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Para Josh— Por me dizer para escrever essa série, e por acreditar em mim enquanto eu escrevia. Para Tomi— Porque não há mais ninguém com quem eu gostaria de estar fazendo isso. TABELA DE CONTEÚDOS CAPÍTULO UM CAPÍTULO DOIS CAPÍTULO TRÊS CAPÍTULO QUATRO CAPÍTULO CINCO CAPÍTULO SEIS CAPÍTULO SETE CAPÍTULO OITO CAPÍTULO NOVE CAPÍTULO DEZ CAPÍTULO ONZE CAPÍTULO DOZE CAPÍTULO TREZE CAPÍTULO QUATORZE CAPÍTULO QUINZE CAPÍTULO DEZESSEIS CAPÍTULO DEZESSETE CAPÍTULO DEZOITO CAPÍTULO DEZENOVE CAPÍTULO VINTE CAPÍTULO VINTE E UM CAPÍTULO VINTE E DOIS CAPÍTULO VINTE E TRÊS CAPÍTULO VINTE E QUATRO CAPÍTULO VINTE E CINCO CAPÍTULO VINTE E SEIS CAPÍTULO VINTE E SETE CAPÍTULO VINTE E OITO CAPÍTULO VINTE E NOVE CAPÍTULO TRINTA CAPÍTULO TRINTA E UM CAPÍTULO TRINTA E DOIS CAPÍTULO TRINTA E TRÊS CAPÍTULO TRINTA E QUATRO CAPÍTULO TRINTA E CINCO CAPÍTULO TRINTA E SEIS EPÍLOGO AGRADECIMENTOS ARIDA Ilha da magia da alma Representada pela sáfira VALUKA Ilha da magia elementar Representada pelo rubi MORNUTE Ilha da magia do encantamento Representada pelo bêrilo rosa CURMANA Ilha da magia da mente Representada pela ônix KEROST Ilha da magia do tempo Representada pela ametista SUNTOSU Ilha da magia da restauração Representada pela esmeralda ZUDOH Ilha da magia da maldição Representada pela opala CAPÍTULO UM Esta água é feroz. Ela rosna ao se debater contra o Duquesa, que se deixa levar pela fúria das marés de inverno. Ela testa sua nova capitã, me jogando contra o leme gasto pelo tempo, enquanto a água granulada do mar alisa a madeira e umedece meus dedos. Mas não vou escorregar. Não dessa vez. — Volte a vela principal! — Eu enfio minhas botas no convés e agarro o leme com força, me recusando a deixar o navio me provocar. Eu sou a capitã. Se o Duquesa se recusa a ouvir, não tenho escolha a não ser forçá-lo. Hoje não há promessa de ilhas vizinhas à distância. Nenhuma das montanhas de Mornute é visível através da névoa branca e leitosa que sopra do norte. Ela umedece o ar, infiltrando-se em meus poros e engessando os cachos úmidos em meu pescoço. O navio entorta com outro golpe das marés, e eu me preparo para o que está por vir quando vejo a sombra tênue da boia, que se aproxima rapidamente, a que ancorei no mar uma temporada inteira atrás. Fecho os olhos e oro baixinho a qualquer deus que possa ouvir enquanto nos aproximamos, implorando que me poupem. Implorando para que este seja o dia em que os limites da minha maldição sejam empurrados ainda mais longe. Mas, como sempre, os deuses se recusam a ouvir. No momento em que o Duquesa passa pela boia, meus joelhos se dobram enquanto uma dor incandescente rasga minha espinha e atravessa meu crânio como uma lâmina muito familiar cortando meu corpo. Eu mordo o interior da minha bochecha até sentir o gosto de sangue, fazendo tudo que posso para conter minha dor para que a tripulação não suspeite. Eu cavo minhas unhas no elmo, suor frio lambendo meu pescoço enquanto minha visão pisca para dentro e para fora. Desesperada, dou o sinal a Vataea. Ela se inclina sobre a popa imediatamente, sussurrando um canto tão forte que cada palavra que passa por seus lábios é um trovão. O mar a observa com curiosidade a princípio, depois obedece à magia de sereia de Vataea com um estalo, girando a direção das marés. Alguns membros da tripulação resmungam com irritação enquanto voltamos para as docas, perguntando- se por que eu os faço fazer essa mesma viagem idiota todos os dias – nem mesmo dura meia manhã, e nunca para um destino específico. Mas pelo menos em voz alta, eles não reclamam. Eles não são tolos o suficiente para ir contra sua rainha. No momento em que o Duquesa segue para o sul em direção a Arida, a tensão contra meu crânio diminui e minha respiração irregular se acalma. Só quando minha visão começa a clarear é que afrouxo meu aperto. Vataea pressiona uma mão hesitante nas minhas costas. — Talvez seja hora de pararmos com isso. — A voz da sereia nunca deixa de soar como a mais doce das canções, mesmo que as palavras ameacem me cortar novamente. — Talvez seja hora de parar de lutar contra sua maldição e tirar o melhor proveito dela. Não digo nada. Até que alguém tenha metade de sua alma rasgada longe e amaldiçoada em outra pessoa viva, não me importo em ouvir suas sugestões. Vataea nunca saberá como é ter parte dela fundida em outra pessoa. Para poder sentir sua presença. Suas emoções mais fortes. Tudo dela. Ela não consegue ser aquela que está cansada de tentar quebrar essa maldição. A mão de Vataea escorrega das minhas costas, deixando minha pele fria. — Sinto muito pelo que aconteceu, mas ser imprudente não vai te curar mais rápido. Eu quero me arrepiar. Quero me virar e gritar sobre todas as coisas que ela não entende. Mas, em vez disso, o ar em meus pulmões murcha quando ela se vira e segue em direção à proa. Esses são os limites da minha maldição. Uma maldição que significa que metade da minha alma – e toda a minha magia – vive dentro de Bastian. E como hoje, toda tentativa de quebrá-la só termina em fracasso. As docas estão cheias de soldados reais e servos que recuam à medida que nos aproximamos das docas de Arida, onde a névoa camufla os navios visitantes, tornando suas velas opacas. Instintivamente, sinto um aperto no peito ao ver as figuras esperando por mim, sabendo que não é mais hora de ser capitã, mas de ser rainha. — Jogue as âncoras! — Giro o leme e o navio geme enquanto o forço contra as ondas, diminuindo nossa velocidade rapidamente. Minha tripulação obedece, e as duas âncoras alcançam o fundo da água rasa, nos sacudindo. Alguém bate na saliência do navio e escorrega de cara no convés, mas não posso ajudá-los. Eu giro o leme para o lado oposto, forçando o navio a se comprometer. A obedecer. Ele se firma e meu aperto afrouxa quando meus músculos relaxam. No momento em que atingimos a costa, minha tripulação entra em ação. Alguns se concentram em endireitar as âncoras e largar as velas, enquanto outros se jogam na costa para proteger o navio. Eles abaixam a rampa até a areia vermelha como sangue, onde Mira, minha dama de companhia, está de pé em uma capa preta grossa com uma gola de pelo branco de lobo que se estende até o queixo modesto, apertado e sufocante. Suas mãos enluvadas combinando estão cruzadas diante dela, os olhos estreitos com a preocupação perpétua a qual estou acostumada. — Você está atrasada. — Sua respiração vaporiza o ar, criando espirais que envolvem os rostos da equipe real, que se endireitam quando eu me aproximo. Dois deles seguram um travesseiro de safira de pelúcia com elegantes bordados de prata e ouro, e equilibrado em cima dele fica minha coroa – a cabeça de uma enguia Valuna gigante, sua boca aberta e esperando para sentar na minha cabeça e prender em volta do meu queixo. Esperando para me devorar. A espinha incrustada de pedras preciosas brilha com a umidade da névoa, fazendo minha garganta engrossar enquanto lembro como essa falsa coroa parecia natural para meu pai. É uma coroa feita para impostores e, como se ajusta rapidamente na minha cabeça, não posso deixar de pensar em como deve parecer natural para mim também agora. — Eu nunca estou atrasada. — Eu aperto meu casaco safira com força e endireito minha coroa enquanto os dentes irregulares da enguia roçam minha mandíbula e têmporas. — Eu sou a rainha. Eu sou rápida em corresponder ao sorriso que Mira dá para mim, embora nossa brincadeira não seja nada além de uma farsa. Esse é um jogo que estamos jogando desde o verão, esperado pelo meu reino. Eles sorriem e eu sorrio de volta, sem fazer perguntas. Sou a rainha deles agora e, apesar de tudo o que aconteceu, devo mostrar ao meu povo que ainda somos fortes. Que enquanto Visidia sofreu perdas, nos uniremos para superar nossas adversidadese restaurar o reino. — Diga isso a todos que estão esperando. É a sua primeira reunião de consultoria como rainha de Visidia, você deve causar uma impressão melhor. — Os olhos cansados de Mira reviram, é algo que ela nunca teria feito antes do verão passado, antes de quase ser morta durante o ataque de Kaven a Arida. Agora, porém, ela está relaxada, disposta a contar a qualquer pessoa o que está em sua mente – incluindo eu. Estou feliz por isso. Estou feliz com a cor em suas bochechas e a energia em seus passos. Estou feliz que ela esteja viva. Nem todo mundo teve tanta sorte. — A rainha viúva está esperando com os conselheiros na sala do trono — Mira começa, mas essas palavras acendem um calafrio perverso dentro de mim. Ele floresce em meu estômago e envolve minha garganta com garras. — Não a chame assim. — Viúva. Eu praticamente sibilo com o título, não precisando de um lembrete adicional de que meu pai está morto, os restos de seu corpo carbonizado alimentando os peixes enquanto ele descansa no fundo do mar. — Quando você estiver na minha presença, chame-a pelo nome. As bochechas de Mira ficam vermelhas e tento não deixar transparecer o constrangimento da minha explosão. Quando ela abre a boca, eu afasto suas palavras, não querendo o pedido de desculpas que permanece em sua língua. A última coisa que preciso é de mais pessoas na ponta dos pés perto de mim – especialmente quando eles não têm ideia do que realmente aconteceu na noite em que meu pai morreu. Que se eu tivesse sido capaz de impedir Kaven antes que ele chegasse a Arida, meu pai ainda estaria vivo. Eu seria a princesa e minha alma ainda estaria inteira. Mas isso está longe de ser o destino com que os deuses me amaldiçoaram. Enfio minhas mãos nos bolsos do casaco antes que alguém possa ver como elas tremem ferozmente, e ergo meu queixo bem alto para aqueles que estão assistindo. — Leve-me aos consultores. CAPÍTULO DOIS A sala do trono fica em silêncio quando eu entro, os últimos fios de conversa evaporando como fumaça enquanto os saltos das minhas botas batem contra o chão de mármore. O ar amargo e o formigamento dos fantasmas roçando minha pele me dão as boas-vindas a uma sala na qual não pisei desde que lutei com Kaven aqui no verão passado. É uma sala que não mostra mais sinais do fogo que a destruiu, ou mesmo uma gota de sangue que me lembro fluindo tão livremente do cadáver de meu pai quando ele enfiou uma espada em seu próprio estômago para cortar sua conexão com Kaven e dar a Bastian e a mim a capacidade de lutar contra ele. Não paro para observar os conselheiros que se levantam e inclinam a cabeça até eu sentar ao topo de uma mesa enorme de quartzo preto, esfregando os dedos sobre os ossos carbonizados do meu trono – recém-laqueados desde o incêndio para que seja resistente o suficiente para sentar. É um castigo cruel realizar nossa reunião do conselho aqui, mas ninguém diz uma palavra, provavelmente pensando na mesma coisa que eu: um de nós está sentado no mesmo lugar onde meu pai morreu. Minha mãe se senta depois de mim. Seus cachos estão penteados para trás, em tranças tão apertadas que levantam sua testa, deixando suas sobrancelhas altas e alertas. Uma vez, sua bela pele morena brilhava radiante como os penhascos à beira-mar ao nascer do sol. Agora está amarelada e afundada, e ela segura os lábios como se tivesse acabado de dar uma mordida em algo totalmente insatisfatório. Talvez ela sinta o erro desta sala tanto quanto eu. Conselheiros de cada uma das ilhas – com a notável, mas não inesperada exceção de Kerost – sentam-se ao nosso redor. Penas emplumadas e pergaminhos cheios de notas estão diante deles. Há um assento vazio à minha direita destinado ao meu principal conselheiro, Ferrick, mas aceno para um guarda real retirar sua cadeira. — Ferrick tem deveres em outro lugar hoje — digo aos conselheiros antes que eles perguntem, projetando meu queixo para que eu possa parecer a mais autoritária possível sob minha coroa. — Eu mesma falarei em nome de Arida. Ao meu lado, a voz de mamãe repreende em um sussurro que só eu posso ouvir: — Cuidado com o seu tom, Amora. Você não está aqui para lutar. Todos nós queremos a mesma coisa. Suas palavras forçam meus lábios em uma linha fina. Desde que assumi o trono, não faltaram aqueles que questionam minha autoridade. Mas ela está certa, confrontar os conselheiros de Visidia como se eu estivesse preparada para enfrentá-los não me fará bem. Mergulhando fundo em mim mesma, encontro minha vontade de continuar jogando o jogo que eu e Mira começamos nas docas – o mesmo jogo cansado que venho jogando com o reino desde que assumi o trono. Eu coloco um sorriso em meus lábios. — Obrigada a todos por terem vindo. — Faço-me parecer mais leve desta vez. Mais amigável. — Sei que as coisas estão difíceis para todos nós agora, então agradeço a disposição de todos em se encontrar. — Estou feliz por finalmente termos a chance. — A voz que fala é enganosamente tenra. Pertence a Zale, a conselheira recém-nomeada de Zudoh, uma ilha que estamos trabalhando para reintroduzir no reino depois que meu pai os baniu por engano há onze anos. Embora seu povo tenha sofrido cruelmente, Zale foi gentil o suficiente para oferecer a minha tripulação e a mim abrigo e proteção quando chegamos em Zudoh em nossa busca para encontrar Kaven – mesmo apesar de Bastian ser seu irmão. Desde que sua ilha foi libertada do reinado de Kaven, ela desenvolveu um brilho vivo em sua pele quente, e seus olhos outrora vazios se encheram de um brilho que rivaliza com a malaquita mais brilhante. Ela é linda em suas vestes brancas de seda, mas há uma ferocidade nela que não pode ser esquecida. Zale é uma das mulheres mais inteligentes e determinadas que já conheci. Ao lado dela, Lorde Bargas está sentado tão orgulhoso quanto alguém pode estar envolto em um casaco de rubi tão grosso que é praticamente um cobertor. Acompanhado por seu jovem sucessor, eles representam Valuka, o reino da magia elemental. Meu coração pula uma batida quando o vejo, e me lembro nitidamente de Bastian e como ele fingiu ser o filho do barão na noite em que nos conhecemos para ganhar a entrada para a minha festa de aniversário. O barão e sua tripulação foram deixados no mar, desarmados, despidos e sob a forte influência do pó do sono de Curmana. — Olá, Vossa Majestade. — Seus lábios se contraem em um tipo de sorriso que poderia derreter gelo durante o inverno mais frio. Ele é o conselheiro mais velho, quase sessenta anos, e vê-lo não só me lembra Bastian, mas também a maneira como papai gostava de brincar com o barão. A maneira como ele batia no ombro de Lorde Bargas e rugia com uma das suas risadas de fazer barulho no peito. — É um prazer vê-lo novamente, Lorde Bargas. — Limpo minha garganta e a emoção crescendo dentro dela, guardando- a para um momento posterior, quando os olhos estarão menos curiosos. — Ouvi dizer que você estava dormindo da última vez que nos vimos. Isso me rendeu algumas risadas, até mesmo do senhor e da jovem sentada ao lado dele. — Eu garanto a você, não foi por escolha. — Há um brilho de conspiração em seus olhos. — Aquele maldito pirata até roubou uma das minhas espadas favoritas. Certifique-se de pegar de volta para mim, certo? Eu imito seu sorriso animado. — Verei o que posso fazer. Quem é essa que você trouxe com você? Ele põe a mão firme no ombro da jovem. — Esta é Azami Bargas, filha do meu irmão mais velho e minha nova sucessora. Azami assumirá totalmente o controle na primavera. — É um prazer conhecê-la, Azami. Ela inclina a cabeça rapidamente e de forma baixa. — Da mesma forma, Vossa Majestade. Estou surpresa ao descobrir que há outros rostos aqui que não reconheço. Enquanto a maioria me observa intrigado, e nove conselheire de Mornute coloca os dedos na mesa de mármore e, em seguida, bate padrões ansiosos nela. A cada toque de seus dedos,minúsculas constelações dançam em torno de suas unhas pretas laqueadas. Quando elu me pega olhando, elu chama a atenção. — Leo Gavel, Vossa Majestade! — O rosto de Leo é agradavelmente jovem, com bochechas salpicadas de sardas encantadas a parecerem estrelas. Fisicamente, Leo é baixinhe e rechonchude, com feições marcantes que me dão uma pontinha de ciúme por todos aqueles que praticam a magia do encantamento. Elu tem olhos amarelos penetrantes e cabelos penteados combinando, e usa um terninho lilás com delineado alado em um tom semelhante ao redor dos olhos. — Não conseguimos nos encontrar desde que o conselheiro anterior de Mornute foi morto durante o ataque, mas garanto que estou bem treinade. Estou ansiose para trabalharmos juntos. — Assim como eu. — Mas minhas palavras são forçadas enquanto meus pensamentos permanecem na noite do ataque, imaginando quantas pessoas eu deixei morrer. Porque eu não consegui matar Kaven na primeira vez que ele e eu lutamos em Zudoh, quanto sangue sou responsável por derramar? Há ainda outro rosto novo – o conselheiro que representa Curmana, a ilha da magia da mente, a julgar por suas calças largas de ônix e capa cintilante. — Eu sou Elias Freebourne e vou substituir minha irmã que entrou em trabalho de parto na manhã em que carregamos o navio para a viagem. Estou ansioso para servi-la, Vossa Majestade. — Há um brilho em seus impressionantes olhos verdes que aquece minha pele. Eu me afasto rapidamente. — Esta reunião é para discutir a unificação de Visidia — digo a eles. — Eu gostaria de me concentrar em nossos esforços de restauração com Zudoh e Kerost. Embora as relações com o primeiro estejam indo tão bem quanto podemos esperar, precisamos descobrir uma maneira de restaurar a confiança de Kerost em nós antes que eles se separem do reino. Nós os deixamos sofrer com as tempestades por muito tempo. Nós os ignoramos porque um comerciante de tempo lucrou com sua dor e roubou anos de suas vidas. Se quisermos compensá-los, teremos muito trabalho pela frente. O conselheiro de Mornute se agita. — Estou mais do que feliz em discutir os esforços de restauração, Vossa Majestade. Mas meu objetivo principal ao vir aqui é discutir o bem-estar de Mornute e como está sendo afetado pelas recentes... mudanças de Visidia. Imediatamente sei que Leo está se referindo à minha abolição da lei que impede visidianos de praticar mais de uma magia. Uma lei que foi elaborada com base na maior mentira do reino e que eu coloquei fim no momento em que assumi o trono. Por séculos, os Montaras mantiveram os visidianos fracos, garantindo que eles praticassem apenas uma magia – e nunca tivessem a habilidade de aprender a magia da alma – para que ninguém pudesse dominar sozinho nossa família. Eles criaram a lenda de uma besta que causaria a ruína de Visidia caso violassem a lei. Uma lenda que enganou meu povo fazendo-os acreditar que os Montaras sozinhos poderiam usar magia de alma perigosa para protegê-los. A história se tornou tão arraigada na fundação do nosso reino que poucas pessoas se desviaram. Mesmo agora, meu povo não sabe o que os Montaras – minha família – fizeram. Eles acreditam que eu venci a besta e liberei a magia. Se eles soubessem a verdade, eu não estaria no trono. Eu nunca teria a chance de consertar as coisas. Enquanto eu usar esta coroa, tenho apenas um objetivo: arrepender-me dos erros dos meus ancestrais quebrando a maldição Montara e libertando a magia da alma de nossa linhagem. Eu irei tornar este reino inteiro dando ao meu povo tudo o que eles sempre quiseram ter e, finalmente, contarei a verdade. E então, vou aceitar qualquer punição que eles considerem adequada. — Eu também gostaria de discutir como essas mudanças estão afetando nossas ilhas individuais — disse o conselheiro Suntosan, Lorde Garrison. Ele é um homem robusto com uma espessa barba ruiva que esconde metade de seu rosto. É meticulosamente estilizado toda vez que o vejo, e macio também. Como se ele colocasse óleo todas as noites. — Alguns de nós viajaram muito para estar aqui. É justo que possamos resolver nossas preocupações. O lembrete de mamãe ressoa em minha cabeça: você não está aqui para lutar contra eles. Mas, deuses, entre seu queixo orgulhoso e olhos avaliadores, não posso evitar. — Eu conheço nossa geografia, Lorde Garrison — eu digo laconicamente, satisfeita com a forma como seus olhos se estreitam em surpresa. — Estou muito ciente de quão longe você viajou. Estou certamente feliz em ouvir o que todos… — No passado — diz ele, passando por cima das minhas palavras como se eu não tivesse falado — o rei Audric abriria essas reuniões com cada um de nós apresentando seus próprios pensamentos e necessidades para as ilhas que representamos, em vez de se abrir... À menção do meu pai, algo em mim estala. A mão de minha mãe encontra meu joelho embaixo da mesa, apertando-o em advertência. Mas a presença dela não é suficiente para evitar a malícia que quebra meu sorriso. Lorde Garrison sempre foi leal ao meu pai, mas como o resto dos conselheiros, ele foi educadamente frio comigo. Até o outono passado, eu quase não tinha permissão para interagir com os conselheiros. Meu pai guardava muitos segredos; até que ganhasse o título de herdeira do trono, nunca me permitiam detalhes dessas reuniões. Foi inútil e frustrante, especialmente agora que estou sentada no topo de uma sala, destinada a liderar um grupo de conselheiros que mal me conhecem e cuja confiança acreditam que ainda não ganhei. Mas eles estão enganados. Conquistei meu lugar neste trono no momento em que esfaqueei Kaven. Ganhei este lugar com o sangue dele e o meu. Eu ganhei com minha magia e com o sacrifício de cada vida que tirei para chegar aqui. Dane-se a confiança. Eu ganhei esta coroa com minha alma. — Obrigada por me deixar saber como meu pai dirigia as coisas. Todos nós sabemos que ele era um governante perfeito, nunca cometendo um único erro. — Eu me endireito na cadeira, fixando meus olhos nos de Lorde Garrison. — E considerando que eu nunca fui autorizada a participar dessas reuniões e que ninguém pensou em me incluir, suas informações são muito úteis. Mas gostaria de lembrá-lo, Lorde Garrison, que meu pai está morto. Não desvio o olhar quando ele recua, nem me viro para mamãe quando sua mão fica mole na minha coxa. Em vez disso, mantenho meu foco treinado no conselheiro Suntosan enquanto ele muda de posição com desconforto. Quando ele abre a boca para falar, eu levanto minha mão e continuo: — No entanto, como o falecido rei costumava governar não importa, porque ele não é mais aquele que se senta no trono. Eu sou. Não tenho certeza se você sentiu que estava tudo bem em ser condescendente comigo porque eu sou uma mulher, por causa da minha idade, ou simplesmente porque sou nova nesta posição e você sentiu a necessidade de estabelecer algum tipo de domínio que você não tem e nunca terá. Mas, da próxima vez que você abrir a boca para falar comigo, lembre-se de que está falando com sua rainha. Você entende? Pelo canto do olho, pego e conselheire de Mornute boquiaberte enquanto os outros desviam o olhar em um silêncio desconfortável. O rosto de Lorde Garrison fica vermelho, e estou feliz por seu constrangimento. Ele merece. — Eu entendo, Vossa Majestade — ele praticamente bufa, como se não tivesse certeza se fica surpreso ou arrependido. — Bom. Então, suponho que podemos continuar com a discussão que estabeleci? — Eu empurro meus ombros para trás, fazendo questão de mostrar que estou relaxada, e não uma bobina tensa pronta para pular novamente. — Estou, é claro, interessada em discutir as mencionadas “mudanças” também, como sugeri antes da sua explosão. Podemos começar com Leo. E conselheire de Mornute se vira para mim e eu sorrio mais uma vez, tentando aliviar o choque. Embora a maioria dos conselheiros seja reservada, elu ainda é tão nove que mostra suas expressõesclaramente no rosto, e eu gosto disso. Isso me faz confiar nelu mais do que na maioria nesta sala. Leo sobressalta com atenção e agarra o pergaminho diante delu, vasculhando-o para organizar seus pensamentos. — Quero discutir como a abolição dessa lei terá um impacto negativo em nossa ilha. Nossa cidade portuária, Ikae, é o maior destino turístico de toda Visidia e nossa fonte de renda mais importante. Tememos que, se nossa mágica chegar a outras ilhas, não seremos mais capazes de gerar o mesmo turismo que fazemos atualmente. Se alguém pode deixar sua cidade deslumbrante com encantos, por que a nossa continuará a ser tão atraente? Estou preocupade com a possibilidade de que Mornute tenha uma grande redução na fonte de renda devido a essa mudança. A preocupação delu é legítima, mas já considerei. — Você está certe de que essa lei mudará as coisas — digo a Leo. — Mas Visidia deve sofrer uma mudança já faz algum tempo. E à medida que evolui, devemos nos concentrar em evoluir com ela. Embora você esteja certe de que Mornute é principalmente um destino turístico, acredito que você esteja negligenciando o valor monetário de suas exportações de álcool. O lampejo de curiosidade que desperta nos olhos de Leo me diz que estou certa; isso não é algo que elu tenha considerado profundamente. — O clima de Mornute se presta bem a ser uma das poucas áreas que podem cultivar os ingredientes necessários para fazer uma boa cerveja e vinho em quantidades massivas. Você pode se concentrar na expansão da produção. Se a taxa de turismo em outras cidades aumentar, o consumo de álcool também aumentará, e eles precisarão importar bebidas destiladas de algum lugar. Haverá mais demanda por seus produtos do que nunca, e talvez uma renda ainda maior. — Minha sugestão para você é começar na frente na preparação para mais vendas de álcool — eu continuo. — Expandir os vinhedos nas encostas das montanhas. Plante mais cevada. E enquanto você está nisso, considere desenvolver um estilo de álcool que seja exclusivo para Ikae. Faça com que os entusiastas venham diretamente para a ilha se quiserem experimentá-lo. Leo fica sentade por um momento antes de sorrir para o pergaminho, fazendo anotações. — Certamente é algo a se considerar. Vou levar essa ideia de volta para a ilha e ver o que podemos fazer com ela. Fico feliz que alguém aqui seja fácil de se comunicar. Contanto que Mornute possa atender à demanda, nunca deveria se preocupar, e minha ideia parece ter deixado Leo à vontade. As pessoas de Mornute, especialmente as da cidade portuária de Ikae, apreciam estilos de vida luxuosos. Estou confiante de que eles surgirão com muitas outras maneiras inovadoras de manter isso. Não tinha percebido que estava tão dura e rígida na cadeira até que a mão de minha mãe se afastou. Eu relaxo, sabendo que é um sinal de sua aprovação. Minha resposta parece apaziguar vários dos outros conselheiros também, todos os quais estavam sentados na beirada de suas cadeiras, ansiosos para ver como eu me sairia. Depois da maneira como lidei com Lorde Garrison, a maioria dos novos conselheiros leva tempo para reunir coragem para falar. Mas logo reconheço minha confiança, apreciando o padrão constante de conversa em que entramos. Eu relaxo na conversa, me mexendo apenas quando há um grito abafado nas portas duplas. Estou fora do meu lugar, adaga na mão, quando aquelas portas são abertas, para grande protesto dos guardas que vigiam. Mas meus dedos enfraquecem no punho quando vejo que aquele que está lá na soleira, escapando do alcance de Casem, é a última pessoa nesta ilha que eu quero ver agora. Bastian. CAPÍTULO TRÊS Parado na porta está o garoto que venho evitando há quase uma temporada inteira. O garoto que detém a metade que falta em minha alma. Vestido com calças pretas elegantes e uma camisa opala iridescente com vários botões de cima abertos, Bastian se ergue com uma arrogância orgulhosa que o faz se sentir o conselheiro real que fingiu ser na noite em que nos conhecemos. Olhos castanhos encontrando os meus, ele passa as mãos pela barba escura em seu rosto. O brilho em seus olhos é inconfundível. Ele é frustrantemente bonito, e o bastardo sabe disso. Bastian entra sem convite, hesitando por apenas um breve segundo ao ver a sala polida e incólume. Há um aperto rápido em sua mandíbula. Por causa da nossa maldição, sinto a rápida explosão de terror em seu peito que ecoa dentro do meu. Como eu, ele deve estar se lembrando da última noite em que estivemos nesta sala, afogando-se em um rio de sangue do meu pai. Mas ele não tem escolha a não ser se endireitar, puxando a cadeira descartada de Ferrick do canto e arrastando-a para a mesa. A madeira range contra o mármore, mas o som não o detém, nem mesmo quando os conselheiros fazem uma careta. Tento chamar a atenção de Bastian, mas ele não olha para mim, mesmo quando se senta entre mim e Zale. Só então ele sorri, tão irritantemente charmoso que tenho vontade de estender a mão e usar minhas unhas para limpá-lo dos seus lábios. — Desculpe, estou atrasado. — Ele oferece um aceno casual com a mão. — Por favor, continue. Não há necessidade de fazer uma pausa por minha causa. Eu pressiono minhas mãos no meu colo para que ninguém possa ver as unhas cravadas em minhas palmas quando pergunto a ele: — O que você está fazendo? Bastian ainda não olha para mim enquanto penteia os dedos sobre o cabelo arrumado e olha melancolicamente para a frente. — Estou aqui para a reunião. Cada cabelo ao longo do meu corpo se eriça. — Esta reunião é apenas para conselheiros, Bastian. — Ah, então você se lembra do meu nome. Faz tanto tempo que não nos falamos que eu estava começando a me perguntar. — Sua própria voz abaixa, e a rouquidão dentro dela faz coisas estranhas no meu estômago. — E eu posso fazer o que eu quiser, princesa. Eu ajudei a salvar este reino. Princesa. O apelido arrepia minha pele. — Além disso, o que você vai fazer? — Ele se inclina, sussurrando a próxima parte apenas para mim. — Me expulsar da ilha? — Você não pode se tornar um conselheiro — Zale interrompe, os olhos sorrindo apesar da tensão em sua mandíbula. — Mas eu gostaria de oferecer a você pessoalmente um assento, Bastian. Em nome de Zudoh, agradecemos sua opinião. Preciso de tudo em mim para relaxar minhas mãos. Sabendo melhor do que ir contra Zale, eu ignoro a presunção que come os lábios de Bastian enquanto ele tira uma pena de trás da orelha, lambe a ponta e coloca vários pedaços de pergaminho na mesa. Ele pisca quando me pega olhando. Nunca houve um momento em que eu quisesse aprender a falar na mente como a magia de Curmana mais do que agora. Se eu praticasse, teria a certeza de dizer a Bastian exatamente onde ele poderia enfiar aquela pena. — Temos um longo caminho a percorrer para ajudar Zudoh — Zale continua, conduzindo-nos rapidamente de volta aos trilhos. — Estamos progredindo, mas levará algum tempo para que nossa ilha se recupere do abandono. — E a água? — A presunção deixou os lábios de Bastian, e a sinceridade que pulsa dentro das palavras é profunda. Desde a morte de Kaven, o desejo de restaurar Zudoh quase o consumiu. Sentindo sua paixão com tanta força quanto eu sinto a minha própria, minha raiva diminui. — Os valukanos estão ajudando a limpar a água, tornando-a mais habitável para a vida marinha após o tributo da maldição de Kaven — responde Zale. — Levará algum tempo para os peixes reaparecerem, mas já estamos vendo melhorias. — Fico feliz em ouvir isso — eu digo. — Lorde Bargas, devemos discutir a melhor forma de dividir os esforços de restauração dos valukanos entre Kerost e Zudoh... Nós conversamos por horas, indo e voltando, compartilhando ideias e chegando a um acordo com as mudanças que precisam ser feitas. E embora a reunião tenha começado instável, no final dela estou relaxada em meu assento, tendo tirado minha coroa para me concentrarmelhor. Alguns dos conselheiros têm novas perspectivas, enquanto outros estão teimosamente fixados em seus velhos hábitos. Mas não existe um de nós que não queira o melhor para o nosso povo. E apesar da sua grande entrada, estou surpresa ao descobrir que todos são receptivos a Bastian. Por mais repugnante que seja admitir, suas ideias são valiosas e o amor que ele nutre por sua ilha natal é genuíno. Mas assim como tudo correu até agora, o desafio nos olhos de Lorde Garrison é suficiente para me avisar que nem tudo será tão fácil. — Leo — ele diz casualmente quando é sua vez de falar. — eu acredito que é hora de Sua Majestade saber sobre os papéis. Os olhos de Leo se arregalam. Bruscamente, elu se volta para Lorde Garrison. — Eu já disse a você, a situação está resolvida. Mas Lorde Garrison ignora, bufando em sua barba enquanto ele enfia a mão nos bolsos internos de seu casaco esmeralda. O pergaminho se enruga sob seus dedos calejados quando ele o joga na mesa diante de nós. Eu chego para frente e o agarro. Uma das últimas tendências da Ikae é o pergaminho que foi encantado com imagens em movimento para mostrar as últimas fofocas e moda. Vataea e meu primo Yuriel estão debruçados sobre eles há semanas, mas estive muito distraída para me concentrar no que qualquer um deles tem a dizer. Aparentemente, foi um erro significativo da minha parte. SUA MAJESTADE, AMORA MONTARA: RAINHA DO NOSSO REINO, OU A MAIOR AMEAÇA DE VISIDIA? No verão passado, a Rainha Amora virou nosso reino de cabeça para baixo com o anúncio de que Visidianos não seriam mais forçados a honrar a prática secular de usar apenas uma única magia. Embora alguns desejem essa mudança há muito tempo, muitos estão céticos. O anúncio veio poucos dias após a morte do falecido rei Audric, e depois que a rainha Amora foi forçada a assumir o trono, apesar de sua falha anterior em desempenhar as funções necessárias de um Animancer. Embora nossa rainha reivindique a besta que viveu dentro da linhagem Montara por séculos – a razão por trás de nossa lei de magia única – foi derrotada na mesma luta que matou o rei Audric e Kaven Altair, é difícil ignorar o momento conveniente. Desde o momento em que nossa rainha assumiu o trono, o estado de Visidia tem estado tumultuado, para dizer o mínimo. Se a rápida mudança da dinâmica da magia não é suficiente para preocupá-lo, o estado mutante de nosso reino deve ser. Com o esforço de Zudoh para se reunir ao reino acontecendo entre as ameaças de Kerost de tentar se separar, devemos nos perguntar o que Sua Majestade está pensando com todas essas mudanças. Talvez seja porque ela é uma mulher jovem, ou talvez seja porque não há ninguém por perto para domesticá-la, mas seja qual for o motivo, uma coisa é certa: nossa rainha está destruindo Visidia. E se algo não mudar com ela logo, temo que o pior ainda está por vir. Há uma foto minha do dia da minha coroação, sentada diante do meu povo no mesmo trono queimado em que estou agora. Mamãe está colocando a coroa de enguia na minha cabeça, e as pessoas diante de mim se curvam. Pareço severa e confiante, ombros para trás e queixo erguido. Mas eu me lembro daquele momento, e se alguém olhasse com atenção o canto dos meus olhos e o sulco de minhas sobrancelhas sob as mandíbulas da enguia, eles veriam o medo. Medo de não conseguir consertar Visidia sozinha. Medo de que meu povo descobrisse a verdade sobre os Montaras e me matasse antes mesmo que eu pudesse tentar consertar. Não querendo reviver a memória, desvio minha atenção na imagem e, em vez disso, volto rapidamente para uma única linha, lendo-a repetidamente. Nossa rainha está destruindo Visidia. — Nosso povo não confia em você, Vossa Majestade. — A presunção na voz de Lorde Garrison dificilmente é o suficiente para me distrair da raiva que escalda minha pele. — Desde que você falhou em realizar suficientemente a magia da alma durante sua apresentação no verão passado, eles temem que você seja incapaz de lidar com sua magia. Graças aos deuses, meu povo não sabe que não posso nem usar minha magia agora. Minha maldição me impede de acessar a magia da minha alma, visto que metade da minha alma está amaldiçoada dentro de Bastian. Eu sou a Alto Animancer. A rainha. Se eu não conseguir realizar a magia da alma o suficiente, há pouca coisa que impeça meu povo de arrancar a coroa da minha cabeça. O rosto da minha mãe aperta com força enquanto ela lê o pergaminho, eu posso praticamente vê-la mordendo a língua. Até Bastian abre a boca para protestar, mas as palavras morrem inutilmente em seus lábios enquanto ele lê novamente. — O que você propõe que eu faça para mudar a percepção que o reino tem de mim? — Eu aperto minhas mãos contra os braços da cadeira e olho Lorde Garrison mortalmente nos olhos. — Contar piadas mais engraçadas? Dar festas onde o reino pode dançar e beber alegremente? Não salvei apenas Visidia de Kaven, trouxe a magia de volta para este reino. E ainda assim eu preciso ser domesticada? — Eu bato meu punho na mesa. — Pelo amor dos deuses, eu sou uma rainha! Quando Lorde Garrison se endireita, o ressentimento envenena minha boca e cobre minha língua. Eu arrasto meus punhos para longe, para o meu colo, escondendo os nós dos dedos arranhados embaixo da mesa. — Você pode ter o título de uma rainha — Lorde Garrison diz friamente — mas aos olhos de muitos, você ainda é pouco mais do que uma garota que fugiu do seu reino, em quem não se pode confiar o poder que ela exerce. Eu o odeio por não perder a paciência. Mas eu o odeio ainda mais porque, depois de tudo que aprendi sobre os Montaras no verão passado, sei que ele fala a verdade. — O que Visidia precisa é de estabilidade. Não podemos apenas jogar dificuldades em nosso povo e esperar que eles se sintam confortáveis com a mera promessa de que, um dia, as coisas podem ser melhores. Eles precisam confiar em você. Eles precisam sentir que ainda não têm apenas uma rainha, mas uma protetora. Eu pressiono meus lábios e afundo de volta na cadeira. — Suponho que você tem uma solução em mente? É como se nenhum outro conselheiro estivesse na sala quando Lorde Garrison olha para mim, confiante e calculado. — Proponho que demos uma distração a Visidia, algo para eles se concentrarem enquanto trabalhamos para mudar a base do nosso reino. Quero dar a eles um motivo para torcer por você. A maneira como ele fala envia eletricidade pelas minhas veias. — Você é a rainha, agora. — Ele saboreia cada palavra. — Seu dever é com seu reino, e parte desse dever é que você deverá continuar a linhagem de Montara fornecendo o próximo herdeiro do trono o mais rápido possível. Por causa disso, você precisará ter um marido. Talvez seja porque ninguém está por perto para domesticá-la. Eu sinto o ressentimento de Bastian aumentar, tão amargo quanto o meu. Mas quando ele coloca as mãos sobre a mesa como se estivesse prestes a se levantar, eu chuto sua canela e o encaro com um olhar que exige que ele permaneça sentado. Essa não é sua batalha. — Tecnicamente, não preciso de um marido para produzir um herdeiro — começo, mas mamãe me corta com um olhar penetrante. Não posso deixar de notar que ela não tomou posição contra sua sugestão. — O que está pensando? — Eu pergunto a ela bruscamente. — Eu só quero que você fique segura — ela responde com cada gota de exaustão que está sacudindo meus ossos. — Se um marido pode estabelecer nosso reino... pode valer a pena considerar. — E daí? — Bastian rosna, me ignorando quando eu bato minha bota contra sua canela pela segunda vez. — Você quer desposá-la? Ela é sua rainha, não seu peão. Lorde Garrison coloca as mãos sobre a mesa, mantendo-se ereto. — A política é um jogo, filho. Todo mundo é um peão. Do restante dos conselheiros, um silêncio esmagador é a única resposta. — Proponho que enviemos um aviso a cada uma das ilhas — continua Lorde Garrison, embora eu não olhemais para ele. Em vez disso, pressiono a mão na testa, disposta a afastar a dor de cabeça que floresce nas minhas têmporas. — Nós vamos dizer a eles que você está a caminho de conhecer seus solteiros mais cobiçados. Seremos barulhentos sobre isso e garantiremos que a atenção de todos esteja em você. Vamos distrair o reino da rapidez com que tudo ao seu redor está mudando. — É uma ideia inteligente. — A voz de Zale é suave e arrependida quando ela interrompe. — Nós poderíamos usar isso como uma oportunidade para você conseguir favores, Amora, e fazer com que as ilhas te conheçam. As pessoas se sentiriam engajadas, como se você fosse um deles, e parte deste reino. O amor também a torna vulnerável. Isso a torna suave, e essa suavidade é o que as pessoas precisam ver de você. Isso pode dar esperança a Visidia. Leva tudo de mim para não deixá-la sentir a extensão da minha raiva, mesmo quando o resto dos conselheiros acenam em concordância. Mal se passaram duas temporadas desde que rompi o noivado com Ferrick, e eles já estão tentando me jogar em outro homem. Só a ideia disso é o suficiente para eu empurrar a mesa, levantando-me sobre as pernas que ameaçam tremer de raiva. — Passei mais de dezoito anos treinando para estar na posição em que estou. — Eu cerro as palavras entre os dentes, tendo que retroceder cada uma das minhas emoções. — Estudei os livros da nossa história. Os mapas. Magia. Armas. Estratégia. Cortes. Diga-me, que homem existente fez o mesmo? Que homem poderia estar pronto para sentar-se ao meu lado e ajudar a liderar um reino? — Tento firmar minha voz vacilante, que não vem dos nervos, mas do ódio. Não por Lorde Garrison ou pelos outros conselheiros, mas pelo simples fato de que, no fundo, reconheço que essa ideia tem seus méritos. O reino precisa de algo para distraí-los, e eu disse para mim mesma que faria o que fosse necessário para consertar os erros deixados pelos Montaras. Mas isso? Do outro lado da mesa, Lorde Garrison permanece calmo como o mar de verão. — Eu admiro sua tenacidade em fortalecer o reino, mas como já disse, os Visidianos precisam confiar em seu governante. Ninguém viu sua força. Você pode ter impedido Kaven, mas desde que falhou durante sua cerimônia no verão passado, ninguém viu sua magia. Com as prisões de Arida lotadas, muitos têm suas hesitações a seu respeito, Majestade. Rumores de que você não pode usar sua magia no nível de um Alto Animancer têm circulado. Muitos acreditam que você não tem controle sobre a magia da sua alma nem para executar prisioneiros, quanto mais para proteger Visidia. É hora de controlar os danos. É hora de mostrar ao reino que você é vulnerável, que está tão aberta para ouvir as preocupações dos plebeus que até consideraria trazer um deles para o reino como seu marido. O rosto de minha mãe relaxa enquanto eu congelo. Esta é a primeira vez que ouço sussurros sobre minha magia. — Houve preocupações mais urgentes do que a execução de prisioneiros. — É a voz afiada de Bastian que me interrompe, e estou grata pelo momento que me dá para me recompor. — A magia dela é boa. Embora Lorde Garrison acene com a cabeça, os cantos de seus olhos se enrugam com um escrutínio que diz que ele não acredita totalmente na mentira. — Claro. É por isso que uma viagem como esta seria tão benéfica, para que Sua Majestade pudesse mostrar ao reino que ela não é apenas poderosa, mas que é alguém em quem podem confiar. Que ela escuta suas preocupações e fará o que for melhor para o reino. Eu sinto o gosto de sangue no meu lábio inferior por causa da forma como me preocupo com isso. — Vou pôr fim a todos os rumores sobre a minha magia esta noite — digo antes que possa decidir melhor sobre isso. — Vou dirigir-me a todos os prisioneiros que foram condenados a uma execução pela minha magia e convido-o a assistir, Lorde Garrison. E se mais alguém aqui está preocupado com a minha magia, você é bem-vindo para se juntar a nós. Minha mãe e Bastian tentam chamar minha atenção, mas me recuso a prestar atenção a eles. Aqui, antes dos outros, devo manter minha calma mais desdenhosa, mesmo enquanto meu coração dispara tão ferozmente que não pode demorar muito para quebrar. Eu preciso sair daqui. Preciso planejar e pensar, longe de sussurros ou conselheiros e da massa turbulenta dos nervos de Bastian que me corroem. Quanto antes eu puder acabar com os rumores sobre minha magia, melhor. Acima de tudo, a descoberta da minha magia perdida é a última coisa de que preciso. — Vou considerar essa proposta, Lorde Garrison — anuncio para a mesa, escondendo minhas mãos trêmulas. — E eu te vejo hoje à noite. CAPÍTULO QUATRO Bastian me alcança antes que eu possa escapar de volta para o meu quarto, sem fôlego enquanto ele segura meu pulso. Eu pulo com o choque da sua pele na minha. Seu toque queima através de mim como fogo, acendendo minhas veias. Isso me faz querer me entregar a ele, deixá-lo me abraçar e apenas queimar. É por isso que tenho feito tudo ao meu alcance para ficar longe dele. — Você realmente vai sair correndo assim? — Ele exige, seu cabelo varrido pelo vento de tanto correr, olhos castanhos fixos nos meus. — Você não tem magia, Amora. Como você acha que vai se safar com isso, especialmente com os outros assistindo? — Você não entende, não é? — Eu tiro minha mão dele, como se ele fosse uma chama ameaçando queimar minha pele. — Eu preciso de outros para assistir. Essa é a única maneira que tenho, uma chance de acabar com os rumores de que algo aconteceu com a minha magia. Seus punhos estão cerrados, os músculos do pescoço tensos. — Mas você tem um plano? Você sabe, aquela coisa em que você para pra pensar sobre o que está fazendo antes de anunciar para uma sala inteira que vai fazer isso? — Claro que sim — eu argumento. — Eu tenho um... um plano de contingência. Ele inclina a cabeça para o lado. — Ah? Que tipo de plano de contingência? Eu aperto meus dentes, moderando a frustração que está borbulhando dentro de mim. — Um que vai funcionar. — Mas também, um que eu esperava nunca ter que usar. Um com muitas variáveis quando temos apenas uma chance de acertar. Eu sei muito bem o quão arriscado é, um passo em falso e todo o meu reinado irá cair em chamas antes mesmo de começar. Mas eu sabia que esse dia chegaria desde o momento em que assumi o trono, e essa é a única ideia que tem uma chance. Bastian suspira. — Você não precisa fazer isso sozinha. Apenas... fale comigo. Você e eu somos melhores juntos. Deixe-me ajudá-la. Por um momento fugaz, quero um pouco mais do que exatamente isso. Mas eu confiei em meu pai com tudo, e veja aonde isso me levou. Não vou colocar minha fé apenas em outra pessoa novamente. — Você pode me ajudar ficando longe essa noite. — Eu mantenho minha voz concisa, tentando ignorar a forma como sua dor me corta. Cada fibra do meu corpo vibra com o erro dessa emoção que não é minha. — Você é uma distração, Bastian. E não posso ter nenhuma distração quando estou na prisão. Talvez sejam palavras cruéis. Mas quando seu rosto cai, eu sei que elas funcionaram. Por enquanto, isso é tudo que importa. — Você tem me evitado por todo o outono. Tenho certeza que consigo ficar longe de você por uma noite. — Ele se afasta de mim e cruza os braços sobre o peito. A postura parece quase casual, mas não estou enganada. A frustração ferve dentro dele, aquecendo minha pele. — Mas e o que disseram na reunião? Você está... Isso é algo que você quer? — Casar? — Eu bufo. — Claro que não. Mas você não pode negar que a ideia tem mérito. — É uma ideia segura — ele desafia, rangendo as palavras entre os dentes cerrados. Sua raiva é uma tempestade negra e violenta de emoções que cresce dentro de mim. — Não há nada de errado em tentar estar segura. — Não tive a chance de realmente considerar a ideia, mas não posso evitar, mas quero que Bastian sinta uma pontada de minhas palavras.Eu quero que ele saiba que, independentemente desta maldição nos ligando, ele não é meu dono. Ele não é meu destino e, embora eu possa desejá-lo, não preciso dele. — Visidia perdeu muito. Minha mãe perdeu muito. O que há de errado em ter alguma estabilidade? — Não há nada de errado com a estabilidade. Mas não deve significar sacrificar quem você é. — Ele dá um passo à frente e estende a mão como se fosse me tocar. Embora cada centímetro do meu corpo queime por esse toque, recuo, apenas percebendo um pouco tarde demais o que fiz. Bastian se imobiliza, abatido. Seu peito não se move – por um momento, ele não respira. — Você acabou de sair de um noivado, não se prenda de novo. — Suas palavras se transformaram em um sussurro, suave e suplicante. — Essa não é uma sugestão repentina. — Eu mantenho minha voz dura. — Há uma razão pela qual minha família me noivou com Ferrick no verão passado, e agora há muito poucas opções para ser o herdeiro. Tenho que considerar isso, farei o que for preciso para consertar este reino, e se isso significa que devo colocar um anel no dedo para fazer isso, ou fingir tudo o que devo fingir para que meu povo possa descansar, então eu vou. Sua mandíbula se fecha, e eu praticamente posso ouvir seus dentes rangerem juntos. Estou prestes a me dispensar, incapaz de suportar a tensão por mais tempo, quando sua postura relaxa. — Tudo bem. — Bastian fala com tal finalidade que, por um momento, fico quase ofendida por ele não ter tentado me impedir com mais determinação. No mínimo, eu esperava uma explosão, mas sua raiva vem fria e amarga. — Tudo bem? — Foi o que eu disse. — Sua voz é calma, mas firme. — Está bem. Na verdade, você deve fazer isso. É como se ele tivesse me acertado bem no peito. Eu me afasto, não querendo deixá-lo ver a raiva inflamada dentro de mim. — Isso é tudo que você precisou para aceitar? Estrelas, talvez eu devesse ter começado a namorar há muito tempo. A risada de Bastian é suave como vinho. Com sua proximidade, posso praticamente sentir o cheiro familiar de sal marinho em sua pele. — Quem falou em aceitar? O plano seria encontrar os solteiros mais elegíveis de toda Visidia, certo? E ver se você tem uma conexão com algum deles? Eu o observo com cautela, olhos estreitos. — Está correto. Sua respiração se acalma. Embora seus olhos sejam escuros, a determinação os endureceu. O sorriso que ele dá é quase o suficiente para me derreter no chão, quente, rico e brilhante. — Então, se é isso o que você decidir fazer, não vamos esquecer que também sou solteiro. E eu sou muito, muito elegível. Quando o choque das suas palavras se instala, eu descubro que mal posso mover meus lábios, muito menos formar palavras. O suor cobre minhas palmas, e eu as limpo fingindo alisar meu vestido. Minha boca está seca e minhas bochechas quentes e agitadas. A última coisa que quero é que ele perceba, embora a tentativa seja inútil. Este menino pode sentir minha própria alma. — Se você me der licença. — Eu me afasto antes que meu coração trovejante possa me trair a ele e a todo o reino. — Eu tenho que me preparar para esta noite. A última coisa que vejo de Bastian é que ele inclina a cabeça. Há um sorriso em sua voz quando ele grita: — Você não será capaz de me ignorar para sempre, princesa. Mas até que eu possa resolver essas emoções turbulentas dentro de mim, tenho certeza que as estrelas vão tentar. CAPÍTULO CINCO Minhas botas afundam na areia vermelho-sangue enquanto Casem e eu levamos os conselheiros para a prisão sob o fundo de uma lua prateada. Apenas dois apareceram: Lorde Garrison e Lorde Freebourne. Quanto aos outros, tenho certeza que os rumores grotescos sobre minha magia superaram sua curiosidade. Enquanto eu crescia, papai e eu entramos nessas prisões uma vez por ano com um único propósito: livrar Visidia de seus criminosos mais perigosos, usando nossa magia para executá- los. Naquela época, eu pensava que estava protegendo Visidia com minha magia, como meu reino ainda acredita erroneamente. A magia da alma que meu pai e eu praticamos era corrupta e grotesca, mas até o verão passado eu não conhecia nada melhor. Nossa magia é o resultado de uma maldição em nossa linhagem para punir meu ancestral Cato, que originalmente enganou todos fazendo-os acreditar que só podiam praticar uma magia para sua proteção. Uma vez que eu quebrar tanto a maldição Montara quanto minha maldição à Bastian, a magia da minha alma deve retornar ao modo como sempre foi destinada a ser usada: algo pacífico e protetor que permite que seus usuários leiam as almas e a intenção delas. E embora esteja animada para conhecer essa versão da minha magia, não posso deixar de reconhecer a lasca de medo. Por mais grotesca que minha magia possa ter sido, sempre acreditei que a estava usando para proteger os outros. E por essa razão, passei a amá-la. — Você está se sentindo bem com isso? — É o sussurro de Casem que quebra nosso silêncio, me tirando dos meus pensamentos. Não é hora de ficar triste. — Agora é um momento tão bom quanto qualquer outro — digo a ele. — Vamos acabar com isso. Eu conduzo os outros por um penhasco íngreme nas profundezas de um bosque de eucaliptos arco-íris, intimamente satisfeita pelos bufos e tropeços de Lorde Garrison. Ao contrário dele, não preciso de nada mais do que a luz das estrelas para me guiar por esta ilha que conheço tão bem. Esta ilha que se gravou dentro da minha alma. Em meus pulmões. No sal que queima a pele rachada das minhas palmas. Eu poderia fechar meus olhos e ainda conduzir os outros por Arida sem perder um passo. Construída como uma caverna na encosta do penhasco, a saída da prisão é vigiada por três soldados habilidosos: dois Valukans com afinidade com a terra e o ar e um Curmanan com magia mental, habilidoso na levitação. Enquanto eles se afastam para nos deixar passar, mais guardas esperam dentro da prisão. Normalmente, meu pai os mandaria embora para nossas execuções. Mas seja porque eu sou nova em fazer isso sozinha ou porque eles suspeitam do motivo de eu ter evitado as prisões por tanto tempo, vários guardas nos seguem à distância, como se esperassem que eu desse o comando para eles para sair a qualquer momento. Mas é bom que os guardas estejam aqui. Quanto mais pessoas testemunharem isso, melhor. O suor permeia em minhas têmporas enquanto viajamos pelos túneis úmidos, pegando o caminho de terra bolorento que leva à seção da prisão que hospeda os piores criminosos. Quando chegamos, o nervosismo toma conta do meu peito enquanto espio pela janela minúscula esculpida em uma porta de ferro. Uma mulher loira e esguia me encara de volta. Sua pele é pálida e seus olhos são fundos, em seu pescoço está a familiar tatuagem preta de um X: a marca de alguém acusado e julgado por assassinato premeditado. Suas mãos estão fortemente amarradas à sua frente, cobertas por um grosso saco de estopa. Cada centímetro de sua pele é coberto com um pano, e em seus pés há botas de metal irremovíveis que me dizem que ela é uma Valukan com uma afinidade com a terra. Sem ser capaz de conectar seu corpo com a terra por meio do toque, sua capacidade de controlar o elemento é inexistente. Há outros atrás dela, cinco no total, amarrados por correntes na parede. Todos os quais serão executados essa noite. Eu mantenho minha posição fora da cela enquanto o guarda abre a porta. A curiosidade está em chamas nos olhos de todos os guardas. A maioria deles está do lado quando eu entro, os braços cruzados atrás deles enquanto observam com foco de falcão. Os conselheiros ficam com eles, e Lorde Garrison observa com expectativa enquanto as mordaças da mulher são arrancadas dela. — Eu estava começando a achar que você nunca iria aparecer. — Ela mantém a voz brincalhona mesmo quando seus olhos passam de um lado para o outro, procurando a saída mais próxima. Com tantos guardas patrulhando a prisão, seria inútilpara ela fugir. Mas isso não impediu prisioneiros de tentar. Eu reduzo o espaço restante entre ela e arranco um fio de cabelo do seu couro cabeludo. Quando ela se esquiva do meu toque, vejo a marca que procuro. Em suas mãos amarradas, logo acima da borda da estopa que deveria cobri-la por completo, está uma tatuagem lilás tênue em seu antebraço. Dois peixes esqueléticos formando ossos cruzados sob um crânio. É minúsculo, quase impossível de ver, mas me dá toda a coragem de que preciso para prosseguir. Agarrando o cabelo em meu punho, faço uma prece silenciosa para que isso funcione. — Eu preciso de fogo — digo ao guarda mais próximo. A magia da alma é baseada na troca equivalente, se quero tirar um osso de alguém, devo oferecer um osso e algo da pessoa, geralmente um fio de cabelo. Se eu quero o dente deles, ofereço um dente em troca. E se eu quiser matá-los, devo usar seu sangue. No entanto, não há uma maneira de usar a magia da alma. Todos que já o manejaram, o fizeram de uma maneira única. Meu pai usava água para se afogar, minha tia engole os ossos e usa o ácido do estômago para destruí-los. Eu uso o fogo para queimar o sangue e os ossos das minhas vítimas. Provavelmente antecipando meu pedido, uma guarda Valukan obriga-se a tirar um sopro profundo do seu intestino. Quando ela expira de novo, é com a palma da mão estendida. Nela, uma pequena chama pisca e se estende para a vida, crescendo a cada vez que a Valukan exala. Ela coloca as chamas em um pequeno poço construído na cela, criado exatamente para esse propósito, e ele se acende intensamente. Abro a palma da mão e balanço o cabelo acima dela. — Qual é o seu nome? O comportamento fácil da prisioneira vacila. Sua expressão se torna azeda quando ela tenta se levantar, mas as botas pesadas a fazem tropeçar e não há nenhum lugar para ela ir. Apenas prisioneiros amarrados esperam atrás dela, e um punhado dos mais poderosos manejadores de magia de Visidia à sua frente. — Não tente — advirto enquanto seus olhos se voltam para a única saída. — Vou perguntar mais uma vez. Qual é o seu nome? Pego a bolsa no quadril, saboreando a forma como minha pele treme contra o couro polido, sem ter um motivo para pegá- la. De dentro dela, retiro um único dente e enrolo o cabelo da prisioneira em torno dele. Para mim, os dentes são a forma mais humana que conheço de obter a quantidade de sangue que preciso para acabar com a vida de uma pessoa. Embora seja desconfortável, é bastante indolor. Eu balanço o dente sobre o fogo que se contorce, observando enquanto a mandíbula da mulher se contrai em resposta. Sua atitude dura se estilhaça. — Por favor, não faça isso — implora a mulher. — Por favor, me dê outra chance. Minha própria mandíbula também se contrai, embora ao contrário dela, a minha é de aborrecimento. Eu odeio ser feita de vilã, especialmente na frente de uma multidão. — Eu perguntei seu nome. — Riley — ela diz. — É Riley Pierce. — Riley Pierce, como a Rainha de Visidia, é meu trabalho manter o reino seguro. Sua alma é uma praga, se corrompeu com seus crimes, e o povo de Visidia escolheu a execução como seu castigo. Se você tem alguma última palavra, diga-as agora. Ela abaixa a cabeça, os ombros tremendo enquanto pressiono minha palma contra eles, mantendo-a de joelhos caso ela tente alguma coisa. Quando ela levanta o queixo novamente, há gelo em seus olhos. — Eu espero que você queime. São palavras que sacudiram minha mente duas temporadas antes, e penso no cadáver sem vida de meu pai queimando em um mar de fogo, a pele carbonizando e derretendo dos seus ossos. Seu sangue se acumulando e fervendo ao redor dele, transformando-se em alcatrão. Eu balanço quando as paredes da prisão se fecham e me forço a respirar fundo pelo nariz para me equilibrar. Não agora. Não aqui. As memórias podem me assombrar mais tarde, como sempre acontece quando fecho os olhos. Mas agora, devo manter minha compostura. — Um dia — digo à prisioneira — tenho certeza que vou. Os olhos de Riley piscam para mim, confusos, mas minha única resposta é deixar cair o dente ferido com seu cabelo na chama. Seu corpo sofre espasmos enquanto o sangue sai das suas gengivas, manchando seus dentes e escorrendo por seus lábios. Eu me curvo para correr meu dedo sobre ele, revestindo minha pele; em seguida, espalho o sangue sobre dois ossos: um de uma coluna vertebral humana e um pequeno fragmento de um crânio. Levando apenas um breve momento, eu me viro para olhar para os rostos dos conselheiros. Lorde Garrison ficou branco como os ossos, enquanto as sobrancelhas escuras de Lorde Freebourne franzem como se ele não tivesse certeza se deve ficar chocado ou intrigado. Jogo os ossos ensanguentados no fogo e, enquanto eles estalam, a mulher cai. Sua espinha torce bruscamente e seu crânio cede. Ela dá um suspiro de surpresa antes de estremecer no chão, morta. A morte pelas minhas mãos nunca é indolor — não tenho o luxo de dar isso às pessoas — mas certamente pode ser rápida. Com o corpo inerte de Riley diante de mim, me viro para os conselheiros para ver que Lorde Garrison se virou. Está claro que todas as dúvidas que ele tinha sobre minha magia se foram. Eu dei a ele o que ele queria, mas ele nem mesmo teve estômago para assistir. — Casem, você fica. O resto de vocês, não há necessidade de se torturar. — Eu me agacho diante do corpo de Riley, colocando minha mão sobre a bainha da minha adaga de aço. — A menos que você queira me ver drenar os corpos e colher seus ossos, saia. Eu lidarei com o resto dos prisioneiros sozinha. O alívio flui de Lorde Garrison em ondas que dão um nó no meu estômago. Embora Lorde Freebourne hesite, parecendo meio inclinado a ficar, os dois homens eventualmente acenam com a cabeça e partem sem protestar. Os guardas são rápidos em seguir, entregando a Casem o chaveiro de cobre para que eu possa terminar meu trabalho em paz. Esta não era nem mesmo minha magia verdadeira, e ainda assim os enoja. — Lorde Garrison? — Eu chamo quando ele está quase fora da porta. Ele está branco como um lençol enquanto ele luta contra o aperto de mãos, e se vira para mim, incapaz de me olhar nos olhos. — Sua Majestade? — Se eu ouvir um sussurro sobre minha magia, especialmente da boca de um Suntosan, terei que falar com você. — Sim, vossa Majestade. E então ele se foi. Casem está de pé com as mãos cruzadas atrás dele, o olhar firme no chão. Só quando não podemos mais ouvir os passos dos outros é que ele exala uma respiração presa fortemente. — Sangue dos deuses, não posso acreditar que você conseguiu. — Ainda não acabou. — Eu desamarro as amarras dos pulsos de Riley e a viro para que ela não fique mais deitada de cara no chão sujo, mas com a parte de trás da cabeça no meu colo. — Vá e guarde o perímetro. Casem se move para obedecer, mas algo o impede no meio do caminho. Baixinho, ele sussurra: — Você não tem que fazer o resto disso, você sabe. Podemos encontrar outra maneira. — Não há outro caminho. — Por mais que eu queira acreditar nessas palavras, elas são uma mentira. Este é o meu dever, tal como Lorde Garrison disse antes. E se não consigo nem fazer isso, algo que treinei por toda a minha vida, algo que meu povo acredita ser um ato de proteção… por que ainda uso esta coroa? — Certifique-se de que ninguém entre. Embora espere um pouco demais, Casem inclina a cabeça e pede licença. Só quando ele sai, pego o rosto de Riley em minhas mãos e aperto suas bochechas. — Belo show — digo a ela. — Agora levante-se, precisamos nos mover rapidamente. Ela se mexe, o loiro de seu cabelo lentamente derretendo em um rosa pastel suave. A tatuagem lilás em seu pulso se contorce e se derrete em sua pele. A mulher abre os olhos que não são mais castanhos, mas um rubi mágico e surpreendente, e é Shanty quem sorri para mim. Ela é uma metamorfa de Ikae que conhecemos em nossa jornada no verão passado. Ela ajudou anos disfarçar por tempo suficiente para escapar da ilha e foi quem nos disse onde encontrar Vataea. Seus dentes estão manchados de vermelho e, com as costas da mão, ela limpa o sangue dos lábios e retira uma pequena bolsa vazia de sangue de porco do topo das gengivas. — Para referência futura, essas coisas são revoltantes. — Ela cospe no chão com uma careta. — Você me deve muito. Os gritos dos prisioneiros que esperam atrás dela são abafados por suas piadas enquanto o encantamento de Shanty se desvanece. O resto deles, infelizmente, são reais. E aquela que Shanty estava interpretando, seu próprio rosto alterado com magia de encantamento. Shanty pega minha mão estendida e fica de pé, limpando a sujeira de sua túnica creme e calça lilás de linho. — Eles acreditaram. — O alívio me preenche quando digo em voz alta, acalmando os nervos que fizeram minha pele arrepiar. O alívio quase me faz rir. — Eles caíram completamente. Você foi incrível. Ela tira um cacho rosa bebê do ombro e sorri com os lábios vermelhos como rubis. — Alguma vez você duvidou de mim? — Sua voz é um ronronar orgulhoso. Embora eu estivesse hesitante em adicionar algo à lista de pessoas que sabem que não posso acessar minha magia, contratar Shanty foi uma necessidade. Ela está aqui em Arida desde o outono, provavelmente vivendo com um rosto novo a cada dia. Foi ideia de Ferrick convidá-la aqui, e manter seu segredo, apenas no caso de precisarmos de suas habilidades. Poucas pessoas sabem que ela está aqui em Arida. Foi uma boa ligação. Por mais frágil que Visidia esteja agora, é necessário garantir que meu povo ainda acredite que está protegido por um Animancer poderoso. E como disse Lorde Garrison, às vezes precisamos distrair nosso povo da verdade por tempo suficiente para fazer o trabalho. — Peça a Casem para ajudá-la a sair daqui — digo a ela. — E certifique-se de que você não seja vista. — Como se eu fosse pega antes de receber o pagamento — reflete Shanty. — Ficar escondida é minha especialidade, Majestade. Te vejo do outro lado. Ela faz uma pequena saudação, deixando-me focada nos cinco verdadeiros prisioneiros à minha frente. Ao meu lado estão duas adagas: Rukan, a lâmina que forjei do tentáculo envenenado da Lusca, uma besta marinha que abati no verão passado, e a lâmina de aço que tenho desde que meu pai me presenteou nesta prisão, há treze anos. É aquela cujo punho eu pego agora, agarrando-a com força enquanto me agacho diante do primeiro prisioneiro que devo executar. O homem levanta os olhos para mim enquanto eu arranco suas mordaças, avaliando minha coroa. — Seu povo sabe que sua rainha é tão mentirosa quanto o resto de sua família? — Ele cospe nas minhas mãos, depois olha para mim como se esperasse que eu recuasse. Mas está longe de ser a primeira vez que recebo uma cusparada. Eu limpo na minha calça. Não é assim que deveria ser. Seu sangue em minhas mãos não é o que eu quero, e sem minha magia, não posso nem olhar em sua alma para garantir que sua execução seja justa. Mas para fazer Visidia acreditar em mim e na minha proteção até que eu possa restaurar o reino e todas as suas magias, isso é o que devo fazer. Talvez Lorde Garrison estivesse certo, talvez eu não seja nada mais do que um peão neste jogo. — Que os deuses julguem cada um de vocês como merecem. — Sem demorar mais um momento, enfio minha adaga no coração do homem e giro a lâmina, pressionando uma mão contra seus ombros para firmar seu corpo até que a convulsão pare. Enquanto a vida é drenada de seus pulmões, inclino seu cadáver contra a parede e tiro a adaga. Eu passo para o próximo prisioneiro. Embora eu tente fazer cada morte o mais rápido possível, uma lâmina através do corpo está longe de ser indolor, e eu não consigo controlar o desejo de um corpo de viver. Alguns vão rapidamente, enquanto outros são lentos e dolorosos. Um homem demora tanto e sofre tanto que acabo cortando sua garganta para que ele vá logo. Os gemidos dos prisioneiros restantes se transformam em lágrimas enquanto esperam, que depois se transformam em soluços e gritos abafados pelo tecido que os amordaça. O sangue deles mancha minhas mãos em um tom tão violento que, não importa o quão forte eu possa esfregar, eu sei que nunca vai sair. Para cada coração que minha lâmina perfura, um pedaço de minha alma já murcha se parte. Mas não paro até que o último prisioneiro caia e minhas botas se banhem em uma poça de sangue misturado. E mesmo assim, eu não terminei. Deixar cinco corpos esfaqueados é muito suspeito quando minha magia não depende de uma lâmina para matar. Se eu tivesse mais fogo e um cômodo maior, queimaria os corpos. Mas minha única opção para esconder as feridas é cortando-as, drenando-as e recolhendo os valiosos ossos um por um. Para alguns, eu levo muitos ossos. Para outros, colho apenas alguns importantes: um na clavícula e na coluna. Apenas o suficiente para fazer parecer que eu tinha um bom motivo para esfaquear o peito de cada um deles. É um processo ao qual estou acostumada, mas é diferente desta vez, agora que sei a verdade sobre a magia da alma. Agora que sei que nunca precisou ser assim. A náusea me deixa gelada, apesar do fogo fervente, e preciso de tudo para não perder o estômago. Demoro horas até que eu esteja recolhendo os ossos ensanguentados para serem lavados, mantendo os corpos dos prisioneiros expostos para os guardas alimentarem os peixes. Acabo de terminar quando passos ecoam pelo túnel. Embora Shanty tenha ido embora e eu tenha feito tudo que posso para encenar minha mentira, uma onda de pânico me percorre e eu pulo de pé, esperando Casem ou um dos outros guardas. Mas é Ferrick quem corre para a prisão, seu rosto tão vermelho quanto seu cabelo enquanto ele tenta respirar. Meu peito se aperta de alívio ao vê-lo, mesmo quando seu nariz se torce e sua respiração para ao ver o sangue em que posso ter me banhado e uma pequena montanha de cadáveres atrás de mim. Ele fecha os olhos com força e se afasta imediatamente. Minhas bochechas ficam vermelhas. — Você não deveria estar aqui. — A vergonha afunda em meus ossos enquanto eu limpo minhas mãos ensanguentadas na sujeira. Já se passou uma temporada inteira desde a última vez que estivemos juntos, antes de eu dar a ele seu primeiro trabalho oficial como meu conselheiro principal. Eu odeio que, em nosso primeiro momento juntos novamente, ele tenha que me ver assim. — Nós o encontramos — Ferrick disse, ignorando minhas palavras. Seus ombros estremecem a cada respiração pesada. Eu coloco os ossos em minha bolsa e atravesso o chão até ele tão rapidamente que meu cérebro mal consegue acompanhar meus movimentos. — Onde ele está agora? — Ele está detido no navio. Nós o pegamos. Eu poderia beijar Ferrick por essas palavras. Eu quase jogo meus braços ao redor dele até que ele recua, e eu me lembro do sangue. — Vou mandar trazê-lo aqui… — Não. — Eu embainho minha lâmina, a determinação endireitando minha espinha. — Leve-me até ele. CAPÍTULO SEIS As docas são um fantasma do que eram ontem. Os céus ficaram mais claros durante minhas horas na prisão, e o amanhecer luta para se libertar debaixo de um pesado coágulo de nuvens de tempestade. Enquanto o mar mantinha um ritmo pacífico horas atrás, agora as marés batem violentamente contra as docas, borrifando meu rosto com sal marinho. O tipo de ondas que são uma ameaça para o marinheiro médio, mas um convite à aventura para o resto de nós. O tipo de ondas que foram feitas para serem conquistadas. A névoa fresca do mar é um perfume com o qual me envolvo quando cada onda acena. Encho meus pulmões com ela, como se fosse alimentar o fundo da minha alma. Embora tenha sido ontem que minhas mãos agarraram um elmo pela última vez, o desejo engrossa minha garganta. Velejar ao redor da baía, sem expandir os perímetros de minha maldição à Bastian, está muito longe da navegação que desejo. Olhandopara os navios atracados, meu corpo dói pelos dias de volta a Keel Haul. Para as manhãs em que acordei com o sol e as noites que passei contando as estrelas com uma sereia, um pirata e um clandestino ao meu lado. Toda a minha vida eu não quis nada mais do que um dia governar Visidia. Mas agora que é minha, tudo o que consigo pensar é no dia em que finalmente poderei passar a responsabilidade e ter meu corpo devolvido ao mar o qual pertence. Ferrick sobe as docas, acenando para mim em direção ao pequeno navio de carga que chegou. Tendo mantido a tripulação o mais reduzida possível, apenas alguns soldados de confiança esperam por nós, seus rostos sombrios e cansados. Eles não sabem nada sobre o homem que os mandei atrás, ou os crimes revoltantes dos quais ele escapou da punição por muito tempo. Enquanto todos os soldados são rápidos em se curvar, vários olham propositalmente para longe do sangue que mancha minha pele e roupas, enquanto outros me encaram. — Todos vocês se saíram maravilhosamente bem. — Pego a escada de corda pendurada no navio e me arrasto nela com a facilidade praticada. — Vão se limpar e voltar para suas famílias. Vocês ganharam uma folga. Alguns hesitam, surpresos por eu estar dispensando-os tão rapidamente. Mas eles obedecem às minhas ordens, e espero com Ferrick em silêncio até que estejam muito longe da costa para me ouvir perguntar: — Onde você o encontrou? — Na costa de Suntosu. Recebi uma dica de alguém que o conhecia em Kerost. Disseram que ele está viajando em busca de alguém. Eu coloco a mão no ombro de Ferrick e aperto, apenas uma vez, e é um gesto que chama sua atenção. Ele se vira devagar para me olhar. Mesmo que eu esteja coberta de sangue, ele envolve seus braços em volta dos meus ombros e me puxa para perto. Eu não luto com ele, me permitindo derreter em seu corpo, grata por seu retorno seguro. Na época em que fui forçada a ser sua noiva, nem sempre fui muito gentil com Ferrick. Mas depois da nossa jornada no verão passado, não consigo imaginar a vida sem ele. Eu o abraço com força, deixando-o ser o primeiro a se afastar. — Eu não queria que demorasse tanto. — Ele passa os dedos pelos cachos ruivos soltos que precisam desesperadamente ser aparados. — Como vão as coisas aqui? Como você está? Minha pele esfria, sem querer considerar o peso por trás da pergunta. — Estou feliz que você esteja em casa, mas vamos deixar o que está acontecendo para depois. Eu preciso vê-lo. A pele entre as sobrancelhas de Ferrick se enruga, mas ele acena com a cabeça do mesmo jeito. — Nós o amarramos lá embaixo. Eu posso ir com você… Balanço minha cabeça. — Fique aqui e vigie a porta. Eu não quero que Vataea descubra sobre ele até que venha de mim. — Ela está bem, então? — Ele pergunta, inocente, mas esperançoso o suficiente de que a luz em seus olhos aqueça meu coração. — Ela se adaptou à vida no palácio tão bem quanto esperávamos. E ela ficará emocionada quando descobrir quem você trouxe para ela. Com as bochechas coradas de satisfação, Ferrick balança a cabeça e dá um passo para o lado para que eu possa acessar as escadas que conduzem ao convés inferior. Eu vou rapidamente, e com um navio tão pequeno, não demoro muito para encontrar quem estou procurando. Ele está preso a um poste, bem amarrado na cintura e nas mãos. Embora eu saiba que é ele, seu rosto não é aquele que eu reconheço à primeira vista. Ele envelheceu significativamente desde o nosso último encontro, sua pele enrugada e danificada pelo sol. Seu rosto, antes liso e bem barbeado, agora está coberto por uma espessa barba grisalha que se estende por todo o pescoço. Mas, por mais diferente que ele pareça, eu reconheço seus olhos verdes cansados, a pele queimada da sua garganta e seu dedo esquerdo faltando. Feridas que sobraram da nossa briga no verão passado. Blarthe. Um homem diretamente responsável pelo comércio ilegal de tempo em mais de uma centena de acusações. Responsável por caçar uma sereia, a espécie mais ameaçada e protegida do nosso reino. Ele destruiu a vida de dezenas e aproveitou seu sofrimento em um momento de necessidade, e também sujeitou Vataea a anos de atrocidade. Esse é um homem que merece tudo o que recebeu e muito mais. Ele é aquele cuja execução eu não hesitaria em condenar. Ele merece queimar antes de todos os Kerost pelos danos que causou. — Olá, princesa. — Blarthe mostra dentes que não são mais brancos perolados, mas enegrecidos de podridão e cárie. Vários estão faltando de onde eu os queimei. — Você vai me chamar de rainha, agora. — Eu me agacho diante do comerciante de tempo, percebendo como ele envelheceu mal. — É assim que você realmente se parece? Deuses, não é de admirar que você demora a negociar. Alguém deveria ter chutado você do mar há muito tempo. Ele cospe nos meus pés mas eu não recuo. Com todo o sangue que os mancha agora, planejei queimar essas botas. Mas Blarthe precisa se lembrar de quem está no comando. Em um movimento fluido, tiro Rukan da bainha e coloco-a contra sua garganta. Seu foco se estreita na estranha lâmina marinha enquanto ele tenta se retrair das pequenas manchas iridescentes que se movem dentro dela. — Tenho certeza que você já ouviu falar da Lusca? Eu tirei isso como um presente de despedida. — Eu pressiono a lâmina em forma de gancho para frente o suficiente para assustá-lo, mas tenho o cuidado de não romper a pele. A última coisa que quero é envenená-lo quando ainda preciso dele vivo. Afinal, ele não é apenas um presente para Vataea. Sua captura é como vou reconquistar a confiança de Kerost. Pesar escurece seus olhos. — Eu ouvi rumores sobre você, sabe. Dizem que a nova rainha se recusa a usar sua magia. — Olhe para o sangue que uso em minhas roupas e pele e você verá que não passam de rumores. — Eu provoco a ponta de Rukan contra o topo de sua garganta, o calor fervendo dentro de mim. Mas não é o suficiente para fazê-lo calar a boca. — Você se esquece que eu estava lá quando Kaven tentou tomar Kerost. Ao contrário de muitos, eu vi o que sua magia podia fazer. Eu sei que ele tinha a habilidade de amaldiçoar a magia. Eu embainho Rukan antes que eu esteja tentada a envenenar Blarthe e acabar com isso. — Diga outra palavra e eu corto sua língua. Blarthe não vacila, embora haja um tremor em suas palavras que ele luta para esconder. — Qualquer um que conheça a magia de Kaven será capaz de descobrir, garota. Pegue minha língua se for preciso, mas saiba disso: me silencie, e você nunca terá sua magia de volta. Posso te ajudar. A risada que me atravessa é praticamente um latido. — Você acha que sou idiota? — Eu considero você alguém que sabe que nem todos os mitos são falsos. — Seus olhos piscam para o punho de Rukan e eu aperto a lâmina com mais força. — Você não está curiosa para saber o que eu estava procurando quando seus soldados me encontraram? — Não particularmente. Eu trouxe você aqui para ser julgado por seus crimes, e porque há uma sereia que tenho certeza que adoraria ter uma palavra a dizer sobre sua punição. Não tenho interesse no que quer que você esteja procurando. — Mas essa última parte é mentira. O tom de sua voz fez com que minha curiosidade explodisse mais do que gostaria de admitir. — Eu estava procurando por um artefato que as lendas dizem que foi deixado pelos próprios deuses. — O foco de Blarthe não vacila enquanto ele prossegue com o desespero de um homem lutando por sua vida. — É aquele que tem o poder de aumentar a magia mais do que você jamais poderia acreditar. Diz-se que, com ele, uma pessoa poderia exercer o poder dos deuses. — Nenhuma pessoa deve ter esse tipo de poder. — Deuses, não posso acreditar que estou entretendo ele. Eu me inclino para trás, pronta para buscar Vataea e acabar com isso, mas suas próximas palavras me congelam no lugar. — Mas imagine o que você poderia fazer com isso. — Ele inclina a cabeça para trás, contra o poste.
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