédios de apartamentos com varandas e portadas como os que tinha visto perto da estação e mais do tipo de arquitetura que estava habituada a ver em Londres, uma mistura de velho e novo, alguns edifícios de apartamentos ao estilo da década de 1970, um hospital, uma escola, uma espécie de pavilhão desportivo. Depois de contornarmos uma rotunda louca, onde parar na passadeira com alguém a atravessar a estrada não parecia ser uma obrigação legal, o Léo encostou e desligou o motor. — Por aqui — disse, apontando para uns portões de ferro verdes. E depois parou. — O teu tornozelo — ressalvou com leve preocupação. — É uma caminhada curta, mas a subir. É demasiado? Abanei a cabeça. — Está muito melhor — disse. — Não há problema. Passámos pelos portões e chegámos a um parque sombrio de aspeto rochoso e musgoso, uma atmosfera diferente da dos canais e dos locais mais centrais de Paris que já tínhamos explorado. Olhei para cima e inspirei o perfume de pinheiro, reparando na forma como as árvores se erguiam em direção ao céu. Mal conseguia acreditar que estava ali de novo, naquela cidade que desprezava havia tanto tempo. — Tenho outro facto interessante sobre a morte para ti — anunciou o Léo. — Não quero que estejas sempre a bater no mesmo — respondi, irritada. — Não sou mais obcecada com isso do que as outras pessoas. — Queres ouvir o facto ou não? — Não. — Tens a certeza? É bastante bom, sobre algo que já esteve debaixo dos nossos pés, aqui no parque. Très macabre. — Nesse caso, de�nitivamente não. Reparei no comprimento da passada dele em comparação com a minha, em como, por cada passo dele, eu dava quase dois. Havia algo estranhamente reconfortante na pontada de dor que eu sentia sempre que fazia pressão sobre o tornozelo torcido. — Então onde é que estão essas vistas fantásticas que estavas a gabar? — perguntei. — Por aqui. — Ele conduziu-me até um caminho largo que descrevia uma curva no cimo da colina. — Vais ver que a subida vai valer a pena. — É bom que valha — ripostei, as coxas já a arder. Tirei o casaco com capuz e atei-o à cintura, contente por ter deixado o blusão na moto. — Diz-me então — disse ele, com o fôlego a falhar quando chegámos a uma parte especialmente íngreme. — Porque é que és tão boa a ler as pessoas? Sacudi as mãos para trás e para a frente, tentando ganhar algum balanço. — Não acontece sempre — disse eu. — Nem com toda a gente. O Léo parou para desencravar uma pedra pequena da sola dos ténis e eu agradeci a oportunidade para descansar. — Mas, às vezes, compreendes o que se passa na cabeça de uma pessoa? — perguntou, voltando à caminhada. Tinha reparado que quando ele fazia uma pergunta, parecia realmente interessado na resposta e não o fazia com aquele ar �ngido e falsamente educado que às vezes as pessoas arvoravam ao verem que eu estava interessada naquelas coisas. Eu reparava quando as pessoas me perguntavam alguma coisa e depois pareciam perder o interesse antes de eu ter oportunidade de responder, o que me levava a vacilar e a parar, por perceber que, a�nal, não valia a pena contar a minha história. — Não exatamente. A questão é que �co com uma ideia do que estão a pensar. Em especial do que estão a pensar sobre mim. Ele parou de andar durante um segundo ou dois, olhou para mim e continuou. — Acho que preferia não saber o que as pessoas pensam de mim — disse ele. Mantive as mãos ocupadas na alça da máquina fotográ�ca, alargando-a um pouco para não me apertar tanto no ombro. — Parece-me uma atitude saudável. — Oui, também acho. — Por exemplo, uma coisa que eu estou sempre a fazer é a tentar perceber se as pessoas gostam de mim ou não. Tenho a compulsão de saber. Vou apanhando todas as coisinhas que talvez passem despercebidas à maioria das pessoas: a linguagem corporal, o tom da voz, se os olhos se desviam dos meus, se estão a olhar por cima do ombro à procura de alguém mais interessante do que eu para conversar e assim por diante. E se não obtenho a validação de que preciso, assumo de imediato o pior: que sou uma pessoa horrível e, portanto, devem odiar-me. Senti uma rajada de algo doce no ar quando passámos por uma explosão de �ores roxas minúsculas a crescer por entre as fendas das rochas à nossa direita. Parei para tirar uma fotogra�a. — Achas sempre que as pessoas estão a pensar algo mau sobre ti? — perguntou ele. Pensei sobre o assunto. — Não, nem sempre. Mas percebo quando estão. Ele abanou a cabeça. — Isso é paranoia tua, com certeza. Rocei a ponta do dedo médio para um lado e para o outro da unha do polegar, a pensar na resposta dele. — Não acho que seja. Pelo menos, não completamente. — Talvez as pessoas gostem de ti, mas se retraiam porque és tão defensiva que dás a impressão de que és tu quem não gosta delas. — Então achas que é tudo imaginação minha? — perguntei, cética. — A nossa cabeça pode pregar-nos partidas. As pessoas podem ser melhores do que tu pensas, Hannah. — Sempre tão otimista. — Não ousarei sugerir que tu não és senão positiva — disse ele, olhando-me de lado, com o esboço de um sorriso nos lábios. Arranquei uma folha ao passar por uma árvore e des�-la em pedaços, deixando um rasto de �bras verdes atrás de mim. — Porquê, tens medo de que eu volte a chorar? — Olha — disse o Léo, abrindo o braço à minhafrente. — Era isto que eu queria que visses. Nem sequer fui capaz de esconder a minha surpresa daquela vez. O parque dava para um belo jardim de estilo japonês complementado por uma ponte suspensa que conduzia a uma ilha composta por vertentes escarpadas que pareciam tiradas de uma história de encantar. A folhagem suave e verde dos salgueiros-chorões caía sobre a superfície do lago mais abaixo. Quando dei uma volta completa, percebi que estávamos rodeados por todos os lados de edifícios beges com telhados de zinco e varandas, como uma espécie de Central Park parisiense. — Vês o templo lá em cima? — perguntou o Léo, erguendo a mão para indicar o local. Eu assenti, enquanto pensava no quanto adorava aquele lugar. — É uma cópia do Templo de Vesta, em Tivoli, em Itália — disse ele. — Se entrares no templo, poderás ver a cidade a uma distância de muitos quilómetros, até Montmartre. Levantei imediatamente a máquina fotográ�ca, encostei-me a um poste e comecei a disparar para tentar captar o assombro daquele templo. Depois foquei a imagem num casal que se encontrava a alguns metros de distância. Gostava da maneira como estavam inclinados para o lado a apontar para algo na água e a sussurrar baixinho um para o outro. Perdi-me no mundo que via atrás da lente da máquina e perdi a conta ao número de fotogra�as que tirei. Quando voltei a olhar para cima, o Léo já ia a meio da ponte de madeira, que oscilou ligeiramente quando comecei a atravessá-la, o que indicava que não era tão estável quanto parecia. Agarrei-me à grade para me segurar. — Estás com medo de cair, Hannah? — gritou o Léo na minha direção. — Bem, sendo eu tão desastrada… Ele riu-se e fez-me sinal para ir ao seu encontro. Quanto mais alto subíamos, mais pessoas havia à nossa volta. Para onde quer que olhasse, via alguém a fazer exercício, fosse a correr ou a fazer �exões num banco ou até a praticar yoga à sombra de uma árvore. Parecia ser também uma cidade de amantes de cães, pois reparei que a maior parte dos animaizinhos mimados estava presa a trelas ridiculamente compridas, como se os animais de estimação de Paris não pudessem ser reprimidos. — Estás cansada? Chega de andar? — perguntou o Léo, enquanto eu subia devagar atrás dele. O facto de só ter dormido algumas horas no comboio estava �nalmente a passar a fatura. — Estou bem — respondi, renitente em admitir que uma pausa seria bem-vinda. — Mas achas que podemos parar um segundo? — perguntei. — Devia tentar ligar ao Si de novo. O Léo deu-me o telemóvel dele. — Precisas de lhe dar satisfações? — Não, mas ele vai �car preocupado e a querer saber onde eu estou — disse eu, perguntando-me porque sentia necessidade de me explicar. — É o que os casais fazem um pelo outro — acrescentei. Tive pena da sua pobre namorada, se é que ele tinha uma. Não tinha falado de ninguém. — Vais dizer-lhe onde estás? — perguntou o Léo. — Claro. Porque não? Saí do caminho e sentei-me no braço de um banco que tinha o nome de alguém gravado, uma dedicatória a alguma pessoa que tinha morrido. Aquelas inscrições deixavam-se sempre deprimida. Calculei a idade da pessoa na minha cabeça: 68 anos. Demasiado jovem. Muito longe do tempo necessário para fazer tudo o que se deseja. Olhei de relance para o Léo, sabendo que ele teria algo sarcástico a dizer, se soubesse que eu estava outra vez a pensar na morte. Estava agachado, de costas encostadas ao tronco de uma árvore. Adotei uma posição em que não lhe via a cara e marquei o número do Si. Tocou três vezes antes de ele atender e o meu coração começou a acelerar porque eu não tinha a certeza de qual seria a sua disposição se, por algum milagre, atendesse o telefone. Era muito rígido em relação a prazos e queria que toda a gente os cumprisse, e eu tinha-o desiludido com a minha incapacidade de seguir instruções e de estar no lugar certo à hora certa. Já devia passar das 11 horas, pelo que ele já teria dado entrada no hotel. Provavelmente, a Catherine já o tinha posto a engomar toalhas de mesa. — Han? — disse ele, sem fôlego. — Sim, Si, sou eu. — Está tudo bem? Havia música de fundo, o tilintar de copos. — Está tudo bem. — Tenho estado tão preocupado contigo, amor. Onde estás agora? — perguntou. Era bom ouvir a voz dele. Imaginei-o sentado num banco no bar do hotel. Quase conseguia ver as linhas franzidas que ele tinha entre os olhos quando estava preocupado com alguma coisa. A forma como puxava distraidamente os cabelos quando estava ao telefone. — Paris, ainda — disse eu. Conseguia ouvir crianças a gritar algures no parque, o som carregado pelo vento vindo, provavelmente, do parque de diversões por onde tínhamos passado antes. — Céus. Isto é um pesadelo, Han. Tive de redistribuir todas as tarefas que te estavam atribuídas, quando toda a gente já estava sobrecarregada. Limpei pó imaginário das minhas calças de ganga. — Qual foi a reação da Catherine? — O que é que achas? — disse ele, com a exasperação de alguém que tivera a irmã excitadíssima a chagá-lo na última meia hora e que estava a chegar ao limite. Olhei de relance para o Léo, que estava a arrancar pedaços de erva e a enrolá-los nos dedos. — Se estivéssemos no compartimento como estava previsto, nada disto teria acontecido — disse o Si. — Por isso, em parte a culpa é minha por não ser su�cientemente organizado, não é? Devia ter insistido para que nos atribuíssem outra cabina de primeira classe. — Oh, bem — disse eu, sem o querer deixar mais nervoso. — Não podemos fazer nada sobre isso agora. Ouvia muitas vozes de fundo e o ruído de copos a bater uns nos outros. Mesas a serem postas, talvez. As coisas a serem limpas e organizadas. Todos os detalhes tinham sido cuidadosamente pensados. Era assim que a família do Si funcionava. Não faziam nada pela metade, o que sempre me intimidara um bocadinho. Quando o Si me descrevera a sua infância, parecia o tipo de vida idílico que eu só vira nos �lmes americanos, em que os protagonistas tinham pais ricos e extremosos que faziam bolachas caseiras para eles comerem quando chegassem a casa. E os amigos organizavam festas sem �m e toda a gente queria conversar ou ir para a cama com eles e havia sempre alguém que se embriagava e toda a gente saltava para a piscina. — O que andas a fazer? — perguntei. — Estou no restaurante — disse ele. — A ajudar a minha mãe na organização das mesas. Imaginei-o no restaurante a atribuir tarefas, a organizar toda a gente, a dar ordens com uma autoridade tão natural que ninguém podia deixar de obedecer. — Como é o hotel? — Espetacular. Supermoderno. Tem umas instalações de luz enormes e impressionantes a pender do teto. Vais adorar. O hotel chamava-se The Lux e era um daqueles lugares pretensiosos que habitualmente eu fazia o possível por evitar. Tinha visto fotogra�as do local no site, que era uma presença permanente no computador portátil da Catherine desde que eu a conhecera. Tudo aquilo era outro mundo, o que só servia para alimentar a minha suspeita de que a família do Si deveria pensar que ele era capaz de encontrar alguém melhor do que eu. Que uma administradora de uma zona residencial em En�eld não era propriamente o que tinham em mente para o seu adorado �lho/irmão. Ele, claro, nem se apercebia das diferenças entre nós e até já tinha sugerido que convidássemos a minha mãe e o Tony para um almoço em Berkhamsted num domingo, para que os nossos pais se pudessem conhecer. Eu não era capaz de imaginar nada pior do que passar uma tarde a fazer de conta que nos dávamos todos bem e que, provavelmente, teria como corolário a minha mãe dizer algo inapropriado sobre o Brexit. Por isso, recusara muito depressa aquela brilhante ideia, convencendo-o de que era demasiado cedo para esse tipo de coisas, mas que haveríamos de marcar alguma coisa algures no futuro (ou seja, nunca). — Como é que a tua irmã se está a aguentar? — perguntei. Dei mais uma olhada de relance na direção do Léo, que estava a tentar atirar pedras por entre as árvores até à água. — Ela é, hum, por natureza, um pouco tensa — disse o Si. — Sim. Calculoque é o que acontece à maioria das noivas. Ouvi a voz de uma mulher ao fundo. Não conseguia perceber o que estava a dizer, pelo menos não perfeitamente, mas percebia um sotaque. Algo sobre um anel, o �nal da palavra pronunciado como faziam em Manchester. Era a Alison, tinha a certeza. O Si começou a falar, mas a voz era abafada, como se ele tivesse afastado a boca do telefone de propósito. — Desculpa, Han — acabou por dizer ao voltar à linha. — Quem era? Ele hesitou. — Uma das damas de honor. Parece que a maquilhadora ainda não apareceu. — Ah, certo. E que dama de honor era, então? — Hum, uma das velhas amigas da Cath. Chama-se Alison. Talvez a tenhas conhecido na despedida de solteira. Cravei a unha do polegar no braço do banco, deixando uma marca na madeira macia, com o formato de quarto crescente. Porque é que ele não me tinha falado das mensagens dela no comboio? E �quei a pensar no que mais haveria, se me tinha ocultado aquilo. Alguns meses antes, eu tinha batido com o aspirador numa caixa de cartas escritas à mão arrumadas debaixo do lado dele da cama. Quando me pusera de gatas para me assegurar de que não as tinha estragado, �cara a olhar para elas durante uma eternidade, perguntando-me quantos anos teriam e para quem é que ele escrevia. E porque é que as tinha guardado. Mas, nos três meses desde que tínhamos ido viver juntos, não me falou delas uma única vez e, por alguma razão, eu não me atrevi a perguntar-lhe nada. — Vou ter de desligar, na verdade — disse o Si. — A minha mãe está a fazer-me sinal para ir ter com ela. — Está bem. — A que horas consegues chegar? — perguntou. — Devo chegar logo depois das cinco da tarde. — Salta para um táxi e vem ter ao hotel logo que possas, está bem? Tens a morada e isso tudo? — Sim, claro — disse eu. Só que a informação estava toda no meu telemóvel, que não tinha comigo. — Qual é o nome da rua mesmo? Ele suspirou. — É perto da Casa da Anne Frank, Hannah. O taxista saberá onde é. — Está bem — disse eu, sentindo-me pequena. — Que telemóvel é que estás a usar, já agora? — perguntou ele. Aquele era, obviamente, o momento em que eu devia falar-lhe do Léo. Não tinha propriamente nada a esconder e, se o Si não estivesse de acordo, qual era o problema? Eu já era crescidinha, já podia desiludir as pessoas. Era inevitável, na verdade. Mas perdi a coragem e menti. — Uma pessoa emprestou-me o telemóvel — disse eu, pondo a palma da mão à frente do olho. — Então ainda estás na Gare du Nord? — Estou — disse baixinho, olhando de relance para o Léo. Com os diabos, o que iria ele pensar de mim, se me ouvisse a mentir com os dentes todos? E, mais importante ainda, porque é que eu estava a fazê-lo sequer? — Está muito calmo — disse o Si. — Estou cá fora. Nas traseiras a apanhar ar fresco. — Certo. Bem, não te disperses, �ca num sítio onde haja telefones e pessoas para ajudar, se for preciso. Não cedas à tentação de sair para ir visitar Paris ou algo parecido, está bem? — Claro que não — disse eu, a pensar se ele me teria tratado sempre como uma criança sem eu eu ter dado conta. — Até logo, Han. Hesitei por um segundo. — Amo-te. — Também te amo — disse ele. O Si terminou a chamada e eu �quei onde estava por um minuto ou dois a ver um pardal a debicar algo na erva aos meus pés. Pensei na razão por que não lhe tinha dito a verdade sobre onde estava e com quem estava. Provavelmente, para evitar o inevitável sermão sobre aceitar a boleia de estranhos. Não se pode con�ar em estranhos. Não é algo que se ensina às crianças de 5 anos? E era bastante óbvio que ele também me estava a esconder coisas. De outra forma, porque é que não me tinha falado das mensagens da Alison? Se não podíamos ser sinceros um com o outro, custasse o que custasse, o que seria de nós dentro de alguns anos, se nos casássemos, depois de a fase de encantamento se esgotar? Ao perceber que não podia �car ali a amuar sem que isso atraísse a atenção sobre mim, voltei para junto do Léo. — Está tudo bem com o teu namorado? — perguntou. Eu assenti com a cabeça. — Ele não mandou uma equipa de buscas atrás de ti? — Muito engraçado. — Acho que vai voltar a chover — disse o Léo, apontando para a faixa de nuvens escuras sobre a nossa cabeça. — Vamos tentar encontrar algum abrigo. Há um café ao cimo da subida, talvez consigamos chegar lá. Tinha reparado que o tempo estava a arrefecer quando estava ao telefone, mas, entretanto, o vento tinha aumentado sem mais nem menos e caíam enormes gotas de chuva do céu. Resmunguei. — Outra vez, não. Corremos em direção a um pinheiro gigante a alguns metros de distância. Pus-me a remexer no casaco com capuz porque tinha apertado demasiado o nó. — Deixa que eu faço isso — disse o Léo, afastando levemente as minhas mãos para o lado. Ele desfez o nó, tirou-mo da cintura, pôs o tecido nos meus braços, um de cada vez, puxou o capuz para cima e fechou o fecho devagar. Durante aquele tempo todo não me olhou uma única vez nos olhos. Tinha gotículas de água nas pestanas e, não sei porquê, pensei limpá-las com o polegar. A chuva caía com força à nossa volta, e passava ruidosamente por entre as agulhas dos ramos, pelo que era como estar debaixo de uma queda de água. Por cima do ombro do Léo, reparei numa família que passava a correr, enfrentando a chuva, o guarda-chuva da mulher a virar-se ao contrário com o vento. — Estás com frio — disse ele quando a chuva começou a amainar. Eu limpei a cara com uma manga. — Um pouco — admiti, pensando na tensão que se tinha levantado subitamente entre nós. — Tens de te aquecer — disse ele com �rmeza. Acenei com a cabeça em concordância. — Há algum sítio onde possamos comer por aqui? — perguntei a tremer. — Acho que uma bebida quente poderia ajudar. — Queres ir para um café comigo? É isso que estás a dizer, Hannah? Senti-me a corar de novo e baixei a cabeça para que ele não desse por isso. — Pensei que pudesses estar de novo com fome, nada mais. Já que a comida é tão importante para ti — respondi, à procura daquele equilíbrio fácil de novo. Ele cruzou os braços e olhou-me com um sorriso presunçoso. Sabia que estava a deixar-me desconfortável e estava a apreciar cada segundo. — Mas tu estás sem dinheiro, non? — Posso tentar o meu cartão — disse, desejando não ter falado no assunto. Ele riu-se e olhou para o relógio. — Estou a meter-me contigo. Anda, eu pago-te um almoço antecipado. — Não é preciso. — Mas eu quero. — Eu depois devolvo-te o dinheiro. — Diz só que aceitas, Hannah! — disse ele, exasperado. Começou a afastar-se da sombra da árvore sem esperar pela minha resposta. Depois abriu as palmas das mãos, olhou para cima e fez um sinal com a cabeça para que eu o seguisse. — Já parou. Sei de um bom lugar. Deixei-me �car para trás alguns segundos antes de dar uma corrida para o alcançar. Capítulo 12 A mão-cheia de mesas de madeira na esplanada do restaurante estava ocupada, pelo que ambos encostámos a testa ao vidro para ver se havia mesas vagas no interior. O cheiro a sumo de limão e batatas fritas salgadas pairava no ar e eu ouvia o tilintar de talheres a bater em porcelana. — Este lugar é muito concorrido, como podes ver — disse-me. As palavras Café et Chocolat estavam gravadas a branco na janela, e ambas pareciam incrivelmente tentadoras naquele momento. Havia uma ementa escrita num quadro preto encostado à janela. Li-a e não compreendi uma única palavra. Se queria uma experiência autenticamente parisiense, estava a tê-la. — Oui! — exclamou o Léo. — Anda. Há uma mesa livre. O Léo cumprimentou o empregado como se fosse um velho amigo e fomos levados a um banco comprido encostado à parede do fundo. Atirei a mala para debaixo da mesa e deixei-me cair no assento de veludo vermelho do qual tinha uma vista quase perfeita de todo o café e do impressionante bar com cobertura de zinco no centro da sala. O Léo ocupou o lugar à minha frente e chamou imediatamente o empregado de novo. — O que é que vais querer, Hannah? — perguntou ele. — Café, por favor — disse eu, espantada por ter tomado uma decisão tão rápidaem vez da habitual procrastinação sobre se queria água ou vinho, se preferia chá ou café. A Ellie lançava-me essa provocação sempre que íamos a um bar. De acordo com ela, quando eu decidia o que queria beber, todas as outras pessoas já iam na segunda rodada. O Léo matraqueou algo e o empregado acenou com a cabeça e desapareceu atrás do bar, escrevinhando qualquer coisa num bloco branco minúsculo ao sair. Eu olhei em volta e �z uma nota mental para tirar algumas fotogra�as antes de nos irmos embora. Era o típico bistro de bairro parisiense com espelhos a cobrir a quase totalidade da parede e um chão composto por centenas de fragmentos de azulejo, todos juntos e misturados de modo a formar um padrão caleidoscópico sob os nossos pés. Da cozinha surgiam aromas deliciosos e, ao fundo, ouvia-se uma música de dança relaxante a tocar baixinho para criar ambiente. Comecei imediatamente a sentir-me descontraída. — Diz-me uma coisa que eu não saiba sobre ti, Hannah — disse o Léo. O empregado trouxe-nos as bebidas e eu peguei no meu café, deixando que o seu calor me aquecesse as mãos. Estava fascinada com a torre de copos de vinho no meio do bar. — Já te disse montes de coisas — disse eu. — Mais do que alguma vez contei a alguém que conhecia há meio dia, deixa-me que te diga. Ele recostou-se na cadeira e pôs as mãos atrás da cabeça. — É por sermos estranhos. Podemos dizer o que quisermos um ao outro e não fará diferença. Tirei o casaco com capuz molhado, desejando poder fazer o mesmo com as calças de ganga, que estavam coladas ao meu corpo como uma segunda pele. — Porque depois de hoje, nunca mais vamos voltar a ver-nos — disse eu. — Exatamente — concordou ele, a olhar para a ementa durante dois segundos antes de a deixar cair na mesa. — Então… vives em Londres. Assenti com a cabeça, em con�rmação e, tal como ele, peguei na ementa e dei-lhe uma vista de olhos. — No noroeste da cidade, uma zona chamada Kensal Rise — disse eu, enquanto tentava decidir se preferia uma omelete com batatas fritas ou uma versão pretensiosa de um croque monsieur: um croque focaccia. — É muito movimentada, mas eu adoro-a. Gosto de estar onde há multidões e luzes e trânsito e cor. Por alguma razão, sentia-me mais segura no meio do caos de Londres do que praticamente em qualquer outro lugar. O sítio onde eu cresci não era nada parecido, podia-se ir dar um passeio em volta do quarteirão e não ver uma única pessoa, o que eu sempre considerei desproporcionadamente deprimente. — És só tu e o teu namorado? — perguntou o Léo, a olhar para mim com atenção. Eu assenti com a cabeça e aclarei a garganta. — Só estamos lá há alguns meses. Tinha saudades do nosso apartamento. Ainda estava a celebrar a minha recém-descoberta maturidade, a ideia de viver com alguém e morar num lugar que não tinha nada que ver com um dormitório de estudantes. Estava completamente mobilado, mas eu acrescentei os meus pequenos toques e passei horas a folhear revistas de lifestyle e a criar mood boards com prédios de escadas de Brooklyn, com os quais o nosso apartamento, propositadamente construído à imagem da década de 1970, não tinha qualquer semelhança. — Há quanto tempo estavam juntos antes disso? — perguntou o Léo. — Antes de decidirem viver nesse apartamento? — Seis meses, mais ou menos. Às vezes, embora eu nunca o admitisse perante o Si, parecia que o nosso relacionamento estava a avançar ao dobro da velocidade dos das outras pessoas. Só estávamos a namorar há alguns meses quando ele sugerira que fôssemos viver juntos. E escolhera o local menos romântico para mo propor: o patamar das escadas da casa da minha mãe e do Tony. Tinha ido ajudá-lo a procurar uma cadeira extra, numa noite em que tínhamos ido jantar com eles. Ele pegara nas minhas mãos no patamar e agarrara-as com sinceridade. — Há algo que tenho vindo a pensar perguntar-te — dissera baixinho, de olhos a brilhar. Eu sorrira animadamente ao vê-lo com um ar tão nervoso. — Continua. Ele tossira e respirara fundo. — Queria perguntar-te se queres ir morar comigo. Eu engolira em seco. — Como assim? — O prazo da renovação do contrato de arrendamento da minha casa está a aproximar-se — dissera ele, mantendo a voz baixa. — E eu pensei para mim mesmo: já passamos a maior parte das noites juntos. Porque não dar o próximo passo e procurarmos um apartamento para os dois? Eu não conseguia pensar com clareza. Não estava nada à espera daquela pergunta. — Não é um bocado cedo? — dissera, hesitante, sem querer magoá-lo. O Si apertara os meus dedos. — Será? Não há regras, Han. Quem é que diz que temos de fazer o que toda a gente faz? Eu contorcera o rosto, tentando encontrar as palavras para exprimir o que sentia. Sentia-me assustada, isso era certo. A perder o controlo, também. As coisas não costumavam funcionar assim comigo. As pessoas amavam-me e depois deixavam-me. Fora sempre assim. E, de repente, ali estava o Si a mostrar-me que encarava a nossa relação com seriedade, que via um futuro para nós os dois. Uma parte de mim tinha di�culdade em aceitar que ele estivesse a falar a sério. — Ainda estamos a conhecer-nos um ao outro, não é? — explicara. — Não vais �car aborrecido se tiveres de me ver todos os dias? Quando descobrires todos os meus hábitos. Que sou muito desarrumada. Que deixo a loiça suja no lava-loiça. Isso tudo. Ele rira-se e beijara-me a testa com força. — Eu adoro tudo em ti, Han, as partes desarrumadas e tudo. Eu roçara a ponta do meu nariz no dele. — Tens a certeza? — sussurrara. — Sim, tenho a certeza. Então, o que é que dizes? — perguntara ele, olhando-me nos olhos com esperança. Eu tinha hesitado, ainda com dúvidas. — Digo que sim. O empregado dirigiu-se, buliçoso, à nossa mesa para anotar o pedido. Eu escolhi o croque presunçoso, e o Léo decidiu-se por uma espécie de combinação de brioche com queijo de cabra e mais alguns ingredientes de que eu nunca ouvira falar, pelo menos em francês. — Seis meses é muito rápido — disse o Léo depois de o empregado ter dado meia-volta e voltado para a cozinha. — Porque é que estavas com tanta pressa? Baixei os olhos para as unhas, à procura de verniz estalado. — Quando sabemos, sabemos. Ele lançou-me um olhar cínico e pegou na cerveja. — Certo. Tenho a certeza de que o vi a abanar a cabeça para si próprio. Quem era ele para questionar a minha relação com o Si? Era o mais certo, e eu sabia-o. E, seguramente, não precisava que o Léo me semeasse dúvidas na cabeça. Porque a verdade era que eu sentia que as coisas tinham mudado um pouco entre nós nos últimos tempos. O Si parecia não estar em si nas semanas mais recentes e estava especialmente suscetível sempre que se falava no trabalho dele, embora se recusasse a falar sobre o assunto, claro. Chegara a fazê-lo em frente do John e da Ellie na semana antes de viajarmos para Veneza. — Como está o trabalho? — perguntara o John. Ele e a Ellie estavam lá em casa, encostados à bancada a ver o Si a cozinhar, como faziam sempre. — O mesmo de sempre — dissera o Si tranquilamente, despejando uma lata de tomate na frigideira. — O que aconteceu ao idiota do teu novo chefe? O Si estremecera. — Continua um idiota. — Ele é horrível — dissera eu ao John. — O Si trabalhou até tarde quase todas as noites esta semana, não foi, Si? Por causa das exigências ridículas do homem. Metade das vezes chega a casa exausto — disse eu à Ellie. — Sim, pronto, Hannah — dissera o Si, virando-se para olhar para mim, de rosto crispado. — Não precisas de insistir no assunto. Eu tinha olhado para a Ellie, que arqueara as sobrancelhas. O Si deixara de mexer na frigideira, tirara o prosecco do frigorí�co e enchera cada um dos nossos copos, embora ainda estivessem meio cheios. Enchera o meu copo um pouco demais e começaram a cair borbulhas cremosas em toda a mesa. — Que merda — resmungara, pegando no rolo de papel de cozinha e limpando a mesa. — Tenho estado a pensar — dissera o John, que não era a pessoa mais intuitiva que eu conhecia e, portanto, aparentemente não se tinha apercebido da alteração de atmosferana cozinha. — Acho que vou seguir o teu conselho e ligar para o departamento de recursos humanos da tua empresa por causa daquele cargo de diretor de marketing de que me falaste. Posso não ter experiência su�ciente. Podem rir-se de mim e mandar-me embora da sala de entrevistas. Mas se não tentar, nunca irei saber, não é? O Si virara-se para a tábua de cortar e partira algumas azeitonas em quartos. — Sabes que mais, amigo? Parece que a�nal esse cargo não vai estar disponível — dissera ele, pousando um pano de cozinha no ombro e olhando o John nos olhos. — Detesto ter-te passado a ideia errada, mas parece que o tipo vai �car onde está. — A sério? — dissera o John, com ar surpreendido. — Porque tinhas dito… — Se fosse a ti, tirava essa ideia da cabeça e procurava outra coisa — dissera o Si, pondo um ponto �nal parágrafo na conversa. Até o John me tinha olhado com estranheza dessa vez. O empregado trouxe-nos a comida, que, no meu caso, era um pedaço volumoso de pão torrado deliciosamente coberto por uma camada de �ambre e queijo borbulhante e meloso acompanhado de uma salada mista fresca regada com azeite. Começou imediatamente a crescer-me água na boca. — Isto tem ótimo aspeto — disse eu. O Léo pegou no garfo. — Talvez não gostes que eu diga que acho que foram viver juntos muito depressa. — Não há problema, estou habituada a que as pessoas façam juízos de valor sobre o assunto — disse eu, antes de começar a almoçar. — Quase toda a gente achou que era cedo demais. Já ouvi todos os «Porque é que não esperas?», «Qual é a pressa?», «Aproveitem e divirtam-se, saiam juntos enquanto podem!». Quer dizer, toda a gente exceto a minha mãe, que quase explodiu de alegria. — Porque é que a tua mãe �cou tão contente com isso? — perguntou o Léo, levando uma enorme garfada de abacate e rúcula à boca e mastigando com entusiasmo. — Ela acha que eu sou um pouco falhada — disse eu, bebendo um trago de café. — A minha carreira nunca chegou a descolar, por exemplo. Os namorados que eu tive eram todos uns inúteis. Acho que ela já tinha desistido da ideia de que eu era capaz de fazer alguma coisa da minha vida. O Léo pousou o garfo no prato e limpou a boca ao guardanapo. — Em que sentido é que ires viver com o teu namorado é fazeres alguma coisa da vida? — perguntou, com uma expressão verdadeiramente confusa. Não era óbvio? — Bem, é uma questão de nos tornarmos adultos, não é? É o que é habitual fazer-se. Encontramos alguém, apaixonamo-nos e começamos a fazer planos para o futuro. É o que as pessoas esperam, não é? O Léo parecia cético. — Então devemos todos seguir o que a sociedade espera de nós, é isso que queres dizer? Céus, estava a sair tudo ao contrário. — O Si tem um bom emprego — disse eu, sentindo que tinha de me justi�car, mas com a pequena suspeita de que estava a tornar as coisas dez vezes piores. — Ele ganha três vezes mais do que eu. A verdade é que, sem ele, eu estaria a arrendar um quartinho numa casa partilhada velha num bairro duvidoso de Green Lanes. O Léo esfregou a têmpora, como se não acreditasse no que estava a ouvir. — Tu consideras-te um sucesso ou um fracasso com base no tipo de emprego do teu namorado? Sinceramente, aquele tipo era inacreditável. Por alguma razão, parecia achar-se no direito de comentar todas as decisões que eu tinha tomado na minha vida. — Não foi isso que eu disse — contestei. Na verdade, porém, até tinha dito mais ou menos aquilo, e eu estava a sentir-me estúpida, porque não era, de todo, o que eu pensava. Não me interessava o dinheiro do Si. A questão era que sabia que à minha mãe interessava. Ficámos sentados em silêncio durante um minuto ou dois, o primeiro verdadeiro silêncio entre nós. O café estava bastante movimentado, cheio de clientes locais, que tinham ido tomar café e aproveitar uma pausa, e belas mamãs parisienses. Tinham um ar muito feliz e descontraído, com os seus �lhos lindíssimos sem os dentes da frente, a darem-lhes papa de abóbora-manteiga de frascos de vidro e a limparem-lhes a boca com panos de musselina imaculadamente brancos. Tudo aquilo era outro mundo, um mundo para o qual eu ainda não me sentia bem preparada. Deveria estar, quando já tinha 30 anos? Se prestasse atenção ao que lia na imprensa sobre a diminuição drástica da fertilidade a partir dos 35 anos, deveria, por direito próprio, estar a sentir-me ansiosa por ter um �lho, ou pelo menos a habituar- me à ideia, mas ainda não estava. Era algo sobre o qual o Si falava muito. Todos os colegas dele no trabalho eram casados e tinham �lhos, dizia ele, e o Si queria o mesmo. E depressa. Dissera-me que gostava de ter três �lhos: dois rapazes e uma rapariga. Eu rira-me daquela fantasia idílica de classe média que ele tinha. Onde iríamos pôr três crianças num apartamento arrendado com um quarto? E, mais importante ainda, estaria eu com vontade de passar os 25 anos seguintes da minha vida a criar �lhos quando ainda havia tanta coisa que eu queria para mim? Ele nunca insistiu e eu tinha a certeza de que me sentiria de outra forma no futuro, mas, até lá, era mais uma coisa em que não estávamos em sintonia: ele estava pronto para formar uma família e eu não. E, sentada num café em Paris, a milhas de distância do Si, parecia- me uma divergência de monta. O Léo tocou no meu pé debaixo da mesa. — Estás muito calada, Hannah. Falei demais? — Percebeste — disse eu, mostrando claramente que ele tinha mesmo tocado num ponto sensível. — Às vezes digo o que me vai na cabeça e não penso se é correto dizê-lo em voz alta ou não. Se posso incomodar alguém com as minhas opiniões. Eu olhei-o diretamente nos olhos. — Isso é um pedido de desculpa? — Não propriamente — disse ele, rodando o brioche pelo prato para absorver o azeite. — Acredito que é melhor dizer a verdade, mesmo quando é difícil. Mesmo quando alguém não a quer ouvir. Pousei os braços na mesa e inclinei-me para a frente. — Então, estás a querer dizer-me que nunca �ngiste gostar de alguém de quem não gostas? Ou que nunca mentiste para não magoar a outra pessoa? Ou porque tinhas medo das consequências? — Nunca. Tu sim? — Sim. Estou sempre a fazer isso — admiti, com um sorriso débil. — Estás? Bebi mais um trago de café. — Então, parto do princípio de que não te importas que as pessoas sejam honestas contigo também — disse eu. Ele abanou a cabeça. — Claro que não. Eu gosto disso. Semicerrei os olhos. — Gostarás mesmo? O Léo sorriu para mim. — Vamos experimentar. — O que queres dizer com isso? — Continuas a achar que eu sou mal-educado, Hannah? — Completamente — disse eu. E depois também sorri. — Viste isto? Acabei de te dizer exatamente o que pensava sobre ti. Ele assentiu. — Vês? Não é assim tão difícil, na verdade. Vi outros clientes entrarem e saírem, a maior parte deles moradores do bairro, pela forma como agiam, um com um cão minúsculo e peludo debaixo do braço e um casal de namorados ridiculamente lindos, cada um caído sobre o outro, como se se tivessem realmente transformado num único humano extraordinariamente agradável do ponto de vista estético. — E como é que é, então, esse lugar que têm juntos e para o qual mal podias esperar por te mudar? — perguntou o Léo, esmagando os restos do queijo de cabra com o garfo. — Temos um apartamento de duas assoalhadas — disse eu, contente por estar de volta em território familiar. — É pequeno, mas tem uma varanda, que eu adoro. Qualquer espaço exterior em Londres é um tremendo bónus, se queres saber. Tínhamos as melhores vistas dos jardins traseiros das outras pessoas, dos arranha-céus e das lojas do outro lado da rua que pareciam nunca fechar, os toldos coloridos às riscas projetados em permanência para a rua. Adorava �car lá sentada a ver o mundo passar, a ouvir os sons da cidade, as buzinas e as sirenes da polícia e os aviões a jato que se preparavam para aterrar em Heathrow, ou a esporádica discussão à porta do pub duvidoso a dois quarteirões de distância. — Às vezes �co lá sentada a beber chá e a ver as pessoas lá em baixo na rua. A tentar perceber o que estão a fazer,com quem poderão encontrar-se. Pode ver-se todo o tipo de coisas lá de cima. — Como por exemplo? — As pessoas a conversar com os vizinhos. Uns tipos embriagados a cambalear do pub para casa. Discussões. — Discussões sobre quê? — perguntou ele. — Não dá para perceber. Ouvem-se muitos gritos e veem-se muitos dedos em riste e, logo a seguir, alguém chora e começam todos a abraçar-se. De vez em quando, há uma discussão séria. Detesto quando isso acontece e vejo as pessoas gritarem umas com as outras e dizerem coisas que não querem dizer. — Talvez queiram — disse ele. Deu um gole na cerveja e deixou um rasto de espuma no lábio superior. Vi-o a lambê-la. — Não sei. Quando digo coisas zangada, arrependo-me sempre — disse eu. Ele franziu o sobrolho. — Porquê? — Acho que tenho medo de ter ido longe demais. Que desistam de mim por completo. Que se vão embora. O Léo afastou o prato para o lado e olhou em volta, a �m de chamar o empregado para levantar a mesa. — O que é que te faz pensar que as pessoas se vão embora? — perguntou ele. — Bem, foi o que o meu pai fez. Ele inclinou a cabeça para o lado. — Como assim? — Ele deixou-nos, a mim e à minha mãe. — Quando tinhas que idade? — Sete anos. — Isso é duro — disse ele. — Mas foi a tua mãe quem ele deixou, não a ti, Hannah. Eu ainda me lembrava de pequenos detalhes sobre o dia em que ele se foi embora. O meu pai estava a fazer a sua velha mala coçada e eu corri para o quarto dele e saltei-lhe para as costas, colocando as mãos em volta do pescoço dele e as pernas em redor da cintura. Supliquei-lhe que não fosse. «Eu vou portar-me bem», disse-lhe. «Não vou voltar a ser marota.» E depois, ao levantar a cabeça, em pânico, vi a minha mãe a chorar silenciosamente a um canto, assoando o nariz num lenço empapado. — Então os teus pais divorciaram-se? — perguntou o Léo. — Sim, ao �m de algum tempo. — És próxima da tua mãe? Abanei a cabeça. — Nem por isso. Não falamos muito. Pelo menos, sobre coisas importantes. — Foi difícil para vocês as duas quando o teu pai se foi embora? Con�rmei com a cabeça. Habitualmente, falar sobre o meu pai era algo que eu evitava a todo o custo. Mas, estranhamente, com o Léo sentado à minha frente, as palavras não me �cavam presas na garganta como era costume. — Uma vez por mês, ele prometia que me levaria a algum lado. A almoçar, ao parque ou outra coisa qualquer. Eu �cava lá à janela, à espera dele, toda aperaltada. Sempre que um homem aparecia ao dobrar da esquina da nossa rua, o meu coração sobressaltava-se no peito. Via-os a aproximar-se e fazia �gas, em bicos de pés e a esticar o pescoço para ver melhor, mas nunca era ele. O Léo terminou a cerveja, inclinando a cabeça para trás para beber os últimos resquícios. Voltou a pousar o copo na mesa. — Ele não aparecia? — Nunca. Não apareceu uma única vez. Às vezes, eu �cava lá durante horas, a rondar a janela como uma idiota. Depois, a minha mãe acabava por me dizer para esquecer, para ir fazer outra coisa. Na verdade, ela até �cava muito satisfeita, como se assim mostrasse que era melhor do que ele. Como se �casse satisfeita por �nalmente ele revelar quem realmente era. — Achas mesmo que era isso que ela pensava? — perguntou o Léo, aparentemente com dúvidas. Eu passei o dedo sobre o logótipo �oral e arrebicado da capa do menu. — Sim, acho que sim. Um empregado veio levantar a mesa, reunindo as migalhas e limpando-as e�cientemente para a mão livre. — Queres comer mais alguma coisa, Hannah? — perguntou o Léo. — Um copo de vinho? Abanei a cabeça. — Estou bem. — Tens di�culdade em falar sobre o teu pai? — quis saber o Léo depois de o empregado sair. Encolhi os ombros. — Não há muito a dizer, na verdade. Não o vejo há anos. — Nunca tentaste contactá-lo? Examinei uma madeixa do meu cabelo, esticando-a para a frente da cara. — Uma vez. — Queres falar-me sobre isso? Ele tinha uns olhos adoráveis, pensei, em forma de amêndoa e tão escuros que não conseguia distinguir-lhe as pupilas àquela luz. Abanei a cabeça. — Mas obrigada. Esfreguei os braços para os aquecer, enquanto ouvia a batida melódica da música. — Bem, agora é a tua vez — disse eu. Ele recostou-se e cruzou os braços. — A minha vez de quê? — De me dizeres alguma coisa que eu não saiba sobre ti. O Léo riu-se, evasivo. — Isso não é muito interessante. — Deixa-me ser eu a avaliar isso — disse eu, elevando a tensão e tamborilando com os dedos no queixo. — Ora… o que é que eu quero saber… Ele agitou-se no assento. — Sabes que mais? Vou ter de entrar a matar — disse eu. — Isso parece ameaçador — disse ele, pedindo a conta a um empregado que estava a passar. — L’addition, s’il vous plaît? — Já falámos sobre as minhas relações, mas e as tuas? Ele abanou a cabeça. — O que é que têm? — Estás a sair com alguém? — perguntei. Ele passou a mão pelo cabelo e esfregou a parte de trás da cabeça. — Neste momento não — respondeu. — Porquê? — Porque estou ocupado com o meu trabalho. Os meus amigos. Não tenho tempo para uma relação. Eu ri-me. — Estou a ver. A viver o estereótipo parisiense, então. — Não é isso, Hannah. — O que é, então? — É mais complicado do que tu pensas. Bebi o resto do meu café e pousei a chávena no pires com estrondo. — Bem, nem sei o que pensar, não é? — As coisas são como são, Hannah — disse ele. — Para mim, há coisas mais importantes na vida do que estar na relação «perfeita». Usou aspas imaginárias para marcar a sua posição. — Não gostas mesmo de falar de ti, pois não? — disse eu, a perscrutar-lhe os olhos e a tentar perceber o que se estava a passar. — Disseste que somos desconhecidos. Que não importa o que dizemos um ao outro porque só nos conheceremos durante esta manhã. Então porque não te abres comigo? — Eu não me aproximo das pessoas dessa forma — disse ele, empurrando a cadeira da mesa e levantando-se. — É mais fácil assim. Fiquei a olhar para ele a atravessar o restaurante na direção da casa de banho, serpenteando por entre as mesas, a t-shirt a subir e a revelar uma faixa de pele morena das costas. Apesar de toda aquela aspereza e má atitude, eu começava a pensar que, no caso dele, as aparências iludiam. Capítulo 13 Quando chegámos de volta à moto, a minha roupa tinha secado um pouco, mas eu continuava a sentir-me completamente encardida e molhada. Sentia falta da minha roupa, sentia falta da minha maquilhagem e, embora tivesse arranjado o cabelo da melhor maneira possível na casa de banho do café, sentia-me longe do meu melhor. Vira algumas pessoas a olhar para mim à medida que caminhávamos e convencera-me de que era porque estavam a pensar no que alguém com o aspeto do Léo estava a fazer com alguém como eu. Pensara sobre o assunto, dissera a mim mesma que provavelmente não era nada disso que estavam a pensar, mas a sensação tinha-se mantido. O Léo sugerira que fôssemos a casa de uma amiga dele, uma rapariga chamada Sylvie que tinha um apartamento ali mesmo no Canal Saint Martin. Ao que parece, a moto que ele pedira emprestada era do namorado dela e ele tinha de a devolver. Eu insisti que precisava de voltar para a estação, que era perfeitamente capaz de encontrar o caminho de regresso à Gare du Nord, mas, como sempre, ele soube exatamente o que dizer para me convencer. Disse que podíamos secar-nos antes de voltarmos para o comboio, que eu poderia vestir alguma roupa da amiga. A oferta era demasiado tentadora para recusar, já que estava a usar umas calças de ganga que cheiravam como um cão que tinha estado a nadar numa poça de água salobra, e ele prometera que íamos �car apenas alguns minutos. Perguntei-me, porém, se os amigos dele eram todos tão generosos como ele e se ela também estaria preparada para entregar os seus bens a uma completa estranha. Pensei que talvez não estivesse. A porta do apartamento da Sylvie estava ensanduichada entre uma loja de cerâmica e uma fromagerie. Ela destrancou a porta pelo intercomunicador e nós subimos as escadas até ao segundo andar. Quando chegámos ao patamar, ela estava à porta, o epítome da perfeição estética, uma sósia da ClémencePoésy vestida com calças de ganga muito justas e uma camisola cinzento-clara de aspeto caro, sem maquilhagem, o cabelo preso num coque desordenado, como uma bailarina em dia de folga. Era tudo o que eu desejava ser. A Sylvie e o Léo cumprimentaram-se com quatro beijos em bochechas alternadas (eu já tinha reparado que aquele ritual dos parisienses era muito demorado) e depois encetaram uma conversa em francês puro e duro. Ele fazia um aceno de cabeça na minha direção de vez em quando e a Sylvie olhava para mim com uma espécie de suspeita indiferente, como se não con�asse em mim, mas também como se não quisesse saber quem eu era. Porque haveria eu, uma rapariga britânica com cabelo encaracolado e suja de lama, de ter algum tipo de relevância na vida aparentemente perfeita que ela tinha? — Anda, Hannah — disse o Léo, chamando-me para dentro. Tirei os sapatos e dobrei-me para limpar as plantas dos pés com um lenço amarrotado que tinha encontrado no fundo da minha mala. Era um daqueles apartamentos que parecia uma casa de exposição, como uma peça de arte em que não podíamos deixar uma mancha de terra, sob pena de sermos linchados. — Olá — disse eu, acenando para a Sylvie de uma forma embaraçosamente infantil. Seja como for, ela ignorou-me totalmente e preferiu continuar a falar com o Léo como se eu não estivesse lá, usando palavras que eu não tinha esperança de compreender. Segui-os até à sala, uma maravilha minimalista com piso em parquet e janelas francesas. Fosse qual fosse a pro�ssão dela (modelo, provavelmente, ou algo igualmente glamoroso), era óbvio que era bem-sucedida, porque o apartamento era enorme e luminoso e estava num local inacreditável com vista para as boutiques e os restaurantes no cais. Por entre os castanheiros deliciosamente frondosos que criavam uma belíssima cobertura que proporcionava sombra às centenas de pessoas que andavam de um lado para o outro de ambas as margens do canal, via-se a fachada verde-azulada e os guarda-sóis azuis do Hotel du Nord, acerca do qual eu tinha quase a certeza que tinha havido um �lme. — A Sylvie vai dar-te alguma roupa — disse o Léo por cima do ombro, desaparecendo para outra divisão da casa. Eu abri o fecho do casaco com capuz e pendurei-o frouxamente no meu braço. — Tens um apartamento muito bonito, Sylvie — disse eu, desejando ter-me lembrado de algo mais original para dizer. Era verdade, porém. Os detalhes eram perfeitos: a original almofada com uma folha gravada pousada na cadeira de braços de veludo cor de mostarda, as imagens a preto-e-branco emolduradas da Sylvie a posar com o namorado. A pilha de revistas em cima da mesa: American Vogue, Vanity Fair, W. O piano vertical preto e reluzente com pautas musicais colocadas cuidadosamente por cima. Queria tirar algumas fotogra�as, alguns grandes planos da luz a incidir na fruteira de cobre envernizado ou da barra no canto com roupa pendurada e organizada com um arco-íris: dos brancos e pastéis da extremidade mais distante às cores mais vivas da extremidade mais próxima de mim. — Merci, Hannah — disse ela, a limpar com o dedo o pó imaginário de uma estante de livros, para depois levitar em direção à cozinha. O Léo reapareceu com uma roupa totalmente diferente: calças de ganga azul-escuras com uma t-shirt cinzento-clara e sem meias. — Esta roupa é do namorado da Sylvie, o Hugo — disse o Léo, ao ver o meu olhar de perplexidade. — Por sorte, usamos o mesmo tamanho. Deixou-se cair no sofá e pousou os pés na mesa de centro. — Senta-te — disse-me, batendo no assento ao lado dele. — Relaxa. Eu não podia relaxar. Sentei-me constrangida ao lado dele. A Sylvie voltou com um tabuleiro retro com um bule com algo quente e fumegante e três chávenas e pires gigantes. Ela andava com os pés descalços no chão, mostrando as unhas dos pés tratadas na perfeição e pintadas da cor de ameixa. — Queres chá, Hannah? — perguntou. Assenti. — Sim. Obrigada. Ela encheu cada uma das nossas chávenas. Não me atrevi a pedir leite e, em vez disso, coloquei uma rodela de limão em cima. — É a tua primeira vez em Paris? — perguntou, com ar aborrecido ainda antes de eu pensar em responder. — Já estive cá uma vez antes — disse eu. Seria mal-educado não responder, embora eu soubesse que ela não podia estar menos interessada no que eu dissesse. — Há muitos anos. — Sucre? — perguntou a Sylvie, oferecendo-me um delicado açucareiro em porcelana com açúcar amarelo. Abanei a cabeça. — Não, obrigada. Bebi um trago de chá demasiado cedo e queimei os lábios, o que me levou lágrimas aos olhos. Pousei a chávena a pestanejar freneticamente e limpei o canto dos olhos com as pontas dos dedos, esperando que eles não tivessem reparado. — Então como é que vocês se conheceram? — perguntei, olhando para um e depois para o outro. — O Hugo e eu andámos na escola de música juntos — contou o Léo. — É um músico brilhante, oui, Sylvie? A Sylvie quase sorriu. — Ele toca saxofone — disse-me ela. — Está numa banda de jazz muito conhecida aqui em Paris. O Léo pôs as mãos atrás da cabeça, como se estivesse a bronzear-se na praia. Reparei que tinha os pés morenos, tal como o resto do corpo. — Acabaram de assinar um acordo para gravarem um álbum com uma das maiores editoras de França este mês — disse ele. Dava para perceber que o Léo estava impressionado, mas a tentar não dar demasiada importância ao assunto. — Deves estar muito orgulhosa dele — disse eu, virando-me para a Sylvie. Ela encolheu os ombros. O Léo riu-se. — Esta é a forma de a Sylvie dizer que sim, está muito orgulhosa. — Ah, bom — disse eu, �ngindo perceber porque é que ela não podia limitar-se a dizê-lo. — Também não te estás a sair nada mal, não é, Léo? — disse a Sylvie. — A sério? — disse eu, mais espevitada e perguntando-me porque é que ele mostrava tanta relutância em falar sobre o seu trabalho, se as coisas estavam a correr tão bem. O Léo não pareceu muito satisfeito e disso algo à Sylvie em francês. Eu olhei para ele de rosto franzido, irritada por ele o ter feito de propósito para que eu não percebesse. — Queres vir ver o que tenho no meu roupeiro? — disse a Sylvie. — Qual é o teu tamanho, Hannah? — Um 40 — disse eu. — Às vezes 38 na parte de cima. — Anda, então — disse ela. Saltei do sofá e segui-a, determinada a afastar as ideias negativas que estavam a ameaçar in�ltrar-se no fundo do meu espírito. Pronto, e qual era o problema de ela usar pelo menos dois tamanhos menos do que eu e ser cerca de dez centímetros mais alta? Em geral, eu estava contente com o aspeto do meu corpo. Havia muito tempo que me tinha conformado com o que era e com o que não seria: a minha barriga nunca seria lisa, nunca iria haver um espaço entre as minhas coxas e nada disso era problema. Mas havia algo na Sylvie que trazia de volta todas as inseguranças que eu tinha quando era mais nova e nunca me sentia su�cientemente boa, pois queria ser como as raparigas pálidas, magras e populares que os rapazes que eu conhecia pareciam preferir. O quarto da Sylvie estava inundado de cor, da pop art pendurada mais ou menos ao acaso nas paredes ao tapete roxo- escuro, passando pela cadeira de braços de veludo vermelho. A cama estava desfeita, como se ela tivesse acabado de sair de baixo dos cobertores depois de um encontro romântico com o seu amante músico. — Bonito quarto — disse eu. Ela abriu as portas de um roupeiro de madeira antigo e começou a remexer nos cabides com uma intensidade assustadora. — O que é que queres vestir? Um vestido? Umas calças de ganga? — Olhou de relance para mim. — Non. As minhas calças são demasiado pequenas para ti. Devo ter algumas saias mais elásticas aqui. Fez um movimento circular em volta da cintura. — Ótimo — disse eu, tentando não me sentir desalentada. Atirou uma minissaia com elástico e uma t-shirt branca gigante na minha direção. — O Léo disse-me que se conheceram no comboio — disse a Sylvie, guardando de novo no roupeiro as peças que em que eu nunca poderia en�ar-me. — Sim — disse eu, acariciando a etiqueta de cetim na parte de dentro dagola da t-shirt. Era da Sandro, uma linha de roupa francesa so�sticada que eu nunca tinha feito mais do que namorar numa montra porque não gostava de me torturar ao experimentar roupa que não podia pagar. Tinha ido ao site uma vez e até um par de meias estava acima do meu orçamento. — Vocês os dois parecem muito... Como se diz? Confortáveis — disse a Sylvie, enquanto dobrava um par de calças de tom anil e as pousava numa prateleira cheia de outras calças minúsculas e justas. — Nem por isso — disse eu, encostando-me ao pé da cama. — Andámos às turras o dia inteiro. Acho que ele só se foi mantendo ao meu lado porque se sentiria culpado se me deixasse na Gare du Nord depois de eu ter caído sobre o raio da mala dele. A Sylvie virou-se para olhar para mim e assentiu com cumplicidade. — Ele sentiu-se responsável por ti. Ele é assim. Ela deslizou até à mesinha de cabeceira, onde endireitou outra fotogra�a deslumbrante dela com o Hugo, desta vez na praia, os dois sentados de pernas cruzadas debaixo de uma palmeira. Naquela fotogra�a, a Sylvie até estava a sorrir. — Precisas de mais alguma coisa? — perguntou, dirigindo-se à cómoda elegantemente coçada e abrindo a gaveta de cima. — Queres roupa interior. — Hum… — Toma — disse ela, lançando um par de cuecas branquíssimas na minha direção. — Não te preocupes, não as usei. Perguntei-me que tipo de pessoa tinha uma gaveta cheia de cuecas que não usava. Eu tinha sorte se encontrasse um par limpo com o elástico intacto. — Vou deixar-te sozinha para te vestires. Há coisas na casa de banho: sabão, perfume e maquilhagem. Também podes usar uma toalha que está lá, a azul. Pega no que precisares. Eu anuí. — Obrigada, Sylvie, �co muito agradecida — disse-lhe quando ela já ia a sair do quarto com ar de enfado. Pensava que o Léo era uma pessoa difícil, mas ela andava amuada de um lado para o outro como se estivesse constantemente à beira de ter um tremendo colapso. Como se bastasse que alguém dissesse as palavras erradas ou até que olhasse para ela de forma errada. Deve haver muitas vantagens em ser bonita, mas eu imaginava que poder ter um comportamento repreensível sem sofrer nenhuma consequência era uma delas. Fui até à casa de banho, onde a enorme coleção de produtos da Sylvie estava organizada engenhosamente em volta do lavatório. Com cuidado para não derrubar nada, olhei para os rótulos a tentar perceber o que era o quê. Lavei-me rapidamente. Nunca tinha apreciado tanto a sensação da água quente com sabão no rosto. Depois remexi no nécessaire da Sylvie e usei alguma da sua maquilhagem. A base dela era demasiado pálida para mim, mas o pó de arroz servia. Fiquei felicíssima por encontrar um frasco de loção de desembaraçar o cabelo que parecia ter custado uma fortuna e usei-o à discrição para dar mais de�nição aos meus caracóis, puxando-os da parte da frente para longe do rosto, de modo que o cabelo �casse meio para cima e meio para baixo. Verti pasta de dentes para o dedo e esfreguei os dentes. Depois vesti-me com a roupa que a Sylvie tinha escolhido para mim e atei o casaco com capuz à volta da cintura, porque já me habituara a usá-lo e pensei que poderia precisar dele mais tarde, quando o tempo voltasse inevitavelmente a �car frio. Olhei para mim ao espelho autoportante de corpo inteiro no fundo da cama, aliviada por estar com um aspeto semidecente pela primeira vez desde que saíra de Veneza. Antes de ir à procura do Léo, espalhei a Diptyque Eau des Sens da Sylvie no meu corpo, deixando um rasto de laranja e pachuli no quarto atrás de mim. Não os vi imediatamente, mas ouvi alguém a tocar piano: uma música lenta e romântica que eu não conhecia. Segui o som até à sala da Sylvie e detive-me à porta quando vi o Léo sentado ao piano. Estava dobrado sobre as teclas, de costas viradas para mim, os cotovelos a subir e a descer quando ele passava de um registo mais baixo para um mais alto. Quando ele me disse que tocava piano, não imaginei que fosse tão bom. Como podia um tipo tão insensível produzir um som tão delicado e bonito como aquele? Encostei-me à ombreira da porta e fechei os olhos para apreciar a música, enquanto me perguntava porque é que ele não me tinha dito que era tão talentoso. O Léo terminou a música numa sequência de notas primorosa que, na verdade, me soava ligeiramente familiar, e �cou com as mãos paradas nas teclas antes de girar sobre o banco. Quase saltou quando me viu. — Raios, Hannah. Pensei que ainda estavas a trocar de roupa. Eu encolhi os ombros. — És muito bom — disse eu, renitente em afagar-lhe ainda mais o ego, mas sentindo necessidade de dizer alguma coisa. Como poderia deixar de o fazer? Ele fechou a tampa do teclado e pulou do assento. — Que música era essa que estavas a tocar? — perguntei. — Tenho a sensação de que já a ouvi antes. Ele atirou-se para o sofá, recusando-se a olhar para mim. — É um tema que eu compus. — Conta-lhe mais, Léo — disse a Sylvie, aparecendo na sala e sentando-se de perna cruzada na primorosa chaise-longue azul- ciano. Parecia toda graciosa e compacta, como um gato enrolado. — É para o projeto em que estou a trabalhar em Amesterdão — disse ele, �ngindo que havia algo no telemóvel a que precisava de dar atenção imediata. — Ele escreveu uma canção para uma cantora pop holandesa que está agora a aparecer com muito sucesso — disse a Sylvie, intervindo. — E a música que ouviste foi usada como sample na canção. Foi então que me apercebi de quando a tinha ouvido. — Era o que estavas a ouvir no comboio, não era? — perguntei ao Léo, que estava com o ar mais carregado que eu lhe vira. — A música de dança terrível, penso que foi assim que te referiste a ela — disse ele, olhando de relance para mim. Eu �z um esgar. — Desculpa. Eu só ouvia o baixo e, em minha defesa, estava tão cansada que o mais ligeiro barulho me teria irritado. — Não, Hannah. Tens razão. Terrível é a palavra certa para ela. — Seja como for, não percebo nada de música — acrescentei, olhando, nervosa, para a Sylvie, que começou a falar em francês com ele outra vez e depois, como que lembrando-se de que eu estava lá, mudou de novo para inglês. — A decisão não é daquela rapariga tonta, é da editora — estava ela a dizer. — Ela é uma adolescente, Léo. Não tem noção das coisas. Aquilo era demasiado intrigante. Tinha de saber de que é que eles estavam a falar. — O que se passa? — perguntei o mais despreocupadamente que fui capaz. O Léo fez um gesto evasivo com a mão. — Eles detestam-na, Hannah, é só isso. A Sylvie revirou os olhos e olhou para mim. — Eles não a odeiam. A estrela pop, que é uma fedelha, cantou a canção do Léo na televisão em Amesterdão e achou que não correu bem. A editora pediu ao Léo que �zesse algumas pequenas alterações, foi só isso. — E a reunião que ias ter era sobre isso? — perguntei. — Exatamente. Agora falhei a reunião e tenho de ir diretamente para o concerto da miúda. — Talvez seja uma daquelas canções que crescem em nós a cada audição — sugeri, com muito medo de estar a meter a pata na poça e ainda a sentir-me tremendamente mal por ter dito que o trabalho dele era terrível. — Aposto que vai acabar por adorá-la. — Podemos falar de outra coisa? — perguntou ele, esfregando a cara com ambas as mãos. — Queres usar o computador? — perguntou-me. — Acho que podia ver os meus e-mails, se não se importarem. — Claro — disse a Sylvie. O Léo levantou-se para que eu tivesse espaço no sofá. — Toma, deixa-me apontar o meu número. Caso haja alguém a quem o queiras dar. — Obrigada — disse eu, admirando a sua caligra�a �oreada, que era mais certa e mais elaborada do que eu esperaria. Será que isso signi�caria que estaríamos juntos a viagem inteira? Não tinha pensado tão à frente. E tinha de admitir que não desgostava da ideia. Dava jeito ter um tradutor à mão e eu até estava a gostar de o provocar por ser tão reservado. Pelo menos o tempo estava a passar mais depressa, o que só podia ser bom. Abri o computador portátil da Sylvie. Não me parecia correto eu estar ali sentada num belíssimo apartamento parisiensea beber chá de uma chávena de cerâmica que provavelmente tinha custado mais do que toda a nossa loiça junta enquanto a família do Si andava de um lado para o outro no local do casamento a tratar de todas as tarefas que eu devia estar a realizar. A Catherine deveria estar um poço de nervos e eu tinha consciência disso. As damas de honor estavam com ela, mas, ainda assim… tínhamos passado muito tempo juntas nos últimos tempos e eu achava que ela gostava bastante de me usar como câmara de eco de todas as suas inseguranças acerca do casamento. Apesar de tudo, eu queria que o dia de casamento dela fosse tudo o que ela sonhara. Perguntei-me se devia enviar- lhe um e-mail a dizer-lhe que estava a pensar nela e que chegaria logo que pudesse. No entanto, acabei por concluir que ela não iria chegar a lê-lo. Terminei o meu chá de limão e ouvi uma parte da conversa entre o Léo e a Sylvie, que tinham ido para a cozinha e estavam a falar animadamente sobre qualquer coisa num francês lírico, a voz dele baixa e melódica, a da Sylvie suave e sussurrada. Era capaz de �car o dia inteiro a ouvir a forma como enrolavam os erres. Entrei na minha conta de e-mail e consultei a caixa de entrada. Provavelmente não valeria a pena dar-me ao trabalho de enviar um e-mail ao Si, porque estava basicamente a fazer tudo o que ele me tinha dito para não fazer: tinha saído da estação, apesar dos avisos dele para não o fazer. Tinha-me metido no banco de trás de uma moto, tinha almoçado com um estranho e tinha-lhe contado coisas sobre as nossas vidas. Ele �caria furibundo se soubesse metade de tudo isso. Assim, em vez disso, decidi enviar um e-mail à Ellie, ainda que com di�culdade em explicar o que se passara. Disse-lhe em poucas palavras como o Léo e eu nos tínhamos conhecido e contei-lhe tudo o que correra mal. Como um início de dia terrível se tinha transformado em algo completamente diferente: começava a ver Paris com outros olhos, disse-lhe. Começava a sentir uma catarse ao estar ali de novo, ao ver a cidade pelos olhos de alguém que adorava a cidade e que me podia mostrar lugares e contar-me factos sobre ela que lhe davam vida. Dei o número do Léo à Ellie, sem lhe atribuir demasiada importância, e mencionando a Sylvie. Era estranho falar sobre o assunto, embora teoricamente eu não tivesse feito nada de errado. Mas porque é que parecia que sim? Enviei um e-mail curto à minha mãe, não fazendo nenhuma referência ao Léo e só a avisá-la de que estava bem e de que iria para Amesterdão dali a poucas horas. E depois, antes de ter oportunidade de pensar demasiado e me convencer a não o fazer, abri um novo separador e entrei na conta de Gmail do Si. Senti- me mal assim que a caixa de entrada dele apareceu no ecrã. Nunca tinha feito nada semelhante até àquele dia, em parte porque sempre partira do princípio de que não podia con�ar nas pessoas, pelo que não valeria a pena dar-me ao trabalho de con�rmar. Mas com o Si era diferente, eu con�ava mais nele do que em qualquer outra pessoa que já conhecera. No entanto, de repente, tinha começado a não con�ar tanto. Já estávamos ambos na casa dos 30 e a viver juntos. A seguir viria o casamento e possivelmente um bebé. Achava que não seria capaz de avançar para nenhum destes passos se não estivesse completamente segura de que ele era sincero quando me dizia que queria que �cássemos juntos para sempre. E se espionar os e-mails poderia deixar-me descansada, certamente valeria a culpa que viria a sentir quando me apercebesse de que não tinha absolutamente nada com que me preocupar. A única razão por que eu sabia a palavra-passe dele era porque, logo depois de nos termos mudado para o apartamento, numa altura em que o tempo estava muito instável — num minuto estava calor e no minuto seguinte muito frio —, ele me telefonara de uma conferência e me pedira para ir procurar nos e-mails dele algumas informações sobre um serviço de assistência para o termoacumulador. Eu tinha tirado o dia e estava deitada no sofá a ver a Net�ix quando o que deveria estar a fazer era a aprimorar o meu CV para poder começar a procurar um emprego novo. Ele tinha-me dito que a palavra-passe era Gameofthrones. Eu melgara-lhe a cabeça com isso durante semanas e, por isso, nunca mais me esquecera dela. Na verdade, até me surpreendia que ele não a tivesse alterado. Prova, talvez, de que não se passava nada de indecoroso. Ele não seria estúpido a esse ponto, seguramente. Respirei fundo e comecei a deslocar o rato pelos e-mails dele em busca de nomes que reconhecesse. Tinha pavor de ser apanhada. Haveria alguma forma de ele saber o que eu tinha feito? Teria algum alerta ou algo parecido, que lhe enviasse uma noti�cação a avisá-lo de que alguém tinha entrado na conta dele? Não me surpreenderia. Ele era muito bom com tecnologia. Continuei a avançar pelos e-mails, a minha mão a tremer ligeiramente à medida que deslizava o dedo pelo rato. Havia montes de mensagens da Catherine, muitas do trabalho, algumas da mãe dele com assuntos relacionados com o casamento. Não me dei ao trabalho de abrir nenhuma. Limitei-me a avançar em busca de algo fora do normal. E foi então que parei, deixando o cursor a pairar sinistramente sobre um conjunto de e-mails de e para uma pessoa chamada Alison. Engoli em seco e a custo, como se a minha garganta se tivesse fechado. Cliquei nos e-mails. O mais recente tinha sido enviado na noite anterior à nossa partida para Veneza. Alison Clarke Sáb., 29 jun, 20:17 Si, Eu sei que disseste para não te enviar mensagens escritas, por isso queria avisar-te de que tenho novidades. Falamos no casamento. Bjs. A Mordi o lábio e avancei para baixo. O e-mail anterior tinha sido enviado algumas semanas antes, na noite do meu jantar de aniversário. Simon Woodburn Sáb., 18 jun, 21:52 Querida Al, Obrigado — de novo! — por tudo. Posso encontrar-me contigo na terça à noite, se te der jeito. Eu digo à Hannah que vou �car até mais tarde no ginásio. Bjs. S O e-mail inicial da Alison estava logo abaixo. Alison Clarke Sex., 7 jun, 11:31 Querido Si, Gostei de te ver na noite passada, espero que a tua ressaca não tenha sido tão má como a minha! Olha, acho que é melhor limitarmos a correspondência por e-mail ao mínimo por agora, enquanto tratamos da logística de tudo. Talvez seja mais seguro combinarmos uma hora para nos encontrarmos. Diz-me se tens tempo na próxima semana. Fica bem, Si, acredito que vamos conseguir encontrar uma forma de sair disto. Bjs. A Fechei o computador portátil, cerrei os olhos por um segundo ou dois e voltei a abri-los para reler os e-mails, para o caso de me ter escapado alguma coisa da primeira vez. Caramba. Eu não sabia do que estava à espera, mas não era daquilo. Pensei que aquele era precisamente o problema de espionar os e-mails alheios: havia a possibilidade de encontrar algo que era ainda pior do que o que tínhamos imaginado. No pior dos cenários, o que eu esperava era uma ou outra mensagem mais atrevida. Mas eles andavam mesmo a encontrar-se. Tinham-se embebedado juntos. E o que me magoava mais era que estavam a conspirar para me enganar, fazendo de conta que ele estava no ginásio. Só estávamos a viver juntos há 12 semanas, pelo que era certamente demasiado cedo para ele já estar a procurar escapadelas. Porque é que não acabava simplesmente comigo? Deixava-me e seguia em frente. Já sabia que ele não partilhava tudo comigo, mas aquele era todo um novo nível de secretismo. Ainda me lembrava do momento da epifania, do choque que senti quando me apercebi de que a nossa relação não era tão simples como eu pensava que ia ser. Foi na semana em que conheci a família dele. Estávamos juntos há seis meses, passávamos praticamente todos os dias juntos e preparávamo-nos para nos mudarmos para o apartamento. A Catherine tinha-me levado para o quarto dela para falar sobre casamentos. — Então… — dissera a Catherine, ominosamente. — Conta-me tudo. Ela era ainda mais bem-falante do que o Si, e mais direta. Tenho a ideia de que andaram em escolas diferentes: ele frequentara uma escola derapazes próxima, mas, ao que parece, «tiveram» de educar a Catherine no ensino privado. — Hum… sobre quê? — perguntara eu, como se não soubesse. Ela deu-me uma cotovelada nas costelas. — Como está a correr com o Si? Deve ser sério, se te convidou para ir viver com ele tão rapidamente. Ele só costuma fazer as coisas ao �m de meses de meticuloso planeamento. — Já tinha reparado nisso — disse, a sorrir. — Tu és muito diferente da ex-namorada dele — disse ela, olhando para mim, com um ar pensativo. — Para melhor, claro — acrescentou logo de seguida. Tentei não me deixar sentir ameaçada pela ideia de uma ex- namorada que não tinha nada que ver comigo. A verdade era que ele quase nunca tinha falado nela, nem de quaisquer outros relacionamentos anteriores. Nas raras ocasiões em que eu tentei começar uma conversa sobre o assunto, o Si tinha-se esquivado com um comentário encantador sobre não se importar com o passado depois me ter encontrado. E, de certa forma, essa postura convinha-me plenamente: se ele também não estava interessado em saber nada sobre os meus relacionamentos passados e como todos eles tinham sido mais ou menos um desastre, eu não estava propriamente ansiosa por lhe dar essa informação. — Ele disse-te alguma coisa sobre o que aconteceu? — perguntou a Catherine, antes de abrir uma pasta de plástico intitulada «Ideias para o casamento» e a folhear até encontrar o que parecia ser uma secção de convites. Abanei a cabeça. — Ele não me disse praticamente nada sobre ela. A Catherine parecia surpreendida. — Nada mesmo? — Nem por isso. — E depois a curiosidade levou a melhor. — Porquê, como é que ela era? A Catherine olhou seriamente para mim. — O que ela fez com ele foi horrível. Para o Si, sobretudo, mas todos nós �cámos muito abalados, a família inteira. Aquilo era mais interessante do que eu tinha pensado. Que coisa tão terrível e dramática teria acontecido ao Si e ele não me tinha contado? — Eles estiveram juntos durante três anos — disse a Catherine num tom sussurrado. — E ele fazia tudo por ela, Hannah. Tudo e mais alguma coisa. Levava-a para todo o lado, ia buscá-la aqui, ali, aonde quer que fosse. Faziam viagens de �m de semana a diferentes cidades a cada cinco minutos. Ajudou-a a comprar um apartamento, arranjou-lhe um emprego novo. Basicamente organizou-lhe a vida inteira. — Certo — disse eu, a pensar que aquela dinâmica me soava bastante familiar. Às vezes parecia que o Si era o pai na nossa relação e que eu era a criança travessa que precisava de ser posta na linha. — Basicamente, eles eram o casal de ouro de Berkhamsted — disse a Catherine, já embalada. — Conhecíamo-la há anos. O pai dela jogava golfe com o meu pai. Era quase inevitável que acabassem juntos. — Parece bem que sim — disse eu, começando a sentir-me desconfortável. Já estava a imaginar toda aquela perfeição. — Por isso, podes imaginar a consternação geral quando veio a saber-se que ela andava enrolada com o melhor amigo do Si, o Will. Durante meses. E ninguém fazia ideia. Muito menos o Si, claro. — Caramba — disse eu, chocada. Não esperava aquilo. — Ele �cou destroçado — disse a Catherine. — Ficámos todos muito preocupados com ele. Eu estava confusa. Porque diabo não me tinha ele contado aquilo? Ele dera-me a impressão de que navegara pela vida sem um arranhão e eu teria preferido, de longe, saber que as coisas também nem sempre lhe tinham corrido de feição. A Catherine pousou a mão no meu braço. — Mas, en�m, tudo isso pertence ao passado, Hannah. Dá para ver o quanto ele te adora, é algo que está praticamente a irradiar dele — disse ela. Sorri para ela de modo educado, com o cérebro quase parado. Perguntava-me, imediatamente, se seria sensato ir viver com alguém sobre quem era claro que sabia muito pouco. — Estou a falar a sério, Hannah — disse a Catherine, pegando- me na mão. — Sinceramente, nem sei como te agradecer por fazeres o meu irmão feliz de novo. És mesmo o que ele precisa. És um tónico. Um novo sopro de vida. Não admira que ele esteja a agarrá-lo com ambas as mãos. Eu sorri-lhe, tentando transmitir uma sensação de calma, mas, na verdade, estava a sentir um assomo de pânico. Sentia o peito tenso e o suor a formigar-me o couro cabeludo. Arregacei as mangas da camisola já a desejar ter escolhido algo mais leve para vestir. Era demasiada informação para assimilar naquele momento. Eu só conhecia a Catherine há meia hora e ela já me contara mais sobre a história do Si do que o próprio Si desde que nos conhecêramos. — Acho que nos vamos dar muitíssimo bem — disse ela, triunfante, embora eu não estivesse certa sobre o que deveria pensar naquele momento, sobre o que ela acabava de dizer ou sobre o que quer que fosse. — Bem — disse a Catherine, abrindo a pasta sobre o colo de ambas. — Dá uma olhada nestes convites, está bem? E diz-me se gostas do debruado cor-de-rosa ou azul. O meu noivo gosta do azul, mas a minha mãe está mais inclinada para o cor-de-rosa. Senti-me imediatamente sob a tremenda pressão de invocar uma lista de adjetivos pretensiosos para dizer que eram ambos fabulosos e que devia ser uma terrível provação ter de escolher um. Saí da conta de e-mail do Si e �quei ali sentada com as mãos debaixo das coxas. Queria desesperadamente dar-lhe o benefício da dúvida, mas tinha o cérebro em ebulição e o estômago a revirar-se. Levantei-me, fui até à janela e inclinei-me na direção do vidro. O cais estava ainda mais movimentado agora, cheio de jovens locais acabados de sair da escola para almoçar. Olhei para eles, a deambularem por ali em grupo, a fumarem e a gritarem uns com os outros. — Olá — disse o Léo, aparecendo ao meu lado, com a anca encostada ao vidro. Reparei que era um pouco mais baixo do que o Si. O cimo da minha cabeça estava ao nível do ombro dele. — Olá — respondi, tentando soar normal. As mensagens eram muito vagas. Não indicavam inequivocamente que se tratava de um caso, mas era claro que alguma coisa se passava, alguma coisa que não queriam que eu soubesse. Se o Si andasse a dormir com ela, certamente fá-lo-ia sem deixar rasto e teria a sensatez de apagar os indícios. A menos, claro, que achasse que eu era demasiado estúpida para suspeitar do que quer que fosse. Podia ter pensado que tinha sido tão bom a persuadir-me de que me amava que não me passaria pela cabeça ir remexer nas coisas dele. Senti-me magoada pela traição. Ele tinha-lhe enviado um e-mail no meu aniversário. Quando teria sido? Antes ou depois dos presentes? Teria sido quando desaparecera para ir buscar o bolo? Como seria possível que num minuto ele estivesse entretido com os meus amigos, a mimar-me com presentes extravagantes, a ser tão atencioso, tão encantador, o companheiro perfeito, para, no minuto seguinte, se esgueirar para enviar uma mensagem a outra mulher? Não fazia qualquer sentido. Abanei a cabeça, com vontade de me livrar das imagens daquela noite, da felicidade que sentira. Teria aquilo tudo sido uma mentira? Não seria eu su�ciente para ele, a�nal de contas? — Vou ter de ir ter com uns amigos — disse o Léo. — Queres que te leve de volta à estação? Eu assenti veementemente com a cabeça. — Pode ser. — Era óbvio que tinha percebido mal quando pensara que íamos viajar juntos. Para que é que ele tinha apontado o número para eu partilhar, então? — O que é que vais fazer na estação? — perguntou ele, a olhar para o relógio. — Ainda nem é meio-dia. — Vou ler um pouco — disse eu, dando-lhe a impressão de que não havia nada que me apetecesse fazer mais. — Vou fazer uso da minha veia de observadora de comboios e apontar quantos tipos de comboios diferentes consigo detetar. Não sei. — Não há dúvida de que sabes como te divertir, Hannah — disse o Léo, �ngindo uma expressão séria. Olhei de relance para a Sylvie, que estava a levar as coisas para a cozinha. Ela passarinhava entre a sala e a cozinha, esticando-se para chegar ao armário e depois baixando-se até à máquina de lavar. — Suponho que já tiveste a tua conta de Paris para um dia — disse ele, pousando a palma da mão no vidro. Eu ri-mebaixinho. — Paris tornou-se a menor das minhas preocupações. — Ah, a�nal a adoras a cidade! — Não diria que adoro, propriamente. — O su�ciente para quereres ir conhecer mais parisienses? Encostei a testa ao vidro para tentar aquietar o cérebro. Estava cheio de coisas, mas sobretudo do Si e dos malditos e-mails. — Queres dizer ir contigo agora? — perguntei eu. — Não há problema. Eu compreendo. Achas que somos todos arrogantes e mal-educados e preferes ir observar comboios. — Sabes que eu estava a brincar com a história dos comboios, não sabes? — Sim, Hannah, eu sei que estavas a brincar. Se eu pudesse desanuviar a cabeça, poderia ser capaz de decidir o que fazer. Perceber como é que eu ia aguentar aquele casamento sabendo o que �cara a saber. — Vamos, então — disse eu, virando-me para procurar a minha mala. — Antes que eu mude de ideias. O Léo �cou a olhar para mim. — Há sempre surpresas quando estou contigo, Hannah. — Oh, sou um poço de surpresas — disse eu, pensando que, claramente, não era a única. Capítulo 14 Olhei, melancolicamente, para os restaurantes que se estendiam pelo cais, todas as mesas repletas de pessoas na hora de almoço, o apetitoso aroma a alho, pão acabado de sair do forno e ervas aromáticas a emanar tentadoramente de todas as portas. Nós os três e a moto ocupámos o passeio durante algum tempo quando saímos, o que era muito inconveniente para toda a gente que seguia na direção contrária, até que a Sylvie recebeu uma chamada e avançou, empertigada, à nossa frente. — Aonde vamos? — perguntei ao Léo, que estava a empurrar a moto ao meu lado, com a mala de novo pendurada às costas. — A um sítio em Quai de Valmy. É um bar que frequentamos regularmente — disse o Léo. — É como uma segunda casa para mim. Só vamos �car um pouco. Não nos vou atrasar, está bem? — Está bem — disse eu. — Eu acredito em ti. Ele parou para limpar a cara à t-shirt. O sol brilhava de novo, reluzindo na superfície dos canais, o re�exo apenas perturbado pelos raros barcos que vogavam calmamente pela água fora. O pavimento calcetado do cais estava cheio de grupos dispersos de adolescentes sentados em círculos com as pernas cruzadas e de amantes enrolados uns nos outros ou um com a cabeça pousada no colo do outro enquanto contemplavam a água. — Ainda estás a pensar no casamento? — perguntou o Léo. — Estou — respondi com um leve sorriso. — Porque se não chegar a tempo e começar a irritar os meus futuros sogros ainda antes de o serem, eles nunca mo deixarão esquecer. O Léo olhou para mim com o sobrolho franzido. — Como assim, futuros sogros? A ideia de o ter dito em voz alta deixou-me inibida. A�nal de contas, ainda não tinha contado nada a ninguém. — Encontrei um anel de noivado na mala do Si — disse eu, cruzando os braços e voltando a descruzá-los logo de seguida. Era o nosso segundo dia em Veneza e tínhamos voltado ao hotel para dormir um pouco. Eu estava a sentir os prenúncios de uma dor de cabeça, uma palpitação incómoda na parte da frente do crânio e lembrei-me de que o Si tinha levado paracetamol para a viagem. Olhei para ele de relance: estava a dormir, as pálpebras a agitarem-se, a respiração suave e ritmada. Sem querer incomodá-lo, ajoelhei-me no chão, puxei a mala dele de baixo da cama e abri o fecho o mais silenciosamente que pude para procurar um estojo médico que ele me dissera ter levado para uma eventual emergência. Ele estava sempre muito preparado, um resquício dos tempos em que era escuteiro, talvez. De acordo com a Catherine, o Si tinha sido um escuteiro muito zeloso. Procurei, hesitante, por entre o conteúdo da mala, afastando para o lado um conjunto de roupas muito bem arrumadas e engomadas das melhores marcas. A mala dele era o exato oposto da minha, que já estava completamente desarrumada, com a roupa suja misturada com a lavada e tudo a precisar de ser passado a ferro outra vez. Fui apalpando a mala em busca de um frasco de comprimidos, até que o meu punho se fechou sobre algo pequeno e quadrado. Levei a mão a uma espécie de bolso, a pensar que era a caixa de remédios de que eu precisava. Em vez disso, retirei do bolso uma pequena caixa de veludo vermelho. Olhei para ela de olhos semicerrados, aproximei-a do rosto até quase me tocar no nariz e depois afastei-a esticando completamente o braço. A primeira coisa que me passou pela cabeça foi que podia ser um presente de Natal antecipado, um colar que ele me vira a contemplar num dos mercados e que fora comprar às escondidas. Daquela vez em que ele dissera que tinha de ir à casa de banho e eu esperara durante o que parecera uma eternidade ao sol, sentada no muro à porta da Coleção Peggy Guggenheim. Mas, depois, quando abri a caixa, �quei literalmente boquiaberta. No interior encontrava-se o mais belo anel de noivado que eu já vira, um primoroso diamante vintage de talhe quadrado num engaste art déco. Céus, ele conhecia-me tão bem, e ao �m de apenas um ano juntos. O anel não poderia ser mais perfeito. Será que ele iria realmente pedir-me em casamento? Fiquei a olhar para o anel durante uma eternidade, os meus olhos em tensão nas órbitas, o coração a palpitar-me aceleradamente no peito até que ouvi o roçagar de lençóis na cama e, em pânico, fechei a caixa, atirei-a de volta quase para o mesmo local onde a tinha encontrado e alisei as roupas em cima. Quando olhei para cima, o Si estava sentado na beira da cama a olhar para mim de olhos arregalados. — O que estás a fazer? — perguntou, com uma voz inusitadamente aguda. — Estou à procura de analgésicos — disse eu, desejando ser melhor atriz. — Desculpa, devia ter esperado que acordasses, mas tinha a cabeça a latejar. — Estão ali — disse o Si, rebolando da cama nu e afastando-me cuidadosamente para o lado, enquanto me olhava de soslaio. — Com licença. O Léo �cou aparentemente tão estupefacto como eu �cara. — Isso é tremendo, Hannah. Eu assenti com a cabeça. — A quem o dizes. — O que aconteceu depois de teres visto o anel na mala? — Fiquei com receio de que ele reparasse que se passava alguma coisa — disse eu —, por isso, comecei a papaguear sobre comida e viagens de barco e o que tinha visto pela janela antes de ele acordar. E, durante aquele tempo todo, tinha uma sensação estranha e um pouco desconfortável a crescer dentro de mim. Incredulidade, creio. — Não conseguias acreditar que o teu namorado poderia querer casar-se com alguém tão preocupado com a morte como tu? Eu revirei os olhos na direção dele. — Queres ouvir o resto da história ou não? — Quero — disse ele, embora o seu semblante indicasse o contrário. Provavelmente, pensava que eu ia contar-lhe alguma história sentimentaloide sobre o próprio pedido de casamento. Na cabeça dele, podia ter acontecido na gôndola. À meia-noite, enquanto deslizávamos por uma daquelas pontezinhas românticas. — Não te quero aborrecer — disse eu. — Não és particularmente chata. — Isso foi a coisa mais bonita que me disseste o dia todo. Quando passámos por um café vegan, reparei numa mulher mais ou menos da minha idade com uma camisola branca, calças de ganga cinzento-claras e um casaco de malha bege. Não sei como, mas aquela roupa tinha um aspeto re�nado, elegante e caro, de uma forma que nunca aconteceria se fosse eu a vesti-la. A mulher tinha uma tigela cheia de salada verde à frente dela, pelo que representava não só o estilo estético a que eu aspirava, mas também os hábitos de alimentação saudável. — Então, diz-me: ele pediu-te em casamento? — perguntou o Léo. — Não, não pediu. — Como assim? — Acabei de dizer. Não fez o pedido. Eu �cara agitada e nervosa a noite inteira, depois de ter encontrado o anel. Todas as conversas pareciam conduzir à «grande pergunta». Mas ele não me tinha pedido em casamento num jantar à luz de velas em Santa Croce, nem mais tarde, quando passeávamos de mão dada na Piazza San Marco. Eu andava constantemente presa por arames, o meu coração a palpitar de expetativa sempre que ele parava para tirar uma fotogra�a ou para apontar para alguma coisa de interesse. Tinha sido uma tortura. — Porquenão? — perguntou o Léo. Eu olhei para a Sylvie, que parecia estar a censurar alguém do outro lado da linha. — Não sei. Era como se o Léo fosse capaz de ler o que me ia na cabeça. Porque é que ele não o tinha feito? E, mais importante, ainda estaria a planear fazê-lo? Veneza teria sido o lugar perfeito. Nós os dois, em cima da ponte Rialto (por alguma razão, não estaria ocupada por um milhão de turistas a fazer o mesmo), a água revolta do Grande Canal mais abaixo. Os palazzi ao longo das margens pintados com belíssimos tons de pêssego queimado e dourado-claro com portadas verde-�oresta. O aroma agradável a peixe fresco do mercado, misturado com o odor doce e frutado de gelato. Lembrei-me até — no que seria absolutamente o pior dos cenários — de que talvez o anel não fosse para mim. — Mas, en�m, chega de pedidos de casamento — disse eu, em busca de uma mudança de assunto. — O que estavas tu a fazer em Veneza? — A não fazer pedidos de casamento? Atirou o casaco para cima do guiador da moto quando olhei muito séria para ele. — Porque é que foste de comboio, já agora? — perguntei. — Corrige-me se estiver enganada, mas se estavas com tanta pressa, ir de avião não teria sido uma opção mais �ável? — Ah, sim. — Sim o quê? — Tenho de te dizer? — Claro. Ele suspirou, o cabelo a cair em cima da testa. — Não sou grande fã de andar de avião. — Tens medo, é isso que queres dizer? — disse eu, felicíssima por ter encontrado algo para o arreliar. — Quem é que tem medo de morrer agora? Ele puxou o cabelo para trás com uma expressão ligeiramente embaraçada. — Não precisas de te mostrar tão feliz por causa disso, Hannah. — Quer dizer que a�nal tens sentimentos… — disse eu, esfregando alegremente sal na ferida. Ele fez um som de reprovação com a boca e começou a fazer de conta que estava a mexer no painel de instrumentos da moto. — Está bem, continua — disse eu. — A tua visita a Veneza teve alguma coisa que ver com trabalho? — Não. Olhei para ele com ar interrogador, com a mão na testa para proteger os olhos do sol e a pensar como gostaria de ter comigo os meus óculos de sol, que tinha arrumado na mala porque partira do princípio de que não iria precisar deles antes de chegarmos a Amesterdão. — Podes desenvolver? — Fui visitar o meu pai — disse ele. — É italiano? Ele abanou a cabeça. — Não, mas a minha madrasta é. Acabaram de ter um bebé, um menino. Queria dizer então que o pai dele tinha voltado a casar-se. — Qual é a sensação de teres um irmão bebé? Ele riu-se. — É uma mudança agradável. Também tenho quatro irmãs. — Quatro? — disse eu a sorrir. Era bom estar �nalmente a extrair-lhe alguma informação pessoal. Passámos pela loja que eu tinha visto antes — Antoine et Lili —, que era composta por três secções separadas pintadas em tons gloriosos de amarelo-vivo, verde-hortelã e rosa-claro. Parei um segundo para espreitar pela montra e ver os mais belos artigos parisienses para a casa, almofadas e roupas de cama e mesa, bules de cerâmica e bonitos castiçais. Se tivesse tempo e dinheiro, teria comprado algo para levar para casa — uma taça, um pano de cozinha ou algo parecido — para que a nossa cozinha me �zesse lembrar de Paris para sempre. Dei uma corrida para alcançar o Léo de novo. — Como é que o teu pai aguentou tantas mulheres em casa durante a vossa infância? — Para ser breve: não aguentou — disse o Léo, a olhar para a água. Portanto, ele também não tivera uma vida fácil. Quando conheci o Si e lhe falei sobre a minha vida, ele tentou mostrar compreensão, mas eu sabia que não era fácil para ele, porque tinha tido uma educação quase perfeita em comparação com a minha. Veio-me à memória um dia em que estávamos juntos em casa da minha mãe e do Tony. Eu levara-o ao átrio para lhe mostrar a «galeria de fotogra�as», como a minha mãe lhe chamava. Era um conjunto eclético de fotogra�as que ela tinha ampliado, emoldurado e pendurado na parede ao lado das escadas. Havia algumas deles os dois, uma boa fotogra�a de um dia em que estavam ambos aperaltados para uma das festas de Natal dos Correios. Outra em que eles passeavam de mão dada na praia de Torbay ao pôr do sol. Quando chegámos às minhas fotogra�as, eu encolhi-me. A minha mãe tinha escolhido uma sequência horrorosa de fotogra�as pouco lisonjeiras, como se quisesse apresentar-me da pior maneira possível de propósito. — Esta é a minha preferida — dissera-lhe, apontando para a fotogra�a da escola tirada quando eu tinha 11 anos, numa altura em que eu tinha uma combinação muito atraente de aparelho nos dentes e monocelha e ainda não tinha percebido que arranjar as sobrancelhas era uma possibilidade real. Lembrei-me de, naquela altura, ter decidido que detestava os meus caracóis densos e, na ausência de alisadores e outros produtos (que haveriam de vir depois) sentia que era quase impossível controlá-los. O Si passara o dedo sobre a fotogra�a. — Estás adorável — dissera ele, tentando ser simpático. Subimos alguns degraus para olhar para outra fotogra�a em destaque, tirada no dia de casamento da minha mãe e do Tony: era a minha mãe, eu com 17 anos, de rosto sorridente e ligeiramente roliça, a minha tia Sinead, irmã da minha mãe, que viera da Irlanda e que estava a usar um macacão preto e branco com um estampado psicadélico que se adequaria muito mais a uma noite na discoteca Studio 54. Apesar de ter centenas de fotogra�as melhores por onde escolher, a minha mãe tinha achado que a fotogra�a em que eu aparecia a desviar os olhos da câmara e com duplo queixo seria a mais indicada para pendurar na parede para toda a gente ver. — Eras uma dama de honor amorosa — disse o Si, pondo o braço em volta da minha cintura. — É uma pena aquele vestido de seda azul-turquesa — disse eu, esboçando um sorriso. O Si riu-se e seguiu-me até ao patamar. Eu passei com a ponta do dedo pela moldura dourada da única fotogra�a de que realmente gostava. Era eu quando tinha 6 meses. Estava deitada no chão, sobre o tapete em espirais castanhas e cor de laranja de que ainda me lembrava porque o mantivemos durante anos, com as pernas a dar pontapés no ar e uma roca colorida na mão direita. Ficámos a olhar para a fotogra�a durante algum tempo. — Foi o meu pai quem a tirou — disse eu. — Tem bom olho — disse o Si, tocando-me nas costelas. — Agora sei de onde vem esse teu talento. A Sylvie terminou a chamada e virou-se para dar um cigarro ao Léo: acendeu-lho, fechando as mãos em volta das dele. Eram ambos tão bonitos, com o canal a brilhar atrás deles, o céu azul, as copas das árvores, que eu esbocei um gesto para levar a máquina fotográ�ca ao olho e depois pensei melhor e não o �z. — Fumas? — perguntou-me ela, quando se lembrou de mim. Abanei a cabeça, embora estivesse com vontade de fumar um, depois do que tinha acabado de ler. — Chegámos — disse o Léo, detendo-se à porta de um restaurante. As portas da frente estavam abertas, pelo que a maior parte dos clientes estava sentada ao ar livre, a beber cerveja sob o sol quente de julho. Quando me apercebi de que aquelas pessoas intimidantes reunidas em volta de uma mesa com pés de cavalete eram amigas do Léo, apeteceu-me dar meia- volta e correr na direção contrária. — Esta é a Hannah — anunciou o Léo, embora eu não percebesse porque se deu ao trabalho de o fazer, uma vez que não estávamos a pensar �car. Sorri levemente para eles. A maior parte deles olhou para cima. Eu tinha partido do princípio de que se tratava de um cliché, mas estavam todos realmente vestidos de preto, com um ou outro detalhe de cor — um cinto, um lenço — para contrabalançar. Havia uma prancha de skate encostada à janela. Não era justo fazer suposições, mas a primeira impressão era a de que pareciam todos muito egocêntricos e tinham todos ótimo aspeto. O Léo estacionou a moto e foi buscar três cadeiras a uma mesa vizinha. Fez-me sinal para me sentar junto a ele. — Quanto tempo pensas �car? — perguntei baixinho, renitente em sentar-me e já a desejar ter ido diretamente para a estação. Estava a sentir-me inquieta depois de ler os e-mails do Si ede contar a história do anel ao Léo e achava que não tinha energia para fazer conversa de circunstância, que era algo que já me custava quando estava tudo bem. Provavelmente, aquela iria tornar-se mais uma das ocasiões em que eu me deixava �car para trás a observar a conversa em vez de participar até que, por �m, as pessoas começavam a falar à minha frente e se esqueciam de que eu estava presente. — É aborrecido para ti todo este francês? — perguntou ele, passados alguns minutos e ao ver o sorriso impassível no meu rosto quando todos falavam à minha volta. Abanei a cabeça. — Claro que não. Na verdade, estar em Paris tinha reanimado um pouco o meu amor pela língua francesa, embora eu me tivesse mostrado demasiado acanhada para falar muito. Talvez pudesse pensar em fazer um curso de francês para principiantes, um dia. Devia haver vários em Londres. Era uma daquelas coisas de que eu sempre tinha gostado, como a fotogra�a, e em que era naturalmente bastante boa, mas nunca soubera o que fazer com ela. Não havia propriamente muitos fotógrafos que falassem francês nas proximidades. Vi-o a virar-se para dizer alguma coisa à Sylvie, os ombros a dobrarem-se para a frente, os pés cruzados no tornozelo. Havia uma naturalidade entre os dois, não obstante o semblante distante da Sylvie, e dava para perceber que eram próximos e que se conheciam bem. Ao falar com os tipos do outro lado da mesa, os que estavam vestidos de preto sobre preto e que praticamente não tinham olhado na minha direção, ele inclinava-se para a frente, punha os cotovelos em cima da mesa e gesticulava veementemente. Com eles, o Léo era mais terminante, mais direto. E depois reparei que quando falávamos, ele se virava para mim e �cava completamente de costas para a Sylvie. O meu olhar cruzou-se com o dela algumas vezes por cima do ombro dele e ela, sentindo-se constrangida, virou as costas à conversa. À minha esquerda estava uma rapariga chamada Clarice, que era namorada de um dos tipos vestidos de preto. Só tinha 22 anos e vivia em cima de uma discoteca na zona de Oberkampf, aparentemente muito em voga. Disse-me que era noctívaga e raramente saía do apartamento enquanto havia luz, o que provavelmente explicava a pele tão pálida que quase resplandecia. Tinha um pescoço comprido e magro e vários brincos em cada orelha. — Há quanto tempo estás com o teu namorado? — perguntei, na esperança de que ela falasse bem inglês e com a sensação de que devia fazer um esforço para falar com alguém. Não queria que o Léo pensasse que eu era socialmente inepta ou ele acabaria por dizer algo sarcástico mais tarde. — Dois meses. Talvez três — disse a Clarice. — Ainda bastante recente, então — disse eu. — Achas? — Para ela, provavelmente três meses parecia uma eternidade. — Como é que ele é? — perguntei. Pessoalmente, parecia-me que ele gostava um pouco demais do som da sua própria voz. Ainda não o tinha visto a falar com ela vez nenhuma, embora ela não parecesse nada incomodada com isso. Era algo que admirava nela, aquela autocon�ança, o facto de parecer não precisar de nada dele, e eu sentia inveja ao ver que já tinha desenvolvido uma atitude como aquela em tão tenra idade. Imaginava que o Si e a Catherine também teriam sido assim quando tinham 20 e poucos anos, todos jactantes e crentes de que poderiam fazer tudo o que quisessem. Não sabia o que pensar sobre o Léo. Sentia que as minhas primeiras impressões sobre ele estavam a mudar. Estariam os comentários presunçosos e depreciativos a esconder alguma coisa, um lado dele que era mais sensível e que talvez não tivesse tido uma vida tão fácil como eu imaginara? — Ele é querido — disse a Clarice, rodando um brinco na orelha. — Senão, já o teria deixado, non? Eu estava espantada com aquela rapariga, que parecia ter a cabeça bem resolvida. — E como é com o Léo? — perguntou a Clarice. — Onde é que se conheceram? — Hannah, prova isto — disse o Léo, estendendo-me um prato de carnes frias, patê e azeitonas. — Une assiette de charcuterie. Eu peguei numa fatia �na e delicada de presunto italiano e levei-o à boca. — Hum — disse-lhe enquanto mastigava. — Bom. Estendi o prato à Clarice. — Conhecemo-nos esta manhã — disse eu, enquanto pegava num guardanapo para limpar as mãos. — Na Gare du Nord. Ela parecia confusa e eu ri-me. — Consegui tropeçar na mala dele e torci o tornozelo e depois perdemos ambos o comboio para Amesterdão. Ele culpou-me a mim e eu culpei-o a ele, mas tivemos de concordar em discordar em relação a isso. Tem andado a mostrar-me Paris para me convencer de que não é o lugar horrível que eu pensava que era. — Não gostas de Paris? — perguntou a Clarice, visivelmente surpreendida com a ideia de que alguém pudesse estar menos do que apaixonada pela cidade. — Tive uma má experiência no passado — disse eu. — Nada que ver com a cidade em si. — Embora talvez não me tivesse apercebido disso antes. — Tu e o Léo parecem conhecer-se há mais do que um dia. Eu olhei de relance para ele. Estava a ir buscar alguma coisa à mala: um disco, que deu ao namorado da Clarice, do outro lado da mesa. Bebi um gole do vinho que alguém me tinha servido. — Achas? O Léo gritou algo para um dos rapazes do outro lado da mesa e depois virou-se para mim. — Quero mostrar-te mais um lugar — sussurrou-me ao ouvido. — Antes de irmos para a estação. — O quê? — Montmartre — disse ele, radiante. — Não se pode vir a Paris sem conhecer Montmartre, e é muito perto. Vais ter uma pequena ideia de como era Paris há centenas de anos. Em algumas zonas, é como andar para trás no tempo. Eu alisei vincos imaginários na saia da Sylvie. — Tem de ser a última coisa que me mostras — disse. Eu já tinha visto fotogra�as de Montmartre: o Moulin Rouge, o Sacré Cœur. Seria uma pena não visitar aquela zona, se era tão perto como ele dizia. — E depois vou direta para a estação. Ele assentiu com a cabeça e pôs-se a pé. — Claro. Vai valer a pena, vais ver. — Dá-me um segundo, está bem? — disse eu, antes de abrir caminho pelo bar e abraçar a parede para evitar os empregados que serpenteavam pelo local vestidos de camisa branca e avental preto e com enormes tabuleiros de bebidas. Fui à casa de banho e deixei-me �car um pouco à frente do lavatório com a torneira aberta e a água gelada a cair-me sobre os dedos. Mal dei por a porta a abrir-se e a Sylvie a entrar. — Aqui estás tu, Hannah — disse ela. — Queria ver-te antes de ires embora. — Eu também. Ia ter contigo para te agradecer por tudo — disse eu, virando-me para a olhar de frente. — Se me deres a tua morada, eu mando lavar as tuas roupas e envio-tas. — Não é preciso. Podes �car com elas, se quiseres. Abanei a cabeça. — Não posso fazer isso. Ela encolheu os ombros. — O Léo sabe a minha morada, pode dar-te essa informação. Vocês vão apanhar o comboio para Amesterdão, sim? — Encostou a anca ao lavatório junto da minha. — Provavelmente. — Sabes, normalmente ele é muito fechado com as pessoas. Não as deixa aproximar-se demasiado de início — disse ela, abrindo a torneira e passando água no rosto. — Sim, dá para perceber — disse eu, ao pensar na atitude dele quando nos conhecemos e em como eu o considerei imediatamente mais um parisiense arrogante. Só depois daquela manhã é que eu começava a ver o seu lado mais doce e suave. — Contigo é diferente — disse ela. — Eu raramente o vejo tão descontraído. — É aquilo que tu consideras descontraído? — brinquei, embora notasse que o coração acelerava no meu peito. Ela não estaria seguramente a sugerir o que eu pensava que ela estava a sugerir. — Não sei se sabes, mas eu tenho namorado — atirei eu, desinteressadamente. Fosse como fosse, era provável que estivesse a meter os pés pelas mãos. — Sim. O Léo contou-me — disse ela, pegando numa toalha de papel e limpando a cara. — Está tudo bem com esse namorado? Eu encolhi os ombros. — Claro. — O Léo parece muito con�ante, non? Muito seguro de si. — Bem podes dizê-lo — disse eu. — Mas, na verdade, ele tem muito medo de ser magoado. Por isso, começa relações com mulheres que não são as melhorespara ele. Os meus olhos desviaram-se para o re�exo da Sylvie no espelho. — Elas são sempre muito bonitas — continuou ela —, mas não são um desa�o para ele. Só querem saber do Léo divertido que todos vemos e adoramos e não se importam com mais nada, com o que pode estar a acontecer dentro dele. E ao �m de alguns meses eu pergunto-lhe: como estão as coisas, Léo? E, invariavelmente, já terminaram. Engoli em seco. — Porquê? — Ele acredita que pode navegar pela vida sozinho, que é mais simples assim. Mas eu não acho que seja verdade. Todos precisamos de alguém, non? — disse ela, embrulhando a toalha de papel numa bola e deitando-a no caixote do lixo. Puxei alguns cabelos soltos para trás da orelha. — Sim, acho que sim. — Eu acho que contigo ele não seria assim — disse a Sylvie, antes de retocar o batom e de me oferecer um pouco. Aceitei, agradecida, e espalhei um pouco nos lábios com o polegar para que �cassem com uma coloração tipo baga. — Mas, claro, tu tens namorado, por isso não interessa — disse ela. — Não — disse eu, apoiando as mãos no lavatório. — Acho que não. Passei pela Sylvie e abri a porta. — É melhor voltar — disse. — Espero que gostes de Montmartre, Hannah — disse ela, enquanto se debruçava para o espelho para pôr o rímel. Eu saí da casa de banho para o bar, desorientada por um segundo, abalada pelo que a Sylvie tinha dito. Ela estava a ser dramática, mais nada. A�nal, não era nenhuma vidente: como é que ela poderia saber o que se passava na cabeça do Léo? Depois daquele dia, nunca mais nos veríamos, por isso, qual era o problema de nos darmos bem? Ele era uma boa companhia, divertido, um excelente intérprete sempre que eu precisava que ele desempenhasse esse papel. E, no entanto, eu sabia que podia ter voltado à estação a qualquer momento, ter feito o que deveria, que era colocar o Si e os seus sentimentos em primeiro lugar. Ser uma boa rapariga e uma boa namorada. Mas teria eu estado em negação aquele tempo todo? Gostaria mais do Léo do que estava a mostrar, até a mim mesma? Tínhamos passado o dia inteiro a encontrar desculpas para estarmos juntos e, em parte, era para ver Paris, isso era claro. Mas foi ver Paris com ele que tornou a experiência tão especial. E comecei a aperceber-me de que, por alguma razão, não queria que o nosso dia em conjunto terminasse. — Hannah! — chamou o Léo, acenando-me para que fosse ter com ele à moto. Eu retribuí o aceno, afastando para o lado a revelação que acabava de ter. Gostava do Léo mais do que devia. E, se era esse o caso, o que signi�caria isso para mim e para o Si? Capítulo 15 — Vou �car contente quando não tiver de voltar a subir para essa coisa — disse eu, ao aproximar-me dele com o passo incerto. — Não gostaste da moto? — perguntou o Léo, olhando com ar descon�ado. — Porque eu acho que começaste a adorá-la, só um bocadinho, mas és demasiado orgulhosa para o admitir — disse ele. — Vês? Consegues ler os pensamentos das pessoas — respondi eu, contendo um sorriso. Pus o capacete e apertei-o. Achava que, depois daquele dia, não voltaria a ter oportunidade de viajar por uma cidade no banco de trás de uma moto. Não teria coragem de o fazer noutro local nem com outra pessoa. E mesmo que tivesse, não seria a mesma coisa. Havia algo na ideia de eu estar com o Léo a vaguear por Paris, a pequena janela de tempo que tínhamos, a forma como o blusão de cabedal dele se agitava com o vento, a forma como ele me fazia sentir como a Audrey Hepburn em Férias em Roma. Arrancámos, com alguma trepidação de início, o motor em alta rotação. O Léo tinha a mala apoiada nas pernas, o que não me agradava muito, mas ele tinha-me assegurado de que não havia problema. Gritou qualquer coisa para os amigos quando passámos por eles e alguns acenaram-lhe de modo frio e indiferente, como se não quisessem saber se voltávamos ou não. Eu desviei o olhar do local onde eles estavam e virei-o para o canal, para ver os magotes de turistas que atravessavam as pontes de ferro para ambas as margens. E, de repente, estávamos a andar mais depressa, mais suavemente, a descer uma rua que me lembrava de ter visto antes e que tinha todos aqueles restaurantes indianos, até que acabámos por virar numa curva acentuada para a esquerda e entrámos na estrada principal movimentada com os frutos exóticos. Agarrei-me melhor quando voltámos a mergulhar no meio do trânsito, juntei mais os joelhos e enterrei o rosto nas costas do Léo. Quando voltei a levantar a cabeça, estávamos parados num semáforo de uma pitoresca rua secundária calcetada com uma subida íngreme à nossa frente. Cravei os dedos na cintura do Léo. Ele virou-se para mim. — O que foi? — perguntou. — Onde estamos? — gritei. O sol ia alto no céu, os raios a baterem-me nos ombros nus. — Já estamos em Montmartre. Très jolie, non? Assenti com a cabeça. — Sim, é muito bonito! Embora o adjetivo não �zesse justiça à singular perfeição parisiense que eu estava a ver. Quando a luz do semáforo mudou, arrancámos novamente e passámos a voar por pastelarias modernas com montras cheias de tartes e éclairs, e escadas íngremes e sinuosas ensanduichadas entre casas caiadas com portadas, que eu teria adorado explorar se tivesse tempo. Os cafés ocupavam os passeios e os habitantes locais conversavam animadamente à porta do supermercado, abrigados à sombra do toldo às riscas como um rebuçado. Olhei com melancolia para uma �leira de lojas muito bonitas, nas quais eu gostaria de passar horas, se tivesse dinheiro: Aesop, Comptoir des Cotonniers, uma loja-conceito com belíssimo aspeto. Parecia haver uma banca em cada canto a vender globos de neve do Sacré Cœur, porta-chaves da Torre Eiffel e garrafas de água fria como gelo. O Léo encostou a moto e apontou para uma praça coberta de folhas à nossa esquerda. — Olha — disse ele. — Vês? É o famoso mural chamado Le mur des je t’aime. O mural dos amo-te. O mural em si estava encoberto por um mar de cabeças e sel�e sticks, mas eu estiquei o pescoço para ver. Primeiro reparei na cor — um azul-meia-noite. Havia letras brancas gravadas nos azulejos, embora eu não fosse capaz de discernir as palavras à distância a que me encontrava. — Podemos parar por um segundo? — perguntei. — Claro. Desci da moto e tirei o capacete. Um homem com a caraterística t-shirt preta e branca e boina estava a tocar Non, Je Ne Regrette Rien no acordeão e, de alguma forma, não era um cliché, como eu imaginava que pudesse ser num cenário como aquele. Em vez disso, criava a atmosfera perfeita enquanto eu seguia o Léo por um jardim pequeno e perfumado. Abrimos caminho até à frente da multidão. — Qual é a história deste mural? — perguntei, os meus olhos a dispararem para todos os lados a querer �xar aquele momento para a posteridade. Queria lembrar-me do que sentia à frente dele. — O artista foi ter com todos os vizinhos nos subúrbios de Paris onde vivia. Havia pessoas de muitos, muitos países diferentes a viver lá e ele pediu-lhes que escrevessem as palavras «Eu amo- te» na sua língua — contou-me o Léo. Limpei o rosto com um lenço e abanei a mão a fazer as vezes de leque, em vão. — Quantas estão aqui? — Duzentas e cinquenta línguas diferentes e mais de trezentas declarações de amor. Tem todas as línguas que possas imaginar, de inglês e francês a navajo e bambara, que é uma das línguas nacionais do Mali. — Há alguma coisa que tu não saibas sobre Paris? Ele levantou a cabeça para o mural. — Há sempre mais para aprender. Eu �z um grande plano das palavras de um dos azulejos, que pensei que seria árabe. — Mas eu pensava que não acreditavas na ideia do amor — disse eu. Ele deu um passo atrás e inclinou a cabeça para observar o mural de um ângulo diferente. — Não acredito no amor para mim — disse ele. — Não posso falar pelas outras pessoas. Atentei nos detalhes no mural, os diferentes tipos de letras usados pelo artista, os formatos das letras, os rasgos de vermelho. — O vermelho é para mostrar como as pessoas estão a virar costas umas às outras. Para indicar que o mural está a tentar voltar a juntar as pessoas— disse ele. Passei as pontas dos dedos pelo mural. — A Sylvie parece conhecer-te bastante bem — disse eu. — Porquê, o que é que ela te andou a dizer? — perguntou, agachando-se. — Sabes, os tijolos são feitos de lava envernizada — disse ele, pousando a mão num deles. Eu dobrei-me para também tocar no azulejo, as pontas dos meus dedos a centímetros das dele. — Ela disse-me que tu não tens relações longas. Parece que está preocupada contigo. Ele assobiou por entre os dentes. — Ela pensa que toda a gente tem de ser igual. Eu tenho muitos amigos. Tenho a minha música. Não há nada que uma relação possa trazer à minha vida que eu não tenha já. Olhei para ele com ar interrogador. — Achas mesmo isso? — Acho, se não achasse porque haveria de o dizer? — E o companheirismo? O entusiasmo da paixão? Sexo com alguém por quem tens um sentimento genuíno? — Vá lá, Hannah. Todos nós sabemos que isso desaparece com o tempo, non? Podes dizer-me sinceramente que ainda sentes todas essas coisas? Com o teu namorado? Esse entusiasmo de que falas, a excitação? — Tens medo de sair magoado, não tens? É essa a questão. Ele resmungou. — Foi isso que a Sylvie te disse? — Não, não foi — disse, não querendo atirá-la às feras. — É óbvio, apenas isso. — Estou bem como estou, Hannah. Se as pessoas prestassem mais atenção às suas próprias histórias de amor, talvez andassem menos preocupadas com a minha. Cerrei os lábios e tirei mais uma série de fotogra�as. — Mas nunca te acontece �cares dominado pelos teus sentimentos? — perguntei-lhe. — Nunca dás por ti a apaixonar-te por alguém, nem que seja a última coisa que desejas? — Acontece — disse ele, olhando-me de soslaio. — Às vezes. Eu levantei-me e caminhei ao longo de todo o mural, passando os dedos ao de leve pelos azulejos, que eram tão lisos como vidro. — Olha — disse eu —, também há símbolos. Está ali um coração, estás a ver? — E um sinal de paz — disse ele, estendendo o braço para lhe tocar. Levei a máquina fotográ�ca ao olho e tirei mais três ou quatro fotogra�as aproximadas. — Sempre andaste à procura disso, Hannah? Desse amor romântico idílico que vemos nos �lmes ou lemos nos livros? Protegi os olhos do sol para olhar para ele. — Eu acho que sempre soube que não era assim. — Vês? A�nal és tão cínica como eu. Eu ri-me. — Digamos apenas que a minha vida amorosa não começou da melhor maneira — confessei. — Anda — disse o Léo, pegando na mala dele e fazendo-me sinal para o acompanhar até ao portão. — Vamos dar uma volta por Abbesses. Podes contar-me como era a tua vida de adolescente. Eras uma daquelas cheias de estilo, toda de preto? Uma gótica? — perguntou. — Ah! Longe disso. Viste o �lme As Meninas de Beverly Hills? Eu e a minha amiga Ellie costumávamos imitar aquele estilo betinho de liceu norte-americano com uma terrível seleção de artigos de lojas de roupa em segunda mão. — Estou certo de que ambas tinham um aspeto très agreable. — Não, não tínhamos. Fica descansado que os rapazes não estavam propriamente a fazer �la à minha porta me convidar para sair. O Léo sorriu. — Hannah. És demasiado dura contigo própria. Falei-lhe sobre o dia em que o Gus Davidson, um rapaz da minha turma, me tinha convidado para ir ao cinema e disse-lhe que a primeira coisa que eu pensei foi: Quem é que o desa�ou a fazer isto? Seria algum tempo de brincadeira de mau gosto? — Eu tinha 15 anos. Ele era o rapaz mais inteligente da turma. Lembrei-me de que ele tinha sido indicado para ir para Oxford ou Cambridge, uma ideia misteriosa e exótica para o resto de nós, que mal tínhamos notas su�cientemente boas para concluir o ensino secundário, quanto mais para pensar sequer em Oxbridge. — Como é que ele te abordou? — perguntou o Léo. — Uma tarde, correu atrás de mim quando eu ia a caminho de casa — contei. — Eu não conseguia perceber que raio ele estava a fazer. Pensava que ele deveria estar encafuado na biblioteca ou empenhado em qualquer tipo de atividade extracurricular para os mais dotados. — Não estavas habituada a esse tipo de atenção — disse o Léo. — Talvez não — disse eu. — Acho que a minha cara deve ter mostrado bem a minha perplexidade. O Léo riu-se. — Devias ter-te mantido na tua. — Estavas a ouvir quando eu te disse como me vestia? O acordeão ainda estava a tocar baixinho. Enquanto avançávamos pelas curvas estreitas de Montmartre, comecei a fantasiar. Imaginei-me num lindíssimo edifício bege com as portadas de um apartamento escancaradas e uma �oreira pendurada no peitoril da janela e, na rua calçada em baixo, alguém a tocar uma canção melancólica. O Léo estava ao meu lado a rir-se de alguma coisa, o doce aroma de waf�es e �or de cerejeira a invadir o ar. Despertei de novo para a realidade. O que estava eu a fazer? — Tenho de saber como correu o encontro com esse… Gus? — disse o Léo. — Foi bom? — Quer dizer, eu estava ótima. Tinha-me coberto de sombra para os olhos azul e lilás da minha mãe e posto o cabelo para cima num rabo de cavalo alto, assim — disse eu, mostrando-lhe como conseguia puxar tanto o cabelo para cima que parecia que tinha feito uma cirurgia plástica ao rosto. Ele levantou as sobrancelhas e eu ri-me e dei-lhe uma cotovelada na brincadeira. — E lembras-te do que é que ele trazia vestido? Recordei aquele dia. — Uma camisa aos quadrados. Debaixo de uma camisola de tom azul-marinho com gola em V. — Classique. — Quando me viu, deu-me um aperto de mão. — Demasiado formal? — O �lme era aterrador, lembro-me disso. — Não gostas de �lmes assustadores? Abanei a cabeça. — Nem um bocadinho. E ele nem sequer me abraçou nem nada. Tive as mãos à frente dos olhos na maior parte do tempo. — Ele não te beijou? — disse ele, com um ar chocado. Tinha a impressão de que o Léo nunca se teria contido nesse aspeto. — Naquela noite não. — Quanto tempo é que durou esse romance? — perguntou, apontando para uma bela entrada de uma estação de metro que eu estava certa de já ter visto num �lme. Tirei uma fotogra�a às grades românticas verde-hortelã e à abóbada coberta de vidro. A encimá-la estava o clássico sinal verde e amarelo do Metropolitain. — Oh, umas três semanas. O Léo olhou para mim, impressionado. — Tanto tempo? — Um dia, ele deixou de falar comigo, sem mais nem menos. Encurralei-o no laboratório de ciências para descobrir porquê e ele deu-me com os pés, ali mesmo, com a bata branca e os óculos de proteção na cara. Tinha sido tudo há muito tempo, mas eu ainda me conseguia lembrar de como me tinha sentido naquele dia, no quanto me doera. Quão rejeitada me sentira. Porque era óbvio que não era su�cientemente boa para um aluno exemplar como o Gus. Como é que poderia ser, lembro-me de ter pensado, quando eu não era sequer su�cientemente boa para fazer com que o meu pai se deixasse �car por casa? Ambas as situações apareciam ligadas na minha cabeça e era sempre a mesma coisa: eu parecia não ser capaz de ultrapassar as adversidades da mesma maneira que as outras pessoas. Cada pequena anomalia, cada pequeno erro era mais um lembrete de que eu era uma rapariga que ninguém queria. Mesmo que o meu pai já não amasse a minha mãe, ele podia ter continuado a ver-me. Aquela sensação de ser descartada, ou abandonada, tinha continuado a afetar-me ao longo da vida inteira. E eu estava cansada de me sentir assim e não queria que as coisas continuassem da mesma forma. — Deixa-me tirar uma fotogra�a tua aqui — disse eu, acenando ao Léo para que ele se afastasse. — Quero-te mesmo debaixo do sinal do Metropolitain — disse eu. — Só há duas entradas originais como estas em toda a cidade de Paris — disse ele. — Chamam-se «as libelinhas», por alguma razão. Talvez tenham sido inspiradas nas asas delas. Desta vez, ele não fez uma pose tonta, limitou-se a pôr as mãos nos bolsos, inclinar a cabeça e olhar para mim por entre a franja do cabelo. Quando olhei para ele pelo visor, pensei sinceramente que podia ser uma das imagens mais adoráveis que já tinha visto. O Léo olhou para o relógio. — Anda. Se corrermos por estas escadas acima, vamos ver uma praça secreta, uma dasminhas favoritas na cidade. Très artistique. Vistas muito bonitas. — Que horas são? — perguntei, ao chegar perto do Léo, enquanto via a mala a agitar-se para cima e para baixo nos ombros dele. — São 12h45. — Só falta uma hora — disse eu, mais para mim própria do que qualquer outra coisa. Era engraçado que quando o dia começara, eu só queria que as horas passassem para poder ir para o casamento e estar de novo com o Si. E, de repente, ao �m da manhã, o que mais queria era que o tempo parasse. Que �cássemos em pausa, ali mesmo naquele momento. — Despacha-te — disse ele. — Aqui em cima. Subimos alguns degraus e chegámos a uma praça calcetada coberta de folhas. De ambos os lados, os restaurantes tinham as mesas animadas a estender-se até ao passeio, cheias de pessoas a desfrutar de um spritzer a acompanhar o almoço sob o sol do meio-dia. Havia um hotel com ar pitoresco do lado mais distante e outro edifício chamado Bateau-Lavoir. — O que é aquilo? — perguntei, apontando para o edifício. — Vou mostrar-te — disse ele, conduzindo-me pela praça adiante. À medida que avançávamos diagonalmente pela calçada, vimos um grupo de familiares, amigos e curiosos reunido em volta de um casal que, presumivelmente, teria acabado de se casar. Ela trazia apenas um vestido solto creme e sapatos de salto alto com uma tira no tornozelo e ele uma camisa branca aberta no pescoço. Todos se riram quando alguém atirou confetti e houve uma explosão de �ashes de máquinas fotográ�cas a tentar registar a chuva de papel em tons pastel. — Ora, ali está o meu tipo de casamento — disse eu, tirando, sub-repticiamente, uma fotogra�a do grupo. — Se alguma vez me casar, gostaria que fosse algo daquele género. — Quando te casares, é isso que queres dizer? — corrigiu ele, retomando a caminhada. Juntei-me a ele até chegarmos diante da montra do Bateau- Lavoir, que, de perto, não era mais do que uma frente de loja preta com o ar sombrio de uma casa mortuária. Havia alguns quadros e desenhos aparentemente não relacionados expostos na montra. — Esta era uma residência de artistas muito famosa no �nal do século XIX e início do século XX — disse ele. — Estou certa ao pensar que Picasso pintou uma das suas famosas obras aqui? — disse eu. O Léo anuiu. — Les Desmoiselles d’Avignon. Pus as mãos no vidro. — Tanta história. — Uma altura entusiasmante para se ser artista, non? Viver, pintar e beber com Modigliani, Matisse e Cocteau. Consegues imaginar? — E como é que sabes tanto sobre Paris, a�nal? — perguntei- lhe. — Se fores assim em outros temas, tens de ir a um concurso. Ou participar num pub quiz ou algo assim. — O que é um pub quiz? — perguntou ele, apertando o nariz. — É uma espécie de concurso de cultura geral. Num pub — disse eu, a rir-me. — A equipa vencedora ganha dinheiro. Se um dia fores a Londres, tens de experimentar um. — Tu vais ser da minha equipa? — perguntou. — Claro. Era impossível imaginá-lo em Inglaterra, pensar em como se comportaria fora de contexto. Tudo parecia uma amálgama na minha cabeça: a própria cidade de Paris, a preocupação com o Si, os sentimentos que estava a desenvolver pelo Léo e que ainda não tinha percebido bem. — Ah! — disse ele. — Quase me esquecia. Tens de experimentar a melhor crêperie do mundo. Eu �z um som de reprovação com a língua nos dentes. — Há outros sítios com ótima cozinha, sabias? — Desa�o-te a apontares um lugar com comida mais deliciosa do que Paris. Recusei dar-lhe uma resposta com um aceno e segui-o com renitência em direção a uma banca embutida na parede que, para dizer a verdade, parecia uma daquelas tascas manhosas de pizza na parte mais reles da Oxford Street. O Léo já estava com os olhos postos num quadro preto com uma lista de cerca de 20 variedades de crepes. Quem haveria de dizer que se podia fazer tantas coisas com uma massa? — Qual é que preferes, Hannah? — disse o Léo, ridiculamente entusiasmado. — Hum, limão e açúcar? — Não. Absolument pas. Tens de provar algo que nunca provaste antes. — Porquê? Ele olhou para mim. — O dia de hoje tem tudo que ver com isso, non? — Então e se eu �zer a escolha errada e não gostar? — Qual é a pior coisa que poderá acontecer? Suspirei e inclinei-me para olhar para a ementa, tentando decifrar tudo o que estava escrito para não acabar por escolher coisas com caracóis lá dentro ou algo igualmente repugnante. — Pode ser um Denise — disse eu, por �m, a pensar que era maçã, caramelo salgado e gelado de baunilha. Tudo coisas que não há como não gostar. — Bon — disse ele. — Boa escolha. Ele fez o pedido e, enquanto esperávamos, sentámo-nos num banco na praça, à sombra de uma árvore, com os pés pousados na mala dele. Ao nosso lado, havia um fontanário em funcionamento que estava muito concorrido, com as pessoas a chegarem com garrafas na mão para as encherem e as crianças a correrem em volta da base. À nossa frente, a espreitar por entre os edifícios, tínhamos uma vista encantadora dos telhados de Paris. — Sabes, quando viajo para um sítio novo, gravo sempre uma imagem desse sítio na cabeça, algo muito colorido e evocativo — disse eu. — Para poder lembrar-me da sensação de estar lá quando volto a casa. Tirei uma fotogra�a depois de ajustar a luminosidade porque o sol estava mesmo em cima das nossas cabeças e tudo parecia pálido e difuso. Tinha começado quando era criança. Houve um ano em que a minha mãe alugara uma caravana perto de Bournemouth e eu voltava sempre a uma imagem em que estava a andar em direção a um molhe de madeira com um algodão-doce quente e cor-de-rosa na mão, os tinidos da música do carrossel ao fundo e a minha mãe — descontraída por uma vez — com os óculos de sol postos e a sorrir para mim. — Acho que deve ser esta — disse eu. — A imagem em que vou pensar quando me quiser lembrar de Paris. — Tinha esperança de que substituísse a imagem do passado, que, por vezes, me assaltava quando menos esperava. Costumava ter um �ashback, uma imagem de contornos difusos em que eu ia a andar a pé junto ao Sena quando me apercebia de que a viagem a Paris tinha sido em vão. E, �nalmente, talvez passasse a ter aquele momento no parque para o substituir. O Léo deu-me um toque nas costelas. — Quer dizer que acabei por te convencer. Tirei os sapatos e mexi os dedos dos pés. — Acho que explorar Paris contigo não foi assim tão mau como eu pensava que iria ser. — Eu sabia. Eu ri-me. — És mesmo irritante, sabias? — Sabia — disse ele, a rir-se para mim. Fechei os olhos e inspirei o aroma da massa doce e do chocolate derretido que se espalhava pela praça. — O que aconteceu da outra vez? — perguntou ele. — Da última vez que estiveste aqui? — E depois, quando viu a minha cara, acrescentou: — Não tens de me contar, se não quiseres. Senti a garganta a apertar-se. Não era tanto a ideia de lhe contar, mas mais o medo dos sentimentos que pudessem daí advir. Sabia que se os mantivesse enterrados, se nunca falasse sobre eles, era capaz de me aguentar. Era sempre assim que eu lidava com as coisas de que não gostava. Não fazia ideia do que aconteceria se, de facto, falasse sobre o passado, se dissesse as palavras em voz alta. Nunca o tinha tentado antes. — Eu vim a Paris sozinha — disse-lhe com hesitação. — Tinha acabado de completar 19 anos e estava um pouco transtornada. Tinha feito merda nos meus exames de acesso à faculdade e todos os meus amigos tinham ido para uma escola superior ou faculdade. Eu ainda estava a viver em casa e a trabalhar na caixa de uma loja de roupa na minha cidade natal. Não fazia ideia do que queria fazer da minha vida. — E então vieste viajar? A Paris? Abanei a cabeça. — Não propriamente. Não foi uma viagem de lazer, nem uma aventura num ano sabático. Vim à procura do meu pai. O Léo inclinou-se para a frente, as mãos entrelaçadas em cima das coxas. — Ele estava aqui? Na cidade? Baixei os olhos para as minhas unhas e examinei-as uma a uma. — Eu pensava que sim. Ele tinha-me enviado um postal de aniversário, o primeiro que eu recebi em muitos anos. Só que não chegou no meu aniversário. Ele tinhaposto o número de casa errado e o código postal também não estava correto. O meu aniversário é em junho e só o recebi em setembro. — Tu e a tua mãe tinham-se mudado? — Não. Era a mesma casa onde ele tinha vivido. Ele não se lembrava sequer onde a própria �lha morava, o que era bonito. Apercebi-me de que o joelho do Léo estava encostado ao meu. Sem pensar demasiado, retribuí o encosto. — Eu tinha algum dinheiro poupado. Queria comprar uma máquina fotográ�ca usada e andava a poupar aos poucos aqui e ali. Tinha o su�ciente para uma viagem de ida e volta de um dia pelo Eurostar. — Tinhas a morada dele? — Ele tinha-a rabiscado nas costas do envelope. Pensei que devia querer que eu fosse à procura dele, senão para que é que haveria de se dar ao trabalho? Era o sinal pelo qual eu esperava há muitos anos, a prova de que ele sentia a minha falta tal como eu sentia a dele. Vim para Paris na semana seguinte. Ele estava a viver num apartamento em Belleville, não me lembro do nome da rua. Um cãozinho com um latido estridente passou à nossa frente, intensi�cando os nervos que eu já sentia. Ouvimos alguém a chamar e, quando nos virámos, era o homem da crêperie, a acenar com o nosso pedido, um em cada mão, os crepes envoltos em guardanapos brancos de papel. O Léo foi a correr buscá-los. — Toma — disse ele, deixando-se cair de novo ao meu lado e estendendo-me o meu Denise. Dei uma dentada e fechei os olhos durante um segundo ou dois. — Tens razão — disse eu. — Tenho de o admitir. Declaro que este é o melhor crepe que já comi na vida. — Estou em pulgas para te dizer «eu avisei-te». — Não o faças, por favor. — Queres provar o meu? — perguntou o Léo. — O que é que tem? — É o Spéciale Bretonne — disse ele. — Chocolate, pera, gelado de baunilha, Grand Marnier e talvez mais qualquer coisa de que não me lembro. Estendeu-o na minha direção e, quando tentei segurá-lo, pus a minha mão sobre a dele. Agarrei-a bem e dei uma trinca. Ele estava tão perto de mim que eu conseguia ver o meu re�exo nas pupilas dos olhos dele. — Hum — disse eu, desviando os olhos e lambendo os lábios. — É delicioso. — Então continua o que estavas a dizer sobre o teu pai — disse ele. — Raios. Pensava que me tinha escapado. — Já sabes que sou perito em fazer perguntas — disse ele. Dei mais uma dentada no crepe para ter mais alguns segundos para pensar. Para me imaginar naquela altura. — Apanhei o primeiro comboio da manhã. Pensei que ia dormir o caminho todo, mas não consegui pregar olho. Estava demasiado ansiosa. Quando cheguei à Gare du Nord, fui a pé até Belleville, porque não tinha dinheiro para o metro, quanto mais para um táxi. — O que aconteceu quando chegaste ao apartamento dele? Abanei a cabeça. Aquela era a parte difícil. A parte que parecia inacreditável, ao olhar para trás. O tipo de coisa que acontecia a personagens de telenovelas, mas não a pessoas na vida real. Pelo menos, não às pessoas que eu conhecia. — Quem me abriu a porta foi uma mulher. Tinha um ar muito francês, era mais velha, estava toda vestida de preto. Disse-me que tinha havido um casal a viver lá, um homem português e uma mulher francesa, mas tinham-se mudado algumas semanas antes. Ao que parece, tinham tido de sair à pressa, ela não sabia porquê, ou, pelo menos, não me quis dizer. — Tinham deixado alguma morada nova? — Não. Nada. Ela não fazia ideia do sítio para onde eles tinham ido nem sequer se ainda estavam em Paris. Disse-me que eram muito reservados, que não sabia nada sobre eles, a não ser que tinham pago a renda a tempo, que era a única coisa com que ela parecia preocupar-se. Vi uma menina pequena a balançar-se em volta de um candeeiro público, um daqueles antigos que me fez pensar em Paris ao �m da noite. Devia ser ainda mais romântica, pensei, à luz do luar, os candeeiros públicos a brilhar nas ruas, os raios de luz das janelas dos apartamentos mais acima a passar pelas frinchas depois de toda a gente fechar as portadas. — Quer dizer que a tua viagem foi em vão. — Vagueei pelas ruas um pouco, sentei-me num banco numa pequena praça, na esperança de o ver passar se olhasse com atenção su�ciente. Não tinha sequer a certeza de que o reconheceria ao �m de tanto tempo. Depois acabei por desistir e fui a pé até ao centro da cidade. Faltavam muitas horas para o comboio partir. Caminhei ao longo do Sena até chegar às ilhas. Vi Notre Dame, que é a única coisa que me deixa contente agora, claro. Foi a única coisa que �z o dia todo: andar, andar e pensar. Percebi, mais tarde, que talvez o meu pai tivesse enviado o postal de aniversário como uma espécie de adeus. — Porque é que ele haveria de fazer isso? — E que ele não tinha intenção de pôr a morada nas costas do cartão. — Não, Hannah. — Nunca mais tive notícias dele. Por isso, não devia ter desejado assim tanto ver-me, não é? Desviei o olhar, porque, de repente, o ar parecia estar carregado com alguma coisa e eu �quei assustada. Sentia que o Léo estava realmente ao meu lado quando lhe falava da minha vida. Podia ser pela forma como os olhos dele se abriam e iluminavam tanto, ou pela voz melancólica, que se tornava ainda mais evocativa devido àquele melódico sotaque parisiense que ele tinha. Podia ser a magia de Paris e estar naquela praça tão bonita. Era engraçado ver como podíamos conhecer um completo estranho, ser empurrados um na direção do outro e começarmos a partilhar coisas que nunca tínhamos dito, e provavelmente nunca iríamos dizer, aos nossos amigos mais próximos. — Não podes controlar o comportamento das pessoas — disse o Léo em voz baixa. — Talvez o teu pai tivesse as suas razões para não entrar em contacto contigo e tu poderás nunca saber quais eram. Mas o que tens de ter sempre em mente é que não �zeste nada de errado. Tu sabes disso, oui, Hannah? Eu encolhi os ombros e tentei afastar da ideia a imagem do meu pai, que, de repente, estava muito viva na minha memória. — Foi há muito tempo. Já está na altura de eu seguir em frente, não achas? Ele levantou-se e protegeu os olhos do sol. — Há certas coisas que nunca conseguimos ultrapassar. Eu envolvi os braços no meu próprio corpo e fechei os olhos por um segundo ou dois até que os raios de sol deixassem o interior das minhas pálpebras cor de laranja. — Por exemplo, eu não consigo ultrapassar o facto de me teres feito perder a minha tão importante reunião em Amesterdão. Olhei para ele com gravidade e �quei aliviada quando o vi sorrir. Ele hesitou, a olhar de soslaio para mim. — Há mais uma coisa que tenho de te mostrar. Abanei a cabeça. — Vá lá, Léo, de certeza que não conseguimos encaixar mais nada a tempo. — É verdade, não temos muito tempo. Mas quero terminar a tua segunda, e muito melhor, viagem a Paris em alta. Literalmente. — O que estás a querer dizer? — Temos de ir ao Sacré Cœur. Insisto. Não podes vir a Paris sem o ver. — Se eu perder o próximo comboio para Amesterdão, sabes que te vou matar — adverti. — Oh, sim — disse ele. — Eu sei. Capítulo 16 Pousei o queixo no ombro do Léo quando seguimos colina acima, com o seu casaco com capuz ainda atado à minha cintura, a agitar-se atrás de mim. — Vês a basílica? — gritou o Léo por cima do ombro. — Estou a vê-la — gritei. Estava mesmo à nossa frente, a erguer-se por entre outros edifícios, tão espetacular como parecia ser em todas as fotogra�as. Continuámos a subir a colina sinuosa em frente da basílica, a rua, ondulada e calcetada, pontuada por mais alguns dos bonitos candeeiros públicos de estilo antigo que eu tinha visto na praça, as lâmpadas amarelas envoltas em vidro transparente. Do carrossel de uma feira surgia uma versão tilintante de Twinkle, Twinkle e os turistas enxameavam os jardins que levavam à basílica, atraídos para o cume pela promessa das vistas. Passámos como uma seta por eles, roçando o início da linha do funicular que levava turistas para o cume e para o sopé da colina o dia inteiro. Os telhados inclinados e as chaminés de Montmartre estendiam-se pela colina abaixo e, à nossa esquerda, via-se a Torre Eiffel, que parecia minúscula apartir dali. Quando chegámos ao cimo, estacionámos e �cámos lado a lado, as nossas cabeças inclinadas para cima numa espécie de silêncio reverencial perante as cúpulas enormes, totalmente brancas e brilhantes do Sacré Cœur. Imaginei como deveria ser majestoso e misterioso ao início do dia, antes de os turistas chegarem, se o tivéssemos todo só para nós. — Às vezes, venho cá acima para compor — disse ele, como se estivesse a ler-me os pensamentos. — Quando está calmo. No inverno ou logo de manhãzinha. Tenho impressão de que as palavras saem com mais facilidade aqui do que em qualquer outro lugar. Eu assenti com a cabeça, desejando ter tempo para entrar na basílica. — Sentamo-nos? — disse ele. — Só um bocadinho? — Seria uma indelicadeza não o fazer — disse eu, que ainda não estava pronta para me afastar daquela vista. Encontrámos um lugarzinho nas escadas principais que atravessavam os jardins e davam para a cidade. Ele pousou a mala entre os pés. Eu peguei na garrafa de vinho que ele tinha comprado junto à Torre Eiffel e que eu levava na minha mala, e brandi-a entre nós como um ilusionista a segurar nas orelhas de um coelho. — Um copo rápido, antes de partirmos? — Faço minhas as tuas palavras. Seria uma indelicadeza não o fazer — disse ele. Enchi um copo para cada um e bebemos o vinho em silêncio, enquanto observávamos o que parecia ser Paris inteira estendida à nossa frente. Reparei que era maioritariamente plana ou com pequenas elevações, muito mais do que Londres, e quase toda de uma cor só, um belo creme, encimado pelos sempre presentes telhados cinzentos como ardósia. — Estamos no ponto mais alto de toda a cidade de Paris, tirando o cimo da Torre Eiffel — disse ele. — Algo como 130 metros acima do nível do mar. — O que é aquilo? — perguntei, apontando para um edifício colorido à distância, com bolas em cima, como um brinquedo de criança. — É o Centre Pompidou — disse ele. — É uma galeria de arte muito moderna com uma arquitetura mais ou menos às avessas. E de lá, do bar no telhado, dá para ter uma perspetiva muito bonita deste local onde estamos agora, das colinas de Montmartre e da basílica. Um menino passou por nós a correr pelas escadas acima, a sorrir alegremente, a mãe atrás, ofegante, a tentar alcançá-lo. Eu ri-me. — Dás-te bem com a tua mãe? — perguntei-lhe. — Não me chegaste a falar dela. E deves estar farto de me ouvir queixar da minha, por isso, vá lá, é a tua vez. Ele mudou de posição, esticou as pernas à frente dele e agitou o cabelo. — Na verdade, a minha mãe morreu — disse ele. — Quando eu tinha 17 anos. Baixei a cabeça e olhei para os pés, compungida. Era tão estúpido da minha parte não o saber já, tinha sido completamente egoísta por não lhe ter perguntado nada antes. — Peço imensa desculpa — disse eu. — Não fazia ideia. — Como poderias fazer? Há uma diferença entre ler as pessoas e ler as mentes, Hannah — disse ele. — Eu sei, mas… — Eu nunca falo sobre o assunto. Não é assim que eu sou. Para mim, é melhor se ninguém souber e não �car a olhar para mim de forma diferente a seguir. — Como assim? — Não vão �car com pena de mim. Tentei agir como se não tivesse pena dele, embora tivesse. Tinha muita pena. — E porque é que isso é assim tão mau? — perguntei. Ele encolheu os ombros. — Não condiz comigo. Eu sempre fui o mais forte. O tipo divertido, o rapaz das festas. Depois de ter acontecido, a única coisa que eu fazia era sair com os amigos, beber e envolver-me em rixas e só me lembrava de ir para casa quando o dia já tinha nascido. Toda a gente pensava que era a minha forma de lidar com a situação, que eu era jovem e andava por aí a divertir-me, apesar de a minha mãe ter morrido. Mas eu bebia, lembro-me muito claramente, apenas para poder entorpecer a dor. — Funcionou? — Durante algum tempo. E depois pensei: caramba, não posso fazer isto o resto da vida. A minha mãe ia �car fula! Já tinha sido convidado para ir para o Instituto Superior de Música, o que a tinha deixado muito orgulhosa. Por isso, arrumei as minhas coisas e vim para Paris logo que pude. Um grupo de turistas japoneses subia as escadas decidido na nossa direção, atrás de um guia com uma bandeira amarela na mão. Eu deslizei para mais perto do Léo para os deixar passar. — É por isso que Paris é tão importante para ti? Ele anuiu. — A minha mãe era de cá, por isso senti-me imediatamente mais próximo dela, mais do que quando estava na minha cidade natal. — Onde é que é? — Limoges. É uma pequena cidade a sudoeste do centro de França. — Porque é que a tua mãe saiu de Paris? — Ela conheceu o meu pai e ele não era um grande amante de cidades grandes. Tínhamos uma casa muito bonita junto ao rio e tudo o que poderíamos precisar, mas ela sentia falta do bulício de Paris. De vez em quando fazíamos uma viagem juntos até cá, nós os seis: a minha mãe, as minhas irmãs e eu. Só viemos uma vez ao Sacré Cœur. Lembro-me de que comemos um gelado e sentámo- nos nos degraus ali à frente e a minha mãe contou-nos histórias de como era quando ela era criança. — Ainda sentes falta dela? — Todos os dias. E também penso todos os dias que não lhe disse adeus. E continuo a sentir-me mal por isso. — O que é que aconteceu? — Eu sabia que não lhe restava muito tempo, mas não conseguia suportar vê-la naquele estado, tão doente e com não sei quantos tipos diferentes de medicamentos que mal se aguentava acordada. Ela sempre foi tão cheia de vida, por isso foi muito difícil para mim vê-la assim, deitada na cama, tão pequena e tão triste. — Claro — disse eu. — Imagino. — Por isso, estava sempre fora de casa, andava pelo centro da cidade, esperando o mais que podia até voltar para casa. E, um dia, cheguei à nossa casa e o meu pai estava na cozinha a chorar e as minhas irmãs também. Eu já os tinha ouvido do outro lado da rua e já sabia, antes de entrar, que ela tinha morrido e que eu tinha perdido a minha oportunidade. Engoli em seco. — Tens remorsos por não teres estado com ela — disse eu. Ele assentiu com a cabeça. — Ficou comigo desde então. A verdade é que, de alguma maneira, foi por isso que eu voltei a ir ter contigo — disse o Léo. Olhei para ele, sem compreender. — Na Gare du Nord? — Não consigo suportar sentir-me culpado ou desiludir alguém. Não consigo aguentar e faço tudo o que posso para não me sentir assim. Porque me leva de volta àquela altura. E embora eu saiba que é uma situação diferente, e que as circunstâncias também são diferentes, sinto-me quase tão mal como me senti naquela altura. — Será isso �nalmente um pedido de desculpa por me teres feito tropeçar? — disse eu, tocando-lhe no joelho com o dedo mindinho. Ele mostrou-me um sorriso fraco. — Boa tentativa, Hannah. Ouviu-se um aplauso do fundo das escadas, onde um artista de rua estava a soprar bolas gigantes para o ar e a fazer com que todas as crianças andassem de um lado para o outro num enorme frenesi, tentando desesperadamente apanhar uma. O Léo olhou para o relógio. — Temos de ir! — disse ele, levantando-se. — Já são 13h15. Vou ter de estacionar a moto na estação e ligar ao Hugo a dizer-lhe onde está. Ele vai �car fulo, claro. A Sylvie vai �car louca com toda a gritaria. — Aposto que vai — disse eu, sem me mexer. — Hannah? — disse ele, estendendo-me a mão. Eu agarrei-a e ele ajudou-me a levantar. No entanto, enquanto caminhávamos de volta para a moto, ele não a largou. E eu não a puxei para me libertar. Deixámos as nossas mãos arrastar-se entre nós, a minha dentro da sua, os dedos dele entrelaçados nos meus. Eu podia dizer a mim própria que era por causa do que ele tinha acabado de me dizer, que eu o estava a reconfortar e nada mais. Mas não era o que eu sentia. O Léo tinha tornado um dia terrível, o pior dos dias, numa sequência de momentos que eu recordaria para sempre. Eu começava, por �m, a ver as coisas mais claramente e pensava que, em parte, era por causa dele. Passámos por um músico de rua a tocar La Vie em Rose ao saxofone. O momento parecia surreal, cinematográ�co: o Sacré Cœur atrás de nós, o sol quente na minha pele,a música e o Léo a não me largar. Capítulo 17 Sem grande margem de manobra, chegámos à Gare du Nord pouco depois das 13h30, dez minutos antes de o comboio partir da estação rumo a Amesterdão. — Não acredito que estivemos a um triz de o perder — resmoneei, avançando a passos largos pelo cais de embarque antes de entrar numa das últimas carruagens. — Relaxa, Hannah. Chegámos, não chegámos? — disse ele, arrastando a mala atrás de si pelas escadas acima. — Por pouco — disse eu, embora soubesse que não devia estar a descarregar a minha má-disposição em cima dele. Ele não me tinha obrigado a ir a nenhum daqueles lugares com ele, a continuar a vaguear de sítio bonito em sítio bonito. Eu tinha de ser responsável pelas minhas próprias ações: decidira ir com ele e estava mais confusa do que nunca. Não podia culpar ninguém a não ser a mim mesma. — Podes sentar-te perto da janela — disse o Léo, esticando-se para en�ar a mala no porta-bagagens superior. — Obrigada. — Encolhi-me para passar por ele e sentei-me. O ar condicionado ainda não estava a funcionar e, para me refrescar, abanei um mapa de passeios que trazia de Veneza e que queria guardar como recordação. O Léo mexia-se para um lado e para o outro. Parecia que não era capaz de �car quieto. Tirou o casaco, voltou a abrir a mala para ir buscar uma revista e depois fechou-a ruidosamente até que se deixou cair no assento ao meu lado. Eu encostei a cabeça à janela, a olhar para os homens em casacos �uorescentes que andavam apressadamente para a frente e para trás no cais do embarque. — A que horas é que eles disseram que o comboio chegava? — perguntei. Praticamente não tinha pensado no Si nas últimas horas, o que era preocupante, dado que, quando chegasse a Amesterdão, havia a possibilidade de ele me pedir em casamento a qualquer momento. A realidade estava cada vez mais próxima e aquela bolha onde eu estivera, com o Léo, a passear por Paris como se fôssemos �gurantes numa nova versão de Amélie, estava prestes a rebentar. — Às 16h57. O casamento é às 17h30, não é? — perguntou ele. — É — respondi, sentindo uma dor no estômago só de pensar no assunto. Ouviu-se uma buzina, alguém de farda azul acenou com uma tabuleta e o comboio começou a andar, trepidante de início, a deixar a cobertura de vidro da Gare du Nord e a seguir caminho pelos arredores da cidade. Cravei a unha do polegar na parte carnuda da palma da mão. Paris não demoraria a �car para trás e as últimas horas iriam parecer apenas uma anomalia no resto da minha vida corriqueira. Perguntei-me se acabaria por me esquecer do Léo. Se haveria de ter di�culdade em lembrar-me do timbre da voz dele, dos traços exatos do seu rosto. Da felicidade que ele me tinha feito sentir, da frequência com que me �zera rir. — Precisas de procurar alguma coisa? — perguntou o Léo, oferecendo-me o telemóvel dele. Encolhi os ombros e, perdida nos meus pensamentos, abri a mão para receber o aparelho e quase o deixei cair. Dobrámo-nos para o agarrar ao mesmo tempo e as nossas cabeças embateram uma na outra. — Ai — disse eu, esfregando a testa. — E ainda dizes que não és desastrada — disse ele. O Léo esfregou o polegar exatamente no sítio da minha têmpora onde doía. — Espero que não tenhas uma nódoa negra aí amanhã — disse ele, afagando-me a pele durante o que pareceu uma eternidade. Quando parou, eu queria pegar na mão dele e voltar a pô-la lá. — Pois — disse eu, tentando recompor-me e focar-me na pesquisa de direções da Estação Central para o hotel The Lux, caminho que, pelo que vi, demoraria aproximadamente 19 minutos de carro. Seria uma sorte se conseguisse chegar à cerimónia, não podia haver nenhum tipo de engarrafamento. Depois entrei na minha conta de e-mail para ver se a minha mãe ou a Ellie tinham respondido às minhas mensagens. Tinha quase a certeza de que a minha mãe não o teria feito, porque sempre que eu lhe enviava um e-mail, primeiro tinha de a avisar com uma mensagem escrita a dizer «vai ver o teu e-mail», o que, habitualmente, era motivo de grande comoção, embora o conteúdo da mensagem fosse quase sempre muito aborrecido. Deslizei o dedo pela caixa de entrada em estado de semiconcentração. Havia um artigo sobre como perder dois dedos de barriga em quatro semanas, uma oferta de 40 por cento de desconto na Gap, que era inútil porque eu não tinha dinheiro para os restantes 60 por cento. E depois, reparei que tinha um e- mail da Central Saint Martins. Deixei o dedo a pairar sobre o título do e-mail e depois premi-o. Era um lembrete sobre o curso de fotogra�a. A indicação de que deveria carregar o meu portefólio e obter o formulário de candidatura até à quarta-feira seguinte, que estava a menos de uma semana de distância. Eu sabia exatamente porque tinha adiado tanto a decisão: tinha avançado e recuado, sempre a perguntar-me se teria tempo para me dedicar ao curso e se seria su�cientemente boa para ser aceite, com receio do que pudesse sentir no caso de não conseguir vaga. — O que é isso? — perguntou o Léo, olhando por cima do meu ombro. Mostrei-lhe. — É o teu curso? Aquele a que te vais candidatar? — indagou. Eu assenti. — Se conseguir tratar de tudo o que é preciso a tempo, claro. — Porque é que não haverias de ter tudo pronto a tempo? — perguntou ele. Passei o polegar pelo meu lábio inferior, para um lado e para o outro. — Teria de conseguir revelar e digitalizar os rolos todos quando chegasse a Londres. Pensar muito bem sobre quais seriam as imagens a enviar — expliquei, com o cabelo dele a roçar-me na face enquanto líamos o e-mail juntos. — Tiraste muitas fotogra�as, Hannah. Não acredito que vá ser difícil encontrares as mais adequadas para enviares. — Mas agora estou com dúvidas de que sejam su�cientemente boas. Sentia o coração a começar a acelerar. Tive a sensação de que tinha uma pequena janela de oportunidade para mudar as coisas. Que era aquilo que eu queria, a oportunidade por que esperava. Tinha acabado de usar dois rolos em Paris: tinha de haver uma história, um tema que pudesse servir de base ao meu portefólio. Devolvi-lhe o telemóvel, estendi a mão para debaixo do assento e retirei o vinho e os copos do plástico da minha mala. — Vamos acabar isto — disse eu. O Léu baixou as nossas mesas e encheu-nos os copos. — Vês? Não te embebedei antes do casamento. — Na verdade, acho que preciso de estar embriagada — disse eu, contendo-me para não beber o copo todo de uma assentada. Eu sonhava ser fotógrafa há muitos anos. E se aparecesse alguém que recusasse a minha candidatura, me dissesse que as minhas fotogra�as eram horríveis e destruísse os meus sonhos? O que iria eu fazer? E ter ido ao dia aberto não tinha ajudado. Quer dizer, tudo me parecera maravilhoso, e as instalações eram extraordinárias, mas sentira-me completamente fora do meu elemento naquele edifício altamente conceptual em Kings Cross cuja entrada estava repleta de artistas cheios de estilo e muito jovens com ar sério e criativo. Mas, pensando bem, de início também estava fora do meu elemento em Paris e depois foi o que se viu. — Passaste por alguma destas coisas com a tua música? — perguntei-lhe. — Esta insegurança. Esta sensação constante de que te estavas a enganar a ti próprio o tempo todo? — Continuo a passar por isso — disse ele. — Esta noite, em Amesterdão, tenho de os convencer de que a minha canção é su�cientemente boa, que a minha música é a adequada para lançar a carreira de uma pessoa. E, lá no fundo, também começo a duvidar de mim mesmo, mas não deixo que isso me domine. Tenho de continuar a acreditar em mim, porque, se não acreditar, quem é que o vai fazer por mim? — Quem me dera ter metade da tua con�ança — disse eu. — E tens. Só que está escondida algures, por causa de todas essas experiências que tiveste. Mas há de estar aí dentro, só tens de a encontrar. — E como é que eu faço isso? — Atira-te de cabeça — disse ele, fazendo um movimento de mergulho com a mão. — Arrisca em alguma coisa. Ou em alguém, pensei. Apoiei o queixo na base da minha mão e olhei pela janela. Lembrei-me deque a Ellie me tinha dito a mesma coisa no dia em que conheci o Si, depois de eu lhe ter contado o que tinha acontecido na estação de metro e quando eu já me estava a lamentar e a dizer que provavelmente ele não me ligaria. — Deixa-me ver se compreendi bem — dissera a Ellie. — Ele foi a correr atrás de ti. Convidou-te para irem beber um copo. E depois �cou com o teu número. Porque diabo se daria ele a todo esse trabalho se não estivesse interessado, Han? Ela abrira o congelador e retirara a cuvete de gelo rosa-choque, cada um dos «cubos» com o formato de um �amingo. — Hum — respondera eu —, a eterna questão. — Tens de acreditar um bocadinho mais em ti — dissera a Ellie, colocando várias colheres de chá bem cheias de açúcar no liquidi�cador. Eu encolhera os ombros. — E, quando ele te ligar, tu vais dizer que sim, não vais? — dissera ela. — Talvez, mas ele não vai ligar — dissera eu, sentando-me num banco e observando a Ellie a cortar freneticamente um ramo de hortelã. — Mas se ele ligar? Atirara a hortelã para o liquidi�cador e depois despejara a cuvete de gelo inteiro lá dentro. Eu suspirara. — Não sei. Ele não é bem o meu tipo. A Ellie fora ao frigorí�co, retirara uma garrafa grande de rum e despejara pelo menos um terço no liquidi�cador. — Queres dizer que ele não é monossilábico, desempregado e completamente tapado sobre como viver um verdadeiro relacionamento entre adultos? Eu sabia que ela estava a brincar, mas também havia uma pontinha de verdade no que ela estava a dizer. O meu histórico com homens era atroz. Era como se eu andasse propositadamente atrás de tipos que tinham uma tremenda bagagem e aversão a relações monogâmicas. Havia algo na inevitabilidade dessas relações que me dava uma sensação de familiaridade e segurança. Era óbvio que tinham de acabar, pelo que era menos avassalador se eu o soubesse desde o início. Dar- me ao luxo de acreditar que alguém como o Si podia gostar de mim não me dava nenhuma sensação de segurança. Tinha ouvido o meu telefone tocar. O meu coração sobressaltara-se. Não podia ser ele, ao �m de tão pouco tempo, ou podia? Tirara-o do bolso e passara o polegar pelo ecrã. Tinha uma mensagem escrita de um número que eu não reconhecia. Olá, é o Si. Gostei muito de te conhecer. Será que estás livre para um copo na próxima quinta-feira? Tinha olhado para o ecrã com os olhos semicerrados para ver se havia lido ou interpretado mal o que lá estava escrito. — É ele? — perguntara a Ellie, o rosto ávido a aproximar-se de mim. — É, não é? Ela ligara o liquidi�cador e eu sentira as vibrações a sacudirem- me o corpo. Alguns segundos mais tarde, ela tirara o jarro, agitara-o e dividira o líquido gelado por dois copos de cocktail vermelho-rubi que eu lhe tinha oferecido por ocasião do seu 25.o aniversário. — Está bem, acalma-te. Sim, é ele — dissera eu, sem saber bem o que fazer naquele momento. Tinha sido tão boa a convencer- me de que ele acabaria por não me contactar que não tinha sequer pensado no que faria se ele realmente o �zesse. — O que é que ele disse? — perguntara a Ellie. — Vá lá, desembucha. Eu lera a mensagem em voz alta para a Ellie ouvir. Parecia ainda mais estranha quando eu a enunciava a viva voz. — Ora, parece-me muito bem — dissera ela, empurrando um cocktail na minha direção. — Voilà! Eu bebera um pouco e erguera-lhe o dedo polegar em aprovação. Parecia-lhe muito bem porque ele era muito mais o tipo dela. Ela sempre se inclinara mais para os bons rapazes, preferindo a estabilidade ao entusiasmo, o que era quase de certeza a razão pela qual os relacionamentos dela eram in�nitamente mais bem- sucedidos do que os meus. — Não sei bem o que fazer — dissera eu, virando o telefone ao contrário para não ter de estar sempre a olhar para o ecrã. — Não faças isso, Han — advertira ela, subitamente muito séria. — Não faço o quê? — Não faças o que acabas por fazer sempre ultimamente. Não te convenças de que tens de recusar antes de lhe dares uma oportunidade. Eu franzira o sobrolho. — Eu faço isso? A Ellie debruçara-se sobre o balcão com um semblante de desconforto. — Bem, tornaste-te muito mais cautelosa com as pessoas ao longo dos últimos anos, não tornaste? Parece que desististe um pouco. Tenho a sensação de que esperas sempre o pior. Eu esboçara um sorriso surdo. Ela nunca tinha dito nada antes. — O que queres dizer com isso? — perguntei, provando o meu cocktail sem saber se queria mesmo ouvir a resposta. — Tu costumavas correr riscos, Han. Não te lembras? Eras tu quem tinha a lábia toda, quem conseguia que entrássemos nas discotecas quando éramos menores. Compravas cigarros na loja da esquina porque não eras a mais alta, mas eras a única que tinha coragem para tentar. E depois, não sei… aconteceu alguma coisa. Logo antes de eu entrar para a faculdade. Tu mudaste, e nunca cheguei a compreender porquê. — Não mudei nada — protestara. — Sou exatamente a mesma pessoa que sempre fui. — Prova-o, então. Diz que sim, que adorarias sair com ele. O que tens a perder? O Si tinha algo diferente. Uma espécie de estabilidade intoxicante, a dose certa de autossegurança. Eu imaginara como seria ter alguém assim, e agora já sabia. No espaço de um ano, a minha vida tinha dado uma volta de 180 graus. Mas, de repente, comecei a perguntar-me quais seriam os motivos que ele tinha para avançar tão depressa. Se tinha sido magoado no passado pela ex-namorada, talvez estivesse à procura de algo mais fácil. De alguém que não representasse um desa�o, alguém que nunca o fosse deixar porque precisava demasiado dele. Ter-me-ia ele escolhido porque, com a minha baixa autoestima e a minha incapacidade de fazer alguma coisa produtiva, eu era o exemplo acabado de uma aposta segura? Parámos numa estação, que eu pensei que seria algures na Bélgica. Vi passageiros a entrar e a sair do comboio enquanto pensava em máquinas fotográ�cas e portefólios, em como seriam os meus colegas de curso, se realmente conseguisse entrar, e em como iria amealhar o dinheiro para as propinas. E depois pensei no que iria o Si dizer quando eu lhe contasse que ia mesmo candidatar-me. E pensei que talvez não fosse deixar que ele continuasse a in�uenciar-me tanto. Que tinha chegado a hora de pôr o meu cunho nas coisas, de tomar as minhas próprias decisões, de fazer as coisas sem ele, mesmo as coisas que ele não aprovava, se eu sentisse entusiasmo su�ciente por elas. Entraram dez ou doze pessoas para a nossa carruagem, ao que se seguiu o rebuliço da procura de assentos e de lugar no compartimento para en�ar a bagagem, bem como de retirada dos computadores portáteis das malas. O comboio voltou a arrancar, as rodas a chiar nos carris, a habitual paisagem de campos planos e verdes de volta à janela. O Léo estava a remexer no telemóvel havia algum tempo e, como uma criança, eu queria que ele voltasse a dar-me toda a atenção. Queria ouvi-lo falar. Queria saber tudo o que pudesse sobre ele no curto espaço de tempo que nos restava. Meti-me com ele. — Em que estás a pensar? Ele pousou o telemóvel no colo. — Estava a pensar — respondeu, juntando as mãos à frente da boca — em muitas coisas. Mas uma delas era se nos vamos lembrar deste dia. Daqui a cinco anos, ou a dez. Achas que nos vamos lembrar, Hannah? Eu puxei um caracol solto para trás da orelha. — Acho que sim — respondi, e virei-me para olhar pela janela. O comboio mergulhou num túnel. Bebi mais um trago de vinho. Conseguia ver o meu re�exo muito nitidamente devido à escuridão. Tinha os olhos brilhantes e despertos, apesar de não ter dormido. Conseguia ver o braço do Léo pousado na coxa. E depois ele inclinou-se para a frente e eu vi que ele estava a olhar para mim. Estendeu o braço para me afastar o cabelo do ombro com a mão, roçando os dedos pela parte de trás do meu pescoço. Quando saímos do outro lado do túnel e a carruagem voltou a �car clara, ele tirou a mão e recostou-se na cadeira. — Queres alguma coisa da carruagem-bar? — perguntou. Assenti com demasiado entusiasmo. — Pode ser. Uma coisa qualquer. Observei-o a seguirpelo corredor adiante, as calças de ganga largas na cintura, os boxers Calvin Klein à mostra. Fiquei aliviada quando desapareceu na carruagem seguinte e pude deixar de olhar para ele. Poderia ser capaz de pensar com mais clareza com o Léo longe da vista. Mas depois a minha mente voltou a divagar em direção a ele, mais um devaneio vívido, uma extensão daquele que tivera no apartamento em Paris. Dessa vez, tínhamo-nos afastado da janela. Ainda conseguíamos ouvir o acordeão a tocar e sentir a brisa suave. Ele encostava-me à parede, as mãos na minha cintura, o rosto junto ao meu, os lábios entreabertos, e eu sabia que ele me ia beijar e que eu queria que ele o �zesse mais do que qualquer outra coisa. — Ça va? — perguntou o Léo, aparecendo ao meu lado e pondo cobro ao meu devaneio. — Isso foi rápido — respondi, antes de beber um pouco de vinho e de me engasgar e o entornar para cima das pernas. Era como se subitamente tivesse deixado de conseguir controlar o que se passava na minha cabeça. Era do Si que eu gostava, era ele o homem que eu amava e com quem queria passar o resto da vida, não era? Teria a minha cabeça sido realmente virada pelo Léo e por todo o seu charme francês, só porque me sentia ouvida, porque pensava que ele me compreendia mais do que qualquer outra pessoa que eu tinha conhecido, ao �m de menos de um dia juntos? Ele deu-me um copo de papel com chá. — Gostas dele simples, certo? — perguntou, oferecendo-me um pacotinho de leite. — Na verdade, não — respondi com um sorriso seco. — Só tive medo de pedir à Sylvie algum leite. Ele fez um som de reprovação com a língua. — Ela é um coração mole, lá no fundo. Não é tão insensível como dá a entender. Assenti com a cabeça. — Os teus amigos são muito importantes para ti, não são? O Léo pensou sobre a pergunta durante um segundo ou dois. — Sabes, de certa forma, salvaram-me. Quando eu cheguei a Paris, tinha a cabeça em cacos. Não conseguia tocar os meus instrumentos, não me conseguia dedicar a nada. O meu pai estava a ir-se abaixo e já andava a sair com outras mulheres um mês depois de a minha mãe ter morrido. — Isso deve ter sido complicado. Ele encolheu os ombros. — Mas depois conheci o Hugo e alguns dos outros, e tínhamos os mesmos interesses e a mesma perspetiva sobre a vida. Esperanças semelhantes para o futuro. E eu sei o que podes pensar sobre eles, que são muito frios, um pouco parisienses demais, não muito acolhedores, talvez. E isso é verdade. Mas estes amigos tornaram-se a minha família, numa altura em que isso era o que eu precisava na vida. Anuí e concentrei-me no meu copo de vinho já vazio, levando o dedo à parte de dentro da borda e rodando-o várias vezes. Sentia os olhos do Léo em mim. Achávamos que tínhamos uma ligação, mas não podíamos ter. Como poderíamos ter? Claro que tinha sido ótimo vaguearmos ambos por Paris ao sol, com tempo para gastar e nada para fazer a não ser falar e falar. Eu sentia-me entusiasmada com a vida de novo, lembrei-me de como poderia ser divertida e uma parte desse novo entusiasmo devia-se a ele e à parte de mim que corria riscos e que ele tinha desbloqueado. Mas, na realidade, o Léo era precisamente o tipo de pessoa que eu fazia os possíveis por evitar. Era demasiado bem-parecido e demasiado con�ante (ou, pelo menos, dava essa impressão) e, o que era mais preocupante, tinha medo de compromissos. Nunca me deixaria apaixonar por um homem assim, era o exato oposto do que era bom para mim. Até ao dia anterior, eu vivia tranquila devido à estabilidade e à objetividade do Si, pelo facto de ele não se importar com o passado e ter planos concretos para o nosso futuro. Mas, de repente, não estava tão certa. Puxei a película do pacotinho de leite e derramei-o por todo o lado: na mesa, nos joelhos das calças de ganga do Léo. Ele riu-se e limpou-o com a mão. Eu beberiquei o meu chá e voltei a pedir- lhe o telemóvel emprestado para ver se a Catherine tinha publicado alguma fotogra�a dos preparativos do casamento no Instagram. Já que ia ter de ir ao casamento, quer quisesse quer não, tinha de encontrar alguma forma de me sentir envolvida de novo. — Estás no Instagram? — perguntou o Léo, esticando o pescoço para ver. — Hum — balbuciei. — Gostas? Todas aquelas fotogra�as exibicionistas que as pessoas partilham? — Céus, não — disse eu. Senti que ele estava a olhar para mim. — Já sei, já sei, então porque é que me dou ao trabalho? — suspirei sem deixar de continuar a passar as fotogra�as. Três ou quatro publicações tinham uma fotogra�a da Catherine. Estava a olhar-se, contemplativa, a um espelho de corpo inteiro, toda nostálgica e serena num robe de algodão branco, o cabelo preso em rolos e as três damas de honor — a Nancy, sua prima; a Sophie, irmã do Jasper; e a Alison, com um ar etéreo — estavam reunidas em volta dela, uma delas agachada e outra com a mão pousada no seu ombro. Era uma fotogra�a de tanta solidariedade feminina e amizade que eu quase me desliguei e sorri. Ampliei a imagem da Alison, à procura de pistas. Não consegui deduzir absolutamente nada, a não ser que estava muito bonita. Era o que acontecia nos casamentos, toda a gente se apresentava no seu melhor. Era como se estivéssemos a olhar para as pessoas por um �ltro tingido de cor-de-rosa. E a Catherine tinha escolhido os mais belos vestidos para as damas de honor. Ela descrevêramos em grande pormenor, mas eram ainda mais bonitos do que eu tinha imaginado. Agradava-me a forma como o tecido magenta se ajustava à cintura da Alison e depois caía ondulante em dobras românticas até aos tornozelos. Atualizei a página e apareceu a publicação mais recente da Catherine. — Quem é essa? — perguntou o Léo, o rosto tão próximo do meu que eu conseguia sentir o calor da sua respiração na minha nuca. — A Catherine, a irmã do Si. — É esse o casamento a que tens de ir? Con�rmei com a cabeça. A Catherine tinha legendado a foto com a frase: A bonança antes da tempestade. Eu sentia um frio na barriga por alguma razão, como se soubesse que iria revelar algo para provar que a minha descon�ança sem relação ao Si e às suas mensagens secretas tinha uma razão de ser. Ainda assim, cliquei na fotogra�a para a ampliar e deslizei os dedos pelo ecrã para aproximar a imagem. Era um grande plano do quarto do hotel: a tiara pousada na cama, os sapatos de cetim brancos junto à porta. As damas de honor. — Conheces essas raparigas? — perguntou o Léo. — Mais ou menos. No canto inferior estava a Catherine de costas para a máquina fotográ�ca, um pequeno vislumbre do vestido ainda por revelar. A irmã do Jasper arranjava o véu com um olhar suave e diligente que só a mais altruísta das damas de honor seria capaz de apresentar. A Nancy encontrava-se refastelada no sofá com um copo de champanhe erguido e um olhar completamente desinteressado. E, junto à porta, encostados à parede, estavam a Alison e o Si. Ela olhava diretamente para a máquina fotográ�ca, as mãos em volta do ramalhete. O Si, contudo, não estava a olhar para a máquina fotográ�ca, mas sim para ela. Tinha os braços cruzados e o rosto fechado, como se tivesse acabado de ter uma discussão. Ou como se estivesse irritado com alguma coisa. Não saberia dizer qual das hipóteses. Tinham algum tipo de história, dava para ver nos olhos dele. Ela precisava de falar com ele no casamento por alguma razão e, pelos vistos, ele não tinha gostado do que ela tinha para dizer. O Léo parou de mexer na tampa de plástico do chá dele. — O que foi? — Nada — disse eu, abanando a cabeça. — Hannah? — Sim? — Porque é que a fotogra�a te transtornou? Pus o telemóvel na mão dele. — Não transtornou. E era verdade: eu não estava transtornada. Estava zangada e queria respostas, mas não estava transtornada. Não me sentia devastada. Não estava a entrar em pânico por poder perdê-lo. E não conseguia pensar no que isso signi�cava para mim e para ele, nem para o futuro que tínhamos planeado em conjunto. — É esse o teu namorado? — perguntou ele, a olhar para a fotogra�a. — É — disse eu, com um ligeiro sorriso. — E quem é essa ao ladodele, a rapariga de cabelo louro? — A Alison. Era difícil imaginar que o Si deitasse fora tudo o que tínhamos para começar algo com ela. Foi então que pensei pela primeira vez: será que eu pensaria nisso? Poderia ser eu a deixá-lo? — Alison — disse o Léo, como se estivesse a re�etir sobre o nome. — E tu não gostas que eles falem? Eu mordisquei o polegar. — Normalmente não me importaria. Mas ele recebeu uma mensagem escrita dela. Na noite passada no comboio, antes de eu ter mudado de lugar. Ele pôs o telemóvel no bolso. — O que é que dizia? — Que precisava de falar com ele ou algo assim. — Bem, estão num casamento, non? Há coisas para organizar. — Isso foi o que eu pensei também, de início. Mas depois, quando estávamos em casa da Sylvie, entrei na conta dele e li os e-mails — disse eu, visivelmente encolhida. Ele arqueou as sobrancelhas na minha direção, surpreendido. — Hannah! Não imaginava que eras do tipo ciumento. — Normalmente, não sou. E sei que não devia ter lido a porcaria dos e-mails dele. Ele vai �car fulo quando descobrir. — Então porque é que o �zeste? Encostei a cabeça para trás e olhei para cima, como se pudesse encontrar alguma resposta no teto do comboio. — Ficarias surpreendido com aquilo que a perspetiva de te casares com alguém te pode fazer. Tudo se torna muito mais premente. Há coisas para as quais precisas de respostas. Dei por mim a pensar: será que consigo passar o resto da vida com esta pessoa em quem não tenho a certeza de con�ar? Ele olhou de relance para mim. — Sabes que nunca mais te vou emprestar o telemóvel, não sabes? Eu revirei os olhos. — Não te preocupes. O meu francês não seria su�cientemente bom para decifrar as tuas mensagens. Ele arrumou a mesa dele, en�ando o copo de plástico do vinho dentro do copo de papel com os restos do chá. — Vais mesmo casar-te com esse tipo, Hannah? — perguntou. Era estranho ver como o que eu pensava sobre a nossa relação tinha mudado em tão pouco tempo. Num dia, o Si e eu estávamos a atravessar a ponte Rialto de mão dada e, no dia seguinte, eu estava a fazer �gas para que ele não me pedisse em casamento antes de eu ter oportunidade de perceber se ainda queria aceitar. — Não sei — respondi, baixando os olhos para as mãos. Sentia que, de alguma forma, era demasiado perigoso �tá-lo, como se, caso os nossos olhares se cruzassem, pudesse ser o �m. Deixasse de haver como voltar atrás. — Hannah? — disse ele. Eu mordi o lábio. — Sim? — Antes de chegarmos a Amesterdão e tu te precipitares para o casamento, há uma coisa que eu queria dizer. Ele levantou-me o queixo com a curva do dedo. A minha respiração �cou presa na garganta. Olhei para o chão, para as paredes do comboio, para todo o lado menos para ele. — O que foi? — disse eu, a minha voz quase inaudível. — Não posso dizer isto para o per�l da tua cabeça. Olhei para ele, contendo um sorriso. — Está melhor — a�rmou, estendendo o braço para passar o dedo pela minha bochecha. Engoli em seco com tanta di�culdade que tive a certeza de que ele me tinha ouvido. — Queria dizer-te que algumas das coisas que te contei hoje nunca tinha contado a ninguém. A absolutamente ninguém. Anuí, o mais leve dos movimentos. — Eu sei. Eu também. Não havia quase nenhum espaço entre nós. Se eu movimentasse a cabeça um bocadinho, estaríamos a beijar-nos, tal como tinha acontecido no meu devaneio. — E tenho estado a pensar, já há algum tempo, que eu… que nós podíamos… O telemóvel dele tocou, ocupando o espaço. Ele recuou e suspirou. — Que pontaria, non? Limpei a testa com o punho do casaco dele, aliviada, de certa forma, porque achava que sabia o que ele ia dizer e eu não saberia como responder-lhe. O que eu queria fazer e o que eu devia fazer eram duas coisas completamente diferentes. O Léo procurou o telemóvel no bolso e tapou a outra orelha com o dedo. — Oui? Houve um momento ou dois de confusão no rosto dele antes de levantar as sobrancelhas para mim. — Um momento, por favor — disse ele. Estendeu-me o telefone. — É para ti, Hannah. A tua amiga Ellie. Capítulo 18 Cambaleei pelo corredor fora com o telemóvel do Léo numa mão e a outra a apoiar-se nas costas dos bancos que ia conseguindo agarrar. — Um segundo, Ells, estou só à procura de um lugar mais calmo — disse eu, ao chegar à zona das portas. Respirei fundo. — Olá, Ells — disse o mais alto que podia sem gritar e a tentar regular o som da minha voz. — Está tudo bem? — Não te preocupes comigo, que raio se está a passar? — disse ela, com uma voz demasiado excitada, tal como acontecia sempre que havia algum tipo de drama que ela ainda não estava a acompanhar. — Já vi que leste o meu e-mail. — Claro que li o diabo do teu e-mail. O que se está a passar, Han? Escorreguei pela parede abaixo até �car agachada, os cotovelos pousados nos joelhos, os joelhos bem juntos. — Estou a caminho de Amesterdão. Quase a chegar, na verdade. Devo chegar em cima da hora do casamento. — Céus — disse a Ellie. — Qual foi a reação do Si? Aposto que está furioso por um dos seus planos tão cuidadosamente organizados ter dado para o torto. — Bem podes dizê-lo. — E quem é esse rapaz? O do telemóvel. Fiz um esforço deliberado para parecer natural. — Só um tipo com quem falei um pouco no comboio. Ele também devia ter ido para Amesterdão. O sol saiu de trás de uma nuvem e a luz inundou o corredor, alterando o aspeto de tudo à minha volta, e a sensação também. A porta da carruagem seguinte abriu-se e um homem de fato cinzento passou, pouco seguro, por mim. — E o quê? Passaste o dia todo com ele? — perguntou a Ellie. — Mais ou menos. — É atraente? Eu mordi o polegar. — É bonito, sim. Faixas de luz andavam de um lado para o outro, a inclinar-se para aqui e para ali à medida que o comboio nos balançava para a esquerda e para a direita. Outra pessoa passou aos tropeções no caminho de regresso da carruagem-bar e eu levantei-me e encostei-me à parede. — É assim mesmo, Han. Parece muito mais divertido do que andar a correr atrás de noivas tresloucadas. O Si sabe? — O Si não sabe. Não havia nada em mim que quisesse dizer à Ellie o que se estava realmente a passar. Nem eu compreendia ainda muito bem, pelo que não havia forma de o pôr em palavras. Um dia fá- lo-ia, quando regressássemos a Londres, achava eu. Ela era rápida a dar conselhos e dizia-me sempre o que pensava sem meias- medidas. Às vezes, eu ouvia-a, assentia com a cabeça, concordava com ela e depois fazia o exato contrário, mas valorizava sempre o que ela tinha a dizer. Só não estava preparada para a ouvir ainda. — Estou muito contente por estares bem, Han. Cheguei a gritar a altos berros quando li o teu e-mail. Eu ri-me. Se há alguém com quem posso contar para exagerar é ela. — Mas, hum, antes de desligar, só queria… achei que devia contar-te algo estranho que aconteceu hoje — disse ela, o tom a �car sério. Franzi o sobrolho. — Continua. Ela aclarou a garganta. — Pensei muito se devia dizer alguma coisa ou se devia esperar que voltasses para casa. Mas quando vi o teu e-mail, não sei… �quei com a sensação de que podia estar tudo ligado de alguma maneira. — O que é que podia estar ligado? Eu sentia o coração a bater nas têmporas. Quando a Ellie não respondeu, eu sabia que devia ser algo grave, porque não havia muita coisa que a deixasse sem fala. — Ellie! O que foi? Diz-me, por favor. — Está bem, está bem. — Mais uma tosse nervosa. — Lembras- te de que o John está a pensar mudar de emprego e que o Si lhe tinha dito que o diretor de marketing ia deixar o cargo na empresa dele e que podia haver uma vaga a surgir em breve? E depois, no teu aniversário, o Si disse-nos que o cargo já não estava disponível? Eu não gostava do tom atabalhoado da voz dela. Seguramente não podia haver nada mais, além do que eu já sabia. — Sim, lembro-me disso — disse eu, cobrindo a boca com os dedos. — Bem, o John cerrou os dentes e ligou à mesma para o departamento de recursos humanos. Disse que era amigo do Si e que sabia que não estavam à procura de um diretor de marketing, mas perguntou se havia maisalguma coisa no horizonte a que ele se pudesse candidatar. E quando falou no nome do Si, o homem disse, e eu não quero tirar conclusões precipitadas, Han, que o Si já não trabalhava na empresa. Eu engoli em seco. — Isso é ridículo — disse eu. — O tipo dos recursos humanos devia ser novo na empresa. — Eu sei — disse ela, com a voz acanhada. — Foi o que eu pensei. Mas o John disse… ele disse que soletrou o nome do Si, o apelido, tudo. Indicou o nome do departamento e até o andar. Mas o tipo foi categórico. Disse que ele tinha saído da empresa há várias semanas. Andei para a frente e para trás do corredor, alguns passos para um lado, alguns passos para o outro. O homem do fato voltou e eu desviei-me para o deixar passar. O telefone do Léo estava colado à minha orelha, o ecrã a escorregar com o suor. Não conseguia lembrar-me de nada para dizer. Não sabia por onde começar, como explicar à Ellie que aquela era só a última de uma longa lista de coisas que não faziam sentido. — Ainda estás aí, Han? — Por pouco — disse eu. — E o que achas disto? — perguntou a Ellie com suavidade. Tapei os olhos com a mão livre. Aquilo era demasiado, ao �m de tudo o resto. — Desculpa se �z o que não devia — disse a Ellie no preciso momento em que um comboio apareceu disparado da direção contrária e as janelas estremeceram, o rugido do motor a abafar todos os outros sons. Entrámos de rompante num túnel e o comboio �cou subitamente muito escuro e muito barulhento. A chamada caiu de imediato e eu �quei aliviada, porque isso signi�cava que não tinha de inventar uma desculpa para a desligar. Encaminhei-me de volta pelas carruagens, concentrada em pôr um pé à frente do outro. Parecia que o mundo estava a andar à roda, que eu não me conseguia centrar. O que andava o Si a fazer então nas últimas semanas, se não estava no trabalho? E se tivesse acontecido alguma coisa, se tivesse deixado o emprego, porque não me tinha contado nada? — Hannah? — disse o Léo, tocando-me no cotovelo quando eu me já me estava a deixar levar para além dos nossos bancos. — Oh — disse eu, dando meia-volta. — Estava na lua. Ele levantou-se para me deixar sentar. Tirei o telemóvel do bolso e devolvi-lho. — Está tudo bem com a tua amiga? — perguntou. — Está — disse eu, bebendo um trago de chá sem me importar por estar gelado. — Tudo bem. — Aconteceu alguma coisa, Hannah? — quis ele saber. — Não. — Mas estás a beber chá frio. Abanei a cabeça. — Estamos quase a chegar. Não consigo pensar nisso agora. Ele olhou atentamente para mim. — O que é que a tua amiga disse? Eu cobri a boca e o nariz, as mãos em posição de oração. — O namorado dela ligou para o trabalho do Si por causa de um emprego. Eles disseram que o Si saiu há algumas semanas, que já não trabalha lá. O Léo franziu o sobrolho. — Quer dizer que ele mudou de emprego e não te disse? — Talvez. — Talvez. Não tinha pensado nisso. Chegara à conclusão de que estava sem emprego, mas talvez ele tivesse apenas arranjado outro. Mas, se fosse o caso, tenho quase a certeza de que não mo teria escondido. — Vais vê-lo em breve, non? Podes perguntar-lhe. Eu dobrei os braços sobre mim própria, sentindo que todas as boas sensações que me tinham alimentado ao longo do dia haviam sido arrancadas de dentro de mim e não me restava nada a não ser uma carapaça fria, dura e desesperançada. Encostei a têmpora à janela. Estávamos numa zona urbanizada, os campos intermináveis substituídos por casas, estradas e trânsito. Estava �nalmente na mesma cidade do Si e nunca me tinha sentido tão longe dele. — É melhor arrumarmos as nossas coisas — disse o Léo baixinho, antes de se levantar para retirar a mala do compartimento. Peguei na minha mala, atirei tudo ao acaso lá para dentro e deitei a garrafa de vinho vazia no caixote do lixo mais próximo, para não acabar por me cair no hotel e toda a gente pensar que a tinha bebido toda sozinha. O corredor já estava cheio de passageiros a arrastar a bagagem e a encaminhar-se em massa para as portas, desejosos de ser os primeiros a sair. Tive vontade de me deixar �car onde estava, de me pregar ao banco e recusar sair do comboio. E se eu decidisse simplesmente não ir ao casamento? Pensei que isso seria fugir dos meus problemas e estava determinada a deixar de o fazer. Tinha de ser forte. Enfrentar a verdade e lidar com tudo o que a vida me trouxesse. — Estamos a chegar a horas? — perguntei ao Léo. — Dois minutos mais cedo. Faltam cinco minutos para as cinco. Levei a palma da mão ao peito e senti-o a subir e a descer. Tinha a sensação de que nada batia certo de novo. O Léo desapareceria em breve e em menos de meia hora eu voltaria a ver o Si. E, então, de uma forma ou de outra, saberia. — Estás pronta? — perguntou o Léo. Con�rmei com a cabeça. Quando as portas se abriram, fomos dos primeiros a sair para o cais. Apressámos o passo, ensanduichados entre o nosso comboio e o comboio amarelo de dois andares na linha ao lado. Em cima de nós havia um telhado curvo de vidro que deixava passar uma luz suave cor de mostarda. — Não tenho dinheiro para o táxi — lembrei-me em pânico. Porque é que eu não tinha pensado naquilo mais cedo? Tinha de encontrar um multibanco e esperar que fosse capaz de me lembrar do código do meu cartão. Dei meia-volta à procura de um. — Toma — disse o Léo, procurando nos bolsos e tirando uma nota. — Não — retorqui, abanando a cabeça. — Já me ajudaste muito. — Aceita, por favor. — Ele meteu a nota de 20 euros na minha mão. — Não tens tempo de discutir comigo. — Pôs a mala ao ombro. — Anda. Vamos, depressa. Corremos por uma escada rolante abaixo até às entranhas da estação. — Os táxis são ali — disse eu, apontando para o sinal. Começámos a correr, a entorse no meu tornozelo esquecida. Passámos por lojas de sanduíches com iluminação brilhante, por alguém a tocar piano e por um lugar que vendia tapetes de entrada em forma de socas e ramos de tulipas de madeira. Assim que chegámos ao exterior da estação, fomos para o �nal da �la e, quando me pus em bicos de pés, vi pelo menos quatro ou cinco táxis a serpentear em direção à estação. Não deveria demorar muito. Respirei fundo, contente com o ar fresco. — Pronto — disse o Léo. — É isto. Olhei, pestanejante, por cima do ombro dele, atenta aos táxis que chegavam, a sentir-me mal perante a ideia de lhe dizer adeus, de nunca mais o voltar a ver. — Não chegaste a terminar o que me ias dizer. — Não — disse ele, afastando a franja do rosto. — E agora o momento passou, non? Demos um passo em frente, a �la a andar mais depressa do que eu esperava. A minha cabeça estava cheia de contrastes. Teria sido mais fácil se nunca tivesse conhecido o Léo, e a ideia de nunca o ter conhecido era impensável. — O que vais fazer em relação ao teu namorado? — perguntou. Passei os dedos pela alça da máquina fotográ�ca, de uma ponta à outra. — Ainda não decidi. Uma família de quatro pessoas entrou num carro, deixando apenas um rapaz com ar de estudante à nossa frente. — Queres partilhar o táxi? — perguntei. — Céus, eu nem sequer sei para onde vais, onde é o teu concerto. Ele abanou a cabeça. — Deixa estar. Eu tenho de ir noutra direção. Levei a mão à testa. — Eu não te quero deixar — exclamei, um pouco incrédula por o ter dito em voz alta. Mas, se não o dissesse ali naquele momento, quando é que o diria? — Sabes, acabaste por te revelar uma bela companhia, Hannah. — Vou considerar isso um elogio — disse eu. O Léo afastou um cabelo do olho. — Eu diverti-me — sussurrou. Assenti com a cabeça. — Eu também. — Em poucos segundos, ele desapareceria. Sairia da minha vida para sempre. Chegámos à frente da �la e um táxi encostou ao passeio. Estava mais frio em Amesterdão do que em Paris. O vento soprava pela t-shirt da Sylvie e o tecido agitava-se em volta da minha cintura, o casaco com capuz dele ainda atado no mesmo sítio. — Oh — disse eu, desapertando o nó —, tens de �car com isto. — Non — disse ele, pousando a mão em cima da minha. — Fica com ele. Assim não te vais esquecer de mim. Levantei a máquina fotográ�ca e tirei-lhe