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A CRISE DO OBJETO DE ARTE

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CAPÍTULO 8 
A CRISE DO OBJETO DE ARTE 
João Epifânio Regis Lima 
 
 
Para que se possa falar em crise do objeto de arte, é necessário definir, 
inicialmente, algumas características de tal objeto, tradicionalmente 
considerado, para então apontar de que maneira essas características serão 
posteriormente desafiadas no decurso da história da arte. Tomando como 
referência principalmente a pintura – e, em alguns casos, a música – 
delinearemos nosso percurso levando em conta certos traços de algumas 
obras de arte que podem ser tidos como pedra angular para nossas reflexões. 
 
 
A pirâmide de valores 
 
Em primeiro lugar, devemos considerar que o objeto de arte tradicional é tido 
como aquele que traz consigo o máximo de valor, com o máximo de qualidade 
e o mínimo de quantidade. Como diz Giulio C. Argan (1998, p. 252): 
 
A obra de arte é o objeto único, que tem o máximo de 
qualidade e o mínimo de quantidade. É, portanto, o 
vértice de uma pirâmide, em cuja base encontramos 
objetos repetidos e de escasso valor, em que a 
qualidade é mínima e a quantidade máxima. 
 
Essa hierarquização de valores corresponde, no topo da pirâmide, à atitude de 
veneração de objetos artísticos ou artesanais – muitas vezes com função 
religiosa – nas sociedades antigas ou ao prestígio atribuído, nas sociedades 
modernas, à minoria com acesso ao raro (BENJAMIN, 1936). Um corolário 
digno de nota dessa pirâmide de valoração estética é a diferenciação de valor 
atribuído ao original e à cópia, sendo que o original, único, ocupa o topo da 
pirâmide e a cópia, com numerosos representantes, é relegada à base. Assim, 
a essa pirâmide referida por Argan corresponde outra, de valoração social, 
 2
encimada pelos poucos de maior poder aquisitivo e em cuja base acotovelam-
se os membros da massa menos afortunada. O vértice da pirâmide tem, assim, 
acesso facilitado aos objetos de máximo valor, incluídos aí os objetos de arte 
originais. 
 
A ideia do paralelismo entre essas duas pirâmides é sustentada por vários 
exemplos históricos nos quais a uma crise de valores estéticos corresponde 
uma turbulência de ordem social. Assim, por exemplo, podemos lembrar da 
forte crítica social realizada por ocasião da semana de arte moderna de 1922. 
O palco ironicamente escolhido, o do teatro municipal de São Paulo, 
testemunhou as ruidosas vaias vindas da elite social que, provocada de 
inúmeras maneiras, começava a perder a pose. Imagine o que não terá sido 
ver Villa-Lobos subir ao palco do templo do que se costumava chamar de alta 
cultura1, no dia 15 de fevereiro de 22, de fraque e chinelos, apoiado em um 
guarda-chuva2. As mesmas vaias ressoaram décadas depois no famoso 
festival de música da Record, dirigidas, desta feita, à nova baianidade de 
Caetano Veloso e Gilberto Gil3. A ruptura artística proposta pelo tropicalismo, 
que tem na obra plástica de Hélio Oiticica uma de suas referências principais4, 
 
1 É fundamental atentar ao caráter ambíguo da turbulência cultural provocada pela semana de 
22, que buscava, por um lado, recuperar valores culturais brasileiros, mas que, por outro lado, 
afirmava tendências artísticas européias em voga, como o cubismo e o expressionismo. Assim, 
os rosas e azuis caipiras de certa fase de Tarsila do Amaral não disfarçam a influência do 
cubismo e, por vezes, do futurismo de além-mar. Do mesmo modo, é visível a Banhista com 
braços levantados (1929) de Picasso na Antropofagia (1929) da mesma pintora, bem como a 
influência das cores expressionistas na pintura de Anita Malfati (veja-se, por exemplo, O farol 
[1915] ou A boba [1915] ). O onipresente pintor catalão inspira também muito do trabalho de 
Portinari. Compare-se, por exemplo, a plasticidade dos corpos nas Mulheres correndo na praia, 
de Picasso, com O lavrador de café de Portinari. 
 
2 Segundo o Catálogo da Exposição “22 e a idéia do moderno” - MAC/USP, 2002. 
 
3 A ambiguidade, nesse caso, refere-se à apropriação ideológica, enquanto indústria cultural, 
de um movimento artístico-cultural que buscava, paradoxalmente, fazer uma crítica à ideologia 
vigente. É o que se nota, por exemplo, nos americanismos introduzidos na música brasileira da 
época sob o pretexto de modernização. Assim continuavam a ceder os tupiniquins aos 
encantos dos badulaques do colonizador. A dessemelhança da triste Bahia de Caetano 
dissolve-se na uniformização da sociedade unidimensional com a massificação de sua música, 
veiculada pelos ícones construídos pela indústria cultural. É o que se vê na tão conturbada 
introdução da guitarra elétrica (que mereceu memoráveis passeatas de protesto) na música 
brasileira, no caso do tropicalismo e da jovem guarda, bem como no uso da harmonia jazzística 
na bossa nova. 
 
4 Lembremos que o movimento tropicalista recebe seu nome a partir da instalação Tropicália de 
Hélio Oiticica (1968), pela qual o visitante é convidado a circular (e daí ser denominada 
 3
encontra na sociedade seu espelho, seja no que nela há de crítico, seja 
reafirmando-a ideológica e inadvertidamente. É isso que há de alienado no 
tropicalismo, na jovem guarda e na bossa nova. 
 
Pode-se ver, nas artes plásticas, outro exemplo do referido paralelismo na forte 
crítica social feita por Marcel Duchamp (1887-1968), tido como “antecipador e 
inspirador da arte contemporânea” (TOMKINS, 2005, p.7), em seus muitos 
ataques à burguesia (termo utilizado pelo artista) de seu tempo. Sua obra 
Noiva desnuda por seus solteiros, mesmo (também chamada de O Grande 
Vidro5), já no título expressa sua crítica aos padrões morais da sociedade 
burguesa de então. A obra mostra, em sua extremidade superior, uma noiva 
etérea, como aparição de outro mundo, platonicamente inatingível, 
inapreensível e incompreensível a seus pretendentes masculinos que se 
encontram na parte de baixo da composição. Há, no centro desta, uma linha 
horizontal que separa completamente as partes superior e inferior da obra, 
afastando impiedosamente a deusa inatingível dos pobres mortais. Em 
analogia com mecanismos opressores de uma sociedade moralista, os 
homens, em baixo, veem-se atados a engrenagens que os prendem a 
procedimentos que lhes tolhem a liberdade e dificultam o acesso à diva. 
Duchamp coroa essa ode ao caráter castrador da sociedade burguesa com 
manchas de seu próprio sêmen ejaculado na parte superior da obra. O título da 
obra aprofunda a provocação para além de seu sentido primeiro. O título 
original em francês traz La mariée mise à nu par ses célibataires, même. Este 
“même” final, traduzido normalmente por “mesmo”, pode ser um trocadilho 
(Duchamp os amava) para “m’aime”, ou seja, “me ama”. Não bastasse a 
poligamia sugerida no primeiro sentido, a noiva, casada, na realidade amaria a 
mim (ou a Duchamp) e não a seus pretendentes ou cônjuges. 
 
 
penetrável pelo autor), passando por ambientes que simulam ou são recriações de ambientes 
naturais brasileiros. 
 
5 Essa obra não é pintura sobre tela, mas sobre vidro, usando técnicas inusitadas. O próprio 
Duchamp não gostava que se a chamassem de pintura. O grande vidro, medindo 2,74m de 
altura por 1,75m de largura, não se encontra preso à parede, mas no chão, em pé, “pairando 
livre entre suportes de alumínio” (TOMKINS, 2005, p.11). 
 
 4
Do mesmo modo, seria possível traçar analogias entre a crise da arte antiga 
grega e a reformulação político-social por que passou a pólis sob domínio 
macedônico e, posteriormente, romano. No segundo século antes de Cristo, 
por exemplo, o trabalho dos escultores limitou-se a fazer reproduções de 
esculturas gregas, com qualidade bastante inferior à das originais, para 
satisfazer o gosto dos nobres romanos. 
 
De que modo se pode considerar que essa primeira característica do objeto de 
arte tradicionalque apontamos (máximo de qualidade e mínimo de quantidade) 
tenha sido desafiada pela reflexão e produção artística posteriores? Um 
primeiro aspecto encontramos na reflexão de alguns pensadores da Escola de 
Frankfurt, especialmente Walter Benjamin, Theodor Adorno e Max Horkheimer. 
Em 1936, Benjamin escreve seu mais conhecido texto, A obra de arte na era 
de sua reprodutibilidade técnica, no qual discute a questão da perda da aura 
do objeto de arte, antes tido como único ou raro, como consequência da 
possibilidade técnica da multiplicação dos originais de determinadas 
modalidades artísticas. Benjamin referia-se, mais especificamente, às técnicas 
recentes de produção de cópias de fitas cinematográficas ou de fotografias, o 
que punha em questão a relação entre o original – no topo da pirâmide, muito 
valorizado – e as cópias, reservadas à grande massa. Na realidade, a 
conclusão de Benjamin é de que tal situação resulta em democratização da 
arte, já que uma maior parcela da população passaria a ter acesso às obras. 
Para ele, não seria possível diferenciar a cópia do original, por causa das 
características do próprio processo técnico. Como diferenciar, por exemplo, o 
original e a cópia de uma fotografia se o original, a rigor, é o negativo? Adorno 
e Horkheimer (2006) não estão de acordo com a perspectiva de Benjamin. 
Para eles, a reprodução da obra implica em perda de identidade do original, 
que passa a ser manipulado mercadologicamente por uma elite e cujo acesso 
pela massa torna-se dificultado. 
 
Marcel Duchamp contribuiu a seu jeito, sempre irreverente, com a discussão 
acerca da relação de valor entre original e cópia ao destruir pessoalmente 
todas as suas obras originais e produzir cópias de cada uma delas. O artista 
francês costumava dizer que suas obras eram, ao mesmo tempo, cópias – 
 5
porque os originais foram destruídos – e originais – porque ele próprio havia 
realizado as cópias. Em outra ocasião, Duchamp produziu uma tiragem 
limitada de algumas dezenas de caixas que continham miniaturas de várias de 
suas obras, sendo que, em cada uma das caixas, havia uma obra inédita e 
exclusiva. Com isso, punha em discussão também o caráter mercadológico da 
arte, que tanto criticava6. Isso porque o fato de as caixas trazerem cópias (que, 
como vimos, para Duchamp não eram cópias), ainda por cima em miniatura, 
contribuía para baixar seu valor de mercado. Por outro lado, o fato de a 
tiragem ter sido pequena aliado à presença de uma obra inédita e exclusiva em 
cada caixa deveria elevar seu preço. 
 
 
Autoria 
 
A noção de auctoritas7 (autoria, autorização, autoridade) em relação às artes 
assume ao menos três posturas diferentes. A mais conhecida, por ser aquela 
adotada pelo senso comum, corresponde à que se convencionou chamar de 
“autor-presença” e é o modo como costumamos normalmente pensar o autor. 
Essa concepção de autoria, que herdamos do romantismo e do período que o 
cerca, concebe o autor como sujeito pessoal e concreto que é causa exclusiva 
da obra, de modo a dominar e ter sob total controle todos os seus aspectos, 
desde sua concepção a sua produção e divulgação8. 
 
 
6 Duchamp criticava Picasso e sua personalidade expansiva, considerando-o um mercenário 
das artes. Apesar de sua irreverência, o artista francês, diferentemente do catalão, tinha um 
temperamento introspectivo e era uma figura reservada e quase que desconhecida, apesar de 
respeitada. 
 
7 O termo auctoritas refere-se a autoria, mas também, por extensão, a autoridade, autenticação 
e autorização. Aponta a autoridade responsável não apenas pela concepção e produção da 
obra – o autor – mas também por sua legitimação, autenticação e autorização. 
 
8 As duas outras concepções de auctoritas são, em primeiro lugar, a do mundo antigo (até o 
século XVII ou XVIII), segundo a qual a auctoritas não está em uma pessoa de carne e osso, 
mas em uma referência genérica de autoridade, em um rótulo que legitima e autoriza a obra e 
em torno do qual orbitam as realizações artísticas. Em segundo lugar, temos ainda 
concepções contemporâneas que merecem menção. Uma fala em “morte do autor” e foi 
proposta por Roland Barthes (1987) e outra, de Michel Foucault (1994), concebe autoria ligada 
à ideia de autor-função (HANSEN, 1992). 
 
 6
Nas artes plásticas, quem discute a noção tradicional de autoria, não 
teoricamente, mas na própria produção artística é, novamente, Marcel 
Duchamp. Quando propõe a obra Fonte, em 1917 (um urinol 
descontextualizado e ressignificado como objeto de arte), não assina seu 
próprio nome, mas com o pseudônimo Richard Mutt. Não seria absurdo 
especular sobre a proximidade entre “Mutt” e “mudo” em referência ao 
cerceamento à liberdade de expressão artística exercido pelas elites 
intelectuais que Duchamp visava provocar com suas artimanhas. Além disso, 
Duchamp inaugura o conceito paradoxal de “ready-made”9, com o qual põe em 
questão a necessidade de o autor ser a causa total da obra, diluindo a autoria 
que se distribui a outras fontes produtoras. O urinol, por exemplo, não foi 
produzido pelo próprio Duchamp. O papel primordial do autor passa a ser fazer 
uma escolha, realizar um recorte com o qual seleciona alguns objetos já 
prontos e afasta outros, e não produzi-los com as próprias mãos. Duchamp 
reflete também sobre auctoritas como autorização, no sentido de autenticação 
da obra, ao problematizar as noções de original e de cópia destruindo (como 
vimos) todas as suas obras originais e produzindo, pessoalmente, cópias de 
cada uma delas e montando as já referidas caixas com miniaturas. Assim, o 
artista francês põe em questão a postura tradicional, segundo a qual a obra de 
arte é considerada autêntica quando é original, tendo sempre mais valor do 
que a cópia. 
 
 
Desenho 
 
Desenho e cor são, historicamente, elementos considerados fundamentais na 
pintura. Vários tratados antigos de arte, como o Tratado da Pintura de Cennino 
Cennini (séc. XV), iniciam suas preceptivas tratando do desenho. Diz Cennini 
em seu tratado, no capítulo 5, cujo título é Como começas a desenhar em 
tabuinha e seu método: 
 
 
9 “Ready-made” significa, paradoxalmente, “pronto-feito”, referindo-se a objetos já prontos de 
que o artista se apropria para apresentá-los ressignificados como obras de arte. 
 7
Como foi dito, começa com o desenho. Convém que 
tenhas método para poder começar a desenhar o mais 
verdadeiro. Primeiro, tem uma tabuinha de buxo com 
tamanho, em cada lado, de nove polegadas, bem lisa e 
limpa, isto é, lavada com água clara, esfregada e polida 
com a concha da sépia, daquela que os ourives usam 
para moldar. 
 
O desenho, segundo essa tratadística, teria vindo antes da cor. A pintura, 
como se lê na História Natural de Plínio, o Velho (1972), teria sido 
monocromática no princípio, com a produção de figuras em silhueta e, em 
seguida, teria envolvido a realização de efeitos de luz e sombra, embora ainda 
monocromaticamente. A cor é conquistada posteriormente na pintura. 
 
A moderna dissolução do desenho encontra-se, com facilidade, na pintura 
abstrata, mas já era anunciada pela pintura pré-impressionista de William 
Turner (1775-1851)10 e pelo impressionismo de Monet (1840-1926) e Renoir 
(1841-1919) entre outros. A pintura impressionista é realizada sem desenho, 
com a cor aplicada diretamente na tela. É no jogo cromático das luzes que se 
encontra o núcleo pictórico desse movimento e não no traço ou no grafismo do 
desenho. Como exemplo, podemos sugerir Jardim em Giverny (1900) e 
Nenúfares (1914). Seria interessante, além disso, comparar as pontes 
japonesas pintadas por Monet por volta de 1900 (pinturas nas quais, apesar de 
ausente, o desenho ainda se entrevê em meio às manchas de cor) com outras 
mais tardias, pintadas por volta da década de 1920 (algumas das quais 
dificilmentepermitem identificar a ponte na composição). 
 
É evidente que não é apenas no impressionismo que se observa a dissolução 
do desenho na pintura, as telas de um Kandinsky (1866-1944) ou de um Mark 
Rothko (1903-1970) e de todo o expressionismo abstrato bem o mostram. 
Insistimos aqui no impressionismo por se tratar do momento da ruptura com 
 
10 Veja-se, por exemplo, de Turner, Sunrise with sea monsters (Nascer do sol com monstros 
marinhos), 1845, Yacht approaching the coast (Iate aproximando-se da costa), 1845-50, ou 
Sun setting over a lake (Por-do-sol sobre um lago), 1840. Essas não são pinturas abstratas, 
mas nota-se claramente como o abstracionismo aqui já se insinua. 
 
 8
tendências anteriores, ruptura que se aprofundará em movimentos estéticos 
posteriores. 
 
 
Perspectiva e composição 
 
Podendo ser encarada como extensão do desenho à composição do quadro, a 
perspectiva – muitas vezes presente na pintura acadêmica – também se 
ausenta no impressionismo. A linha do horizonte desaparece e, com ela, a 
referência do ponto de fuga para o qual convergiriam as ortogonais. Os 
enquadramentos das cenas e as poses das figuras pintadas tornam-se menos 
estudados e planejados previamente, consistindo em verdadeiros flagrantes, 
como se uma fotografia tivesse sido tirada sem aviso11. Trata-se de uma época 
em que, com o advento da fotografia, os pintores se veem forçados a rever 
uma série de questões envolvendo a função e o sentido da pintura, que já não 
se obrigava a representar fielmente a natureza, função assumida pela 
fotografia. Assim, desenho, perspectiva e composição, liberadas de sua antiga 
função mimética12, abrem-se à maior liberdade pictórica que se observa na 
pintura abstrata. O impressionismo não produz uma arte abstrata, mas prepara 
seu caminho. 
 
É possível estabelecer uma analogia entre a perspectiva na pintura e a 
harmonia musical. Se pensarmos na perspectiva de ponto único, 
sistematizada – e não criada – pelo arquiteto renascentista Bruneleschi, na 
 
11 Tudo isso pode ser facilmente observado na tela Canoa sobre o Epte (1885-87) de Monet, 
que faz parte do acervo do MASP-SP. 
 
12 O paradigma mimético (de mimesis, imitação) envolve a concepção estética e produção 
artística do mundo antigo até o século XVIII (e, não raro, se faz presente em muitas 
manifestações artísticas nos dias de hoje). Esse paradigma assume uma postura funcionalista 
e essencialista acerca da arte, segundo a qual a função da arte é imitar a vida ou a natureza. 
Além deste paradigma estético, pode-se considerar ainda os paradigmas expressionista e 
formalista. O paradigma expressionista, característico do período que cerca o romantismo, 
atribui à arte a função de expressar a subjetividade interior do artista, suas emoções, paixões, 
idéias e motivações. Esse paradigma não deixa de ter, de certa forma, um caráter mimético, 
mas o que aqui se imita é o mundo interior e não o exterior. Não se deve confundir o 
paradigma expressionista com o movimento modernista expressionista alemão do início do 
século XX. Já o paradigma formalista leva em consideração apenas os elementos formais da 
obra de arte, desprezando todos os conteúdos nela presentes por entender que a privam de 
sua autonomia por serem alheios ao que há de essencial à obra. 
 
 9
qual as ortogonais convergem para um único ponto de fuga situado na linha do 
horizonte, podemos, por analogia, pensar na música tonal (inventada no século 
XVII), na qual todo o campo harmônico orbita em torno de uma única nota, a 
tônica (que dá o tom da peça). O advento da música atonal, que já se insinua 
no final do século XIX13, seria o equivalente, na música, guardadas as devidas 
proporções, ao abandono da perspectiva de ponto único na pintura. Para além 
disso, é possível pensar essa nova música como correspondente às 
experiências abstracionistas das artes plásticas. Dissolvem-se, assim, 
perspectiva e composição (no sentido da arquitetônica da obra) na pintura e na 
música. 
 
 
Cor 
 
A cor é outro elemento da pintura que não ficará ileso às transformações da 
arte vindoura. A paleta de cores da pintura acadêmica passará por profundas 
revisões que dizem respeito, muita vez, à nova função assumida pelas cores 
diante da mudança de paradigma estético. Assim, a cor no paradigma 
mimético não precisa ir muito além daquilo que é necessário para representar 
(reapresentar) a natureza ou para apresentar os valores simbólicos típicos das 
tópicas14 culturais15. Uma vez no paradigma expressionista, a cor adquire outra 
dimensão expressiva. Não é mais o mundo dos afetos estereotipados que 
cumpre representar, de modo relativamente superficial, mas o da profundidade 
subjetiva das emoções que cumpre externar. Daí o colorido não convencional, 
forte e expressivo das pinturas de Van Gogh (1853-1890) e de Gauguin (1848-
1903), por exemplo. Já no paradigma formalista, todo conteúdo, seja externo 
ou interno, é afastado e apenas a forma interessa, ou seja, somente os 
 
13 O atonalismo musical será efetivamente desenvolvido no século XX, mas o Prelúdio que 
Richard Wagner escreve para o drama musical Tristão e Isolda (1865) já utiliza recursos 
harmônicos que produzem a sensação de suspensão da tonalidade, abrindo caminho para o 
atonalismo. 
 
14 Tópica, ou topos, significa lugar comum. 
 
15 É importante entender que a imitação operada no paradigma mimético não corresponde a 
simples cópia burra da natureza, mas envolve ressignificações simbólicas e construções 
culturais muitas vezes veiculadas por tópicas retóricas. 
 10
aspectos formais da obra são levados em consideração. Assim, na pintura, a 
paleta vê-se reduzida às cores primárias e, em alguns casos, ao preto e 
branco. Veja-se, por exemplo, as obras maduras do abstracionismo geométrico 
de Piet Mondrian (1872-1944) ou do suprematismo16 de Kasimir Malevitch 
(1878-1935). 
 
 
Tema 
 
Com o paradigma formalista, vimos que todo tipo de conteúdo é deixado de 
lado em favor dos elementos formais. Assim, nota-se que o tema das pinturas 
vai perdendo sua força a partir do impressionismo. Os pintores dessa corrente 
foram muito criticados em sua época por pintarem quadros com temas triviais e 
sem maior importância. Piqueniques no parque aos domingos ou passeios pelo 
campo eram temas muito presentes nas pinturas impressionistas, e não mais 
temas religiosos ou vultos históricos. 
 
Dissolve-se o tema também à medida que se tornam menos distintos, na 
pintura, figura e fundo. Um primeiro aspecto dessa indistinção, mais óbvio, diz 
respeito à passagem da pintura figurativa à abstrata. Um excelente exemplo de 
tal indistinção vemos na pintura Harmonia em vermelho (1908) de Matisse. Se 
atentarmos à forma retangular com árvores que se vê no canto superior 
esquerdo do quadro, ficamos sem saber se se trata de uma janela, através da 
qual a paisagem pode ser vista, ou se se trata de um quadro sobre a parede, 
com árvores pintadas. Se adotarmos a primeira possibilidade – a da janela – a 
parede vermelha será figura e as árvores fundo. Se adotarmos a outra opção – 
a do quadro – a mesma parede será fundo e o quadro com as árvores figura. 
Além disso, é extremamente ambígua a relação entre figura e fundo em vários 
outros elementos dessa obra, como os ornamentos e vasos azuis em relação 
 
16 O suprematismo de Kasimir Malevitch é uma das mais expressivas afirmações do formalismo 
nas artes plásticas. Malevitch propõe que a pintura deve lidar apenas com os elementos que a 
ela pertencem formalmente, não tendo nada a dever a influências que lhe sejam estranhas. 
Assim, a pintura nada deve à política, à religião ou à natureza, devendo trabalhar unicamente 
com a cor, o desenho, a bidimensionalidade, os materiais etc. 
 11
ao fundo vermelho.Por vezes chega-se a ter a impressão de que os vasos 
estão flutuando no ar. 
 
Um segundo aspecto da indistinção entre figura e fundo é a perda de 
profundidade – a perda da perspectiva sobre a qual já falamos – e 
consequente produção de uma pintura bidimensional. Essa bidimensionalidade 
está fortemente presente na referida pintura de Matisse e nas pinturas 
abstratas. Ela é mesmo tida como desejável, contemporaneamente, por ser 
considerada sinal de autonomia de uma pintura que se assume como pintura 
e, portanto, como bidimensional. 
 
O formalismo elimina, também na música, a possibilidade desta servir como 
veículo para expressar conteúdos, sejam eles de caráter emocional ou 
programático (contar uma história, por exemplo). Eduard Hanslick (1992) 
requisita para a música o que Malevitch faz para a pintura, ou seja, ater-se 
apenas aos aspectos puramente formais, sem tomar de empréstimo elementos 
que lhe sejam alienígenas. Destarte, somente a duração, altura, intensidade e 
timbre do som merecem atenção na música. Não seria, assim, desejável falar-
se, por exemplo, em melodia “brilhante” ou “doce” porque esses adjetivos não 
se referem aos elementos formais que pertencem exclusivamente à musica. O 
tema musical passa a incluir, desse modo, apenas elementos formais. 
 
 
 
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 12
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