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DEMOCRACIA EM FOCO Um balanço dos desafios da trajetória política brasileira Jaqueline Porto Zulini organ izadora Um livro sobre a trajetória e os de-safios da democracia no Brasil não poderia ser mais oportuno, e a estraté- gia de organizá-lo a partir de múltiplos pontos de vista é mais que apropriada. No momento em que discutimos os desdobramentos de uma competição eleitoral dramática, a iniciativa desta publicação sinaliza para a sociedade, os políticos e a academia a urgência de uma reflexão séria, informada e acessí- vel sobre a política. Nascida de um debate que reuniu a política prática com o seu estudo aca- dêmico, a presente coletânea promete iluminar outros debates no Brasil: os que estamos fazendo e os que precisam ser feitos. Governo, representação, so- ciedade: como funcionam, como se for- maram, que efeitos produzem? Como os queremos e como os estamos mol- dando? Os especialistas que aqui com- partilham os achados de suas pesquisas hão de ajudar muitos estudantes a res- ponderem essas questões. As contribuições aqui oferecidas descortinam para todos os públicos um universo de conhecimentos crucial para entender o presente e para projetar o fu- turo. Instituições, atores e seus compor- tamentos aqui analisados são objetos para estudiosos e matéria para os polí- ticos. Este livro colabora para que se tor- nem também assunto para a cidadania. Gabriela da Silva Tarouco Departamento de Ciência Política Universidade Federal de Pernambuco JAQUELINE ZULINI graduou-se em ciências sociais pela USP, onde tam- bém obteve o mestrado e o dou- torado em ciência política. Atuou como pesquisadora do Cebrap de 2006 a 2018. É professora de ciência política da FGV desde 2019, e coau- tora de Estudos legislativos (2020) e Eleições na primeira fase da Justiça Eleitoral (no prelo). Democracia em foco é uma rica coletânea que reúne cientistas políticos, economistas, historiadores e sociólogos no propósito de problematizar a trajetória do regime representativo no Brasil e discutir os atuais desafios da democracia no país. A linguagem acessível do texto não poderia ser mais pertinente para o grande público, sedento pelas avaliações e prospecções dos especialistas neste momento crítico da vida política brasileira. D EM O CRA CIA EM FO CO Jaqueline Porto Zulini o r g a n iza d o r a www.fgv.br/editora ISBN 978-65-5652-189-3 Fundação Getulio Vargas Presidente: Carlos Ivan Simonsen Leal Editora-executiva: Marieta de Moraes Ferreira Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro Presidente: André Ceciliano Diretor-Geral: Wagner Victer Subdiretor-Geral de Cultura: Nelson Freitas Superintendente da Curadoria do Palácio Tiradentes: Maria Lucia Cautiero Horta Jardim Coordenação do Projeto “Casa da Democracia”: Franklin Dias Coelho Assistente Administrativo: Gabriela Coutinho de Figueiredo Mesa Diretora Presidente: Dep. André Ceciliano 1o Vice-Presidente: Dep. Jair Bittencourt 2o Vice-Presidente: Dep. Chico Machado (Francisco Alves Machado Neto) 3o Vice-Presidente: Dep. Franciane Motta 4o Vice-Presidente: Dep. Samuel Malafaia 1o Secretário: Dep. Marcos Muller 2o Secretário: Dep. Tia Ju (Jucélia Oliveira Freitas) 3o Secretário: Dep. Renato Zaca 4o Secretário: Dep. Filipe Soares 1o Vogal: Dep. Brazão (Manoel Inacio Brazão) 2o Vogal: Dep. Dr. Deodalto (Deodalto José Ferreira) 3o Vogal: Dep. Valdecy da Saúde (Valdecir Dias da Silva) 4o Vogal: Dep. Giovani Ratinho (Giovani Leite de Abreu) DEMOCRACIA EM FOCO Um balanço dos desafios da trajetória política brasileira Jaqueline Porto Zulini organ izadora © Copyright Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro Direitos desta edição reservados à EDITORA FGV Rua Jornalista Orlando Dantas, 9 22231-010 | Rio de Janeiro, RJ | Brasil Tel.: 21-3799-4427 editora@fgv.br | www.editora.fgv.br Impresso no Brasil | Printed in Brazil Todos os direitos reservados. A reprodução não autorizada desta publicação, no todo ou em parte, constitui violação do copyright (Lei no 9.610/98). Os conceitos emitidos neste livro são de inteira responsabilidade dos autores. 1a edição: 2022 coordenação editorial e copidesque Ronald Polito revisão Marco Antonio Corrêa e Sandro Gomes dos Santos capa, projeto gráfico de miolo e diagramação Ligia Barreto | Ilustrarte Design foto da capa Rafael Wallace Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) Ficha catalográfica elaborada pelo Sistema de Bibliotecas/FGV Democracia em foco : um balanço dos desafios da trajetória política bra- sileira / Jaqueline Porto Zulini (Org.). - Rio de Janeiro : FGV Editora, 2022. 196 p. Inclui bibliografia. ISBN: 978-65-5652-192-3 1. Democracia – Brasil. 2. Brasil – Política e governo. I. Zulini, Jaqueline Porto. II. Fundação Getulio Vargas. CDD – 320.981 Elaborada por Mariane Pantana Alabarce – CRB-7/6992 Sumário Prefácio 7 André Ceciliano Apresentação 9 Maria Lúcia Jardim Palácio Tiradentes, casa do povo e lugar de memória 13 Adelina Novaes e Cruz e Thais Blank Introdução 15 Jaqueline Porto Zulini Mesa 1: Governo representativo no Brasil: do Império à Era Vargas 17 Capítulo 1 — O governo representativo no Brasil Imperial 19 Miriam Dolhnikoff Capítulo 2 — Primeira República (1889-1930): uma certa gramática política 27 Marly Motta Capítulo 3 — Partidos e competição política durante a Era Vargas (1933/34) 33 Paolo Ricci Debate 43 Mesa 2: Partidos e sistemas partidários no Brasil 51 Capítulo 4 — Partidos e eleições no Brasil do pós-1988 53 Jairo Nicolau D E MO C RAC I A E M F O CO 6 Capítulo 5 — Baixa representação de mulheres no legislativo brasileiro e a relação com sistemas partidários e eleitoral 61 Clara Araújo Capítulo 6 — A fusão do Rio de Janeiro: efeitos sobre os arranjos político-partidários fluminenses 75 Marieta de Moraes Ferreira Debate 83 Mesa 3: Instituições políticas e relações Executivo-Legislativo no Brasil 95 Capítulo 7 — A crise econômica brasileira 97 Ladislau Dowbor Capítulo 8 — Os Poderes no presidencialismo de coalizão 105 Fernando Limongi Capítulo 9 — Judicialização da política no Brasil pós-1988 113 Margarida Lacombe Camargo Debate 125 Mesa 4: Capacidade estatal e políticas públicas 135 Capítulo 10 — Crise democrática e desmantelamento do Estado 137 Daniela Campello Capítulo 11 — Autonomia burocrática no Brasil 149 Sérgio Praça Capítulo 12 — O desafio da desigualdade e as políticas públicas no Brasil 155 Celia Kerstenetzky Debate 169 Considerações finais 177 Referências 179 Sobre os autores 191 Prefácio A Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro tem pautado sua atuação, historicamente, pela defesa da democracia e dos valores inerentes ao estado democrático de direito. No momento em que a sociedade brasileira vê o crescimento de ideais extremistas e o desprezo pelo diálogo e respeito às diferenças, a realização do ciclo de debates “Democracia em Foco” no Palácio Tira- dentes, sede histórica do Poder Legislativo fluminense, representa um marco e uma tomada de posição em prol dos valores democráticos. Este livro retrata os debates que foram realizados com o apoio e organização da Fundação Getulio Vargas (FGV), que é uma das insti- tuições de ensino mais prestigiadas do país, sediada no Rio de Janeiro, o que muito orgulha a todo o povo fluminense. Boa parte dos problemas enfrentados no Brasil está relacionada com uma carência de debate acerca dos grandes temas nacionais, sen- do fundamental, neste sentido, a discussão em torno da separação de poderes e da harmonia entre o Executivo e o Legislativo. O sistema partidário e as regras que conformam a organização política e o pro- cesso eleitoral merecem igual destaque, pois representam a essência do processo democrático. Com a abordagem destes temas e a publicação desta obra, esta- rá a Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro oferecendo importante contribuição para o debate público e para a consolidação D E MO C RAC I A E M F O CO 8 da democraciano Brasil, afastando qualquer tentativa de reescrever a história e ver reavivado o autoritarismo que tanto mal causou ao nosso país. André Ceciliano Presidente da Alerj Apresentação Até que os leões tenham seus próprios historiadores, as histórias de caçadas continuarão glorificando o caçador. (Eduardo Galeano) Este livro traduz uma esperança. A esperança de que tendo a democra- cia como foco continuaremos na construção de um país democrático e justo socialmente. Essa esperança está presente na ideia de trans- formar o Palácio Tiradentes na Casa da Democracia, projeto que é o pano de fundo que nos estimulou a fazer esta parceria com a Funda- ção Getulio Vargas (FGV) e a produzir o seminário que deu origem ao livro Democracia em foco. Cabe registrar que este projeto tem as digitais do presidente da As- sembleia Legislativa, André Ceciliano, que ao apresentá-lo referiu-se à necessidade de estabelecer o “compromisso de promover o acesso da po- pulação às principais fontes de conhecimento guardadas na memória na- cional e que fazem parte dos ideais de construção da nossa democracia”. É com base neste compromisso que o professor Franklin Coelho, professor da Universidade Federal Fluminense (UFF), desenvolveu o conceito e o desenho do projeto Casa da Democracia, entendendo que se constitui na ressignificação da evolução da construção democrática e da história republicana, com espaços interativos de apreciação e va- lorização do patrimônio material e imaterial do Palácio, procurando usar a tecnologia para ajudar no relacionamento com o público, nas formas lúdicas de conhecimento, nas possibilidades de permitir que o público vivencie momentos históricos e deixe fluir a emoção do olhar sobre fatos e personagens da resistência democrática. D E MO C RAC I A E M F O CO 10 Nesse contexto, cabe resgatar o papel relevante do Palácio Tiraden- tes na construção de um Brasil politicamente independente e sustentá- vel. Neste ano de 2022 o Brasil comemora 200 anos da Independência e de história de construção republicana e democrática. E o Palácio Tira- dentes, como símbolo e referência dessa construção histórica, completa 100 anos de lançamento da sua pedra fundamental. Repensar a história republicana e democrática do país, a partir do lugar da fala do Palácio Tiradentes, é o desafio que estabelecemos nesta parceria com o CPDOC. É ali onde a democracia brasileira dá seus primeiros passos e enfrenta também as primeiras resistências. O primeiro edifício construído na rua da Cadeia data de 1640 e serviu para abrigar os primeiros três vereadores eleitos. O voto era indireto e durava apenas um ano. Cabia a eles cuidar da cidade e das finanças públicas. Todo o dinheiro arrecadado ficava guardado em um cofre chamado “burra”, que só podia ser aberto por três chaves: cada uma ficava com um vereador. Era um tempo da Cadeia Velha, com o legis- lativo e o cofre público no andar de cima, e no andar de baixo a cadeia da cidade. Pela Cadeia Velha passaram fatos memoráveis que se constituem como uma herança que mais tarde o Palácio Tiradentes vai herdar. Com a vinda da Coroa Portuguesa, o prédio retoma sua função le- gislativa ao abrigar a Assembleia Constituinte de 1823. Dissolvida a Constituinte, o prédio abrigou a partir de 1826 a Câmara dos Deputa- dos. Este local foi palco de momentos históricos, como a aprovação da Lei Áurea, que aboliu a escravidão em 1888, e os debates entre liberais e conservadores que antecipavam a proclamação da República. O Projeto Casa da Democracia procura nesse resgate da história republicana e democrática um caminho de consolidação de nossa identidade política e cultural. Trata-se não de um historicismo re- construindo o passado a partir de uma sucessão de acontecimentos, mas de identificar seus momentos mais significativos e de abrir um campo de narrativas que nos estimulem a mergulhar nesse passado em busca de nossa identidade e de nossa história. Neste momento de crescimento de um negacionismo histórico que tem como alvo a memória brasileira, começamos a ter a dimensão de o quanto precisamos conhecer os fatos que revelam nossa origem e que possam ser levados para novas gerações. Sem um determinismo ou uma história de celebrações, procuramos revisitar esses momentos a p r e s e n tação 11 no sentido de ampliar nosso conhecimento e repensar quanto o que aprendemos na escola é a história dos vencedores. Os artigos aqui apresentados marcam este momento de refletir a nossa história, um caminho de reconhecimento de continuidades e mudanças que nos permitam pensar com muita clareza, com mui- ta lucidez, as possibilidades de pensar o contrário da historiografia oficial, a história escovada a contrapelo ou o papel significativo na construção das memórias que nos levam ao relevante processo de cons- trução das identidades. Este olhar do Projeto Casa da Democracia tem o compromisso de construção de um centro cultural como espaço de aprendizagem, ca- paz de gerar espaços de reflexão do passado e inspiração para a trans- formação do futuro. Maria Lúcia Cautiero Horta Jardim Palácio Tiradentes, casa do povo e lugar de memória […] que a luz que banha o plenário, esta salutar e republicana luz, possa sempre ser admirada e compreendida por todos os cidadãos, agora, enfim, admitidos com toda a pompa e circunstância neste espaço que deveria ter sido sempre seu. [Sarmento, 2002 apud Correa e Medeiros, 2005] O Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil (CPDOC) firmou, nos anos 1990, uma parceria com a As- sembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro (Alerj) que daria origem à criação do Núcleo de Memória Política Carioca e Fluminen- se, criado em maio de 1997 a partir de um convênio assinado com a Alerj. O Núcleo teve como objetivo construir um projeto de produção intelectual e referência documental sobre a história contemporânea da cidade e do estado do Rio de Janeiro. Nesse âmbito, foram realiza- das entrevistas de história oral com parlamentares que resultaram em uma série de artigos, livros e, desde 1998, a exposição Palácio Tira- dentes: lugar de memória do parlamento brasileiro, de caráter perma- nente. Essa exposição, montada no interior do Palácio, composta por pranchas ilustradas com fotografias, caricaturas, desenhos e pinturas de época, além de textos informativos, destina-se a apresentar even- tos marcantes da recém-conquistada democracia brasileira, além de destacar acontecimentos relevantes da história do Palácio. A curado- ria trabalhou com três módulos temáticos subdivididos em eixos de abordagem: D E MO C RAC I A E M F O CO 14 Módulo Palácio Tiradentes: nova sede; inauguração; reinaugura- ção e tombamento. Módulo Câmara dos Deputados: anos 1920; Assembleia Nacional Constituinte de 1933; fechamento da Câmara dos Deputados; e Esta- do Novo. Módulo Assembleia Legislativa: Assembleia Constituinte do es- tado da Guanabara; Assembleia Legislativa do estado da Guanabara; Assembleia Constituinte do novo estado do Rio de Janeiro; Assem- bleia Constituinte estadual de 1989. A exposição permaneceu instalada até o presente ano, recebendo, diariamente, um significativo número de visitantes. O CPDOC, 24 anos depois e após a mudança da Alerj para um novo prédio, é convidado a elaborar uma proposta repensando a ex- posição dos anos 1990 à luz das questões do tempo presente. Estamos honrados em participar desse ambicioso projeto que propõe a trans- formação do Palácio Tiradentes em um espaço de memória integral- mente voltado para registrar e revelar os desafios contemporâneos ao longo da história republicana brasileira, com ênfase na luta e na defesa da democracia. No novo projeto, revisitamos e expandimos a exposição de 1998 com olhar historiográfico contemporâneo sobre fontes primárias e secundárias, pesquisadas e selecionadas, que serão potencializadas pelo uso de recursos tecnológicos viáveis no século XXI. Com isso, assumimos que, mais do que “complementar” aexposição de 1998, foi preciso incorporar novos debates, novos atores e, sobretudo, uma nova estética. As 133 imagens selecionadas para a primeira exposi- ção atenderam à demanda de criação de uma exibição permanente e estática. A proposta de 2022, por sua vez, tem como pilar a flexibi- lidade e adaptabilidade da exposição à tecnologia imersiva. Mais do que ampliar a exposição original, nosso objetivo é ressignificá-la, in- corporando diversidade de fontes, sujeitos e narrativas à história da República brasileira, da Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro e do grande protagonista que é o Palácio Tiradentes. Adelina Novaes e Cruz e Thais Blank Introdução Este livro materializa o seminário Democracia em foco, realizado na sede da Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro (Alerj) entre os dias 2 e 3 de agosto de 2022, sob a coordenação do Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil da Fundação Getulio Vargas (FGV CPDOC), para discutir a trajetória da política brasileira. A programação do seminário se fundou em torno de quatro mesas- -redondas que problematizaram pontos nevrálgicos da produção cien- tífica disponível e, com base em evidências, prospectaram os rumos po- líticos do país, dignos de amplo debate público. Abrindo os trabalhos, a mesa “Governo representativo no Brasil: do Império à Era Vargas” foi um convite para relembrarmos o significado de instituições políticas e das eleições antes mesmo do advento da democracia no país. Uma re- flexão sobre as origens elitistas do governo representativo tão necessária para a revalorização do regime atual. Na sequência, a mesa “Partidos e sistemas partidários no Brasil” refletiu sobre os limites e a lógica pró- pria das nossas instituições representativas que coordenam o mercado eleitoral e orquestram a cena política, em tempos de descrença dissemi- nada na democracia de partidos. No segundo dia do seminário, a mesa “Instituições políticas e re- lações Executivo-Legislativo no Brasil” abordou o impacto da crise econômica e das relações entre os poderes para a governabilidade D E MO C RAC I A E M F O CO 16 do país. Os especialistas compartilharam a preocupação em obser- var o presidencialismo de omissão praticado pelo governo Bolsonaro (2018-22) paralelamente ao gradativo fortalecimento do Poder Judi- ciário. As palestras que integraram a mesa de encerramento do even- to, intitulada “Capacidade estatal e políticas públicas”, retrataram o aprofundamento da desigualdade no país durante os últimos anos e o desmantelamento de uma rede crucial de proteção para as mino- rias e populações em vulnerabilidade social. Em comum, houve uma inclinação dos analistas em identificar fórmulas políticas conhecidas para contornar os problemas socioeconômicos e de governabilidade do país. A série de análises baseadas em evidências esclarece como, na prática, a história política muitas vezes se repete. Os capítulos que compõem o livro correspondem a versões revisa- das das palestras apresentadas durante o seminário, e o leitor poderá acompanhar o debate ocorrido em cada uma das quatro mesas-re- dondas, com base na transcrição das perguntas realizadas pelo públi- co e nas respectivas respostas dos palestrantes. A linguagem acessível e o tratamento objetivo e didático de todos os temas abordados pelas palestras convergem para o grande compromisso dessa iniciativa com a preservação da memória política do país. Diante do apelo crescente da desinformação na atual conjuntura, espera-se que sejam realiza- dos mais eventos de difusão científica sobre a trajetória do Brasil, de modo a disseminar entre a população a importância de se resgatar nosso passado político para a compreensão do presente e o enfrenta- mento dos desafios futuros. Que continuemos a escrever e debater a trajetória política brasilei- ra para além dos muros da universidade! Jaqueline Porto Zulini M E SA 1 Governo representativo no Brasil: do Império à Era Vargas Quais eram as características do governo representativo no Brasil antes da democracia? Essa foi a pergunta que guiou a organização da pri- meira mesa-redonda do seminário Democracia em foco. A intenção foi retomar o conhecimento disponível sobre o passado imperial, a expe- riência oligárquica e os primeiros anos da Era Vargas para debater as visões pessimistas que ainda persistem e minimizam a complexidade da trajetória do governo representativo no país. Com a consolidação do sufrágio universal e a abolição dos crité- rios censitários que restringiam o direito de voto às pessoas de posses, especialistas mundo afora perderam de vista a dimensão aristocrática e desigual das eleições (Manin, 1995). Como resultado, cristalizou-se paulatinamente o entendimento normativo de que as eleições deve- riam ser democráticas por definição, garantindo ampla participação popular em disputas livres, justas e competitivas entre os partidos po- líticos por votos. No caso do Brasil, a consequência desse referencial teórico enviesado por expectativas democráticas foi a multiplicação de interpretações que julgam as primeiras experiências de governo re- presentativo no país como falhas e incompletas, sobretudo por conta do eleitorado restrito e da fraude eleitoral generalizada. A exposição de Miriam Dolhnikoff sobre o Brasil monárquico tra- tou justamente de relembrar o caráter liberal do regime representativo durante o Império quando as eleições tinham o propósito de insti- D E MO C RAC I A E M F O CO 18 tucionalizar a resolução dos conflitos entre as elites que disputavam o poder. Suas reflexões nos convidam a deslocar o foco do eleitor e das denúncias de fraude para o estudo das práticas eleitorais. Nes- sa guinada, vê-se que as eleições serviam, antes de tudo, como um meio de legitimação política. Paolo Ricci endossa a mesma proposta e questiona a interpretação convencional segundo a qual o Código Elei- toral de 1932 encaminhou o país para a democratização. Em sua lei- tura, as fraudes eram, naquela época, um instrumento de competição política, e a narrativa criada pelos revolucionários de 1930 procurou apagar o caráter autoritário do governo representativo na Era Vargas. A gramática política pejorativa construída pelos ideólogos autoritá- rios do Estado Novo para diminuir a experiência da Primeira Repú- blica brasileira foi revisitada na palestra proferida por Marly Motta, que compartilhou a importância de se rever as visões depreciativas sobre o período oligárquico ainda presentes no nosso imaginário político. No conjunto, as comunicações dos três especialistas con- vergiram para a urgência de fazermos as pazes com a trajetória do governo representativo no Brasil, retomando o seu estudo como o padrão — e não a exceção — de um tempo que não pode ser julgado pelo que não foi. CA P Í TU LO 1 O governo representativo no Brasil Imperial Miriam Dolhnikoff É um prazer estar aqui, especialmente em um seminário com este tema, atualmente. Todos nós vamos repetir isso aqui, com certeza, mas vale repetir sempre. É absolutamente fundamental estarmos dis- cutindo a democracia sob todos os pontos de vista. Gostaria de agra- decer especialmente à Jaqueline pelo convite. Um convite que, para mim, é muito importante porque sou uma historiadora que pesquiso o período da monarquia constitucional no século XIX. Quando se fala em história da democracia no Brasil, todo mundo pensa em República. Proponho uma abordagem diferente para enten- dermos o motivo: durante muito tempo, a historiografia entendeu que o regime liberal instaurado no Brasil pós-Independência, na forma de uma monarquia constitucional, era, na verdade, só aparência, quase uma farsa. Porque seria impossível um regime liberal em um país es- cravista. Proponho que pensemos o contrário, ou seja, o regime libe- ral e o liberalismo no século XIX eram compatíveis com a escravidão. O regime liberal foi importante para manter a ordem escravista, mas isso não quer dizer que ele era apenas aparência.Se tomarmos os exemplos dos governos representativos no mundo ocidental no sécu- lo XIX, a monarquia brasileira tinha basicamente as mesmas caracte- rísticas e os mesmos princípios: a separação entre poderes, uma nova forma de relação entre Estado e indivíduo — que se tornava cidadão D E MO C RAC I A E M F O CO 20 — e a eleição de representantes. A questão é discutir de que modo isso funcionava. É claro que os princípios gerais estavam presentes em to- dos os países do mundo que adotaram esse regime no mundo ociden- tal, mas suas especificidades resultaram de cada contexto histórico.1 No caso do Brasil, a especificidade era a de um país escravista. O que não impediu que o regime liberal funcionasse. Pensar assim ou adotar essa abordagem é importante porque inclui o regime liberal na história da democracia contemporânea brasileira. Podemos entender melhor como um regime que tinha como ob- jetivo manter a ordem escravista conseguiu se transformar, ao longo de dois séculos, em uma democracia de verdade, em que a escravidão é impensável; em uma democracia com uma ampliação infinita da cidadania se comparada com a do século XIX. Então, pensar o regime liberal no século XIX é pensar a longa história para que chegássemos até aqui. É pensar todas as conquistas que fomos capazes de fazer nes- ses últimos 200 anos. Para tratar desse tema, focarei em duas questões.2 Primeiro, o go- verno representativo no Brasil, instaurado a partir da Independência, tinha o mesmo objetivo que os governos representativos que surgiram nesse período no mundo ocidental: institucionalizar os conflitos entre os diversos setores da elite. É obviamente um regime de elite, dirigido por uma elite, mas são setores diferentes entre si, com diferentes de- mandas. A união em torno da defesa da ordem escravista não foi su- ficiente para que houvesse coesão no sentido de formarem um grupo com interesses únicos ou homogêneo. Institucionalizar os conflitos, ou seja, trazer para dentro das instituições os embates entre os setores da elite — a negociação entre eles — foi uma forma importante de se estabelecer um regime capaz de garantir um controle sobre a ordem escravista e a hierarquia, ou a manutenção da profunda hierarquia social. A institucionalização desses conflitos teve como instância funda- mental o parlamento. Quando se fala em monarquia no Brasil, em geral, desconsidera-se o papel do parlamento no processo decisório, porque existia o Poder Moderador e um imperador que podia dis- 1 Nota da Organizadora (N.O.): Para uma síntese sobre o perfil dos regimes represen- tativos liberais adotados na América Latina durante o século XIX, ver Sabato (2021). 2 N.O.: Os argumentos desta palestra são desenvolvidos, de forma bastante didática, em: Dolhnikoff (2017). o g ov e r n o r e p r e s e n tati vo n o b ras i l i M p e r i a l 21 solver a Câmara. Esse é o primeiro ponto que tenho estudado nas minhas pesquisas: a importância do parlamento autônomo. Um par- lamento que, obviamente, tinha de negociar com o imperador e com o ministério, mas onde os representantes eleitos, de setores de elite divergentes, negociavam. Portanto, desde o início, o parlamento foi fundamental na história do governo representativo no Brasil, além da negociação que se dava entre esses diversos grupos de elite dentro do próprio parlamento, mas também no ministério. Para aprovar proje- tos de lei, o ministério precisava conquistar a maioria parlamentar. Ou seja, a questão da governabilidade já estava então colocada. A questão de como o ministério, o Executivo, seria capaz de formar uma maioria para aprovar seus projetos estava colocada já no século XIX, o que sig- nifica que temos de procurar entender as diferentes formas de cons- truir essa governabilidade. Por ser um regime de elite, que mantinha exclusividade no processo decisório, as negociações para construção de maioria passavam por esse grupo, mas variavam muito dependen- do dos temas que estavam sendo discutidos. Às vezes, prevaleciam os interesses das províncias; às vezes, os interesses econômicos; outras, determinadas crenças doutrinárias e também dos partidos. Os partidos tiveram importância na negociação com o ministério e na construção, ou não, da governabilidade. Uma governabilidade que, se não fosse conquistada, em geral terminava com a queda do gabine- te e, no caso da monarquia, também havia possibilidade de dissolução da Câmara pelo imperador. Mas essa dissolução tinha um grande uso político, exatamente pela importância do Parlamento.3 Importância para institucionalizar os conflitos e para garantir legitimidade para o regime. Um regime liberal tem que ser capaz de criar mecanismos de legitimação. Essa era uma tarefa para o regime monárquico e uma das formas era justamente a garantia ou a existência de um parlamento capaz de participar de forma autônoma do processo decisório. O segundo ponto em que quero me deter, ainda que de forma ge- nérica, é a questão das eleições — um ponto central no debate atual, e na história da democracia, já está presente na monarquia brasileira do século XIX. Quando falamos em eleições no século XIX, em geral, a 3 N.O.: Por trás da aparente dominância que o Poder Moderador exercido pelo impe- rador permitiria impor sobre os demais poderes e fragilizar os gabinetes ministeriais, existem evidências de que a negociação política, na prática, fosse mais comum. A este respeito, ver Ferraz (2017:63-91). D E MO C RAC I A E M F O CO 22 ideia que surge — e esse é um retrato construído por uma historiogra- fia mais tradicional — é a de eleições fraudadas, violentas, com uma porcentagem extremamente restrita da população livre e pobre e mar- cada pelo clientelismo. Ou seja, a participação em eleições era para homens livres, os escravizados obviamente estavam fora. O governo representativo no Brasil do século XIX é um governo para o mundo dos homens livres. Os escravos estavam excluídos pela sua condição de escravizado, o que significava, inclusive, não ser considerado um sujeito portador de direitos, condição necessária para o exercício da cidadania. Mas, para os homens livres, havia algum grau de participa- ção. Então, em geral, essas eleições são tratadas como se não valessem nada por estas razões: a fraude, a violência, o clientelismo. Ou seja, uma relação — consequência da escravidão — entre os homens livres pobres e os proprietários, de absoluto arbítrio dos proprietários sobre a vida dos homens livres pobres. Mais uma vez, proponho pensarmos de uma forma um pouco di- ferente. Proponho a abordagem de que, já no século XIX, na monar- quia brasileira, as eleições eram importantes como um fator de legiti- mação do regime. Era uma participação muito diminuta em relação ao mundo atual. Trata-se, então, de entender como, ao longo desses 200 anos, conquistamos a ampliação da cidadania. Partimos de uma participação restrita, mas não tanto quanto normalmente se imagina. José Murilo de Carvalho (2003:96-115), por exemplo, fez um cálculo de que cerca de 10% da população brasileira participava das eleições no século XIX. Essa porcentagem é maior do que a participação em qualquer país europeu e é similar à participação nos Estados Unidos. Richard Graham (1990), considerando só o universo daqueles que podiam participar — ou seja, homens, livres, com mais de 25 anos —, calcula que essa participação era em torno de 50%. Então, é uma participação ampla para os padrões da época. A questão é entender a forma como essa participação se dava. Não só eu, como vários historiadores, tenho estudado e questiona- do alguns elementos. Primeiro, o clientelismo. Havia uma relação de sujeição e arbítrio entre homens livres e proprietários, mas isso não significa dizer que esses homens livres não tivessem alguma capaci- dade de agência. Ou seja, que não tivessem capacidade de, de algu- ma forma, colocar suas demandas e negociar, especialmente o voto. O voto não era apenas (ainda que muitas vezes pudesse ser)uma im- o g ov e r n o r e p r e s e n tati vo n o b ras i l i M p e r i a l 23 posição do proprietário, mas, sim, uma arma de negociação na mão desses homens livres pobres. O segundo elemento é a questão da fraude, que tanto está em discussão hoje. É inegável que a fraude marcava o processo eleitoral brasileiro no século XIX. Mas não só no Brasil, a fraude foi uma ca- racterística dos governos representativos no mundo ocidental do sé- culo XIX. Quando inventaram a eleição, inventaram a fraude. Mas é importante destacar que houve a necessidade, por parte dessa mesma elite política, de criar mecanismos para o combate à fraude. A eleição era uma forma de legitimar o regime, que precisava dessa validação, inclusive, para manter a ordem escravista. Logo, ela precisava, de cer- ta maneira, funcionar, ser um espaço de disputa política reconhecido por parte dessa população pobre com efetiva participação. Portanto, a história dos governos representativos, no mundo ocidental, incluindo o Brasil, é a história do combate à fraude eleitoral. Um combate que teve a grande conquista, no século XX, de efetivamente tirar a fraude das eleições e da pauta. Entender essa conquista do século XX é en- tender o processo em que ela ocorreu. No século XIX, a elite política brasileira tinha a preocupação em, pelo menos, minimizar ou dimi- nuir a fraude nas eleições. Vários projetos foram discutidos, várias leis foram promulgadas visando minorar a fraude, para que as eleições pudessem ser vistas como legítimas. Outro ponto, que me parece ser o mais importante de todos, e que vários autores têm demonstrado, é: a eleição no século XIX foi um importante aprendizado para a população livre e pobre. Participar das eleições era compartilhar do discurso da elite sobre um regime cons- titucional, sobre os direitos do cidadão, sobre liberdade, sobre partici- pação. De modo que a participação nas eleições, mesmo que restrita e pautada por fraude e pela relação com o proprietário, foi utilizada por essa população para se apropriar dos maiores princípios dos regimes liberais. Construiu-se, ao longo do século XIX, o que o historiador Matthias Assunção chamou de “liberalismo popular”, que é o libe- ralismo apropriado pela população, que dá a ele um novo conteúdo, inclusive em revoltas armadas por determinadas demandas.4 Vários estudos mostram que as lideranças das revoltas de homens livres po- bres no Brasil do século XIX utilizavam como bandeira princípios dos 4 A expressão está bem descrita em: Assunção (2011:295-327). D E MO C RAC I A E M F O CO 24 regimes constitucionais. Por exemplo, a demanda contra o recruta- mento forçado, que era uma prática oficial da época e causou várias revoltas, porque, obviamente, os afetados eram os homens livres po- bres. Há revoltas em que essas lideranças diziam que o recrutamento forçado é inconstitucional, contrário aos princípios da Constituição. Ou revoltas por demandas em que o princípio da liberdade e a defesa da liberdade e da cidadania eram fundamentais no discurso das lide- ranças. Então, a expressão do Matthias Assunção é muito feliz. É um liberalismo popular que se constrói a partir do século XIX. A elite política também tinha a percepção de que as eleições eram importantes e promoveu diversas reformas eleitorais procurando normatizá-las. O debate no parlamento em torno dessas reformas eleitorais expressa as questões que eram fundamentais para essa elite. Tratava-se não só de combater a fraude, mas também de discutir qual o perfil dos representantes que seriam eleitos. Porque é um regime liberal em processo de construção, portanto, o perfil (o desenho insti- tucional) estava em jogo. Como exemplo, apresento duas concepções distintas, que atribuo uma ao Partido Liberal e outra ao Partido Con- servador, sobre o perfil dos representantes eleitos. Para o Partido Liberal, esses representantes deveriam ser uma es- pécie de espelho da sociedade. Na concepção do século XIX, o es- pelho da sociedade é formado por representantes de diversos setores da elite no parlamento, excluindo-se a participação das camadas mais pobres, obviamente. Refere-se à diversidade em termos de ofícios, de profissões da elite, à diversidade em relação às províncias. Enfim, uma espécie de espelho dessas diferenças. A outra concepção, do Partido Conservador, defende que os parlamentares deviam ser os homens mais ilustres do país, porque apenas homens ilustrados seriam capa- zes de decidir o que seria o melhor para o país. Esse embate esteve presente na discussão sobre as reformas eleito- rais, que já traziam pontos que são debatidos até hoje. Por exemplo, a questão de o parlamento ser uma espécie de espelho da sociedade significava garantir o que se chamava de representação da minoria. Minoria, no século XIX, tinha sentido completamente diferente. Eles estavam falando de minoria partidária. Ou seja, que o partido mino- ritário nas eleições também tivesse representante no parlamento, que o parlamento não fosse apenas o resultado daqueles que obtiveram a maioria dos votos e, portanto, a possibilidade da representação de um o g ov e r n o r e p r e s e n tati vo n o b ras i l i M p e r i a l 25 único partido. Uma das formas de garantir essa unicidade, defendida pelos liberais, era o voto distrital. O voto distrital é um tema absolu- tamente fundamental no debate da política brasileira. Porque o voto distrital era, até a década de 1860, no caso do Brasil, a única forma conhecida de garantir a representação dos dois partidos no parlamen- to. Depois, a partir da década de 1860, surgiu no debate político in- ternacional o voto proporcional, que rapidamente foi assimilado pela elite brasileira como uma alternativa. A discussão entre voto distrital e voto proporcional estava presente, justamente, porque eles eram ar- ticulados a diferentes concepções do regime representativo. Insisto em destacar que essa é uma forma de se pensar a história da democracia brasileira fundamental. Podemos pensar que estamos discutindo temas absolutamente novos ou modelos estrangeiros para adotar aqui. Mas essa é uma discussão que tem história no país. Dei o exemplo do voto distrital, do voto proporcional, se os representantes devem ser os mais ilustrados ou se devem expressar a diversidade da sociedade. Posso dar outro exemplo de uma discussão muito presen- te no Brasil, que é o que chamavam de “incompatibilidades”, e que tomamos como algo quase natural. Um juiz que quer ser candidato a deputado ou que quer ser ministro tem que se desincompatibilizar do cargo. Isso é fundamental em termos de garantia da separação en- tre poderes e para garantir a lisura das eleições, e é uma construção histórica. Durante todo o século XIX, discutiu-se se a medida deveria ser adotada ou não, e quais seriam as regras. Foi uma conquista da história brasileira, construída a partir desse regime liberal no século XIX. Uma ideia que nos parece hoje tão natural. Dou esses exemplos para tentar convencê-los de que a história da democracia brasileira começa no século XIX e para dizer que é uma história, portanto, de conquistas. A ampliação da cidadania não se deu apenas pela vontade de determinado grupo de elite, mas também pelas conquistas dos setores populares, que conseguiram sua entrada não apenas por revoltas e mobilizações, mas também por entender e utilizar as próprias instâncias do regime liberal. Então, é a entrada dos excluídos com base nessas estratégias, que incluem o uso do regi- me liberal. Termino dizendo que isso mostra a plasticidade do regime democrático. A longevidade do regime democrático, a meu ver, está, justamente, na sua capacidade de transformação. A evolução de um regime garantidor da ordem escravista para um regime, hoje, em que D E MO C RAC I A E M F O CO 26 a escravidão é absolutamente inaceitável. De um regime com baixa representatividade no século XIX para um regime de ampla repre- sentatividade e de ampla cidadania. Infelizmente, ainda hámuito a se caminhar nessa direção, mas há conquistas fundamentais. Uma plas- ticidade que nos obriga a permanentemente defender essa democra- cia. [Aplausos]. CA P Í TU LO 2 Primeira República (1889-1930): uma certa gramática política Marly Motta Agradeço muito o convite feito pela Jaqueline para falar neste se- minário que, por vários motivos, aborda um tema que me é muito caro. Primeiro, porque estamos na Alerj. Como estudiosa da política carioca e fluminense, a Alerj — e a antiga Assembleia Legislativa da Guanabara (Aleg) — tem um protagonismo muito grande nas minhas obras sobre o Rio de Janeiro. Também porque fiz parte do primeiro convênio entre a Alerj e o CPDOC da FGV. Nós fizemos uma série de entrevistas, perfis biográficos, gravações, exposição. Gostaria muito de lembrar a figura do professor Carlos Eduardo Sarmento, que foi a ponte inicial para esse convênio. Onde quer que ele esteja, as minhas saudações alvinegras.1 Ele torcia pelo Fluminense. Finalmente, não posso deixar de fazer propaganda do livro E agora, Rio? Um estado em busca de um autor (Motta, 2022), que lancei agora e que se bene- ficiou muito desse primeiro convênio. As entrevistas, as biografias, os trabalhos sobre a fusão e o novo estado do Rio de Janeiro estão aqui contemplados. Faço referência constante a isso. 1 N.O.: Carlos Eduardo Sarmento faleceu em 2013. Sua carreira foi marcada pelo es- tudo da história política da cidade do Rio de Janeiro, com destaque para as obras O Rio de Janeiro na era Pedro Ernesto (2001), A política carioca em quatro tempos (2004) e O espelho partido da metrópole (2009). D E MO C RAC I A E M F O CO 28 Quando a Jaqueline me pediu para falar sobre a Primeira Repú- blica, pensei: “‘Primeira República’, mesmo eu, que sou historiadora de formação e que trabalho com isso, constantemente escorrego para ‘República Velha’”. Quem deu à República de 1889 a 1930 o nome de República Velha? Claro que foi a elite vitoriosa de 1930, para se referir ao período anterior. Essa é uma luta política clássica: a etiqueta no período anterior de “velho”, “Antigo Regime”, “Idade Média”. Toda a gramática política que usamos para nos referir a determinados pe- ríodos históricos reflete lutas em termos de conceitos, de nomes, que acabam sendo usualmente empregados sem que façamos uma refle- xão daquele conteúdo específico. Portanto, optei pelo título “Primeira República: uma certa gramática política”, porque o sociólogo Edson Nunes escreveu um livro sobre a gramática política do Brasil.2 Achei muito interessante usar esse arcabouço teórico para trabalhar a Pri- meira República. Para não fugir ao que Edson Nunes defendeu, usarei a expressão dele. Gramática política designa as diferentes linguagens em uso na política. As gramáticas indicam os princípios por meio dos quais instituições e sistema social se estruturam. Quando ouvimos “República Velha”, parece que tudo faz sentido, porque imediatamente nos referimos ao coronelismo. É quase um si- nônimo de expressões: República Velha, coronelismo, voto de cabres- to, curral eleitoral, voto de bico de pena. Há uma gramática, um con- junto de palavras, de conceitos, que imediatamente nos vêm à cabeça quando pensamos nesse período histórico que acabou espremido en- tre o Império e a Era Vargas. A Primeira República é como se fosse um intermediário entre esses dois momentos, vamos dizer, grandiosos. Ao mesmo tempo, Edson Nunes faz essa relação entre a gramáti- ca de determinado período histórico como uma característica dele, e também faz uma comparação interessante com a qual concordo intei- ramente. Tal como camadas arqueológicas, esses conceitos são produ- zidos e se sobrepõem ao longo da história. Ou seja, embora tenham sido criados especificamente para um período — no caso, a Primeira República —, isso não significa que fiquem restritos a ele. Esses con- ceitos vão se produzindo e se sobrepondo. Semana passada, ouvi na Rádio CBN ou na GloboNews a referência: “coronel Tasso Jereissati”. Como um “coronel”, ele não aceitaria ser vice da Simone Tebet.3 Eu 2 Refiro-me à obra de Nunes (1997). 3 N.O.: A professora Marly Motta fazia referência à definição das chapas eleitorais cogitadas para a corrida presidencial de 2022. p r i M e i ra r e p ú b l i ca (1889 - 1930) 29 não daria a ele o título de “coronel”. Fiquei surpresa com como foi feita essa trajetória, do termo “coronel”, lá da Primeira República, para um senador que consideramos progressista, que quebrou certos valores no governo do Ceará. A interpretação é que ele, como coronel, jamais aceitaria ser vice de uma mulher. Essa notícia deu mais força para minha fala de hoje. O que é o coronelismo? Em que medida usamos, da maneira mais ampla possível, esse termo, essa expressão? Primeiro, o termo coro- nelismo é bem posterior ao fim da Primeira República. Ele foi criado por Victor Nunes Leal, em uma tese de concurso de professor de di- reito, da Faculdade Nacional de Direito, em que ele discutia o papel do município na federação brasileira. O livro que daria origem a esse conceito de coronelismo é Coronelismo, enxada e voto, publicado em 1949.4 Portanto, o termo “coronelismo” foi criado a partir de um olhar do fim da década de 1940 e ao longo da década de 1950. De certa maneira, Victor Nunes Leal quer buscar as raízes do atraso brasileiro. Aliás, essa geração dos anos 1940 e 1950 acabou desembocando em Juscelino, no desenvolvimentismo (“cinquenta anos em cinco”), que, de certa maneira, localiza nas práticas políticas do interior, do mun- do rural, a causa do nosso subdesenvolvimento. O termo “coronel” se originou no Império, mas está ligado à Guarda Nacional e à aquisição ou à doação da patente de coronel por parte de grandes proprietários de terra e escravos. Chamo a atenção para o fato de que, em boa par- te do Império, a grande riqueza eram os escravizados. Inclusive, eles eram usados como fiança para garantir empréstimos bancários para os proprietários rurais. A terra tinha pouco valor. O que valia mesmo era a mão de obra, que era oferecida como garantia para empréstimos bancários àquela época. A figura do coronel foi construída na inter- pretação do Victor Nunes Leal. Quero deixar bem claro que esse con- ceito foi construído, não brotou da terra. Ele foi construído no âmbito de um mundo acadêmico, neste caso, especificamente, em uma tese à cátedra na Faculdade de Direito. Trabalharei a gramática política em três aspectos. Primeiro, ten- tarei entender como a figura do coronel no Império se torna a base do sistema coronelista na Primeira República, porque aí ocorre uma mudança. Quer dizer, a figura do coronel é uma coisa, o sistema 4 Mais precisamente: Leal (1976). D E MO C RAC I A E M F O CO 30 coronelista é outra. O sistema coronelista terá sua montagem e seu funcionamento característico na Primeira República. Basicamente, a gramática do clientelismo é: compromissos recíprocos — é dando que se recebe. Não há nada de mau em dar e se receber na política. A polí- tica é a arte da negociação. O problema são os termos da negociação. O que a legislação permite. O que a moral permite. O que um fun- cionamento funcional (desculpe a ênfase) do sistema republicano, no caso da Primeira República, permite. Um pequeno parêntesis: se, na época do Império, você tinha 10% do eleitorado, o eleitorado que elegeu o presidente Campos Salles foi de 3% da população de homens livres.5 Portanto, há uma redução do corpo eleitoral na República, porque tínhamos um corpo eleitoral res- trito. Havia o presidente da República e os presidentes dos estados. As oligarquias locais eram representadas pelos coronéis. Então, tinha um sistema que funcionava, tanto de cima para baixo quanto de baixo para cima. É esse sistema que, ao contrário do que se pensa, não pos- suía doses de estabilidade. Uma das chaves da Primeira República (e do Império) é a questão da estabilidade. Criou-se uma ideia de que a Primeira República, com o funcionamento dessescompromissos recíprocos — ou seja, o presi- dente da República se entendia com os presidentes dos estados, que se entendiam com as oligarquias locais —, seria um regime estável. Não é verdade. Ao contrário do que muita gente acredita, esse sistema não funcionava como máquina. Tinha muita areia nessa máquina. Você tinha uma quantidade enorme de interesses presentes nessa máquina supostamente bem engrenada pela fraude, pela violência, pelo corpo eleitoral restrito. O que quero dizer é que esse regime tinha funcio- namento muitas vezes traumatizado. Vemos esses traumas nas suces- sivas rebeliões locais intraoligárquicas, nas disputas de interesse que não permitiam esse funcionamento idealizado, tanto nos 50 anos do Império quanto nos 30 anos da Primeira República (Viscardi, 2012). O segundo tópico é: o povo como ator político. Estamos no se- minário Democracia em foco. É óbvio que a ideia de democracia na Primeira República tem muito pouco a ver com a que temos hoje. Não encontramos, nos discursos, mesmo de líderes mais populares, a democracia nos termos tais como conhecemos hoje. Era um corpo 5 Os dados relativos à magnitude do eleitorado são estimativas de Carvalho (1987). p r i M e i ra r e p ú b l i ca (1889 - 1930) 31 eleitoral restrito. Vocês entenderão por que não posso falar de demo- cracia. Analfabetos não votavam, e o analfabetismo existia em grande escala. O argumento era liberal: o analfabeto não tinha consciência do voto, da escolha. Aliás, esse argumento será usado, em alguma medi- da, posteriormente, nos anos 1930, na ocasião do Estado Novo. Teóricos como Oliveira Vianna (1949) achavam o voto universal uma ideia aberrante, porque a maioria da população estaria subme- tida aos coronéis. A ideia de um tipo de participação do povo era algo impensável na Primeira República. Havia o argumento de que as mulheres eram histéricas. Mas isso não é novidade, uma das ale- gações — não só no Brasil, mas em outros países — era exatamente da instabilidade emocional das mulheres para poder escolher alguém para um cargo público. Os praças também não votavam. Então, ha- via legalmente o afastamento de parcelas substantivas da população. O que não significava, no entanto, que essa população marginalizada legalmente, ou que não participava de forma ativa, não estava presen- te. Basta ver a literatura de cordel. Uma orientanda minha trabalhou a política na literatura de cordel (Maya, 2012). É uma fonte muito interessante para se observar a participação da população. De que ma- neira as camadas excluídas da participação ativa — e mesmo aqueles que votavam — negociavam com os coronéis, com seus apaniguados, com seus representantes. É muito interessante. Chamo atenção para algumas expressões criadas nesse período e que duram até hoje: “voto de cabresto”, “curral eleitoral”. Não nos da- mos conta do quanto é ofensivo chamar os eleitores das favelas, das periferias, de “curral eleitoral” ou de “voto de cabresto”. É um cuidado que deveríamos ter. Vale a pena transferir o que, na Primeira Repúbli- ca, correspondia a certa realidade? A maior parte do eleitorado era da zona rural. É uma gramática que — na falta de termos adequados ao nosso período — acabamos transportando da Primeira República, de uma realidade diferente. O primeiro elemento foi o sistema coronelista. O segundo, o povo como ator político. Nada de voto de cabresto nem curral eleitoral. As demandas eram encaminhadas por outros instrumentos pouco detectados em uma fonte tradicional. Como terceiro elemento, cito Campos Salles: “A política dos estados é a política nacional”. Como se a política nacional estivesse submetida à política dos estados. A expressão talvez mais comum desse período é “café com leite”. Mi- D E MO C RAC I A E M F O CO 32 nas não era leite, era café. A elite mineira tinha conexão com o mundo exterior, principalmente o sistema financeiro. Não por acaso, a maio- ria dos bancos era de Minas Gerais (depois São Paulo se apoderou de todos eles). Portanto, a elite mineira defendia o contencionismo, o ajuste fiscal. Era um programa de governo muito mais centrado em um funcionamento do Tesouro Nacional superavitário. A elite paulis- ta, ao contrário, era papelista, era a favor da emissão, do subsídio, da proteção, porque era voltada para o mercado interno. A produção da elite paulista obviamente não tinha lugar no sistema internacional. Mas o objetivo — e na Primeira República isso está muito claro — é conquistar o mercado interno, onde a indústria paulista poderia com- petir se devidamente amparada pelos subsídios do Estado (federal, estadual e municipal). Não estou falando mal de São Paulo, não, pelo contrário. Podemos enterrar essa história de “café com leite”, porque havia muito mais disputas. São Paulo queria o Ministério da Fazenda e o Banco do Brasil. Nem sempre havia combinação, dependendo do contexto externo, não se conseguia chegar a um acordo. Muitas vezes o conflito era claro entre Minas e São Paulo. Uma das coisas que também se costuma dizer da Primeira Repú- blica é que o presidente era fraco, que o Estado era fraco. É como se Vargas e a Revolução de 1930 viessem formar um Estado forte. Estu- dos como o de Renato Lessa (1988), Elisa Reis (1988:187-203) e do próprio Edson Nunes provam que o Estado na Primeira República e o presidente não eram simples porta-vozes dos interesses dos estados. Havia instâncias de claro fortalecimento do papel do Estado e de sua intervenção na economia. Longe, portanto, daquele mundo liberal em que os teóricos de Vargas costumavam designar a Primeira República. Fecharei com uma frase do Campos Salles. Cada um fará a própria tra- dução, embora eu já tenha a minha. “Quem se propõe a consultar opi- niões alheias sujeita-se, naturalmente, a modificar as suas, e era isso o que eu queria evitar.” Para bom entendedor… Obrigada. [Aplausos]. CA P Í TU LO 3 Partidos e competição política durante a Era Vargas (1933/34) paolo ricci* Saudações a todos e todas. Sou estrangeiro aqui, não só em nacio- nalidade, mas também sou cientista político. Faço a minha incursão na história do Brasil porque é uma coisa que sempre me cativou, seja pensar o Brasil, ou pensar comparativamente o século XIX. Talvez te- nha errado de profissão, tinha que ser historiador. Então fico muito bem aqui na mesa com vocês. Quero organizar uma reflexão menos focada no que os teóri- cos e críticos do sistema representativo pensam e mais relacionada com as práticas eleitorais da época. Essencialmente, quero ressaltar quatro aspectos que são, para mim, proeminentes hoje para pen- sar a evolução do governo representativo. Antes de começar, uma premissa se faz oportuna: quando se pensa o Brasil, evito usar, de imediato, o termo democracia. Sabemos que se trata de um termo que entra em cena no fim do século XIX, assim como aconteceu em países da Europa. Ainda que o debate sobre o conceito tenha levado a abordagens interessantes e métricas variadas, acredito for- temente que o pesquisador deva dar maior ênfase às práticas, de * As reflexões de que tratei nesta exposição foram amadurecidas graças aos projetos que desenvolvi junto à Fapesp (processo 18/23060-2) e ao CNPq (processo 307864/2020-0), cujos financiamentos de pesquisa agradeço. D E MO C RAC I A E M F O CO 34 modo a compreender em profundidade a transição de um governo representativo — ou seja, essencialmente com base na presença de instituições representativas, mas que não são democráticas — para a democracia. Eis o ponto: dar a devida atenção para esse momento de transição na história política do Brasil, algo que, até agora, não foi devidamente explorado pela ciência política. Trato de um período bastante complicado, porque a literatura, em geral, aponta justamente os anos 1930 como o nascimento da demo- cracia no Brasil. Pelo menos do ponto de vista institucional, há essa associação clássica em virtude, por exemplo, da criação da Justiça Eleitoral e do próprio Código Eleitoral.1Nesse sentido, meu primeiro ponto diz respeito ao reconhecimento da importância das instituições, isto é, do aspecto institucional do governo representativo. Acho que, como estudiosos, não podemos nos esquivar de entender a evolução do governo representativo e da democracia sem levarmos em conta as regras e normas. São elas que ditam o tom das relações entres os atores políticos, sejam eles eleitores, votantes ou políticos e partidos. Com relação a esse ponto em particular, sabemos que as normas eleitorais são uma criação dos próprios políticos. Naquela época, ain- da que houvesse um debate na sociedade civil nos anos 1920 e 1930 quanto à reforma das regras eleitorais, o Código Eleitoral foi elabora- do, basicamente, por três juristas e políticos bem conhecidos: Assis Brasil, João Cabral e Pinto Serva.2 Foi uma elaboração difícil, con- siderando que eles dificilmente se encontraram. Pinto Serva alegava problemas de saúde e não se ausentava de São Paulo, enquanto Assis Brasil e Cabral residiam em outras localidades. João Cabral, que foi considerado um dos artífices de parte do Código, teve que ir até Bue- nos Aires, porque Assis Brasil havia assumido o cargo de embaixador em 1931. Comparativamente, esse é um Código que nasce a partir da elaboração restrita de algumas pessoas, influenciadas pelas reformas nos países vizinhos, em particular Argentina e Uruguai, às quais se juntam depois outros juristas, quando se percebe que o Código não sai do papel. Depois de mais de um ano de trabalho, o ministro da Jus- tiça, Maurício Cardoso, endossa os trabalhos da comissão incumbida de rever as regras eleitorais e, em um mês e meio, elabora o projeto fi- 1 Ver, a título de exemplo, Sadek (1995). 2 Para um estudo em profundidade da elaboração do Código, ver Zulini (2019:41-60). pa rti D o s e coM p e ti ção po l í ti ca D u ra n te a e ra va rgas (1933/34) 35 nal do Código Eleitoral, entregando-o a Vargas em fevereiro de 1932. Esses aspectos institucionais são centrais para pensarmos a transição. Para mim, o Código é importante para entender dois aspectos: a relação entre elites e eleitores — portanto, aqui temos o tema da par- ticipação política — e a relação entre elites e eleições, em particular o custo de competir. Quanto ao primeiro, a literatura o tem explo- rado com base nas relações clientelísticas entre eleitores e coronéis.3 Quanto ao segundo, a ênfase é geralmente posta sobre as caracterís- ticas não competitivas das eleições que antecedem a democracia de 1945.4 Voltarei ao primeiro aspecto mais à frente. No que tange ao segundo, antecipo a força da mudança observada na primeira eleição após a outorga do Código Eleitoral de 1933. Ela é a primeira eleição de fato competitiva. O significado do termo “competitiva” também é um problema. Não estou dizendo que as eleições na Primeira República nunca foram competitivas e renhidas. Não é isso, pelo contrário: não faltam histórias de mortes, de violência política, disputas partidárias, rachas de alianças políticas.5 Mas a grande diferença quanto à Pri- meira República é que a oposição consegue derrotar o governo. Isso acontece nos anos 1930, e é crucial relacionar esse efeito ao Código Eleitoral. Esses são dois pontos do primeiro aspecto institucional que queria tratar com vocês. Nas palestras, nós sempre fazemos um mea-culpa. Acho importante fazer isso aqui também. Estamos celebrando, in- clusive, 90 anos do Código Eleitoral e até agora não temos estudos sistemáticos sobre o tema. No máximo temos uma descrição de seu conteúdo e suas especificidades, mas as origens do Código, os deba- tes em torno da necessidade de incluir algumas normas, como o voto feminino, a representação classista, o debate em torno do voto secre- to ainda devem ser aprofundados. Um esforço recente que coordenei pode ser considerado a primeira tentativa de avançar nesse sentido (Ricci, 2019:41-60). Digo isso porque, para pôr na mesa algumas questões para o debate futuro, pensar nas possíveis pesquisas, é im- portante voltar nosso olhar para o desenho das regras e sua aplicação naqueles anos. 3 Para uma discussão clássica do tema ver Leal (2012). 4 A ideia de que 1945 constitua uma ruptura, pois as eleições se tornaram competiti- vas, pode ser encontrada, por último, em Limongi (2012:37-69). 5 A esse respeito ver Ricci e Zulini (2014:443-479). D E MO C RAC I A E M F O CO 36 Entro, então, no segundo e terceiro aspectos que queria discutir neste evento. Trata-se das práticas eleitorais e dos efeitos produzidos pelas regras. Muito se discute em torno das regras, como se elas auto- maticamente levassem a alguma coisa. No caso em questão, o Código é frequentemente associado à democracia. Acho que isso tem de ser esquecido, tem de ser deixado de lado, pelo menos nesse momento, va- lorizando as pesquisas que resgatam documentos e material da época. Temos que diminuir o peso das discussões em torno da transição para a democracia em termos conceituais, deslocando o assunto para como as mudanças do Código de 1932 impactaram os próprios atores políticos da época. Se isso levou a uma maior democracia, é outra questão e só pode ser respondida após pesquisas mais aprofundadas. Antes de tudo, é proeminente pensarmos um pouco sobre o tema de como os atores jo- gavam entre si. Quando penso nas práticas eleitorais, de imediato surge a questão das fraudes, do papel da recém-criada Justiça Eleitoral, dos mecanismos inventados para garantir o voto secreto. Se, por exemplo, como defendido por alguns autores, as fraudes devem ser interpretadas como formas de disputas pelo poder, é plausível supor que o controle da Justiça Eleitoral tenha modificado as inúmeras formas de manipular o voto. E, ainda, em que medida a sobrecarta oficial e a cabine indevas- sável impactaram o eleitor? Apenas uma maior atenção para as práticas eleitorais da época poderá fornecer respostas mais precisas e certeiras sobre os detalhes destas reformas. O terceiro aspecto que quero trazer para vocês é, justamente, a questão dos efeitos da reforma de 1932. O que o Código Eleitoral trou- xe de inovativo para o mundo da política? Em primeiro lugar, com- parativamente, é difícil encontrar um Código Eleitoral tão inovador mundo afora: voto proporcional, voto obrigatório, Justiça Eleitoral, voto secreto, voto feminino e representação classista. Onde encontra- mos isso? Em lugar nenhum do mundo. É claro que a historiografia tem se dedicado ao estudo do Código em algumas questões específi- cas. Talvez o voto feminino e a representação classista sejam aquelas mais pesquisadas, mas temos que levar em conta todas as dimensões institucionais ao mesmo tempo, não isoladamente, porque elas ope- ram em conjunto. Vamos lembrar que o Código Eleitoral foi aprovado em fevereiro de 1932, depois de demorar um ano para ser elaborado por Assis Brasil, Cabral e Pinto Serva. Caiu na mão de uma comissão que entregou aquele calhamaço para o próprio Vargas, que demorou pa rti D o s e coM p e ti ção po l í ti ca D u ra n te a e ra va rgas (1933/34) 37 um mês fazendo as correções e inserindo a representação classista, que inicialmente tinha ficado de fora. Sob pressão, evidentemente, de um grupo — de parte dos tenentistas — que queria esse tipo de repre- sentação. Eu diria que esse é, justamente, o único elemento do Código que não reconhecemos como democrático. Hoje em dia, ninguém fala em representação classista. Mas todas as demais dimensões — voto secreto, proporcional e o voto obrigató- rio — são institutos que caracterizam a democracia. Quero fazer um lembrete contra os paulistas, porque sempre se retoma esta ideia de uma revolução que quer constitucionalizar versus os outros que não querem as eleições. A eclosão da revolução acontece em julho de 1932. O Código foi aprovado em fevereiro de 1932. Em maio, temos um decreto do próprio presidente Vargas fixando as eleições para maio de 1933. Ou seja, já havia um calendário eleitoral prefixado. O então TribunalSuperior da Justiça Eleitoral e todos os Tribunais Regionais Eleitorais (TREs) foram instalados em maio de 1932. Por fim, durante o conflito paulista, na maioria dos estados, os TREs desenhavam as zonas eleitorais, as varas eleitorais e os ofícios que ficavam incumbi- dos dos serviços de qualificação e identificação dos eleitores. Então, esse processo inicia-se antes da Revolução Constitucionalista e corre de forma paralela a ela. Esse é um ponto importante, porque significa que parte daquela elite — identificada por alguns como os tenentes — já tinha perdido a batalha antes da eclosão do conflito paulista. Perdido no sentido de que várias oligarquias e atores políticos já pres- sionavam para uma constitucionalização e, portanto, para a volta das eleições e a criação de um governo representativo definido por uma dinâmica que conhecemos bem e que remete às relações entre um presidente e um parlamento, ambos eleitos. Qual é a inovação desse Código? Falarei dos efeitos do próprio Código Eleitoral de 1932. Primeiramente, as eleições se tornam com- petitivas. Apresentarei alguns gráficos. Acho importante fazer esse esforço, porque os dados sintetizam uma coleta de informações ain- da pouco conhecida. Para essa época, temos muitos estudos de casos, mas poucas pesquisas que pensam o Brasil como um todo. Quantos trabalhos sobre a Primeira República pensam nela como um todo? Muito poucos. Que eu me lembre, o trabalho da Claudia Viscardi (2012), centrado na eleição dos presidentes da República, que mostra justamente como, apesar de o resultado ser conhecido, havia uma di- D E MO C RAC I A E M F O CO 38 nâmica anterior de forte pressão, negociação, entre as elites políticas. Nada estava certo, nada estava acomodado nos termos São Paulo ver- sus Minas Gerais. Outras elites regionais disputavam o poder e as va- gas para presidente ou vice da República. Esse é um ponto importante que também condiciona as pesquisas sobre os anos 1930. Porque, do ponto de vista da dinâmica política, pouco muda. Pouco muda em termos da abrangência da competição política. Se pensarmos nas dis- putas da Primeira República, não temos partidos nacionais. Houve al- gumas tentativas nos anos 1910, mas no pós-1932, na primeira eleição de 1933, que é a Constituinte, não existem partidos nacionais, cada estado tem seus partidos políticos, replicando o modelo da Primeira República. É assim durante as eleições sucessivas até 1937, com o gol- pe que dá origem ao Estado Novo. Esse é um aspecto importante para pensarmos sobre como nasce a democracia de 1945, com a Lei Agamenon, que obriga os partidos a se nacionalizarem.6 Aí temos na própria legislação a exigência de determinados requisitos, obrigando o partido a estar presente em vá- rios estados para ser reconhecido como tal e poder disputar o pleito. O Código tem efeitos substantivos importantes com relação, em pri- meiro lugar, à participação política, porém, se penso no eleitor como indivíduo, nada muda. Nada muda em termos de voto ideológico, nem em termos de voto de pertencimento, aquele voto de bandeira. Nos anos 1930, ainda não temos o voto ideológico. Grande parte da população vive no campo, 75% mais ou menos. Já no que concerne às regras, o Código Eleitoral inova. Por exemplo, se pensarmos no alistamento ex offício, feito pelos chefes das reparti- ções públicas. Acho que há muita ênfase ao alistamento ex offício, mas, no fundo, ele conta essencialmente apenas nas cidades, não nas demais áreas do Brasil. Tem um aspecto do Código — por isso é importante olhar as regras — que aumenta os custos para o eleitor participar, que 6 N.O.: O professor Paolo refere-se ao Decreto-Lei no 7.586, de 28 de maio de 1945, mais conhecido como Lei Agamenon, em referência a Agamenon Magalhães, então ministro da Justiça encarregado por Getúlio Vargas de rever as regras eleitorais. Entre as medidas adotadas pelo Decreto-Lei, constava um dispositivo que condicionava o registro partidário a organizações com 10 mil eleitores em pelo menos cinco estados (art. 109). O objetivo era nacionalizar o sistema partidário, para combater a reorgani- zação de partidos estaduais, que dominavam a cena política brasileira até 1937. Para detalhes, ver Souza (1976). pa rti D o s e coM p e ti ção po l í ti ca D u ra n te a e ra va rgas (1933/34) 39 é a fotografia. Na época, para ter o título eleitoral, era preciso tirar uma fotografia. Imaginem quem poderia tirar fotografias e se havia fotógra- fos nas cidades do interior. Esse é um mecanismo importante que sina- liza para um fato: o custo era tão elevado para o cidadão comum que quem fazia o alistamento eram os próprios partidos políticos. Quem organizava o alistamento inteiro eram os partidos, os candidatos, ob- viamente, as próprias máquinas que organizavam e faziam os eleitores. Os efeitos desse processo, para mim, se observam com dados relativos à participação política. Em 1933, nós não temos um au- mento dos eleitores, aqueles 5% ou pouco mais de alistados sobre a população total que caracterizava a Primeira República continuam em 1933. Aumenta um pouquinho em 1934. A grande mudança é a participação política: quem é alistado agora vota. Oitenta por cento comparece às urnas e vota em 1933; 75%, mais ou menos, em 1934. Ou seja, apesar de não termos um aumento dos eleitores, observa- mos um aumento da participação política. Isso não se deve, no meu entender, ao voto obrigatório, mas à maior capacidade de mobiliza- ção por parte dos partidos políticos. As elites agora competem para ter os votos, para fazer eleitores. Essa lógica da competição se deve a dois mecanismos presentes no próprio Código Eleitoral. Um deles, para mim, é primordial, que é a proporcional. Um sistema eleito- ral proporcional complicado, com um efeito majoritário embutido no cálculo das cadeiras e que foi pensado por Assis Brasil. Houve muitas críticas à sua aplicação. Os próprios TREs na época se con- fundiram na hora da contagem dos votos. Mas, apesar disso, o que observamos é que esse mecanismo do sistema proporcional permite algo até então inédito: o acesso das oposições ao Congresso. Essa é a grande mudança em respeito à Primeira República, do ponto de vista da participação política e do ponto de vista das eleições, do conflito e da competição política. Aqui podemos retomar o debate sobre democracia. Cientista polí- tico geralmente pensa em termos conceituais: “o que é a democracia?”. Uma definição de democracia é justamente aquela em que o governo reconhece a própria derrota e os opositores têm chances reais de ga- nhar (Przeworski, 1997:3-36). Os gráficos a seguir mostram isso cla- ramente para a eleição de 1933 e 1934.7 7 Todos os gráficos foram reproduzidos de Ricci e Silva (2019). D E MO C RAC I A E M F O CO 40 Gráfico 1 Número de partidos políticos competindo (1930-34) Fonte: Reproduzido de Ricci e Silva (2019). O gráfico 1 ilustra o número de partidos políticos competindo na Primeira República e nas duas eleições federais que ocorreram sob vigência do Código de 1932. Observem como em todos os estados houve um aumento abrupto de competidores. Não sabemos quais são as características desses partidos, as relativas especificidades. Existiam várias cores políticas em 1933 e 1934. Em 1933, por exemplo, temos mais de 100 partidos que concorrem às eleições, além dos avulsos.8 No gráfico 2 temos os dados relativos ao percentual de cadeiras obtidas pelos partidos em cada unidade da Federação nas eleições de 1933 e de 1934. Pouquíssimos estados têm partidos que ganham todas as cadeiras. Esse era o padrão da Primeira República, quando a eleição resultava em apenas um ganhador. Em 1933, temos cinco estados onde isso acontece. Nos demais, temos pelo menos dois partidos políticos. É o efeito da proporcional. Isso significa, olhando de outro ângulo, que o partido do interventor, isto é, o governismo, perde. Conseguem a maioria em alguns estados, mas não todas as cadeiras. Em alguns esta- dos maisde dois partidos políticos ocupam as cadeiras. 8 O Código Eleitoral permitia que candidatos sem filiação partidária, denominados de “avulsos”, competissem ao pleito. 25 20 15 10 5 0 1899-1930 1933 1934 estados D istrito Federal rio de Janeiro ceará são paulo pernam buco M inas g erais M aranhão paraná pará am azonas bahia rio g rande do sul espírito santo piauí alagoas paraíba M ato g rosso sergipe santa catarina rio g rande do n orte g oiás estados pa rti D o s e coM p e ti ção po l í ti ca D u ra n te a e ra va rgas (1933/34) 41 Gráfico 2 Porcentagem de cadeiras conquistadas pelos partidos em 1933 e 1934 Fonte: Reproduzido de Ricci e Silva (2019). Gráfico 3 Cadeiras ocupadas pelos partidos dos interventores em 1933 Fonte: Reproduzido de Ricci e Silva (2019). O Gráfico 3 é relativo à eleição de 1933, em que mostro quais são as cadeiras ocupadas pelos partidos dos interventores. Em alguns es- tados, o partido do interventor ganha todas as cadeiras, mas são pou- cos; nos demais ele divide com outro partido — um que não era opo- sição ao governo Vargas, mas se encontrava em oposição ao governo 1o partido 2o partido 3o partido 4o partido po rc en ta ge m d e ca de ira s 0 20 40 60 80 10 0 rJ ce Ma aM es Mt pi pr rn sc se sp rs Mg pe ba ac al go pa pr rJ rn ce sp pr sc rs ba Mg al es go Mt se pa pe pi Ma ac aM pr 1933 1934 100 80 60 40 20 0 pará g oiás paraíba alagoas bahia pernam buco M inas g erais rio g rande do sul sergipe piauí M ato g rosso paraná santa catarina espírito santo am azonas D istrito Federal ceará rio g rande do n orte são paulo M aranhão acre rio de Janeiro estados D E MO C RAC I A E M F O CO 42 estadual, ou seja, ao próprio interventor. Pouquíssimos partidos na época se opunham à Revolução de 1930. O gráfico também mostra que há situações em que o partido do interventor ou concorre e perde, ou nem concorre, porque não consegue se organizar, como é o caso do Rio de Janeiro. O caso mais conhecido talvez seja o do Ceará. A Liga Eleitoral Católica (LEC) derrota o partido do interventor. Concluin- do, justamente nos anos 1930, podemos observar os primórdios de uma eleição competitiva, isto é, um aspecto que alguns associam à de- mocracia e que costumamos identificar apenas no regime de 1945-64. Para além dessas reflexões ainda parciais — no fundo, esse é um projeto de pesquisa em andamento —, como quarto ponto da minha fala, gostaria de concluir nos seguintes termos. É importante pensar o Brasil tendo como objeto de estudo suas instituições e seus atores po- líticos de antes de 1945. Se você conversar com um cientista político, ele só fala de pós-1988 e um pouco de 1945-1964. Falta um investi- mento, uma atenção maior por parte da ciência política com nosso passado. Essa é uma característica, infelizmente, da ciência política em geral. Em outros países também é muito difícil ver um cientista político que volta no tempo. A segunda reflexão é para os historiado- res, é um incentivo para que eles saiam do caso, do detalhe, e pensem nos conceitos, nos problemas, para que pensem as perguntas e as res- pondam. E aqui, na pauta, está uma grande pergunta: qual é, de fato, a mudança em relação à Primeira República quando se trata de pensar o governo representativo? Precisamos de respostas mais abrangentes, que não fiquem presas ao estudo de caso, como um estado. Isso exi- ge um esforço enorme. Por isso é fundamental, para mim, (re)pensar essa época partindo de uma reflexão interdisciplinar e que agregue pesquisadores de várias regiões do Brasil. Estou feliz de estar aqui com vocês justamente por isso. Obrigado. [Aplausos]. Debate Marco Aurélio Vannucchi (M. A. V.): É uma honra moderar esta mesa centrada no “Governo representativo no Brasil: do Império à Era Vargas”. Muito obrigado a todos os palestrantes. Agora abriremos as inscrições para a participação do público. Pergunta 1 (Anônima): Minha pergunta é para a Marly. Queria sa- ber sobre a “política do café com leite”. Sempre fui ensinado na escola que a “política do café com leite” era uma aliança entre as elites de São Paulo e de Minas, envolvendo uma alternância combinada en- tre presidentes desses estados. Você explicou muito bem que existia um conflito de interesse entre as duas. Existe algum fundo de verdade nessa alternância combinada? Se não existe, de onde veio essa ideia? Como ela foi construída de um jeito tão consolidado como a “política do café com leite”? Quem construiu? De onde partiu isso? Obrigado. Pergunta 2 (Anônima): Gostaria de fazer uma pergunta que me foi suscitada pela fala do Paolo, em relação à participação dos tenen- tes na criação do Código de 1932 (e talvez Marly e Miriam possam acrescentar alguma coisa a este respeito). Não entendi bem se a de- manda deles foi relacionada com a proporcionalidade, a representa- ção classista, ou ambas. Trabalhei com arquivos do Juarez Távora, no CPDOC, e encontrei muita informação dele negociando formação de partido para as eleições desse período. Ele mostrou irritação com o caso do Ceará, que perdeu parte dessas cadeiras. Como a agenda tenentista aparece com a Revolução de 1932 ou mesmo antes, profes- sor Paolo? E como a mesma agenda, após essas eleições, perde força nesse projeto maior do Governo Vargas? Queria que os professores comentassem um pouco sobre essa suposta agenda social tenentista, com a participação política e a competição entre partidos. Será que D E MO C RAC I A E M F O CO 44 essa agenda, em vez de fortalecida, foi enfraquecida por conta dessa disputa política eleitoral? Pergunta 3 (Jaqueline Zulini): Também gostaria de fazer uma questão única para os três componentes da mesa, com base nas excelentes expo- sições que surgiram. Apareceram, na fala dos três palestrantes, possíveis agendas de pesquisa. Eu acho que, aproveitando a presença dos nossos alunos, dos jovens estudantes, que podem ver diante de si uma opor- tunidade de navegar pelo próprio CPDOC, para revisitar as origens do governo representativo no Brasil, seria interessante ouvir tanto a profes- sora Miriam quanto a professora Marly e o professor Paolo sobre temas que eles ainda acreditam que sejam importantes de resgatar. O que os jovens estudantes e pesquisadores poderiam retomar ou investir mais para revisitar o Império, a Primeira República e a Era Vargas? Para além disso, gostaria de fazer outra pergunta para a professora Miriam. Professora, parece-me injusta a má fama que a Primeira Re- pública recebe quando se trata de reformas eleitorais. A literatura faz parecer que ocorreram muito mais reformas eleitorais durante a Pri- meira República. Mas não foi no Império que se adotou e implemen- tou muito mais reformas comparativamente à Primeira República? M. A. V.: Também gostaria de aproveitar para fazer uma última per- gunta para a professora Miriam. Achei interessantíssima essa conse- quência citada durante a sua palestra — possivelmente imprevista pelas elites do regime representativo — de que teria ocorrido a dis- seminação dos valores liberais, dos valores do próprio regime repre- sentativo entre as camadas populares. Queria ouvi-la um pouco mais sobre isso. Sobretudo, sobre como conseguimos aferir empiricamente a incorporação desses valores. Miriam Dolhnikoff: Bom, primeiro, eu acho que a pergunta mais di- fícil é sobre as possíveis agendas de pesquisa. Acho que é tanta coisa… O que teve de comum aqui nas três falas é justamente a ideia de que o conhecimento se produz pelo questionamento do que está dado como conhecimento. Então, as agendas de pesquisa devem abrir no- vas formas de compreensão. No caso do Império, falei das reformas eleitorais, mas há poucos estudos sobre a prática das eleições. No Im- pério, a visão é sempre sobre “o clientelismo, a vontade do proprietá- D e bate 45 rio”, e é uma pesquisa difícil, com documentação difícil, então acho que essa é uma agenda importante: analisar as eleições superandoessa visão reducionista. Analisar do ponto de vista da forma como elas de fato ocorriam no século XIX, eventualmente articulando, acho, como o professor Paolo falou, regras e práticas. Esses pontos dialogam e, para aqueles que estudam o Império em geral, esse diálogo não é con- siderado. Acho também que ainda falta muita pesquisa sobre o papel do parlamento. Tenho observado novas pesquisas muito interessantes que analisam o parlamento com base em diferentes temas: formulação da política externa, formulação da política monetária etc. Enfim, ter uma compreensão sobre a história e o papel do parla- mento brasileiro passa, a meu ver, por estudar esse parlamento atuan- do em diferentes áreas, com um processo decisório que circula entre as diversas instâncias. Entender a circulação desse processo decisório que passa pelo parlamento, pelo Ministério, pelo Conselho do Estado e pelo imperador. Qual é o papel de cada um, qual é o peso de cada um? No sentido de nuançar um pouco o peso de dom Pedro e enten- der melhor esse processo decisório. Com relação à questão das reformas eleitorais no Império: sem- pre foram pensadas como uma farsa. Ou seja, eles estão lá discutin- do reforma eleitoral porque não têm muito mais o que fazer na vida. É o ócio do fazendeiro escravocrata, que está lá no Rio de Janeiro pas- seando: “vamos discutir reformas eleitorais”. Meu ponto de partida da pesquisa é mais ou menos este: não é possível que esses homens discutam com a veemência e o empenho que discutem para matar o tempo. Então, o que eu defendo é que as reformas eleitorais no Im- pério foram fundamentais, tanto que elas nos permitem entender o debate político. Como falei, são diferentes concepções de desenho da monarquia e de desenho do governo representativo. Essas diferentes concepções aparecem nos debates sobre as reformas. As reformas têm impacto. Não impacto no sentido de acabar com a fraude, de acabar com a violência, mas têm impacto, por exemplo, no tipo de represen- tante que se elege. Uma coisa é eleição por voto distrital, outra coisa é a eleição por voto majoritário por chapa, que era a prática anterior. Depois houve uma tentativa muito tímida de voto proporcional, que é a lei de 1875, e que hoje não consideraríamos voto proporcional. Mas o debate de que resultou essa lei foi o debate entre voto proporcional e voto distrital como diferentes formas de garantir competitividade D E MO C RAC I A E M F O CO 46 e representação da minoria partidária. Essas reformas eleitorais são, sim, importantes para se pensar a própria dinâmica do regime e do governo representativo brasileiro nesse período. Por último, a consequência não prevista pelas elites… Não sei se di- ria não prevista, mas diria que a magnitude não foi prevista. Disseminar os princípios liberais é uma forma de cooptar essa população, em certo sentido. A ideia de direitos e de cidadania é disseminada para conven- cer aquele indivíduo pobre, sujeito à violência, de que ele é um cidadão portador de direitos e que não tem do que reclamar. De um lado, há uma disseminação; de outro, o que não é prevista é a forma como a popula- ção se apropria dessas ideias. Acho que essa é a questão fundamental. A população se apropria dessas ideias tendo muito claro quais são os seus problemas, suas demandas e como essas ideias podem ser utili- zadas para atendê-las e resolvê-los. Esse era o efeito não desejável por parte da elite. Como aferir empiricamente? Voltarei à pergunta sobre a agenda de pesquisa. É uma agenda de pesquisa. O que temos hoje em termos de trabalhos que avaliam essa questão empiricamente são principalmente trabalhos de historiadores que analisaram as reformas populares no século XIX. Aparece muito claramente nos discursos e es- critos das lideranças como que a população se apropriou dessas ideias, inclusive para justificar revoltas armadas. Mas acho que ainda é um campo realmente em aberto para análise. Obrigada. M. A. V.: Obrigado, professora Miriam. Professora Marly, por favor. Marly Mota: Talvez a Primeira República tivesse mais instrumentos para que a previsibilidade das sucessões posteriores fosse realmente cumprida, talvez ela tivesse mais meios. Depois, com a chamada de- mocracia de massas, um eleitorado de massas, fica muito mais difícil. Embora eu acredite que as elites políticas continuem apostando em uma previsibilidade. Lembro do Sérgio Motta, que foi ministro do Fernando Henrique, dizer “vinte anos de governo do PSDB”. É uma previsibilidade. Ou mesmo o Lula e o PT, também são uma aposta na previsibilidade. Só que com os instrumentos atuais e dado o tama- nho e a diversidade do eleitorado fica mais difícil. Na Primeira República, você podia, de alguma forma, ter nas mãos de certa elite as sucessões. Volto para a questão dos partidos que o Paolo levantou — e que costumamos ignorar. O Partido Republicano D e bate 47 Paulista (PRP) e o Partido Republicano Mineiro (PRM) eram os dois maiores partidos da Primeira República. Portanto, eram aqueles que tinham o que chamamos, no jargão, de capilaridade. Ou seja, conse- guiam agregar os instrumentos que tinham. No entanto, houve mo- mentos quando isso não ocorreu, como na sucessão presidencial de Epitácio Pessoa para Arthur Bernardes. Houve toda uma campanha em 1922 que foi contestada, com denúncia de fraude eleitoral exposta. No caso da Primeira República, talvez já tenhamos um olhar de: “Está vendo? Já está tudo programado para ser assim”. Previsibilidade, sem dúvida nenhuma. Porém a execução dessa previsibilidade depende dos instrumentos que você tem para acionar. Esqueci de falar sobre um mecanismo muito usado — a degola. Os parlamentares eram eleitos, mas seus mandatos tinham de ser referendados por uma comissão de verificação de poderes. Era um instrumento muito ágil. Por exemplo, Maurício de Lacerda — pai do Carlos Lacerda — era eleito, mas esbarrava na comissão de verificação de poderes e perdia o mandato. Trago uma pergunta para você, Paolo. Você não acha que, prin- cipalmente na primeira metade da década de 1930, em que há uma competição, não existia uma concorrência com o movimento comu- nista, a Aliança Nacional Libertadora (ANL) e o movimento fascista na competição pela participação política, não eleitoral, mas na par- ticipação política? Não haveria um envolvimento, um encanto, por essa radicalização? Para usar um termo batido aqui: polarização. Eu não aguento ouvir. É só uma questão. Porque você está pedindo para a gente sugerir pauta. Acho que é algo interessante a competição de movimentos com os partidos políticos e o processo eleitoral, o Códi- go Eleitoral. São formas de participação política que não encontram, talvez, entendimento, recepção, nos partidos tradicionais. M. A. V.: Muito obrigado, professora Marly. Professor Paolo, por favor. Paolo Ricci: Começo pela pergunta sobre a representação classista. Salvo engano, essa questão não foi muito discutida pelos três juris- tas especialistas que debateram o Código (Assis Brasil, João Cabral e Mário Pinto Serva). Aqui é o mundo das interpretações, que muito depende das fontes. Infelizmente, nós não temos acesso às fontes dos três — para entender a dinâmica de elaboração do Código usamos os D E MO C RAC I A E M F O CO 48 jornais da época. Para mim, ficou bastante claro que, querendo ou não, os três deixam de fora essa questão. Não quer dizer que ela seja jogada na lata do lixo pelos três. Fica na mesa, do tipo: “esse é um assunto de vocês”, dos tenentes, do ministro da Justiça e de Vargas, tendo em vista seu poder de veto, e por isso inicialmente não entra no Código. Os três juristas estavam muito mais preocupados com a construção de um arcabouço que permitisse fazer um alistamento eleitoral, por- que ele tinha que ser feito do zero, após o da Primeira República ter sido cancelado pelo governo provisório. Para eles também era central com a criação de instituições eleitorais em alternativa às da Primeira República. Então, quandose pensa no Código Eleitoral de 1932, es- tamos falando da criação da Justiça Eleitoral. Ela é pensada com base em modelos já existentes em outros países latino-americanos, como no caso do Uruguai. Esse é um ponto importante. Ela entra depois, mas era defendida por alguns movimentos, entre os quais os próprios tenentistas que batem na porta do Vargas e falam: “não dá para deixar isso de fora do Código!”. Entra aos 45 do segundo tempo. A segunda questão é sobre a Revolução Constitucionalista. Con- cordo, não é revolução, é guerra civil. Ainda que concentrada em São Paulo, basicamente. Mas, de fato, como mostra a tese de Raimundo Lopes, temos a participação de todos os estados que enviam tropas para combater no conflito paulista — salvo engano, apenas Mato Grosso não envia (Lopes, 2014). É uma verdadeira guerra civil que, para mim, tem pouco a ver com a constitucionalização e muito mais a ver com o poder de São Paulo no pós-Revolução. Então, a questão dominante é a federativa. Quantos estados estavam perdendo após a Revolução? O levante dos paulistas vai nesse sentido. Não estou muito interessado em entrar nesse tipo de seara, acho que é muito mais para um historiador do que propriamente para um cientista político. Sobre a questão relativa à agenda de pesquisa, acho que enume- ramos várias agendas aqui. Concordo, por exemplo, com a Miriam quando ela cita a necessidade de entender o funcionamento do pró- prio parlamento. No caso da Primeira República, não há nada. Qual trabalho de referência temos sobre o Congresso Nacional, o Senado, a Câmara dos Deputados, na Primeira República? Absolutamente ne- nhum. Por que o parlamento existia? A resposta que as pessoas dão é: porque é importante para fazer carreira política. Só? Então, faltam trabalhos que nos digam, por exemplo, como se dava a relação entre o Executivo e o Legislativo. Não podemos pensar que tudo estava de- D e bate 49 finido pela política dos governadores.1 Absolutamente. É só dar uma olhada nos anais disponíveis online, de graça. Vemos rachas, dispu- tas, bancadas estaduais que supostamente tinham de manter um voto unânime, coeso, que racham. Qual é a razão disso? É um conjunto de perguntas que não são respondidas e que nós, como pesquisadores, deveríamos investigar em profundidade. Uma segunda agenda de pesquisa que gosto muito é o tema da frau- de. O que é fraude? Gosto de pensar a fraude como competição política. Por que existiam eleições fraudulentas? Por que os homens se mata- vam? Por que faziam alistamento? Por que brigam para fazer as mesas eleitorais que, na época, eram compostas por pessoas eleitas, portanto parciais? Porque, evidentemente, havia disputa política. Eu faço as me- sas eleitorais porque quero deixar a oposição de fora. Busco manter o controle sobre a comissão de alistamento, assim a oposição não faz os eleitores. Esse meu entendimento sobre a fraude é importante porque justamente dá valor à ideia de competição política na Primeira Repúbli- ca. Compete-se mais pelo controle da burocracia eleitoral — isto é, a bu- rocracia responsável por cuidar das fases eleitorais como o alistamento, a formação das mesas eleitorais, a contagem dos votos — e menos pe- los eleitores. Esse é um ponto crucial para entendermos a evolução do governo representativo, porque significa deslocar o foco — sobretudo graças à obra de Victor Nunes Leal, a qual se deu muita importância na academia — do eleitor para a questão da lógica político-partidária. Porque quem faz o controle das mesas das comissões de alistamento não são os coronéis, são os partidos políticos locais. Quem fizer essa pesquisa escreverá um novo Partidos políticos, enxada e voto [risos]. Entretanto, se retomarmos o livro de Leal, o partido não é central. Ele é completamente ausente da obra. Então, tem uma relação entre o presidente do estado e os coronéis, que não se explica por si só. O erro, para mim, é desconsiderar o papel dos partidos políticos que são ins- tituições que permitem manter a coesão entre os coronéis, que permi- tem, sobretudo, resolver problemas de ação coletiva entre pessoas que querem, por exemplo, ascender à política. Quem são os candidatos? Quem é o candidato para deputado estadual, para senador estadual? E para deputado federal? Quem decide é o partido, não é o coronel. Há várias cartas e testemunhos nos jornais que mostram que havia convenções partidárias, com políticos de carreira local, para se definir, 1 Para uma reflexão recente sobre o assunto, ver Viscardi (2017). D E MO C RAC I A E M F O CO 50 inclusive, por meio de regras escritas em estatutos, quem seriam os futuros candidatos. Essa é uma lógica que me desloca da política lo- cal centrada nos indivíduos — clientelismo, coronelismo — para uma política centrada na instituição partido político. A meu ver, essa é uma agenda muito importante, que obviamente se liga aos anos 1930. Chega o Código Eleitoral, inventam a Justiça Eleitoral. Supostamente, acaba o domínio dos partidos sobre a burocracia eleitoral. Será que é isso? Se vocês entrarem no site do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), dos Tribunais Regionais Eleitorais (TREs), a história está bonitinha. Parece história infantil. Chega a Justiça Eleitoral: inventou-se um novo mundo. Não temos estudos sobre como, de fato, a Justiça Eleito- ral trabalhou, funcionou, naquela época. Sabemos — quem estuda as instituições, novas regras — que as coisas não mudam de um dia para o outro. Essas práticas eleitorais são importantes quando se pensa na criação de novas instituições. Essa é a agenda para pensar um pouco o fim da competição pela burocracia eleitoral e o começo da competi- ção pelos eleitores. Quando o partido perde o controle do alistamento, das mesas eleitorais, como ele vence? Fazendo eleitores! É justamente nessa época, a partir dos anos 1930, que o eleitor se torna uma peça crucial que todos os candidatos, os partidos, começam a olhar. Sobre a questão dos partidos, a pergunta que você fez, Marly, acho que, no começo, essa radicalização não está evidente. A eleição de 1933 é uma eleição, para mim, entre várias forças políticas, com visões dife- rentes do mundo — isso é importante dizer —, inclusive radicais. Estou analisando o programa dos partidos políticos dessa época, por exem- plo, que me dão pistas nesse sentido, mas não estou enxergando neles nenhuma lógica radical. O integralismo chega depois, compete depois, mobiliza depois. A partir dos anos 1934, sobretudo 1935, que temos esse panorama muito mais radical. Isso é interessante também, porque contrapõe, justamente, o nascimento do governo representativo nos anos 1930 dentro de uma lógica competitiva clássica, normal, centrada em partidos que competem por valores e ideias diferentes, com uma lógica muito mais radicalizada, que chega a assustar Vargas (1995: v. 1), como está registrado em seu diário e que se faz cada vez mais presente na contraposição entre integralistas e comunistas também. M. A. V.: Muito bem. Agradeço à Miriam, ao Paolo, à Marly e espe- cialmente ao público pela presença, e convido a todos para as próxi- mas sessões do seminário. [Aplausos]. M E SA 2 Partidos e sistemas partidários no Brasil “Os partidos brasileiros representam algo?” Em 2009, o sociólogo Leôncio Martins Rodrigues publicou um texto exatamente com esse título, abordando o dissenso existente entre os analistas. O mapea- mento do debate revelava como, de um lado, se encontravam fortes críticas ao sistema partidário brasileiro que, de outra parte, eram de- safiadas por avaliações mais otimistas que apontavam a consistência ideológica e a disciplina parlamentar como atestado da representati- vidade dos partidos no país (Rodrigues, 2009). Pode-se dizer que a polêmica prossegue e continua animando o interesse público sobre o tema. A mesa-redonda “Partidos e sistemas partidários no Brasil” foi proposta com o intuito de esquematizar os termos desse debate que segue mobilizando a opinião pública e a aca- demia.Jairo Nicolau enfatizou a alta fragmentação partidária brasilei- ra e a bipolarização entre petistas e não petistas nas disputas eleitorais para a presidência da República, características que já eram observa- das desde o levantamento realizado por Leôncio Rodrigues. Segundo os dados, a novidade é a ocupação do Poder Legislativo pelos partidos de direita, que se tornaram maioria no Congresso por conta da ascen- são de forças políticas mais reacionárias combinada com o declínio dos partidos de centro. A baixa representação das mulheres na políti- ca brasileira, em geral, e nas organizações partidárias, em particular, foi discutida por Clara Maria Araújo. Trata-se de um diagnóstico in- D E MO C RAC I A E M F O CO 52 felizmente preocupante e que não pode ser sonegado. Em perspecti- va comparada, o efeito marginal da adoção da lei de cotas de gênero no Brasil precisa ser constantemente pautado em eventos de difusão científica para romper os muros da universidade e retroalimentar a militância por mais ações consistentes a favor da entrada das mulhe- res na política. Marieta de Moraes Ferreira, por sua vez, fez uma incursão sobre a complexidade da política carioca, refletindo sobre o impacto da fusão do antigo estado da Guanabara ao Rio de Janeiro. Além de identificar a influência do redesenho administrativo sob as estratégias das elites políticas locais, a palestra encampou a necessidade da retomada dos estudos em profundidade das elites políticas carioca e fluminense. De fato, quando se trata de examinar a esfera política, a agenda tem sido dominada pelo estudo das instituições políticas brasileiras. Não se ob- serva o mesmo empenho na investigação paralela dos atores políticos, salvo as contribuições dos especialistas no estudo das elites no país, normalmente mais focadas em projetos de pesquisa centrados no âm- bito federal (Perissinotto e Codato, 2015). CA P Í TU LO 4 Partidos e eleições no Brasil do pós-1988 Jairo nicolau É sempre um desafio dar alguma inteligibilidade a um sistema par- tidário com as feições que o sistema partidário brasileiro tem. Em uma contagem que fiz em 2012, cheguei a 88 legendas diferentes con- correndo a eleições desde a primeira eleição pós-ditadura em 1985. Atualmente o Brasil têm 32 partidos registrados no TSE. Mas o desa- fio do estudioso de competição política é dar inteligibilidade não ao número de legendas, mas à natureza da competição. O que podemos dizer sobre os partidos políticos brasileiros? Que tipo de competição se estabeleceu aqui? Quais são os partidos relevantes, os que efetiva- mente influenciam o jogo político? O Brasil tem uma série de singula- ridades, nosso tipo de competição política tem uma série de caracte- rísticas próprias que tentarei, rapidamente, assinalar aqui. Penso que três aspectos são fundamentais para entendermos a na- tureza da competição política no Brasil. O primeiro é a fragmentação. Esse nome estranho para quem não é cientista político tem a ver com o grau em que a competição é concentrada ou dispersa entre as uni- dades. Posso ter 100 partidos, mas dois deles concentrarem 90% da representação. Posso ter 10 partidos em um Legislativo e cada um de- les ter 10% da representação. Para o estudioso de sistemas partidários, sempre foi um desafio definir quais são os partidos realmente funda- mentais no jogo. O Reino Unido tem mais de 20 partidos inscritos, D E MO C RAC I A E M F O CO 54 mas se olharmos a Câmara dos Comuns, ela tem aproximadamente cinco legendas. Uma forma de fazer isso é mensurar o grau de disper- são ou de concentração do poder no Legislativo. Em um treino de memória, em um segundo aspecto, eu tentava lembrar quantos partidos brasileiros conhecia; um exercício de cien- tista político nerd. Descobri que tem um partido cujo nome é Agir. Hoje, eu sou capaz de citar uns 20, 25 partidos, mas não chego a enu- merar, de cor, os 32 registrados. Mesmo nessa barafunda, podemos observar algo curiosíssimo: a disputa presidencial é superconcentra- da. Por que o Brasil não seguiu a França e virou uma democracia em que cada legenda se apresenta no primeiro turno e depois cria coali- zões para disputar o segundo turno? Por que estamos diante de uma eleição que talvez seja a mais concentrada da história recente, em ter- mos de somatório dos dois primeiros, quando temos tantas legendas recebendo recursos consideráveis do Fundo Público? E, por fim, o último aspecto é a ideologia. Fala-se muito de direita, esquerda, centro. Mas como podemos organizar as legendas nessas três dimensões? Os analistas valem-se dessas classificações de forma corri- queira. Embora para a população tenha muito menos importância do que para nós, é sempre bom lembrar. Nós olhamos para o mundo parti- dário de maneira muito mais sofisticada, do ponto de vista de posições ideológicas, do que as pessoas comuns. As pesquisas de opinião, em geral, indicam que 40% a 50% de pessoas dizem que não sabem como se classificam no eixo direita-esquerda. E se for ver a consistência da autoclassificação, as coisas ficam ainda mais confusas. Boa parte dos eleitores que se definiam como de direita votaram em Haddad para pre- sidente em 2018.1 Número significativo de eleitores de direita estão no Nordeste e votam no PT. Ou seja, tem algum problema com a autoclas- sificação. Mas vamos trabalhar com o que sabemos. Gostaria de discutir três dados. Primeiro, a questão da alta frag- mentação partidária (gráfico 1). No mundo, não há democracia com uma dispersão partidária tão alta quanto a brasileira. Ou seja, esta Câmara eleita nas eleições de 2018 é a Câmara Baixa com maior dis- persão partidária da história mundial. Nunca houve nenhuma elei- ção democrática que produziu um Legislativo nacional com tanta dispersão de poder. Nós chegamos a todos os recordes possíveis de 1 N.O.: Para um estudo detalhado da corrida presidencial de 2018, ver Nicolau (2020). pa rti D o s e e l e i çõ e s n o b ras i l D o pó s- 1988 55 dispersão. Desde 1994, um partido não ultrapassa 100 cadeiras na Câmara dos Deputados, o equivalente a 20% das cadeiras. Convido todos a avaliar a composição da Câmara dos representantes de vários países. Este exercício revelará que o partido majoritário tem 30%, 40% das cadeiras legislativas. Não há, além do Brasil, um quadro em que o partido do presidente eleito detém 52 cadeiras em um total de 513 assentos, o que significa apenas 10% da representação. Gráfico 1 Número efetivo de partidos na Câmara dos Deputados (Brasil, 1987-2022) Fonte: Elaboração própria a partir de dados recolhidos no site: www.tcd.ie/Political_Science/peo- ple/michael_gallagher/ElSystems/index.php. As barras do gráfico 1 mostram o número efetivo de partidos (NEP), índice utilizado por cientistas políticos para medir a con- centração-dispersão partidária em um legislativo. A alternância de cores serve apenas para mostrar cada legislatura separadamente.2 É possível observar as variações em uma mesma legislatura, porque os políticos trocam de legenda e a distribuição do poder parlamentar é modificada. O que mais chama a atenção no gráfico é a subida ascendente, sobretudo na legislatura que foi eleita em 2010, conco- mitante à eleição da presidente Dilma Rousseff (2011-16). E agora, com o governo Bolsonaro, que começou em 2019. A legislatura elei- ta em 2014 é a segunda mais fragmentada da história das eleições mundiais. Temos duas eleições em sequência que produziram um 2 N.O.: O NEP foi originalmente desenvolvido por Marku Laakso e Ren Taagepera em artigo de 1979. Ver Laakso e Taagepera (1979:3-27). D E MO C RAC I A E M F O CO 56 Legislativo extremamente disperso. O Brasil é um país que não tem partido dominante, diferente da maioria das democracias. Essa é a primeira característica. Agora, o que aconteceu na barra de 2022? Uma queda brutal. A legislatura é a mesma. O que houve? Deputados de pequenos par- tidos de direita migraram em massa para três grandes partidos de direita. Ou seja, a concentraçãodo poder nessa legislatura está ocor- rendo em torno do Partido Progressista (PP), do Partido Libertador (PL) e dos Republicanos. Essas três legendas têm hoje 171 deputa- dos. Houve uma migração do Partido Trabalhista Brasileiro (PTB), do Partido Republicano da Ordem Social (Pros), do Podemos, todos esses pequenos partidos, para os partidos maiores, fazendo com que a fragmentação partidária diminuísse. Os três partidos, hoje, apoiam Bolsonaro. Temos uma mudança muito importante nessa legislatura, que foi a concentração de poder da direita. A esquerda concentrou poder por intermédio das federações.3 Mas eu não refiz a mensuração da fragmentação, depois da vigência das federações; os partidos que estão federados devem ser contados como uma única unidade. Esta- mos observando um processo de compactação da política brasileira. A esquerda, pelas federações, e a direita, pelas migrações. Provavel- mente veremos, a partir de 2023, uma Câmara com o poder parla- mentar muito mais concentrado. O segundo dado que gostaria de discutir diz respeito à tabela 1, que mostra o percentual de votos dos dois principais partidos em cada eleição presidencial. Observamos uma bipolarização; prefiro esse termo, apesar de ele ser pouco usado, porque o termo bipolar está mais associado ao campo da saúde mental, mas a polarização 3 N.O.: Até 2016, os partidos políticos brasileiros podiam se coligar tanto para as elei- ções proporcionais (isto é, para os cargos das casas legislativas: vereadores e deputados estaduais e federais) quanto para as disputas majoritárias (vale lembrar: aquelas utili- zadas para a escolha dos prefeitos, governadores, senadores e presidente da Repúbli- ca). Era possível desfazer as alianças firmadas nessas coligações eleitorais logo após a realização dos pleitos. As coligações para as eleições proporcionais foram proibidas no país em 2017, prosseguindo válidas apenas para as disputas majoritárias. Em setem- bro de 2021, a aprovação de uma reforma eleitoral instituiu a criação das federações partidárias. As duas grandes novidades das federações foram, de um lado, permitir que partidos se unam para apoiar qualquer cargo e, de outro lado, o seu caráter pere- ne, considerando que as alianças criadas nas federações precisam permanecer durante todo o mandato a ser conquistado. Para saber mais, consulte a Lei no 14.208, de 28 de setembro de 2021. pa rti D o s e e l e i çõ e s n o b ras i l D o pó s- 1988 57 pode ser tripla, quádrupla. A polarização é quem segue em polos. O que caracteriza o Brasil é o fato de ser uma competição de duas unidades fortes. E de um lado sempre está o Partido dos Trabalha- dores (PT). Na segunda coluna temos o percentual de votos que o PT teve no primeiro turno das eleições presidenciais. Na terceira coluna temos o percentual de seu principal opositor — primeiro foi o Partido da Reconstrução Nacional (PRN), depois o Partido da So- cial Democracia Brasileira (PSDB) e, na última eleição, o Partido Social Liberal (PSL). Observem que os outros partidos — excluindo 1989, que foi aquela eleição fundadora da Nova República — nunca ultrapassaram os cinquenta pontos. Tabela 1 Percentual de cadeiras no primeiro turno das eleições presidenciais (1989, 2018) Ano PT PRN/PSDB/PSL Outros 1989 17 30 53 1994 27 54 19 1998 32 53 15 2002 46 23 31 2006 49 42 9 2010 47 33 20 2014 42 34 24 2018 29 46 25 Fonte: Elaboração própria com dados do TSE. Curiosamente, a eleição mais concentrada da história, desde 1945, foi a de 2006, em que os dois candidatos, do PSDB e PT, tiveram 91% de votos no primeiro turno. Sabe quem eles eram? Lula versus Alck- min. Foi o melhor resultado que um candidato derrotado obteve no primeiro turno. Depois, a história fica ainda mais curiosa porque Geraldo Alckmin conseguiu perder, em números absolutos, votos no segundo turno. Ele teve menos votos absolutos no segundo turno do que no primeiro. Mas isso é outra história. Então, temos Bolsonaro versus Haddad, que representou o pior desempenho eleitoral do PT depois de Lula em 1994. E reparem como o Lula passou para o segun- D E MO C RAC I A E M F O CO 58 do turno em 1989 só com 17 pontos. Foi uma eleição muito fragmen- tada. Collor obteve apenas 30%. É quase um paradoxo, e acho que essa tabela mostra claramente isso. Como temos um mundo partidário tão fragmentado no âmbi- to parlamentar e eleições presidenciais tão concentradas? Se obser- varmos para governos estaduais, o padrão de concentração se repete. Não são os mesmos atores nacionais. Se olharmos a eleição no Rio de Janeiro, são sempre dois candidatos. São Paulo também… Enfim, tem alguma coisa na natureza da eleição presidencial no Brasil que leva a competição a ficar com esse formato e expulsa as pequenas legendas. Esta é outra característica do sistema partidário brasileiro: ele com- bina a hiperfragmentação partidária com a concentração na disputa presidencial. Por fim, o terceiro dado que gostaria de discutir diz respeito à ques- tão da ideologia. Para um cientista político, classificar os partidos em direita, centro e esquerda é uma grande dificuldade. Como devemos proceder? Classificando o programa? Os partidos não têm programa, que é apenas publicado na época da sua fundação. Os programas de governo apresentados na campanha praticamente são ignorados pelos eleitores e pouco discutidos na sociedade. Pode-se dizer que os pro- gramas não são uma boa fonte para conhecer as ideias dos partidos. Uma opção alternativa para classificar os partidos seria avaliar o com- portamento deles em votações de grandes temas realizadas na Câma- ra dos Deputados. É uma boa opção, mas exige classificar as origens desse comportamento e os projetos em tópicos que são mais à direita e à esquerda. Esse exercício é possível, mas não tem sido o caminho trilhado pelos pesquisadores. O que, em geral, os pesquisadores de outros países e do Brasil fa- zem? Pedem a um grupo de estudiosos para classificar os partidos em uma escala de 10 pontos, onde o 1 é reservado para a extrema- -esquerda e o dez, para a extrema-direita, ou vice-versa. Com base em um estudo de 2010, classifiquei os partidos brasileiros. Mas eles também mudam no tempo. Uma classificação feita hoje do PT ou do PSDB é muito diferente do que esses partidos eram 20 anos atrás. O PSDB era muito mais à esquerda, muito mais progressista, o PT era muito mais à esquerda, muito menos centrista do que é hoje. Os partidos mudaram. pa rti D o s e e l e i çõ e s n o b ras i l D o pó s- 1988 59 Gráfico 2 Percentual de cadeiras na Câmara dos Deputados (1986, 2018) Fonte: Elaboração própria com dados do TSE. O gráfico 2 mostra a composição da Câmara dos Deputados ao longo do tempo. A esquerda inclui PT, Partido Comunista do Brasil (PCdoB), Partido Democrático Trabalhista (PDT), Partido Socialista Brasileiro (PSB) e Partido Socialismo e Liberdade (PSOL), legendas que elegeram pelo menos um deputado. O centro é formado pelo Mo- vimento Democrático Brasileiro (MDB), PSDB, Partido Popular Socia- lista (PPS) e Partido Verde (PV). Todo mundo que não é esquerda nem centro ficou na direita. Claro que simplifiquei o exercício para apresen- tar esta palestra, mas queria apenas observar uma tendência geral. O que observamos aqui? A linha contínua, que é a do centro, sai lá de cima, de cerca de 60%, e vai despencando. O Brasil está — sem tro- cadilho — perdendo o centro. O Brasil está ficando descentrado. A can- didata que representa esse mundo agora é a Simone Tebet. Esse mundo foi fundamental no período de transição e consolidação democrática. Tantos nos governos do PSDB como do PT, esse campo foi fundamen- tal para a governança na Câmara dos Deputados. Mas o centro perdeu força no Legislativo. O PSDB, MDB, Cidadania e esses outros, se so- marmos todos os partidos mais moderados, que se aproximam dessa posição, hoje não chegam a 100 cadeiras. O PSDB tem 20 e poucas. O que está acontecendo com o PSDB é um desastre total, do ponto de vista da sua história.Por fim, podemos observar a evolução da esquerda (linha tracejada), que sai lá de baixo e sobe. Ela começa em 1986 com 10%, mas não passa, nem durante os governos Lula, de 50%. Depois cai e fica estagnada. Atualmente, 30% da Câmara é de esquerda. 60% 50% 40% 30% 20% 10% 0% 1986 1990 1994 1998 2002 2006 2010 2014 2018 centro direita esquerda ideologia D E MO C RAC I A E M F O CO 60 Reparem o que aconteceu a partir de 2010. No Brasil, o Legislativo foi para a direita mesmo. E isso tem a ver com o declínio do centro, a ascensão de forças políticas mais reacionárias e a grande ascensão do Bolsonaro. Falamos muito do bolsonarismo como um fenômeno na disputa presidencial, mas esquecemos que o bolsonarismo destruiu o centro. Essa eleição é a expressão dessa nova fase. A bipolarização que apresentei antes — que não era necessariamente esquerda/direita, porque o PSDB ocupava mais um lugar de centro que trazia a direita do que pro- priamente um partido de direita — dá lugar a um cenário em que a di- visão passa a ser direita/esquerda, sem centro. É um novo mundo. E isso deve ter consequências para a governabilidade nos próximos anos. Para resumir, temos essas três características. É um sistema par- tidário hiperfragmentado, com tendências, atualmente, à concentra- ção. É um sistema que não consegue quebrar a polarização, talvez por conta do petismo e antipetismo. Sempre tivemos eleitores do PT e anti-PT: nunca falamos em conservadores e liberais ou conservadores e trabalhistas, como na Inglaterra, ou republicanos e democratas. No Brasil, trata-se de ser petista ou antipetista. E agora falamos de lulis- tas, ou petistas, e bolsonaristas. Tem um nome próprio, mas não tem uma legenda. Bolsonaro não conseguiu organizar o Aliança Brasil, mas conseguiu organizar em torno dele três partidos de direita.4 É um líder popular de direita. Mesmo com toda a forma ainda pouco rigorosa com que tratei os dados da composição parlamentar, acho que não ficaria muito diferen- te com outra classificação. O Brasil virou realmente um país com uma Câmara mais conservadora. Ganhe Lula ou Bolsonaro, eles terão de li- dar com isso. Por que a Câmara é tão dócil com Bolsonaro? Porque ela é conservadora. É a Câmara dos Deputados mais conservadora que nós ti- vemos desde a redemocratização. Então, ele encontrou um terreno fértil. Assim, concluo. Agradeço. Comecei sem fazer os agradecimentos e termino agradecendo e elogiando esta parceria bacana entre a Alerj e o CPDOC. Acho que foi uma iniciativa fantástica. Agradeço por ter sido lembrado para estar nessa mesa com pessoas que admiro tanto, com a Marieta e a Clara, minha colega Jaqueline, e agradeço também a presença de vocês. Muito obrigado. [Aplausos]. 4 N.O.: Em novembro de 2019, ao anunciar sua saída do PSL, Bolsonaro declarou a intenção de fundar um novo partido: o Aliança Brasil. Entretanto, o propósito sucum- biu conforme o novo grupo político capitaneado pelo presidente da República mos- trou não ter meios de atender aos requisitos mínimos para criação do novo partido estipulados pela Lei no 9.096, de 1995, e pela Resolução no 23.571, de 2018, do TSE. CA P Í TU LO 5 Baixa representação de mulheres no legislativo brasileiro e a relação com sistemas partidários e eleitoral clara araújo* Obrigada à FGV e à Alerj pelo convite. É uma honra participar desta mesa com colegas que prezo muito e respeito. Sou uma estudiosa da questão de gênero e participação política, mas não sou especialista em partidos políticos. De qualquer maneira, espero contribuir aqui com um pouco do que venho estudando. Muito obrigada, Jaqueline. Parto aqui do título de minha exposição: “A baixa representação das mulheres no Legislativo e a relação com o sistema partidário”. Apresentarei algumas tabelas para vocês terem uma ideia do pro- blema, porque, embora se fale muito nisso, talvez seja interessante mostrar os dados, que já são muito conhecidos, mas às vezes não nos damos conta de como é baixa essa representação. Começo chamando atenção para o título do seminário: Democracia em foco, e o que ele tem a ver com a participação das mulheres. Se estivéssemos em uma situação normal, esse já seria um pro- blema. Mas nós não estamos em um período democrático normal, * Agradeço ao CNPq e à Faperj que, por meio de seus programas de fomento, contri- buíram para minhas pesquisas na área de gênero e política. D E MO C RAC I A E M F O CO 62 estamos diante de alguns riscos para a nossa democracia, conforme temos acompanhado. Então a pergunta é: o que isso tem a ver com as mulheres? Primeiro, registrar que os estudos sobre gênero e re- presentação política têm contribuído muito, sobretudo nas últimas décadas, para uma análise mais crítica do conceito de democracia.1 Eles apresentam uma abordagem que chama atenção não só para as questões do passado, da negação da cidadania, entre outros as- pectos, mas, sobretudo, jogam luz sobre a contemporaneidade e a pergunta: o que define um sistema como democrático? Dado que, se mulheres são metade da humanidade ou, em parte dos países, mais do que 50% do eleitorado, mas têm, como no caso do Brasil por exemplo, 15% de representação, em que medida podemos falar de democracia? Tentar dar uma condição mais substantiva à demo- cracia tem sido uma das preocupações desses estudos. Compreender não só os fatores históricos que levaram a essa diferença na políti- ca representativa, mas os fatores que continuam reproduzindo esse processo. Por isso penso ser importante situar o Brasil em relação a um contexto mais amplo. O gráfico 1 chama atenção para a gravidade da situação no Bra- sil. Se pensarmos em termos gerais, temos um conjunto de elemen- tos já estabelecidos que ajudam a explicar essa diferença, esse padrão, que não é só do Brasil, e que está relacionado com esse fato histórico. O conjunto de elementos que continuam sendo obstáculos está rela- cionado com a própria ação do que conhecemos como a divisão de papéis, com o lugar das mulheres na família e com essa dualidade entre espaço público/privado. Temos a cultura política, que se junta à cultura de gênero, e que muitas vezes não tem a ver com o nível de desenvolvimento de um país. 1 E são vários, mas entre esses menciono alguns: Goertz e Mazur (2008), especialmen- te cap. 1; Miguel e Biroli (2012). ba i x a r e p r e s e n tação D e M u l h e r e s n o l e g i s l ati vo b ras i l e i ro 63 Gráfico 1 Candidatas e eleitas ao cargo de deputado federal (Brasil, 1994-2018) Fonte: Elaboração própria com base nos dados do TSE. Um dado muito interessante mostrado por várias pesquisas é o de países extremamente desenvolvidos e inclusive mais escolarizados, e que têm não só baixa participação de mulheres em parlamentos, em representação, mas também em condições de trabalho.2 Cito o caso do Japão, que é muito emblemático na questão dos valores, da cul- tura. É país altamente desenvolvido, mas tanto na política como na divisão sexual do trabalho tem baixos índices de mulheres na política e altos de mulheres como responsáveis pelo trabalho doméstico. Há uma história de exclusão política generalizada, assim como de sobre- carga do trabalho doméstico. Mas, se tudo isso é comum, a pergunta é: nesse caso, por exemplo, o que diferencia o Brasil mesmo de seus vizinhos latino-americanos? Além de alguns fatores que já são muito conhecidos — não só esses déficits que citei — e que também atingem o país, temos algumas questões relacionadas com nosso histórico de interrupções democráticas, de oligarquias partidárias e de um proces- so muito complicado de sistemas partidários e sistema eleitoral. 2 Um estudo bem interessante, revelador e que ainda serve de referência é o de In- glehart e Norris (2003). 6,15 10,37 11,52 12,66 19,44 31,81 32,22 6,24 5,65 8,19 8,77 8,77 9,94 15,01 0 5 10 15 20 25 30 35 1994 1998 2002 2006 2010 2014 2018 Candidatas Eleitas Linear (Candidatas) Linear (Eleitas) D E MO C RAC I A E M F O CO 64 Entretanto,voltando ao foco da mesa, dois pontos têm sido muito destacados como fatores que também ajudam a compreender por que um país é diferente do outro em relação à presença de mulheres em parlamentos. Além dos aspectos relacionados com o passado histó- rico da cidadania e da esfera doméstica, temos aqueles relacionados com os sistemas de representação política, eleitorais e partidários. Ou seja, as dimensões políticas institucionais. Uma série de estudos com- parados — realizados desde a década de 1980 — mostra, usando o que se chama de “famílias de sistemas de representação política”, que, onde existem sistemas proporcionais, as mulheres tendem a ter mais chan- ce de ingressar na política e nos parlamentos.3 Não só as mulheres, mas os chamados outsiders, isto é, grupos que tradicionalmente não estão representados ou estão de forma marginal, isto é, muito longe de qualquer correspondência com seu peso populacional ou presença em outros espaços sociais. Os sistemas proporcionais permitem que os partidos arrisquem mais, permitem uma diversidade de represen- tação, quando comparados aos sistemas majoritários, por exemplo. Esse é um dado bastante estudado. Mas o Brasil tem sistema propor- cional; então, como se explica nossa situação? Tentemos elencar ou- tros aspectos. O segundo ponto muito discutido é a questão do sistema par- tidário. Alguns estudos tentam comparar os partidos com base em suas características,4 sua organização interna, programa, relação com eleições, entre outros aspectos, ao passo que outros comparam mais os sistemas partidários, com um olhar particular sobre tamanho e fragmentação partidária. Este último ponto também está relaciona- do com o sistema de representação e eleitoral. Segundo a literatura, sistemas de média fragmentação seriam mais favoráveis à inclusão das mulheres, ao passo que sistemas bipartidários ou sistemas ma- joritários, por exemplo, tendem a ser muito difíceis para a inclusão das mulheres, porque são poucos partidos já oligarquizados e pouco amigáveis a substituições de quem já está testado. Ao mesmo tempo, 3 Importante lembrar que, basicamente, há três tipos de sistemas de representação política: os proporcionais, onde as vagas são distribuídas entre maioria e minorias, proporcionalmente aos votos, os sistemas mistos, onde se elege metade dos parlamen- tares de forma proporcional e a outra metade de forma majoritária (ou seja, o(s) mais votado(s) leva(m) a(s) vaga(s) do distrito), e o majoritário. 4 Ver, por exemplo, Costa, Bolognesi e Codato (2013). ba i x a r e p r e s e n tação D e M u l h e r e s n o l e g i s l ati vo b ras i l e i ro 65 sistemas proporcionais de alta fragmentação, como é o caso do Brasil, são desfavoráveis, não só pelo gap existente e pela elevada oferta para o eleitor, dificultando, inclusive, a visibilidade e escolhas, mas também é difícil para as mulheres conseguirem adentrar partidos competiti- vos, e quando ingressam nos partidos menores — que é onde mais entram —, esses partidos, normalmente, elegem uma, duas pessoas no máximo, em cada estado. E nesses casos a pergunta é: quem será eleito? Em geral, homens. Por isso considera-se que os sistemas muito fragmentados operam em sentido contrário às mulheres. No entanto, em termos gerais, algum progresso foi alcançado na última década. De fato, de 2010 para cá, muito se avançou em algumas regiões. Qual tem sido o diferencial do ponto de vista internacional, mas, sobretudo, da América Latina? Veremos qual é a posição do Brasil em termos de presença de mulheres nos parlamentos ante os países da América Latina para tentarmos entender esse diferencial. Antes disso, cabe considerar um terceiro aspecto e que se relaciona com as explicações para o diferencial que veremos na América Latina, quando inserimos o caso do Brasil. É ponto que tem sido considerado muito importante nas análises comparativas: os tipos de listas partidárias no processo eleitoral. Existe certo reconhecimento de que sistemas de lista aberta, tais como os do Brasil — que é completamente aberta, inclusive com um voto só e onde se vota no indivíduo candidato —, são menos favoráveis às mulheres do que quando comparados com sistemas de lista fechada ou com sistemas em que se tem, às vezes, a lista aberta, mas flexível, em que é possível dar dois votos a candidatos dentro de um mesmo partido. Isso dada a questão da competição intrapartidária e aos recursos financeiros que têm que ser mobilizados, uma vez que boa parte da responsabilidade da campanha é do candidato que se dis- põe a concorrer. Aqui então está a junção do sistema eleitoral brasileiro com o sistema partidário e com a forma de representação. O que tem sido feito a partir das evidências sobre a desvantagem das mulheres e desse gap em comparação aos homens? A implantação de uma política que já é razoavelmente conhecida: a adoção das co- tas eleitorais. Podemos dizer que, nas três últimas décadas, o grande diferencial e marco, no mundo em geral, foi a disseminação e a ado- ção das cotas. No Brasil, nós temos 26 anos de adoção das cotas. E a grande questão é: as cotas, no Brasil, quase não deram resultado, ou só começaram a dar algum resultado a partir de 2018. D E MO C RAC I A E M F O CO 66 Apresentarei alguns dados, para que vocês possam entender um pouco essa questão do debate atual sobre o que está consolidado na literatura, entender por que as cotas não deram resultado no Brasil e o que está de fato acontecendo. No gráfico 2, nas colunas de 1994, ve- mos dados de antes das cotas. A coluna cinza escuro é o índice de can- didaturas de mulheres, e a cinza claro, de eleitas. Observem a situação, a cota no Brasil é de 30%. Nós só conseguimos chegar a essa cota em 2014, no caso de deputado federal. Mas notem a linha de tendência. Não consta no gráfico, mas se considerarmos desde a primeira eleição pós-ditadura, penso que houve um salto em três grandes momentos no Brasil. Um, em 1986, que foi a primeira eleição, a da redemocra- tização; o segundo momento foi o salto em 2002, de 1998 para 2002, do ponto de vista de incremento foi significativo e foi a eleição de Lula; e o terceiro salto, paradoxalmente, foi em 2018, com Bolsonaro. A grande pergunta é: o que aconteceu? Uma inflexão, com mudanças políticas e ideológicas. Gráfico 2 Candidatas e eleitas — Assembleias Legislativas (Brasil, 1994-2018) Fonte: Elaboração própria com base nos dados do TSE. Sobre as Assembleias Legislativas, conforme o segundo gráfico, é mais ou menos a mesma coisa: a cota de candidaturas só foi realmente alcançada em 2014. Vejam que elas foram estabelecidas em 1996, no 7,18 12,94 14,51 14,22 22,77 31,43 32,02 7,85 10,01 12,56 11,61 13,03 11,33 15,49 0 5 10 15 20 25 30 35 1994 1998 2002 2006 2010 2014 2018 Candidatas Eleitas Linear (Candidatas) Linear (Eleitas) ba i x a r e p r e s e n tação D e M u l h e r e s n o l e g i s l ati vo b ras i l e i ro 67 Brasil, primeiro para os municípios; em 1998, para as assembleias; e só em 2018, também, na última eleição, nós conseguimos chegar a 15% de eleitas. O terceiro gráfico mostra que essa situação se repe- te nas eleições municipais. Nos municípios as candidaturas crescem mais em 2012, mas só em 2020 chegamos a 16% de eleitas. Gráfico 3 Candidatas e eleitas às Câmaras Municipais (Brasil, 1996-2020) Fonte: Elaboração própria com dados do TSE. Na tabela seguinte, temos a posição do Brasil ante os países da América Latina em relação às últimas eleições em cada país. Dado que o Haiti não realiza eleições há algum tempo, o Brasil, atualmente, ocupa o último lugar no ranking da América Latina. E nós temos um percentual de 15%. Não disponho de muita informação sobre Cuba, mas lá são 53% de mulheres no parlamento nacional. O restante está na faixa dos 40%. A terceira coluna mostra um dado que acho impor- tante e gostaria de destacar. Esses países têm um histórico de cotas que começou na década de 1990. O que verificamos hoje, na década de 2020?A maior parte dos países já avançou para leis de paridade. Só um país segue não tendo nenhuma lei, a Guatemala. No Brasil, atualmente, a cota é de 30%/70%. Mas tem uma característica que não 10,87 19,14 22,13 22,07 31,77 32,46 34,76 11,1 11,6 12,7 12,5 13,3 13,5 16 0 5 10 15 20 25 30 35 40 1996 2000 2004 2008 2012 2016 2020 Candidatas Eleitas Linear (Candidatas) Linear (Eleitas) D E MO C RAC I A E M F O CO 68 está nessa informação e se relaciona com o terceiro aspecto do sistema eleitoral que destaquei antes: a maior parte desses países adota a lista fechada. Tabela 1 Cotas e paridade na América Latina: características e regras Ranking IPU País % Mulheres Regra: Cota ou Paridade Mandato de posição Sanção 2 cuba 53,4 s/i - - 3 nicarágua 51,7 paridade alternância não 4 México 50,0 paridade alternância sim 8 costa rica 47,4 paridade alternância sim 12 bolívia 46,2 paridade sim sim 16 argentina 44,8 paridade alternância sim 28 peru 40,0 paridade alternância* sim 34 equador 38,7 paridade alternância sim 43 chile 35,5 40/60 não sim 66 colômbia 35,5 30/70 não sim 68 Jamaica 28,6 s/i - - 74 rep. Dominicana 27,9 33/67 sim sim 77 el salvador 27,4 30/70 não sim 79 honduras 27,3 paridade alternância sim 88 uruguai 24,2 30/70 sim sim 102 panamá 22,5 paridade não sim 103 venezuela 22,2 40/60 alternância s/i 121 guatemala 19,4 não não não 131 paraguai 17,5 20/80 não não 142 brasil 15,0 30/70 não sim s/D haiti - - - Fonte: Elaboração própria com base em alguns dados das organizações IPU e IDEA e subsídios de Psicopo (2018). ba i x a r e p r e s e n tação D e M u l h e r e s n o l e g i s l ati vo b ras i l e i ro 69 Esse é aquele elemento para o qual chamei atenção anteriormente. A lista fechada tem sido uma grande aliada na luta das mulheres, por- que permite que elas se organizem e tenham mais força nos partidos e que haja leis com sanções e mandato de posição. O que é o mandato de posição? Se a cota é 30%, por exemplo, a lista será obrigatoriamente estruturada nas ordens de dois homens e uma mulher ou vice-versa. É nessa linha que estamos, e fomos avançando, em muitos países, para a chamada paridade, em vez de cota. Ou seja, de 50%/50%. E temos um outro fato: é que todos os países foram estabelecendo sanções. Então, te- mos dados que nos ajudam a explicar por que o Brasil não andou muito. Esse quadro vem sendo ampliado internacionalmente, mas na América Latina tem sido quase como um passe de mágica, bem inte- ressante do ponto de vista das experiências. Algumas razões já estão consolidadas na literatura. A primeira, já falada: o sistema de lista fe- chada permite a eficácia da cota, enquanto o sistema de lista aberta não funciona muito. Por quê? Porque ser candidato não diz nada sobre ser eleito. Ao passo que se você está em uma lista fechada, tem uma pressão e é colocado em um ranking preferencial, garante uma chance maior de ser eleito. Um segundo elemento que tem sido muito importante nesse crescimento, não só na América Latina, mas em várias regiões do mun- do, são as cotas. Se discutirmos as mulheres e a representação política, é quase que uníssono: temos de incluir o debate sobre as cotas, hoje, na literatura internacional. Elas explicam muito do crescimento numérico. E, como dito, se relacionam com os tipos de lista. No Brasil, além da experiência das cotas em lista aberta, e por causa disso, também, três pontos têm sido mais consolidados pela li- teratura. O primeiro é a necessidade de se estabelecerem as sanções aos partidos políticos que não obedecerem ao preenchimento desses percentuais mínimos. Um dado interessante encontrado na literatura é que, no caso do Brasil, muitos partidos apoiam as cotas apenas for- malmente, com algumas exceções, que são mais de esquerda; e esse posicionamento tem sido muito diferente da média do comportamen- to dos partidos em muitas regiões do mundo, inclusive na América Latina, em que mesmo os partidos de direita aderiram às cotas como uma espécie de efeito contágio. Isso se deve não só à agenda de ingres- so, ao apelo público, mas também a certa penetração das mulheres nesses partidos e à pressão que exercem em seu interior. Discute-se também sobre como essa agenda perdeu um pouco da característica D E MO C RAC I A E M F O CO 70 inicial de ser um tema apenas da esquerda, e não da direita. Outro tópico de discussão é exatamente como a direita tem usado a inclusão das mulheres no parlamento para fazer política por essa via, muitas vezes contrária à agenda identificada como “das mulheres” ou a agen- da feminista. O que está em linha com os debates sobre como as de- mocracias estão se modificando ou até mesmo morrendo por dentro de suas próprias instituições. Além disso, no caso do Brasil, outro elemento destacado junto ao sistema partidário — e acho particularmente importante, porque ex- plica um pouco o caso do relativo fracasso das cotas no Brasil quando comparadas a outros países — diz respeito ao que vem sendo identifi- cado como resistência ou mesmo descaso dos partidos políticos com políticas de investimento no recrutamento e incorporação de mulhe- res. Isso se explica em parte pelo problema do tipo de lista eleitoral, já mencionado. Mas também devido à pequena presença de mulheres nas direções partidárias, nacionais e regionais. Entre as décadas de 2000 e 2010, disseminou-se, como estratégia dessas organizações, a criação de Secretarias de Mulheres. O Brasil, hoje, tem uma legislação que obriga os partidos a terem Secretarias de Mulheres nas instâncias permanentes. Mas o que tem sido verificado é que, na realidade, as Secretarias de Mulheres têm se tornado espaços formais, quase gue- tos. Contudo, em geral, elas não estão incluídas nos órgãos decisórios mais estratégicos. Esse é outro elemento que ajuda a explicar o porquê de persistirem poucos investimentos em políticas de igualdade de gê- nero e na seleção de candidaturas femininas. No quadro 1 podemos ver alguns dados sobre a situação do Brasil, por exemplo, a porcentagem do eleitorado e de filiados nos partidos políticos. Claro que ser filiado a um partido não é uma variável mui- to relevante para medir ativismo ou identificação ideológica, mas diz alguma coisa além de apenas dar o nome para a sigla. Segundo o TSE, 46% dos filiados a partidos políticos são mulheres. Estamos fazen- do um trabalho junto com a Câmara dos Deputados,5 que é mapear os diretórios nacionais e estaduais dos partidos no país. O dado que 5 Participo atualmente do Observatório da Participação Política das Mulheres da Câ- mara dos Deputados, que congrega pesquisadores, pessoas de ONGs que trabalham com o tema e integrantes da Câmara (técnicos da Casa e algumas parlamentares). Entre as ações em desenvolvimento, o Observatório está mapeando e atualizando in- formações sobre presença de mulheres em órgãos dirigentes partidários. ba i x a r e p r e s e n tação D e M u l h e r e s n o l e g i s l ati vo b ras i l e i ro 71 apresento a seguir é relativo ao ano de 2018. Ele nos indica a presença de apenas 13,6% de mulheres em executivas de diretórios nacionais e 19% em executivas de diretórios estaduais. Então, temos uma junção de fatores que operam de modo muito complicado, dado que estudos vêm identificando, por exemplo, que onde se consegue de fato avançar em relação à legislação pró cotas em direções e exercer efetiva pressão sobre os partidos é nas instâncias diretivas, nas executivas, nos ór- gãos decisórios de poder. E no Brasil as mulheres estão pouco nessas instâncias. A isso pode ser adicionado outro elemento que acho bem importante no caso da América Latina e alguns veem como positivo, outros, como negativo, que é o que podemos chamar de judicialização do processo político partidário. Quadro 1 Alguns dados sobre mulheres e partidos políticos (Brasil) % de mulheres no eleitorado (abril de 2022): 52,83% % de eleitores filiados aos partidos políticos brasileiros (abril de 2022): 16,2% % de mulheres entre os filiadosaos partidos políticos (julho de 2022): 46% % de mulheres ocupando cargos em executivas nacionais de partidos no ano de 2018: 13,6% % de mulheres ocupando cargos em executivas estaduais de partidos no ano de 2018: 19,8% Fonte: Elaboração própria a partir de consulta a artigos de periódicos, página do Tribunal Superior Eleitoral e levantamento preliminar do Observatório Nacional da Mulher na Política da Câmara dos Deputados. Sobre a judicialização, na análise do efeito das iniciativas do judi- ciário na América Latina, que temos como referência,6 predominam porcentagens entre 40%, 50% de mulheres nos parlamentos, e um ator muito relevante para explicar esses números tem sido o sistema de justiça eleitoral. Não só para fazer valer as legislações existentes, é mais do que isso. Na realidade, os sistemas de justiça entraram como atores proativos, quase legislando, aprimorando e ampliando as legis- lações existentes. O que explica uma parte do sucesso de vários países, como o México, a Argentina, a Bolívia, em relação às cotas. Pode ser 6 Ver, por exemplo, Freidenberg et al. (2018). D E MO C RAC I A E M F O CO 72 um dado interessante, positivo, mas também pode dizer muito sobre a força (ou falta) e o problema da presença do ativismo de mulheres dentro dos sistemas partidários. No caso do Brasil, temos uma trajetória um pouco diferente. E que trajetória é essa? Nós tínhamos legislações muito fracas, junto aos sistemas de votação de lista aberta. Legislações que não impunham nenhuma sanção e nenhuma fiscalização nem compromisso por par- te dos judiciários em relação às cotas. Isso começa a mudar a partir de 2010, quando há uma nova legislação mais incisiva sobre a obri- gatoriedade de preenchimento das cotas, com sanção, e o Judiciário começa a ter uma atuação de fiscalização. O primeiro momento foi a fiscalização do cumprimento da cota. Depois, de sua efetividade. Se vocês se lembram, em 2016, nós tivemos quase que um derrame de candidaturas fictícias de mulheres. Foram 9,4% do total das candida- tas que não obtiveram 1 voto sequer, e isso é resultado desse processo de tentar cumprir a cota formalmente e burlar a legislação.7 Em 2018, houve uma mudança muito importante no país, com o ativismo feminista junto com o Judiciário, que definiu, já nesse novo contexto de fundos eleitorais, que 30% do dinheiro dos fundos — par- tidário e eleitoral — deveriam ser encaminhados para as mulheres e pessoas negras. Esse ativismo, na leitura da maior parte de quem já analisou 2018, é uma das explicações para a mudança, porque o dinheiro é uma variável absolutamente relevante no nosso sistema, e essa diferença entre mulheres e homens, entre o dinheiro de mulheres e homens e as chances eleitorais, já estava comprovada. Os resultados que mostrei nos gráficos 1 e 2, em que saltamos de 10 para 15% na Câmara Federal e nas Assembleias estaduais, têm sido identificados pela literatura como fruto dessas sanções e fiscalização e do primeiro movimento em relação à distribuição de recursos.8 Eu acrescentaria, e essa é minha hipótese, que, além disso, um terceiro elemento importante a considerar seriam momentos de guinada po- lítico-ideológica nas eleições. Nós tivemos 1986, depois 2002 e 2018. Nesses momentos de inflexão política se amplia a presença de mulhe- res. Em 2021 houve um movimento de muitos partidos para retirar a 7 Contudo a literatura considera diferentes critérios para definir uma candidatura fic- tícia. Ver, por exemplo, Laena (2020). 8 Ver, por exemplo, Barbiere e Ramos (2019). ba i x a r e p r e s e n tação D e M u l h e r e s n o l e g i s l ati vo b ras i l e i ro 73 obrigatoriedade das cotas, porque isso se relacionava com a questão da obrigatoriedade da locação dos recursos e do até então movimento de lançar candidaturas fictícias. Houve muita tentativa de retirar essa obrigatoriedade. Argumentaram que não tinha mulheres suficientes para preencher as cotas. Nós fizemos um estudo, que está saindo ago- ra, em um livro da Câmara dos Deputados, em que analisamos 2018 e 2014 e mostramos que metade das listas eleitorais do país, por coli- gação ou não, não tiveram as vagas de homens preenchidas, mesmo sem ferir as cotas.9 Metade das listas não completava 100%. Ou seja, o mercado eleitoral era muito grande e sobravam vagas. Não era culpa das mulheres. O título do artigo é esse. Houve um debate intenso, e penso que, paradoxalmente, na minha leitura, tivemos algumas mu- danças que acabaram sendo importantes e que, agora, em 2022, po- dem, finalmente, ter retorno para as mulheres. Mas deixo isso para o debate. Muito obrigada. [Aplausos]. 9 Nota Técnica n. 2 do Fórum Fluminense Mais Mulheres na Política, escrita em conjunto com Lígia Fabris (FGV) e Michelle Ferreti (Instituto Alzira’s), e divulgada no mês de setembro de 2021 via redes sociais, cujo título é A culpa não é das mulheres. CA P Í TU LO 6 A fusão do Rio de Janeiro: efeitos sobre os arranjos político-partidários fluminenses Marieta de Moraes Ferreira Boa tarde a todos e todas. É um prazer estar aqui, participando desta mesa com os colegas. Fico contente de ver que o tema da política e da história do Rio volta a ter evidência na Alerj. Nesse sentido, para- benizo a direção da Alerj na pessoa da professora Maria Lúcia, que atualmente coordena essas atividades dentro do projeto de recupera- ção do Palácio Tiradentes. Acho que essa iniciativa é extremamente relevante, principalmente considerando o que a Alerj já implementou no passado. Imaginamos que agora esse projeto tenha uma enverga- dura ainda maior e mais relevante. De fato, fico muito satisfeita de ver que a semente que plantamos lá atrás quando nós, no CPDOC, criamos um núcleo de estudos sobre o estado do Rio de Janeiro, e esse núcleo estabeleceu uma parceria para a criação do Núcleo de Memória Política Carioca e Fluminense na Alerj, rendeu frutos importantes. Esse núcleo, essa parceria CPDOC/Alerj, que se desdobrou em vários projetos, possibilitou a existência de uma agenda de pesquisa bastante interessante, que inclusive estimulou muitas pessoas a desenvolver dissertações de mestrado, teses de dou- torado — como foi o caso de Américo Freire, Marly Motta, Carlos Eduardo Sarmento — e a se interessar por essa temática. De fato, nós D E MO C RAC I A E M F O CO 76 não só desenvolvemos um robusto programa de história oral, que en- trevistou inúmeros parlamentares e políticos de destaque no cenário fluminense, como estimulamos a realização da primeira exposição Memória do Palácio Tiradentes, bem como a divulgação de publi- cações e seminários.1 Hoje, antes da abertura desta mesa, eu estava conversando com Américo Freire, relembrando momentos de outros seminários que nós organizamos aqui, resultado da parceria CPDOC/ Alerj. Então, eu fico muito satisfeita, fico muito feliz. Na verdade, nos últimos tempos, eu até me afastei bastante dos meus estudos sobre a história do Rio de Janeiro. Diferentemente dos meus co- legas aqui presentes, que são cientistas políticos, eu sou historiadora, e então trabalho mais com a história e com períodos um pouco mais recuados, enquanto meus colegas estão mais voltados para a análise do presente e a história do tempo presente. Mas de toda forma acho muito importante voltarmos ao passado e colocarmos a discussão da história e da política carioca e fluminense na ordem do dia. Antes, também, da abertura da mesa, comentávamos, eu e o professor Nicolau, a ausência de interesse, perceptível mais recentemente, de estudos sobre o Rio de Janeiro — um Rio de Janeiro que tem até demonstrado algumas pecu- liaridades, no sentido da forte presença dos evangélicos na política, e da própria emergência de Bolsonaro. Enfim, há muitos outros aspectos que mostram a importância de se ter o Rio de Janeiro como foco de análise, como foco de investigação, como foco de pesquisa. Uma coisa que é muito importante, e para a qual todos esses pro- jetos que nós realizamos nos chamaram muitaatenção, é que uma grande parte dos trabalhos que já existiam, da historiografia até então dominante, via o Rio de Janeiro exclusivamente como um reflexo da política nacional, sem atentar para as especificidades da cidade, do es- tado, e para como a cidade, o estado, a região possuem uma dinâmica própria, e que era importante estarmos atentos a essa dinâmica. Esse foi um norte, foi uma direção que nos orientou na realização de vários trabalhos. Esse passado do Rio de Janeiro marcado pela presença do nacional, pela presença do federal, como palco da política nacional, 1 Para citar alguns exemplos, destaco como frutos desta parceria o meu livro sobre Brizola (Ferreira, 2008) e os trabalhos de Freire et al. (2001), Motta e Sarmento (2001) e Sarmento (2008). Mais recentemente, outras duas obras (Ferreira, 2015; Motta, 2022) podem ser apontadas como herdeiras da proposta de pensar a política carioca semea- da desde a aproximação da Alerj ao CPDOC. a Fu são D o r i o D e Ja n e i ro 77 faz e fez, durante muito tempo, com que todas as análises e todas as atenções ficassem muito focadas no nacional, secundarizando a di- nâmica e a problemática local. Então, eu acho que esse ponto deve ser retomado em outros trabalhos, embora talvez, agora, já passados quase 45 anos da fusão, essa questão do nacional tenha se diluído um pouco mais. Mas ainda tenho dúvidas sobre isso. Alguns elementos importantes que eu acho que marcaram muito a trajetória do estado e da cidade foram, desde o seu nascimento, a ideia de provisoriedade, o intervencionismo federal e, para muitos, a inca- pacidade dos grupos locais de defender os seus interesses. Então, essa nacionalização da política carioca funcionava como um elemento im- peditivo da defesa dos interesses regionais e dos interesses locais, e, com isso, todo o foco se deslocava para o nacional, secundarizando a dinâmica local. Além de fazer essas considerações iniciais sobre a memória dessa relação entre o CPDOC e a Alerj, que agora se inicia numa nova fase, que eu acho que é fundamental, e que poderá dar frutos muito pro- missores no sentido de desenvolver novos projetos e criar uma nova agenda de pesquisa e de atividades, vou focalizar um tema específico: o tema da fusão. Então, nós estamos deixando aqui o cenário nacional com os meus dois colegas que me antecederam para focar num tema especificamente local, que é a questão da fusão. Primeiramente, a fusão continua sendo objeto de grandes debates, vista como um evento traumático. Em 2025 vamos completar 50 anos da fusão, e até hoje, a cada sucessão, vemos vozes que reivindicam o fim da fusão e a recriação do Rio de Janeiro como uma cidade-estado. Muitas vezes, esse tipo de perspectiva é veiculado por figuras de pro- jeção, que têm expressão política e intelectual. Para começar, o que podemos perceber, nos momentos que se seguiram à concretização da fusão, é que se viu ou se interpretou ou se veiculou a ideia de que a fusão implementada por um regime autoritário militar em 1975 vi- sava neutralizar o MDB carioca, uma vez que o estado do Rio era governado naquele momento pela Arena de Raimundo Padilha, e que essa ação autoritária do governo federal era um ato que estava sendo implementado de surpresa, sem discussão, e tinha como foco funda- mental neutralizar a ação do MDB. Eu gostaria de tecer algumas considerações não só para problema- tizar essa ideia ou essas interpretações que foram veiculadas em torno D E MO C RAC I A E M F O CO 78 da fusão, mas também para chamar atenção para a necessidade de nos desprendermos dessa agenda e de partirmos para outra, estabe- lecermos novos temas, novas problemáticas, para que de fato o nosso estado possa atingir outro patamar de desenvolvimento e recuperação econômica e política. Para começar, o projeto da fusão era um projeto antigo. E isso marca, de certa forma, esse elemento que eu chamei de provisorie- dade do estatuto da cidade do Rio de Janeiro e do próprio estado do Rio. Já na Constituição de 1891 constava a questão de transferência da capital; e já era veiculada a ideia de que, uma vez a capital sendo levada para o interior, se deveria rejuntar ou fazer a fusão da antiga província do Rio de Janeiro com a cidade do Rio de Janeiro. Essa era uma ideia que já estava veiculada em 1891, e que foi retomada na Constituição de 1934, e novamente na Constituição de 1946. Então, essa provisoriedade do estatuto da cidade do Rio de Janeiro foi uma marca que caracterizou muito a trajetória da cidade. E perdendo o estatuto de capital, o que seria do Rio? Essa sempre foi uma pergunta que marcou as várias décadas da evolução da trajetória do Rio de Ja- neiro. O Rio seria reincorporado à região do interior fluminense, uma vez que no passado, lá no começo do século XIX, a cidade integrava o que foi a capitania do Rio de Janeiro e em seguida a província, ou se constituiria em uma unidade da Federação autônoma, independente? Essa discussão foi marcante durante vários momentos, principalmen- te porque havia, além da ideia de que a capital seria transferida para o interior do Brasil, os movimentos autonomistas. Até hoje sobrevive a ideia da grande Idade de Ouro do Rio de Ja- neiro enquanto Distrito Federal. Ser o Distrito Federal teria sido um mar de maravilhas, um mar de possibilidades positivas, sem se levar em conta os problemas e malefícios que ser capital federal trazia para a cidade do Rio e para os seus habitantes, entre eles, principalmente a ausência de autonomia. Praticamente até 1956, todos os prefeitos da cidade do Rio de Janeiro eram nomeados. E, além disso, não possuíam mandato. Os mandatos poderiam ser suspensos em qualquer momen- to que o presidente da República assim entendesse. Evidentemente, isso trazia uma série de dificuldades e fazia não só com que as ações do prefeito fossem acompanhadas pela Presidência da República, mas com que todas as suas ações e as da Câmara dos Vereadores tivessem que ser validadas por uma comissão de constituição do Senado. Evi- a Fu são D o r i o D e Ja n e i ro 79 dentemente, isso mostrava a fragilidade, o grau de interferência que a cidade do Rio de Janeiro sempre sofreu; e como, em vários momentos e em várias circunstâncias, a sua população e as suas elites políticas tentaram reagir à marca intervencionista que se caracterizava nesses momentos. Então, um ponto que eu queria destacar é que, se de um lado havia intervenção, havia nacionalização, de outro lado também havia resistências, havia lutas autonomistas, o que é algo muitas vezes desconhecido ou pouco valorizado. Enfim, eu voltei um pouquinho no tempo para caracterizarmos essas marcas de intervencionismo, nacionalização, provisoriedade. Até que chegamos ao final dos anos 1950, com a construção de Brasí- lia e a transferência da capital federal. E aí se coloca de forma explícita e intensa a pergunta sobre qual será o lugar do Rio de Janeiro. O que será do Rio? Esse foi o tema de artigos de jornais que foram publica- dos ao longo do ano de 1959 por diferentes intelectuais e jornalistas, exatamente temerosos do que iria acontecer com a cidade. E nesse contexto, de fato, a fusão entre a cidade e o estado do Rio emerge como uma grande alternativa. Muitos políticos, a imprensa, muitos intelectuais defendiam que a fusão seria uma alternativa importante para, inclusive, evitar as intervenções federais, que poderiam conti- nuar após a transferência da capital, uma vez que havia uma tese ou uma hipótese de que o Rio viraria um território, e com isso uma área federal, que continuaria sob a interferência e o controle do governo fede- ral. Especialmente os políticos da UDN, como Carlos Lacerda, Afon- so Arinos e vários outros, defendiam a ideia da fusão, temerosos de que as eleições presidenciais de 1965 funcionassem como um joguete na mão do governo federal para estimular este ou aquele candidato. Essa discussão sobre a fusão enfrentou algumas dificuldades e críticas, especialmente do PTB, e finalmente,no apagar das luzes, foi imple- mentado o projeto da criação do estado da Guanabara. O estado da Guanabara é visto por muitos pesquisadores como uma Idade de Ouro. Por quê? Porque, finalmente, a cidade do Rio de Janeiro conquistava autonomia. Ela iria agora eleger o seu gover- nador, eleger a sua Assembleia Legislativa, os seus parlamentares, e isso de fato era um ponto de grande relevância e grande destaque. Os três governos que marcaram o estado da Guanabara foram os de Carlos Lacerda, que foi um momento de grande dinâmica política e recuperação econômica; a seguir, o de Negrão de Lima; e, por fim, o D E MO C RAC I A E M F O CO 80 de Chagas Freitas. No final desses anos de existência da Guanabara já se iniciavam as críticas e as dificuldades, e consequentemente o tema da fusão com o estado do Rio voltou à tona, inclusive internamente. Na Assembleia Legislativa, na Câmara Federal, o tema da fusão re- tornou, com o foco agora não tanto na preocupação com o controle e a intervenção política, mas principalmente com temas econômicos. A questão do esvaziamento econômico, a perda do dinamismo da economia carioca. Com isso, os principais órgãos de classe do Rio de Janeiro, como Fiega, Sirga, Associação Comercial e vários outros, e a própria Are- na carioca iriam bancar a tese de que a Guanabara era inviável, e era fundamental que se pensasse na alternativa da fusão. Evidentemente, também havia aqueles que eram críticos da ideia da fusão e não acre- ditavam que ela pudesse trazer benefícios. Essa discussão da fusão já estava em pauta no governo Costa e Silva (1967-69) e no governo Mé- dici (1969-74), mas, nesses momentos, ela não encontrou eco nacio- nal e nem sensibilizou o governo federal no sentido de implementá-la. Seria com Geisel (1974-79), efetivamente, que esse projeto se concre- tizaria, agora com uma justificativa geopolítica, com a tese de que a criação de um novo estado permitiria um reequilíbrio da Federação, seria um contraponto à predominância de São Paulo e criaria um es- tado política e economicamente mais poderoso, juntando a cidade do Rio de Janeiro, a Guanabara, e o estado do Rio de Janeiro. Quanto à tese de que a fusão foi feita para neutralizar o MDB, não acho que ela encontre sustentação na pesquisa empírica, até porque o MDB carioca era dominado por Chagas Freitas, absolutamente sub- misso e conivente com as ações do governo federal; além do mais, grupos políticos locais cariocas preconizavam e defendiam a fusão. Na verdade, a Arena carioca acreditava que, com a fusão, ela ganha- ria mais força, mais relevo. Nesse período, Célio Borja (que faleceu recentemente) teve um papel de destaque como garoto-propaganda da fusão, buscando apoio para sua implementação. Evidentemente, o governo federal, tendo à frente Geisel, a implementou com um ato ditatorial e a mudança se concretizou a partir de 1975. A concretização da fusão já foi um baque para a própria Arena carioca, que perdeu a esperança de que teria um dos seus nomes, no caso, Célio Borja, como governador do novo estado. Na prática, quem vai assumir esse novo governo é Faria Lima, um militar, técnico, a Fu são D o r i o D e Ja n e i ro 81 que vai ocupar o Executivo estadual com a função de implementar o novo projeto. Com isso, algumas esperanças de que esse estado viria a ser um novo polo econômico e político não se concretizaram. Não se concretizaram, de um lado, porque a própria crise econômica que já se apresentava no governo Geisel e posteriormente, e as próprias promessas de grandes recursos que seriam direcionados para a cidade do Rio de Janeiro e para o estado no sentido de facilitar a integração foram minguando, não se mostrando eficazes, e os anseios daqueles que defendiam a fusão foram se esvaecendo. Além disso, para a pró- pria Arena carioca, que tinha expectativa, ou para aqueles que acre- ditavam que iam enfraquecer o MDB, isso também não aconteceu, porque a fusão só permitiu que Chagas Freitas, que antes controlava apenas a cidade do Rio de Janeiro, passasse a controlar não só a cida- de, mas também todo o conjunto do estado fluminense, inclusive pro- movendo um conflito importante no MDB fluminense com a facção de Amaral Peixoto, que anteriormente era quem tinha a grande pre- dominância na política fluminense, e cuja posição foi se desgastando.2 O que eu queria destacar é que até hoje nós ainda vemos a fusão como um tema polêmico, um tema traumático, e que as pessoas im- putam à fusão todos os males que nos afetam. A gente brincava: “essa fusão é a Geni”. Porque tudo o que está errado, tudo o que não dá certo, se é uma questão política, se é um problema partidário, se é um problema econômico, tudo é resultado da fusão. E eu acho que é preciso sair dessa agenda e ver efetivamente a pós-fusão. Sem dúvida a fusão desorganizou algumas coisas. Havia, de parte do governo federal, não uma intenção específica em relação à questão partidária do MDB, mas sim a intenção de esvaziar um pouco o papel da cidade do Rio de Janeiro e de interiorizar essa riqueza e essa dimensão política da cidade para o interior fluminense. Para finalizar, eu lembro que durante um certo tempo houve uma mobilização em estudos sobre o estado do Rio de Janeiro sob vários aspectos. O que eu sinto hoje — é uma sensação um pouco impres- sionista, acho que vale a pena até fazer uma investigação maior sobre isso — é que esse impulso que houve na década de 1990 e no começo do século XXI de focalizar, de se interessar, de se mobilizar pela histó- ria e pela dinâmica política e econômica da cidade do Rio de Janeiro 2 N.O.: Para uma análise sobre o efeito da fusão nas bases eleitorais, ver: Melo (2019). D E MO C RAC I A E M F O CO 82 parece que está minguando. Hoje eu sinto um interesse muito menor por essas temáticas. Eu orientei muitas dissertações, muitas teses de doutorado sobre o Rio de Janeiro na minha atuação como professora da UFRJ, do Instituto de História, e hoje vemos poucas pessoas inte- ressadas no assunto. Então eu espero agora, com a parceria da Alerj e do CPDOC, que se possa botar um foco na política fluminense. Um desafio. Acho que historiadores e os cientistas políticos poderão se desincumbir disso com a maior competência. E às novas gerações que estão aqui presentes eu coloco o desafio, para vocês pensarem, colo- carem como tema de pesquisa questões e problemas da nossa cidade e do nosso estado. Muito obrigada pela atenção [Aplausos]. Debate Jaqueline Zulini (J. Z.): Fico muito feliz em moderar esta mesa, “Par- tidos e sistemas partidários no Brasil”. Acredito que não poderíamos estar mais aquecidos para o debate, após essas três excelentes pales- tras. Gostaria de abrir as inscrições para um bloco de perguntas do público. Pergunta 1 (Anônima): A minha pergunta é para a professora Cla- ra Maria. Achei a pesquisa muito relevante e interessante, pois traz essa reflexão de gênero. Queria perguntar se há essa percepção, esse estudo, também trazendo a pauta racial. Porque quando a gente fala em democracia, não vê representatividade, não vê essa pauta circu- lar nesse meio e não vê pesquisadores negros participando do debate. Acho que é muito relevante, principalmente em um seminário que trata de democracia, trazer esses estudos de gênero e de raça. Porque pensar em democracia é pensar também no nosso povo brasileiro, que é um povo plural. E o que a gente vê nesses espaços é a academia continuando a falar da academia. Até que ponto essa democracia será uma democracia para todos? Minha pergunta é: o quão relevante é, o quanto está sendo estudado e trazido para essa pauta dos sociólogos e cientistas políticos a questão, que é urgente, da massa e da repre- sentatividade? Inclusive em relação à participação das mulheres na política. Olhando do ponto de vista de hierarquia social, a mulher é pouco privilegiada, e a mulher negra, muito menos. É essa a questão. Pergunta 2 (Anônimo): A minha dúvida é para o professor Jairo. Você comentou sobreos partidos no Congresso Federal que atual- mente estão se aglutinando, se fortalecendo e dando mais apoio ao atual governo. A minha dúvida é: por que os partidos de hoje — se podemos classificá-los como bolsonaristas — apoiam essa forma do D E MO C RAC I A E M F O CO 84 governo e lhe dão sustentação no Legislativo? Se as previsões que es- tamos acompanhando agora se provarem verdadeiras, e Bolsonaro não se reeleger, você acredita, com base no precedente histórico do comportamento dos partidos à direita no Brasil, que eles vão se al- terar internamente, ideologicamente, e tentar de alguma maneira se reconciliar com o novo governo? Ou acha que [os partidos] vão man- ter essa postura mais “radical” à direita, mais conservadora? Digamos assim: vai ter bolsonarismo sem o Bolsonaro? Era isso que eu queria perguntar. Obrigado. Pergunta 3 (Anônimo): A minha pergunta vai para a Clara. Ao lon- go das últimas eleições, 2020, 2018, 2016, os partidos de esquerda tinham alguma preocupação em colocar nas chapas para prefeitura, para presidente, para governo [estadual], uma mulher como vice. E como você vê, no panorama atual, nesse pragmatismo que foi posto do lado da esquerda, dessas alianças partidárias, a gente tem, no âm- bito presidencial, o Lula com o Alckmin; aqui no Rio de Janeiro, o Freixo com César Maia… A gente vê, na eleição atual, a perda dessa representatividade [das mulheres] até na pauta da esquerda, nas elei- ções majoritárias. Pergunta 4 (Anônimo): A minha pergunta é para o professor Jairo. Pode parecer uma pergunta tola, mas… O que é um partido político? Quando a gente pensa para além da legenda, no que um partido po- lítico seria: indivíduos que têm interesses em comum, que lutam por uma causa em comum, e é isso que os une na atuação política. Mas, na prática, vemos que os partidos são completamente heterogêneos, existem disputas internas, e os partidos mudam, também, com o tem- po, as pessoas trocam de partido, mesmo não trocando de ideologia. Enfim, no Brasil, hoje, o que é um partido político? Pergunta 5 (Américo Oscar Guichard Freire): Gostaria de fazer um comentário e umas perguntas para vocês. Para a Marieta, gostaria de fazer primeiro uma provocação. Você nos disse: “Vamos estudar o Rio de Janeiro, vamos retomar essa agenda”. Eu queria ouvir você falar sobre isso. Que agenda é essa? O que você pensaria, que temas a gente poderia retomar na agenda de estudo do Rio de Janeiro? Para a Clara, fiquei pensando naqueles seus terríveis dados sobre a situação da mu- D e bate 85 lher. O Brasil está lá na cauda [dos níveis de representação feminina]. Você acha que a religião explicaria o caso brasileiro? Acha que o avan- ço considerável desse fundamentalismo religioso ajudaria a explicar? Vocês já chegaram a fazer pesquisas nesse sentido? Porque você tra- balha muito com as inscrições, listas… Enfim, trabalhou muito com essas questões, que acho que fazem muito sentido também. Mas por que o Brasil está tão lá embaixo? O Jairo também falou a respeito do avanço da direita. Será que isso tem a ver com nossa dificuldade de implementar uma agenda que garanta a presença mais efetiva da mu- lher? Eu queria ouvir um pouco sobre isso, Clara. E gostei muito, os dados são realmente impressionantes. Para o Jairo, queria que você falasse mais de federação partidária mesmo. Você abordou essa ques- tão da concentração e de como estaríamos vivendo, quem sabe, um ciclo de concentração. Como você vê essa experiência? Você acha que ficará restrita às esquerdas mesmo? Jairo Nicolau (J. N.): Vou começar com a pergunta sobre o que é um partido. Quando comecei a estudar partido político, eu fazia minha tese de doutorado e me defrontei com essa questão. Eu tenho que defi- nir, é muito importante para o meu argumento. E percebi que, quando fazia qualquer tentativa de acrescentar algum propósito, alguma ativi- dade partidária ou a alguma doutrina — ou seja: só é partido se tiver uma doutrina, ou só é partido se tiver certa unidade —, eu sempre me enrolava. Porque uma parte disso são classificações subjetivas. A gente fala do Centrão como uma força política pragmática para ser generoso. O termo clientelista é um termo que dá uma dor de cabe- ça danada para trabalho empírico. Fala-se de partido ideológico versus partido clientelista. Essas distinções que a gente faz são atalhos, mas a pesquisa empírica dificulta e muito a nossa vida, quando você observa, por exemplo, que boa parte dos representantes de sindicatos eleitos por partidos de esquerda tiveram, muitas vezes, uma relação muito cliente- lista com as suas bases. O sujeito era eleito pelo sindicato dos professores e tratava o mandato dele quase que como uma correia de transmissão dos interesses do sindicato. A gente pode chamar isso de clientelismo. As coisas começaram a se embananar. Então, eu adotei para sem- pre uma definição minimalista — que não responde o seu problema, mas resolveu o meu [risos] — que é a seguinte: partido é uma orga- nização que disputa voto em eleições. Para além disso, é substância. D E MO C RAC I A E M F O CO 86 E aí, para além disso, é pesquisa. Para além disso, eu tenho que dizer: qual é a diferença dessas organizações em termos de políticas, de tra- tamento dos temas da mulher, da questão racial? Os partidos são mais pragmáticos, mais ideológicos? Como eu defino ideologia? Aí começa a pesquisa. Entretanto me contentei com essa definição minimalista porque, dessa maneira, eu excluo, por exemplo, o movimento social. O Movi- mento Sem Terra (MST) não é partido, para mim. Para um intelec- tual gramsciano é, mas para mim não é, porque ele não disputa voto. Nesta eleição, o MST lançou 21 candidatos a deputado estadual em todo o Brasil, pela primeira vez, de maneira organizada. Então, eles vão disputar a eleição. Mas até agora eles estão como organização da sociedade civil. Há partidos que disputam a eleição e não têm voto. O caso do PSTU, que nunca elegeu um deputado federal. Mas não posso dizer que ele não seja um partido porque não tem voto, porque não tem representação. Então, fiquei com essa definição minimalista. Se eu quero comparar ideologias, eu vou comparar ideologias. Se eu quero definir se um partido é clientelista ou ideológico, vou ter que definir o que é ideologia, o que é clientelismo, fazendo a tipologia e alocando os partidos. Senão a gente fica com uma visão romântica. Com relação à pergunta sobre a natureza dessas três legendas. Eu me espantei muito, do ponto de vista do volume de trocas na janela de abril. O Brasil é realmente fantástico em termos de legislação par- tidária eleitoral. Vou falar de duas invenções brasileiras. A primeira foi a janela partidária. Ou seja, as trocas de legenda eram tão grandes, chegavam a uma magnitude tal, que resolveram fazer o seguinte: va- mos proibir as trocas, salvo em um mês, que é o mês de abril, antes do ano da eleição. No ano eleitoral, março, abril, você permite as trocas de líderes. Por quê? Porque se eu fui eleito por um partido e eu mudo para outro significa que isso é, no mínimo, um problema de accoun- tability, um problema de resposta do representado ao representante.1 “Ora. Eu votei em um partido, o sujeito está exercendo o mandato por outro? Que história é essa? Que sistema é esse?”. Mas claro que a preo- cupação de quem proibiu as trocas não era essa. Nas trocas de abril, fiquei muito impressionado, porque a compactação se deu à direita. 1 N.O.: Accountability é o termo utilizado pela literatura especializada para descrever a ideia de “prestação de contas”. D e bate 87 Esses três partidos cresceram muito. O partido do Bolsonaro, hoje, é a maior legenda. Depois de muito tempo, um partido ultrapassou 70 deputados, que é o PL. Isso, para mim, foi uma novidade. Para terminar, com a questão das federações, também é outra in- venção brasileira. Não existe isso em outro país. É um casamento de quatro anos. Porque os partidos ficavam livremente com os outros na eleição, masdepois não acontecia mais nada, era só na eleição. Vamos ficar juntos ali, para ultrapassar o quociente eleitoral, vamos fazer cha- pa juntos; mas, acabou a eleição, cada um vai para o seu lado. Agora não. É algo curiosíssimo, porque é uma fusão. Na realidade, a fede- ração é uma fusão, mas por quatro anos. Ou seja, Cidadania e PSDB estão juntos. Não é bem de esquerda ali, foi centro-esquerda. É muito curioso [risos]. O Cidadania do Rio está apoiando o prefeito de Nite- rói para governador, mas não pode. Se o PSDB, na convenção, decidiu apoiar o César Maia para vice, o Cidadania também tem que apoiar. Eles são uma coisa só, fundiram-se temporariamente. O dinheiro vai para uma coisa só. Agora, se daqui a quatro anos o casamento acabar, “não, você para lá, eu para cá”, eles voltam a ser unidades separadas. Como PCdoB com o PT. [Anônimo]: Mas você acha que isso vai ser replicado? J. N.: Não. Isso pode ser, por exemplo, nos pequenos partidos, que acho vão se dar mal, na direita, nesta eleição, pequenos… [Anônimo]: Psol e Rede? J. N.: Psol e Rede podem ficar, porque os dois estão muito mal. En- tão, quatro anos juntos vão diluindo as diferenças, resolvem mudar, fazer um nome diferente para os dois, um tem seis deputados, outro tem oito… Por quê? Porque a nova legislação que veio agora, que vai vigorar este ano, é muito exigente para os pequenos partidos. Acabou a coligação, os partidos têm que ter, no mínimo, 2% nas eleições para a Câmara. Então, foi um corre-corre. A federação é a resposta a uma legislação pesada. Vão desaparecer muitas legendas. Esse mundo ali dos recordes acabou. A gente vai ficar com um sistema partidário mais europeu, mais compactado, com oito, 10 par- tidos, fusões, partidos com bancadas maiores do que conhecemos nos D E MO C RAC I A E M F O CO 88 últimos anos. Não tem mais como voltar. A não ser que os deputados mudem a lei. Mas creio que os partidos grandes não vão querer mudar a lei. Eles já são grandes. Se o PT eleger 80 deputados, por que vai vol- tar ao período de coligação, em que tinha que dar legenda para parti- dos menores? Enfim, estou especulando aqui, mas, no fim das contas, a federação pode ser usada por qualquer um. E ela é permanente, se feita agora, vai até 2026. Significa que, para eleição municipal do ano de 2024, Cidadania e PSDB estão juntos. Significa que, em 2026, eles estão juntos. Só depois eles se separam. E, nesse meio-tempo, outros partidos podem se fundir também. Podem-se criar federações com um sentido de sobrevivência. A fede- ração é menos ideologia e mais sobrevivência. O PCdoB e PT estão jun- tos em todas as eleições presidenciais, nunca pensaram em se aproximar tanto como agora. Outra coisa, diferente da coligação, a federação obriga que os partidos estejam juntos em todos os estados. Porque antes era as- sim: coliga no Rio, mas não coliga em São Paulo. Agora, não. PCdoB, PT e PV estão juntos em todos os estados, Rio, São Paulo, Minas, Bahia, e não pode o PCdoB, em São Paulo, apoiar [sozinho] um candidato a presidente, um governador. Acabou, é uma coisa só. Minha impressão é que os próprios partidos não entenderam o que é a federação que eles criaram. Eles se amarraram, mas querem continuar autônomos. [Anônimo]: Desculpa, professor. Você falou sobre essa aproximação do PT, o máximo, até o MDB. Essa possível aproximação com o União Brasil? J. N.: É. Eu acho que com uma parte do União Brasil tem possibilida- de de apoio, porque o União Brasil é uma fusão de quadros do PSL, que não acompanharam o Bolsonaro no PL, com o DEM. Tem alas mais antilulistas que provavelmente não apoiariam Lula, mas alguns segmentos mais moderados poderiam apoiar. [Anônimo]: Isso é uma possibilidade, a ironia do partido do Sérgio Moro acabar apoiando a candidatura do Lula para presidente… J. N.: É [risos]! Eu não tinha pensado nisso ainda [risos]. Não é nem ironia. Não sei o que é isso [risos]. Eu não tenho figura de linguagem para isso [risos]. D e bate 89 J. Z.: Obrigada, Jairo. Professora Clara, por favor… Clara Maria Araújo (C. M. A.): Primeiro, a pergunta sobre a questão racial. Três pontos. O primeiro: acho que é importante esse registro, porque, se não me engano, só a partir de 2014, por força de muita pressão, é que a raça passou a entrar no perfil sociodemográfico dos candidatos. Então, vejam vocês, em um país com uma questão tão fundamental como é a racial, a gente não tinha nem como medir essa questão. O segundo dado é que acho que há um movimento, fruto do movi- mento social, do movimento negro, mas também do feminismo — de um feminismo mais jovem, que surge, mais de massa, nos últimos anos no Brasil —, e mais vinculado à questão da política. É importante registrar isso. A gente tinha uma separação histórica entre o feminis- mo e mulheres na política. Aquelas são as políticas, essas são as femi- nistas. E isso acho que ajuda a explicar, inclusive, a dificuldade que a gente teve desde a redemocratização até mais recentemente, porque existia uma espécie de separação e uma resistência do movimento fe- minista a se vincular ou atuar mais ligado aos partidos. O que não acontece em outros países, como a Argentina e o Chile. Esse movi- mento que surge não só da expressão no movimento feminista mais jovem, mas também do movimento negro. Temos um conjunto de organizações muito importantes, que estão fazendo todo um trabalho ativista e de lobby, em relação à questão de mulheres, à questão racial na política. Em 2018, houve um ato importante, aquele da Benedita, em que foi feita a proposição e uma indicação que, a partir de 2020, já passa a funcionar efetivamente, que é a questão da distribuição de recursos que observem não só o percentual de candidaturas de mulheres, mas também de candidaturas de pessoas negras, sendo que você não pode sobrepor os dois. Alguns estudos mostram que em 2020 os resultados em relação às candidaturas negras já foram importantes, e houve um crescimento proporcional relativamente maior do que em anos ante- riores, comparando candidaturas brancas e negras de mulheres, in- clusive. Então, houve alocação de recursos. Existe inclusive um estudo dessa análise e mostra como, ainda que pequeno, houve um investi- mento. Quer dizer, já é um primeiro resultado. A minha expectativa em relação a essas eleições de 2022 é que isso aumente. D E MO C RAC I A E M F O CO 90 Não falei sobre isso, mas as medidas que foram tomadas e aprova- das, inclusive por forte pressão desse ativismo e o apoio de uma parte dos partidos, foram importantes, porque consolidaram na Constitui- ção, por meio de PEC, a questão da distribuição de recursos. Esse é o grande gargalo, que explica uma parte das desvantagens das mulhe- res e das pessoas negras: a questão dos recursos, conforme comentei antes. Então, é importante consolidar essa distribuição dos recursos financeiros, assim como recursos do horário eleitoral e da propaganda gratuita. Eu tenho uma hipótese de que esse quadro vai começar a ter um resultado positivo já em 2022, e acho que também em relação às mulheres. Acho que além dessas medidas sobre distribuição de recur- sos financeiros e da propaganda gratuita, a aprovação da lei/artigo que estabelece que os votos dados às mulheres na eleição para a Câmara Federal sejam contados em dobro para efeito da distribuição futura dos recursos financeiros aos partidos. Conforme a legislação, os re- cursos que um partido recebe para os Fundos — partidário e de cam- panha eleitoral — são distribuídos conforme a votação e tamanho das bancadas eleitas pelos partidos nas eleições anteriores. Agora entrou essa medida de estímulo e ação afirmativa: para tanto, os votos dados às mulheres nos partidos valerão o dobro no momento do cálculo da distribuição dos recursos dos fundos. Embora haja uma interrogação sobre qual será o efeito dessas medidas. Explico: como estamos den- tro da disputa para os partidos ultrapassarem a cláusula de barreira, há uma série de questões. Uma pergunta é:para quem vão esses re- cursos? Vão para as mulheres já testadas, as mulheres que vão fazer um quociente eleitoral? Como vai ser essa distribuição? O que é uma distribuição justa? É aquela que é igual para todo mundo ou aquela que permite que uma parcela se eleja? É um debate, mas, ainda assim, acho a medida muito importante. Até porque não é uma medida só na base da sanção, é também na base do estímulo aos partidos. Outra medida que pode favorecer é que existe uma agenda muito forte, nos últimos anos, em relação à questão racial e das mulheres. Temos uma situação que pode ser positiva. Entretanto, depende mui- to, na minha opinião, do quanto essas forças conseguem pressionar os partidos diante deste contexto. Refiro-me ao contexto das reformas que visam a redução da fragmentação, mas também da questão do quociente eleitoral, que está em jogo para todos os partidos. Então, os partidos estão atribuindo recursos, têm as suas estratégias. Quem D e bate 91 vai ser privilegiado nessa distribuição de recursos vai depender muito da força de quem já está lá e da força de certa pressão dos setores que compõem a agremiação. Mas eu acho que as medidas foram essencial- mente positivas, paradoxalmente, em um contexto adverso. Sobre a pergunta dos vices. Acho que existe essa tensão e esse re- trocesso em relação, por exemplo, a governadores. Tem diminuído o número de governadores. Tem um estudo da FGV que foi uma base para se discutir esse primeiro momento da distribuição de recursos. Tinha toda uma discussão, porque foi constatado um aumento no número de mulheres como vice (vice-governadoras, vice-prefeitas), por quê? Porque a legislação não define se esse percentual de recur- sos deve ir para a eleição majoritária ou para a proporcional. Define que deve ir para mulheres, e pode ser para o cargo de vice. Então, houve e há todo um debate sobre se essa estratégia de distribuição deve ou não ser regulada. Eu, particularmente, acho muito complicado essa regulação. Você vai entrar na engenharia dos partidos e interferir nela. Vou citar um caso aqui, sem mencionar a autoria. Mas agora mesmo vocês acompanharam a convenção do PDT do Ceará e toda a discussão que houve sobre a vice-governadora ter assumido como governadora ser a candidata natural. No fim, no último momento, ela foi retirada para incluir o ex-prefeito de Fortaleza, que é mais aliado do Ciro Go- mes. Não estou aqui discutindo, estou só acompanhando esse debate em algumas redes. Duas pessoas conversando, lideranças mulheres do PDT, que advogam a questão das mulheres, e defenderam claramente a saída dela e a substituição, colocando uma série de questões políticas que estariam implicadas. Uma coisa é o movimento social, toda essa análise que a gente faz contra o que é justo, o que não é, outra coisa é essa articulação na hora que o pragmatismo da política opera. Então, acho que temos um desafio, mas não tem muito como sair disso. Por fim, a pergunta sobre a religião. Se pensarmos em religião pro- priamente, no que eu conheço dos estudos que estão começando a ser feitos, não creio que a religião explique a ausência de mulheres. Por quê? Por três razões. Primeira: temos visto um crescimento da presença de mulheres, em vários países do mundo, em partidos mais conservadores. A disputa entre esquerda versus direita tem sido um pouco diluída na questão da entrada de mulheres na política. Segunda: um dado que tem sido constatado é exatamente que es- sas mulheres conservadoras têm colocado como estratégia a entrada no D E MO C RAC I A E M F O CO 92 parlamento como forma de redefinir conquistas e ganhos pela política. Se olharmos quem cresceu em 2018 e 2020, foram os partidos conser- vadores. Quem cresceu foram mulheres desses partidos. Mulheres de partidos de direita, proporcionalmente, aumentaram muito mais do que no partido de esquerda, e de partidos reacionários inclusive. Há essa concepção de que é necessário intervir no que já foi conquistado. Acho que há um estímulo. Eu acompanho a propaganda eleitoral, ve- nho acompanhando de março até agora, julho, e a agenda dos partidos conservadores, bem conservadores, era a presença de mulheres. De- fendem a família, para lutar contra o casamento de pessoas do mesmo sexo, como uma agenda. Então, acho que não explica muito. Agora, o que pode também ajudar a explicar? E aqui temos o tercei- ro ponto. Talvez essa fraqueza na crença das instituições. Já antes desse retrocesso todo, a gente olha o Latino Barômetro — pesquisa sistemá- tica que abarca os países da região — e vê como as pessoas no Brasil se posicionavam em relação a valores democráticos. O país está lá embai- xo na questão do apoio, da crença nas instituições e em itens correlatos. Acima, apenas, da Guatemala. O fato de haver descrença, pouco estí- mulo para participar é um lado. O segundo lado, dinheiro, condições, recursos e uma cultura política, ainda, com valores patriarcais. Não sig- nifica que há uma defesa explícita: “não entre na política”. Mas há uma cultura política com valores patriarcais que inibe essa entrada. [Anônimo]: Fundamentalismo se realimenta. E se o fundamentalis- mo se realimenta e cresce e pode inibir o ingresso das mulheres, pois há esse discurso de ataque ao gênero e defesa de papéis de homens e mulheres. C. M. A: Realimenta, é isso. Inclusive em relação a esse lugar da legi- timidade do homem. Mas, ao mesmo tempo, temos identificado esse movimento por parte das mulheres conservadoras, um movimento de entrada. Obrigada. J. Z.: Obrigada, Clara. Professora Marieta, por favor. Marieta de Moraes Ferreira: Pensar uma agenda política de pes- quisas para o Rio de Janeiro, eu veria dois caminhos. Pesquisas num corte mais histórico, que retomassem temas como essa questão da D e bate 93 nacionalização da política fluminense, até que ponto essas marcas que caracterizaram as elites políticas cariocas e fluminenses no pas- sado permanecem, ou deixaram de existir. Eu acho que essa relação, também, da cidade com a região metropolitana é pouco trabalhada, tanto do ponto de vista econômico quanto político. Uma outra possi- bilidade são temas de ciência política que focalizem uma análise dos partidos. Porque há também uma crença, que alguns falam como se fosse uma tese, de que a fusão provocou uma fragmentação muito grande nos partidos e que também corrompeu a política carioca, que era uma política, digamos, de nível mais elevado, e na medida em que ela se interioriza e se junta com um estado do Rio atrasado, clientelístico, então, na verdade, essa junção dessas duas culturas políticas foi um elemento negativo, digamos, para a representação política do Rio de Janeiro. Vejo também como importante o estu- do de governos recentes, como Marcelo Alencar, o próprio Moreira Franco. Depois do Brizola a bibliografia é praticamente inexistente, com uma ausência de trabalhos que analisem não só do ponto de vista político-partidário, mas da própria atuação, os projetos que fo- ram desenvolvidos, o que foi implementado, e das crises políticas, os embates. Isso tudo eu acho que está para ser estudado. Eu penso que o CPDOC poderia, por exemplo, dar continuidade a um projeto de história oral, entrevistar várias dessas lideranças e entender o que essas pessoas pensaram, como pensaram a política no estado, nessas últimas duas décadas especialmente. J. Z.: Obrigada, professora. Poderíamos ficar horas a fio com ques- tões, mas infelizmente precisaremos encerrar a sessão, porque logo a portaria da Alerj fecha. Então, peço desculpas, mas me resta apenas agradecer muito pela participação de todos, sobretudo aos professo- res Jairo, Clara e Marieta, pelas suas ricas palestras. Convido a todos para se juntarem conosco amanhã, na continuidade deste seminário. A mesa da manhã tratará das relações entre o governo e Congres- so: uma ótima oportunidade de entender como a questão partidária e eleitoral tem se refletido no Parlamento. Após o almoço, uma outra mesa discutirá aimplementação (ou desconstrução) das políticas pú- blicas no país. Contamos com a participação de vocês em ambas as oportunidades. Muito obrigada. [Aplausos]. M E SA 3 Instituições políticas e relações Executivo-Legislativo no Brasil O impacto das crises econômicas sobre a qualidade da democracia é uma constante preocupação pública. Na academia, a relação entre economia e regime político se tornou uma das agendas clássicas de pesquisa desde meados do século XX. Basicamente, o tema ganhou notoriedade com base na polêmica gerada diante da profusão das evidências contraditórias encontradas pelos analistas. De um lado, o estudo da trajetória política da América Latina sugeriu que a demo- cracia comprometeria o desenvolvimento econômico porque os go- vernantes administrariam visando os interesses de curto prazo dos eleitores (O’Donell, 1973). De outro, o exame do caso latino-ameri- cano somado às experiências africanas permitiu contra-argumentar que, justamente, o empenho em governar para os mesmos interesses eleitorais de curto prazo levaria os políticos a promover o desenvolvi- mento, diante do temor de não conseguirem se reeleger, caso falhas- sem na gestão econômica (Olson, 1993). A organização da mesa-redonda “Instituições políticas e relações Executivo-Legislativo no Brasil” procurou atender a ânsia do público por informação qualificada a respeito dos potenciais efeitos da cri- se econômica no país, agravada pela pandemia de Covid-19, sobre a governabilidade. Ladislau Dowbor não somente questionou o mo- delo econômico brasileiro centrado na exportação de commodities, como creditou o aprofundamento da desigualdade social ao governo D E MO C RAC I A E M F O CO 96 Bolsonaro, submisso aos interesses internacionais. Do ponto de vista das implicações da crise para a política, Fernando Limongi discutiu a omissão institucional do titular da presidência da República, que se recusa a negociar com a coalizão do governo e tenta deslegitimar o processo legislativo e a arte básica de se fazer política — a negociação — em plena pandemia. Dito de outro modo: não há nada de anômalo no presidencialismo de coalizão brasileiro, anormal é a omissão pre- sidencial em um governo de coalizão. Na mesma linha, Margarida Lacombe Camargo tratou a judicialização da política no Brasil como um sinal dos tempos. De acordo com sua visão, o ativismo judicial — como um processo progressivo de ocupação do espaço deixado vago sobretudo pelo Poder Legislativo — deve ser considerado uma anomalia, na medida em que traz para a ordem do dia a ação do Ju- diciário, cujo funcionamento teoricamente se espera correr à margem da política. Já patológica se mostraria a politização do Judiciário, que remonta, no Brasil, ao escândalo do Mensalão e ameaça comprome- ter a imparcialidade do Judiciário no relacionamento com os demais poderes. A legitimidade das instituições políticas brasileiras e da democra- cia no país foi a questão central do debate. Se, de uma parte, houve consenso a respeito de como a desigualdade social fragiliza a respon- sividade do regime e compromete o exercício da cidadania, de ou- tra, entrou em pauta o equívoco de se desqualificar a democracia no país com base em expectativas normativas. Como Cheibub, Gandhi e Vreeland (2010) frisam, incluir algumas características desejáveis na definição de democracia cria problemas incontornáveis para a inves- tigação empírica. “Se, além da igualdade política, a democracia tam- bém exigir igualdade econômica, a constatação de que a distribuição de renda é mais igualitária sob a democracia apenas corrobora o que é verdadeiro por definição” (Cheibub, Gandhi e Vreeland; 2010:73, tradução livre). No pós-1988, o Brasil tem seguido as regras do jogo tomadas como referência pelos estudos comparados que medem de- mocracia, a saber: o cumprimento do calendário eleitoral em disputas competitivas, com claras possibilidades de alternância no poder. No limite, negar a legitimidade dos representantes eleitos em um país de- sigual como o Brasil significa desconsiderar que, mundo afora, a desi- gualdade socioeconômica é uma dura realidade a assolar democracias consolidadas. CA P Í TU LO 7 A crise econômica brasileira ladislau Dowbor Parabéns pela organização. Sou Ladislau Dowbor, trabalhei sete anos na África, trabalhei na China, em países ricos e pobres, trabalhei na Suíça. Estou mencionando isso não para dizer que sou internacional, mas basicamente porque vivenciei vários sistemas e soluções institu- cionais diferenciadas. De certa maneira, isso tirou da minha cabeça uma série de simplificações, em particular as ideológicas, ou “que tudo estatizado funciona” ou “que tudo privatizado funciona”. O que funciona são articulações inteligentes do papel do Estado, da sociedade civil e do setor privado. Não há milagres simplificados. Somos sociedades demasiado complexas para esse tipo de simplificações. Eu recomen- daria para discussão de hoje o texto Resgatar a função social da eco- nomia: uma questão de dignidade humana (Dowbor, 2022), que está disponível gratuitamente no meu site dowbor.org. O problema do Brasil não é econômico, no sentido de falta de re- cursos. O Produto Interno Bruto (PIB) é o que produzimos de bens e serviços no país. O PIB do Brasil do ano passado foi R$ 8,7 trilhões, se dividirmos pela população (214 milhões de pessoas), dá R$ 13 mil, por mês, por família de quatro pessoas. É isso que o Brasil produz, o problema não é falta de recursos. O problema é o que produzimos, com que impactos ambientais e em particular para quem. Nós somos o sétimo país mais desigual do planeta. Temos um histórico de es- cravidão, pobreza, oligarquias latifundiárias e depois bancárias. Reco- D E MO C RAC I A E M F O CO 98 mendo muito o livro A sociedade desigual, de Mário Theodoro (2022), que conta com uma resenha no meu site.1 Ele aborda as articulações históricas do processo de desigualdade. A desigualdade constitui um marco estrutural central do Brasil, ela é nosso grande desafio, junto, evidentemente, à destruição ambien- tal. Essa desigualdade é eticamente uma desgraça, porque os pobres não são responsáveis pela sua pobreza, não foram eles que criaram esse sistema. Dizem que os pobres não querem trabalhar, e isso é um preconceito vergonhoso, porque as pessoas simplesmente não têm a oportunidade de cuidar da vida, e as oportunidades têm de ser criadas por quem criou o sistema: os grandes grupos financeiros. O sistema atual é financeirizado, como no resto do mundo, só que aqui é mais grotesco. De certa maneira, é um sistema em que nem o pobre merece sua pobreza, nem o rico, sua riqueza. O país está parado, quando você paralisa a capacidade de compra das famílias com a desigualdade, reduz o mercado interno. O resulta- do é que o Brasil produz para o exterior, enquanto a indústria local, a pequena e média empresa, está fechando. A indústria já represen- tou 21% do PIB no Brasil, hoje representa 11%, simplesmente por- que, para uma empresa produtiva funcionar, ela precisa de gente com dinheiro para ter para quem vender e tem que ter juros baratos para financiar o investimento. É assim que funciona na China, na Coreia, na Alemanha, em qualquer parte do mundo. Não depende do sistema. No Brasil não tem nem uma coisa nem outra porque a população está quebrada, está passando fome. Trinta e três milhões de pessoas estão passando fome, e 125 milhões estão em insegurança alimentar, em um país que produziu, só de grãos, 3,7 kg por pessoa, por dia, na úl- tima safra. Sem falar das batatas, tubérculos etc. Isso é absolutamente escandaloso (Campello e Bortoletto, 2022). Todo o processo de redistribuição que começou com Lula e depois com Dilma foi revertido a partir de 2014 e 2015. De lá para cá, é o nono ano que o país está com a economia parada. O Banco Mun- 1 Disponível em: https://dowbor.org/2022/05/a-sociedade-desigual-racismo-e-bran- quitude-na-formacao-do-brasil.html. N.O.: Para uma análise do processode concentração de renda no Brasil, ver, também, SOUZA, Pedro Herculano Guimarães Ferreira de. Uma história da desigualdade: a concentração de renda entre os ricos no Brasil (1926-2013). São Paulo: Editora Hu- citec, 2018. a c r i s e e co n ôM i ca b ras i l e i ra 99 dial diz que hoje, em 2022, estamos mais ou menos no mesmo ní- vel econômico de 2011. O problema central é que temos bilionários que estão enriquecendo de maneira escandalosa. O Brasil tem 315 bilionários que aumentaram sua fortuna de maneira brutal durante a pandemia. Quando começou a pandemia, a Forbes (2021) america- na calculou que, entre 18 de março e 12 de julho (quatro meses), 42 bilionários brasileiros aumentaram suas fortunas em R$ 180 bilhões. Cento e oitenta bilhões de reais correspondem a seis anos de Bolsa Família, que era para 50 milhões de pessoas. Estamos falando de 42 pessoas em quatro meses, inclusive sem pagar imposto. Desde 1995, lucros e dividendos distribuídos não pagam impostos no Brasil. Isso é simplesmente uma desarticulação em que a economia para de traba- lhar para a população e para o país. São sistemas extrativos organiza- dos para grandes corporações.2 Isso leva a outro eixo fundamental, que é a subutilização dos fato- res de produção. Dos 214 milhões de habitantes, 150 milhões estão em idade ativa (uso o dado da metodologia da ONU, 16 a 64 anos). Temos uma subutilização da força de trabalho que é dramática, porque temos apenas 33 milhões de empregos formais privados. São 150 milhões em idade ativa, 106 milhões na chamada força de trabalho — os que estão inseridos no mercado de trabalho — e apenas 33 milhões, se acres- centarmos as empregadas domésticas, chegamos perto de 40 milhões. Há uma subutilização dramática da mão de obra. Temos 40 milhões de pessoas trabalhando no setor informal, segundo o IBGE (2021), que ganham metade do que as 33 milhões de pessoas do setor formal ganham. Quando desço alguns quarteirões pelo centro da Lapa, onde moro, vejo milhares de pessoas vendendo qualquer bugiganga de plástico no meio da rua. Isso é um escândalo. Toda essa gente tem inteligência como eu, como cada um de nós, elas poderiam estar produzindo, ge- rando coisas úteis para o país. Temos 15 milhões de desempregados e 6 milhões de desalentados, ou seja, as pessoas desistiram. Somando, dá quase 60 milhões de pessoas subutilizadas. 2 Ver também comentário de Eduardo Moreira: https://dowbor.org/2019/11/eduar- do-moreira-a-lista-de-bilionarios-da-forbes-e-a-destruicao-do-brasil-em-youtube- -23-min.html. D E MO C RAC I A E M F O CO 100 Essa é uma dinâmica, a outra é a subutilização da terra. O Brasil tem 8,5 milhões de km2, em hectares dá 850 milhões. Desses, 353 mi- lhões são estabelecimentos agrícolas, se tirarmos as áreas montanho- sas, pantanosas etc., temos cerca de 225 milhões de hectares de boa terra agrícola, que pode ser cultivada. No Brasil utilizamos 63 milhões de hectares, somando a agricultura permanente e temporária. Signi- fica que 160 milhões de hectares de terra agrícola são subutilizados ou estão parados — cinco vezes o território da Itália. São pessoas que estão sentadas em cima da terra esperando que valorize, elas soltam o gado e dizem: “Olha, sou produtivo, estou produzindo gado”. A JBS produz para exportação e diz que alimenta o mundo, só que ela ocu- pa basicamente um hectare por boi. A revista The Economist (2022) lembra que em um hectare de terra agrícola dá para produzir cinco toneladas de milho ou 28 toneladas de batata. Aqui você vai encontrar um boi. Subutilização da mão de obra, subutilização da terra, subutilização dos capitais, porque em vez desses afortunados criarem indústria, eles investem em aplicações financeiras, em ações de bancos, gerando for- tunas para as quais cada um de nós contribui, por exemplo, quando pega um empréstimo. Um empréstimo no banco, hoje, no Brasil, para pessoa física, está na faixa de 40%. Na França, os juros são de 3,5% ao ano, não existe juros por mês, é uma invenção brasileira. Aqui é agio- tagem generalizada. O rotativo do cartão no Brasil está 380%, no Ca- nadá é de 11% ao ano. Esse é o nível. Então, hoje, no Brasil, ganha-se muito mais sendo intermediário financeiro, aplicando em ações, ga- nhando com dividendos, com juros, com parcelamento no comércio. Conta-se nos dedos quais desses 315 bilionários brasileiros produzem algo. São donos de redes de farmacêutica, donos de dividendos, de ações de diversas empresas. Ou seja, é a financeirização em grande escala que simplesmente paralisa a economia. Temos a subutilização de mão de obra, subutilização da terra, subutilização dos capitais. Isso não funciona, estamos esperando os mercados resolverem?3 O Brasil saiu do mapa da fome em 2014 porque houve aumento de salário mínimo, Bolsa Família, Luz para Todos, na época foram 149 3 Sobre os juros efetivamente praticados para pessoa física e pessoa jurídica, ver ANEFAC. Pesquisa mensal de juros. Disponível em: www.anefac.org/_files/ugd/ 21624f_0293e95f8819415d9cf993d0b3296120.pdf. a c r i s e e co n ôM i ca b ras i l e i ra 101 programas sociais.4 A gente só fala em Bolsa Família, mas eram mui- tos e amplos e geraram inclusão, dinamização, e o Brasil saiu do mapa da fome. Foram criados 18 milhões de empregos formais privados na época. Na realidade, o sistema, tal como está, paralisa a economia, isso começa com [Michel] Temer e se reforça com o governo Bolsonaro. O exemplo da Petrobras é muito interessante, é uma empresa estatal que controlava o ciclo energético completo. Trabalhei em países afri- canos onde é preciso importar petróleo. Você sabe o que é exportar arroz para importar petróleo? Você está ferrado! Mas no Brasil, não, o país é um polo energético, isso é vital. Com o avanço da privatização e os preços cobrados da população e das em- presas como se o petróleo fosse importado, o resultado é que todo o dinheiro que você paga a mais pelo botijão de gás, para encher o tan- que etc. se transformará em lucros privatizados para a Petrobras e em dividendos para os grupos internacionais. Quando uma empresa é pri- vatizada, ela se abre para qualquer empresa mundial comprar as ações, ou seja, a privatização é desnacionalização. Você entrega o controle da energia do Brasil para grupos internacionais, é escandaloso. Imagine a China entregando o controle da sua energia para grupos internacionais! Na parte final do texto que mencionei, Resgatar a função social da economia, desenvolvo quatro eixos propositivos. O primeiro é orga- nizar a inclusão produtiva, porque temos imensos recursos parados e estamos esperando que os mercados resolvam, isso é idiotice. Países como Suécia, Finlândia, China, Coreia, Vietnã e tantos outros articu- lam iniciativas do Estado com o setor privado para fazer funcionar o conjunto; no Brasil esse negócio é simplesmente escandaloso. Sa- bemos que, no Brasil, 33 milhões de pessoas estão passando fome, 6 milhões são crianças, isso é um crime. São 125 milhões de pessoas em insegurança alimentar, porque os alimentos estão sendo exportados em vez de alimentar a população. Por quê? Porque desvalorizaram 4 N.O.: Em 20 de outubro de 2003, o então presidente Luís Inácio Lula da Silva (2003- 11) formalizou o Programa Bolsa Família ao editar a Medida Provisória no 132, que unificava três programas de transferência de renda condicionada herdados do governo Fernando Henrique Cardoso (1995-2002): o Bolsa Escola, datado de abril de 2001; o Bolsa Alimentação, criado em setembro do mesmo ano, e o Auxílio Gás, que remonta a janeiro de 2002. A Medida Provisória se converteu na Lei no 10.836, de 9 de janeiro de 2004. Lula também institui o programa Luz para Todos por meio do Decreto no 4.873, de 2003, uma reformulação do Programa Luz no Campo, que universalizava a rede rural de energia elétrica. D E MO C RAC I A E M F O CO 102 a moeda, o dólar rende muito mais, então cada dólar de exportação rende R$ 5,50 para o exportador, e ele não está interessadono mer- cado interno. São interesses internos articulados com os grandes traders, como ADM, Bunge, Cargill, Dreyfus, e com gestores de ativos (asset mana- gement), como BlackRock. A pequena e média agricultura familiar produz alimento para a população, mas temos um subabastecimento porque as corporações do agronegócio estão exportando, para lucro de grandes traders internacionais e seus associados nacionais. A Índia tomou uma medida muito simples: proibiu a exportação de trigo para assegurar a alimentação da população. São opções políticas, não são leis econômicas, não são “mercados”. Se um país não defende os seus interesses, será drenado. Trabalhei em diversas economias, fui consultor até do secretário- -geral da ONU, organizando sistemas para economias em crise. Isso aqui é uma vergonha. Basicamente, trabalho com a inclusão produ- tiva, com a reforma do sistema financeiro, para financiar a produção — em vez de extração financeira para grupos internacionais e para os bilionários nacionais — e assegurar uma gestão muito mais descen- tralizada. Porque nos países que vi que funcionam, os sistemas são muito mais descentralizados. Aqui no Brasil toda a discussão de alo- cação de recurso está em Brasília. Somos um país de 5.570 municípios, muito diversificados; se você não dá instrumentos para cada município organizar localmente sua economia, o negócio simplesmente não vai funcionar. Na Suécia, 70% dos recursos públicos são passados diretamente para o local, porque é no nível local que as pessoas sentem suas necessidades. É a educação, a saúde, o saneamento, enfim, o conjunto do cotidiano das pessoas. No Brasil, os recursos estão concentrados em Brasília, é uma guerra por acesso, orçamentos secretos, emendas parlamentares, negociatas com prefeitos que precisam se deslocar para a capital para conseguir recursos. É uma zona. Zona não é um conceito econômico, mas é o termo mais próximo do que fizeram com nossa economia — se en- contrarem um termo melhor, estou disposto. A descentralização inclui também a generalização da inclusão digital. Mais de 30% da população está excluída do mundo digital.5 5 Ver dados do Comitê Gestor da Internet: CGI.br. a c r i s e e co n ôM i ca b ras i l e i ra 103 Hoje, como um aluno estuda se não tem acesso à internet? Estão pre- judicando o futuro de toda uma geração. Nós temos um governo que essencialmente está submisso a interesses internacionais, apenas dois setores funcionam: a exportação de bens primários e os grupos finan- ceiros a partir desses juros monstruosos. O resto vai se desindustriali- zando, com efeitos dramáticos. Temos uma toupeira no governo, que eu espero que saia, mas o problema não é a toupeira, é quem colocou ela lá, que são os grandes grupos financeiros e os interesses interna- cionais. Para mim, a única maneira de resgatarmos os caminhos do Brasil é assegurar também sua soberania. [Aplausos]. CA P Í TU LO 8 Os Poderes no presidencialismo de coalizão Fernando limongi* É um grande prazer estar aqui, atendendo ao convite da minha com- panheira, estudante e colega de pesquisa Jaqueline Zulini, e estar na presença do Américo, da professora Margarida e do professor Ladis- lau. É muito honroso participar desta mesa. Pediram que eu conver- sasse com vocês sobre presidencialismo de coalizão. Começo justamente com a referência ao título absurdo do meu livro e da Argelina: Executivo e Legislativo na nova ordem constitucio- nal.1 Quem pensou nesse título? Que marketing político genial! Mas o interessante deste título é que estávamos justamente fugindo do “Pre- sidencialismo de Coalizão”, não queríamos usar o termo porque ele é marcado, carregado. Quando um termo ganha tantas conotações, ele acaba desgastado, com menos poder científico, analítico ou causal. Esse é um termo que, na verdade, persegue a todos que estudam, “trabalham”, pensam o Brasil do ponto de vista político. É um pouco uma esfinge, um puzzle que fica sempre a nos desafiar, tanto do ponto de vista da sua definição — o que é o presidencialismo de coalizão? — quanto no que diz respeito aos seus efeitos sobre o funcionamento do * Agradeço à Fapesp (processos ns. 00/14799-0 e 11/08536-1) pela subvenção de pro- jetos sobre esta temática. 1 N.O.: Figueiredo e Limongi (1999). D E MO C RAC I A E M F O CO 106 sistema político. Todas as dificuldades ou pontos positivos que acon- tecem no sistema político brasileiro são remetidos ao presidencialis- mo de coalizão. De alguma forma, tudo o que acontece no sistema político brasileiro acaba sendo referido a essa “entidade”. Esse o ponto. O presidencialismo de coalizão virou uma verdadeira “entidade”, um enigma a ser decifrado e, se não o fizermos, para aproveitar a referên- cia, ela vai nos devorar. Por isso, então, quando escrevemos o livro, quando reunimos os artigos que havíamos escrito, ao pensarmos no título, por que não escolhemos usar presidencialismo de coalizão? Justamente por isto, o presidencialismo de coalizão é como uma bexiga cheia de água que você tenta segurar, mas que vai escapando para um lado, escapando para o outro, vai tomando a forma quando você o aperta. Ele serve a muitas coisas, e o que serve a muitas coisas também serve a coisa alguma. Portanto, sempre cabe perguntar, sobre o que estamos tratando quando falamos de presidencialismo de coalizão? O que há de bom no sistema político brasileiro e o que há de mau? Essa é a verdadeira questão, o problema. O presidencialismo de coalizão conteria, seria capaz de revelar a característica essencial do nosso sistema político. O que está por trás de toda essa dificuldade, dessa indefinição con- ceitual, é a suposição fundamental de que existe algo que é específico do sistema político brasileiro, algo que nos distingue politicamente de todos os outros países do planeta. Por isso a referência à esfinge. A suposição da especificidade é tão grande, a ideia de que o Brasil seria diferente de tudo o mais leva a que se cunhe um sistema político único que ganha um nome próprio, o presidencialismo de coalizão. Só aqui, só no Brasil algo assim teria condições de existir. E esse é o segundo ponto. Além de único, seria anômalo, uma construção política aberrante, que não deveria existir, mas observa- da no Brasil. É como o besouro voar. Não dizem que, pelas leis da física, o besouro não deveria voar? Pelo menos era assim que se dizia quando eu era criança, que o besouro não deveria voar. Mas voa. É mais do que uma jabuticaba, somos um besouro que voa, ou uma ja- buticaba que voa. Ficamos patinando sobre isso. Buscando explicar a anomalia, a aberração. Em seu artigo original, Sérgio Abranches diz que o Brasil é único, específico e anômalo, pois não existe nenhum país do mundo como o s po D e r e s n o p r e s i D e n c i a l i s Mo D e coa l i zão 107 o Brasil.2 Mas isso não é verdade, e não era verdade na hora em que o Sérgio Abranches escreveu. Todas as características que ele elenca para dizer que o Brasil é essa jabuticaba que voa são encontradas em vários outros sistemas políticos. Então, não somos diferentes do res- tante do mundo, as leis da física valem aqui como valem no mundo todo. Se o besouro não pode voar, não pode aqui nem nos Estados Unidos, nem na Suécia. Se ele voa aqui, também voa na Suécia e em qualquer lugar. Abranches afirma que o Brasil tem um lado do desenho institucio- nal único, não encontrado em lugar algum do mundo. Mas essa é ape- nas parte da história contada. Abranches enfatiza também aspectos socioeconômicos. Esse fator subjacente dá vida ao modelo, ou melhor, o embasa. E a combinação entre o institucional e o social é crucial na caracterização apresentada, o que faz ou permite que a esfinge recuse qualquer interpretação. Se tratamos do aspecto institucional, os crí- ticos dirão: “não, o presidencialismo de coalizão não se restringe ao elemento institucional”. Quando se discute o aspecto social, a saída é dizer, “não, não é só o social, é o institucional também”.Mas, bem consideradas as coisas, nem na combinação entre essas duas caracte- rísticas o Brasil é único. Do ponto de vista socioeconômico, o que está por trás do argumento do Sérgio Abranches é que o Brasil é um país em transição do tradicional para o moderno, do atrasado para o desenvolvido, que o Brasil é um país de renda média com enormes diferenças regionais. Professor Ladislau acabou de abordar o tema em sua palestra. O Brasil está em um estágio do processo de desenvolvimento, mas vários países se encontram nessa mesma condição. E em países, não só nos em desenvolvimento, há com- binação das formas mais diversas de produção. Há áreas mais tradicio- nais, outras modernas, rurais e urbanas, e assim por diante. Do período que o Sérgio escreveu, durante a Constituinte de 1988, entre 1987 e 1988, até agora, o Brasil mudou muito, e continua mudando. A característica que o Sérgio (e que a literatura em geral) associa a esse atraso socioeconômico brasileiro, a sua repercussão no sistema político, é a da sobrevivência de relações sociais tradicionais que se traduzem no campo político. Em última instância, o argumento é o 2 Refiro-me ao artigo de Abranches (1988:5-34). D E MO C RAC I A E M F O CO 108 de que a maioria dos políticos seria eleita e reeleita por essas relações tradicionais, que inexistiria um mercado eleitoral pleno. Creio que isso não seja verdade. Simplesmente não é assim. Se há uma coisa que caracteriza o sistema político brasileiro é a competiti- vidade: as taxas de reeleição são baixas, isso é, os políticos têm grande dificuldade de se reeleger. Mesmo nas regiões mais subdesenvolvidas, mais “atrasadas”, a competição eleitoral é um fato. E, diga-se, foi acen- tuada no período do governo do PT por políticas sociais específicas, como a distribuição de cisternas ou o programa Mais Luz. Faz tem- po que as relações políticas tradicionais não explicam o que se passa na política no Brasil. O ponto essencial é: há competição eleitoral no Brasil, e quem é eleito — e este é um aspecto que eu gostaria de frisar, sobretudo em uma casa legislativa — é um representante legítimo do eleitorado ou povo brasileiro. A suposição de que os eleitos ganharam o mandato por artes e truques e não pelo processo eleitoral leva à conclusão de que os re- presentantes seriam ilegítimos e que, portanto, não representariam a população, é infundada. Em realidade, ela beira o absurdo. Aos olhos do público, essa visão contribui para a criação de uma descrença ge- neralizada no sistema representativo e, especificamente, contribui para deslegitimar o Poder Legislativo. Ele é sempre minimizado ou deslegitimado. Fala-se muito: “o Legislativo está pegando o orçamen- to, trabalhando o orçamento e roubando do Poder Executivo cada vez mais”. Quem disse que o orçamento feito pelo Executivo é melhor do que a proposta do Legislativo? Pode ser que sim, pode ser que não, mas os dois são legítimos. Por que dizer que emenda parlamentar é ilegítima? Os parlamentares são representantes do povo. Eles têm in- formação que o burocrata não tem.3 Retomando o fio do argumento. O aspecto socioeconômico que sustenta a anomalia, que embasa o modelo do presidencialismo de coalizão, a capacidade de os deputados escaparem do mercado elei- toral, não tem fundamento empírico. E é essa a suposição crucial que leva a visões estereotipadas do sistema político brasileiro do ponto de vista institucional. Volto ao ponto adiante. Vejamos agora a alegada especificidade institucional. Abranches afirma que a combinação entre presidencialismo e multipartidarismo 3 N.O.: Para uma síntese do processo legislativo no país, ver: Ricci e Zulini (2020). o s po D e r e s n o p r e s i D e n c i a l i s Mo D e coa l i zão 109 seria uma excepcionalidade do Brasil? Não, não era e não é verdade. O Chile sempre foi multipartidário e presidencialista. O Equador também. Há também a Finlândia… Bem, a Finlândia não é propria- mente presidencialista, mas no texto do Sérgio Abranches está como se fosse. Deixando a Finlândia de lado, o fato é que não há falta de países presidencialistas com coalizão, então, do ponto de vista ins- titucional, a combinação entre presidencialismo e coalizão não tem nada de específica, ela é natural, normal. É o que se espera, o que deve ser. Se o presidente não tem maioria no Legislativo, ele tem que formar uma coalizão. Critica-se muito as coalizões no Brasil, principalmente com o argumento de que “coalizão leva à corrupção”. Por quê? Se for verdade que coalizão leva à corrupção, isso também deveria ser verda- de para o parlamentarismo de coalizão. Aliás, ninguém nunca diz que existe um parlamentarismo de coalizão, mas a maior parte dos países parlamentaristas é de coalizão. Do ponto de vista explicativo, a coalizão, em si mesma, não diz nada. É certo que há características intrínsecas ao funcionamento das coalizões, sobre como elas organizam o processo político etc. Coali- zões são e devem ser estudadas. Mas elas são estudadas e são iguais aqui, na Suécia, na França, na Alemanha, na Finlândia, no Chile, na Bolívia, no Equador… Não há nada de específico nas coalizões do Brasil. No presidencialismo é a mesma coisa, há inúmeros países pre- sidencialistas, e há inúmeros países presidencialistas com coalizão. Toda essa visão focada na especificidade ou anomalia brasileira não se sustenta e, no fundo, acaba nos fazendo pensar pouco. Na prática, torna-se confortável raciocinar que “se temos um problema, é o presi- dencialismo de coalizão, a anomalia brasileira!”. Então, a minha proposta alternativa é pensar o problema e resolvê- -lo, partindo da investigação da sua natureza. Retomemos o caso do orçamento. Quem o controla, como é feito, com que transparência, quem tem poder, quem não tem — tudo isto se resume a uma questão microinstitucional que pode ser resolvida. Mas não com essa referên- cia ao excepcional, ao anômalo, à aberração. É da ordem das coisas, assim funciona o mundo: há um problema, corrige-se o problema. Oitenta por cento da política é enxugar gelo, tentar achar soluções para questões que vão se repor ali na frente. É uma corrida em que D E MO C RAC I A E M F O CO 110 você resolve um problema e cria outro; cobertor de pobre, puxa de um lado, abre do outro. Mas há várias soluções. Por exemplo, a partir da crise da CPI dos Anões do Orçamento, o orçamento foi refeito, repen- sado institucionalmente, e teve uma nova armação institucional que deu conta do problema.4 O que observamos hoje é um retorno àquele estado de coisas pré-CPI dos Anões do Orçamento, uma série de deci- sões institucionais que voltaram a reforçar o poder do relator. Práticas que foram coibidas em 1995 foram retomadas. A armação proposta em 1995 foi se esgarçando, se diluindo, até que se perdeu inteiramente a transparência do processo. A perda de poder do Executivo sobre o orçamento, contudo, se deve fundamentalmente a características do atual governo. Vocês devem se lembrar que esse governo começou com uma de- núncia do presidencialismo de coalizão entendido como: “o presiden- te não deve fazer uma coalizão, isso não é papel do presidente”. Na verdade, do ponto de vista institucional, esse comportamento é uma omissão do presidente, uma omissão institucional. O presidente avi- sou que não veio para governar. Foi isso que ele disse quando, após ser eleito, afirmou que não recorreria ao presidencialismo de coalizão. Porque não recorrer ao presidencialismo de coalizão significa dizer “não vou me preocupar com a aprovação da minha agenda”. Quem se preocupa com a aprovação de alguma agenda legislativa tem que organizar sua maioria e ele, o presidente Bolsonaro, se recusou a fazer isso. E no que deu? Deu em dois anos de paralisia completa, é só olhar os dados. A única coisa de relevante aprovada foi a reforma da previ- dência, porque o Legislativo puxou para si, enquanto o Executivo se omitia, não se esforçava pela aprovação da Reforma. Nos estudos do nosso grupo de trabalho,nós olhamos para tudo aquilo que Bolsonaro disse que ia fazer, todas as propostas políticas. Várias dessas propostas viraram projetos de lei ou mesmo medidas provisórias que foram editadas e perderam validade (Limongi et al., 2022:30-43). Leis foram enviadas para o Legislativo, que não fez nada. Por quê? Porque o Executivo tem que empurrar. Se o Executivo não 4 N.O.: “Os ‘anões’ eram o grupo político que controlava o processo orçamentário no Brasil de 1989 a 1993 a partir da Comissão Mista de Orçamento, interagindo de modo corrupto tanto com integrantes do Executivo quanto com certas empreiteiras” (Praça, 2011:142). Para uma análise deste escândalo, ver também Krieger, Rodrigues e Bonassa (1994). o s po D e r e s n o p r e s i D e n c i a l i s Mo D e coa l i zão 111 se preocupa com aquilo que definiu como sua agenda, não avança. É o básico. Então, denunciar o presidencialismo de coalizão é dizer: “eu não quero governar”. É lógico. O que Bolsonaro quer ou gosta de fazer? Ele quer ir para o “cerca- dinho” e falar bobagem para virar notícia, mas governar que é bom, isso não é com o atual presidente. Ele não tem essa preocupação. No presidencialismo de coalizão, formar essa coalizão é negociar politicamente uma agenda, isso é necessário. O que o presidente atual fez no segundo período do seu mandato? Entregou a confecção da agenda legislativa ao “centrão”. Já que não quero governar, já que quero brincar que governo, já que o que eu quero é falar bobagem, fazer live, ir ao cercadinho, o que vou fazer? Vou dar liberdade ao Legislativo, deixar que o Presidente da Câmara dos Deputados, o Arthur Lira, cuide de governar, deixar a coisa com o Centrão… E assim é, o Centrão, faz o que bem quiser com o governo!5 Isso é o presidencialismo de omissão, em lugar do presidencialismo de coalizão. Não é governo, não tem nada de característico do Legis- lativo, de relações tradicionais de clientelismo, o que for. É a omissão presidencial, omissão do seu papel constitucional. Mas vejam, o Le- gislativo tem agenda, precisa promover políticas públicas específicas para que seus membros, não todos, mas os que comandam o processo legislativo via a Presidência da Câmara, venham a se reeleger. Não se ganha mandato automaticamente, amparado em relações sociais tradicionais. A Constituição reserva ao Executivo a iniciativa exclusiva de lei nas áreas fundamentais. A Constituição de 1988 redesenhou o arca- bouço institucional de forma a dar ao presidente o comando do pro- cesso político. Se há algo que se pode dizer do presidencialismo de coalizão, é que ele é presidencialismo em itálico e coalizão em forma- tação normal (presidencialismo de coalizão). Mas hoje nós não temos presidente. Esse é o caminho da crise. A anomalia, hoje, é o presiden- 5 N.O.: Em agosto de 2022, quando o professor Fernando Limongi realizou esta pa- lestra, Arthur Lira presidia a mesa diretora da Câmara dos Deputados, posição que ocupava desde fevereiro de 2021. D E MO C RAC I A E M F O CO 112 te, é a visão que o presidente tem sobre seu papel. Basta olhar como ele se pronuncia o tempo inteiro, “não me deixam fazer”, “não fiz isso porque não pude”. Desculpas, só desculpas. Para concluir, do ponto de vista institucional, o presidencialismo de coalizão com multipartidarismo não é uma anomalia, é normal, usual. Vários países têm presidencialismo e coalizão. Se pensarmos em alternativas institucionais, só há duas. Ou muda, acaba com a coa- lizão, ou muda, acaba com o presidencialismo. No primeiro caso, para acabar com a coalizão teríamos que passar do multipartidarismo para o bipartidarismo, o que é praticamente impossível. Os militares tenta- ram. Todos devem se lembrar. Alguns aqui não eram nascidos, mas, infelizmente, eu era. Não dá certo, não funciona. Não se cria partido por decreto. Mesmo que você manipule a legislação eleitoral para ge- rar dois partidos, não vai deixar de criar uma coalizão, o PMDB era uma coalizão, a Arena era uma coalizão. Pensando na segunda alternativa, podemos passar para o parla- mentarismo, abandonar o presidencialismo. Já se tentou. Já rejeita- mos o parlamentarismo, já não passou na constituinte e houve um plebiscito depois. Mas tudo bem, se tivermos “parlamentarismo de coalizão”, vai mudar alguma coisa? O problema não é o presidencialismo de coalizão. Concretamente, o que temos diante de nós é uma eleição. Depen- dendo de como os brasileiros usem o poder de voto, teremos versões diversas do presidencialismo de coalizão em operação. Cabe ao pre- sidente definir e alterar como funciona a coalizão. Os dois principais candidatos já mostraram como se comportam diante do seu poder e dos demais. Muito obrigado. [Aplausos]. CA P Í TU LO 9 Judicialização da política no Brasil pós-1988 Margarida lacombe camargo Obrigada a todos aqui presentes. Agradeço o convite da Maria Lúcia Horta Jardim. É um prazer muito grande estar aqui com vocês. Meu tema é sobre o Poder Judiciário, depois dessa excelente palestra que abordou as relações entre o Executivo e o Legislativo. Acho que o pro- fessor Limongi me deixou uma brecha ótima quando falou do presi- dencialismo de omissão. Na atual conjuntura de ausência de governo; de ausência de presidente da República, temos um Poder Judiciário que se destaca na ordem do dia. Talvez, por isso, eu tenha sido convi- dada para falar sobre o tema da “judicialização da política”. Minha fala vai se concentrar, inicialmente, em algumas distinções possíveis entre temas que são muito próximos: a judicialização da política, o ativismo judicial e a politização do Poder Judiciário, para, depois, apresentar algumas razões de ordem institucional política e social do fenômeno que podemos entender como judicializado da po- lítica, ou ativismo, ou politização. Usarei algumas definições como ponto de partida, e não como ponto de chegada, para pensarmos sobre a questão de judicialização da política. Antes, devo ressaltar que é um tema que conta com o pano de fundo do modelo da tripartição de poderes — Executivo, Legislati- vo e Judiciário —, que já conhecemos e que é típico do Estado Moder- no, um Estado construído, ou pelo menos conformado juridicamente, D E MO C RAC I A E M F O CO 114 como estado de direito em finais do século XVIII e por todo o século XIX. Só que, hoje, não podemos pensar muito nesse modelo de prati- camente dois séculos atrás. Consideremos, então, ao menos o estado democrático de direito, próprio do século XXI, tal como prevê a nossa atual Constituição e nos apontou o professor Ladislau em sua palestra, quando fala em função social da economia. O estado democrático de direito também apela para a função social da propriedade, quer dizer, para a função social das instituições. Hoje temos uma sociedade bastante midiática, com apelo muito grande aos nossos atores políticos para resolverem problemas de todo tipo.1 Chamo atenção para isso, porque não podemos trabalhar com o modelo puro de tripartição de poderes. Talvez nem com o presi- dencialismo puro, de matriz norte-americana, a ponto de nos levar a considerar o presidencialismo de coalizão uma anomalia. Mesmo se tomarmos o modelo de Executivo único instaurado no Brasil no início da República. Portanto, temos que pensar com cuidado sobre modelos puros, porque estamos em outro momento de sociedade, mais complexa e, volto a dizer, midiática, e com uma mídia eletrônica muito ativa, o que faz toda a diferença. Ran Hirschl, cientista político canadense, define judicialização da política como transferência de poder de instituições representativas para os tribunais, o que sugere que, de acordo com o modelo de tripartição de poderes, o Executivo e o Legislativo são poderes representativos, po- líticos por excelência.2 As pessoas que ocupam cargos nesses poderes são eleitas, escolhidas — ainda que haja cargos em comissão —, exis- tindo, portanto, toda uma responsividade perante a opinião pública. Afinal, são pessoas eleitas por tempo determinadoe que agem de ofício. Sabemos que o Judiciário, ao contrário, é um poder desinteressado, que age apenas quando provocado. O Poder Judiciário não age de ofício — salvo algumas situações específicas —, só atuando quando provocado, para interferir em determinada questão, um litígio ou problema que as pessoas não consigam resolver. Você chama esse terceiro desinteressa- do para, de forma imparcial — não vou falar neutra, mas imparcial, ou 1 N.O.: Para uma discussão sobre a erosão das fidelidades partidárias e o aumento progressivo de canais de participação não institucionalizados, ver Manin (2013:115- 127) e Urbinati (2013:5-16). 2 N.O.: Uma síntese do argumento de Ran Hirschl pode ser encontrada em: Hirschl (2011). J u D i c i a l i zação Da po l í ti ca n o b ras i l pó s- 1988 115 seja, equidistante das partes, sem um interesse nas partes específicas — resolver uma questão jurídica de acordo com a lei. Vale lembrar que o Direito existe para forjar uma realidade, controlar e administrar expec- tativas. Ele utiliza seus próprios termos, suas categorias, suas normas, suas definições e age de acordo com isso. Quando refletimos, portanto, sobre a transferência dos poderes representativos para os tribunais, é importante lembrar que o termo judicializar, em si, não traz problema nenhum. Judicializam-se os problemas da vida quando se recorre ao Judiciário buscando reco- nhecimento de direitos existentes. Mas judicializar a política é que são elas. Decidi concentrar a minha fala no Supremo Tribunal Federal (STF), pois me permite apresentar bem a relação tênue entre direito e política. Até porque acredito que, em boa medida, o modelo que vemos no STF pode ser replicado nos estados, dado o princípio da simetria na nossa Federação. Mas o que é judicializar a política? Costuma-se dizer que é quan- do o Poder Legislativo — uma casa parlamentar com dinâmica pró- pria e grande número de pessoas — não consegue resolver uma de- terminada questão que acaba levada ao Judiciário, mais facilmente provocado a dar resposta célere. Tem um exemplo que acho bastan- te típico: o da ADPF 442 (mais adiante, explico o que é ADPF). A ADPF 442 é o caso em que o Partido Socialismo e Liberdade (PSOL) provocou o Poder Judiciário ao levar ao STF a questão da descrimi- nalização do aborto. É fácil perceber que isso dificilmente passaria no Congresso Nacional. Então, o que faz o PSOL? Provoca 11 minis- tros e ministras a analisar o tema, porque é muito mais fácil acelerar a obtenção de um resultado por essa via, também, conhecendo um pouco do seu perfil e das possibilidades do resultado, ainda que em termos jurídicos. Tem todo um cálculo nessa história. A questão da descriminalização do aborto — o próprio nome já diz, uma coisa que é crime deixa de ser crime — é tipicamente da alçada do Poder Legislativo. Por outro lado, como diz respeito à vida e à liberdade das mulheres, que são direitos configurados na Constituição, tam- bém representa uma matéria jurídica, pois integra um diploma legal, a demandar de um tribunal que a interprete e decida se é norma jurídica constitucional ou não. Qual seria a diferença? O que vou procurar acentuar nesse exemplo? D E MO C RAC I A E M F O CO 116 Como comentei, o tema da judicialização da política, e a relação do direito com a política, é muito tênue. A Carta Constitucional é o pacto político fundamental de um país, pensando democratica- mente. No caso do Brasil, a Constituição de 1988 tem 250 artigos, e cada artigo tem vários incisos. O artigo 5o, que é a Carta de Direitos, tem 78 incisos, mostrando-se uma carta bastante grande e pródiga em direitos; uma carta compromissária, que institui muitos direitos a serem garantidos pela ação do Poder Judiciário. O que distingui- ria, na prática, o tratamento de uma questão como a descriminali- zação do aborto no Poder Legislativo e no Judiciário? O discurso. O discurso jurídico é controlado, parte de determinados princípios, normas configuradas como texto que passa determinada mensagem. A norma é obrigatória, imperativa, e é um princípio, ou seja, uma premissa geral, da qual se extrai uma solução para determinada questão, por meio de um desdobramento lógico dedutivo em função dos fatos provados em juízo. A ADPF 442 está sob relatoria da ministra Rosa Weber. Já houve uma audiência pública, ela ainda não proferiu seu voto, mas posso adiantar, com certeza, que ela trabalhará o tema sob a categoria dos direitos fundamentais da vida e da liberdade. Trabalhar com a catego- ria de direitos fundamentais é um tipo de norma jurídica muito dife- rente das regras. Ela tem uma estrutura diferente e também tem uma relação especial com os direitos humanos. Existem, também, regras de interpretação do direito. A ciência do direito sabe trabalhar com a hierarquia de normas, sabe lidar com o texto e a forma como ele deverá ser interpretado. Existe uma construção tipicamente jurídica. Quem passa por uma faculdade de Direito, onde fica por cinco anos aprendendo teoria e dogmática, aprende como lidar com uma norma jurídica, como lidar com termos vagos etc. É um tipo de raciocínio, de estrutura e de resposta muito diferente do que a gente encontra no Poder Legislativo, que tem uma dinâmica de interesses e de forças sociais muito distintas. Nesse sentido, a diferença que Dieter Grimm, ex-juiz do tribunal constitucional federal alemão, traça é interessante para distinguirmos o funcionamento do Poder Judiciário — como é próprio da dinâmica do direito e da ciência jurídica, diferente do que se passa em outras J u D i c i a l i zação Da po l í ti ca n o b ras i l pó s- 1988 117 esferas, como o Executivo e o Legislativo.3 Mas alguns temas passam por todas essas esferas. Quando falamos de judicialização da políti- ca, por exemplo, temos as questões que envolvem políticas públicas no âmbito dos poderes Executivo e Legislativo, mas que, ao mesmo tempo, envolvem direitos fundamentais previstos na Constituição, ca- bendo também, por isso, uma apreciação por parte do Poder Judiciá- rio. Até aí eu diria a vocês que não vejo tanto problema na questão da judicialização da política no Brasil, pois, como é amplamente sabido, as próprias características da nova Constituição, bastante pródiga na identificação de direitos, dão margem à ampla atuação do Judiciário. Afinal, a Constituição de 1988, pós-autoritarismo, é compromissária e traz vários direitos fundamentais. Trata-se de uma Constituição muito especial, porque fortaleceu o Poder Judiciário, principalmente o STF, a quem deu amplos poderes, além de abrir para a sociedade o controle da constitucionalidade, permitindo que setores organizados e legitimados participem do processo de interpretação da Constitui- ção e dos resultados daí provenientes. O artigo 103 da Constituição confere a nove entidades e entes a possibilidade de propor ação de controle de constitucionalidade das leis e ações diretas de constitucionalidade declaratória e de constitu- cionalidade por omissão. Vários atores representativos podem parti- cipar desse processo, ou seja, questionar diretamente junto ao Poder Judiciário se uma determinada norma agride ou não a Constituição. No caso, o autor da ação propõe uma interpretação própria do ato questionado e, com isso, participa ativamente da feitura de normas, porque no controle de constitucionalidade das leis a declaração de in- constitucionalidade tem como efeito expurgar, tirar do ordenamento jurídico a norma que foi feita pela casa legislativa que possui repre- sentação política: a soberania popular, por excelência. De acordo com essa dinâmica, de participação na criação de normas ainda que por essa via negativa ou indireta no controle de constitucionalidade, fala-se que o Supremo Tribunal Federal atua como legislador negativo. Entre os diversos atores legitimados a propor uma ação direta de inconstitucionalidade eu destacaria os partidos políticos, já que es- tamos em uma casa legislativa. Porque o partido políticocom repre- 3 N.O.: O leitor pode se aprofundar sobre a visão de Grimm e o caráter político da aplicação do direito em: Grimm (2006). D E MO C RAC I A E M F O CO 118 sentação no Congresso Nacional, mesmo que seja só com um ou uma representante, pode desencadear esse processo e provocar o Poder Ju- diciário para que este se manifeste em relação a alguma lei feita pelo Congresso Nacional. Não apenas isso, nosso sistema também prevê a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF), que é fortíssima. Meu amigo Vinicius Figueiredo diz que a ADPF é uma avenida aberta para se chegar ao STF, porque ela visa impedir ou reparar um preceito fundamental, de estatura constitucional, que não está sendo observado ou concretizado por ação ou inação do poder público. Não é apenas uma norma, portanto, que pode ser arguida como inconstitucional, mas qualquer ato do poder público que venha a ferir algum preceito constitucional de direito fundamental pode ser objeto de ADPF. Isso é só para vocês sentirem o quanto e como o Poder Judiciário pode ser provocado nessa dinâmica da judicialização da política. O ativismo judicial já é algo que não tem a ver com os mecanis- mos institucionais como os que acabei de descrever, quando agentes podem provocar o Judiciário e sobre o que ele pode ser provocado, o que é um mundo. O ativismo judicial é uma atitude. Como diz o cien- tista político Rogerio Arantes, da Universidade de São Paulo (USP), o ativismo judicial é uma atividade temerária, de permanência frágil. O ativismo é o contrário da autocontenção. Essa expressão, inclusive, foi cunhada por um jornalista dos Estados Unidos, para se referir a juízes que não eram comedidos na sua função de julgar. O ativismo é um comportamento muito favorecido pela institucio- nalização e, se é que podemos usar o termo anomalia, ele poderia ser usado para o ativismo, uma vez que o Judiciário deve ser visto como um Poder que fica à margem da política; um Poder que se preserva das influências e atividades políticas da sociedade. Mas existem al- guns fenômenos que dão, digamos, razões para o ativismo surgir. Por que os juízes, atualmente, aparecem tanto na mídia? Por que ocupam esse espaço? O ministro Luís Roberto Barroso fez uma afirmação inte- ressante ao dizer que o ativismo nem sempre é uma invasão de poder, mas uma ocupação do espaço de poder vago.4 Acho que os cientistas políticos podem falar melhor do que eu sobre os espaços vazios da 4 N.O.: Um exemplo do uso deste raciocínio pelo ministro pode ser conferido em: Barroso (2009:11-22). J u D i c i a l i zação Da po l í ti ca n o b ras i l pó s- 1988 119 política e que alguém invariavelmente ocupará. Se há um espaço va- zio de poder, alguém acabará por ocupá-lo. Falamos, por exemplo, da omissão do presidente da República. Lembrem-se do quanto o STF foi convocado e o quanto ele teve de agir durante a pandemia, porque não tínhamos um presidente que fizesse frente à crise sanitária que atingia o país. O Supremo, por exemplo, precisou exigir do governo um plano de vacinação em riqueza de detalhes como a organização das filas. É o exemplo típico de política pública que o governo central não criou e o Supremo foi provocado a estabelecer. Aliás, sempre ti- nha um partido político de prontidão para provocar o STF. Os parti- dos estão cada vez mais estruturados para isso, porque sabem que têm [no STF] um espaço muito propício de atuação de forças para pro- vocar um número bastante reduzido de pessoas, que compõem uma corte constitucional, em comparação com a magnitude de uma casa legislativa, para decidir uma política pública. No Brasil são 11 minis- tros e ministras, nos Estados Unidos nove, para ilustrar. O fato é que há todo um ambiente que permite que essa espécie de atalho aconteça. Lembro quando a ministra Carmem Lucia, na época presidente do STF, falou, na Academia Brasileira de Letras (ABL), sobre sua grande preocupação no sentido de o Supremo ter de tentar se conter para não adentrar o espaço político. O esforço a ser feito nesse sentido, já que era tão provocado. Retomando a questão das sociedades contemporâneas, que de- mandam muito e são permeáveis ao populismo, temos outro aspecto relevante a considerar quando se trata de ativismo judicial. O populis- mo, entre nós, foi instaurado com a vinda do presidente da República eleito em 2018, mas que tenho dificuldade de falar o nome. Naquele momento, movimentos como o MBL e o Vem pra Rua, juntamen- te com a mídia, insuflaram o impeachment da ex-presidenta Dilma. O mito que ia salvar o país era Sérgio Moro, e, depois, o inominável. Sempre queremos um mito, e vamos buscá-lo também no Poder Judi- ciário, onde alguns se arvoram a tal. Um dos ministros, por exemplo, diz que o Supremo tem que liderar a vanguarda iluminista para colo- car o país em um patamar superior de civilização. Existe um messia- nismo moralizador na figura desses mitos. Há toda essa dinâmica de natureza política e moral, mas há tam- bém aspectos estruturais e institucionais que permitem que isso acon- teça. Com relação ao próprio STF, o acúmulo de competência é de tal D E MO C RAC I A E M F O CO 120 ordem, que faz com que os ministros tenham de se dividir interna- mente para decidir e acabam fazendo-o monocraticamente. O que ve- mos com as decisões monocráticas — e às vezes também por via cau- telar de liminar, para questões que precisam de uma resposta rápida? As ministras, atualmente, até são mais tranquilas, mas os ministros se mostram bem mais aguerridos e começam a se sobressair, pessoal e individualmente. Não vou dizer quem está certo ou errado, porque acho que o contexto propicia esse cenário, mas precisamos pensar o porquê do excesso de demandas. Institucionalmente, é permitido que os ministros respondam à população, e no cenário político faz sentido aparecerem e que queiram aparecer, até como salvadores da pátria, sob, não raramente, os nossos aplausos. A politização do Judiciário é um assunto mais complicado. Não vejo a politização do Judiciário como anomalia, mas como patolo- gia. Por quê? Já tive oportunidade de falar sobre isso com Wander- ley Guilherme dos Santos, que infelizmente não está mais conosco,5 mas eu poderia dizer que a politização do Poder Judiciário acontece quando os agentes tentam interferir intencionalmente no proces- so de manifestação da soberania popular para obter determinados resultados. Cito como um exemplo típico a Operação Lava Jato,6 com todos os mecanismos heterodoxos, em que pese as tentativas de combate à corrupção, porque, sabidamente, foi utilizada com fins políticos, não há dúvida disso, para tirar o PT e o ex-presidente Lula da corrida eleitoral de 2018. A politização do Poder Judiciário também se disseminou no Tribunal Regional Federal da 4a Região, amparando o juiz de primeira instância, encarregado de apurar os fatos. O STF corroborou tudo isso, segurando as pontas do tribunal da Lava-Jato e do juiz de base. A politização do Judiciário também teve como antecedente o es- cândalo do Mensalão. Vamos lembrar da mídia, que é um ator funda- mental em todo esse processo. O Mensalão entrava nas nossas casas 5 N.O.: Um dos maiores cientistas políticos brasileiros de sua geração, Wanderley Guilherme dos Santos faleceu em outubro de 2019. 6 N.O.: Como ficou denominada a investigação deflagrada pela Polícia Federal em março de 2014 para investigar crimes de corrupção ativa e passiva, gestão fraudulenta, lavagem de dinheiro, organização criminosa, obstrução da justiça e recebimento de vantagem indevida. Para uma análise da operação sobre o regime político, ver Kerche e Feres Júnior (2018). J u D i c i a l i zação Da po l í ti ca n o b ras i l pó s- 1988 121 todos os dias. A TV Globo transmitia a cobertura do julgamento do STF como se fosse uma novela, e ali começaram a surgir algumas figu- ras candidatas a salvar a pátria, como o relator do Mensalão, ministro Joaquim Barbosa. O Poder Judiciário apareceu, assim, comoaquele que veio para combater os males que assolavam o país. E alguns já queriam que o ministro Joaquim Barbosa virasse presidente do Brasil. Tudo isso começa com a televisão — TV Justiça, TV Globo… — as- sim como repetiu-se, depois, com a cobertura diária da Lava Jato e suas operações escandalosas. Na minha opinião, o Supremo se expôs demais, e a politização da Justiça resulta também daí. Expôs-se como ator político, e a verdade é que se passou a esperar isso dele. Quer dizer, aquele poder que deveria ficar afastado da vida política e legi- timar-se como terceiro desinteressado, a partir do momento que não o faz, entra em um jogo que não sabe jogar ou vai jogar à sua própria maneira. Passa a ser algo depois difícil de resgatar, de voltar a ser um Poder não político.7 Poderíamos dizer que a anomalia (acho que estou influenciada pela fala anterior, do professor Limongi) da Lava Jato é a prática de que “os fins justificam os meios”, com todas as suas formas heterodo- xas de agir, não respeitando o dever do processo legal em conchavo com o Ministério Público, para extirpar da sociedade os males da corrupção que existe e precisa ser combatida. Agora, clamamos para que “os meios justifiquem os fins”: isso é, admitimos que a forma (processualmente) correta legitime os fins alcançados. No momen- to, vemos um STF muito atuante para assegurar o processo eleitoral diante do golpe que o inominável ameaça dar. É o Poder da Repú- blica que vem garantindo a liberdade de expressão e não do ódio e da mentira. A liberdade de expressão tem limites. Discursos de ódio e fake news não podem ter espaço em um Estado democrático. Procurando fazer valer os meios eleitorais para alcançarmos, como fim almejado, quem for legitimamente eleito. Mas, vejam, é um Po- der que atuou na Lava Jato na base de os fins justificarem os meios, uma prática que deturpa completamente o sistema, e, agora, procura garantir os meios que justificam os fins, como sua função adequada, 7 N.O.: Para uma análise da judicialização da política e da politização das instituições judiciais no Brasil, ver: Arantes (2002). D E MO C RAC I A E M F O CO 122 a ponto de preservar e garantir um processo eleitoral, o que não é pouca coisa. O Poder Legislativo ficou muito desacreditado pelo Mensalão, que fez o favor de criminalizar a política e desacreditar parlamenta- res. Ouvia-se, e ainda se ouve, que “político é bandido por definição”. O Poder Executivo, por sua vez, também se tornou desacreditado pela Lava Jato, a ponto de ser corrupto por definição. Assim, acaba sobran- do o Poder Judiciário, como instância idônea, a quem a sociedade re- corre, conferindo-lhe legitimidade política para decidir, provocando, por consequência, a transferência do poder político a ponto de poder interferir nos outros poderes. Nitidamente algo que não confere com o modelo de estado de direito mencionado anteriormente. Eu não saberia dizer como trabalhar com um modelo puro de tri- partição de poderes. Por outro lado, também não podemos desacre- ditar esse modelo, pois o que colocaríamos no seu lugar? Ao mesmo tempo, precisamos perceber que a sociedade está bastante mobiliza- da, reclamando por direitos; os partidos políticos estão extremamente instrumentalizados. Vemos que, imediatamente após o presidente da República publicar algum ato ou o Congresso alguma norma, o tópi- co passa a ser criticado como objeto de ADPF ou ADI proposta por partido político. Isso não é pouca coisa, porque tais instrumentos são acompanha- dos de petições cada vez mais bem elaboradas, e isso direciona muito a atuação de um ministro, ministra e da própria corte. Por exemplo, teve uma ADPF que caiu com o ministro Fachin sobre as operações policiais nas comunidades do Rio de Janeiro. Quem a propôs? Fatima Amaral aqui presente, e ex-aluna da Uerj, conhece o trabalho da Clí- nica de Direitos Fundamentais. A petição dessa ADPF foi elaborada pelo exímio constitucionalista Daniel Sarmento, que não sei se estava na Clínica ou não, que preparou uma peça fabulosa trazendo a ques- tão do estado de coisas institucional, no caso da atuação da polícia no estado do Rio de Janeiro. É uma peça perfeita, que cai na mão do ministro que tem que dar conta do estado de coisas institucional. A qualidade das peças iniciais não deixa muita margem de manobra ao ministro ou à ministra que tem que dar uma resposta à altura. En- tão, o que o processo da judicialização tem provocado é algo extrema- mente complexo. Temos uma sociedade mais estruturada, mais mobi- lizada e mais organizada para agir. E o que podemos dizer? Que está J u D i c i a l i zação Da po l í ti ca n o b ras i l pó s- 1988 123 errado? Os partidos políticos não podem fazer isso? A Constituição tem que dar para trás? Tem que desfazer os direitos? Acho que nos cabe chamar atenção, criticar, e não ficarmos iner- tes diante de um contexto complexo, e verificar, junto à academia, ou espaços como este, como as instituições estão desenhadas, o que pode ser aprimorado, em que termos, o que é possível fazer etc. Não pode- mos tapar o sol com a peneira e achar que deve ser diferente. As forças sociais estão aí a se manifestarem. Nesse sentido, agradeço a atenção de vocês e espero ter trazido alguma colaboração. [Aplausos]. Debate Américo Oscar Guichard Freire (A. F.): É um prazer, é uma honra para mim estar aqui presente com os colegas mediando esta mesa do seminário, sobre as “Instituições políticas e relações Executivo-Legis- lativo no Brasil”. Dito isto, declaro as inscrições abertas para o debate. Pergunta 1 (Maria Lúcia Horta Jardim): Queria agradecer essas pa- lestras maravilhosas. Minha pergunta vai para o professor Ladislau. A professora Margarida trouxe o princípio que acho mais importante da nossa Constituição, que é o princípio da dignidade da pessoa huma- na. Na sua palestra, professor Ladislau, fica muito clara a situação caóti- ca que estamos vivendo, e o senhor tocou na parte da concentração do recurso no governo federal. Eu sou uma municipalista convicta, acho que temos que virar de ponta-cabeça a concentração de recursos. Sabe- mos que, na Constituição de 1988, os municípios ficaram com cerca de 22% dos recursos arrecadados pela União. Os municípios foram afas- tados e o que a gente percebe? É aquela velha frase, “O cidadão mora no território”. O poder local é o poder que tem uma ação mais rápida para atender, para ser solidário e para cumprir o seu papel de serviço público. O senhor vê alguma chance de isso ser revertido neste país? De vermos uma inversão da concentração de recurso no governo federal? A. F.: Obrigado, Maria Lúcia. Bom, a mesa pode fazer perguntas, en- tão, eu farei algumas também [risos]. Primeiro para o professor Fer- nando Limongi, eu queria te ouvir um pouco a respeito desse conceito de pemedebismo, criado pelo Marcos Nobre.1 Como você vê isso? Ele 1 N.O.: Marcos Nobre é professor de filosofia na Universidade de Campinas (Uni- camp) e diretor do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap). Publicou, em 2022, Limites da democracia: de junho de 2013 ao governo Bolsonaro, o livro que o professor Américo Freire aludiu para formular a questão sobre pemedebismo. D E MO C RAC I A E M F O CO 126 dialoga com o presidencialismo de coalizão, mas gostaria que você falasse um pouco desse conceito de pemedebismo. Para a Margarida, a minha pergunta é sobre os conflitos do Supremo Tribunal Federal (STF) com o Ministério Público Federal (MPF). Está havendo uma contenda entre o MPF e o STF, claro que são razões de ordem políti- ca… Mas são razões de ordem institucional também? Pergunta 2 (Jaqueline Zulini): Queria agradecer pelas palestras ma- ravilhosas e fazer uma questão para a professora Margarida. Também me incomoda muito essa tendência analítica de forjar uma separação dos poderes para estudar os resultados políticos substantivos. Pensan- do historicamente, a própria separação dos poderes foi um processo muito gradativo. Desdeo Brasil Império, por exemplo, os juízes de direito eram eleitos, então esta própria visão de que deveriam ser par- tes desinteressadas amadurece com o tempo. Mas como temos vários estudantes aqui que podem aproveitar esta sessão para pensar em fu- turos temas de pesquisa, eu gostaria de ouvir, professora, quais seriam as agendas potenciais em termos de judicialização da política, na sua visão. O que falta estudar, quais seriam as lacunas ou os debates que ficaram em aberto e parecem relevantes para se investir nessa área? A. F.: Obrigado, Jaqueline. Então passo a palavra para os palestrantes reagirem aos comentários e às perguntas. Começando com o profes- sor Ladislau, por favor, a palavra é sua. L. D.: Começarei comentando sobre a fala do professor Fernando. Acho que a partir de certo grau de desigualdade não tem democra- cia, simples assim. Não funciona, e basta ver como foi o golpe, basta ver o poder que temos. Segundo, esse presidencialismo de omissão, como foi falado agora pela professora, não é espaço vazio. É só ver o que estão fazendo com o petróleo. Na realidade, você tem um caos que se gera em termos de governança, e é muito importante enxer- gar isso. Em 1997, houve a autorização de financiamento corporativo das campanhas políticas, tivemos 18 anos de financiamento deslavado, com as grandes corporações comprando seus representantes. Só no fim de 2015 o Supremo declarou que era inconstitucional. Toda essa gente foi eleita de maneira inconstitucional, portanto, nesses 18 anos. D e bate 127 A partir daí, temos a violação de um primeiro artigo da Constituição em que todo poder emana do povo. Não está escrito que emana da corporação. Para mim, um ponto essencial é saber quem faz a lei. Por exemplo, isentaram lucros e dividendos distribuídos de pagar impostos. Todos esses milionários não pagam impostos, inclusive é legal colocar o di- nheiro em paraísos fiscais, com nomes fictícios. É legal porque quem faz a lei são eles. E quem aplica a lei é o governo eleito dessa forma. Temos uma série de leis básicas, por exemplo, o acesso à saúde é ga- rantido, certo, mas quebram a capacidade de financiamento do SUS. Então, para mim, o limite entre o que é legal e o que é legítimo real- mente tem que ser repensado. A questão da descentralização é uma coisa absolutamente funda- mental. Penso na Alemanha, onde a população não coloca seu dinhei- ro em bancos, coloca em caixas de poupanças locais, então os bancos não extraem os recursos das comunidades, em vez disso, as comuni- dades se apropriam de suas poupanças. Junte com isso uma descen- tralização muito maior dos recursos federais, do sistema tributário, para reforçar a capacidade local, e o resultado é uma apropriação da democracia pela base. A meu ver, isso é fundamental. Na Suécia, 72% dos recursos vão para os municípios. Segundo Kroeber (2016), a Chi- na é ainda mais descentralizada do que a Suécia. O governo central dá diretivas, financia, mas quem administra é o município, de maneira flexível e descentralizada. Na realidade, essa apropriação dos recursos pela base é um ele- mento absolutamente essencial. Para fazer seu município funcionar, o prefeito hoje viaja para Brasília para ver se tira uma lasquinha da emenda parlamentar para financiar algum projeto. Tem um excelente livro do Marcélio Uchôa (2021) que estuda a situação financeira dos municípios, ele fez o doutorado na área jurídica e é muito bom nesses processos. A capacidade decisória da autoridade local fica paralisada. Os prefeitos são obrigados a negociar lá para cima quanto vai pingar no seu município. Mas tampouco funciona o governo central, preso em micronegociações, a assegurar a construção de um viaduto lá no seu reduto eleitoral, contaminando o conjunto do sistema. Na reali- dade, o processo de gestão é simplesmente perverso. Temos de intro- duzir um pouco de gestão racional no conjunto do uso dos recursos públicos. D E MO C RAC I A E M F O CO 128 A. F.: Obrigado, professor Ladislau. Por favor, professor Fernando. F. L.: Vou começar pela observação do professor Ladislau e juntar com a questão do pemedebismo. Definições são arbitrárias, não são critérios de verdade. O que você chama de democracia, outro pode não chamar de democracia: a questão é o que você define como condição necessária. Se eu disser que a democracia exige igualdade social, então o Brasil deixa de ser uma democracia. Precisamos ter definições que sejam operacio- nais e que sirvam para alguma coisa. A definição da democracia com que eu trabalho, com a qual a ciência política normalmente trabalha, é a seguinte, se existe competição eleitoral, se há alternância no poder, então estamos diante de uma democracia. E isso, no caso, do Brasil, ocorreu. Mas é possível dizer “não, esse critério é insuficiente, conside- ro que uma democracia também tem que ter igualdade social”. O risco dessa definição específica é que você pode acabar com um conjunto vazio, isso é, que nenhum país possa ser considerado democrático. Pode ser verdade. Bem, que o Brasil é desigual, sabemos — e que esta desi- gualdade é um absurdo e deve ser combatida, reconhecemos. Isto não significa, a meu ver, que o Brasil não seja um país democrático. O Brasil é um país tropical, um país que não tem terremoto, um país desigual e um país democrático, ponto. As definições são ope- racionais, servem a algum propósito explicativo específico. Então, professor Ladislau, se você diz: “bom, então porque entrou muito di- nheiro para eleger essas pessoas, logo elas são ilegítimas”, isso significa que todos os representantes são ilegítimos. O sistema representativo não funciona sem recursos econômicos, ele dá vantagem a quem tem recursos econômicos, isso é sabido. E ele é desigual. Na teoria clássica, o mecanismo para selecionar representantes considerado mais demo- crático é o sorteio, não a eleição. A eleição é aristocrática, por defini- ção, porque trata as pessoas como desiguais. Eu não tenho a mesma chance de ser eleito que tem o Bolsonaro, eu sou desconhecido, Bolso- naro é conhecido. Como ele se torna conhecido? Gastando dinheiro. Ninguém vai se distinguir, ganhar relevância e chamar atenção para as suas características pessoais que vão valer voto se não fizer campa- nha. Simples assim, e isso envolve dinheiro. Se desigualdade social e o investimento de muito dinheiro em campanha política são critérios que tornam países não democráticos, então Estados Unidos, França e Inglaterra não podem ser classificados como democracias. D e bate 129 A quantidade de dinheiro é que deve ser regulada, certo? Isso é outra questão. Se nossa regulação é boa ou ruim e como ela deve ser reformada é outra questão. Dizer que é ilegítimo significa dizer “isso eu não trato”, significa “eu não participo desse debate”. Eu, pelo me- nos, como acadêmico, acho que devo participar desse debate e devo influenciar o quanto que o dinheiro deve pesar nas eleições e se a de- cisão da Suprema Corte é correta ou não. É nesse plano que eu quero debater. Essa questão de deslegitimarmos imediatamente nosso siste- ma eleitoral, sobretudo o Legislativo, é o que me preocupa. A tradição política brasileira e a forma de pensar a política brasi- leira sempre usaram uma velha fórmula que remonta aos anos 1960, quando se contrastava a imagem de “Executivo progressista” obstado por um “Legislativo conservador”. E toda a fórmula recomendada era a de reformar as instituições garantindo mais poder para o Executivo e menos poder para o Legislativo. Isso vem desde o coronelismo e o trabalho de Victor Nunes Leal,2 que abre margem para a construção de toda uma visão negativa do Legislativo, associado ao tradicional, ao atrasado, o que segura o país; e o Executivo como progressista, mo- dernizador, como alavanca da transformação etc. Isso está embutido no texto original do Sérgio Abranches. E — fazendo um salto triplo carpado, absurdo, ilegítimo e perigoso — acredito que isso também está por trás da teoria do pemedebismo.Devo dizer que tenho grande dificuldade de entender o que que é o tal do pemedebismo, não consegui ler ainda o último livro do Marcos Nobre e entender o que ele está dizendo, o que consigo tirar é de al- gumas conversas que tive com ele e de ler algumas de suas entrevistas. O que consegui entender é que o problema da política brasileira seria semelhante ao das mães que associam os problemas de seus filhos às más companhias. Então, o problema é a má companhia, o problema é o PMDB, o PMDB desencaminha todo mundo. O problema é a coa- lizão, é a concessão feita na coalizão. Dá a entender que o PT tinha um programa, o PSDB tinha um programa, mas, por andarem nessa má companhia, foram sugados para esse pântano amoral, que nesse contexto é o PMDB e toda essa fisiologia brasileira. 2 No caso, as ideias presentes no livro Coronelismo, enxada e voto: o município e o re- gime representativo no Brasil, escrito por Victor Nunes Leal e publicado pela primeira vez em 1949. D E MO C RAC I A E M F O CO 130 Acho que isso não é verdade! Não faz sentido do ponto de vista empírico, mesmo que a gente possa questionar o que for da Lava Jato, o que que a Lava Jato revelou, por exemplo, sobre quem controlava uma diretoria da Petrobras antes da coalizão ser feita? Ou, se nós qui- sermos voltar para o Fernando Henrique, quem controlava? Olha o Rodoanel de São Paulo, alguém fez coalizão com o PSDB para cair todo aquele maná na conta do José Serra? O problema é que existem dificuldades concretas. Nós somos um país desigual, como acaba com a desigualdade? Que políticas devem ser feitas para acabar com a desigualdade? O PT sabe? O PSDB sabe? O Marcos Nobre sabe? Não é porque o PMDB atrapalha que você não consegue corrigir o problema, é porque isso é difícil, é concretamente difícil, a maior parte dos países democráticos do mundo não fez, bas- ta ler Piketty (2014). Não foi a democracia que aliviou a desigualdade, foram as guerras, foi a destruição da riqueza dos mais ricos, não redis- tribuição por democracia. Então, o Brasil não é uma anomalia porque temos democracia e não conseguimos aliviar a desigualdade. Infeliz- mente é isso, porque a desigualdade se repõe. Sociologia I. Introdução à Sociologia. É disso que se trata. A gente tem que lutar contra a Socio- logia I, não é fácil. Fazendo um diálogo com a professora Margarida e sua excelente exposição que clarificou as distinções, eu acrescentaria que, a partir do Mensalão, a desconfiança do Legislativo foi generalizada. O Judi- ciário entrou na dança e associou Legislativo e Executivo. E é interes- sante que isso tenha acontecido quando o presidencialismo de coa- lizão passou a ser gerido pela esquerda. O Judiciário reagiu: “eu não desconfio apenas do Legislativo, eu desconfio também do Executivo”. Isso é claro no Mensalão. E a inversão que se dá é “vou controlar isso aí”. E é imediato, são as coisas mais malucas que acontecem. Cito, por exemplo, a derrubada da cláusula de barreira pelo Supremo com a justificativa. Se você lê os votos dos Ministros do Supremo, você en- tende que é isso que eles estão fazendo. Vamos acabar com essa visão pejorativa do presidencialismo de coalizão, acabar com a negociação escusa dos partidos com o Executivo.3 Porque o Executivo que agora é 3 N.O.: Em dezembro de 2006, duas ações diretas de inconstitucionalidade, movi- das pelos partidos PCdoB, PDT, PSB, PV, PSC, PPS e PSOL, provocaram o STF a se manifestar sobre o dispositivo da legislação eleitoral que impedia o funcionamento parlamentar, a participação na propaganda eleitoral e o acesso ao fundo partidário D e bate 131 o centro da corrupção, o centro do lado negativo do presidencialismo de coalizão, ele alimenta o monstro. Ele vive do monstro. Eu entendo todo o movimento que ocorreu no pensamento cons- titucional que levou a essa valorização do Poder Judiciário, de tirá-lo dessa posição neutra, de só agir quando motivado, quando chamado a intervir, e lhe dar um papel positivo, ativo. Mas se você dá esse papel para o Judiciário, não tem volta. Você pôs o carro em cima da ladeira e soltou o freio, e o fim é a politização, partidarização. Não se escapa disso. Política é tomar decisões do que é certo e do que é errado, do que deve ser feito e do que não deve ser feito. Então, é inevitável. Se o Ju- diciário passa a dizer o que é certo ou errado, o que a maioria pode ou não pode fazer, está imediatamente fazendo política, se aproximan- do deste ou daquele partido. E o problema toma proporções enormes no Brasil, pois os ministros do Supremo podem e tomam decisões monocráticas com tamanha frequência. O Supremo só não vai des- cer a ladeira se ele mesmo puxar o freio, por meio da autocontenção. A autocontenção é a norma que o Supremo norte-americano sempre tomou para não intervir na legislação eleitoral. “Eu não entro nisso, quando entro, entro com muito cuidado, com muito dedo, e sempre pegando uma tangente para não dizer que estou entrando na política.” Todo o problema de gerrymandering, do desenho dos distritos, e do direito do voto aos negros nos Estados Unidos seguiu esta linha moderada, de autocontenção.4 O Supremo lidou com essa dificuldade com tato, pela tangente, sempre dizendo “faz de conta que eu não es- dos partidos que não atingissem pelo menos 5% dos votos em nove estados durante as eleições para a Câmara dos Deputados. Como resultado, a corte votou, de forma unânime, pela derrubada daquele dispositivo da legislação eleitoral, declarado incons- titucional. Para uma discussão sobre a influência do Judiciário na competição eleitoral, ver: Marchetti (2015: v. 1). 4 N.O.: O termo gerrymander entrou para o jargão político em 1812, quando Elbrig Gerry, que estava à frente do governo do estado norte-americano de Massachusetts, encampou uma reforma eleitoral que redesenhou as fronteiras do condado de Essex, forjando artificialmente a concentração do eleitorado dos Federalistas no novo limite territorial utilizado para definir o resultado de uma corrida eleitoral para o Senado. Com a publicação de uma matéria no jornal Boston Gazette, que ilustrava o formato do novo distrito como uma grande salamandra (salamander, em inglês), surgiu o neolo- gismo gerrymander, empregado para definir o redesenho proposital das fronteiras dos distritos eleitorais com o intuito de fabricar maiorias eleitorais. Para um exemplo da continuidade da prática na política norte-americana, ver: Monmonier (2001). D E MO C RAC I A E M F O CO 132 tou entrando na política” quando estava. Agora, com todo o problema observado na última eleição presidencial, os estados começaram a re- formar suas legislações, muitos deles inventando os mais descabidos casuísmos para enviesar os resultados das próximas eleições presiden- ciais. Esse movimento está forçando o Supremo a regular o processo, afinal se trata de uma eleição nacional. Até o momento, o Supremo se recusou a intervir, falando que isso “não é comigo”. E se for assim, teremos 51 estados decidindo como fazer a eleição presidencial dos Estados Unidos. Isso em um sistema em que quem ganha em um es- tado ganha todos os votos do estado. Mas por que que falei disso? Eu estava falando da judicialização e um pouco desse problema que é institucional do nosso Supremo. Concordo, seria ótimo se os ministros tivessem o comedimento que as ministras têm demonstrado, sobretudo a Rosa Weber, que é a mais comedida, a mais cuidadosa. Mas é estranho… Porque, por exemplo, uma decisão como a do aborto, um partido de esquerda aciona o Judi- ciário para dizer “vocês têm que decidir isso”. Não, quem tem que de- cidir é o Legislativo que é quem faz a lei. O que aconteceu? O partido que sabe estar em minoria vai ao Supremo para buscar uma decisão por um circuito alternativo e ativa um ator que, em última instância, não é eleito, nem é formado por sorteio. No caso do Supremo, é um processo muito complicado, político. No caso de juízes das instâncias inferiores, a entrada é por concurso. Quem controlao concursado? Bom, queria agradecer novamente, foi um prazer, sobretudo de- pois da riqueza das colocações do professor Ladislau, da professora Margarida, agora passo a palavra para Margarida. A. F.: Obrigado, Fernando. Margarida, por favor. M. L.: Bom, são tantas as considerações, tantas ideias apresentadas, não vou dizer nem provocações, que dá vontade de fazer muitos co- mentários, mas não sei de quanto tempo a gente dispõe. Direi, contu- do, algumas palavras sobre o que Limongi trouxe. Realmente, coloca- mos o Supremo em um determinado patamar talvez sem volta, mas acho que pode ser feito algum redesenho no nosso sistema. Por exem- plo, diminuir a competência do Supremo, ou talvez a forma de indi- cação, de nomeação e tempo de permanência na corte. Podemos fazer alguns ajustes. Você falou da autocontenção nos Estados Unidos. Lá, D e bate 133 o modelo é bastante diferente, a competência é muito menor, não tem ação direta, é sempre o controle incidental. Lá também há as escolhas que a Corte faz, como não há, também, uma quantidade de atores tal como a nossa, que podem provocar a corte, que necessariamente tem que responder. Assim, acho que entre nós pode ter algum rearranjo. Agora, o Supremo brasileiro também não larga o osso; quer “todo o poder do mundo”. Na Constituinte já foi assim: não quis ficar só como corte constitucional, quis também a última instância recursal. Mas, talvez, possa se tornar apenas, o que não é pouco, uma corte constitucional. É interessante também quando você falava na primeira parte so- bre coalizão. Vejo que a coalizão política nos Estados Unidos está na Suprema Corte, a grande coalizão está lá. O sistema político norte- -americano é, na prática, bipartidário — tem outros partidos, mas temos praticamente democratas e republicanos —, e os presidentes procuram formar maioria na Suprema Corte. Trump, recentemente, fez por onde garantir uma corte conservadora que está tomando uma série de ações. No Brasil tivemos a questão da cláusula de barreira. Se não tivéssemos um excessivo pluripartidarismo, talvez fosse diferen- te. Não sei se é bom ou ruim. Acho que a Suprema Corte americana será conservadora até quase o fim dos tempos, porque eles cada vez mais nomeiam pessoas jovens. Ronald W. Reagan começou com isso, George W. H. Bush seguiu a tendência de nomear jovens. E é preciso lembrar que os cargos na Suprema Corte americana são vitalícios, não há aposentadoria compulsória; então, a pessoa pode ficar atuando até morrer. Esta corte agora que está de nove a três vai ficar aí durante muito tempo. A formação de uma coalizão para apoiar governos con- servadores deu-se aí. Sobre a pergunta do Américo sobre o Ministério Público, não saberia falar muito, acho que eu vou decepcionar um pouco a sua pergunta. Mas, de toda maneira, o Ministério Público é o titular da ação penal incondicionada e da ação penal pública. Na Lava Jato, por exemplo, o Ministério Público estava com a faca e o queijo na mão. Determinavam quem eles queriam denunciar e quem não queriam denunciar. Era nítido: denunciavam pessoas do PT e protegeram o PSDB. Agora, a CPI do SUS, com todo aquele material, e o Augusto Aras não oferece denúncia. Tem que ver como ele foi nomeado. Foi escolhido, nomeado pelo presidente da República; essas coisas talvez D E MO C RAC I A E M F O CO 134 possam se rearranjar. É uma peça-chave e acho que também podería- mos repensar esse modelo. A resposta para a questão da Jaqueline é no sentido de serem de- senvolvidas pesquisas de natureza mais sociológica e antropológica. Quem são esses atores, quem está propondo o quê, quando, quais são as articulações, quem está conversando com quem. Por exemplo, a questão da lei de improbidade administrativa que vai começar a ser julgada pelo Supremo, se retroage ou não retroage. Quem está pro- pondo? Quais são as forças envolvidas nesse processo? Sabemos que vai atingir a, b ou c, e, com isso, todo um casuísmo nessa história. Eu sugeriria alguma investigação de natureza desse tipo, porque modelos só institucionais puros não adiantam, tem que estar pari passu com a dinâmica social. Enfim, acho que tem outras coisas nas palavras do Li- mongi, mas esqueci, porque foram muitos pontos interessantes. Mas agradeço as perguntas. A. F.: Agradeço muito ao professor Ladislau, professor Fernando, professora Margarida, tivemos uma ótima sessão. Muito obrigado. [Aplausos]. M E SA 4 Capacidade estatal e políticas públicas Especialistas e sociedade têm se questionado sobre a capacidade esta- tal na provisão de políticas públicas no Brasil, sobretudo com o agra- vamento da crise econômica deflagrado pela pandemia da Covid-19. Muito antes de a conjuntura crítica dos últimos anos se formar, parte dos estudiosos não acreditava que as evidências de relações normal- mente harmônicas entre os poderes Executivo e Legislativo (Figuei- redo e Limongi, 1999; Santos, 2003) bastariam para analisarmos o desempenho da democracia brasileira. Tornou-se alvo de crítica a tendência de se manter o foco no ângulo da governabilidade do regi- me, que nos levaria a perder de vista a qualidade da democracia, em termos de responsividade aos cidadãos. O argumento era simples: o Congresso estaria se acomodando à agenda presidencial, mas não sob pena de comprometer a representação da diversidade da sociedade e prejudicar as próprias funções de fiscalização do Poder Executivo (Moisés, 2011). Com a posse de Jair Bolsonaro na presidência da República e a sucessiva crise sanitária, o interesse público sobre a capacidade estatal em atender as demandas sociais cresceu significativamente. Daí a or- ganização da mesa-redonda “Capacidade estatal e políticas públicas”, que conciliou a expertise dos palestrantes em diagnosticar os desafios vividos pela área com as expectativas e os caminhos possíveis para contorná-los. D E MO C RAC I A E M F O CO 136 Daniella Campello traçou um panorama preocupante. A seu ver, uma série de medidas tomadas pelo titular da presidência da Repúbli- ca (ou, muitas vezes, as estratégias de omissão e não decisão) estariam não somente contribuindo para o desmantelamento do Estado brasi- leiro, mas criando uma crise democrática sem precedentes na Nova República. O nível de autonomia burocrática no país foi o assunto de Sérgio Praça, que problematizou as vantagens e desvantagens da atuação politicamente independente de um quadro de servidores no alto escalão das agências burocráticas. Uma reflexão necessária para compreendermos o desempenho do governo e o jogo reputacional que desgasta a administração pública quando o chefe do Poder Execu- tivo almeja políticas impopulares (ou inconstitucionais). Para renovar nossas esperanças sobre o futuro do país, Celia Kerstenetzky conduziu um instigante exercício de projeção de políticas públicas rumo ao en- frentamento da desigualdade no Brasil. Em sua análise, a alternativa mais promissora seria dar protagonismo aos serviços sociais públicos como componentes centrais de uma agenda de desenvolvimento do país. A receita é conhecida mundo afora, disseminá-la em eventos de difusão como o seminário Democracia em foco é fundamental para levar a pauta à consideração da esfera pública. CA P Í TU LO 10 Crise democrática e desmantelamento do Estado Daniela campello Eu gostaria de agradecer a todas e a todos pela presença e ao CPDOC pelo convite. É um prazer estar aqui com os colegas Celia e Sérgio. Fa- larei de um tema que concerne a todos nós, não só como profissionais e cientistas sociais, mas como cidadãos, que é a erosão da capacidade estatal e da democracia, ocorridas no Brasil nestes últimos anos. Gos- taria de agradecer também ao Jimmy pela mediação. Vou começar trazendo uma frase do teórico político John Keane, que afirma que “o populismo é uma doença autoimune à democracia”.1 Os populistas eleitos democraticamente impõem, hoje, os maiores ris- cos às democracias estabelecidas, não só no Brasil ou na América do Sul, mas emvários outros países. São líderes populistas e autoritários eleitos democraticamente, que têm apoio popular e, com esse apoio, destroem as instituições por dentro, de forma a tornar os regimes mais autoritários de uma forma muito lenta. Acredito que esse seja o caso do Brasil. Tenho quatro pontos para fazer nesta conversa, e vou adorar escutar vocês e as perguntas para tentar esclarecê-los. O primeiro é que Bolso- naro é um líder populista e autoritário, eu diria, de livro-texto. O segun- 1 N.O.: O argumento pode ser encontrado no blog do próprio professor, no link: www.johnkeane.net/the-pathologies-of-populism/. Acesso em: 31 ago. 2022. D E MO C RAC I A E M F O CO 138 do ponto é que, como todo governo populista e autoritário, este atua para destruir instituições e usa uma estratégia muito interessante, que é a de descrédito e desativação. Vou explicar um pouquinho mais sobre isso adiante. Meu terceiro ponto é que essa destruição institucional é só um aspecto entre outros danos à democracia ocasionados por esse go- verno, sobre os quais irei falar também. Fecharei a conversa discutindo as perspectivas eleitorais hoje e apontando alguns caminhos de recons- trução institucional, e certas questões em que teremos que pensar para que essa reconstituição institucional e democrática ocorra, na hipótese da entrada de um novo governo. Para tudo isso, vou me referir à litera- tura sobre populismo e na minha perspectiva de cientista política. Pelas definições que a ciência política oferece, o governo de Jair Bolsonaro pode ser considerado populista em todas as suas dimen- sões. Do ponto de vista teórico, o presidente adota uma relação ami- go/inimigo com os oponentes, que, a seu ver, devem ser não apenas contestados, mas eliminados. Como outros populistas que conhece- mos do passado — desde Getúlio Vargas, Perón e, mais recentemen- te, Chávez —, o presidente se projeta como uma representação, ele mesmo, da vontade popular. Do ponto de vista institucional, que é uma segunda dimensão do populismo, Bolsonaro despreza regras, não aceita freios e contrapesos nem limitação de poderes. Como vou argumentar mais adiante, ele desacredita as instituições executivas de controle em vez de redirecioná-las seguindo sua agenda, como faz um governo democrata. Manipula orçamentos e lideranças de forma a impedir que essas instituições cumpram suas funções legais e even- tualmente constitucionais. Se, de início, a dimensão econômica do populismo — no sentido de uma política econômica de curto prazo, insustentável e eleitoreira — parecia ser a única ausente na campanha de Bolsonaro em 2018, hoje ela faz parte integral da prática desse go- verno. Temos um orçamento secreto, que deixa claro para a população e para os eleitores que o governo não crê que deva a eles qualquer satisfação. Nós criamos um estado de emergência recentemente, que permite que se quebre todas as leis que protegiam o país da dispu- ta eleitoral, autorizando o governo a gastar o que não tem, em uma tentativa desesperada de aumentar a aprovação e o apoio às vésperas das eleições. O teto de gastos — recém-criado e amplamente apoiado pelo ministro da Economia do presidente até pouco tempo atrás — foi desmantelado. E por aí vai. c r i s e D e Mo c ráti ca e D e sMa n te l aM e n to D o e sta D o 139 Assim como qualquer líder populista de livro-texto, o governo Bolsonaro está produzindo essa destruição da capacidade do Estado e oferecendo riscos à democracia que, honestamente, acredito, como cientista política, muitos de nós não contávamos que pudessem acon- tecer novamente, depois de tantos anos de redemocratização. Nesse sentido, a própria existência desse governo é uma evidência do mau funcionamento do nosso sistema político e da necessidade de repen- sá-lo. Dado o despreparo e o desapreço pela democracia de Bolsona- ro, se nosso sistema político de fato funcionasse, ele jamais teria se tornado presidente. Steven Levitsky e Daniel Ziblatt (2018) afirmam que, nos Estados Unidos, foram os filtros impostos por partidos que historicamente impediam — mas, em 2016, deixaram de impedir — que candidatos despreparados e autoritários como, no caso deles, Do- nald Trump, fossem eleitos. O nosso sistema partidário é falho nesse sentido. Bolsonaro é um candidato da franja ideológica cujas inicia- tivas legislativas foram sempre absolutamente irrelevantes e que sem- pre atuou e manteve um discurso e uma retórica antidemocrática. No entanto, ele conseguiu ser alçado à posição de presidente do país. Isso é um sinal de que há problemas em nosso sistema. Se o sistema político funcionasse de forma satisfatória, um presi- dente que contribuísse ativamente para maximizar os efeitos da crise sanitária do século, como foi o caso da pandemia da Covid-19 — fosse ao não gastar os recursos disponíveis ou gastando com a distribuição de medicamentos e tratamentos não reconhecidos pelo SUS; convo- cando a população para a rua; ou se recusando a comprar vacinas cuja eficácia era comprovada, para poder alimentar esquemas de cor- rupção na compra de vacinas que sequer haviam sido aprovadas pela Anvisa, como a CPI da Covid mostrou —, teria sido impedido. Bolsonaro não apenas foi eleito, como não foi impedido, e caso se configurasse o cenário antecipado por alguns economistas mais oti- mistas — um boom de commodities do tipo que ocorreu nos anos 2000 —, ele poderia facilmente ser reeleito, apesar de todas as tragédias que acabei de citar. A eleição e o governo Bolsonaro, nesse sentido, ofere- cem uma excelente oportunidade para repensarmos o sistema político brasileiro que precisa mudar para que um presidente que atente con- tra a democracia e as instituições não venha a ser eleito novamente. Muito se vem discutindo sobre se as instituições brasileiras fun- cionam, ou se hoje há riscos à democracia no país. Ainda há uma D E MO C RAC I A E M F O CO 140 minoria de cientistas políticos que tratam este governo simplesmente como um governo “normal” de direita. Como exercício de imagina- ção, proponho pensarmos como teria atuado um governo “normal” de direita, ou seja, que não fosse populista ou autoritário como é o caso de Bolsonaro. Pensemos, por exemplo, em Luis Alberto Lacalle Pou, eleito presidente do Uruguai em 2020: este presidente de direita adotaria uma agenda de economia liberal, que possivelmente envolve- ria privatizações, redução dos gastos do Estado, redução de impostos; daria prioridade, eventualmente, à exploração econômica em detri- mento do ambientalismo, entre outras agendas tipicamente de direita. O que proponho aqui é que, diferentemente desse exemplo, o go- verno Bolsonaro não mudou somente o direcionamento das institui- ções ou passou novas leis no Congresso que movessem o país na dire- ção da sua agenda. Ao contrário, a estratégia desse governo vem sendo a de desmantelar as instituições executivas e de controle ao ponto de que não se sabe mais o que restará e o que vai precisar ser reconstruí- do, uma vez que se inicie um novo governo. E a destruição institucio- nal ocorre, do meu ponto de vista, por meio de duas iniciativas muito consistentes nesse governo: a primeira é o descrédito, e a segunda é a desativação. Duas estratégias muito comuns em governos populistas autoritários. Vamos pensar nas instituições executivas: desde o começo esse governo desacreditou os resultados e questionou as práticas de ins- tituições. Começou com o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), cujos dados foram questionados. Bolsonaro acabou passando a divulgação dos dados de queimadas e incêndios para o Instituto Na- cional de Meteorologia (Inmet), subordinado ao Ministério da Agri- cultura. O Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) foi colocado em dúvida (no que se refere a estatísticas de desemprego), e se questionou a forma de fazer o censo. A Fiocruz já foi chamada de antro do esquerdismo e foi foco de massivas notícias falsas durante esse governo. O Instituto Butantan tambémfoi alvo do presidente, que levantou suspeitas em lives acusando superfaturamento nas vaci- nas. A própria Anvisa sofreu ameaças a profissionais que aprovaram a vacina contra a Covid para crianças. Em paralelo ao descrédito — quer dizer, fazer com que a popu- lação começasse a questionar se, de fato, os dados apresentados são confiáveis; se, de fato, o funcionamento dessas instituições acontece c r i s e D e Mo c ráti ca e D e sMa n te l aM e n to D o e sta D o 141 como deveria —, o governo desativou instituições com a estratégia de remover lideranças, indicando quadros não capacitados e reduzindo drasticamente as equipes e os orçamentos. Vou citar só três áreas, mas poderia passar a tarde inteira citando exemplos. A primeira é a cultura: o antigo Ministério da Cultura, que existiu em todos os governos desde a redemocratização, foi reduzido a uma subsecretaria, primeiro da Cidadania, depois do Turismo, e, desde então, patina com secretários alheios ao setor. Da mesma forma, o governo indicou um terraplanista para presidente da Fundação Na- cional de Artes (Funarte) e um racista para a Fundação Palmares, cujo objetivo é promover igualdade racial. Além disso, reduziu orçamentos e projetos, acabou com o Petrobras Cultural, que era o maior progra- ma de patrocínio do setor no país, entre outros incentivos públicos para a cultura. Mais recentemente, o Ministério da Economia enviou à Câmara dos Deputados uma proposta de lei que acaba com me- canismo de incentivos responsáveis pelo financiamento da indústria audiovisual no Brasil.2 É importante salientar que a constituição prevê que “o Estado garantirá a todos o pleno exercício dos direitos culturais e acesso às fontes de cultura nacional e apoiará e incentivará a valori- zação e a difusão das manifestações culturais”.3 Ou seja, a Secretaria de Cultura hoje não exerce o seu papel constitucional graças às ações desse governo. Estou falando aqui, muito provavelmente, para educadores e es- tudantes. O governo também impôs uma série de cortes orçamen- tários na educação, não só no Ministério da Educação (MEC), mas nas universidades federais, no Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE), no Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep) e na Coordenação de Aperfei- çoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), fazendo da educação a área mais atingida por cortes orçamentários no país. O governo mu- dou a composição do Conselho Nacional de Educação, substituindo integrantes que já estavam terminando seu quadriênio e deixando de fora representantes das escolas da rede pública estadual e municipal. No plano da retórica e descrédito, defendeu a “desideologização” do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem), ou seja, que o presidente 2 Refiro-me ao Projeto de Lei no 3.203, de 2021. 3 Constituição Federal de 1988, art. 215. D E MO C RAC I A E M F O CO 142 do Inep passasse um “pente fino” nos projetos, sugerindo que esses te- riam um viés ideológico. O MEC, no fim das contas, se tornou irrele- vante, chegando ao ponto de se manter totalmente ausente do debate sobre a retomada do ensino presencial e de se abster absolutamente no estabelecimento de qualquer diretriz da atuação dos governos lo- cais durante a pandemia. É impressionante. Houve época em que me perguntavam em entrevistas, e eu não conseguia me lembrar do nome do ministro da Educação. O caso do meio ambiente é bastante divulgado, e pode-se dizer com tranquilidade que o governo Bolsonaro desmontou a regulação e a fiscalização ambiental brasileira, o que não é pouca coisa. O governo retirou a autonomia do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) e do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) por meio de uma garantia da lei e da ordem e trocou funcionários civis por militares, que não apenas não são qualificados, como pararam de cumprir as ordens das institui- ções de proteção do meio ambiente. Também diminuiu massivamente o número de fiscais do Ministério do Meio Ambiente, do Ibama, do ICMBio, e os impediu de cumprir a lei, como a de destruição de equi- pamentos de desmatamento. Em 2019, o Ibama destruiu apenas 72 des- ses equipamentos, metade da média anual de 144 equipamentos entre 2014 e 2018, segundo dados oficiais obtidos pelo Intercept. O governo ainda tentou impedir o Ibama, o ICMBio e institutos de pesquisa de considerar a lei da Mata Atlântica,4 o que foi posteriormente revogado. Desmontou a Fundação Nacional do Índio (Funai) e a Secretaria Espe- cial de Saúde Indígena (Sesai), retirando verba do orçamento durante o período de Covid, diminuindo-o mais ainda, bem como restringin- do o orçamento para a saúde das populações indígenas.5 Tentou tirar o papel da demarcação de terra indígena da Funai, o que o Supremo Tribunal Federal (STF) barrou, mas reduziu a fiscalização, e essas terras vêm sendo invadidas sistematicamente. Resumindo, com Bolsonaro não houve uma transição de um go- verno de esquerda para um governo de direita, o que é absolutamente 4 Mais precisamente, a Lei no 11.428, de 22 de dezembro de 2006. 5 Vale observar que o orçamento da Funai para 2020 foi 27% menor em comparação ao de 2013. No caso da Sesai, a redução se intensificou ainda mais durante a pandemia da Covid-19. Em 2018, foi destinado R$ 1,1 milhão para a secretaria, que passou para 494 mil no ano seguinte, R$ 200 mil em 2021 e R$ 300 mil neste ano de 2022. c r i s e D e Mo c ráti ca e D e sMa n te l aM e n to D o e sta D o 143 válido e natural em democracias. O que aconteceu não foi simples- mente um redirecionamento ideológico, e sim uma estratégia delibe- rada de destruição institucional, algo que vai nos custar muito para reconstruir nos próximos anos. Esse mesmo processo aconteceu com as instituições de controle. Desnecessário dizer que Bolsonaro ignorou a tradição da lista tríplice na indicação para a procuradoria-geral da República, escolhendo um procurador que se tornou um aliado deliberado do presidente a ponto de não haver ninguém no país que espere que Augusto Aras tome qualquer providência contrária aos interesses de Bolsonaro.6 Isso é muito sério. No STF, o presidente começou com uma estratégia de descrédito que podia ser observada na relação com Dias Toffoli. Vocês certamen- te se lembram daquela reunião em que Bolsonaro, Toffoli (então pre- sidente do STF) e Rodrigo Maia (na época presidente da Câmara dos Deputados) falavam sobre o compromisso com mudanças em relação a determinada agenda política, algo que não se pode fazer sendo pre- sidente do STF. Toffoli foi bastante criticado pelas entidades de ma- gistrados no país.7 Bolsonaro explicitou, ainda, a intenção de apontar ministros do STF fiéis a ele, sem nenhuma tentativa de, ao menos, disfarçar o leilão que promovera antes que, finalmente, escolhesse os novos ministros do STF. Houve uma desinstitucionalização de processos fundamentais do Congresso nos últimos anos para passar proposições que interessam ao governo, principalmente depois da eleição de Arthur Lira para pre- sidente da Câmara.8 Lira vem desrespeitando o rito legislativo — reco- mendo a leitura do trabalho de Beatriz Rey, cientista política associa- 6 N.O.: A indicação de Augusto Aras para o cargo ocorreu em 5 de setembro de 2019, sendo a primeira, desde 2003, que desprezou os nomes da lista tríplice da Associação Nacional dos Procuradores da República, com os candidatos mais votados pela cate- goria. 7 N.O.: A má repercussão partiu, inclusive, da própria arena política, a exemplo da cobertura crítica da reunião publicada pela agência de Notícias do Senado Federal: www12.senado.leg.br/noticias/materias/2019/03/18/davi-maia-bolsonaro-e-toffoli- -discutiram-reformas-em-encontro-no-fim-de-semana. Acesso: 22 ago. 2022. 8 N.O.: Arthur Lira foi eleito presidente da Câmara dos Deputados para o biênio 2021/22 no dia 1o de fevereiro de 2021, com 302 votos, por meio do apoio do bloco formado por11 partidos (PSL, PP, PSD, PL, Republicanos, Podemos, PTB, Patriota, PSC, Pros e Avante). D E MO C RAC I A E M F O CO 144 da ao Iesp-Uerj, que mostra, muito clara e detalhadamente, como Lira vem violando regras estabelecidas pelo regimento interno da Câmara e promovendo mudanças casuísticas em atos de mesa, dispondo sobre o funcionamento das sessões e o regime de trabalho.9 É absolutamente ostensivo o que vem acontecendo no Congresso. Mais recentemente, o orçamento secreto10 é um tapa na cara do eleitorado, que lhe nega o direito de saber para onde vai o dinheiro de emendas parlamentares. O governo perseguiu, ameaçou, processou jornalistas e acadêmi- cos que escrevem nos meios de comunicação. No ranking do Repór- teres sem Fronteiras referente à liberdade da mídia em 180 países, o Brasil passou da 58a posição, em 2010, para a 110a, em 2022. Caímos, ou melhor, despencamos no ranking de liberdade da mídia. Junto a ela, outro processo paralelo ao de descrédito e desativação foi o da destruição dramática da transparência na gestão pública. É preciso notar que o governo Bolsonaro alterou regras de aplicação da Lei de Acesso à Informação no Executivo determinadas pelo Decreto no 7.724/2012, ampliou o grupo de agentes autorizados a colocar infor- mações públicas nos mais altos graus de sigilo (o ultrassecreto e o secreto), vetou trechos da lei que assegurava a proteção de dados das pessoas que apresentassem pedido de acesso à informação, suspendeu o prazo de atendimento a pedidos de informação, sem possibilidade de recurso contra tais negativas de atendimento a pedido. Enfim, defi- nitivamente diminuiu e reduziu, drástica e explicitamente, o acesso à informação sobre a gestão pública no país. A destruição institucional é um aspecto de riscos à democracia, mas não é o único. Alguns pontos muito importantes sobre os quais talvez não pensássemos antes vieram à tona de maneira muito osten- siva no governo Bolsonaro. O primeiro é a retórica — antipolítica, anti-instituições e antioponentes — que começou por fuzilar a “petra- lhada” e chegou a agressões pessoais a ministros do STF. As ameaças a ministros por parte de aliados é uma retórica que, de tanto se repetir ao longo dos últimos quatro anos, acabou por ser naturalizada. Às vezes, ao ler o jornal, ainda me choco com a naturalidade com que 9 Disponível em: www.beatrizrey.com/policy.html. Acesso em: 24 ago. 2022. 10 N.O.: Expressão cunhada pela mídia para aludir à falta de transparência do governo Bolsonaro desde a elaboração do orçamento em 2020, quando a autoria e os valores das emendas apresentadas pelos parlamentares deixaram de ser publicizadas, trami- tando sob o guarda-chuva geral das “emendas do relator” da matéria orçamentária. c r i s e D e Mo c ráti ca e D e sMa n te l aM e n to D o e sta D o 145 estamos falando de golpe, de Bolsonaro negociando saídas para não ser preso depois do fim do mandato. Isso não pode ser normalizado; constitui uma ameaça sem precedentes à democracia, pelo próprio entendimento do que é uma democracia. Esse processo naturalmente chega à população, e percebemos como os brasileiros veem a política, hoje, como uma guerra entre inimigos e não uma disputa entre adver- sários. Há quem creia que isso começou antes do governo Bolsonaro, mas acho muito difícil argumentar que qualquer coisa no nível do que está acontecendo hoje — isto é, a ideia de eliminar o seu opositor — acontecesse no passado. A segunda questão importantíssima foi que os setores das Forças Armadas voltaram a ser vistos como uma instituição ou Poder Mode- rador da República, afiançador — ou não — da democracia.11 Assis- timos a isso diariamente, desde o começo do governo. Houve quem chamasse os militares de “os moderados do governo”. Hoje é evidente que de moderados eles não têm nada. O aparelhamento do governo dos militares, inclusive da ativa, teve terríveis consequências, com as quais o próximo governo vai ter que lidar. A primeira foi estabelecer uma nova forma de “toma lá, dá cá”. Os militares ganharam, de um lado, uma reforma da previdência desproporcionalmente modesta,12 e foram massivamente contratados para funções em que não são es- pecialistas, culminando com a contratação de um ministro da saúde militar em meio a uma pandemia, e sabemos quais foram os resulta- dos. Por outro lado, isso permitiu um governo mais militar do que outros governos conhecidos por tal, mais militar que o governo de Hugo Chávez na Venezuela. Afinal, Chávez nunca teve tantos milita- res durante os primeiros quatro anos de seu governo. Bolsonaro esti- cou, com isso, todos os limites das suas relações com os outros pode- res, por meio de ameaças veladas de apoio dos militares a um possível processo de ruptura institucional. Toda a relação com o Legislativo e com o Judiciário se deu na base dessa ameaça. Pode ser verdade, pode não ser, mas nunca houve nenhuma razão ou nenhuma comunicação 11 N.O.: Para uma obra de referência sobre o papel moderador exercido pelas Forças Armadas durante parte da trajetória política brasileira, ver Stepan (1975). 12 N.O.: Comparativamente às demais categorias profissionais, a reforma da previdên- cia ocorrida em 2019 se mostrou mais generosa com os militares, considerando que para eles não se estabeleceu uma idade mínima para a aposentadoria e, além disso, ficaram determinados reajustes para os militares até 2023. D E MO C RAC I A E M F O CO 146 da parte das Forças Armadas para que se creia que não é real. A dúvida no ar mudou muito a dinâmica política desse governo. A politização da Polícia Militar (PM) é outro fato que aconteceu, em paralelo à liberalização de acesso a armas sem rastreio, reduzindo, assim, explicitamente, o monopólio do Estado sobre a violência e po- tencialmente aumentando a capacidade de atuação de milícias. Agora, a Câmara tenta acelerar um projeto que dá autonomia à PM em re- lação aos governos estaduais. Sabemos quais serão as consequências: mais autonomia significa menos controle dos governos estaduais. Por fim, vimos a redução dramática da participação da sociedade civil no governo — algo que tinha sido construído ao longo das últimas ges- tões, principalmente as do PT, por meio de instituição de conselhos, que eram 700 (se não me engano) e viraram cerca de 50 no governo Bolsonaro. Houve muitos ataques à democracia que foram além da destruição institucional, que é o que acredito que tenha realmente acontecido neste momento. Concluindo, há quem acredite que o que não mata engorda, e que, nesse caso, as instituições vão acabar fortalecidas, por- que vamos resistir. A pergunta é se sobreviveremos ou não. Até acre- dito que sim, mas o desgaste institucional foi tremendo, com todas as energias dedicadas a essa sobrevivência, em vez de avançar em tudo aquilo que já havia sido alcançado nos governos anteriores. É uma tristeza, não só deixamos de andar para a frente no ritmo que vínha- mos andando, mas andamos para trás. Quatro anos é pouco, é importante lembrar que a Venezuela, por exemplo, demorou oito anos sobre Chávez para deixar de ser consi- derada uma democracia.13 Não tenho qualquer dúvida que esse seria nosso destino em um segundo governo Bolsonaro. Agora, olhando para a frente, fecho com alguns pontos importantes. Acredito que Bolsonaro, muito provavelmente, não vai permanecer no poder pela via eleitoral, e não venho dizendo isso de hoje. As eleições no Brasil e na América do Sul são referendos sobre a economia,14 e a economia está em crise. Bolsonaro vem sentindo isso. Acredito e insisto nisso desde quando as notícias não eram necessariamente favoráveis. Acre- dito que esse seja o resultado, pois acho que as eleições ou perspec- 13 N.O.: O ponto é bem explorado por Levitsky e Ziblatt (2018). 14 N.O.: O argumento é desenvolvido em: Campello e Zucco (2015). c r i s e D e Mo c ráti ca e D e sMa n te l aM e n to D o e sta D o 147 tivas eleitorais não estejam favoráveis a ele e acredito que ele saiba disso.Então, acuado com essas poucas perspectivas, Bolsonaro vem sinalizando, há dois anos, no mínimo, suas intenções de questionar o processo eleitoral — essa crônica do golpe anunciado, que, lendo com cuidado, já estava anunciado até mesmo antes de o presidente ser eleito. Afinal, vocês certamente se lembram de que ele já dizia, em 2018, que se não vencesse era sinal de que as eleições não eram justas, seguindo passo a passo a receita de Trump. Ninguém sabe (colegas especialistas não sabem) como os militares se comportariam, ou te- riam se comportado se, por exemplo, como Lula, Bolsonaro tivesse hoje 87% de aprovação em vez dos seus 27%. Eu também não sei, nós não sabemos, e há muitas dúvidas sobre como eles vão reagir caso esta venha a ser uma eleição de um candidato do PT. Por outro lado, acredito que a sociedade civil, sobretudo as elites empresariais, parece ter acordado de um sono profundo e percebi- do o tamanho do buraco onde podemos nos meter no caso de uma tentativa de autoritarismo do Bolsonaro, isto é, o caos que isso vai ge- rar. Acho bastante lamentável que certos setores que ganharam muito no governo Bolsonaro, como foi o agronegócio, não se manifestem. É muito importante ter lucro, é muito importante poder investir, e ninguém questiona isso, mas é muito importante ter democracia também. Seria importante que todos os setores se manifestassem. A Confederação Nacional das Indústrias (CNI) também se absteve de se pronunciar até agora. Mas acredito que nós temos os sinais de uma reação que está acontecendo, e essa reação ocorre em paralelo a um posicionamento muito claro dos Estados Unidos hoje, com relação à crença no sistema eleitoral, nas urnas eletrônicas e no processo do voto no Brasil. Acredito que a reação desses dois atores — os Estados Unidos, que são ainda a grande potência, com um efeito muito impor- tante na nossa economia; e a elite empresarial — seja de bons sinais. Confesso que já estive mais pessimista em relação às possibilidades de uma ruptura democrática do que me encontro hoje em dia. Espero que, até as eleições, outros atores venham se juntar a esse movimento. Agora, para encerrar, uma breve reflexão sobre o que vamos preci- sar pensar para as próximas gestões e os próximos governos. Primei- ro, será pensar e repensar a relação com os militares, ou seja, como começar a impedir militares ativos de participarem do governo. É im- portante ter um ministro da Defesa Civil, acredito que, caso o Partido D E MO C RAC I A E M F O CO 148 dos Trabalhadores vença, isso estará na agenda deles. É muito impor- tante despolitizar as Forças Armadas novamente. O processo de mi- litarização não começou com Bolsonaro, mas antes, com Temer; ain- da assim, é muito importante olhar para ele. Também é fundamental despolitizar as PMs novamente e, sobretudo, impedir que essa última iniciativa do Congresso vá adiante, sem dúvida alguma. Vamos precisar passar um período refletindo, em termos institu- cionais, sobre como impedir os próximos presidentes de romper com práticas que sempre foram respeitadas, como a lista tríplice da Procu- radoria-Geral da República (PGR), ou fazer uma escolha, digamos, republicana de ministros do Supremo que não envolva um balcão de ofertas, como aconteceu. Uma vez que o atual governo mostrou que é possível atuar dessa forma, como fazer para que outros não façam o mesmo? Vamos precisar recompor políticas públicas de educação, cultura, meio ambiente e tudo o mais — o que é extremamente preo- cupante e frustrante, porque perdemos tempo nestes anos. Precisa- remos, sobretudo, retomar e aprofundar a participação da sociedade civil, que foi retirada do processo político nos últimos anos. Por fim, é importante dizer que temos que pensar o Brasil da mes- ma forma que a Alemanha nazista. Não é permitido que os políticos defendam o nazismo. Um país que tem uma trajetória de autorita- rismo militar deveria repensar se é possível eleger e ter políticos e pessoas públicas que defendam o autoritarismo militar, defendam a tortura e não apoiem a democracia. Acho que isso é uma questão para pensarmos para a frente, e que terá um impacto muito grande na con- solidação da nossa democracia depois desses anos de “semichumbo”, digamos assim. Concluo com essa reflexão. Obrigada. [Aplausos]. CA P Í TU LO 11 Autonomia burocrática no Brasil sérgio praça Hoje abordarei a interação de presidentes com agências burocráticas, com ênfase na possibilidade de que o chefe do Executivo tente imple- mentar políticas públicas indesejadas pelos burocratas concursados. Antes de mais nada, vale ressaltar, não estou considerando o papel do Legislativo, Judiciário nem de agências reguladoras. Considerarei pre- sidentes e agências burocráticas como atores unitários e homogêneos, para simplificar os argumentos. Em primeiro lugar, um órgão burocrático pode ter autonomia em relação a quê? Às maiorias políticas eleitas popularmente, por exemplo, ou a grupos de interesse com conexão com a área em que ele atua. Este último ponto é um argumento famoso de Terry Moe (1989:267-329), cientista político estudioso da burocracia e de grupos de interesse nos Estados Unidos que afirma que, por vezes, uma agência burocrática pode ser criada para atender aos interesses de um lobby organizado. Poderíamos pensar em uma agência burocrática de proteção aos indí- genas que fosse criada, em parte, por causa da pressão de movimentos sociais indigenistas; ou então em uma secretaria de agricultura familiar criada com base em certos interesses, como o de associações agrícolas ou ligadas a essa política pública. Ao longo do tempo, a agência buro- crática pode acabar não realizando o que o grupo de interesse presente em sua criação gostaria, desviando-se dessa missão original. Isso de- pende de quão detalhadas estão suas tarefas na lei que cria a agência. D E MO C RAC I A E M F O CO 150 Políticas públicas podem ser populares ou impopulares e podem ser constitucionais ou inconstitucionais. O que é uma medida “popu- lar”? É algo com que ganhamos no curto prazo e perdemos no longo prazo. Ninguém pensa no longo prazo. Estamos mais preocupados com o que faremos hoje, semana que vem, e assim por diante. Uma agência burocrática deve ter autonomia em relação aos po- líticos eleitos? Talvez. Conhecemos o caso do Banco Central e outras instituições contramajoritárias. É bom que o Banco Central não seja controlado por políticos, para poder tomar medidas que protejam a economia no longo prazo. Isso pode ser bem desejável para algumas organizações, mas certamente não deve ser a regra para todas. Seria ruim que todas as agências burocráticas dentro do Poder Executivo fossem completamente autônomas em relação ao presidente, que é eleito para governar e precisa ter ministérios e burocratas para im- plementar as políticas públicas que defendeu durante a campanha eleitoral. Assim, pensar em uma agência burocrática totalmente au- tônoma em relação às vontades do presidente não é tão saudável. Mas se o governante quiser implementar algo inconstitucional (esqueçamos o impopular por enquanto, vamos pensar em algo inconstitucional), é razoável desejar que a agência burocrática tenha um papel contrama- joritário. Burocratas podem fazer com que uma organização seja uma ferramenta contramajoritária para evitar que presidentes cometam atos ilegais. Não entrarei no mérito se, por exemplo, as pedaladas fiscais1 da presidenta Dilma Rousseff (PT) foram, de fato, uma ilegalidade ou não, mas foram consideradas algo inconstitucional por muita gente. Parte dos burocratas da Secretaria do Tesouro Nacional do Ministé- rio da Fazenda lutaram contra aquela medida. Agora, consideremos a hipótese de que o presidente, como Bolsonaro, diminui drastica- mente os recursos para universidades federais e para pesquisa em ciência e tecnologia etc. Isso é, em si, ilegal, inconstitucional? Não. Acho lamentável para o presente e para o futuro do país, mas não é, até onde eu sei, ilegal,inconstitucional. Por outro lado, as burocracias do Ministério da Educação (MEC), do Instituto Nacional de Estudos 1 Trata-se de operações realizadas pelo Ministério da Fazenda que consistiam em atra- sar o repasse de verba a bancos públicos e privados com a intenção de aliviar a situação fiscal do governo. Ver: Villaverde (2016). auto n oM i a b u ro c ráti ca n o b ras i l 151 e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep) e do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI) podem agir contra essa de- cisão política do Bolsonaro, alimentando os jornais com evidências dos problemas causados pelos cortes no orçamento: “Olha, aqui na universidade não tem mesa nova, não tem segurança, não tem limpe- za…”. E, dessa forma, provocar uma mudança na opinião pública, que fará pressão externa ao presidente. Dito de outra forma: imagine como a agência burocrática pode ga- nhar autonomia e sair, digamos, da tutela e do controle do presidente, para galgar mais espaço de atuação. Você pode nomear um dirigente que atenda a certos requisitos — como ter experiência no setor priva- do — e dar a esse dirigente “técnico” um mandato fixo ou escalonado.2 Um mandato fixo irá protegê-lo da demissão por parte do presidente em exercício. O sujeito pode ser, por exemplo, diretor de uma agên- cia reguladora e, como tal, tomar decisões com as quais o presidente da República não concorda. Haverá uma briga pública, mas ele não poderá ser demitido, porque tem um mandato de quatro, cinco, seis anos para cumprir até o fim, que não é coincidente com o mandato do presidente da República. Há também o mandato escalonado. Por exemplo, em uma agência burocrática com nove dirigentes, cinco são nomeados em 2023, e os outros quatro, em 2025, assim eles vão se alternando sem coincidir também com mandatos políticos — tanto dos parlamentares quanto do presidente. Um exemplo de uma decisão, ou melhor, de uma não decisão de baixíssimo custo hoje para Bolsonaro: todo mundo ficou sabendo so- bre o jornalista Dom Phillips e o indigenista Bruno Pereira assassi- nados, em junho de 2022, no vale do Javari, onde existe uma coorde- nação da Fundação Nacional do Índio (Funai) referente a territórios isolados.3 A pessoa responsável pela coordenação foi destituída do cargo e, até agora, o governo não nomeou um novo coordenador para a área, que está sem política pública. Acessem o site da Funai para ve- rificar por conta própria: não há um novo nome indicado para a área, trata-se de um cargo vago. Essa decisão não é exatamente ilegal ou inconstitucional, mas está impedindo que a Funai exerça sua atribui- 2 Sobre esse ponto, ver: Selin (2015:971-987). 3 Para análises semelhantes sobre o caso norte-americano, ver: Hollibaugh Jr. (2015:206-236) e Kinane (2021:599-614). D E MO C RAC I A E M F O CO 152 ção constitucional. Mas isso tem um baixíssimo custo para Bolsonaro. Ninguém ficará problematizando muito sobre isso. No início, houve considerável repercussão em torno do caso, mas passado um mês os assassinatos saíram da pauta diária do jornalismo. E ainda não foi no- meado um substituto para exercer aquele cargo de confiança. É um governo por omissão. O presidente pode nomear um militar que não queira aquela política pública ou simplesmente não nomear, e assim se destrói a política pública, ainda que lentamente. Não se deixa de implementar algo que deveria ser implementado. Se você não quer que a Funai exista, que aquela política exista, proponha que o Legis- lativo mude isso. Seria razoável? Bom, para mim não, mas pode ser que algum presidente assim acredite e jogue para o Legislativo, que é a arena para discutir a reforma da legislação, ao invés de simplesmente desconstruir as políticas públicas por omissão dentro do Executivo. Como a burocracia, diante de um presidente que almeja políticas impopulares ou inconstitucionais, pode cair nesse jogo de reputação? Uma das maneiras é pelo whistleblowing, ou seja, vazando informa- ções para o Congresso e para jornalistas.4 Em 2017, salvo engano, o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) incorporou a Controladoria-Geral da União (CGU), que é um órgão do Executivo a quem cabe auditar o uso de dinheiro público federal, de descobrir atos de corrupção etc. Em 2017, antes de Bolsonaro, o TSE instituiu o Ministério da Trans- parência e Controladoria Geral da União — mas vamos continuar chamando de CGU — como um órgão habilitado para fiscalizar as eleições. Até aí, tudo bem, já existiam outros órgãos com esse objetivo. Recentemente, li que, segundo uma resolução do TSE, a CGU está autorizada a auditar as eleições. Imediatamente, mandei mensagem para vários jornalistas estrangeiros que cobrem o Brasil, mas nenhum me deu atenção. O atual ministro da CGU, ministro Wagner Rosá- rio, é bolsonarista convicto, defende muito o presidente. Isso é ilegal, inconstitucional? Não, mas é uma informação relevante. Afinal, Bol- sonaro age para descreditar o processo eleitoral há anos. O problema é que a CGU, no âmbito internacional e doméstico, é uma agência burocrática com reputação razoável, tanto nacionalmente quanto in- ternacionalmente. Há ótimos auditores por lá, um corpo técnico de pessoas gabaritadas para fazer devidamente o trabalho. 4 Sobre isso, ver: Tavares, Lima e Michener (2021, no prelo). auto n oM i a b u ro c ráti ca n o b ras i l 153 Qual será a provável ação do Bolsonaro nas próximas semanas, isto é, se ele realmente tentar deslegitimar a eleição? Se eu fosse o pre- sidente e quisesse fazer isso, sabendo que a CGU está no rol de orga- nizações habilitadas para tratar da lisura das eleições, pressionaria o ministro Wagner Rosário a dizer: “olha, encontramos fraudes aqui”. Se disserem que a Polícia Federal não encontrou, que o Judiciário não encontrou: “não interessa, nós somos auditores!”. Seria demorado ex- plicar isso para órgãos internacionais e jornalistas estrangeiros. Até explicar para a Organização das Nações Unidas (ONU) ou sei lá quem, já teríamos a manchete: “Controladoria-Geral da União (CGU), que cuida do combate à corrupção no Brasil, afirma que eleições foram fraudadas”. Seria uma manobra de alto risco, mas é plausível. Finalmente, revelo uma fofoca: há algumas semanas, a CGU tem o direito de indicar pessoas para formar essa comissão do TSE, junto com outros órgãos. Então, pensei: “Opa, se estão indicando agora e a eleição vai acontecer daqui a dois meses, quais auditores eles vão indicar? Porque o auditor é ser humano também, tem preferência po- lítica. Quem será ele?”. Publiquei um artigo no site de O Estado de S. Paulo com essa informação,5 obtida a partir de alguns whistleblowers de dentro da CGU. No dia seguinte à publicação do texto, o ministro Wagner Rosário divulgou no sistema interno da CGU uma espécie de resposta ao meu artigo, mas não negou a informação. Veremos, em poucas semanas, se a organização conseguirá se blindar de interferên- cias antidemocráticas. [Aplausos]. 5 Disponível em: www.estadao.com.br/politica/a-cgu-ira-aderir-de-vez-ao-bolsona- rismo-leia-analise/. Acesso em: 21 ago. 2022. CA P Í TU LO 12 O desafio da desigualdade e as políticas públicas no Brasil celia Kerstenetzky* Gostaria de começar agradecendo o convite da FGV e da Alerj, e agra- decer à Jaqueline e cumprimentar os colegas de mesa Jimmy, Sérgio e Daniela. Quero dizer que aprendi bastante com as palestras de Da- niela e Sérgio. Minha palestra terá um outro tom: tratarei do futuro, olhando um pouco além dessa conjuntura terrível que estamos vivendo e tentan- do imaginar um cenário alternativo. Talvez um projeto do país que gostaríamos de habitar. Para explicar esse projeto que imaginei, con- tudo precisarei falar do presente problemático, em particular, sobre o estado atual das desigualdades socioeconômicas no Brasil. Minha questão maior é: como seria um projeto que enfrentasse, de fato, nos- sas desigualdades históricas? Começarei abordando sinteticamente o que aqui chamo de “a questão social no Brasil”, trazendoalguns dados sobre desigualdades e pobreza. Vestirei um pouco o chapéu de econo- mista, apresentando alguns gráficos e tabelas. Temos essa herança maldita no Brasil: as desigualdades históri- cas, que acompanham nosso lento processo de desenvolvimento. Na realidade, desigualdades acompanham economias capitalistas, no * Agradeço ao CNPq pela minha bolsa de produtividade em pesquisa, que me permi- tiu desenvolver as reflexões sintetizadas neste capítulo. D E MO C RAC I A E M F O CO 156 mundo inteiro. Nas últimas décadas, elas aumentaram também nas economias avançadas. No entanto, é equivocado crer que o sistema econômico explica sozinho o tamanho e a evolução das desigualda- des. Desigualdades existem dentro de sociedades, e decisões políticas frequentemente estão por trás dos processos que promovem aumento ou redução delas. Consideremos o caso brasileiro. Fizemos escolhas políticas mui- to importantes, no Brasil pós-Constituição de 1988. A Constituição de 1988 é reconhecida como a norma jurídica que introduziu os di- reitos sociais no país. Nela, constam preceitos de extrema impor- tância para a redução das desigualdades, como o de que benefícios constitucionais, que incluem os benefícios previdenciários e assis- tenciais, não podem ter valor inferior ao salário mínimo. Isso, por si só, sinaliza que políticas de reajuste do salário mínimo são cruciais por seus efeitos sobre pobreza e desigualdades econômicas, pois ele baliza não apenas o mercado de trabalho, mas se torna também um “piso social”. Se a correção do salário mínimo se mantiver no nível da inflação, veremos a manutenção de seu poder aquisitivo, ou se for abaixo da inflação, veremos uma regressão nesse poder de compra, como acon- teceu no passado, nos governos militares, regressão que foi acompa- nhada por aumento significativo das desigualdades. Aquela foi uma escolha política: o salário mínimo foi utilizado como política anti- -inflacionária, não como política redistributiva, que é sua função pre- cípua. Com isso sua capacidade de atender a necessidades mínimas de consumo de boa parte da população, que dele dependia, se deteriorou fortemente. A Constituição de 1988 corrige essa distorção ao fixar be- nefícios com piso no mínimo e, simultaneamente, prescrever que seu valor dê conta das necessidades básicas das famílias dos trabalhadores e dos cidadãos brasileiros, em geral. Na primeira década e meia do século XXI, observamos substan- cial progresso social alavancado por essas referências constitucionais. Os governos que se sucederam, principalmente a partir de 2003 — os governos do PT, mas algo desse progresso já começara em 1995, no primeiro governo de Fernando Henrique Cardoso —, honraram o compromisso com a valorização do salário mínimo. Junto com outras o D e sa F i o Da D e s i g ua l Da D e e as po l í ti cas p ú b l i cas n o b ras i l 157 políticas, como os programas de transferência de renda e a expansão educacional, essa política foi essencial para a redução da desigualdade de renda. Na primeira década e meia do século XXI, a desigualdade de renda, assim como a pobreza (relativa e absoluta), de fato cai consis- tentemente, ano a ano, no mais prolongado experimento de declínio desses indicadores registrado no país. No Brasil pós-2016, enfrentaríamos três conjunturas críticas que viriam a impactar as desigualdades. A primeira foi o impeachment de Dilma Rousseff em 2016, que marcou a interrupção no processo de reformas redistributivas. O go- verno Temer introduziu duas reformas que viriam a contribuir para a aceleração das desigualdades. A primeira foi o congelamento dos gas- tos reais do governo, gastos já subdimensionados diante das imensas necessidades sociais e que precisariam seguir se expandindo também para atender ao crescimento da população. A segunda foi a reforma trabalhista, que a título de formalizar situações de emprego precário, contribuiu para institucionalizá-las. Esses dois marcos foram muito importantes para explicar o retrocesso que observamos nos nossos indicadores sociais. A segunda conjuntura crítica foi a crise sanitária. Tivemos a crise da Covid-19, ainda estamos nela, que aguçou as desigualdades, mas gerou respostas políticas como o Auxílio Emergencial.1 Trata-se, é bom lembrar, de um “auxílio” e não de um direito, visto que não há garantia de continuidade, nem de valor, que pode mudar, aumen- tando ou diminuindo, como de fato vem acontecendo.2 Por outro lado, a crise sanitária abriu um debate no Brasil sobre a necessidade de implementação de uma renda de cidadania. Pela primeira vez na história recente do país, discutiu-se abertamente o caráter regressivo 1 N.O.: Ficou conhecido como Auxílio Emergencial o programa de renda mínima instituído pelo governo federal por meio da Lei no 13.982, de abril de 2020, para as pessoas em condições de vulnerabilidade social durante a pandemia de Covid-19. 2 N.O.: Inicialmente, previu-se o pagamento de três parcelas fixadas em R$ 600,00. Outras duas parcelas do mesmo valor foram autorizadas e, a partir de setembro de 2020, o valor do auxílio emergencial foi reduzido para R$ 300,00, pagas até o final do ano. Em abril de 2021, uma nova rodada de pagamentos do auxílio teve início, após a aprovação de uma emenda constitucional de ajuste fiscal. O auxílio emergencial foi extinto em outubro daquele ano, quando o governo federal passou a reformar o pro- grama Bolsa Família, rebatizando-o de Auxílio Brasil. D E MO C RAC I A E M F O CO 158 de nossa tributação, dado que a maior parte dos nossos impostos incide sobre o consumo, e, consequentemente, proporcionalmente mais sobre os mais pobres do que sobre os mais ricos. Pela primeira vez na história recente, também, abriu-se um debate sobre a neces- sidade de a tributação incidir sobre as rendas da elite, em particular, sobre os dividendos de ações, isentos desde 1995. Então, abriu-se uma cunha interessante, que colocou sobre a mesa temas até en- tão fora do radar público, como a renda garantida e uma tributação mais justa, e que podem ser explorados no debate sobre nossas pró- ximas escolhas políticas. A terceira conjuntura crítica são as eleições que se aproximam. Aqui temos, de um lado, a reação do governo que reforça o caráter “contingente” — não duradouro, necessário, institucionalizado — da política social. Usa-se a estrutura de “auxílios” para obter dividendos políticos. Mas temos, também, não podemos nos dar ao luxo de des- prezar, a oportunidade para discutir projetos de fato estruturantes. É por essa janela de oportunidade que desejo penetrar. Persistir na herança social maldita será uma escolha. Atualmente, estamos diante de dois caminhos. O primeiro é confirmar e reforçar as escolhas feitas desde 2016, em direção a um Estado mínimo, que é a ideia por trás do chamado “teto do gasto”. Essa é tipicamente a agenda do ministro da Economia Paulo Guedes, que entre outras medidas regressivas interrompeu a política de valorização do salário mínimo, muito provavelmente a política isolada que mais contribuiu para a re- dução da desigualdade de renda (domiciliar) no Brasil entre 1995 e 2014. O segundo caminho é explorar alternativas de enfrentamento sério de nossas desigualdades. No gráfico 1 está uma síntese do Brasil social pré-2016. Parecíamos seguir pelo bom caminho. A partir de 2004, há uma queda importante da pobreza absoluta, aparente na linha com quadrados. A linha com triângulos mostra a queda da desigualdade de renda, medida pelo ín- dice de Gini, ano a ano. Ela é absolutamente consistente. E a linha com losangos, que se refere a um conceito de pobreza geralmente usado pelos países ricos, a pobreza relativa, também declina ao longo da pri- meira década e meia do século XXI. o D e sa F i o Da D e s i g ua l Da D e e as po l í ti cas p ú b l i cas n o b ras i l 159 Gráfico 1 Brasil social pré-2016 Fonte: PNAD-IBGE. Recentemente, um estudo realizado por Marcelo Neri (2021) mos- trou um cenário assustador,a volta do fantasma. No Brasil pós-2015, os dados revelam claramente que a pobreza seguia caindo até 2014, mas passa a aumentar até 2019. No período seguinte, durante boa parte do ano de 2020, o auxílio emergencial de fato garante renda às famílias e provoca importante queda da pobreza, e, quando diminui de valor e finalmente é encerrado no primeiro trimestre de 2021, a pobreza au- menta, passando a afetar 16% da população, segundo a linha de pobreza utilizada pela FGV Social. A retomada do auxílio em 2021, com valor reduzido em relação ao período inicial da pandemia, vê a pobreza se retrair, mas desde o final de 2020 ela se fixará consistentemente em va- lores superiores a 2014. A mesma dinâmica acontece com a desigualda- de, que cai até 2014, começa a subir a partir de 2015, cai com o auxílio emergencial e, quando ele é suspenso, volta a subir. Enfim, esta é a si- tuação corrente: retrocesso de ganhos que acreditávamos consolidados, pois assim se mostravam em quase 15 anos de governos democráticos. Para termos uma ideia dos indicadores do Brasil social pós-pan- dêmico, a renda média dos 50% mais pobres caiu três vezes mais do que a dos 10% mais ricos em 2020; já a recuperação da economia, em 2021, beneficiou bem mais os 10% mais ricos, que já tinham recupera- 0,48 0,50 0,52 0,54 0,56 0,58 0,60 05% 10% 15% 20% 25% 30% 2002 2003 2004 2005 2006 2007 2008 2009 2011 2012 2013 2014 Pobreza Relativa Pobreza Absoluta Coeficiente de Gini D E MO C RAC I A E M F O CO 160 do o que perderam, do que os 50% mais pobres, que podem demorar até 16 anos para recuperar o nível de renda de 2019. A população do Nordeste, as mulheres e os idosos foram os grupos que mais perde- ram. Se a média geral de desemprego é alta, ela é mais de 10 vezes mais elevada entre os 50% mais pobres na comparação com os 10% mais ricos. A desigualdade da renda do trabalho segue aumentando. E en- quanto a renda média se deteriorava e a desigualdade se intensificava,3 a contrapartida foi o incremento da desigualdade de riqueza: a con- centração de riqueza aumentou substancialmente durante a pande- mia — em 2020, em particular. A fortuna dos 53 brasileiros entre os 100 indivíduos mais ricos do mundo aumentou 55% durante o ano de 2020. Aqueles que atuam na área da saúde privada obtiveram um ga- nho ainda maior, um aumento de 134,8% na sua riqueza, justamente no primeiro ano pandêmico.4 O que fazer diante desse quadro de agravamento da questão social no Brasil? A primeira medida é soltar as amarras que nos impedem de intervir em direção ao progresso social, pelo menos as duas amarras que nos foram politicamente impostas e que, do ponto de vista da política social, são as mais restritivas: o gasto real congelado (isto é, o gasto público congelado no mesmo nível que estava em 2017, visto que só pode ser reajustado pela inflação) e a reforma liberalizante na legislação trabalhista. No que diz respeito ao congelamento do gasto real, a lógica por trás da medida é a de que o nível do gasto por habitante que tínhamos em 2017 estava adequado e seria mantido. Algo patentemente equivo- cado, não apenas porque o nível e a qualidade das transferências e ser- viços providos à população eram evidentemente insuficientes — o que exigiria gastos mais elevados por habitante —, como também porque o raciocínio não leva em conta o crescimento da própria população. Já no caso da reforma trabalhista — que começou a admitir uma série de situações precárias no mercado de trabalho, como o trabalho intermitente —, a suposição por trás disso é que o elevado nível de desemprego, isto é, aquilo que se queria atacar, é resultado de proteção e segurança excessivas garantidas ao trabalhador, acima do que seria desejável. É como se houvesse um conjunto de proteções institucio- 3 Dados nesse parágrafo até este ponto foram obtidos no site da FGV-Social. 4 A fonte dos dados sobre concentração de riqueza é a Oxfam. o D e sa F i o Da D e s i g ua l Da D e e as po l í ti cas p ú b l i cas n o b ras i l 161 nais do emprego ou da renda do trabalho que estivesse oferecendo ao trabalhador um nível desproporcional de proteção. Nada mais dis- tante da real condição do emprego no Brasil; ao fim de vários anos de vigência da reforma, o retrato de nosso mercado de trabalho não mostrou progresso, sendo os elevados desemprego e informalidade seus traços ainda mais marcantes. Sem nos livrarmos desses entraves, fica difícil pensar em uma po- lítica social que retome aquela trajetória de progresso experimenta- da no início do século XXI. Para onde precisaremos voltar a olhar? A agenda inclui o desenho de uma renda mínima permanente, que foi o debate que se abriu a partir do auxílio emergencial; a regulação do mercado de trabalho, com o fortalecimento do salário mínimo e da capacidade de organização do trabalho, no que em parte havíamos avançado no início do século; e o avanço na tributação progressiva, cujo debate se reabriu recentemente. Todas essas medidas têm im- pacto direto sobre a desigualdade: quando penso em renda mínima, penso no piso de renda dos mais pobres, que precisa ser melhorado; quando penso em regulação do mercado de trabalho, penso em uma distribuição mais equilibrada dos rendimentos salariais, sendo então necessário atentar para o piso salarial e para o fortalecimento do po- der de barganha do trabalho. Por fim, quando penso no avanço na tributação progressiva, penso em limites para a concentração de ren- da e riqueza no topo. Mas a agenda inclui também uma política mais estruturante, não exclusivamente com foco na renda, que é o necessá- rio avanço nos serviços sociais públicos — educação, saúde, cultura, moradia, transporte, segurança pública. Essa agenda específica tem um papel especial na concepção de uma sociedade mais justa, não se limitando ao atendimento de necessidades específicas ou contingen- tes da população. É essa agenda que desenvolvo aqui. Minha proposta é elevarmos os serviços sociais públicos ao status de componente central de uma agenda de desenvolvimento. Isso nun- ca aconteceu no Brasil, sempre que pensamos em desenvolvimento, pensamos em infraestrutura física e indústria. E sempre que se pensa em retomada por meio do gasto público, após um período de recessão ou estagnação, o investimento que se tem em mente é em infraestru- tura física. O gasto público arrastaria o investimento privado, gerando crescimento do PIB e puxando os demais setores da economia. A proposta aqui é outra: priorizar a infraestrutura social (sem evi- dentemente desprezar a necessidade de expansão de infraestrutura D E MO C RAC I A E M F O CO 162 física, até mesmo para viabilizar a social). Qual seria a noção de de- senvolvimento implícita nessa proposta? Seria compreender “desenvol- vimento” como promoção de bem-estar com equidade e sustentabilida- de ambiental, não exclusivamente ou principalmente como crescimento do PIB. Quanto às justificativas para essa proposta, eu as retiro de vários lugares: primeiro, de teorias econômicas, como a economia do bem-es- tar ou a macroeconomia keynesiana, da sociologia histórica e política, e da ciência política; segundo, de debates contemporâneos; em terceiro lugar, de evidências que consegui coletar na literatura especializada so- bre os efeitos benéficos da expansão dos serviços sociais públicos. Ao final dessa comunicação apresentarei estimativas do tamanho das lacu- nas, ou seja, o quanto precisamos avançar para alcançar níveis adequa- dos de provisão de serviços sociais no Brasil. Começando pela teoria econômica, há argumentos relacionados a como o consumo de serviços de educação e saúde por cada indiví- duo gera benefícios para outros indivíduos, como é em geral benéfico viver em uma sociedade onde mais gente tem educação formal e boa saúde. A pandemia deixou muito claro o quanto a saúde de todos é in- terdependente, mas também o acesso à informação e a capacidade de processá-la criticamente. Ainda na área da economia, algumasteorias do crescimento argumentam que o capital humano é essencial para o crescimento econômico, e capital humano consiste essencialmente em investimentos em educação e saúde. Na sociologia, há vários ar- gumentos pró-serviços sociais públicos, como na sociologia política, a noção de que serviços sociais são os meios para a entrega de direi- tos sociais efetivos; ou na sociologia histórica, como lemos em Karl Polanyi em sua famosa obra A grande transformação, a noção de que uma forma efetiva de autoproteção da sociedade contra a mercantili- zação desenfreada que ocorre na esteira da Revolução Industrial foi não apenas a regulação dos mercados como a provisão de serviços para a população por parte do estado de bem-estar.5 Em termos de argumentos políticos, há a ideia de que serviços sociais públicos uni- versais contribuem para fomentar a coesão social e tendem a ganhar um apoio amplo da população, já que beneficiam a todos, especial- mente se esses serviços são adequados qualitativa e quantitativamen- te. Outros argumentos políticos se encontram em teorias de justiça 5 N.O.: O livro de Polanyi encontra-se traduzido: Polanyi (2000). o D e sa F i o Da D e s i g ua l Da D e e as po l í ti cas p ú b l i cas n o b ras i l 163 distributiva que vinculam os serviços sociais públicos à garantia de oportunidades equitativas, abertas para todos.6 Quanto à relação entre serviços sociais e debates contemporâneos que considero cruciais, podemos citar o debate sobre o desenvolvi- mento, noção em geral muito capturada pela ênfase na dimensão do PIB e de sua taxa de crescimento. A ideia alternativa, que vem se di- fundindo ao longo do século atual, é conceber desenvolvimento como expansão de capacitações humanas, expansão de liberdades, algo que requer a existência de uma infraestrutura de serviços sociais. Clara- mente, educação e saúde (e não apenas!) estão diretamente relaciona- das com essa ideia de expansão de capacidades. Há ainda os debates sobre mudança estrutural e desigualdades de gênero e raça. Um dado interessante que apareceu em minha pesquisa é que no mercado de trabalho dos segmentos de educação e saúde públicas, a mão de obra é principalmente feminina e não branca. A expansão desses setores, com empregos de qualidade, como explico a seguir, deve contribuir para reduzir estratificações raciais e de gênero, ainda muito signifi- cativas entre nós. Quanto à mudança estrutural e ao emprego, sabe- mos, por exemplo, que as economias contemporâneas são cada vez mais puxadas pelo setor de serviços, que é um setor muito desigual em termos da distribuição salarial. Ele tem gerado muitos empregos seja na ponta de baixos salários, seja na ponta de altos salários, e rela- tivamente poucos empregos entre esses dois extremos. Essa situação é particularmente crítica em países menos desenvolvidos, e o Brasil se destaca negativamente nesse sentido, com um emprego em serviços mais polarizado até mesmo que outros países da América Latina e do grupo do Brics. O debate aqui é quanto ao papel a desempenhar pelos serviços sociais, que poderiam contribuir para reduzir a polarização e as desigualdades salariais dentro do setor de serviços e assim con- tribuir para a redução das desigualdades salariais na economia como um todo. Os serviços sociais públicos também têm algo a dizer no de- bate sobre o futuro do trabalho. Esse debate está muito marcado pela previsão de eliminação dos empregos por conta da automação. Essa é apenas uma das muitas previsões; há outras menos catastróficas. Em todo caso, uma fonte de geração de novos empregos, que não deve ser desprezada por seu enorme potencial (como mostrarei ao final!), 6 Ver Kerstenetzky (2022) para referências detalhadas a essas literaturas. D E MO C RAC I A E M F O CO 164 são esses mesmos serviços sociais, que são tipicamente insuficientes no caso brasileiro. Finalmente, o aspecto talvez mais interessante, por se tratar de uma descoberta recente, é que esse é um segmento eco- nômico de baixo carbono (as estimativas são para educação e saúde), com nítidas vantagens desse ponto de vista em relação a praticamente todos os demais setores econômicos. A terceira parte de meu argumento diz respeito ao que sabemos, empiricamente, sobre efeitos benéficos esperados dos serviços sociais públicos. As informações que trago aqui não são exaustivas, mas, mesmo assim, são bastante auspiciosas. Há evidências de que os ser- viços sociais públicos ampliam o bem-estar e a equidade, melhoram o mercado de trabalho e aumentam a renda das famílias; há outras sobre os impactos desses serviços em termos de multiplicação da ren- da na economia, de um modo geral, e de como contribuem para uma economia de baixo carbono. Em termos do impacto dos serviços sociais públicos sobre o bem- -estar, temos, por exemplo, comparações entre municípios brasileiros que aumentaram o gasto público em saúde em proporções diferentes. Aqueles que realizaram um gasto maior em saúde tiveram melhores re- sultados, por exemplo, em termos de redução da mortalidade infantil (Fujiwara, 2015; Gonçalves, 2013). Há, também, comparações inter- temporais: se olharmos para o mesmo município, que aumentou os seus gastos na atenção primária à saúde ao longo do tempo, observaremos a queda de hospitalizações desnecessárias, a diminuição da mortalidade materna, fetal e infantil.7 Há, além disso, comparações internacionais entre países ricos, conduzidas pela Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), mostrando resultados em saú- de de países com sistemas de saúde majoritariamente públicos e países com sistemas de saúde principalmente privados. Os primeiros têm, em geral, melhores indicadores de bem-estar, por exemplo: maior longevi- dade, menor mortalidade infantil, menor mortalidade materna.8 Na área de educação, também segundo o estudo da OCDE, o mes- mo tipo de comparação, entre países que têm sistemas educacionais principalmente públicos e aqueles com sistemas educacionais princi- 7 Refiro-me aos estudos de Macinko e Mendonça (2018) e Bhalotra, Rocha e Soares (2019). 8 Todos esses resultados estão cotejados em Kerstenetzky (2022). OECD (2019). o D e sa F i o Da D e s i g ua l Da D e e as po l í ti cas p ú b l i cas n o b ras i l 165 palmente privados, mostra resultados diferentes. Ao compararmos, por exemplo, os Estados Unidos com vários países europeus, observamos que o atendimento no ensino superior e em creches nos quantis inferio- res de renda é significativamente maior nos países europeus, onde esses segmentos de serviços são organizados publicamente (OECD, 2021). Temos também evidências de efeitos dos serviços sociais públicos relacionados com a justiça social e a equidade — por exemplo, como os serviços sociais contribuem para reduzir a desigualdade “diretamente”.9 Isso se dá pelo efeito de aumento da renda à disposição das famílias, que não precisarão gastar para comprar esses serviços no mercado, o que ocorre mais do que proporcionalmente entre as famílias de baixa renda. Há trabalhos mostrando que, no caso brasileiro, esse é o fator redutor de desigualdade mais importante relacionado com a intervenção pú- blica. Saúde e educação reduzem mais a desigualdade no Brasil do que impostos diretos e transferências de renda por parte do governo. Saúde e educação são também muito relevantes para a mobilidade intergera- cional de renda, ou seja, o progresso da renda dos filhos em relação à renda dos pais.10 Isso é facilitado pela existência de um sistema educa- cional público. Quanto à equidade racial e de gênero, a evidência é que no Brasil as mulheres e as pessoas não brancas estão sobrerrepresenta- das no emprego em serviços sociais públicos, em geral e, especialmen- te, em comparação com suas respectivas participações no emprego em serviços sociais privados.11 Outros efeitos observados no mercado de trabalho são de que a qualidade do emprego nos segmentos públicos é mais alta na com- paração com quase todosos demais setores econômicos, incluindo o segmento privado de provisão de serviços de educação e saúde. Os 9 Lustig (2015), Silveira (2012), Silveira et al. (2013), Silveira et al. (2021). 10 Duque (2019). Sobre estudos internacionais que encontraram causalidade seme- lhante, recomendo Esping-Andersen (2015) e Corak (2013). 11 Kerstenetzky e Machado (2018); Kerstenetzky et al. (2021); Marques et al. (2022). Aproveito para mencionar também estudos que abordaram a ausência de viés racial no acesso a UTIs no SUS em contraste com o setor privado (Bruce e Tallman, 2021); a expansão da atenção primária do SUS como associada ao declínio do peso da desi- gualdade no acesso a serviços de saúde (Bhalotra, Rocha e Soares, 2019; Macinko e Mendonça, 2018; Rocha e Soares, 2010); e os serviços de cuidado associados a maior participação econômica de mulheres e menor desequilíbrio na divisão sexual do tra- balho (Barros et al., 2011, Barbosa e Costa, 2017; Hojman e Boo, 2019; Morel, Palier e Palme, 2012). D E MO C RAC I A E M F O CO 166 empregos são mais formalizados, o piso salarial é em geral mais alto, ocorrem as menores incidências de jornada de trabalho longa (aci- ma dos limites legais) (Kerstenetzky e Machado, 2018). O emprego é também mais resiliente, ou seja, se mantém mesmo durante as crises (Kerstenetzky et al., 2021). Foi algo que observamos inclusive na pan- demia: a taxa de ocupação caiu em vários segmentos da economia, praticamente em todos, mas não no setor de serviços sociais públicos. E há o potencial enorme de criação de empregos, de um modo geral, tema que vou explorar ao final desta comunicação. Sobre o efeito renda provocado pelos serviços sociais públicos, refiro-me aos salários pagos pelo setor público aos seus empregados (Kerstenetzky e Machado, 2018; Kerstenetzky et al., 2021). Mas, além de contribuir diretamente para a renda das famílias, também existe o efeito indireto, ou seja, o que aqui chamo de renda social (Verbist, Förster e Vaalavuo, 2012). O fato de o governo prover serviços de educação e saúde representa uma renda adicional para as famílias, e quanto menor a renda familiar, mais importante se torna essa renda social. De fato, para as famílias mais pobres, as transferências do go- verno via gastos públicos em saúde e educação representam a maior parte de sua renda total (direta + indireta); isso é verdade tanto no Brasil quanto nos países ricos. Por último, mas não menos importante, há também o “efeito sus- tentabilidade” dos serviços sociais públicos, um resultado, até onde eu sei, inédito para o caso brasileiro. A primeira estimativa desse efei- to, medido em toneladas de emissões de CO2 por unidade de valor bruto da produção, foi feita por um estudante de economia da UFRJ, o doutorando Márcio Alvarenga Júnior (2021). Sua tese mensura os impactos ambientais, em termos de emissões, dos diferentes setores da economia por meio da matriz insumo-produto de 2015; a meu pe- dido, Marcio abriu o setor de serviços para permitir a investigação das emissões relativas aos serviços públicos de educação e saúde. O exer- cício, que envolveu 42 setores econômicos, concluiu que os serviços de educação e saúde estão entre aqueles com mais baixa emissão de carbono. Para concluir, apresento os resultados de um exercício de simula- ção do emprego nos setores de educação e saúde com o intuito de esti- mar o potencial de geração de postos de trabalho dos serviços sociais públicos, com o foco inicial em educação e saúde. A questão que me o D e sa F i o Da D e s i g ua l Da D e e as po l í ti cas p ú b l i cas n o b ras i l 167 coloquei foi: se quiséssemos ampliar os serviços sociais públicos no Brasil com impacto realmente estruturante, para fazer uma diferença significativa na vida das pessoas, o que isso representaria em termos de criação de empregos? Há vários caminhos possíveis para investigar essa questão. O que adotei aqui foi (1) observar a relação habitante/ emprego no setor de serviços privados de educação e saúde, que, por suposição, atendem a algo em torno de 25% da população brasileira, o quarto mais rico da distribuição de renda; (2) observar essa mesma relação habitante/emprego no setor de serviços públicos de educação e saúde, que, por suposição, atendem ao restante 75% mais pobre da população brasileira. O que encontrei foi uma enorme disparidade nessas relações: há muito menos habitantes por cada emprego no se- tor privado do que há no setor público. Supondo que a relação no setor privado seja próxima do desejável, calculei então os “empregos faltantes” no setor público: quantos empregos seriam necessários para que o mesmo nível de serviço que está disponível à minoria mais rica fosse fornecido à esmagadora maioria da população brasileira. A ta- bela seguinte mostra na primeira coluna esse resultado para educação (3,3 milhões) e saúde (6,8 milhões). A segunda coluna mostra por quantas vezes o nível atual de emprego de cada um desses setores teria de ser multiplicado para chegarmos a esses montantes. Tabela 1 Lacuna em milhões de ocupados e fator de expansão para eliminacão do déficit em educacão e saúde públicas — Brasil, 2015 Déficit Fator Educação 3,3 1,78 Saúde 6,8 3,5 Total 10,1 Nota: déficit = diferença entre o número de ocupados no segmento privado e no segmento público corrigida pelo tamanho da população atendida (25% pelo segmento privado; 75% pelo segmento público). Fator = razão déficit sobre o nível de ocupação efetivo no segmento público. Fonte: Contas Nacionais 2015 (Kerstenetzky, Alvarenga Jr., Bielschowsky, 2022). A conclusão é que por essa estimativa preliminar precisaríamos de 10 milhões de empregos adicionais para que o setor de serviços sociais públicos entregasse nível de serviço em qualidade comparável ao do D E MO C RAC I A E M F O CO 168 setor de serviços sociais privados. Para vocês terem uma ideia, isso é mais ou menos o tamanho do desemprego hoje no Brasil. Realizei estimativa semelhante dessa vez comparando o Brasil com países ricos: o quão distantes estamos em relação à composição do emprego por lá, no que se refere à participação dos serviços sociais no emprego total (tabela 2). Nos países ricos, os empregos em serviços sociais têm o maior peso (na comparação com os grandes setores e com subsetores dentro do setor de serviços); nossa distância é signifi- cativa (estamos 20 pontos percentuais abaixo) e o ritmo de crescimen- to do emprego nesse segmento entre nós é bem mais lento do que foi nas economias avançadas em décadas comparáveis (estamos 4,7 pp por ano mais lentos). Tabela 2 Lacunas de emprego e ritmos de crescimento do emprego em serviços sociais (em %): Brasil e economias avançadas 2014 Lacuna em % Lacuna no ritmo de crescimento em uma década -20.1 (16.5-36.6) -4.7 (1.3-6.0) Fonte: Kerstenetzky e Machado (2018). Acredito que este trabalho mostrou uma série de benefícios asso- ciados aos serviços sociais públicos, benefícios econômicos, sociais e ambientais. Mostrei isso por meio de debates teóricos, mas também por meio de evidências de muitos dos efeitos que haviam sido an- tecipados por teorias e argumentos públicos. Apresentei, também, uma estimativa das distâncias significativas em relação ao que seria desejável para o Brasil. Enfim, a adoção dessa agenda implica abraçar a noção de desenvolvimento que faz sentido no século XXI: a ideia de desenvolvimento como promoção equitativa e sustentável de bem- -estar. Obrigada. [Aplausos]. Debate Jimmy Medeiros (J. M.): Agradeço a presença de todos e também reforço o agradecimento à Alerj, à professora Jaqueline Zulini e à pro- fessora Thais Blank pela organização do evento. Fico feliz por estar aqui, dividindo o espaço com os colegas Sérgio Praça, Celia Kerste- netzky e Daniela Campello, que participa da sessão conosco virtual- mente. Declaro abertas as inscrições para perguntas do público. Pergunta 1 (Anônima): Queria agradecer pela discussão muito bem- -feita, e pela mediação, Jimmy.A minha questão vai para a professora Celia. Como a professora Daniela mencionou, a gente tem no Bra- sil uma série de conselhos e comitês nacionais que desempenharam, principalmente nos anos dos governos petistas, um papel muito im- portante na representação em vários níveis da sociedade. Presumin- do-se que o objetivo em longo prazo é o de retomar essa política social mais forte para o desenvolvimento de um estado de bem-estar mais robusto, primeiramente: você acredita que os comitês e conselhos na- cionais têm um papel no planejamento dessa política? E, se sim, qual seria esse papel? Qual seria a função desempenhada por esses conse- lhos? Muito obrigado. Pergunta 2 (Anônima): Queria agradecer novamente também, por- que foi ótima a exposição da mesa. Minha pergunta também vai para a professora Celia. É uma questão um pouco mais enxuta, porque eu gostaria de falar um pouco sobre questões de políticas públicas, voltando para aquilo que temos hoje em dia no governo Bolsonaro. Sabemos que grande parte da propaganda política — hoje, presente também na propaganda do Lula — é falar sobre seus projetos sociais, no caso do PT, principalmente o Bolsa Família, que foi totalmente re- tirado do ar. Até agora, temos o Auxílio Brasil. Mesmo que Bolsonaro D E MO C RAC I A E M F O CO 170 tenha orgulho de seus anos de mandato anterior à chegada à presidên- cia em que não participou diretamente da política, ele votou contra o Fundo de Combate e Erradicação da Pobreza, dizendo que aumentava os impostos. Agora, pensando em um governo novo e pensando, tal- vez, na eleição do próprio Lula, será que ele extinguiria o Auxílio Bra- sil? Voltaremos com o Bolsa Família? Que outras perspectivas, quanto a novas políticas públicas, poderiam dispensar? Pergunta 3 (Anônima): Minha pergunta é para o professor Sérgio Praça. Eu gostaria de saber se, dentro desse campo das agências bu- rocráticas, haveria áreas onde seria mais vantajoso para a democracia que a atuação dos órgãos burocráticos fosse vinculada ao Executivo e outras áreas onde fosse vantajoso que houvesse certa autonomia. Há essa distinção entre essas áreas? Obrigado. J. M.: Daniela traçou um diagnóstico do Brasil que é terrível, a von- tade é pegar a mala, correr para o Galeão e ir embora. Contudo, pre- cisamos ser otimistas e esperar que o futuro seja muito positivo para a gente, certo? Olhando para eventos ocorridos em outros países que você citou, que tipo de perspectiva de reconstrução das ruínas insti- tucionais temos para poder avançar? O que o próximo governo bra- sileiro — que não será uma continuidade deste, estou sendo otimista, vamos lá! — pode fazer? O que podemos fazer para reconstruir as nossas ruínas institucionais? Celia Kerstenetzky (C. K.): Acho que os conselhos têm um papel fundamental. Primeiro, o de aumentar a densidade da participação na política pública. Acho que isso tem impacto sobre a eficácia da po- lítica e sobre a legitimidade dela. E acho que o plano dessa discussão que fiz é um plano abstrato. Estou falando em geral, do Brasil como um todo, mas temos de pensar a questão territorial. Como a expansão das políticas sociais rebate sobre o território brasileiro? Precisamos pensar na capilarização disso, e os conselhos são parte desse processo. Igualmente, a emergência de inovações, que não conseguimos pensar de dentro da academia, se dá no plano local. Ali, no nível concreto daquela comunidade, para resolver um problema determinado, surge uma inovação, uma tecnologia social que pode ser disseminada para D e bate 171 outras partes do território. Essa estrutura de conselhos em vários ní- veis comporta isso: inovação local e disseminação para outros lugares. Em relação ao Bolsa Família e ao Auxílio Brasil, acho que o problema central aqui, tirando o aspecto político mais imediato, é a questão de olharmos para a política social desse ponto de vista que eu chamo de con- tingente. Ou seja, uma medida para apagar um incêndio, um auxílio empregado para resolver um problema imediato que vai dar um divi- dendo político claro. Para sair desse paradigma é preciso uma política social institucionalizada e, na medida do possível, constitucionaliza- da. Já temos na Constituição esse compromisso de dar uma renda ga- rantida para todos aqueles que precisam. Isso é um dos direitos sociais sacramentados na nossa Constituição. É preciso sair do paradigma de auxílio para um paradigma de direito, por exemplo, pensar uma renda mínima permanente. Há várias ideias em circulação. Acho in- teressante uma renda mínima associada ao Imposto de Renda, em que paga quem não precisa e recebe quem precisa. Há um esquema americano com esse espírito, que é o Imposto de Renda negativo. A vantagem desse desenho é fazer a transferência pelo sistema tribu- tário e assim tirar o foco da disputa de recursos na área social. É renda ou serviço? Atualmente estamos nesse falso dilema. Quando temos o teto de gasto, o congelamento do gasto real, temos uma briga dentro da caixinha do “gasto social”: se você aumenta as transferências de renda, vai ter que diminuir em algum lugar. Temos de desconstruir isso. É preciso ter renda e ter serviço. Eles têm funções diferentes. A renda mínima permanente é política de enfrentamento da pobreza e da vulnerabilidade; a expansão dos serviços sociais é para reestrutu- rar a sociedade, criar o que chamo de uma nova “socioeconomia”, que é uma economia misturada com o social. Quando você expande esse setor, relativamente aos demais setores econômicos, há um impacto sobre toda a estrutura produtiva, sobre o emprego, sobre a desigual- dade. Há a possibilidade de gerar uma transformação social radical. O alcance nesse caso é diferente do alcance da renda mínima. J. M.: Obrigado, Celia! Sérgio, passo a palavra para você comentar… Sérgio Praça (S. P.): Quais agências burocráticas do governo fede- ral eu acho que poderiam ser mais autônomas? Acho que a CGU e a D E MO C RAC I A E M F O CO 172 Polícia Federal. É sempre arriscado que os chefes do Executivo quei- ram se apropriar dessas instituições, nomear pessoas para altos cargos de confiança para ter informações sobre o que a PF está fazendo, o que está investigando e qual delegado é responsável por cada caso. No primeiro capítulo do meu livro Guerra à corrupção: lições da Lava Jato (Praça, 2017), cito extensamente uma investigação da PF sobre o então senador Romero Jucá, que mostra que havia fortes suspeitas de corrupção. O caso teve cinco, seis delegados diferentes em um pe- ríodo muito curto, então algo parecia esquisito. Então, sou a favor de medidas que pudermos tomar para dar um pouco mais de autonomia para a PF e para a CGU. J. M.: Obrigado, Sérgio. Daniela, por favor… Daniela Campello (D. C.): Perguntinha, perguntinha difícil… Só para constar, na verdade, sobre a vontade de sair pelo aeroporto, eu acabei de chegar, estou chegando de um ano fora para este momento muito louco do Brasil. Não sei se exemplos são a melhor forma de ser otimista. Se você pensar, por exemplo, o que se passou na Venezuela em termos de destruição institucional, é uma coisa difícil demais de se refazer. Acho que o que há de razão para o otimismo é o fato que, muito provavelmente, não vai haver um segundo governo Bolsonaro, e isso já acho que é um alívio para a gente pensar em pelo menos es- tancar essa sangria de destruição institucional. Acho que, desde que me tornei cientista política — e sou um ser político desde que eu me entendo por gente —, eu me lembro da quantidade de energia gasta entre nós falando de um presidente, re- clamando e sofrendo com isso tudo que estamos vendo. Então acho que, nesse sentido, essa energia será liberada para fazer coisas. Isso é muito bom. Por outro lado, diria que acho até importante que se man- tenha certo, não tanto pessimismo, mas certo realismo. Mas tenho um pouco de medo que se repita o que aconteceu e vem acontecendo nos Estados Unidos depois do Trump. Foi tudo tão ruim durante o gover-no Trump, e agora entrou o Biden, e havia uma expectativa enorme de que grandes, ou melhor, enormes coisas aconteceriam, e elas não estão acontecendo. Esse é o caminho mais curto para eleger um De- Santis ou o Trump novamente. Então, precisamos ter a noção de que, se houver alguma normalidade nestes próximos quatro anos, já será D e bate 173 uma grande mudança do ponto de vista do investimento de poder pensar em longo prazo e se fazer planos de longo prazo — algo que vale até para o cidadão comum —, que acredito já será uma enorme conquista. Se conseguirmos voltar a uma normalidade nesses próxi- mos quatro anos para depois avançar, eu já acho que é bastante coisa. Nesse sentido, eu diria que é bom ter as expectativas no lugar, porque se esperarmos uma “grande revolução”, uma grande “volta ao que já foi” nesses próximos quatro anos, existe uma possibilidade grande de frustração. A outra mensagem de esperança que eu dou normalmente é a se- guinte. Outro dia me perguntaram se eu estava otimista. Bem, como cidadã, é muito difícil estar otimista neste momento, porque esses anos foram realmente muito difíceis. Mas, como analista, eu diria que, quando as coisas estão muito bem, todo mundo sempre acha que elas vão continuar como estão, e quando estão muito ruins a gente tende a achar que também vão continuar como estão. E isso não é verdade. As situações mudam. Então, nesse sentido, é possível que nos falte cria- tividade no momento presente para imaginar um cenário mais posi- tivo, mais favorável, dado tudo o que passamos nesses últimos quatro anos. Acredito que esse possa ser simplesmente um viés psicológico e que as coisas, de fato, possam se reconstruir de uma forma melhor. Assim espero. J. M.: Meus caros, nosso tempo está acabando, mas dá para aproveitar um pouco mais. Temos mais alguma pergunta? Pergunta 4 (Anônima): Obrigado à mesa e aos envolvidos na organi- zação do evento. A minha pergunta é relativamente curta, para a mesa como um todo. Que tipo de expectativa seria razoável alimentarmos em relação ao próximo governo sobre esse desmonte, principalmente no nível técnico, ocorrido nesses últimos quatro anos? Usando como exemplo o caso da Funai que Sérgio mencionou, e a gente sabe que coi- sas do mesmo tipo ocorreram no Ibama e em outros setores, que tipo de expectativa podemos alimentar em relação a esse tema? Obrigado. Pergunta 5 (Anônima): Só queria, primeiro, obviamente, agradecer, foi uma mesa excelente! Em segundo lugar, a minha pergunta vai para D E MO C RAC I A E M F O CO 174 Daniela, sobre a questão de pessimismo e otimismo com o cenário do futuro. Você mencionou a questão de as eleições serem referenda- das na economia e do cenário econômico atual ser bem problemático, mas sabemos que o governo Bolsonaro se aliou bastante a esses seto- res do agronegócio, do capital financeiro, e que tais setores lucraram muito. Eu queria entender como a economia vai atuar nesse sentido. A crise vai pesar para o Bolsonaro ou, pelo contrário, esses grupos que estão lucrando vão continuar tentando botá-lo no poder de novo? É isso, muito obrigado. J. M.: Nós que agradecemos aqui. Sérgio, por favor. S. P.: Sobre a questão do Ibama em especial, esse órgão e a área do meio ambiente foram particularmente prejudicados pela aposentado- ria massiva de seus funcionários. Mesmo que haja interesse, se o Lula for eleito — supondo que isso aconteça, acho que haverá interesse de o PT repor esses quadros —, não sei como serão as condições econô- micas para fazer novos concursos. Digamos que seja necessário fazer concursos para o Ibama, para a Funai e para quatro ou cinco outros ministérios. Custará muito dinheiro e não sei o que seria priorizado. J. M.: Obrigado, Sérgio. Daniela, por favor, a palavra está com você. D. C.: Na verdade, minha resposta vai ser bem na linha do Sérgio. Eu acho que vai depender muito de como a economia vai andar nesses próximos tempos. Existem muitas incertezas. Tivemos esse aumento de preços de commodities, mas ele já começa a cair; não se sabe se o giro americano vai subir ou não vai subir isso; bem, tudo importa muito para o país que é o Brasil. No caso particular do meio ambiente, tenho alguns pontos que, na verdade, respondem à segunda pergunta (excelente) sobre os grupos de interesse. Há duas questões aí, uma é o fato de que o governo do PT sabe que o meio ambiente, a economia verde, a descarbonização é uma agenda imediata de um futuro que está se tornando cada vez mais próximo, e isso é uma tremenda fonte de soft power do Brasil, em vista do nosso posicionamento e relevân- cia no mundo. Então, acredito que vai existir um investimento muito grande nesses temas. O mundo está esperando o Brasil de volta à are- na, já que estivemos fora fazendo sabe-se lá o quê. D e bate 175 Por outro lado, um ponto muito importante também em termos de grupos de interesse é o seguinte: acho que o mercado financeiro teria menos impacto, porque ele tem uma capacidade tão rápida de se posicionar que eu não diria que precisa que Bolsonaro permaneça aí. Existem atores do mercado que prefeririam Bolsonaro, mas acho que lidarão tranquilamente com o Lula. O caso do agronegócio, em par- ticular, considero muito importante porque, embora não acredite em bolsonarismo pós-Bolsonaro (e eu já venho dizendo isso há um tem- po: acho que não existe bolsonarismo enquanto uma coisa consistente, de pensamento e de ação política), a frente parlamentar do agro é um dos fenômenos mais interessantes dos últimos tempos no Congresso. O Instituto Pensar-Agro, e a organização que esses grupos adquiriram nos últimos tempos, que não é a mesma que o Lula encontrou quan- do era presidente nem de longe, será um ator extremamente relevante para esses próximos anos, com o qual um governo em potencial ou um governo do PT vai ter que lidar. Não é só uma questão de ter que lidar dentro do universo do agronegócio, vai ter que lidar porque não vai passar quase nada se essa frente, que está muito organizada, não estiver apoiando e negociando de alguma forma. Acredito que isso vai exigir muita negociação, muita compreensão do que está acontecendo, para que não seja uma barreira para a implementação de políticas interes- santes, inclusive, e sobretudo, na área do meio ambiente. J. M.: Gostaria de fazer uma fala final também, Celia? C. K.: Só uma rápida fala, depois da ótima fala aqui. Discutiu-se um pouco sobre otimismo e pessimismo. A Daniela trouxe essa questão. Então, acho que me considero uma otimista irremediável, que é aque- la pessoa que aparentemente não tem motivos para ser otimista, mas persiste no otimismo (por mais altas que sejam as doses de “realis- mo”). Minha aposta é que é preciso ter algo preparado para quando o impossível se tornar possível. Ou, como diria o Milton Friedman, para o momento em que o que julgávamos impossível se torne inevi- tável. Temos que ter um projeto. Precisamos de uma direção, pensar que tipo de sociedade queremos criar. Claro que há a óbvia questão das condições políticas para isso acontecer, mas acho que são duas reflexões que podem e devem cor- rer em paralelo. Em particular, acho que devemos procurar evitar que D E MO C RAC I A E M F O CO 176 conjunturas terríveis como esta que temos vivido nos últimos anos no Brasil contaminem irremediavelmente nossa capacidade de imaginar e desejar dias melhores. [Aplausos]. J. M.: Muito obrigado, Celia, Daniela, Sérgio e ao público. Foi uma ses- são excelente! Reunimos nesta mesa três perspectivas relevantes para o campo das políticas públicas, capacidade estatal fundamental para o fortalecimento da democracia. Fundamental, afinal é por meio destes recursos que o Estado brasileiro poderá consolidar a cidadania neste país e prover maior bem-estar à sociedade, por meio das suas políticas sociais, políticas culturais e políticas econômicas, por exemplo. Como debatido nesta mesa, é revertendo o desmantelamento do Estado brasileiro e reconstruindo nossasinstituições que o Brasil po- derá garantir o pleno funcionamento da nossa democracia. O respeito aos poderes e instituições é um imperativo! É necessário também voltarmos a garantir o pleno funcionamen- to das nossas capacidades burocráticas. O respeito aos servidores e, sobretudo, às ações de Estado desempenhadas por eles, com base em nossa legislação, deve ser cumprido. E, por fim, é importante ressaltar a necessidade de que o combate à pobreza e às desigualdades se tornem políticas de Estado. A estabi- lidade da nossa democracia passa pela garantia plena da cidadania, conforme a Constituição de 1988, e das condições mínimas de sobre- vivência à população, em um país menos desigual. Considerações finais A Constituição de 1988 estabelece a autonomia universitária e o “princípio de indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão” como norteador da educação superior no Brasil (Constituição Federal de 1988, artigo 207). Disseminar os resultados das pesquisas cientí- ficas conduzidas no país para um público amplo faz parte, portanto, da missão da academia, espaço privilegiado de produção de conheci- mento e instrumento para a transformação social. O conjunto de mesas-redondas conduzidas durante a realização do seminário Democracia em foco procurou justamente atender a esse compromisso constitucional da academia com a sociedade. Em tem- pos duros para a produção científica, com a escalada do discurso ne- gacionista que desqualifica o pensamento crítico e tem viabilizado a eleição de líderes autoritários mundo afora (Levitsky e Ziblatt, 2018), romper as barreiras da universidade para levar informação qualifi- cada ao alcance do cidadão comum torna-se ainda mais necessário. Além de representar uma oportunidade de prestar contas à sociedade sobre o resultado de pesquisas custeadas, em grande parte, com re- cursos públicos, a iniciativa constitui, antes de tudo, uma defesa da popularização da ciência no país, necessária para a proteção da nossa democracia. O compromisso com a difusão científica deveria estar no cerne dos programas das instituições de ensino superior, como um dos ob- D E MO C RAC I A E M F O CO 178 jetivos prioritários da formação dos profissionais para a ação social (Candotti, 2002). A FGV CPDOC se orgulha de ter coordenado um evento sobre a trajetória e os desafios da democracia brasileira pela lente da abordagem interdisciplinar, que lhe é tão estimada. Materia- lizar, na forma deste livro, as interpretações, as análises e os prognós- ticos de especialistas reconhecidos que se engajaram em simplificar para o grande público o conhecimento disponível, em diferentes cha- ves de leitura, sobre os rumos do país, significa trilhar mais um passo na proteção da memória política brasileira. No futuro, a comunidade em geral poderá ter acesso ao registro das ricas discussões realizadas durante o seminário, acompanhando as preocupações que pesquisa- dores e público nutriam a respeito do panorama político do país em agosto de 2022. Ficam os votos de que o Brasil desigual e polarizado do presente caminhe para rotas melhores. Como discutimos, as saídas para os dois problemas existem. Referências ABRANCHES, Sérgio. 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É autor de Frei Betto: political-pastoral work of a Dominican friar in Brazil and beyond, em coautoria com Evanize Sydow (Sussex Press, 2021); Democracia Brasi- leira em foco: historiografia, atores e proposições (Sagga, 2020); A razão indignada: Leonel Brizola em dois tempos, coorganização com Jorge Fer- reira (Civilização Brasileira, 2016); Uma capital para a República: poder federal e forças políticas locais no Rio de Janeiro na virada para o século XX (Revan, 2015) e Sinais trocados: o Rio de Janeiro e a República brasi- leira (7Letras, 2012). E-mail para contato: americo.freire@fgv.br. Clara Maria de Oliveira Araújo Possui graduação, mestrado e doutorado em ciências sociais (UFRJ) e pós-doutorado pelas universidades de Cambridge e Complutense de Madrid. É professora do Programa de Pós-graduação em Ciências Sociais (Uerj), coordenadora acadêmica do Nuderg/Uerj e pesquisa- dora do CNPq. Suas áreas de pesquisa são relações de gênero e repre- sentação política, e articulação entre vida familiar e esfera pública. Há duas décadas se dedica ao estudo dos processos de adoção das cotas D E MO C RAC I A E M F O CO 192 eleitorais por gênero. Entre suas publicações estão: Gênero e o acesso ao poder legislativo no Brasil: as cotas entre a instituição e a cultura (reed.). In: MIGUEL, L. F. (Org.). Mulheres e representação política: 25 anos de estudos sobre cotas eleitorais no Brasil. Porto Alegre: Zouk, 2021; Gender quota’s in South America’s big three, junto com Adriana Piatti-Crocker e Gregory Shimidt. Nova York: Lexington Books, 2017; Mulheres e os partidos nas eleições de 1933. In: PRESTES, A. (Org.). 100 anos da luta das mulheres pelo voto: Brasil-Argentina e Uruguai. 2021. E-mail para contato: claramaria.araujo@gmail.com. Celia de Andrade Lessa Kerstenetzky É PhD (com louvor) em ciências políticas e sociais pelo European Uni- versity Institute (1998). Foi pesquisadora e professora visitante em di- versas universidades estrangeiras. Atualmente é professora titular do Instituto de Economia da UFRJ, coordenadora do Centro de Estudos sobre Desigualdade e Desenvolvimento (Cede), docente permanente do PPED-UFRJ e do PPGE UFF e pesquisadora do INCT-PPED. Pes- quisa na área de teoria política contemporânea e política social, sendo seus principais interesses atuais de pesquisa a análise das desigualda- des socioeconômicas, dos processos e propósitos do desenvolvimento e dos estados de bem-estar social contemporâneos. Publicou O estado do bem-estar social na idade da razão: a reinvenção do estado social no mundo contemporâneo, além de muitos artigos e capítulos de livros. E-mail para contato: celiakersten@gmail.com. Daniela Campello da Costa Ribeiro Formou-se em engenharia pela UFRJ, é mestre em ciência política pelo Iesp/Uerj e PhD em política e relações internacionais pela Ucla. Atualmente é professora da Ebape/FGV e foi professora na Universida- de de Princeton entre 2009-13. Campello foi pesquisadora visitante na Universidade de Oxford (2017/18), na Inglaterra, e no Wilson Center for International Scholars (2021/22), nos EUA. É autora do livro The politics of market discipline e coautora de The volatility curse e de vá- rios artigos em periódicos internacionais. Antes de ingressar na vida acadêmica, Campello trabalhou como consultora na Accenture, como analista sell-side no BTG Pactual e como superintendente de captação de recursos internacionais na Secretaria de Estado de Planejamento do Rio de Janeiro. E-mail para contato: daniela.campello@fgv.br. s o b r e o s auto r e s 193 Fernando de Magalhães Papaterra Limongi É mestre em ciência política pela Universidade Estadual de Campi- nas (1988) e doutor em ciência política pela universidade de Chicago (1993). É professor titular aposentado do Departamento de Ciência Política da USP, onde ingressou em 1986. Atualmente, é professor da Escola de Economia de São Paulo da Fundação Getulio Vargas. É também pesquisador sênior do Centro Brasileiro de Análise e Pla- nejamento, instituição que presidiu entre 2002 e 2006. Entre outras, publicou as seguintes obras: PRZEWORSKI, Adam; ALVAREZ, Mi- chael E.; CHEIBUB, Jose Antonio; LIMONGI, Fernando. Democracy and development: political institutions and well-being in the world, 1950-1990. Nova York: Cambridge University Press, 2000 e FIGUEI- REDO, Argelina Cheibub; LIMONGI, Fernando. Executivo e Legisla- tivo na nova ordem constitucional. Rio de Janeiro: Editora FGV, 1999. E-mail para contato: fernando.limongi@fgv.br. Jairo Cesar Marconi Nicolau É cientista político, professor e pesquisador da FGV CPDOC e bolsis- ta de produtividade do CNPq. É autor de artigos e livros sobre eleições e partidos, entre eles: Representantes de quem? (2017) e O Brasil virou à direita (2020), ambos publicados pela editora Zahar. E-mail para contato: jairo.nicolau@fgv.br. Jaqueline Porto Zulini Professora adjunta da FGV CPDOC e doutora em ciência política pela Universidade de São Paulo (USP). Sua agenda de pesquisa tem sido dedicada ao estudo da Primeira República brasileira (1891-1930) e dos anos iniciais da Era Vargas (1930-37), com ênfase na análise da competição política, fraude eleitoral, mobilização política e reformas eleitorais antes da democracia. Autora do livro Estudos legislativos (em conjunto com Paolo Ricci, publicado pela editora InterSaberes em 2020) e de artigos em periódicos nacionais e internacionais, como Dados — Revista de Sociologia e Política e Journal of Latin American Studies. Coordena o projeto História das Instituições Políticas (Hipol) e trabalha junto ao Dicionário Histórico-Biográfico Brasileiro (DHBB). E-mail para contato: jaqueline.zulini@fgv.br. D E MO C RAC I A E M F O CO 194 Jimmy Medeiros Sociólogo, com doutorado em políticas públicas pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, mestre em estudos populacionais e pesqui- sas sociais na Ence/IBGE e bacharel em ciências sociais pela Univer- sidade Federal Fluminense. Pesquisador na Escola de Ciências Sociais FGV CPDOC da Fundação Getulio Vargas, professor no Programa de pós-graduação em História, Política e Bens Culturais da FGV CPDOC e professor no bacharelado em ciências sociais da FGV CPDOC. De- senvolve pesquisas sobre proteção social e políticas de transferência de renda, além de políticas públicas no campo dos esportes. E-mail para contato: jimmy.medeiros@fgv.br. Ladislau Dowbor Ladislau Dowbor é economista e professor titular de pós-graduação da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Foi consultor de di- versas agências das NaçõesUnidas, governos e municípios, além de várias organizações do sistema “S”. Autor e coautor de cerca de 45 livros, toda sua produção intelectual está disponível online no website dowbor.org. E-mail para contato: ldowbor@uol.com.br. Marco Aurélio Vannucchi Leme de Mattos Professor da FGV CPDOC, onde também é coordenador da pós-gra- duação. Bolsista de Produtividade do CNPq. Editor da revista Estu- dos Históricos (2014-18). Coordenador da graduação em história do FGV CPDOC (2014-2016). Graduado e mestre em história pela USP. Doutor em história pela mesma instituição, com período-sanduíche na Universidade Paris IV (Sorbonne). Pós-doutorado em sociologia pela Unicamp. Autor de Os cruzados da ordem jurídica. A atuação da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), 1945-1964 (2013) e de vários artigos publicados em revistas nacionais e estrangeiras. Pesquisador da International Network of Analysis of Corporatism and the Orga- nization of Interests (Netcor), da Research Network for the Study of Fascisms, Authoritarianisms, Totalitarianisms, and Transitions to De- mocracy (Refat) e da Rede Conexões Lusófonas. E-mail para contato: marco.vannucchi@fgv.br. s o b r e o s auto r e s 195 Margarida Maria Lacombe Camargo Professora associada da UFRJ e pesquisadora aposentada da Funda- ção Casa de Rui Barbosa. Desenvolve estudos na área da teoria do direito e do direito constitucional. E-mail para contato: margaridala- combe@gmail.com. Marieta de Moraes Ferreira É doutora em história pela Universidade Federal Fluminense (1991). Professora emérita do Instituto de História da UFRJ, Pesquisadora as- sociada do Institut de l’Histoire du Temps Present (IHTP), bolsista de produtividade do CNPq e pesquisadora sênior da FGV. Coordenou o programa de História oral do CPDOC entre 1992 e 1996. Eleita pre- sidente da Associação Brasileira de História Oral entre 1994 e 1996, atuou como vice-presidente da International Oral History Associa- tion, de 1996 a 2000, passando a presidir a associação até 2002. Pu- blicou inúmeros trabalhos, entre eles A história como ofício e Apren- dendo história, ambos pela FGV Editora, Rio de Janeiro; e “Ensino de história, a formação de professores e a Pós-graduação”, pela Revista anos 90. E-mail para contato: marieta.moraes@fgv.br. Marly Motta Doutora em história pela UFF e professora aposentada da FGV-RJ. Estudiosa da política carioca e fluminense, entre suas obras sobre o tema destacam-se: A nação faz cem anos: a questão nacional no cente- nário da independência (1992), O Rio de Janeiro continua sendo…: de cidade-capital a estado da Guanabara (1997), Saudades da Guanabara (2000) e E agora, Rio? um estado em busca de um autor (2022). E-mail para contato: marly.motta2017@gmail.com. Miriam Dolhnikoff Professora do Departamento de História da Universidade de São Paulo, pesquisadora do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap), autora dos livros O pacto imperial: origens do federalismo no Brasil do século XIX (Rio de Janeiro: Globo, 2005), José Bonifácio (São Paulo: Companhia das Letras, 2012) e História do Brasil Império (Rio de Janeiro: Contexto, 2017). E-mail para contato: miriamdk@ uol.com.br. D E MO C RAC I A E M F O CO 196 Paolo Ricci É professor do Departamento de Ciência Política da Universidade de São Paulo (DCP/USP) desde 2008. Suas áreas de interesse são par- tidos políticos, sistemas eleitorais, representação, comportamento político, política comparada. Publicou em revistas de área nacionais (Dados, Revista Brasileira de Ciências Sociais, Revista de Sociologia e Política, Opinião Pública) e internacionais (Journal of Latin American Studies, Journal of Modern Italian Studies, Latin American Research Review, Representation). De recente publicou O autoritarismo eleitoral dos anos 1930 e o Código Eleitoral de 1932 (Curitiba: Appris, 2019) e atualmente está finalizando dois livros sobre as eleições durante a Primeira República e os efeitos do Código Eleitoral no pleito de 1933. E-mail para contato: paolo.ricci@usp.br. Sérgio Rodrigo Marchiori Praça É professor da Escola de Ciências Sociais da Fundação Getulio Vargas (FGV CPDOC). Mestre e doutor em ciência política na Universidade de São Paulo, seus trabalhos já foram publicados por revistas acadê- micas como Governance, Latin American Politics and Society, Journal of Politics in Latin America e Latin American Research Review, entre outras. É autor dos livros Guerra à corrupção: lições da Lava Jato (Ed. Évora, 2017) e Corrupção e Reforma Orçamentária no Brasil, 1987- 2008 (Ed. Annablume, 2013). Foi colunista dos sites de Época Negó- cios (2012-15), Veja (2015-19), Exame (2017-21) e R7 (2019/20). E- -mail para contato: sergio.praca@fgv.br. Capa Rosto Créditos Sumário Prefácio Apresentação Palácio Tiradentes, casa do povo e lugar de memória Introdução Mesa 1: Governo representativo no Brasil: do Império à Era Vargas Capítulo 1 — O governo representativo no Brasil Imperial Capítulo 2 — Primeira República (1889-1930): uma certa gramática política Capítulo 3 — Partidos e competição política durante a Era Vargas Debate Mesa 2: Partidos e sistemas partidários no Brasil Capítulo 4 — Partidos e eleições no Brasil do pós-1988 Capítulo 5 — Baixa representação de mulheres no legislativo brasileiro e a relação com sistemas partidários e eleitoral Capítulo 6 — A fusão do Rio de Janeiro: efeitos sobre os arranjos político-partidários fluminenses Debate Mesa 3: Instituições políticas e relações Executivo-Legislativo no Brasil Capítulo 7 — A crise econômica brasileira Capítulo 8 — Os Poderes no presidencialismo de coalizão Capítulo 9 — Judicialização da política no Brasil pós-1988 Debate Mesa 4: Capacidade estatal e políticas públicas Capítulo 10 — Crise democrática e desmantelamento do Estado Capítulo 11 — Autonomia burocrática no Brasil Capítulo 12 — O desafio da desigualdade e as políticas públicas no Brasil Debate Considerações finais Referências Sobre os autores