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A 9 O EXAME DO ESTADO MENTAL E SUAS TRANSFORMAÇÕES Cláudio Maria da Silva Osório A quem confiar minha tristeza? (Tchekhov, Angústia, 1886) … if we could not see or hear or touch, if we could not experience pain or pleasure, if we lacked conscious desires and intentions, we would not and could not behave as we do. (Zeman, 2001) bordagens contemporâneas na psicopatologia, na semiologia e no exame do estado mental (EEM) preocupam-se com a esterilidade ou a perda da competência nesses campos do conhecimento e propõem uma revitalização (Andreasen,1996, 1998, 2007; Ghaemi, 2007; Huber, 2002; Kendler, 2005). O alerta de Andreasen (1996, p. 590), continua válido: A desumanização da atenção médica é uma tendência em todas as especialidades médicas, incluindo a psiquiatria. O atual sistema de saúde é amplamente insensível ao psiquismo dos pacientes . . . com os médicos sendo encorajados a embasar as decisões quanto aos psicofármacos em diagnósticos feitos depois de uma entrevista “rapidinha”, que busca alguns poucos sintomas supostamente relevantes e ignora que cada paciente é uma pessoa com sua história singular, vivendo em um ambiente único. Quem sabe a passagem dessa neurocientista pelo campo da literatura a tenha ajudado a ser sensível a essas questões? Tchekhov (1999), muito traduzido nos Estados Unidos, escreveu alguns contos cujo fio condutor é a insensibilidade humana.1 Em “Angústia”, o cocheiro Iona Potapov, depois de uma grave perda, deseja que sua tristeza seja ouvida por seus passageiros e colegas de trabalho. Feinstein (1967) assinalou uma dissociação na medicina, identificável também na psicologia clínica: ciência, teoria, pesquisa, laboratório, tecnologia e testes, de um lado; arte, prática, clínica e humanismo de outro. A anamnese, a história, o exame físico e o raciocínio clínico raramente são vistos como procedimentos científicos, mas, muitas vezes, como talentos, intuições, “olho clínico”, vocação, em geral associados a sentimentos e humanismo, sendo alvos de uma depreciação não velada. Esses e outros fatores levam o clínico a não proceder de maneira científica na obtenção da história e na realização do exame do paciente. No entanto, não somos mais os mesmos, profissionais e/ou pacientes, depois dos - avanços da genética e da neurociência, da psicologia cognitiva, das edições do Manual diagnóstico e estatístico de transtornos mentais (DSMs) e dos seus problemas, na oportuna crítica de Bastos (2000) e, também, da internet, com os seus múltiplos recursos. Essas mudanças na ciência e na cultura têm transformado os conceitos e o trabalho dos examinadores e as atitudes dos pacientes. Às vezes trazendo problemas, pela facilidade para os pacientes forjarem sintomas e diagnósticos, com variadas intenções e ganhos; por vezes, os recursos da internet puderam aumentar ou diminuir a confiabilidade dos dados da história e do exame do paciente. Aqui se incluem as comparações das histórias e exames de pacientes com suas postagens em redes sociais (Recupero, 2010). A ânsia pela rapidez e pela objetividade estimulou o desenvolvimento de entrevistas de 30 minutos, com etapas cronometradas, em que quatro minutos são dedicados ao EEM (Nussbaum, 2013). Na busca por trabalhos sobre o Mental Status Exam no PubMed [outubro/2014], em cerca de dois terços deles o instrumento de pesquisa é o Miniexame do Estado Mental (MEEM) (Folstein, Folstein, & McHugh, 1975), e sua modificação, o 3-MSE (Teng & Chui, 1987). Esses e muitos outros testes apontam a importância do exame da linguagem e de outras funções cognitivas na semiologia e respondem às demandas da notável transformação da pirâmide populacional nas últimas duas décadas. Estudantes e profissionais devem - considerar que o MEEM ou outros recursos utilizados em pesquisas são instrumentos de rastreamento e monitoramento da evolução, e não de diagnóstico, sua sensibilidade2 deixa muito a desejar quando usado isoladamente, como indica a revisão da literatura no tema, que aponta as suas limitações, em particular na identificação de prejuízos nas funções cognitivas executivas. De acordo com Spreen, Risser e Edgell (1995, p. 66), funções executivas era um termo recente nos anos 1990, que “. . . vinha sendo usado para separar várias atividades cognitivas mais altas, dentro de um modelo de processamento de informações”. Existem outros modelos e definições. Considerando que gerência, além de gerenciar ou gerir, significa criar, fazer e produzir, um bom termo para designar essas funções executivas (FEs) seria “funções gerenciais ou de gerenciamento”, suas semelhanças com as funções de um chief executive officer. Cardoso (2011), citando Hamdan e Pereira (2009), examina as relações entre funções executivas e esquizofrenia, entendendo as FEs como um sistema gerencial. É importante ressaltar que, na psiquiatria, era – e talvez ainda seja – habitual considerar as alterações das FEs: a) como expressões de lesão das áreas frontais, particularmente pré-frontais, do cérebro, com a sua avaliação sendo feita em separado, fora do EEM (MacKinnon & Yudofsky, 1988); b) na psiquiatria infantil, dentro da avaliação neuropsicológica e cognitiva (Jura & Humphrey, 2009); e c) na psiquiatria geriátrica, na associação da depressão na terceira idade e da disfunção executiva (Alexopoulos & Emmett, 2009). McIntyre, Norton e McIntyre (2009) não incluem a sua avaliação no roteiro de exame do paciente psiquiátrico, em que propõem o MEEM como instrumento de rastreamento e monitoramento do agravamento ou da resolução dos problemas cognitivos. Em síntese, o exame das FEs e de suas disfunções não costuma ser feito no EEM, particularmente no caso de adultos. Uma exceção está na guideline proposta em 1995 pela American Psychiatric Association, que inclui as funções executivas entre os elementos do status cognitivo no exame do estado mental (American Psychiatric Association [APA], 1995). Desconhecendo essa diretriz para o exame das FEs, se e/ou quando estivermos, por exemplo, diante de um homem que “aposta” em ações na bolsa de valores, com os seus previsíveis prejuízos, ou de uma mulher que “coleciona” animais domésticos, gastando muito tempo e dinheiro, ou, ainda, de um profissional com importantes dificuldades no “gerenciamento” de sua vida pessoal, familiar e carreira, a tendência do examinador é, por tradição, tentar encontrar e diagnosticar um ou mais transtornos mentais que expliquem tais dificuldades, sejam eles adições, compulsões, lesão de lobo frontal, demências ou transtornos do humor.3 Sendo a psicologia a ciência que trata dos estados e processos mentais ou o estudo do comportamento humano, e a psicopatologia o estudo das disfunções psicológicas e comportamentais, é comum, no primeiro caso, o acréscimo “da mente normal”, e, no segundo, “o estudo da mente anormal”. Nos cursos e na vida profissional tenta-se diferençar o “normal” do “anormal”, com menos problemas quando as diferenças são grosseiras. No entanto, é preciso mais frequentemente fazer distinções bem mais sutis entre normal e anormal (Fletcher et al., 2012). A tristeza do cocheiro Iona, do conto russo citado anteriormente, é uma tristeza normal, adequada ao luto pela perda do filho ou é uma depressão patológica? Para responder, pode-se usar somente uma semiologia descritiva ou deve-se complementá-la com uma semiologia compreensiva? Em que medida a nomeação científica, com maior ou menor precisão, empobreceria o contato humano no caso dos EEMs feitos para o diagnóstico psicológico ou psiquiátrico? Leitores atentos notaram impropriedades no parágrafo anterior, quando é insinuada uma pretensa equivalência entre normalidade e saúde e anormalidade e patologia. Perceberam também que a avaliação e o julgamento – intensidade e qualidade da tristeza do cocheiro – dependem dos conhecimentos apropriados, mas também dos pressupostos pessoais, filosóficos, científicos e culturais do examinador e do examinando. Caso o profissional tenha sido treinado menos para conhecer e reconhecer sintomas e fenômenos psíquicose mais para se preocupar – e muito – com o - preenchimento ou não de critérios diagnósticos, tendo aderido, fortemente e sem crítica, a propostas do atual DSM-5 (APA, 2014), poderá entender que está, no caso de Iona, diante de uma depressão patológica: não sem surpresa, o cocheiro receberia antidepressivos, em nome da “tolerância zero” com a depressão e seus déficits cognitivos, prejuízos laborais e risco de suicídio. É possível, também, que o cocheiro fosse considerado parcial e temporariamente incapacitado. Entretanto, um examinador pluralista, com razoável formação filosófica existencial e/ou psicodinâmica, poderia, empaticamente, compreender a dor psíquica dessa pessoa, não usaria nenhum código diagnóstico e nem sempre proporia psicofármacos (Ghaemi, 2007; Jaspers, 1987, 1995; McHugh & Slavney, 1982, 1983). Seria possível uma convergência mínima entre as exigências científicas de - nomenclatura e de critérios diagnósticos e o envolvimento humano e empático, indispensável para a avaliação dos sinais e sintomas do examinando, visando o melhor diagnóstico clínico? Jaspers (1985) entendia que sim, quando esclarecia que a frieza da objetividade científica e a empatia no encontro entre duas pessoas “não se devem opor e sim completar uma a outra”, mas alertava que “. . . a observação fria não vê o essencial”, propondo que “. . . ambas, numa ação recíproca, é que podem conduzir ao conhecimento” (Jaspers, 1985, p. 35). Por sinal, na nova edição de Jaspers (1997), os termos da língua inglesa para essas duas atitudes complementares são detachment/distanciamento e sympathy/compaixão, solidariedade. Docherty e Marder (1977) analisaram o problema do relacionamento bimodal: 1) ver o paciente como um órgão ou organismo doente ou como objeto de estudo (relação eu-coisa): foco na doença; e 2) vê-lo como uma pessoa perturbada (relação eu-tu): foco na pessoa. Examinaram também as forças que promovem cada um desses tipos de relacionamentos e as incompatibilidades entre eles, por sua vez promotoras de estresse no estudante e no profissional, na clínica e na pesquisa, estimulando o desejo de simplificar as questões para um conforto intelectual e emocional. Esse conforto tem como consequência a desconsideração com a autonomia, com a subjetividade e com a condição humana do paciente, e, portanto, acarreta impactos antipsicoterapêuticos. Esse é o objetivo deste capítulo: oferecer subsídios e orientações para que o leitor se sinta menos perdido em um terreno de incertezas e inseguranças.4 Esse é um campo - científico em que o movimento dos observadores, dos observados, dos instrumentos de observação (teorias e técnicas) e da própria cultura vem acelerando, com constantes transformações. Tudo se move.5 Por isso, neste capítulo, além das mudanças e de uma desejada (e necessária) revitalização – com a reinserção da conação (vontade, pulsões e motivação) –, foram introduzidas duas novas funções no EEM. A primeira seria realmente nova? Os paradigmas são substancialmente diferentes – psicanalítico e neurobiológico –, mas uma leitura atenta da proposta de Bellak (1958) para o exame das funções do ego na esquizofrenia sugere algumas aproximações entre os atuais conceitos neuropsicológicos de funções executivas e algumas funções do ego: relação com a realidade; teste e senso da realidade; diferenciação figura-fundo; acurácia da percepção; regulação e controle das pulsões e impulsos (que possibilitam inibições e desvios); função sintética; e outros. Outra função acrescentada no novo EEM é a interação social (teoria da mente e empatia). A conação, aqui reinserida, esteve presente em antigos livros de semiologia e psicopatologia, faz parte de livros atuais, mas foi suprimida em alguns bem conhecidos roteiros de EEM. Este capítulo não pretende substituir o estudo de psicopatologia e semiologia nos livros e outras fontes indicados nas referências. Consideramos criticável o estudo desses temas em “tabelinhas” e manuais de estatística e classificação (DSMs e CID). Há mais de 50 anos, os profissionais da área da saúde mental solicitavam o teste Bender-Gestáltico na busca de “sinais de organicidade” ou dano cerebral. Hoje é preciso que se desenhem entrevistas clínicas e EEMs capazes de proporcionar indicações suficientemente claras dos prejuízos cognitivos e, particularmente, das disfunções executivas no mundo real do dia a dia de cada paciente. Existem alguns instrumentos (testes) para avaliação neuropsicológica das FEs, complexas por envolverem múltiplos processos. Em um exemplo de Kristensen (2006), um desempenho pobre no teste de Wisconsin pode decorrer de dificuldades na percepção visual de formas geométricas, e não de um prejuízo executivo. Kristensen (2006, p. 100), e autores por ele citados, acrescentam que a situação de testagem é “. . . altamente estruturada, com indicações claras sobre quando iniciar e manter o comportamento centrado na tarefa, com minimização de interferências ambientais e apresentação de objetivos”. Obviamente, esses não são cenários da vida real dos pacientes em seus contextos de vida familiar, no estudo e no trabalho. Por isso as recomendações de Kristensen (2006), bem como de Lezak e colaboradores (2012) e Royall, Mahurin e Gray (1992), para adaptar ou flexibilizar as entrevistas clínicas de avaliação. De forma realista, mas com licença para um pouco de humor, as avaliações neuropsicológicas de filósofos, psicanalistas, bioquímicos, CEOs, jogadores de futebol ou top models naturalmente não poderão ser as mesmas. Nas conclusões, voltaremos a esse ponto. Este capítulo tenta, também, responder a indagações antigas e recentes: 1) Por que o estudante e depois o profissional negligenciam a abordagem descritiva?; 2) O que leva à “mistura” – sem articulação – dos métodos descritivo-fenomenológico e psicodinâmico?; 3) Por que as confusões conceituais, para não mencionar os erros de tradução e o “embaralhamento” de conceitos presentes em vários livros de texto?; 4) O que induz autores a não proceder de forma elegante e acadêmica, divulgando ideias e conceitos sem buscar as suas fontes originais e deixando de consultar autores acessíveis?; 5) Por que não diferenciar entre o que os instrumentos mostram, o que o examinador julga que o paciente apresenta e aquilo que o paciente realmente tem?; 6) Será que a cartesiana dissociação mente-corpo afetou também o EEM? O EXAME DO ESTADO MENTAL Define-se o EEM como a avaliação acurada e sistemática (descrição, identificação, reconhecimento e nomeação adequada) de sintomas objetivos (sinais diretamente observáveis) e subjetivos (sintomas não observáveis diretamente) dos transtornos mentais, das crises vitais (evolutivas ou acidentais) e condições similares (sem transtorno mental, mas com sintomas presentes) e das condições clínicas de outra natureza (doenças físicas ou somáticas, especialmente neurológicas, efeitos colaterais de medicamentos, etc.). Seus dados são obtidos em entrevistas abertas ou semiestruturadas. O Present Status Examination (PSE) (Royall et al., 1992), Exame do Estado [Mental] Atual, é obtido por meio de entrevista estruturada com 140 itens. É essencial que o estudante ou profissional envolvido nesse trabalho de avaliação saiba que a maior parte dos sintomas psicopatológicos, mesmo os graves (como delírios e alucinações), é subjetiva, e, mais ainda, depende de avaliação subjetiva do próprio entrevistador. É o paciente que “se sente triste”; é o examinador que avalia esse sentimento, afeto ou estado do humor. Essa avaliação é realizada durante e por meio de entrevistas clínicas, sejam de avaliação diagnóstica inicial, sejam de tratamento. Entrevistas clínicas não são procedimentos de 15 minutos de duração, com perguntas fixas a serem respondidas com sim ou não, às vezes até mesmo pelos próprios entrevistados, e realizadas inclusive por pessoas leigas, em treinamentos superficiais e rápidos, para fins de rastreamento de transtornos mentais em pesquisas epidemiológicas, até por telefone. Alguns desses instrumentos de pesquisa,apesar de pretensas validade e confiabilidade, tiveram vida quase tão breve quanto a duração proposta para o procedimento. Embora, no Brasil, a expressão clínica esteja muitas vezes associada aos médicos (no campo dos problemas ditos orgânicos ou somáticos), neste capítulo, seguindo Craig (1991), usa-se essa expressão abrangendo psiquiatras, psicólogos clínicos, enfermeiros da área da saúde mental e psicanalistas. Para Akiskal (1986), o EEM seria análogo ao exame físico praticado na medicina, em que são avaliadas sistematicamente todas as funções do corpo (visão, audição e outros sentidos, aparelhos circulatório, respiratório e outros). De fato, e em parte, ele seria um análogo da revisão de sistemas durante a anamnese médica, pois o exame físico é basicamente objetivo (inspeção, palpação, percussão, ausculta, medida da temperatura e da tensão arterial, etc.). A realização do EEM requer ciência e arte, dependendo de conhecimentos e experiência prática, preferentemente desenvolvida em vários settings (consultórios privados, ambulatórios públicos, hospitais, etc.) e com populações heterogêneas (quanto a idade, condição socioeconômica, religião, gênero, psicopatologia, diagnóstico, etc.), sendo os exames continuamente revisados. Erro habitual consiste no estudante ou profissional da área da saúde contentar-se com um único EEM, realizado nas primeiras entrevistas para obtenção da história clínica, deixando de reavaliá-lo ao longo do tratamento, contrariando o próprio conceito de status ou estado. Outra fonte de erro no EEM é o seu uso como rotina, sem considerar a diversidade de problemas e de pessoas que, analogamente à avaliação neuropsicológica (Lezak et al., 2012), “. . . propõe um desafio interminável para os examinadores que querem atender os propósitos do exame, avaliando pacientes de acordo com suas capacidades e limites”. Destaque-se, por fim, o valor clínico de estar bem atento às flutuações cognitivas no EEM, em horas ou semanas, que podem sugerir um tipo específico de demência. Reduções e simplificações do exame do estado mental Além da já assinalada confusão entre um EEM e o MEEM, é comum, mesmo em hospitais universitários, reduzir o EEM à avaliação da consciência, da orientação e da coerência do curso do pensamento, cujo resultado, nos casos “normais”, é a bem conhecida sigla “LOC” (de lúcido, orientado e coerente). Em 1991, considerei essa sigla muito útil para distinguir pacientes com ou sem delirium e, portanto, com ou sem indicação de Unidade de Cuidados Intensivos, destacando a insuficiência desse exame em deprimidos graves com importante risco de suicídio, até mesmo psicóticos, em delirantes paranoides, em alguns demenciados (não suficientemente graves para perder a coerência do pensamento) e mesmo em esquizofrênicos sem curso do pensamento desagregado. Todos esses pacientes podem estar “LOCs”, apesar de psicóticos, com juízo crítico comprometido e com funções cognitivas (inteligência e memória) prejudicadas no caso de demência. Acrescente-se que “passam neste exame”, tanto em sua forma reduzida – “LOC” – como no EEM completo, os pacientes com transtornos da personalidade, com abuso e dependência de drogas, e mesmo aqueles com perversões ou parafilias graves, como pedofilia e necrofilia, desde que não se obtenham informações objetivas. Todas essas pessoas podem estar lúcidas (acordadas), bem orientadas no tempo e no espaço, falando coerentemente. Além disso, a identificação, o reconhecimento e a nomeação de um transtorno da personalidade requerem um estudo biográfico, na maioria das vezes com informações objetivas (familiares, registros, etc.), dificilmente obtido em entrevistas breves e/ou padronizadas. No ensino, tem sido comum o uso de antigas publicações avulsas, práticas e simplificadas, muitas vezes produzidas por alunos de cursos de graduação ou de pós- graduação, que nem sempre passaram por um processo de supervisão para correção e atualização. Algumas delas, pioneiras, tiveram mérito por terem resultado de um esforço legítimo de organização de dados dispersos (sintomas, definições) disponíveis em bons livros de semiologia e de psicopatologia antigos e clássicos (como Karl Jaspers, Kurt Schneider, Vallejo Nagera, Iracy Doyle e outros). Foi o caso do manuscrito de Abuchaim (1958), no final dos anos 1950, do qual nasceram as bem conhecidas siglas mnemônicas, muito didáticas: ASMOCPLIAC e sua variante, reordenada talvez por alunos de psicologia, “SACOMPLICA”. A primeira delas predominantemente usada nos cursos de Medicina e Psiquiatria da Universidade Federal do Rio Grande do Sul; a segunda de uso frequente em cursos de formação de - psicólogos. As letras da primeira sigla são as iniciais de Atenção, Sensopercepção, - Memória, Orientação, Consciência, Pensamento, Linguagem, Inteligência, Afetividade e Conduta, as nove funções mentais ou do ego examinadas nesse roteiro, em que o juízo crítico era examinado dentro do pensamento, e a avaliação do humor e dos afetos, dentro da afetividade. Em ambos os arranjos mnemônicos transparecia uma preocupação bem maior com a sonoridade, facilitando serem “decoradas”, do que com a hierarquia e a lógica da semiologia e do EEM. Por isso o meu apelo, em 1991, para colocar em primeiro lugar a consciência, incluídas as conotações de conhecimento e de consciência moral e ética e, paralelamente, a afetividade, também no sentido do envolvimento empático proposto por Jaspers.6 Em um primeiro momento, foram reorganizadas as funções em dois subgrupos, em uma sequência lógica: Consciência, Atenção, Sensopercepção, Orientação, Memória e Inteligência, abreviadas na expressão CASOMI. No segundo subgrupo ficavam Afetividade, Pensamento, Conduta e Linguagem (APeCoL). Foi - preservada a sonoridade da sigla, mas sem o sacrifício de uma aparentemente mais bem didática organização lógica e fundamentada na psicopatologia. As justificativas para esse reordenamento foram: 1) a inteligência ficaria mais bem situada junto a outras funções cognitivas (memória e orientação); 2) os distúrbios da consciência costumam ser primários, no sentido de provocar distúrbios da atenção, da sensopercepção, da orientação e da memória, devendo, por isso, a consciência vir em primeiro lugar. Para isso, segui Horvath, Sarvier, Mohs e Davis (1989) e também Kernberg (1995) na sua Entrevista estrutural, 1984, apresentada em curso nesse tema em 1989. Kernberg (1995) desenhou um diagrama (ciclagem dos sintomas de ancoragem7) que permite o diagnóstico estrutural, essencial na identificação das condições psicóticas, borderline, neuróticas e normais. Mais adiante, revisando o esquema,8 o juízo crítico foi destacado do pensamento por seu papel na discriminação de síndromes psicóticas. A afetividade, o pensamento e a conduta geralmente são as áreas dos principais sintomas das psicoses, embora elas naturalmente incluam perturbações das sensações e da percepção (alucinações) e possam, também, alterar outras funções, como a atenção e a orientação. Apesar de diferentes teorias psicológicas a respeito do que é primário na depressão (o humor triste ou os pensamentos depressivos?) e nas esquizofrenias (a perturbação fundamental é no pensamento ou na afetividade?), seria útil, para destacar a importância do exame da afetividade, colocá-la em primeiro lugar no esquema do segundo grupo de funções psíquicas. Por fim, apesar das relações entre pensamento e linguagem, muitas das alterações da linguagem são suficientemente independentes do pensamento, a fim de justificar sua separação: sua colocação em último lugar no esquema, logo após a conduta, serviria também para lembrar que a linguagem pode ser vista como um aspecto da conduta ou comportamento. Revisando bem recentemente o tema da Comunicação e Linguagem, esta passou para o primeiro conjunto, que agora seria: Consciência, Atenção, Sensopercepção, Orientação, Memória, Inteligência e Linguagem. Resolvidos os problemas? Não se respeitamos Vigotsky (2010), para quem fracassaria o método de análise que pretenda decomporpensamento e linguagem, com pensamento e palavra concebidos como dois elementos autônomos, independentes e isolados. Quem sabe, em um bem-humorado assinalamento quanto a algumas formas de reducionismo, Vigotsky (2010) imaginou um pesquisador que, buscando explicar por que a água apaga o fogo, tentaria decompor a água em oxigênio e hidrogênio, mas ficaria surpreso ao perceber que o oxigênio mantém a combustão e que o hidrogênio é inflamável. O pensamento deve, portanto, vir também para junto das outras funções cognitivas. Poderiam, ainda, existir razões didáticas e clínicas para manter a afetividade em primeiro lugar, seguida pelo pensamento? Talvez sim, pois é o exame conjunto dessas duas funções que pode diferenciar quadros clínicos com sintomas psicóticos graves na área do pensamento (ideias delirantes de controle ou influência), que ocorrem tanto em transtornos esquizofrênicos quanto em transtornos afetivos psicóticos, com ideias delirantes incongruentes com o humor. Um caso clínico bastante ilustrativo é o de “Alice Davis”, em Spitzer e colaboradores (1996), conhecido como “mensagens de radar” nos livros de casos clínicos dos DSMs de 1980, 1989 e 1994. Depois de um período de depressão e durante o mês que precedeu sua entrada no hospital, Alice, 24 anos, ficou crescentemente eufórica e irritável, com alucinações visuais e auditivas. Ela acreditava que havia um “buraco” na sua cabeça e, através dele, “mensagens de radar” estavam sendo enviadas para ela. Essas mensagens podiam controlar seu pensamento ou produzir emoções de raiva, tristeza e outras que até então estavam sob o seu controle. Alice também acreditava que os seus pensamentos podiam ser lidos por pessoas próximas a ela, e que pensamentos estranhos, vindos de outras pessoas, eram introduzidos na sua cabeça através do radar. Ela descrevia vozes, que às vezes falavam dela na terceira pessoa (“Vejam o que ela está fazendo!”) e, outras vezes, ordenavam diversas atividades, particularmente sexuais (“Vá ter relações sexuais com o fulano!”). (Spitzer et al., 1996). As alterações do conteúdo do pensamento eram bem graves em Alice (ideias delirantes bizarras e/ou de inserção do pensamento?), mas os sintomas de humor precederam a síndrome psicótica e foram mais duradouros do que esta. O delírio de inserção do pensamento, embora de grande importância diagnóstica, não é patognomônico da esquizofrenia. A advertência do Present Status Examination (PSE) (Kristensen, 2006) para a inserção do pensamento é válida para muitos sintomas: são comuns os “falsos positivos”, dependendo da maneira como o examinador pergunta durante a entrevista, muitos pacientes respondem de forma afirmativa, mesmo quando não entenderam as questões. Se o examinador não conhece bem os sintomas, tendo deles apenas uma ideia vaga, superficial, por ter “estudado psicopatologia pelos manuais de diagnóstico (DSMs)”, usando “tabelinhas diagnósticas” para verificar “se fecha” ou “não fecha” critérios, ele pode deixar de fazer as perguntas suplementares importantes. Pode, por exemplo, confundir a inserção do pensamento com sintomas obsessivos, mesmo tendo razoável domínio do transtorno obsessivo-compulsivo. Na definição do PSE, a característica essencial da inserção do pensamento é a do sujeito experimentar pensamentos que não os seus próprios penetrando na sua mente. Isto é, o sujeito não se diz obrigado a ter pensamentos incomuns (“pensar que o diabo o faz ter maus pensamentos”): os pensamentos em si não são seus. No caso da inserção do pensamento, o paciente pode chegar a dizer, com convicção delirante, que esses pensamentos foram inseridos em sua mente vindos de fora, por radar (caso de Alice Davis), telepatia ou outro meio qualquer, acrescentando, às vezes, uma explicação delirante, um sintoma adicional. Outro caso exemplar como o de Alice, é o da psicóloga e pesquisadora Jamison (1996, p. 94). Em seu conhecido livro Uma mente inquieta, lê-se o relato de sua história pessoal e familiar, e da história da sua doença – um transtorno bipolar com sintomas psicóticos: Em 1974, aos 28 anos de idade, pouco antes, depois de um período no qual se sentia frenética, com pensamentos muito rápidos, Kay viveu uma experiência aterrorizante – via uma centrífuga dentro da sua cabeça e logo depois fora da sua cabeça; aí então a máquina se espatifou em múltiplos pedaços. Pediu socorro para um colega e amigo, que lhe recomendou que consultasse um psiquiatra. Procurou o Dr. Daniel Auerbach, na UCLA, onde a paciente trabalhava. As duas pacientes, apesar da gravidade das alucinações e delírios, são portadoras do transtorno bipolar e não de esquizofrenia. Esse erro diagnóstico afetaria muito o futuro de ambas. Modelos teóricos e suas repercussões no exame do estado mental Apesar da identificação e nomeação dos sinais e sintomas depender de um razoável - domínio do modelo descritivo-fenomenológico (Kraepelin, Schneider e Jaspers), é preciso ter alguma familiaridade com outros modelos teóricos: neurobiológico (Andreasen e Kandel); psicanalíticos (Freud, Hartmann, Erikson, Klein, Winnicott, Kohut e outros); cognitivo-comportamental (behaviorismo, teorias da aprendizagem, psicologia cognitiva); interpessoal (psicobiologia e teorias do apego/separação); culturalistas ou neofreudianos (Sullivan e Horney); sistêmico familiar (cibernética, teoria dos sistemas, teoria da comunicação); existencial-humanista (Maslow e Rogers); e, por fim, o modelo social (Hollingshead e Redlich nos Estados Unidos; Thomas Main e Maxwell Jones na Inglaterra; Ulysses Pernambucano, no Brasil), muito diferente das “antipsiquiatrias” (Laing, Cooper, Szasz e Basaglia). Recomenda-se alguma familiaridade com a filosofia existencialista, mais adiante bem sumarizada, por sua importância na abordagem proposta por Jaspers (1985, 1997). Alguns desses conhecimentos filosóficos permitirão ao entrevistador desenvolver habilidades na semiologia compreensiva, muitas vezes indispensáveis para maior clareza na semiologia descritiva. O entrevistador deve estar bem atento, todavia, ao efeito que tem sua própria orientação teórica na obtenção dos dados semiológicos e da história do examinado, pelo risco de algumas formas de reducionismo. Pode-se subscrever Jaspers (1985, p. 17) 100 anos depois: Não conhecemos nenhum conceito fundamental que possa conceber o homem exaustivamente.9 Nenhuma teoria em que se possa aprender . . . toda a sua realidade. Por isso a atitude científica fundamental é estar aberto para todas as possibilidades de investigação empírica. E resistir a toda a tentativa de reduzir o homem . . . a um denominador comum. Jaspers (1985, p. 41) reforça a necessidade do pluralismo metodológico na psicopatologia, bem diferente dos “ecletismos de conveniência”, quando diz: Ao contrário de forçar os fatos investigados em uma camisa de força de uma teoria sistematizada, tento discernir entre os diversos métodos de pesquisa, pontos de vista e abordagens, de modo a trazê-los para um foco mais claro e demonstrar a diversidade dos estudos psicopatológicos. Concordo com Jaspers (1985, p. 30): os preconceitos teóricos sempre trazem prejuízos para o olhar e a compreensão dos fatos. “Ver-se-ão sempre os dados estabelecidos dentro do esquema da teoria . . . O que depõe contra ela é transformado ou encoberto”. Lazare (1989) ilustrou muito didaticamente os vieses dos modelos teóricos ao construir quatro vinhetas de Mrs. J, uma viúva de 53 anos com sintomas de depressão: diferentes modelos resultaram em diferentes diagnósticos e, consequentemente, diferentes propostas terapêuticas. Se as iniciais da “paciente” fossem diferentes, pensaríamos em quatro pessoas diferentes.10 Drob (1989) ilustrou o mesmo problema, mas com um caso real, de uma paciente deprimida que passou por diversos profissionais e recebeu propostas terapêuticas bem diferentes.
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