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DEMOCRACIA EM FOCO Um balanço dos desafios da trajetória política brasileira Jaqueline Porto Zulini organ izadora Um livro sobre a trajetória e os de-safios da democracia no Brasil não poderia ser mais oportuno, e a estraté- gia de organizá-lo a partir de múltiplos pontos de vista é mais que apropriada. No momento em que discutimos os desdobramentos de uma competição eleitoral dramática, a iniciativa desta publicação sinaliza para a sociedade, os políticos e a academia a urgência de uma reflexão séria, informada e acessí- vel sobre a política. Nascida de um debate que reuniu a política prática com o seu estudo aca- dêmico, a presente coletânea promete iluminar outros debates no Brasil: os que estamos fazendo e os que precisam ser feitos. Governo, representação, so- ciedade: como funcionam, como se for- maram, que efeitos produzem? Como os queremos e como os estamos mol- dando? Os especialistas que aqui com- partilham os achados de suas pesquisas hão de ajudar muitos estudantes a res- ponderem essas questões. As contribuições aqui oferecidas descortinam para todos os públicos um universo de conhecimentos crucial para entender o presente e para projetar o fu- turo. Instituições, atores e seus compor- tamentos aqui analisados são objetos para estudiosos e matéria para os polí- ticos. Este livro colabora para que se tor- nem também assunto para a cidadania. Gabriela da Silva Tarouco Departamento de Ciência Política Universidade Federal de Pernambuco JAQUELINE ZULINI graduou-se em ciências sociais pela USP, onde tam- bém obteve o mestrado e o dou- torado em ciência política. Atuou como pesquisadora do Cebrap de 2006 a 2018. É professora de ciência política da FGV desde 2019, e coau- tora de Estudos legislativos (2020) e Eleições na primeira fase da Justiça Eleitoral (no prelo). Democracia em foco é uma rica coletânea que reúne cientistas políticos, economistas, historiadores e sociólogos no propósito de problematizar a trajetória do regime representativo no Brasil e discutir os atuais desafios da democracia no país. A linguagem acessível do texto não poderia ser mais pertinente para o grande público, sedento pelas avaliações e prospecções dos especialistas neste momento crítico da vida política brasileira. D EM O CRA CIA EM FO CO Jaqueline Porto Zulini o r g a n iza d o r a www.fgv.br/editora ISBN 978-65-5652-189-3 Fundação Getulio Vargas Presidente: Carlos Ivan Simonsen Leal Editora-executiva: Marieta de Moraes Ferreira Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro Presidente: André Ceciliano Diretor-Geral: Wagner Victer Subdiretor-Geral de Cultura: Nelson Freitas Superintendente da Curadoria do Palácio Tiradentes: Maria Lucia Cautiero Horta Jardim Coordenação do Projeto “Casa da Democracia”: Franklin Dias Coelho Assistente Administrativo: Gabriela Coutinho de Figueiredo Mesa Diretora Presidente: Dep. André Ceciliano 1o Vice-Presidente: Dep. Jair Bittencourt 2o Vice-Presidente: Dep. Chico Machado (Francisco Alves Machado Neto) 3o Vice-Presidente: Dep. Franciane Motta 4o Vice-Presidente: Dep. Samuel Malafaia 1o Secretário: Dep. Marcos Muller 2o Secretário: Dep. Tia Ju (Jucélia Oliveira Freitas) 3o Secretário: Dep. Renato Zaca 4o Secretário: Dep. Filipe Soares 1o Vogal: Dep. Brazão (Manoel Inacio Brazão) 2o Vogal: Dep. Dr. Deodalto (Deodalto José Ferreira) 3o Vogal: Dep. Valdecy da Saúde (Valdecir Dias da Silva) 4o Vogal: Dep. Giovani Ratinho (Giovani Leite de Abreu) DEMOCRACIA EM FOCO Um balanço dos desafios da trajetória política brasileira Jaqueline Porto Zulini organ izadora © Copyright Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro Direitos desta edição reservados à EDITORA FGV Rua Jornalista Orlando Dantas, 9 22231-010 | Rio de Janeiro, RJ | Brasil Tel.: 21-3799-4427 editora@fgv.br | www.editora.fgv.br Impresso no Brasil | Printed in Brazil Todos os direitos reservados. A reprodução não autorizada desta publicação, no todo ou em parte, constitui violação do copyright (Lei no 9.610/98). Os conceitos emitidos neste livro são de inteira responsabilidade dos autores. 1a edição: 2022 coordenação editorial e copidesque Ronald Polito revisão Marco Antonio Corrêa e Sandro Gomes dos Santos capa, projeto gráfico de miolo e diagramação Ligia Barreto | Ilustrarte Design foto da capa Rafael Wallace Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) Ficha catalográfica elaborada pelo Sistema de Bibliotecas/FGV Democracia em foco : um balanço dos desafios da trajetória política bra- sileira / Jaqueline Porto Zulini (Org.). - Rio de Janeiro : FGV Editora, 2022. 196 p. Inclui bibliografia. ISBN: 978-65-5652-192-3 1. Democracia – Brasil. 2. Brasil – Política e governo. I. Zulini, Jaqueline Porto. II. Fundação Getulio Vargas. CDD – 320.981 Elaborada por Mariane Pantana Alabarce – CRB-7/6992 Sumário Prefácio 7 André Ceciliano Apresentação 9 Maria Lúcia Jardim Palácio Tiradentes, casa do povo e lugar de memória 13 Adelina Novaes e Cruz e Thais Blank Introdução 15 Jaqueline Porto Zulini Mesa 1: Governo representativo no Brasil: do Império à Era Vargas 17 Capítulo 1 — O governo representativo no Brasil Imperial 19 Miriam Dolhnikoff Capítulo 2 — Primeira República (1889-1930): uma certa gramática política 27 Marly Motta Capítulo 3 — Partidos e competição política durante a Era Vargas (1933/34) 33 Paolo Ricci Debate 43 Mesa 2: Partidos e sistemas partidários no Brasil 51 Capítulo 4 — Partidos e eleições no Brasil do pós-1988 53 Jairo Nicolau D E MO C RAC I A E M F O CO 6 Capítulo 5 — Baixa representação de mulheres no legislativo brasileiro e a relação com sistemas partidários e eleitoral 61 Clara Araújo Capítulo 6 — A fusão do Rio de Janeiro: efeitos sobre os arranjos político-partidários fluminenses 75 Marieta de Moraes Ferreira Debate 83 Mesa 3: Instituições políticas e relações Executivo-Legislativo no Brasil 95 Capítulo 7 — A crise econômica brasileira 97 Ladislau Dowbor Capítulo 8 — Os Poderes no presidencialismo de coalizão 105 Fernando Limongi Capítulo 9 — Judicialização da política no Brasil pós-1988 113 Margarida Lacombe Camargo Debate 125 Mesa 4: Capacidade estatal e políticas públicas 135 Capítulo 10 — Crise democrática e desmantelamento do Estado 137 Daniela Campello Capítulo 11 — Autonomia burocrática no Brasil 149 Sérgio Praça Capítulo 12 — O desafio da desigualdade e as políticas públicas no Brasil 155 Celia Kerstenetzky Debate 169 Considerações finais 177 Referências 179 Sobre os autores 191 Prefácio A Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro tem pautado sua atuação, historicamente, pela defesa da democracia e dos valores inerentes ao estado democrático de direito. No momento em que a sociedade brasileira vê o crescimento de ideais extremistas e o desprezo pelo diálogo e respeito às diferenças, a realização do ciclo de debates “Democracia em Foco” no Palácio Tira- dentes, sede histórica do Poder Legislativo fluminense, representa um marco e uma tomada de posição em prol dos valores democráticos. Este livro retrata os debates que foram realizados com o apoio e organização da Fundação Getulio Vargas (FGV), que é uma das insti- tuições de ensino mais prestigiadas do país, sediada no Rio de Janeiro, o que muito orgulha a todo o povo fluminense. Boa parte dos problemas enfrentados no Brasil está relacionada com uma carência de debate acerca dos grandes temas nacionais, sen- do fundamental, neste sentido, a discussão em torno da separação de poderes e da harmonia entre o Executivo e o Legislativo. O sistema partidário e as regras que conformam a organização política e o pro- cesso eleitoral merecem igual destaque, pois representam a essência do processo democrático. Com a abordagem destes temas e a publicação desta obra, esta- rá a Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro oferecendo importante contribuição para o debate público e para a consolidação D E MO C RAC I A E M F O CO 8 da democraciano Brasil, afastando qualquer tentativa de reescrever a história e ver reavivado o autoritarismo que tanto mal causou ao nosso país. André Ceciliano Presidente da Alerj Apresentação Até que os leões tenham seus próprios historiadores, as histórias de caçadas continuarão glorificando o caçador. (Eduardo Galeano) Este livro traduz uma esperança. A esperança de que tendo a democra- cia como foco continuaremos na construção de um país democrático e justo socialmente. Essa esperança está presente na ideia de trans- formar o Palácio Tiradentes na Casa da Democracia, projeto que é o pano de fundo que nos estimulou a fazer esta parceria com a Funda- ção Getulio Vargas (FGV) e a produzir o seminário que deu origem ao livro Democracia em foco. Cabe registrar que este projeto tem as digitais do presidente da As- sembleia Legislativa, André Ceciliano, que ao apresentá-lo referiu-se à necessidade de estabelecer o “compromisso de promover o acesso da po- pulação às principais fontes de conhecimento guardadas na memória na- cional e que fazem parte dos ideais de construção da nossa democracia”. É com base neste compromisso que o professor Franklin Coelho, professor da Universidade Federal Fluminense (UFF), desenvolveu o conceito e o desenho do projeto Casa da Democracia, entendendo que se constitui na ressignificação da evolução da construção democrática e da história republicana, com espaços interativos de apreciação e va- lorização do patrimônio material e imaterial do Palácio, procurando usar a tecnologia para ajudar no relacionamento com o público, nas formas lúdicas de conhecimento, nas possibilidades de permitir que o público vivencie momentos históricos e deixe fluir a emoção do olhar sobre fatos e personagens da resistência democrática. D E MO C RAC I A E M F O CO 10 Nesse contexto, cabe resgatar o papel relevante do Palácio Tiraden- tes na construção de um Brasil politicamente independente e sustentá- vel. Neste ano de 2022 o Brasil comemora 200 anos da Independência e de história de construção republicana e democrática. E o Palácio Tira- dentes, como símbolo e referência dessa construção histórica, completa 100 anos de lançamento da sua pedra fundamental. Repensar a história republicana e democrática do país, a partir do lugar da fala do Palácio Tiradentes, é o desafio que estabelecemos nesta parceria com o CPDOC. É ali onde a democracia brasileira dá seus primeiros passos e enfrenta também as primeiras resistências. O primeiro edifício construído na rua da Cadeia data de 1640 e serviu para abrigar os primeiros três vereadores eleitos. O voto era indireto e durava apenas um ano. Cabia a eles cuidar da cidade e das finanças públicas. Todo o dinheiro arrecadado ficava guardado em um cofre chamado “burra”, que só podia ser aberto por três chaves: cada uma ficava com um vereador. Era um tempo da Cadeia Velha, com o legis- lativo e o cofre público no andar de cima, e no andar de baixo a cadeia da cidade. Pela Cadeia Velha passaram fatos memoráveis que se constituem como uma herança que mais tarde o Palácio Tiradentes vai herdar. Com a vinda da Coroa Portuguesa, o prédio retoma sua função le- gislativa ao abrigar a Assembleia Constituinte de 1823. Dissolvida a Constituinte, o prédio abrigou a partir de 1826 a Câmara dos Deputa- dos. Este local foi palco de momentos históricos, como a aprovação da Lei Áurea, que aboliu a escravidão em 1888, e os debates entre liberais e conservadores que antecipavam a proclamação da República. O Projeto Casa da Democracia procura nesse resgate da história republicana e democrática um caminho de consolidação de nossa identidade política e cultural. Trata-se não de um historicismo re- construindo o passado a partir de uma sucessão de acontecimentos, mas de identificar seus momentos mais significativos e de abrir um campo de narrativas que nos estimulem a mergulhar nesse passado em busca de nossa identidade e de nossa história. Neste momento de crescimento de um negacionismo histórico que tem como alvo a memória brasileira, começamos a ter a dimensão de o quanto precisamos conhecer os fatos que revelam nossa origem e que possam ser levados para novas gerações. Sem um determinismo ou uma história de celebrações, procuramos revisitar esses momentos a p r e s e n tação 11 no sentido de ampliar nosso conhecimento e repensar quanto o que aprendemos na escola é a história dos vencedores. Os artigos aqui apresentados marcam este momento de refletir a nossa história, um caminho de reconhecimento de continuidades e mudanças que nos permitam pensar com muita clareza, com mui- ta lucidez, as possibilidades de pensar o contrário da historiografia oficial, a história escovada a contrapelo ou o papel significativo na construção das memórias que nos levam ao relevante processo de cons- trução das identidades. Este olhar do Projeto Casa da Democracia tem o compromisso de construção de um centro cultural como espaço de aprendizagem, ca- paz de gerar espaços de reflexão do passado e inspiração para a trans- formação do futuro. Maria Lúcia Cautiero Horta Jardim Palácio Tiradentes, casa do povo e lugar de memória […] que a luz que banha o plenário, esta salutar e republicana luz, possa sempre ser admirada e compreendida por todos os cidadãos, agora, enfim, admitidos com toda a pompa e circunstância neste espaço que deveria ter sido sempre seu. [Sarmento, 2002 apud Correa e Medeiros, 2005] O Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil (CPDOC) firmou, nos anos 1990, uma parceria com a As- sembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro (Alerj) que daria origem à criação do Núcleo de Memória Política Carioca e Fluminen- se, criado em maio de 1997 a partir de um convênio assinado com a Alerj. O Núcleo teve como objetivo construir um projeto de produção intelectual e referência documental sobre a história contemporânea da cidade e do estado do Rio de Janeiro. Nesse âmbito, foram realiza- das entrevistas de história oral com parlamentares que resultaram em uma série de artigos, livros e, desde 1998, a exposição Palácio Tira- dentes: lugar de memória do parlamento brasileiro, de caráter perma- nente. Essa exposição, montada no interior do Palácio, composta por pranchas ilustradas com fotografias, caricaturas, desenhos e pinturas de época, além de textos informativos, destina-se a apresentar even- tos marcantes da recém-conquistada democracia brasileira, além de destacar acontecimentos relevantes da história do Palácio. A curado- ria trabalhou com três módulos temáticos subdivididos em eixos de abordagem: D E MO C RAC I A E M F O CO 14 Módulo Palácio Tiradentes: nova sede; inauguração; reinaugura- ção e tombamento. Módulo Câmara dos Deputados: anos 1920; Assembleia Nacional Constituinte de 1933; fechamento da Câmara dos Deputados; e Esta- do Novo. Módulo Assembleia Legislativa: Assembleia Constituinte do es- tado da Guanabara; Assembleia Legislativa do estado da Guanabara; Assembleia Constituinte do novo estado do Rio de Janeiro; Assem- bleia Constituinte estadual de 1989. A exposição permaneceu instalada até o presente ano, recebendo, diariamente, um significativo número de visitantes. O CPDOC, 24 anos depois e após a mudança da Alerj para um novo prédio, é convidado a elaborar uma proposta repensando a ex- posição dos anos 1990 à luz das questões do tempo presente. Estamos honrados em participar desse ambicioso projeto que propõe a trans- formação do Palácio Tiradentes em um espaço de memória integral- mente voltado para registrar e revelar os desafios contemporâneos ao longo da história republicana brasileira, com ênfase na luta e na defesa da democracia. No novo projeto, revisitamos e expandimos a exposição de 1998 com olhar historiográfico contemporâneo sobre fontes primárias e secundárias, pesquisadas e selecionadas, que serão potencializadas pelo uso de recursos tecnológicos viáveis no século XXI. Com isso, assumimos que, mais do que “complementar” aexposição de 1998, foi preciso incorporar novos debates, novos atores e, sobretudo, uma nova estética. As 133 imagens selecionadas para a primeira exposi- ção atenderam à demanda de criação de uma exibição permanente e estática. A proposta de 2022, por sua vez, tem como pilar a flexibi- lidade e adaptabilidade da exposição à tecnologia imersiva. Mais do que ampliar a exposição original, nosso objetivo é ressignificá-la, in- corporando diversidade de fontes, sujeitos e narrativas à história da República brasileira, da Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro e do grande protagonista que é o Palácio Tiradentes. Adelina Novaes e Cruz e Thais Blank Introdução Este livro materializa o seminário Democracia em foco, realizado na sede da Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro (Alerj) entre os dias 2 e 3 de agosto de 2022, sob a coordenação do Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil da Fundação Getulio Vargas (FGV CPDOC), para discutir a trajetória da política brasileira. A programação do seminário se fundou em torno de quatro mesas- -redondas que problematizaram pontos nevrálgicos da produção cien- tífica disponível e, com base em evidências, prospectaram os rumos po- líticos do país, dignos de amplo debate público. Abrindo os trabalhos, a mesa “Governo representativo no Brasil: do Império à Era Vargas” foi um convite para relembrarmos o significado de instituições políticas e das eleições antes mesmo do advento da democracia no país. Uma re- flexão sobre as origens elitistas do governo representativo tão necessária para a revalorização do regime atual. Na sequência, a mesa “Partidos e sistemas partidários no Brasil” refletiu sobre os limites e a lógica pró- pria das nossas instituições representativas que coordenam o mercado eleitoral e orquestram a cena política, em tempos de descrença dissemi- nada na democracia de partidos. No segundo dia do seminário, a mesa “Instituições políticas e re- lações Executivo-Legislativo no Brasil” abordou o impacto da crise econômica e das relações entre os poderes para a governabilidade D E MO C RAC I A E M F O CO 16 do país. Os especialistas compartilharam a preocupação em obser- var o presidencialismo de omissão praticado pelo governo Bolsonaro (2018-22) paralelamente ao gradativo fortalecimento do Poder Judi- ciário. As palestras que integraram a mesa de encerramento do even- to, intitulada “Capacidade estatal e políticas públicas”, retrataram o aprofundamento da desigualdade no país durante os últimos anos e o desmantelamento de uma rede crucial de proteção para as mino- rias e populações em vulnerabilidade social. Em comum, houve uma inclinação dos analistas em identificar fórmulas políticas conhecidas para contornar os problemas socioeconômicos e de governabilidade do país. A série de análises baseadas em evidências esclarece como, na prática, a história política muitas vezes se repete. Os capítulos que compõem o livro correspondem a versões revisa- das das palestras apresentadas durante o seminário, e o leitor poderá acompanhar o debate ocorrido em cada uma das quatro mesas-re- dondas, com base na transcrição das perguntas realizadas pelo públi- co e nas respectivas respostas dos palestrantes. A linguagem acessível e o tratamento objetivo e didático de todos os temas abordados pelas palestras convergem para o grande compromisso dessa iniciativa com a preservação da memória política do país. Diante do apelo crescente da desinformação na atual conjuntura, espera-se que sejam realiza- dos mais eventos de difusão científica sobre a trajetória do Brasil, de modo a disseminar entre a população a importância de se resgatar nosso passado político para a compreensão do presente e o enfrenta- mento dos desafios futuros. Que continuemos a escrever e debater a trajetória política brasilei- ra para além dos muros da universidade! Jaqueline Porto Zulini M E SA 1 Governo representativo no Brasil: do Império à Era Vargas Quais eram as características do governo representativo no Brasil antes da democracia? Essa foi a pergunta que guiou a organização da pri- meira mesa-redonda do seminário Democracia em foco. A intenção foi retomar o conhecimento disponível sobre o passado imperial, a expe- riência oligárquica e os primeiros anos da Era Vargas para debater as visões pessimistas que ainda persistem e minimizam a complexidade da trajetória do governo representativo no país. Com a consolidação do sufrágio universal e a abolição dos crité- rios censitários que restringiam o direito de voto às pessoas de posses, especialistas mundo afora perderam de vista a dimensão aristocrática e desigual das eleições (Manin, 1995). Como resultado, cristalizou-se paulatinamente o entendimento normativo de que as eleições deve- riam ser democráticas por definição, garantindo ampla participação popular em disputas livres, justas e competitivas entre os partidos po- líticos por votos. No caso do Brasil, a consequência desse referencial teórico enviesado por expectativas democráticas foi a multiplicação de interpretações que julgam as primeiras experiências de governo re- presentativo no país como falhas e incompletas, sobretudo por conta do eleitorado restrito e da fraude eleitoral generalizada. A exposição de Miriam Dolhnikoff sobre o Brasil monárquico tra- tou justamente de relembrar o caráter liberal do regime representativo durante o Império quando as eleições tinham o propósito de insti- D E MO C RAC I A E M F O CO 18 tucionalizar a resolução dos conflitos entre as elites que disputavam o poder. Suas reflexões nos convidam a deslocar o foco do eleitor e das denúncias de fraude para o estudo das práticas eleitorais. Nes- sa guinada, vê-se que as eleições serviam, antes de tudo, como um meio de legitimação política. Paolo Ricci endossa a mesma proposta e questiona a interpretação convencional segundo a qual o Código Elei- toral de 1932 encaminhou o país para a democratização. Em sua lei- tura, as fraudes eram, naquela época, um instrumento de competição política, e a narrativa criada pelos revolucionários de 1930 procurou apagar o caráter autoritário do governo representativo na Era Vargas. A gramática política pejorativa construída pelos ideólogos autoritá- rios do Estado Novo para diminuir a experiência da Primeira Repú- blica brasileira foi revisitada na palestra proferida por Marly Motta, que compartilhou a importância de se rever as visões depreciativas sobre o período oligárquico ainda presentes no nosso imaginário político. No conjunto, as comunicações dos três especialistas con- vergiram para a urgência de fazermos as pazes com a trajetória do governo representativo no Brasil, retomando o seu estudo como o padrão — e não a exceção — de um tempo que não pode ser julgado pelo que não foi. CA P Í TU LO 1 O governo representativo no Brasil Imperial Miriam Dolhnikoff É um prazer estar aqui, especialmente em um seminário com este tema, atualmente. Todos nós vamos repetir isso aqui, com certeza, mas vale repetir sempre. É absolutamente fundamental estarmos dis- cutindo a democracia sob todos os pontos de vista. Gostaria de agra- decer especialmente à Jaqueline pelo convite. Um convite que, para mim, é muito importante porque sou uma historiadora que pesquiso o período da monarquia constitucional no século XIX. Quando se fala em história da democracia no Brasil, todo mundo pensa em República. Proponho uma abordagem diferente para enten- dermos o motivo: durante muito tempo, a historiografia entendeu que o regime liberal instaurado no Brasil pós-Independência, na forma de uma monarquia constitucional, era, na verdade, só aparência, quase uma farsa. Porque seria impossível um regime liberal em um país es- cravista. Proponho que pensemos o contrário, ou seja, o regime libe- ral e o liberalismo no século XIX eram compatíveis com a escravidão. O regime liberal foi importante para manter a ordem escravista, mas isso não quer dizer que ele era apenas aparência.Se tomarmos os exemplos dos governos representativos no mundo ocidental no sécu- lo XIX, a monarquia brasileira tinha basicamente as mesmas caracte- rísticas e os mesmos princípios: a separação entre poderes, uma nova forma de relação entre Estado e indivíduo — que se tornava cidadão D E MO C RAC I A E M F O CO 20 — e a eleição de representantes. A questão é discutir de que modo isso funcionava. É claro que os princípios gerais estavam presentes em to- dos os países do mundo que adotaram esse regime no mundo ociden- tal, mas suas especificidades resultaram de cada contexto histórico.1 No caso do Brasil, a especificidade era a de um país escravista. O que não impediu que o regime liberal funcionasse. Pensar assim ou adotar essa abordagem é importante porque inclui o regime liberal na história da democracia contemporânea brasileira. Podemos entender melhor como um regime que tinha como ob- jetivo manter a ordem escravista conseguiu se transformar, ao longo de dois séculos, em uma democracia de verdade, em que a escravidão é impensável; em uma democracia com uma ampliação infinita da cidadania se comparada com a do século XIX. Então, pensar o regime liberal no século XIX é pensar a longa história para que chegássemos até aqui. É pensar todas as conquistas que fomos capazes de fazer nes- ses últimos 200 anos. Para tratar desse tema, focarei em duas questões.2 Primeiro, o go- verno representativo no Brasil, instaurado a partir da Independência, tinha o mesmo objetivo que os governos representativos que surgiram nesse período no mundo ocidental: institucionalizar os conflitos entre os diversos setores da elite. É obviamente um regime de elite, dirigido por uma elite, mas são setores diferentes entre si, com diferentes de- mandas. A união em torno da defesa da ordem escravista não foi su- ficiente para que houvesse coesão no sentido de formarem um grupo com interesses únicos ou homogêneo. Institucionalizar os conflitos, ou seja, trazer para dentro das instituições os embates entre os setores da elite — a negociação entre eles — foi uma forma importante de se estabelecer um regime capaz de garantir um controle sobre a ordem escravista e a hierarquia, ou a manutenção da profunda hierarquia social. A institucionalização desses conflitos teve como instância funda- mental o parlamento. Quando se fala em monarquia no Brasil, em geral, desconsidera-se o papel do parlamento no processo decisório, porque existia o Poder Moderador e um imperador que podia dis- 1 Nota da Organizadora (N.O.): Para uma síntese sobre o perfil dos regimes represen- tativos liberais adotados na América Latina durante o século XIX, ver Sabato (2021). 2 N.O.: Os argumentos desta palestra são desenvolvidos, de forma bastante didática, em: Dolhnikoff (2017). o g ov e r n o r e p r e s e n tati vo n o b ras i l i M p e r i a l 21 solver a Câmara. Esse é o primeiro ponto que tenho estudado nas minhas pesquisas: a importância do parlamento autônomo. Um par- lamento que, obviamente, tinha de negociar com o imperador e com o ministério, mas onde os representantes eleitos, de setores de elite divergentes, negociavam. Portanto, desde o início, o parlamento foi fundamental na história do governo representativo no Brasil, além da negociação que se dava entre esses diversos grupos de elite dentro do próprio parlamento, mas também no ministério. Para aprovar proje- tos de lei, o ministério precisava conquistar a maioria parlamentar. Ou seja, a questão da governabilidade já estava então colocada. A questão de como o ministério, o Executivo, seria capaz de formar uma maioria para aprovar seus projetos estava colocada já no século XIX, o que sig- nifica que temos de procurar entender as diferentes formas de cons- truir essa governabilidade. Por ser um regime de elite, que mantinha exclusividade no processo decisório, as negociações para construção de maioria passavam por esse grupo, mas variavam muito dependen- do dos temas que estavam sendo discutidos. Às vezes, prevaleciam os interesses das províncias; às vezes, os interesses econômicos; outras, determinadas crenças doutrinárias e também dos partidos. Os partidos tiveram importância na negociação com o ministério e na construção, ou não, da governabilidade. Uma governabilidade que, se não fosse conquistada, em geral terminava com a queda do gabine- te e, no caso da monarquia, também havia possibilidade de dissolução da Câmara pelo imperador. Mas essa dissolução tinha um grande uso político, exatamente pela importância do Parlamento.3 Importância para institucionalizar os conflitos e para garantir legitimidade para o regime. Um regime liberal tem que ser capaz de criar mecanismos de legitimação. Essa era uma tarefa para o regime monárquico e uma das formas era justamente a garantia ou a existência de um parlamento capaz de participar de forma autônoma do processo decisório. O segundo ponto em que quero me deter, ainda que de forma ge- nérica, é a questão das eleições — um ponto central no debate atual, e na história da democracia, já está presente na monarquia brasileira do século XIX. Quando falamos em eleições no século XIX, em geral, a 3 N.O.: Por trás da aparente dominância que o Poder Moderador exercido pelo impe- rador permitiria impor sobre os demais poderes e fragilizar os gabinetes ministeriais, existem evidências de que a negociação política, na prática, fosse mais comum. A este respeito, ver Ferraz (2017:63-91). D E MO C RAC I A E M F O CO 22 ideia que surge — e esse é um retrato construído por uma historiogra- fia mais tradicional — é a de eleições fraudadas, violentas, com uma porcentagem extremamente restrita da população livre e pobre e mar- cada pelo clientelismo. Ou seja, a participação em eleições era para homens livres, os escravizados obviamente estavam fora. O governo representativo no Brasil do século XIX é um governo para o mundo dos homens livres. Os escravos estavam excluídos pela sua condição de escravizado, o que significava, inclusive, não ser considerado um sujeito portador de direitos, condição necessária para o exercício da cidadania. Mas, para os homens livres, havia algum grau de participa- ção. Então, em geral, essas eleições são tratadas como se não valessem nada por estas razões: a fraude, a violência, o clientelismo. Ou seja, uma relação — consequência da escravidão — entre os homens livres pobres e os proprietários, de absoluto arbítrio dos proprietários sobre a vida dos homens livres pobres. Mais uma vez, proponho pensarmos de uma forma um pouco di- ferente. Proponho a abordagem de que, já no século XIX, na monar- quia brasileira, as eleições eram importantes como um fator de legiti- mação do regime. Era uma participação muito diminuta em relação ao mundo atual. Trata-se, então, de entender como, ao longo desses 200 anos, conquistamos a ampliação da cidadania. Partimos de uma participação restrita, mas não tanto quanto normalmente se imagina. José Murilo de Carvalho (2003:96-115), por exemplo, fez um cálculo de que cerca de 10% da população brasileira participava das eleições no século XIX. Essa porcentagem é maior do que a participação em qualquer país europeu e é similar à participação nos Estados Unidos. Richard Graham (1990), considerando só o universo daqueles que podiam participar — ou seja, homens, livres, com mais de 25 anos —, calcula que essa participação era em torno de 50%. Então, é uma participação ampla para os padrões da época. A questão é entender a forma como essa participação se dava. Não só eu, como vários historiadores, tenho estudado e questiona- do alguns elementos. Primeiro, o clientelismo. Havia uma relação de sujeição e arbítrio entre homens livres e proprietários, mas isso não significa dizer que esses homens livres não tivessem alguma capaci- dade de agência. Ou seja, que não tivessem capacidade de, de algu- ma forma, colocar suas demandas e negociar, especialmente o voto. O voto não era apenas (ainda que muitas vezes pudesse ser)uma im- o g ov e r n o r e p r e s e n tati vo n o b ras i l i M p e r i a l 23 posição do proprietário, mas, sim, uma arma de negociação na mão desses homens livres pobres. O segundo elemento é a questão da fraude, que tanto está em discussão hoje. É inegável que a fraude marcava o processo eleitoral brasileiro no século XIX. Mas não só no Brasil, a fraude foi uma ca- racterística dos governos representativos no mundo ocidental do sé- culo XIX. Quando inventaram a eleição, inventaram a fraude. Mas é importante destacar que houve a necessidade, por parte dessa mesma elite política, de criar mecanismos para o combate à fraude. A eleição era uma forma de legitimar o regime, que precisava dessa validação, inclusive, para manter a ordem escravista. Logo, ela precisava, de cer- ta maneira, funcionar, ser um espaço de disputa política reconhecido por parte dessa população pobre com efetiva participação. Portanto, a história dos governos representativos, no mundo ocidental, incluindo o Brasil, é a história do combate à fraude eleitoral. Um combate que teve a grande conquista, no século XX, de efetivamente tirar a fraude das eleições e da pauta. Entender essa conquista do século XX é en- tender o processo em que ela ocorreu. No século XIX, a elite política brasileira tinha a preocupação em, pelo menos, minimizar ou dimi- nuir a fraude nas eleições. Vários projetos foram discutidos, várias leis foram promulgadas visando minorar a fraude, para que as eleições pudessem ser vistas como legítimas. Outro ponto, que me parece ser o mais importante de todos, e que vários autores têm demonstrado, é: a eleição no século XIX foi um importante aprendizado para a população livre e pobre. Participar das eleições era compartilhar do discurso da elite sobre um regime cons- titucional, sobre os direitos do cidadão, sobre liberdade, sobre partici- pação. De modo que a participação nas eleições, mesmo que restrita e pautada por fraude e pela relação com o proprietário, foi utilizada por essa população para se apropriar dos maiores princípios dos regimes liberais. Construiu-se, ao longo do século XIX, o que o historiador Matthias Assunção chamou de “liberalismo popular”, que é o libe- ralismo apropriado pela população, que dá a ele um novo conteúdo, inclusive em revoltas armadas por determinadas demandas.4 Vários estudos mostram que as lideranças das revoltas de homens livres po- bres no Brasil do século XIX utilizavam como bandeira princípios dos 4 A expressão está bem descrita em: Assunção (2011:295-327). D E MO C RAC I A E M F O CO 24 regimes constitucionais. Por exemplo, a demanda contra o recruta- mento forçado, que era uma prática oficial da época e causou várias revoltas, porque, obviamente, os afetados eram os homens livres po- bres. Há revoltas em que essas lideranças diziam que o recrutamento forçado é inconstitucional, contrário aos princípios da Constituição. Ou revoltas por demandas em que o princípio da liberdade e a defesa da liberdade e da cidadania eram fundamentais no discurso das lide- ranças. Então, a expressão do Matthias Assunção é muito feliz. É um liberalismo popular que se constrói a partir do século XIX. A elite política também tinha a percepção de que as eleições eram importantes e promoveu diversas reformas eleitorais procurando normatizá-las. O debate no parlamento em torno dessas reformas eleitorais expressa as questões que eram fundamentais para essa elite. Tratava-se não só de combater a fraude, mas também de discutir qual o perfil dos representantes que seriam eleitos. Porque é um regime liberal em processo de construção, portanto, o perfil (o desenho insti- tucional) estava em jogo. Como exemplo, apresento duas concepções distintas, que atribuo uma ao Partido Liberal e outra ao Partido Con- servador, sobre o perfil dos representantes eleitos. Para o Partido Liberal, esses representantes deveriam ser uma es- pécie de espelho da sociedade. Na concepção do século XIX, o es- pelho da sociedade é formado por representantes de diversos setores da elite no parlamento, excluindo-se a participação das camadas mais pobres, obviamente. Refere-se à diversidade em termos de ofícios, de profissões da elite, à diversidade em relação às províncias. Enfim, uma espécie de espelho dessas diferenças. A outra concepção, do Partido Conservador, defende que os parlamentares deviam ser os homens mais ilustres do país, porque apenas homens ilustrados seriam capa- zes de decidir o que seria o melhor para o país. Esse embate esteve presente na discussão sobre as reformas eleito- rais, que já traziam pontos que são debatidos até hoje. Por exemplo, a questão de o parlamento ser uma espécie de espelho da sociedade significava garantir o que se chamava de representação da minoria. Minoria, no século XIX, tinha sentido completamente diferente. Eles estavam falando de minoria partidária. Ou seja, que o partido mino- ritário nas eleições também tivesse representante no parlamento, que o parlamento não fosse apenas o resultado daqueles que obtiveram a maioria dos votos e, portanto, a possibilidade da representação de um o g ov e r n o r e p r e s e n tati vo n o b ras i l i M p e r i a l 25 único partido. Uma das formas de garantir essa unicidade, defendida pelos liberais, era o voto distrital. O voto distrital é um tema absolu- tamente fundamental no debate da política brasileira. Porque o voto distrital era, até a década de 1860, no caso do Brasil, a única forma conhecida de garantir a representação dos dois partidos no parlamen- to. Depois, a partir da década de 1860, surgiu no debate político in- ternacional o voto proporcional, que rapidamente foi assimilado pela elite brasileira como uma alternativa. A discussão entre voto distrital e voto proporcional estava presente, justamente, porque eles eram ar- ticulados a diferentes concepções do regime representativo. Insisto em destacar que essa é uma forma de se pensar a história da democracia brasileira fundamental. Podemos pensar que estamos discutindo temas absolutamente novos ou modelos estrangeiros para adotar aqui. Mas essa é uma discussão que tem história no país. Dei o exemplo do voto distrital, do voto proporcional, se os representantes devem ser os mais ilustrados ou se devem expressar a diversidade da sociedade. Posso dar outro exemplo de uma discussão muito presen- te no Brasil, que é o que chamavam de “incompatibilidades”, e que tomamos como algo quase natural. Um juiz que quer ser candidato a deputado ou que quer ser ministro tem que se desincompatibilizar do cargo. Isso é fundamental em termos de garantia da separação en- tre poderes e para garantir a lisura das eleições, e é uma construção histórica. Durante todo o século XIX, discutiu-se se a medida deveria ser adotada ou não, e quais seriam as regras. Foi uma conquista da história brasileira, construída a partir desse regime liberal no século XIX. Uma ideia que nos parece hoje tão natural. Dou esses exemplos para tentar convencê-los de que a história da democracia brasileira começa no século XIX e para dizer que é uma história, portanto, de conquistas. A ampliação da cidadania não se deu apenas pela vontade de determinado grupo de elite, mas também pelas conquistas dos setores populares, que conseguiram sua entrada não apenas por revoltas e mobilizações, mas também por entender e utilizar as próprias instâncias do regime liberal. Então, é a entrada dos excluídos com base nessas estratégias, que incluem o uso do regi- me liberal. Termino dizendo que isso mostra a plasticidade do regime democrático. A longevidade do regime democrático, a meu ver, está, justamente, na sua capacidade de transformação. A evolução de um regime garantidor da ordem escravista para um regime, hoje, em que D E MO C RAC I A E M F O CO 26 a escravidão é absolutamente inaceitável. De um regime com baixa representatividade no século XIX para um regime de ampla repre- sentatividade e de ampla cidadania. Infelizmente, ainda hámuito a se caminhar nessa direção, mas há conquistas fundamentais. Uma plas- ticidade que nos obriga a permanentemente defender essa democra- cia. [Aplausos]. CA P Í TU LO 2 Primeira República (1889-1930): uma certa gramática política Marly Motta Agradeço muito o convite feito pela Jaqueline para falar neste se- minário que, por vários motivos, aborda um tema que me é muito caro. Primeiro, porque estamos na Alerj. Como estudiosa da política carioca e fluminense, a Alerj — e a antiga Assembleia Legislativa da Guanabara (Aleg) — tem um protagonismo muito grande nas minhas obras sobre o Rio de Janeiro. Também porque fiz parte do primeiro convênio entre a Alerj e o CPDOC da FGV. Nós fizemos uma série de entrevistas, perfis biográficos, gravações, exposição. Gostaria muito de lembrar a figura do professor Carlos Eduardo Sarmento, que foi a ponte inicial para esse convênio. Onde quer que ele esteja, as minhas saudações alvinegras.1 Ele torcia pelo Fluminense. Finalmente, não posso deixar de fazer propaganda do livro E agora, Rio? Um estado em busca de um autor (Motta, 2022), que lancei agora e que se bene- ficiou muito desse primeiro convênio. As entrevistas, as biografias, os trabalhos sobre a fusão e o novo estado do Rio de Janeiro estão aqui contemplados. Faço referência constante a isso. 1 N.O.: Carlos Eduardo Sarmento faleceu em 2013. Sua carreira foi marcada pelo es- tudo da história política da cidade do Rio de Janeiro, com destaque para as obras O Rio de Janeiro na era Pedro Ernesto (2001), A política carioca em quatro tempos (2004) e O espelho partido da metrópole (2009). D E MO C RAC I A E M F O CO 28 Quando a Jaqueline me pediu para falar sobre a Primeira Repú- blica, pensei: “‘Primeira República’, mesmo eu, que sou historiadora de formação e que trabalho com isso, constantemente escorrego para ‘República Velha’”. Quem deu à República de 1889 a 1930 o nome de República Velha? Claro que foi a elite vitoriosa de 1930, para se referir ao período anterior. Essa é uma luta política clássica: a etiqueta no período anterior de “velho”, “Antigo Regime”, “Idade Média”. Toda a gramática política que usamos para nos referir a determinados pe- ríodos históricos reflete lutas em termos de conceitos, de nomes, que acabam sendo usualmente empregados sem que façamos uma refle- xão daquele conteúdo específico. Portanto, optei pelo título “Primeira República: uma certa gramática política”, porque o sociólogo Edson Nunes escreveu um livro sobre a gramática política do Brasil.2 Achei muito interessante usar esse arcabouço teórico para trabalhar a Pri- meira República. Para não fugir ao que Edson Nunes defendeu, usarei a expressão dele. Gramática política designa as diferentes linguagens em uso na política. As gramáticas indicam os princípios por meio dos quais instituições e sistema social se estruturam. Quando ouvimos “República Velha”, parece que tudo faz sentido, porque imediatamente nos referimos ao coronelismo. É quase um si- nônimo de expressões: República Velha, coronelismo, voto de cabres- to, curral eleitoral, voto de bico de pena. Há uma gramática, um con- junto de palavras, de conceitos, que imediatamente nos vêm à cabeça quando pensamos nesse período histórico que acabou espremido en- tre o Império e a Era Vargas. A Primeira República é como se fosse um intermediário entre esses dois momentos, vamos dizer, grandiosos. Ao mesmo tempo, Edson Nunes faz essa relação entre a gramáti- ca de determinado período histórico como uma característica dele, e também faz uma comparação interessante com a qual concordo intei- ramente. Tal como camadas arqueológicas, esses conceitos são produ- zidos e se sobrepõem ao longo da história. Ou seja, embora tenham sido criados especificamente para um período — no caso, a Primeira República —, isso não significa que fiquem restritos a ele. Esses con- ceitos vão se produzindo e se sobrepondo. Semana passada, ouvi na Rádio CBN ou na GloboNews a referência: “coronel Tasso Jereissati”. Como um “coronel”, ele não aceitaria ser vice da Simone Tebet.3 Eu 2 Refiro-me à obra de Nunes (1997). 3 N.O.: A professora Marly Motta fazia referência à definição das chapas eleitorais cogitadas para a corrida presidencial de 2022. p r i M e i ra r e p ú b l i ca (1889 - 1930) 29 não daria a ele o título de “coronel”. Fiquei surpresa com como foi feita essa trajetória, do termo “coronel”, lá da Primeira República, para um senador que consideramos progressista, que quebrou certos valores no governo do Ceará. A interpretação é que ele, como coronel, jamais aceitaria ser vice de uma mulher. Essa notícia deu mais força para minha fala de hoje. O que é o coronelismo? Em que medida usamos, da maneira mais ampla possível, esse termo, essa expressão? Primeiro, o termo coro- nelismo é bem posterior ao fim da Primeira República. Ele foi criado por Victor Nunes Leal, em uma tese de concurso de professor de di- reito, da Faculdade Nacional de Direito, em que ele discutia o papel do município na federação brasileira. O livro que daria origem a esse conceito de coronelismo é Coronelismo, enxada e voto, publicado em 1949.4 Portanto, o termo “coronelismo” foi criado a partir de um olhar do fim da década de 1940 e ao longo da década de 1950. De certa maneira, Victor Nunes Leal quer buscar as raízes do atraso brasileiro. Aliás, essa geração dos anos 1940 e 1950 acabou desembocando em Juscelino, no desenvolvimentismo (“cinquenta anos em cinco”), que, de certa maneira, localiza nas práticas políticas do interior, do mun- do rural, a causa do nosso subdesenvolvimento. O termo “coronel” se originou no Império, mas está ligado à Guarda Nacional e à aquisição ou à doação da patente de coronel por parte de grandes proprietários de terra e escravos. Chamo a atenção para o fato de que, em boa par- te do Império, a grande riqueza eram os escravizados. Inclusive, eles eram usados como fiança para garantir empréstimos bancários para os proprietários rurais. A terra tinha pouco valor. O que valia mesmo era a mão de obra, que era oferecida como garantia para empréstimos bancários àquela época. A figura do coronel foi construída na inter- pretação do Victor Nunes Leal. Quero deixar bem claro que esse con- ceito foi construído, não brotou da terra. Ele foi construído no âmbito de um mundo acadêmico, neste caso, especificamente, em uma tese à cátedra na Faculdade de Direito. Trabalharei a gramática política em três aspectos. Primeiro, ten- tarei entender como a figura do coronel no Império se torna a base do sistema coronelista na Primeira República, porque aí ocorre uma mudança. Quer dizer, a figura do coronel é uma coisa, o sistema 4 Mais precisamente: Leal (1976). D E MO C RAC I A E M F O CO 30 coronelista é outra. O sistema coronelista terá sua montagem e seu funcionamento característico na Primeira República. Basicamente, a gramática do clientelismo é: compromissos recíprocos — é dando que se recebe. Não há nada de mau em dar e se receber na política. A polí- tica é a arte da negociação. O problema são os termos da negociação. O que a legislação permite. O que a moral permite. O que um fun- cionamento funcional (desculpe a ênfase) do sistema republicano, no caso da Primeira República, permite. Um pequeno parêntesis: se, na época do Império, você tinha 10% do eleitorado, o eleitorado que elegeu o presidente Campos Salles foi de 3% da população de homens livres.5 Portanto, há uma redução do corpo eleitoral na República, porque tínhamos um corpo eleitoral res- trito. Havia o presidente da República e os presidentes dos estados. As oligarquias locais eram representadas pelos coronéis. Então, tinha um sistema que funcionava, tanto de cima para baixo quanto de baixo para cima. É esse sistema que, ao contrário do que se pensa, não pos- suía doses de estabilidade. Uma das chaves da Primeira República (e do Império) é a questão da estabilidade. Criou-se uma ideia de que a Primeira República, com o funcionamento dessescompromissos recíprocos — ou seja, o presi- dente da República se entendia com os presidentes dos estados, que se entendiam com as oligarquias locais —, seria um regime estável. Não é verdade. Ao contrário do que muita gente acredita, esse sistema não funcionava como máquina. Tinha muita areia nessa máquina. Você tinha uma quantidade enorme de interesses presentes nessa máquina supostamente bem engrenada pela fraude, pela violência, pelo corpo eleitoral restrito. O que quero dizer é que esse regime tinha funcio- namento muitas vezes traumatizado. Vemos esses traumas nas suces- sivas rebeliões locais intraoligárquicas, nas disputas de interesse que não permitiam esse funcionamento idealizado, tanto nos 50 anos do Império quanto nos 30 anos da Primeira República (Viscardi, 2012). O segundo tópico é: o povo como ator político. Estamos no se- minário Democracia em foco. É óbvio que a ideia de democracia na Primeira República tem muito pouco a ver com a que temos hoje. Não encontramos, nos discursos, mesmo de líderes mais populares, a democracia nos termos tais como conhecemos hoje. Era um corpo 5 Os dados relativos à magnitude do eleitorado são estimativas de Carvalho (1987). p r i M e i ra r e p ú b l i ca (1889 - 1930) 31 eleitoral restrito. Vocês entenderão por que não posso falar de demo- cracia. Analfabetos não votavam, e o analfabetismo existia em grande escala. O argumento era liberal: o analfabeto não tinha consciência do voto, da escolha. Aliás, esse argumento será usado, em alguma medi- da, posteriormente, nos anos 1930, na ocasião do Estado Novo. Teóricos como Oliveira Vianna (1949) achavam o voto universal uma ideia aberrante, porque a maioria da população estaria subme- tida aos coronéis. A ideia de um tipo de participação do povo era algo impensável na Primeira República. Havia o argumento de que as mulheres eram histéricas. Mas isso não é novidade, uma das ale- gações — não só no Brasil, mas em outros países — era exatamente da instabilidade emocional das mulheres para poder escolher alguém para um cargo público. Os praças também não votavam. Então, ha- via legalmente o afastamento de parcelas substantivas da população. O que não significava, no entanto, que essa população marginalizada legalmente, ou que não participava de forma ativa, não estava presen- te. Basta ver a literatura de cordel. Uma orientanda minha trabalhou a política na literatura de cordel (Maya, 2012). É uma fonte muito interessante para se observar a participação da população. De que ma- neira as camadas excluídas da participação ativa — e mesmo aqueles que votavam — negociavam com os coronéis, com seus apaniguados, com seus representantes. É muito interessante. Chamo atenção para algumas expressões criadas nesse período e que duram até hoje: “voto de cabresto”, “curral eleitoral”. Não nos da- mos conta do quanto é ofensivo chamar os eleitores das favelas, das periferias, de “curral eleitoral” ou de “voto de cabresto”. É um cuidado que deveríamos ter. Vale a pena transferir o que, na Primeira Repúbli- ca, correspondia a certa realidade? A maior parte do eleitorado era da zona rural. É uma gramática que — na falta de termos adequados ao nosso período — acabamos transportando da Primeira República, de uma realidade diferente. O primeiro elemento foi o sistema coronelista. O segundo, o povo como ator político. Nada de voto de cabresto nem curral eleitoral. As demandas eram encaminhadas por outros instrumentos pouco detectados em uma fonte tradicional. Como terceiro elemento, cito Campos Salles: “A política dos estados é a política nacional”. Como se a política nacional estivesse submetida à política dos estados. A expressão talvez mais comum desse período é “café com leite”. Mi- D E MO C RAC I A E M F O CO 32 nas não era leite, era café. A elite mineira tinha conexão com o mundo exterior, principalmente o sistema financeiro. Não por acaso, a maio- ria dos bancos era de Minas Gerais (depois São Paulo se apoderou de todos eles). Portanto, a elite mineira defendia o contencionismo, o ajuste fiscal. Era um programa de governo muito mais centrado em um funcionamento do Tesouro Nacional superavitário. A elite paulis- ta, ao contrário, era papelista, era a favor da emissão, do subsídio, da proteção, porque era voltada para o mercado interno. A produção da elite paulista obviamente não tinha lugar no sistema internacional. Mas o objetivo — e na Primeira República isso está muito claro — é conquistar o mercado interno, onde a indústria paulista poderia com- petir se devidamente amparada pelos subsídios do Estado (federal, estadual e municipal). Não estou falando mal de São Paulo, não, pelo contrário. Podemos enterrar essa história de “café com leite”, porque havia muito mais disputas. São Paulo queria o Ministério da Fazenda e o Banco do Brasil. Nem sempre havia combinação, dependendo do contexto externo, não se conseguia chegar a um acordo. Muitas vezes o conflito era claro entre Minas e São Paulo. Uma das coisas que também se costuma dizer da Primeira Repú- blica é que o presidente era fraco, que o Estado era fraco. É como se Vargas e a Revolução de 1930 viessem formar um Estado forte. Estu- dos como o de Renato Lessa (1988), Elisa Reis (1988:187-203) e do próprio Edson Nunes provam que o Estado na Primeira República e o presidente não eram simples porta-vozes dos interesses dos estados. Havia instâncias de claro fortalecimento do papel do Estado e de sua intervenção na economia. Longe, portanto, daquele mundo liberal em que os teóricos de Vargas costumavam designar a Primeira República. Fecharei com uma frase do Campos Salles. Cada um fará a própria tra- dução, embora eu já tenha a minha. “Quem se propõe a consultar opi- niões alheias sujeita-se, naturalmente, a modificar as suas, e era isso o que eu queria evitar.” Para bom entendedor… Obrigada. [Aplausos]. CA P Í TU LO 3 Partidos e competição política durante a Era Vargas (1933/34) paolo ricci* Saudações a todos e todas. Sou estrangeiro aqui, não só em nacio- nalidade, mas também sou cientista político. Faço a minha incursão na história do Brasil porque é uma coisa que sempre me cativou, seja pensar o Brasil, ou pensar comparativamente o século XIX. Talvez te- nha errado de profissão, tinha que ser historiador. Então fico muito bem aqui na mesa com vocês. Quero organizar uma reflexão menos focada no que os teóri- cos e críticos do sistema representativo pensam e mais relacionada com as práticas eleitorais da época. Essencialmente, quero ressaltar quatro aspectos que são, para mim, proeminentes hoje para pen- sar a evolução do governo representativo. Antes de começar, uma premissa se faz oportuna: quando se pensa o Brasil, evito usar, de imediato, o termo democracia. Sabemos que se trata de um termo que entra em cena no fim do século XIX, assim como aconteceu em países da Europa. Ainda que o debate sobre o conceito tenha levado a abordagens interessantes e métricas variadas, acredito for- temente que o pesquisador deva dar maior ênfase às práticas, de * As reflexões de que tratei nesta exposição foram amadurecidas graças aos projetos que desenvolvi junto à Fapesp (processo 18/23060-2) e ao CNPq (processo 307864/2020-0), cujos financiamentos de pesquisa agradeço. D E MO C RAC I A E M F O CO 34 modo a compreender em profundidade a transição de um governo representativo — ou seja, essencialmente com base na presença de instituições representativas, mas que não são democráticas — para a democracia. Eis o ponto: dar a devida atenção para esse momento de transição na história política do Brasil, algo que, até agora, não foi devidamente explorado pela ciência política. Trato de um período bastante complicado, porque a literatura, em geral, aponta justamente os anos 1930 como o nascimento da demo- cracia no Brasil. Pelo menos do ponto de vista institucional, há essa associação clássica em virtude, por exemplo, da criação da Justiça Eleitoral e do próprio Código Eleitoral.1Nesse sentido, meu primeiro ponto diz respeito ao reconhecimento da importância das instituições, isto é, do aspecto institucional do governo representativo. Acho que, como estudiosos, não podemos nos esquivar de entender a evolução do governo representativo e da democracia sem levarmos em conta as regras e normas. São elas que ditam o tom das relações entres os atores políticos, sejam eles eleitores, votantes ou políticos e partidos. Com relação a esse ponto em particular, sabemos que as normas eleitorais são uma criação dos próprios políticos. Naquela época, ain- da que houvesse um debate na sociedade civil nos anos 1920 e 1930 quanto à reforma das regras eleitorais, o Código Eleitoral foi elabora- do, basicamente, por três juristas e políticos bem conhecidos: Assis Brasil, João Cabral e Pinto Serva.2 Foi uma elaboração difícil, con- siderando que eles dificilmente se encontraram. Pinto Serva alegava problemas de saúde e não se ausentava de São Paulo, enquanto Assis Brasil e Cabral residiam em outras localidades. João Cabral, que foi considerado um dos artífices de parte do Código, teve que ir até Bue- nos Aires, porque Assis Brasil havia assumido o cargo de embaixador em 1931. Comparativamente, esse é um Código que nasce a partir da elaboração restrita de algumas pessoas, influenciadas pelas reformas nos países vizinhos, em particular Argentina e Uruguai, às quais se juntam depois outros juristas, quando se percebe que o Código não sai do papel. Depois de mais de um ano de trabalho, o ministro da Jus- tiça, Maurício Cardoso, endossa os trabalhos da comissão incumbida de rever as regras eleitorais e, em um mês e meio, elabora o projeto fi- 1 Ver, a título de exemplo, Sadek (1995). 2 Para um estudo em profundidade da elaboração do Código, ver Zulini (2019:41-60). pa rti D o s e coM p e ti ção po l í ti ca D u ra n te a e ra va rgas (1933/34) 35 nal do Código Eleitoral, entregando-o a Vargas em fevereiro de 1932. Esses aspectos institucionais são centrais para pensarmos a transição. Para mim, o Código é importante para entender dois aspectos: a relação entre elites e eleitores — portanto, aqui temos o tema da par- ticipação política — e a relação entre elites e eleições, em particular o custo de competir. Quanto ao primeiro, a literatura o tem explo- rado com base nas relações clientelísticas entre eleitores e coronéis.3 Quanto ao segundo, a ênfase é geralmente posta sobre as caracterís- ticas não competitivas das eleições que antecedem a democracia de 1945.4 Voltarei ao primeiro aspecto mais à frente. No que tange ao segundo, antecipo a força da mudança observada na primeira eleição após a outorga do Código Eleitoral de 1933. Ela é a primeira eleição de fato competitiva. O significado do termo “competitiva” também é um problema. Não estou dizendo que as eleições na Primeira República nunca foram competitivas e renhidas. Não é isso, pelo contrário: não faltam histórias de mortes, de violência política, disputas partidárias, rachas de alianças políticas.5 Mas a grande diferença quanto à Pri- meira República é que a oposição consegue derrotar o governo. Isso acontece nos anos 1930, e é crucial relacionar esse efeito ao Código Eleitoral. Esses são dois pontos do primeiro aspecto institucional que queria tratar com vocês. Nas palestras, nós sempre fazemos um mea-culpa. Acho importante fazer isso aqui também. Estamos celebrando, in- clusive, 90 anos do Código Eleitoral e até agora não temos estudos sistemáticos sobre o tema. No máximo temos uma descrição de seu conteúdo e suas especificidades, mas as origens do Código, os deba- tes em torno da necessidade de incluir algumas normas, como o voto feminino, a representação classista, o debate em torno do voto secre- to ainda devem ser aprofundados. Um esforço recente que coordenei pode ser considerado a primeira tentativa de avançar nesse sentido (Ricci, 2019:41-60). Digo isso porque, para pôr na mesa algumas questões para o debate futuro, pensar nas possíveis pesquisas, é im- portante voltar nosso olhar para o desenho das regras e sua aplicação naqueles anos. 3 Para uma discussão clássica do tema ver Leal (2012). 4 A ideia de que 1945 constitua uma ruptura, pois as eleições se tornaram competiti- vas, pode ser encontrada, por último, em Limongi (2012:37-69). 5 A esse respeito ver Ricci e Zulini (2014:443-479). D E MO C RAC I A E M F O CO 36 Entro, então, no segundo e terceiro aspectos que queria discutir neste evento. Trata-se das práticas eleitorais e dos efeitos produzidos pelas regras. Muito se discute em torno das regras, como se elas auto- maticamente levassem a alguma coisa. No caso em questão, o Código é frequentemente associado à democracia. Acho que isso tem de ser esquecido, tem de ser deixado de lado, pelo menos nesse momento, va- lorizando as pesquisas que resgatam documentos e material da época. Temos que diminuir o peso das discussões em torno da transição para a democracia em termos conceituais, deslocando o assunto para como as mudanças do Código de 1932 impactaram os próprios atores políticos da época. Se isso levou a uma maior democracia, é outra questão e só pode ser respondida após pesquisas mais aprofundadas. Antes de tudo, é proeminente pensarmos um pouco sobre o tema de como os atores jo- gavam entre si. Quando penso nas práticas eleitorais, de imediato surge a questão das fraudes, do papel da recém-criada Justiça Eleitoral, dos mecanismos inventados para garantir o voto secreto. Se, por exemplo, como defendido por alguns autores, as fraudes devem ser interpretadas como formas de disputas pelo poder, é plausível supor que o controle da Justiça Eleitoral tenha modificado as inúmeras formas de manipular o voto. E, ainda, em que medida a sobrecarta oficial e a cabine indevas- sável impactaram o eleitor? Apenas uma maior atenção para as práticas eleitorais da época poderá fornecer respostas mais precisas e certeiras sobre os detalhes destas reformas. O terceiro aspecto que quero trazer para vocês é, justamente, a questão dos efeitos da reforma de 1932. O que o Código Eleitoral trou- xe de inovativo para o mundo da política? Em primeiro lugar, com- parativamente, é difícil encontrar um Código Eleitoral tão inovador mundo afora: voto proporcional, voto obrigatório, Justiça Eleitoral, voto secreto, voto feminino e representação classista. Onde encontra- mos isso? Em lugar nenhum do mundo. É claro que a historiografia tem se dedicado ao estudo do Código em algumas questões específi- cas. Talvez o voto feminino e a representação classista sejam aquelas mais pesquisadas, mas temos que levar em conta todas as dimensões institucionais ao mesmo tempo, não isoladamente, porque elas ope- ram em conjunto. Vamos lembrar que o Código Eleitoral foi aprovado em fevereiro de 1932, depois de demorar um ano para ser elaborado por Assis Brasil, Cabral e Pinto Serva. Caiu na mão de uma comissão que entregou aquele calhamaço para o próprio Vargas, que demorou pa rti D o s e coM p e ti ção po l í ti ca D u ra n te a e ra va rgas (1933/34) 37 um mês fazendo as correções e inserindo a representação classista, que inicialmente tinha ficado de fora. Sob pressão, evidentemente, de um grupo — de parte dos tenentistas — que queria esse tipo de repre- sentação. Eu diria que esse é, justamente, o único elemento do Código que não reconhecemos como democrático. Hoje em dia, ninguém fala em representação classista. Mas todas as demais dimensões — voto secreto, proporcional e o voto obrigató- rio — são institutos que caracterizam a democracia. Quero fazer um lembrete contra os paulistas, porque sempre se retoma esta ideia de uma revolução que quer constitucionalizar versus os outros que não querem as eleições. A eclosão da revolução acontece em julho de 1932. O Código foi aprovado em fevereiro de 1932. Em maio, temos um decreto do próprio presidente Vargas fixando as eleições para maio de 1933. Ou seja, já havia um calendário eleitoral prefixado. O então TribunalSuperior da Justiça Eleitoral e todos os Tribunais Regionais Eleitorais (TREs) foram instalados em maio de 1932. Por fim, durante o conflito paulista, na maioria dos estados, os TREs desenhavam as zonas eleitorais, as varas eleitorais e os ofícios que ficavam incumbi- dos dos serviços de qualificação e identificação dos eleitores. Então, esse processo inicia-se antes da Revolução Constitucionalista e corre de forma paralela a ela. Esse é um ponto importante, porque significa que parte daquela elite — identificada por alguns como os tenentes — já tinha perdido a batalha antes da eclosão do conflito paulista. Perdido no sentido de que várias oligarquias e atores políticos já pres- sionavam para uma constitucionalização e, portanto, para a volta das eleições e a criação de um governo representativo definido por uma dinâmica que conhecemos bem e que remete às relações entre um presidente e um parlamento, ambos eleitos. Qual é a inovação desse Código? Falarei dos efeitos do próprio Código Eleitoral de 1932. Primeiramente, as eleições se tornam com- petitivas. Apresentarei alguns gráficos. Acho importante fazer esse esforço, porque os dados sintetizam uma coleta de informações ain- da pouco conhecida. Para essa época, temos muitos estudos de casos, mas poucas pesquisas que pensam o Brasil como um todo. Quantos trabalhos sobre a Primeira República pensam nela como um todo? Muito poucos. Que eu me lembre, o trabalho da Claudia Viscardi (2012), centrado na eleição dos presidentes da República, que mostra justamente como, apesar de o resultado ser conhecido, havia uma di- D E MO C RAC I A E M F O CO 38 nâmica anterior de forte pressão, negociação, entre as elites políticas. Nada estava certo, nada estava acomodado nos termos São Paulo ver- sus Minas Gerais. Outras elites regionais disputavam o poder e as va- gas para presidente ou vice da República. Esse é um ponto importante que também condiciona as pesquisas sobre os anos 1930. Porque, do ponto de vista da dinâmica política, pouco muda. Pouco muda em termos da abrangência da competição política. Se pensarmos nas dis- putas da Primeira República, não temos partidos nacionais. Houve al- gumas tentativas nos anos 1910, mas no pós-1932, na primeira eleição de 1933, que é a Constituinte, não existem partidos nacionais, cada estado tem seus partidos políticos, replicando o modelo da Primeira República. É assim durante as eleições sucessivas até 1937, com o gol- pe que dá origem ao Estado Novo. Esse é um aspecto importante para pensarmos sobre como nasce a democracia de 1945, com a Lei Agamenon, que obriga os partidos a se nacionalizarem.6 Aí temos na própria legislação a exigência de determinados requisitos, obrigando o partido a estar presente em vá- rios estados para ser reconhecido como tal e poder disputar o pleito. O Código tem efeitos substantivos importantes com relação, em pri- meiro lugar, à participação política, porém, se penso no eleitor como indivíduo, nada muda. Nada muda em termos de voto ideológico, nem em termos de voto de pertencimento, aquele voto de bandeira. Nos anos 1930, ainda não temos o voto ideológico. Grande parte da população vive no campo, 75% mais ou menos. Já no que concerne às regras, o Código Eleitoral inova. Por exemplo, se pensarmos no alistamento ex offício, feito pelos chefes das reparti- ções públicas. Acho que há muita ênfase ao alistamento ex offício, mas, no fundo, ele conta essencialmente apenas nas cidades, não nas demais áreas do Brasil. Tem um aspecto do Código — por isso é importante olhar as regras — que aumenta os custos para o eleitor participar, que 6 N.O.: O professor Paolo refere-se ao Decreto-Lei no 7.586, de 28 de maio de 1945, mais conhecido como Lei Agamenon, em referência a Agamenon Magalhães, então ministro da Justiça encarregado por Getúlio Vargas de rever as regras eleitorais. Entre as medidas adotadas pelo Decreto-Lei, constava um dispositivo que condicionava o registro partidário a organizações com 10 mil eleitores em pelo menos cinco estados (art. 109). O objetivo era nacionalizar o sistema partidário, para combater a reorgani- zação de partidos estaduais, que dominavam a cena política brasileira até 1937. Para detalhes, ver Souza (1976). pa rti D o s e coM p e ti ção po l í ti ca D u ra n te a e ra va rgas (1933/34) 39 é a fotografia. Na época, para ter o título eleitoral, era preciso tirar uma fotografia. Imaginem quem poderia tirar fotografias e se havia fotógra- fos nas cidades do interior. Esse é um mecanismo importante que sina- liza para um fato: o custo era tão elevado para o cidadão comum que quem fazia o alistamento eram os próprios partidos políticos. Quem organizava o alistamento inteiro eram os partidos, os candidatos, ob- viamente, as próprias máquinas que organizavam e faziam os eleitores. Os efeitos desse processo, para mim, se observam com dados relativos à participação política. Em 1933, nós não temos um au- mento dos eleitores, aqueles 5% ou pouco mais de alistados sobre a população total que caracterizava a Primeira República continuam em 1933. Aumenta um pouquinho em 1934. A grande mudança é a participação política: quem é alistado agora vota. Oitenta por cento comparece às urnas e vota em 1933; 75%, mais ou menos, em 1934. Ou seja, apesar de não termos um aumento dos eleitores, observa- mos um aumento da participação política. Isso não se deve, no meu entender, ao voto obrigatório, mas à maior capacidade de mobiliza- ção por parte dos partidos políticos. As elites agora competem para ter os votos, para fazer eleitores. Essa lógica da competição se deve a dois mecanismos presentes no próprio Código Eleitoral. Um deles, para mim, é primordial, que é a proporcional. Um sistema eleito- ral proporcional complicado, com um efeito majoritário embutido no cálculo das cadeiras e que foi pensado por Assis Brasil. Houve muitas críticas à sua aplicação. Os próprios TREs na época se con- fundiram na hora da contagem dos votos. Mas, apesar disso, o que observamos é que esse mecanismo do sistema proporcional permite algo até então inédito: o acesso das oposições ao Congresso. Essa é a grande mudança em respeito à Primeira República, do ponto de vista da participação política e do ponto de vista das eleições, do conflito e da competição política. Aqui podemos retomar o debate sobre democracia. Cientista polí- tico geralmente pensa em termos conceituais: “o que é a democracia?”. Uma definição de democracia é justamente aquela em que o governo reconhece a própria derrota e os opositores têm chances reais de ga- nhar (Przeworski, 1997:3-36). Os gráficos a seguir mostram isso cla- ramente para a eleição de 1933 e 1934.7 7 Todos os gráficos foram reproduzidos de Ricci e Silva (2019). D E MO C RAC I A E M F O CO 40 Gráfico 1 Número de partidos políticos competindo (1930-34) Fonte: Reproduzido de Ricci e Silva (2019). O gráfico 1 ilustra o número de partidos políticos competindo na Primeira República e nas duas eleições federais que ocorreram sob vigência do Código de 1932. Observem como em todos os estados houve um aumento abrupto de competidores. Não sabemos quais são as características desses partidos, as relativas especificidades. Existiam várias cores políticas em 1933 e 1934. Em 1933, por exemplo, temos mais de 100 partidos que concorrem às eleições, além dos avulsos.8 No gráfico 2 temos os dados relativos ao percentual de cadeiras obtidas pelos partidos em cada unidade da Federação nas eleições de 1933 e de 1934. Pouquíssimos estados têm partidos que ganham todas as cadeiras. Esse era o padrão da Primeira República, quando a eleição resultava em apenas um ganhador. Em 1933, temos cinco estados onde isso acontece. Nos demais, temos pelo menos dois partidos políticos. É o efeito da proporcional. Isso significa, olhando de outro ângulo, que o partido do interventor, isto é, o governismo, perde. Conseguem a maioria em alguns estados, mas não todas as cadeiras. Em alguns esta- dos maisde dois partidos políticos ocupam as cadeiras. 8 O Código Eleitoral permitia que candidatos sem filiação partidária, denominados de “avulsos”, competissem ao pleito. 25 20 15 10 5 0 1899-1930 1933 1934 estados D istrito Federal rio de Janeiro ceará são paulo pernam buco M inas g erais M aranhão paraná pará am azonas bahia rio g rande do sul espírito santo piauí alagoas paraíba M ato g rosso sergipe santa catarina rio g rande do n orte g oiás estados pa rti D o s e coM p e ti ção po l í ti ca D u ra n te a e ra va rgas (1933/34) 41 Gráfico 2 Porcentagem de cadeiras conquistadas pelos partidos em 1933 e 1934 Fonte: Reproduzido de Ricci e Silva (2019). Gráfico 3 Cadeiras ocupadas pelos partidos dos interventores em 1933 Fonte: Reproduzido de Ricci e Silva (2019). O Gráfico 3 é relativo à eleição de 1933, em que mostro quais são as cadeiras ocupadas pelos partidos dos interventores. Em alguns es- tados, o partido do interventor ganha todas as cadeiras, mas são pou- cos; nos demais ele divide com outro partido — um que não era opo- sição ao governo Vargas, mas se encontrava em oposição ao governo 1o partido 2o partido 3o partido 4o partido po rc en ta ge m d e ca de ira s 0 20 40 60 80 10 0 rJ ce Ma aM es Mt pi pr rn sc se sp rs Mg pe ba ac al go pa pr rJ rn ce sp pr sc rs ba Mg al es go Mt se pa pe pi Ma ac aM pr 1933 1934 100 80 60 40 20 0 pará g oiás paraíba alagoas bahia pernam buco M inas g erais rio g rande do sul sergipe piauí M ato g rosso paraná santa catarina espírito santo am azonas D istrito Federal ceará rio g rande do n orte são paulo M aranhão acre rio de Janeiro estados D E MO C RAC I A E M F O CO 42 estadual, ou seja, ao próprio interventor. Pouquíssimos partidos na época se opunham à Revolução de 1930. O gráfico também mostra que há situações em que o partido do interventor ou concorre e perde, ou nem concorre, porque não consegue se organizar, como é o caso do Rio de Janeiro. O caso mais conhecido talvez seja o do Ceará. A Liga Eleitoral Católica (LEC) derrota o partido do interventor. Concluin- do, justamente nos anos 1930, podemos observar os primórdios de uma eleição competitiva, isto é, um aspecto que alguns associam à de- mocracia e que costumamos identificar apenas no regime de 1945-64. Para além dessas reflexões ainda parciais — no fundo, esse é um projeto de pesquisa em andamento —, como quarto ponto da minha fala, gostaria de concluir nos seguintes termos. É importante pensar o Brasil tendo como objeto de estudo suas instituições e seus atores po- líticos de antes de 1945. Se você conversar com um cientista político, ele só fala de pós-1988 e um pouco de 1945-1964. Falta um investi- mento, uma atenção maior por parte da ciência política com nosso passado. Essa é uma característica, infelizmente, da ciência política em geral. Em outros países também é muito difícil ver um cientista político que volta no tempo. A segunda reflexão é para os historiado- res, é um incentivo para que eles saiam do caso, do detalhe, e pensem nos conceitos, nos problemas, para que pensem as perguntas e as res- pondam. E aqui, na pauta, está uma grande pergunta: qual é, de fato, a mudança em relação à Primeira República quando se trata de pensar o governo representativo? Precisamos de respostas mais abrangentes, que não fiquem presas ao estudo de caso, como um estado. Isso exi- ge um esforço enorme. Por isso é fundamental, para mim, (re)pensar essa época partindo de uma reflexão interdisciplinar e que agregue pesquisadores de várias regiões do Brasil. Estou feliz de estar aqui com vocês justamente por isso. Obrigado. [Aplausos]. Debate Marco Aurélio Vannucchi (M. A. V.): É uma honra moderar esta mesa centrada no “Governo representativo no Brasil: do Império à Era Vargas”. Muito obrigado a todos os palestrantes. Agora abriremos as inscrições para a participação do público. Pergunta 1 (Anônima): Minha pergunta é para a Marly. Queria sa- ber sobre a “política do café com leite”. Sempre fui ensinado na escola que a “política do café com leite” era uma aliança entre as elites de São Paulo e de Minas, envolvendo uma alternância combinada en- tre presidentes desses estados. Você explicou muito bem que existia um conflito de interesse entre as duas. Existe algum fundo de verdade nessa alternância combinada? Se não existe, de onde veio essa ideia? Como ela foi construída de um jeito tão consolidado como a “política do café com leite”? Quem construiu? De onde partiu isso? Obrigado. Pergunta 2 (Anônima): Gostaria de fazer uma pergunta que me foi suscitada pela fala do Paolo, em relação à participação dos tenen- tes na criação do Código de 1932 (e talvez Marly e Miriam possam acrescentar alguma coisa a este respeito). Não entendi bem se a de- manda deles foi relacionada com a proporcionalidade, a representa- ção classista, ou ambas. Trabalhei com arquivos do Juarez Távora, no CPDOC, e encontrei muita informação dele negociando formação de partido para as eleições desse período. Ele mostrou irritação com o caso do Ceará, que perdeu parte dessas cadeiras. Como a agenda tenentista aparece com a Revolução de 1932 ou mesmo antes, profes- sor Paolo? E como a mesma agenda, após essas eleições, perde força nesse projeto maior do Governo Vargas? Queria que os professores comentassem um pouco sobre essa suposta agenda social tenentista, com a participação política e a competição entre partidos. Será que D E MO C RAC I A E M F O CO 44 essa agenda, em vez de fortalecida, foi enfraquecida por conta dessa disputa política eleitoral? Pergunta 3 (Jaqueline Zulini): Também gostaria de fazer uma questão única para os três componentes da mesa, com base nas excelentes expo- sições que surgiram. Apareceram, na fala dos três palestrantes, possíveis agendas de pesquisa. Eu acho que, aproveitando a presença dos nossos alunos, dos jovens estudantes, que podem ver diante de si uma opor- tunidade de navegar pelo próprio CPDOC, para revisitar as origens do governo representativo no Brasil, seria interessante ouvir tanto a profes- sora Miriam quanto a professora Marly e o professor Paolo sobre temas que eles ainda acreditam que sejam importantes de resgatar. O que os jovens estudantes e pesquisadores poderiam retomar ou investir mais para revisitar o Império, a Primeira República e a Era Vargas? Para além disso, gostaria de fazer outra pergunta para a professora Miriam. Professora, parece-me injusta a má fama que a Primeira Re- pública recebe quando se trata de reformas eleitorais. A literatura faz parecer que ocorreram muito mais reformas eleitorais durante a Pri- meira República. Mas não foi no Império que se adotou e implemen- tou muito mais reformas comparativamente à Primeira República? M. A. V.: Também gostaria de aproveitar para fazer uma última per- gunta para a professora Miriam. Achei interessantíssima essa conse- quência citada durante a sua palestra — possivelmente imprevista pelas elites do regime representativo — de que teria ocorrido a dis- seminação dos valores liberais, dos valores do próprio regime repre- sentativo entre as camadas populares. Queria ouvi-la um pouco mais sobre isso. Sobretudo, sobre como conseguimos aferir empiricamente a incorporação desses valores. Miriam Dolhnikoff: Bom, primeiro, eu acho que a pergunta mais di- fícil é sobre as possíveis agendas de pesquisa. Acho que é tanta coisa… O que teve de comum aqui nas três falas é justamente a ideia de que o conhecimento se produz pelo questionamento do que está dado como conhecimento. Então, as agendas de pesquisa devem abrir no- vas formas de compreensão. No caso do Império, falei das reformas eleitorais, mas há poucos estudos sobre a prática das eleições. No Im- pério, a visão é sempre sobre “o clientelismo, a vontade do proprietá- D e bate 45 rio”, e é uma pesquisa difícil, com documentação difícil, então acho que essa é uma agenda importante: analisar as eleições superando
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