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RELIGIÃO, FÉ E MODERNIDADE Professor Dr. Rafael Moreira Dardaque Mucinhato GUIA DA DISCIPLINA 1 Religião. Fé e Modernidade Universidade Santa Cecília - Educação a Distância 1. Religiões e dinâmica demográfica no mundo Objetivo: Há inúmeras transformações em curso no mundo contemporâneo. Processos migratórios, aumento da urbanização, crescimento populacional em alguns países enquanto outros decrescem, etc. Um desses processos está ligado às transformações no perfil religioso da população mundial, que será o enfoque desta primeira aula da disciplina. 1. Introdução Durante algum tempo, sob influência do Iluminismo, acreditou-se que a religião perderia sua relevância social (Berger, 1999). Associada à modernidade, a mentalidade secular – que nega a capacidade explicativa das religiões - se expandiria pelos confins do mundo e relegaria à religião, quando muito, a tímida existência no calabouço da intimidade dos sujeitos. Grosso modo, aqueles que se sustentavam - e ainda sustentam - a hipótese da secularização acreditavam que a religião perderia seu potencial de interpretação do mundo. Contudo, a modernização atingiu grande parte do globo com seus meios de comunicação, sua ciência, meios de transportes cada vez mais velozes e com governos do tipo burocrático-racional sem que isso levasse ao crepúsculo do sagrado e das religiões como um todo (Silveira, 2011). O sociólogo Peter Berger foi um dos que renunciaram à hipótese da secularização, tão enfatizada por ele na década de 1960. O autor entende que, se por um lado, a modernidade significou de fato o abandono de determinados quadros religiosos, por outro, ela fez surgir inúmeras outras expressões religiosas de resistência, contra-seculares, que buscaram/buscam preencher algumas das lacunas oriundas daquilo que nogeral se chama de “desencantamento” do mundo. O sociólogo chama esse novo momento de “dessecularização do mundo” (Berger, 2009) e reivindica o surgimento de um novo paradigma para os estudos da religião, que leve em conta a existência de dois pluralismos: a coexistências de diferentes religiões, e a coexistências de discursos religiosos e seculares (Berger, 2017). Nesse sentido, o estudo dos fenômenos religiosos é imprescindível para o entendimento do mundo contemporâneo (Silveira, 2011), haja visto a influência que elas ainda exercem sobre a humanidade. Além disso, considerando que as sociedades estão em permanente 2 Religião. Fé e Modernidade Universidade Santa Cecília - Educação a Distância transformação, deve-se considerar também o fato de que o perfil religioso da população mundial como um todo também está em constante transformação, com algumas religiões ganhando terreno enquanto outras encolhem. É sobre essa dinâmica que trataremos nesta aula introdutória. 2. A origem das religiões Do latim religio, que significa reatar, religar, (Campbell, 2008), a religião é um conjunto de narrativas e ou saberes que postulam uma realidade unificada e ordenada a partir de forças superiores (seja um ser pessoal ou não) cuja natureza é absolutamente diversa da humana. Além de explorarem essa natureza, as narrativas religiosas estabelecem caminhos de comunicação ou formas de interação entre o plano superior/eterno, no qual habitam deuses, espíritos e outras tantas forças sobre-humanas, com o nosso mundo, o mundo da contingência, da finitude e da precariedade (Berger, 2009). A origem das religiões está associada à chamada Era Axial. A proposição de uma era axial, durando aproximadamente entre 800 e 200 a.C. e ocorrendo nas principais civilizações do mundo antigo (China, Índia e Oriente Próximo), independentes umas das outras, foi primeiramente introduzida por Alfred Weber e Karl Jaspers (Schuluchter, 2017). Axial diz respeito a eixo. Foi, portanto, quando o homem começou “a buscar o seu eixo” ou, segundo Jaspers, quando passamos a prestar atenção em nós mesmos. Segundo a escritora inglesa Karen Armstrong, uma das mais respeitadas estudiosas sobre as religiões, nessa época as pessoas discutiam sobre espiritualidade com o mesmo entusiasmo com que hoje se discute futebol1. 1ht tps:/ /super.abr i l .com.br /h is tor ia/o-pr incipe-hindu-s idarta-gautama-o- i luminado/ 3 Religião. Fé e Modernidade Universidade Santa Cecília - Educação a Distância Representação de Sidarta Gautama Fontes: https://www1.folha.uol.com.br/webstories/cultura/2021/09/buda-a-historia-de-sidarta-gautama/ Os historiadores ainda não sabem o que causou esse despertar para a religião e para a filosofia, nem por que ele se concentrou na China, no Mediterrâneo Oriental, na Índia e no Irã. Acredita-se que com as sociedades agrícolas, mais estáveis, o homem ganhou tempo extra para dedicar-se à contemplação. A título de exemplo, foi nesse período em que a Índia vivia em ebulição cultural que nasceu Sidarta Gautama, mais conhecido como o Buda, fundador histórico do Budismo (Paula, 2002). Porém, o cenário religioso global nos dias de hoje é muito diferente daquele da Era Axial. Com o passar dos séculos, novas religiões foram surgindo, associadas a diferentes culturas, e que passaram a se espalhar pelo mundo conforme as correntes migratórias passaram a se expandir e as trocas comerciais entre os diferentes continentes passaram a se tornar mais densas e frequentes. Com o processo de globalização, não existem mais 4 Religião. Fé e Modernidade Universidade Santa Cecília - Educação a Distância limites geográficos para as grandes religiões mundiais. Passemos agora a uma análise do atual cenário demográfico das religiões e como elas estão em transformação. 3. Transformações contemporâneas do perfil religioso no mundo Globalmente, mais de 8 a cada grupo de 10 pessoas se identifica com alguma filiação religiosa, enquanto cerca de 1,2 bilhão de pessoas (ou 16 % da população global) não se identifica com nenhuma religião. Os cristãos (incluindo católicos romanos, ortodoxos e protestantes) são o grupo religioso mais numeroso do mundo, com 2,3 bilhões de pessoas (PewResearch Center, 2017). Eles são o grupo mais equilibradamente distribuído por todos os continentes, e as Américas, assim como a Europa e a África subsahariana, são o lar da maioria dos cristãos do planeta. Porém, cabe destacar que todo o continente americano atravessa um processo de pluralidade religiosa cada vez maior. Os cristãos também possuem a maior quantidade de países no qual são o grupo religioso majoritário, como se pode ver no mapa abaixo. Religião majoritária por país Fontes: https://www.pewresearch.org/wp-content/uploads/sites/7/2012/12/20_religionCountryMap.png A religião islâmica (incluindo sunitas e xitas) é atualmente a segunda maior religião do mundo, sendo a religião adotada por cerca de 1,8 bilhão de pessoas. A maioria dos seus fiéis está localizada no continente africano e no continente asiático. Contrariamente ao que muitos imaginariam os mais populosos países muçulmanos do mundo não se encontram 5 Religião. Fé e Modernidade Universidade Santa Cecília - Educação a Distância no Oriente Médio, mas sim na Ásia. O maior país muçulmano do mundo é a Indonésia, com uma população total de mais de 260 milhões de habitantes, seguido por outros três países asiáticos: Paquistão, Índia e Bangladesh. Pelo menos nos dias atuais: em 2050, calcula-se que o país com a maior comunidade islâmica do mundo será a Índia, que hoje tem como maior grupo religioso o hindu (PewResearch Center, 2017). Porém o islã vai além desses continentes. A fé islâmica está em expansão em outros continentes, como a América do Norte e a Europa e é a religião que mais cresce no planeta. Segundo alguns estudos de projeção demográfica, a população de muçulmanos crescerá 73% entre 2010 e 2050, em comparação com um aumento de 35% dos cristãos, e 37% da população mundial. Sendoassim, se ambas as religiões mantiverem o atual índice de evolução, os seguidores do islã serão mais numerosos na década de 2070 (PewResearch Center, 2017). Fonte: https://network.grupoabril.com.br/wp-content/uploads/sites/4/2018/01/pag23.png Por sua vez, o hinduísmo, com toda sua pluralidade de deuses, deusas, e vertentes internas, representam o terceiro maior grupo religioso do mundo contemporâneo. São atualmente cerca de 1,1 bilhão de hindus (15,1% da população mundial), altamente concentrados na região da Ásia – Pacífico (PewResearch Center, 2017). 97% dos hindus vivem nos únicos três países em que são maioria: Nepal, Índia e Ilhas Maurício. Hinduísmo é uma expressão originária da palavra hindu, derivada de sindhu, um termo comum para dar nome ao rio Indo, região em que a civilização do Vale do Indo se desenvolveu, até se tornar o Estado moderno da Índia. Seus cidadãos foram chamados de hindoo pela primeira vez no século XVIII e, ainda que o hinduísmo seja um título dado pelos ocidentais, observe que se trata de uma palavra coerente para expressar a cultura indiana. 6 Religião. Fé e Modernidade Universidade Santa Cecília - Educação a Distância O hinduísmo cresceu e se desenvolveu no decorrer dos últimos 4 mil anos, disseminado em toda a Índia e em alguns outros lugares do mundo por meio de uma grande variedade de seitas e há literalmente milhões de deuses e deusas hindus. O budismo é uma religião politeísta e extremamente plural que se orienta pelos “vedas”. A palavra veda significa “sabedoria” na antiga língua indiana do sânscrito, e ela compõe o título dos quatro livros de versos e hinos sagrados do hinduísmo, que são os escritos mais antigos da espiritualidade indiana (Ruppell Junior, 2020) compreendidos como “os livros do conhecimento”: Rig- Veda,Yajur-Veda, Sama-Veda e Atharva-Veda. No entanto, sempre que citamos essa palavra e título – vedas – não estamos nos referindo somente aos livros de versos, pois os assim chamados “livros dos vedas” são compostos igualmente pelos comentários e reflexões relacionados a cada um dos livros de hinos, que são os bramanas, os aranyakas, e os upanishads (idem ibidem). Nesse sentido, cada um dos quatro vedas é uma coleção de livros distinta, e tem os seus próprios livros e versos (samhitas), seus próprios manuais (brâmanas), além de seus particulares aranyakas e upanishads, que são os textos de reflexão. Fonte: Ruppel Junior, 2020. Brahma, deus hindu da criação. Fontes: https://segredosdomundo.r7.com/wp-content/uploads/2020/07/deus-brahma-a-historia-do-deus- hindu-responsavel-pela-criacao-1.jpg 7 Religião. Fé e Modernidade Universidade Santa Cecília - Educação a Distância Por fim, cabe destacar os budistas, que são o quarto maior grupo religioso do mundo contemporâneo. São 500 milhões de seguidores de alguma vertente budista mundo afora, o que representa cerca de 6,9% da população global. Assim como os hindus, os budistas estão altamente concentrados nas regiões da Ásia e do Pacífico, onde estão 99% dos seus seguidores, com a especificidade de viverem majoritariamente em países onde eles são uma minoria religiosa. Apenas 3 em cada 10 vivem em um dos sete países onde os budistas são a maioria religiosa: Butão, Myanmar, Camboja, Laos, Mongólia, Sri Lanka e Tailândia. Mas curiosamente o maior templo budista do mundo não esta localizado em nenhum desses países, mas sim na Indonésia. Templo Borobudur, o maior templo budista do mundo, localizado na Ilha de Java, na Indonésia Fontes: https://st3.depositphotos.com/16392590/33272/i/450/depositphotos_332728206-stock-photo-world- biggest-buddhist-temple-aerial.jpg 8 Religião. Fé e Modernidade Universidade Santa Cecília - Educação a Distância As religiões surgiram para a humanidade durante o período chamado de Era Axial. Desde então elas se transformaram e se espalharam pelo mundo, levando a um cenário de profunda pluralidade no mundo moderno, no qual convivem lado a lado, muitas vezes dentro das mesmas fronteiras de um país, múltiplas práticas religiosas e um contingente significativo de pessoas sem qualquer filiação religiosa. Almeida, M.R.H.2005. Religião e modernidade: algumas conclusões acerca do processo de secularização no ocidente. Cadernos de Campo: Revista de Ciências Sociais, n. 11; Berger, P. 1999. (org.) The desecularization of the world: resurgment religion and world politics. Washington D.C.: Ethics and Public Policy Center; GrandRapids, Michigan: Willian B. Eerdmans Publishing Company; ___________2009.O dossel do sagrado. Trad. José Carlos Barcellos. São Paulo: Paulus, 2009; ___________2017. Os múltiplos altares da modernidade. Petrópolis: Editora Vozes; Campbell, J. 2008. As máscaras de Deus: mitologia ocidental. São Paulo: Palas Athena; Paula, C. de 2002. O príncipe hindu Sidarta Gautama, o iluminado. Revista Superinteressante; Pew Research Center, 2017.“The Changing Global Religious Landscape”.Disponível em: https://www.pewresearch.org/religion/wp- content/uploads/sites/7/2017/04/FULL-REPORT-WITH-APPENDIXES-A-AND- B-APRIL-3.pdf ; Ruppel Junior, I. S. 2020. Dos vedas ao hinduísmo. Curitiba: Editora Intersaberes; Silveira, J. P.P. 2011. Narrativas religiosas e a modernidade tardia: entre a adesão e a rejeição do mundo. MNEME – REVISTA DE HUMANIDADES, 11(29), 2011 – JAN / JULHO. Disponível em http://www.periodicos.ufrn.br/ojs/index.php/mneme; Schluchter, W. 2017. A modernidade: uma nova era axial? Política & Sociedade; Florianópolis Vol. 16, Ed. 36,(May-Aug 2017): 20-43. https://www.pewresearch.org/religion/wp-content/uploads/sites/7/2017/04/FULL-REPORT-WITH-APPENDIXES-A-AND-B-APRIL-3.pdf https://www.pewresearch.org/religion/wp-content/uploads/sites/7/2017/04/FULL-REPORT-WITH-APPENDIXES-A-AND-B-APRIL-3.pdf https://www.pewresearch.org/religion/wp-content/uploads/sites/7/2017/04/FULL-REPORT-WITH-APPENDIXES-A-AND-B-APRIL-3.pdf http://www.periodicos.ufrn.br/ojs/index.php/mneme 9 Religião. Fé e Modernidade Universidade Santa Cecília - Educação a Distância 2. Religiões e dinâmica demográfica no Brasil Objetivo: Apresentar aos estudantes os processos de transformação que estão em curso atualmente no perfil religioso da população brasileira, com destaque para a queda na proporção de católicos e o crescimento dos evangélicos, sobretudo os neopentecostais, o que mantem o país como sendo de maioria cristã desde o período da colonização do seu território. 1. Introdução Como vimos na aula passada, o perfil religioso da população global está em permanente transformação. Enquanto os cristãos seguem sendo o maior grupo religioso do mundo, em alguns países há uma queda na proporção de católicos dentro deste grupo. Já em outros países, a quantidade de seguidores da religião islâmica está em crescimento, assim como de outras religiões, tal como o budismo, o que tem levado a mudanças no perfil religioso de algumas nações. Mas como se encaixa o Brasil nessas transformações? O Brasil está no topo do ranking de países onde mais se acredita em Deus2, num ranking de 26 países elaborado pelo Ipsos, com base em uma plataforma online de monitoramento que coleta informações sobre o comportamento destas populações. O Brasil aparece empatado com África do Sul, que teve os mesmos 89%, e Colômbia, com 86% - um empate técnico dada a margem de erro de 3,5 pontos percentuais da pesquisa. Expressões como "Vai com Deus.", "Graças a Deus!", "Deus me livre.", e "Só Deus sabe…" talvez sejam algumas das mais ouvidas em nosso cotidiano, num país onde fé, espiritualidade e cultura estão intimamente relacionadas, das altas esferas de poder ao cotidiano do cidadão comum. 2https://www.bbc.com/portuguese/art icles/c29r21r69j8o 10 Religião. Fé e Modernidade Universidade Santa Cecília- Educação a Distância Fontes: https://www.bbc.com/portuguese/articles/c29r21r69j8o Porém, esses dados, se não forem analisados de maneira mais pormenorizada, escondem profundas transformações que estão em curso no perfil religioso da população brasileira, com implicações inclusive na nossa esfera política (Mucinhato, 2014). Transformações estas que iremos analisar nas próximas seções. 2. Crescem os evangélicos, diminuem os católicos Tal como os demais países do Ocidente, o Brasil é uma nação com histórica predominância cristã, possuindo – em consonância com o restante da América Latina – sua maioria populacional católica. No primeiro recenseamento nacional em que o quesito religião foi considerado, em 1872, praticamente toda a população (99,72%) assim se identificou, 11 Religião. Fé e Modernidade Universidade Santa Cecília - Educação a Distância apontando algo que perduraria por muito tempo: a conjugação entre a identidade católica e a brasileira (Souza, 2019). A religião voltaria a fazer parte do censo demográfico em 1940, já sob a condução do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), criado na década anterior. Naquele primeiro levantamento da série histórica, passadas sete décadas desde o anterior, o catolicismo prosseguia reinando quase que absoluto, com 95,2% da população nacional, quase sem haver conversão ao protestantismo, então com crescimento vegetativo, cifra total de 2,6% e grande predominância de sua vertente histórica (ou a 1ª “onda do protestantismo”), abarcando: luteranos, anglicanos, presbiterianos, batistas e metodistas. Ainda era modesto o avanço das duas igrejas pentecostais que haviam sido aqui implantadas na primeira década do século: Congregação Cristã do Brasil (1910) e Assembleia de Deus (1911). O Brasil atravessou três ondas de crescimento do pentecostalismo em sua história. Na “primeira onda”, que se deu nas quatro primeiras décadas do século XX, temos o chamado “pentecostalismo clássico” ou “histórico”; a “segunda onda” ocorreu nas décadas de 1940 a 1980; a “terceira onda” ocorreu a partir dos anos 1980 com a predominância do que se denominou “neopentecostalismo”. Na Primeira Onda (décadas de 1910 a 1950), as duas principais igrejas pentecostais no Brasil foram Congregação Cristã no Brasil (CCB), fundada em 1910, e Assembleias de Deus (ADs), fundadas em 1911. Ambas têm similaridades, pois foram fundadas por migrantes europeus pobres que conheceram a doutrina pentecostal nos EUA. Contudo, ironicamente, são visceralmente distintas. São idênticas na pentecostalidade (ainda hoje), mas absolutamente diferentes modelos dos pentecostalismos (muito mais hoje). Durante a Segunda Onda, considerada como os “Pentecostalismos de transição” (décadas de 1950-1980), o Brasil se urbanizou, industrializou e iniciou a expansão dos meios de comunicação. As três igrejas que se destacaram foram marcadas pela presença na mídia, como a Igreja Brasil para Cristo (1955), Igreja Pentecostal Deus é Amor (1962), ambas brasileiras, e a Igreja do Evangelho Quadrangular (1951), vinda dos EUA. Não é possível delimitar, nesse período, o número de igrejas, suas características, se a heterogeneidade dos pentecostalismos se acentuou ou se houve mudanças até na pentecostalidade. Por fim, na Terceira onda conhecida como os Neopentecostalismos (década de 1980 em diante) o prefixo neo não dá conta da complexidade que representa 12 Religião. Fé e Modernidade Universidade Santa Cecília - Educação a Distância estas formas de pentecostalismo pois muito do que apareceu não era novo, mas antigas práticas remodeladas. Se nas décadas anteriores foi difícil delimitar, no Brasil urbano e pós-ditadura militar, é impossível saber quantos pentecostalismos ou quantas igrejas pentecostais existem. No entanto, em função da visibilidade midiática e presença quantitativa, indicamos as seguintes representantes do neopentecostalismo: Igreja Nova Vida (1960), Igreja Universal do Reino de Deus (1977), Igreja Internacional da Graça de Deus (1980), Igreja Apostólica Renascer em Cristo (1986) e Comunidade Evangélica Sara a Nossa Terra (1992). Além dessas foram criadas centenas ou milhares de outras igrejas, mas muitas com vida curta de duração. Fonte: https://religiaoepoder.org.br/artigo/pentecostalismos-no- brasil/#:~:text=Na%20%E2%80%9Cprimeira%20onda%E2%80%9D%2C%20qu e,que%20se%20denominou%20%E2%80%9Cneopentecostalismo%E2%80%9 D. Entretanto, em décadas mais recentes, o crescimento das igrejas evangélicas e seus seguidores, sobretudo aquelas neopentecostais, se acelerou. O desenvolvimento da vertente neopentecostal, de fato, teve um grande impacto não só no meio evangélico, mas em todo o campo religioso brasileiro e com desdobramento em outros países, dado o forte ativismo proselitista de suas denominações, contribuindo maciçamente para que a proporção nacional de evangélicos em 2010 chegasse a 22,2% (Souza, 2019). Resta agora aguardarmos pelos resultados do Censo mais recente para verificarmos se essa tendência se manteve ou mesmo se ela se acelerou. 13 Religião. Fé e Modernidade Universidade Santa Cecília - Educação a Distância Fontes: https://conteudo.imguol.com.br/2012/06/28/distribuicao-dos-grupos-religiosos-no-brasil-censo-2010- 1340930164627_600x378.jpg e https://www.researchgate.net/publication/323330139/figure/fig1/AS:596678482616320@1519270644193/Figura-1- Distribuicao-das-religioes-no-Brasil-numeros-absolutos-Fonte-IBGE-Instituto.png https://conteudo.imguol.com.br/2012/06/28/distribuicao-dos-grupos-religiosos-no-brasil-censo-2010-1340930164627_600x378.jpg https://conteudo.imguol.com.br/2012/06/28/distribuicao-dos-grupos-religiosos-no-brasil-censo-2010-1340930164627_600x378.jpg https://www.researchgate.net/publication/323330139/figure/fig1/AS:596678482616320@1519270644193/Figura-1-Distribuicao-das-religioes-no-Brasil-numeros-absolutos-Fonte-IBGE-Instituto.png https://www.researchgate.net/publication/323330139/figure/fig1/AS:596678482616320@1519270644193/Figura-1-Distribuicao-das-religioes-no-Brasil-numeros-absolutos-Fonte-IBGE-Instituto.png 14 Religião. Fé e Modernidade Universidade Santa Cecília - Educação a Distância A expansão evangélica – acelerada, como visto, peloneopentecostalismo – impactou não apenas o catolicismo, mas também as religiões afro-brasileiras, fortemente combatidas por tais igrejas, principalmente a IURD. Isso fez com que a umbanda, nascida nos morros cariocas no início do século XX, quase desaparecesse desse cenário ao final do centenário, um tema que será analisado de maneira mais pormenorizada nas próximas aulas. Enquanto algumas igrejas católicas têm padres rezando missas para cada vez menos fiéis... Fontes: https://zh.rbsdirect.com.br/imagesrc/19146402.jpg?w=580 ... algumas igrejas evangélicas estão cada vez mais cheias Fontes: https://saodesiderio.ba.gov.br/wp-content/uploads/2018/08/3.jpg https://saodesiderio.ba.gov.br/wp-content/uploads/2018/08/3.jpg 15 Religião. Fé e Modernidade Universidade Santa Cecília - Educação a Distância 3. Aumenta a pluralidade religiosa O fenômeno do crescimento das igrejas neopentecostais dentro do segmento evangélico está relacionado a outro processo mais amplo que está em curso: o crescimento da pluralidade religiosa no Brasil, principalmente dentro do campo cristão. Acompanhando as mudanças globais, a partir da década de 1970, o campo religioso do Brasil começou a se diversificar (De Assis, 2023) e a oferta de novas igrejas e religiões é cada vez maior. Em meados do século passado o panorama religioso brasileiro começou a ser caracterizado por uma pluralidade muito notadamente cristã e um mercado competitivo entre igrejas, algo que veio a se consolidar na última década mediante a explosão neopentecostal (Souza, 2019), descrita na seção anterior. Essa pluralidade, porém,vai além do campo cristão. Nota-se, por exemplo, um crescimento expressivo do segmento espírita, que passou de 1,3%para 2% da população nacional. Seus adeptos têm perfil predominante de classe média, bastante letrada e residente nas grandes e médias cidades, sobretudo do Sul e do Sudeste. Reivindicando identidade tanto religiosa quanto filosófica e científica, o espiritismo padece de um questionamento de parcela de seus seguidores que não o reconhecem como religião, o que de algum modo puxa para baixo sua proporção demográfica (Souza, 2019). A emergência das religiões afro-brasileiras (que são aquelas que têm origem nas tradições dos negros africanos trazidos para o Brasil como escravos) como uma opção cultural, diante do fortalecimento da luta antirracista no país, também é um fenômeno em curso. A luta contra o racismo em nosso país, atrelado ao crescimento das pessoas que se auto identificam enquanto “pretas ou pardas” (caracterizações que somadas compõem o grupo dos “negros” segundo o critério do IBGE)3, têm levado cada vez mais jovens a conhecerem as religiões de matriz afro-brasileira, no caso, o candomblé e a umbanda. Além disso, nota- se também outro fenômeno, em menor dimensão e que ainda carece de mais estudos: o crescimento da religião islâmica na periferia de grandes centros urbanos4. 3ht tps:/ /oglobo.g lobo.com/bras i l /not ic ia/2022/07/ ibge -populacao-autodeclarada- preta-cresce-324percent-no-bras i l -em-10-anos.ghtml 4https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2022/01/isla -ganha-adeptos- nas-periferias-de-sp-sem-ligacao-com-a-comunidade-arabe.shtml 16 Religião. Fé e Modernidade Universidade Santa Cecília - Educação a Distância Fonte: https://f.i.uol.com.br/fotografia/2021/11/25/163788047161a0129703912_1637880471_3x2_lg.jpg 4. Crescem os sem religião O Brasil acompanha, mesmo que timidamente, uma tendência global de aumento do número de pessoas que não tem religião. No Censo de 2010 (IBGE, 2012), os sem religião eram 8% da população brasileira, ou mais de 15 milhões de pessoas. Esse percentual vem crescendo década após década: os sem religião eram 0,5% da população brasileira em 1960, 1,6% em 1980, 4,8% em 1991 e 7,3% em 2000. Porém, é preciso ter clareza que apenas uma minoria dos "sem religião" no Brasil são ateus ou agnósticos. Os ateus são pessoas que não acreditam na existência de Deus, já os agnósticos avaliam que não é possível afirmar com certeza se Deus existe ou não. No Censo de 2010, por exemplo, dos 15,3 milhões de brasileiros que se diziam sem religião, apenas 615 mil (4% dos sem religião) se consideravam ateus e 124 mil se afirmavam agnósticos (0,8%). 17 Religião. Fé e Modernidade Universidade Santa Cecília - Educação a Distância Fontes: https://www.bbc.com/portuguese/brasil-61329257 O crescimento dos brasileiros que se dizem "sem religião" é ainda mais marcante particularmente entre os jovens. Em São Paulo, os jovens de 16 a 24 anos que se dizem sem religião chegam a 30% dos entrevistados, superando evangélicos (27%), católicos (24%) e outras religiões (19%).No Rio, os sem religião nessa faixa etária chegam a 34%, também acima de evangélicos (32%), católicos (17%) e demais religiões (17%)5. Para alguns pesquisadores, a explicação para esse fenômeno está intimamente ligada ao que vimos na seção anterior: o crescimento da pluralidade religiosa em território brasileiro. Segundo Regina Novaes, pesquisadora do ISER (Instituto Superior de Estudos da Religião), a fase dos 16 aos 24 anos, onde os "sem religião" são mais presentes, se dá pelo fato de ser uma fase de experimentação. Segundo ela “há uma trajetória de busca e experimentação que foi colocada para as novas gerações que não era colocada para as antigas". Ela observa que, atualmente, muitos jovens crescem em famílias plurirreligiosas, por exemplo, com avó mãe de santo, pai católico não praticante e mãe evangélica. Esses jovens não sentem a obrigação de seguir uma religião de família e tendem a buscar uma religiosidade própria. Essa fase de experimentação pode seguir dois caminhos: uma busca que resulta mais tarde na escolha de uma religião; ou a construção de uma síntese pessoal, em que a pessoa se 5ht tps: / /www.bbc.com/por tuguese/bras i l -61329257 18 Religião. Fé e Modernidade Universidade Santa Cecília - Educação a Distância diz "sem religião" por não pertencer a nenhuma igreja, mas combina diversos elementos de fé6. O Brasil chegou ao último quartel do século XX com um mercado religioso já consolidado em face de grande crescimento evangélico, impulsionado pelo neopentecostalismo. Dada a grande predominância das instituições cristãs, ainda mais se consideradas as espíritas também neste conjunto, verifica-se que a tão propalada diversidade religiosa se restringe, em boa medida, ao pluralismo cristão, mas isso sem descartar outros fenômenos religiosos que estão em curso em nosso país, como o crescimento dos sem-religião. De Assis, T.S. 2023. A religiosidade hindu no Brasil como movimento e como experiência. Disponível em: http://xiram.com.uy/ponencias/GT- 80/Tha%C3%ADs%20Silva%20de%20Assis_%20A%20religiosidade%20hindu% 20no%20Brasil%20como%20movimento%20e%20como%20experi%C3%AAnc ia.pdf; Instituto Brasileiro De Geografia E Estatística (IBGE). Censo Brasileiro de 2010. Rio de Janeiro: IBGE, 2012. Instituto Brasileiro De Geografia E Estatística (IBGE); MARIANO, R. 1999. Neopentecostais: sociologia do novo pentecostalismo no Brasil. 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Fé e Modernidade Universidade Santa Cecília - Educação a Distância _____________2018. “O enfrentamento da intolerância religiosa por organizações nacionais ecumênicas”. Trabalho apresentando no 42º Encontro Anual da Anpocs, Caxambu; _____________2019. Pluralidade cristã e algumas questões do cenário religioso brasileiro. Revista USP • São Paulo • n. 120 • p. 13-22 • janeiro/fevereiro/março; 20 Religião. Fé e Modernidade Universidade Santa Cecília - Educação a Distância 3. Sincretismo religioso no Brasil Objetivo: Apresentar aos estudantes a formação étnica da sociedade brasileira, e suas matrizes que levaram às manifestações culturais existentes em nosso país ao longo de sua história, e como isso se reflete no sincretismo religioso no Brasil. 1. Introdução Assimcomo apontou um dos maiores intelectuais brasileiros da história, o antropólogo Darcy Ribeiro: “O Brasil e os brasileiros surgiram da confluência, do entrechoque e do caldeamento do invasor português com índios (sic) silvícolas e campineiros e com negros africanos, uns e outros aliciados como escravos. Nessa confluência, que se dá sob a regência dos portugueses, matrizes raciais díspares, tradições culturais distintas, formações sociais defasadas se enfrentam e se fundem para dar lugar a um povo novo, num novo modelo de estruturação societária. Novo porque surge como uma etnia nacional, diferenciada culturalmente de suas matrizes formadoras, fortemente mestiçada, dinamizada por uma cultura sincrética e singularizada pela redefinição de traços culturais delas oriundos.” (Ribeiro, 1995). Esse breve excerto retirado da sua obra “O Povo Brasileiro – A formação e o sentido do Brasil” apontou para o surgimento de um dos países mais miscigenados do mundo. De um modo geral, podemos dizer que a composição étnica brasileira é basicamente oriunda dos três grandes e principais grupos étnicos citados pelo autor. Além das matrizes apontadas pelo autor (a branca europeia/portuguesa, a negra africana, e a indígena/povos originários), novas levas de imigração trouxeram a essas terras também árabes (sírios e libaneses em maior quantidade, mas também iemenitas, iraquianos, etc), asiáticos (japoneses num primeiro momento, e chineses e coreanos num segundo), latinos hispânicos (como bolivianos e peruanos), além de outras nacionalidades. 21 Religião. Fé e Modernidade Universidade Santa Cecília - Educação a Distância Nesse caldeirão multiétnico, resultado de uma profunda miscigenação (às vezes ao acaso e harmônica, às vezes violenta e forçada, patrocinada pelo Estado brasileiro), surgiram ou se incorporaram centenas (ou milhares) de manifestações artísticas e culturais distintas, que influenciaram diretamente no sincretismo religioso existente em nosso país e que iremos tratar nesta aula. A obra “Operários” (1933), de Tarsila do Amaral, expressa a pluralidade cultural e étnica brasileira Fontes: https://laart.art.br/blog/pinturas-famosas-brasileiras/ 2. As três matrizes étnicas do Brasil Como dito na Introdução, somos o resultado da confluência de três matrizes étnicas que chegaram ou que já estavam no território que atualmente compõe o Brasil. Desde os tempos mais remotos do período colonial, o Brasil sofreu forte influência da cultura portuguesa, seja na língua, na culinária, no traçado das cidades, na arquitetura, na religião, nas artes decorativas e em tantas outras manifestações existentes. Estamos falando de uma cultura que já trazia, em Portugal, a herança de outros povos, marcada desde o início por processos migratórios, de miscigenação e sincretismo. Destas civilizações, duas foram as que mais deixaram contribuições para o povo português: os https://laart.art.br/blog/pinturas-famosas-brasileiras/ 22 Religião. Fé e Modernidade Universidade Santa Cecília - Educação a Distância romanos e os mouros (Matosinho, 2016). Esse sincretismo proveniente de uma cultura europeia no Brasil foi exposto a outras culturas, que se refletiram diretamente nas manifestações religiosas aqui praticadas. Mouro era o nome dado pelos cristãos às pessoas de pele escura e de religião muçulmana que habitaram a Península Ibérica, do século VIII ao XV.O termo vem dos romanos que nomearam Mauritânia a uma de suas províncias na África. Com a invasão dos árabes muçulmanos neste continente, os habitantes dessa região adotaram o Islã também como sua religião. Desta forma, "mouro", aos olhos dos cristãos, passou a ser sinônimo de uma pessoa muçulmana e de pele escura. Os mouros, no entanto, não constituem um povo, nem uma etnia e sim uma generalização que os cristãos europeus fizeram dos muçulmanos tanto africanos, como árabes. Os mouros chegaram à Península Ibérica (Espanha e Portugal) por volta do séc. VIII e ali permaneceram vários séculos deixando sua marca na cultura e no idioma. Fonte: https://www.todamateria.com.br/mouros/#:~:text=Mouro%20era%20o%20 nome%20dado,de%20suas%20prov%C3%ADncias%20na%20%C3%81frica. Mas quando os portugueses chegaram ao nosso território e deram início ao processo colonizador eles não chegaram a um local desabitado. Estima-se que, na época da chegada dos europeus, existiam mais de 1.000 povos indígenas aqui vivendo, somando entre 2 e 4 milhões de pessoas. Atualmente encontramos no território brasileiro 256 povos, falantes de mais de 150 línguas diferentes. Os povos indígenas somam, segundo o Censo IBGE 2010, 896.917 pessoas. Destes, 324.834 vivem em cidades e 572.083 em áreas rurais, o que corresponde aproximadamente a 0,47% da população total do país. A maior parte dessa população distribui-se por milhares de aldeias, situadas no interior de 726 Terras Indígenas, de norte a sul do território nacional7. Os indígenas representam assim uma multiplicidade de povos, originários do continente americano antes da invasão territorial por parte dos povos europeus a partir do século XVI em nosso atual território. 7ht tps:/ /p ib.soc ioambienta l.org/pt /Quem_s%C3%A3o 23 Religião. Fé e Modernidade Universidade Santa Cecília - Educação a Distância Por fim, cabe destacar a contribuição dos africanos para a cultura, as religiões e as artes no Brasil, que também se dá a partir de uma multiplicidade de etnias e culturas. Entre os anos de 1525 e 1851, mais de cinco milhões de africanos foram trazidos para o Brasil na condição de escravos, não estando incluídos neste número, que é uma aproximação, aqueles que morreram ainda em solo africano, vitimados pela violência da caça escravista, nem os que pereceram na travessia oceânica. Não se sabe quantos foram trazidos desde que o tráfico se tornou ilegal (Prandi, 2000). Os africanos trazidos ao Brasil incluíram membros das etnias banto, nagô e jeje, todos da África subsaariana, cujas crenças religiosas deram origem às religiões afro-brasileiras, e os hauçás e malês, de religião islâmica e alfabetizados em árabe. Não se tratava então de um povo em específico, mas de uma multiplicidade de etnias, nações, línguas, culturas e religiões, que se misturaram às outras matrizes que habitavam o nosso território. 3. O sincretismo religioso Primeiramente cabe aqui definir o que se entende por “sincretismo”. Segundo o sociólogo e historiador de arte Marcos Horácio Gomes Dias, doutor em história social, "o sincretismo sempre significa uma mistura, a troca simbólica que dá como resultado uma terceira coisa. É uma fusão cultural que traz valores de uma cultura para outra, que por vezes tem esses 'símbolos disfarçados' "8.Podemos definir sincretismo religioso então como qualquer prática religiosa que provém da fusão de outras, e são vários os tipos de sincretismo que pode ser encontrados pelo mundo: Sincretismo africano-americano: esse tipo de sincretismo surgiu na América Latina e no Caribe, onde as religiões africanas foram combinadas com o catolicismo romano. Os exemplos incluem o candomblé e a umbanda no Brasil, além da santeria em Cuba; Sincretismo asiático: na Ásia, o sincretismo religioso envolveu a fusão de diferentes tradições religiosas, como o budismo, o taoísmo, o confucionismo e o xamanismo. Um exemplo é o sincretismo religioso japonês, que combina elementos do xintoísmo e do budismo; Sincretismo cristão: esse tipo de sincretismo ocorreu quando o cristianismo foi introduzido em regiões onde outras religiões já estavam estabelecidas. Para facilitar a 8ht tps:/ /www.uol .com.br/ecoa/u lt imas -not ic ias /2021/09/01/s incret ismo-qual-a- re lacao-entre-santos-cato l icos-or ixas-e-colonia l ismo.htm 24 Religião. Fé e Modernidade Universidade Santa Cecília - Educação a Distância conversão, elementosdas religiões locais foram incorporados às crenças cristãs. Um exemplo é o sincretismo religioso mexicano, que combina elementos do catolicismo romano com as crenças indígenas; Sincretismo oriental: esse tipo de sincretismo envolve a fusão de elementos de diferentes tradições religiosas orientais, como as do sincretismo asiático mencionadas. Um exemplo é o sincretismo religioso coreano, que combina elementos do budismo, do taoísmo e do confucionismo; Sincretismo “paganismo”: esse tipo de sincretismo envolve a fusão de elementos de diferentes “religiões pagãs”, como as religiões dos antigos gregos, romanos e celtas. Um exemplo é o sincretismo religioso neopagão, que combina elementos das religiões antigas com crenças modernas9. O ponto de partida do nosso sincretismo religioso no Brasil então foram as influências das três matrizes étnicas formadoras da nossa sociedade no perfil religioso da população brasileira, somado às sucessivas ondas de imigração que vieram depois disso. Judaísmo, Cristianismo Católico, Cristianismo Protestante, Cristianismo Espírita Kardecista, Islamismo, Budismo, Hinduísmo desembarcaram nos milhares de navios que vieram para cá entre 1500 e 1950. Os cultos africanos Angolas, Congos, Fons, Malês e Iorubás também desembarcaram nesse contexto, mas enquanto escravizados, e encontraram aqui os Tupis, os Guaranis, os Tapuias e muitos outros. Ao longo dos anos tudo se misturou em manifestações diversas e complexas. 9ht tps:/ /www.pol i t ize.com.br/s incret ismo-re l ig ioso/ 25 Religião. Fé e Modernidade Universidade Santa Cecília - Educação a Distância Sem ignorar a violência do processo colonizador no Brasil, foi a partir dessa pluralidade cultural e étnica que surgiu o sincretismo religioso brasileiro Fontes: https://radiopeaobrasil.com.br/wp-content/uploads/2020/10/rugendas.-indios- bandeirantes.jpg Perante a religiosidade cristã dos colonizadores, baseada em um catolicismo fincado na Inquisição e num repúdio a quaisquer outras manifestações religiosas, os africanos, em seu afã por sobrevivência, lançaram mão, consciente ou inconscientemente, de um refinado estratagema para driblar a vigilância de seus senhores e poder professar seus cultos originais: o sincretismo religioso. Mas esse procedimento não foi simples: os escravos provinham de diversas regiões africanas e seguiam religiões - em geral politeístas - às vezes semelhantes, outras vezes bastante distintas entre si. Embora estivessem misturados em grupos étnicos variados, os africanos, apesar dos sofrimentos e das sevícias de que eram vítimas, buscaram - de forma consciente ou inconsciente - soluções práticas para resolverem problemas cotidianos, como o exercício de seus rituais religiosos. Ao longo do tempo, foram familiarizados com o contexto católico e assim puderam inferir transferências, adaptações e recriações culturais e religiosas. Essa forma de traduzir dois mundos religiosos distintos ajudou-os a manter vivas suas tradições religiosas ancestrais, ainda que mescladas com o sistema hagiológico católico (Romão, 2018). Além disso, o panorama religioso na encruzilhada brasileira fica ainda mais complexo, se pensarmos, por exemplo, na existência de etnias africanas islamizadas, que não mais partiam religiões politeístas. Cabe lembrar aqui a insurreição protagonizada por escravos islamizados, a maioria de origem ioruba, notadamente hauçá, que se opunham à conversão ao catolicismo. O episódio ocorreu em 1835 na noite de 25 para 26 de fevereiro e ficou conhecido como Revolta dos Malês. Como as forças do governo eram mais numerosas e melhor equipadas, os revoltosos foram derrotados. Alguns foram mortos, outros condenados a açoites ou a retornar à África (Freitas, 1985). Isso demonstra a complexidade do panorama de culturas, línguas e religiões inscrita na diversidade de etnias africanas no Brasil. Um exemplo de sincretismo religioso no Brasil é o caso da Lavagem das Escadarias do Bonfim. Trata-se de uma tradição incorporada pela Igreja Católica que data de quando os escravos, que reverenciavam Oxalá (o maior de todos os orixás), eram obrigados a lavar https://radiopeaobrasil.com.br/wp-content/uploads/2020/10/rugendas.-indios-bandeirantes.jpg https://radiopeaobrasil.com.br/wp-content/uploads/2020/10/rugendas.-indios-bandeirantes.jpg 26 Religião. Fé e Modernidade Universidade Santa Cecília - Educação a Distância os degraus da Igreja antes da festa de Nosso Senhor do Bonfim, em Salvador. Hoje a lavagem dos degraus é feita por baianas tradicionais e filhas de santo. Fonte: https://buzzfeed.com.br/post/10-momentos-incriveis-da-lavagem-do-bonfim-em-salvador 4. A Umbanda como exemplo do sincretismo religioso brasileiro Quando se fala em sincretismo no Brasil logo se associa as religiões Afro-brasileiras, pois foram construídas após a colonização, e um exemplo perfeito disso é a Umbanda. A Umbanda é uma junção de diversas religiões que chegaram ao Brasil, como o catolicismo, espiritismo e as religiosidades africana, indiana e indígena. Bastante confundida com o candomblé, a Umbanda possui três princípios básicos que são: fraternidade, caridade e respeito ao próximo. Seus fundamentos são: • Existência de um único Deus, supremo e onipotente, conhecido como Zambi, Olorum ou simplesmente Deus; • Existência dos orixás, seres do Plano Superior que representam, cada um à sua forma, elementos da natureza, do planeta ou das próprias características humanas; • A mediunidade como forma de comunicação entre as esferas física e espiritual; • Crença na alma imortal e na reencarnação; • Crença na Lei Cármica, no qual se baseiam as ações do homem e suas consequências; 27 Religião. Fé e Modernidade Universidade Santa Cecília - Educação a Distância O caldeirão étnico e cultural por meio do qual o Brasil foi formado levou tanto à miscigenação que nos caracteriza, quanto ao sincretismo religioso, no qual múltiplas religiões e formas de culto se misturaram levando a novas práticas religiosas em nosso território. Freitas, D.1985. A revolução dos malês. Insurreições escravas Porto Alegre: Movimento; Freyre, G. 2005. Aspectos da influência africana no Brasil Revista del CESLA, núm. 7, 2005, pp. 369-384UniwersytetWarszawskiVarsovia, Polônia; Matosinho, T. 2016. Azulejaria e a influência portuguesa nas cidades brasileiras. Lugar Comum–Estudos de mídia, cultura e democracia, (46), 111- 118; Prandi, R. 2000. De africano a afro-brasileiro: etnia,identidade, Religião. REVISTA USP, São Paulo, n.46, p. 52-65, junho/agosto 2000; Ribeiro, D.1970. As Américas e a civilização ‐ Processo de formação e causas do desenvolvimento desigual dos povos americanos. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira; _________1995. O povo Brasileiro - a formação e o sentido do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras; Romão, T. L. C.. 2018. Sincretismo religioso como estratégia de sobrevivência transnacional e translacional: divindades africanas e santos católicos em tradução. Trabalhos Em Linguística Aplicada, 57(1), 353–381. https://doi.org/10.1590/010318138651758358681; 28 Religião. Fé e Modernidade Universidade Santa Cecília - Educação a Distância 4. Preconceito e intolerância religiosa Objetivo: Debater sobre uma das consequências sociais negativas do sincretismo e da diversidade cultural e religiosa existente em nosso território: o preconceito e a intolerância religiosa. 1. Introdução Como visto nas duas aulas anteriores, o Brasil é um país de grande pluralidade religiosa. Ainda que deva ser feita a ressalva de que essa pluralidade esteja muito mais concentrada em relação às religiões cristãs do que em relação a outras denominações religiosas, é fato que no Brasil são encontradas múltiplas formas de credo: católicos apostólicos romanos, católicos ortodoxos,evangélicos, espíritas, testemunhas de Jeová, judeus, hindus, budistas, umbandistas, candomblecistas, etc. E isso sem mencionar a infinidade de cultos religiosos existentes entre os povos indígenas do nosso território e que são impossíveis de serem quantificadas, e também as pessoas que se declaram como sendo “sem religião”, mas que ainda assim não se enquadram nas categorias de ateus ou agnósticos. Poderia se supor então, dado o tamanho da nossa população e essa quantidade de credos existentes sem que houvesse qualquer histórico de profundo conflito religioso em nosso país quando comparado a outras nações, que teríamos uma população que convive em relativa harmonia religiosa. Porém, não é isso que tem ocorrido. Ainda que este não seja um fenômeno recente – como visto na aula anterior, o sincretismo religioso muitas vezes foi o caminho encontrado pelos seguidores de religião de matriz afro- brasileira como resposta às perseguições que sofriam - dados dos últimos anos têm mostrado que há um crescimento na quantidade de denúncias de casos de intolerância religiosa em nosso país, mostrando que a “liberdade de culto”, um preceito constitucional em nosso país, ainda esta longe de ser colocado em prática. Apesar disso, a sociedade brasileira e as diferentes religiões têm se organizado e também procurado dar respostas a isso. 2. Legislação e conceitos O Brasil se define enquanto um “Estado Laico”. Ou seja, ao se afirmar como tal o país tem o compromisso de separar Estado e religião e de proteger a liberdade religiosa, garantindo esse direito a todos os seus cidadãos. Além disso, como Estado laico, o Brasil não deve 29 Religião. Fé e Modernidade Universidade Santa Cecília - Educação a Distância influenciar as crenças pessoais de seus cidadãos e não deve permitir que as crenças religiosas de seus governantes tenham influência direta na formulação de suas políticas. Liberdade religiosa é a liberdade de professar qualquer religião, de realizar os cultos ou tradições referentes a essas crenças, de manifestar-se, em sua vida pessoal, conforme seus preceitos e poder viver de acordo com essas crenças. Ela é garantida por leis específicas, que definem quais são os direitos religiosos dos cidadãos de cada país. Assim, elas podem ser diferentes ou tratadas de modo distinto por cada país, conforme sua legislação. No caso brasileiro, trata-se de um conceito que está assegurado em nossa Constituição de 1988, atualmente em vigor, que aponta em seus artigos 5º E 19º: Art. 5: Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: I — homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações, nos termos desta Constituição; II — ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei; III — ninguém será submetido a tortura nem a tratamento desumano ou degradante; IV — é livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato; V — é assegurado o direito de resposta, proporcional ao agravo, além da indenização por dano material, moral ou à imagem; VI — é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias; Art. 19: É vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios: I - estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvencioná-los, embaraçar-lhes o funcionamento ou manter com eles ou seus representantes relações de dependência ou aliança, ressalvada, na forma da lei, a colaboração de interesse público; II - recusar fé aos documentos públicos; III - criar distinções entre brasileiros ou preferências entre si.10 10ht tps:/ /const i tu icao.s tf . jus .br / 30 Religião. Fé e Modernidade Universidade Santa Cecília - Educação a Distância A Constituição de 1988 é o texto-base que determina os direitos e os deveres dos entes políticos e dos cidadãos do nosso país. Ela foi escrita durante o processo de redemocratização do Brasil após o fim da Ditadura Militar, sendo conhecida por isso como Constituição Cidadã. Foi resultado de um amplo debate que se estendeu durante mais de um ano durante a Assembleia Nacional Constituinte (187-1988) e simbolizou o início da Nova República. Fonte: https://brasilescola.uol.com.br/historiab/constituicao-1988.htm Os artigos estão em consonância com o que diz a Declaração Universal dos Direitos Humanos, que aponta em seu artigo 18º: “Todo ser humano tem direito à liberdade de pensamento, consciência e religião; esse direito inclui a liberdade de mudar de religião ou crença e a liberdade de manifestar essa religião ou crença pelo ensino, pela prática, pelo culto em público ou em particular. ” Entretanto, como qualquer outra liberdade, a religiosa também não é totalmente ilimitada. Se o exercício da religião de um indivíduo implica na realização de um crime, por exemplo, o cidadão não estará livre de pena ou punição por ter agido movido por sua fé. Assim, se uma religião hipotética prega o ódio a outras pessoas, violência, realização de sacrifícios ou qualquer outro mal a terceiros, suas possíveis ações criminosas serão julgadas e punidas. Do mesmo modo, como qualquer outra pessoa seria devidamente julgada e punida pelos mesmos crimes, independentemente de suas motivações (Enriconi, 2017). 3. A intolerância religiosa Como dito anteriormente, a intolerância religiosa no nosso país não é um fenômeno recente. Nas palavras de Sidnei Nogueira, o Sidnei de Xangô, doutor em Semiótica pela Universidade de São Paulo (USP) e autor de Intolerância Religiosa (Jandaíra, 2020), "o Brasil sempre teve uma noção frágil de laicidade. O sistema de crenças dos 5 milhões de 31 Religião. Fé e Modernidade Universidade Santa Cecília - Educação a Distância pretos e pretas escravizados no Brasil sempre foi satanizado pelos colonizadores portugueses"11. Ou seja, apesar do Brasil normalmente não se destacar entre os países com mais casos de perseguição religiosa ou de crença, isso não quer dizer que estejamos numa conjuntura religiosa plenamente harmônica. Segundo o “Relatório de Liberdade Religiosa no Mundo da ACN” publicado a cada dois anos, os países em vermelho (28 no total) são aqueles onde aparecem mais casos de perseguição religiosa no mundo. Fonte: https://www.acn.org.br/analise-global-2023-sobre-a-liberdade-religiosa/# Como pode ser visto nos gráficos abaixo, os dados consolidados do período de 2015 a 2019, ou seja, num contexto ainda anterior à pandemia de COVID-19, já era evidente um crescimento nesses índices, sobretudo em relação às religiões de matriz afro-brasileira. 11ht tps:/ /www.bbc.com/portuguese/brasi l - 64393722#:~: tex t=O%20n%C3%BAmero%20de%20den%C3%BAncias%20de,Grande%20d o%20Sul%20(51) . 32 Religião. Fé e Modernidade Universidade Santa Cecília - Educação a Distância Fontes: https://farm66.staticflickr.com/65535/49421885682_b8b2988e48_o.jpg e https://farm66.staticflickr.com/65535/49421213068_9db707b7e0_o.jpg Em anos seguintes, esses dados seguiram mostrando uma piora. O número de denúncias de intolerância religiosa no Brasil aumentou 106% em apenas um ano, e passou de 583, em 2021, para 1,2 mil, em 2022, uma média de três por dia. O Estado recordista foi São Paulo (270 denúncias), seguido por Rio de Janeiro (219), Bahia (172), Minas Gerais (94) e Rio Grande do Sul (51). A maior parte das denúncias mais uma vez foram feitas por praticantes de religiões de matriz africana, como umbanda e candomblé. Seis em cada dez vítimas são mulheres. Só nos primeiros 20 dias de 2023, o Disque 100, canal para https://farm66.staticflickr.com/65535/49421885682_b8b2988e48_o.jpghttps://farm66.staticflickr.com/65535/49421213068_9db707b7e0_o.jpg 33 Religião. Fé e Modernidade Universidade Santa Cecília - Educação a Distância denúncias de violações de direitos humanos, registrou 58 ocorrências, demonstrando que esse número tende a seguir crescendo12. Cabe mencionar que o mesmo cenário vem se replicando no ambiente virtual, onde o número de casos de intolerância religiosa quintuplicou em um ano. Segundo levantamento da Safernet, ONG que mantém uma central de denúncias de violações contra direitos humanos, como racismo, misoginia e xenofobia, os ataques online saltaram de 614, entre janeiro e outubro de 2021, para 3,8 mil, no mesmo período de 2022, um crescimento de 522%. 4. As respostas dadas pela sociedade As respostas que a sociedade brasileira tem dado para combater a intolerância religiosa vão além da legislação que integra a nossa Constituição Federal, e um exemplo disso foi a criação do Dia Nacional de Combate à intolerância religiosa, criada a partir de uma história trágica. No dia 21 de janeiro de 2000, faleceu na Bahia a yalorixáGildásia dos Santos e Santos, conhecida como Mãe Gilda de Ogum. A religiosa teve a casa e o terreiro invadidos por um grupo de outra religião. Após perseguições e agressões verbais a fundadora do terreiro de candomblé Axé Abassá de Ogum sofreu um ataque cardíaco após passar por difamações que questionavam sua fé e o seu caráter e veio a falecer. Em homenagem a ela, desde 2007 essa data, 21 de janeiro, celebra no Brasil o Dia Nacional de Luta Contra a Intolerância Religiosa13. Além disso, uma lei sancionada recentemente em 2023 tornou mais severas as penas para crimes de intolerância religiosa. A lei sancionada equipara o crime de injuria racial ao crime de racismo e também protege a liberdade religiosa. A lei, agora, prevê pena de 2 a 5 anos para quem obstar, impedir ou empregar violência contra quaisquer manifestações ou práticas religiosas. A pena será aumentada a metade se o crime for cometido por duas ou mais pessoas, além de pagamento de multa. Antes, a lei previa pena de 1 a 3 anos de reclusão. 12ht tps:/ /www.bbc.com/portuguese/brasi l - 64393722#:~: tex t=O%20n%C3%BAmero%20de%20den%C3%BAncias%20de,Grande%20d o%20Sul%20(51) . 13ht tps:/ /www.defensor iapublica.pr .def .br/Not ic ia/Luta -contra- Into leranc ia- Rel igiosa-tambem-e-trabalho-da-Defensor ia-Publ ica 34 Religião. Fé e Modernidade Universidade Santa Cecília - Educação a Distância A punição agora é a mesma prevista pelo crime de racismo, quando a ofensa discriminatória é contra grupo ou coletividade, pela raça ou pela cor. A expectativa é de que a nova lei ajude a punir quem comete crimes religiosos e ajude proteger a vítima, que muitas vezes não encontra amparo quando tenta fazer uma denúncia. E por falar em crimes de cunho racial, o Estatuto da Igualdade Racial (Lei 12.288/2010) tem, em seu capítulo III, quatro artigos que tratam do direito à liberdade de consciência e de crença e ao livre exercício dos cultos religiosos. O primeiro deles, o artigo 23, assegura que “é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias”; já o artigo 26 da Lei determina que “o poder público adotará as medidas necessárias para o combate à intolerância com as religiões de matrizes africanas e à discriminação de seus seguidores”. A legislação é importante ao considerarmos que a maioria dos casos de intolerância no Brasil ocorre em relação às igrejas de matriz africana. Porém, leis não são a única resposta dada pela sociedade brasileira. Fonte: https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2022/01/21/senadores-lembram-dia-nacional-de- combate-a-intolerancia-religiosa/whatsapp-image-2022-01-21-at-18-00-07.jpeg Anualmente, não apenas no Dia de Combate à Intolerância, milhares de brasileiros tem marchado nas ruas para mostrar seu repúdio aos crescentes atos de intolerância. As marchas têm contado com o apoio de múltiplas religiões e lideranças, mostrando que o combate à intolerância se dá também a partir da base da sociedade, e não apena a partir de legislações. A Caminhada Pela Liberdade Religiosa realizada todos os anos no Rio de janeiro em setembro tornou-se já uma tradição nesse sentido. 35 Religião. Fé e Modernidade Universidade Santa Cecília - Educação a Distância Apesar do caldeirão étnico e cultural por meio do qual o Brasil foi formado, a miscigenação que nos caracteriza não levou apenas ao sincretismo religioso. Uma das consequências sociais dessa pluralidade é a intolerância religiosa em nosso país, que tem raízes históricas, e é direcionada principalmente às religiões de matriz afro-brasileira. DIAS, P., 2022. “Denúncias de intolerância religiosa nos estados aumentam 45,6% no primeiro semestre”, O Globo, 31 de agosto de 2022, https://oglobo.globo.com/brasil/direitos- humanos/noticia/2022/08/denuncias-de-intolerancia-religiosa-nos-estados- aumentam-456percent-no-primeiro-semestre.ghtml; Enriconi, L. 2017. A liberdade religiosa no Brasil. Disponível em: https://www.politize.com.br/liberdade-religiosa-no- brasil/?https://www.politize.com.br/&gclid=CjwKCAjwqZSlBhBwEiwAfoZUIPc fd4Cmk51csl3ePiKFpq_3l8ggCEncHYxKfjY3auxmgJAHf5e4ZxoCWToQAvD_Bw E; Romão, T. L. C.. 2018. Sincretismo religioso como estratégia de sobrevivência transnacional e translacional: divindades africanas e santos católicos em tradução. Trabalhos Em Linguística Aplicada, 57(1), 353–381. https://doi.org/10.1590/010318138651758358681; 2023. 16ºRelatório de Liberdade Religiosa no Mundo – ACN, disponível online em: https://www.acn.org.br/relatorio-liberdade-religiosa/ Santos, Carlos Alberto Ivanir dos; Dias, BrunoBonsanto; Santos, Luan Costa Ivanir dos. 2023.II Relatório sobre Intolerância Religiosa: Brasil, AméricaLatina e Caribe– 1. Ed. – Rio de Janeiro; CEAP, disponível online em: https://static.poder360.com.br/2023/01/relatorio-intolerancia-religiosa.pdf https://www.politize.com.br/liberdade-religiosa-no-brasil/?https://www.politize.com.br/&gclid=CjwKCAjwqZSlBhBwEiwAfoZUIPcfd4Cmk51csl3ePiKFpq_3l8ggCEncHYxKfjY3auxmgJAHf5e4ZxoCWToQAvD_BwE https://www.politize.com.br/liberdade-religiosa-no-brasil/?https://www.politize.com.br/&gclid=CjwKCAjwqZSlBhBwEiwAfoZUIPcfd4Cmk51csl3ePiKFpq_3l8ggCEncHYxKfjY3auxmgJAHf5e4ZxoCWToQAvD_BwE https://www.politize.com.br/liberdade-religiosa-no-brasil/?https://www.politize.com.br/&gclid=CjwKCAjwqZSlBhBwEiwAfoZUIPcfd4Cmk51csl3ePiKFpq_3l8ggCEncHYxKfjY3auxmgJAHf5e4ZxoCWToQAvD_BwE https://www.politize.com.br/liberdade-religiosa-no-brasil/?https://www.politize.com.br/&gclid=CjwKCAjwqZSlBhBwEiwAfoZUIPcfd4Cmk51csl3ePiKFpq_3l8ggCEncHYxKfjY3auxmgJAHf5e4ZxoCWToQAvD_BwE https://www.acn.org.br/relatorio-liberdade-religiosa/ https://static.poder360.com.br/2023/01/relatorio-intolerancia-religiosa.pdf 36 Religião. Fé e Modernidade Universidade Santa Cecília - Educação a Distância 5. Secularização e ateísmo Objetivo: Debater sobre o processo de secularização da sociedade, sobretudo verificado por meio do crescimento de ateus e agnósticos, e seus reflexos na sociedade brasileira, assim como no campo do fundamentalismo e da intolerância religiosa. 1. Introdução Imersas no ideal iluminista, as previsões das ciências sociais e da psicanálise, no início do século XX, supunham que o desenvolvimento fervoroso da ciência e a sofisticação tecnológica levariam ao declínio da religião (Berger, 1999; Burity, 2008). A esse processo dá-se o nome de secularização. O conceito secularização tem diversas definições, mas praticamente todas remetem a esta definição: a deslegitimação do poder da esfera eclesiástica — defensora e reprodutora dos valores do sagrado — para a legitimação do poder da esfera civil elaica, que possui como orientação valores não-sagrados, portanto, profanos aos olhos do religioso (Almeida, 2005).A consolidação de Estados Laicos mundo afora seria uma evidência nesse sentido, num processo que se consolidaria para além do mundo ocidental. Entretanto, apesar das previsões iluministas de que o avanço científico levaria ao declínio das práticas religiosas, o que se vê na atualidade é a reafirmação da religiosidade. Como vimos nas primeiras aulas desta disciplina, uma grande proporção da humanidade se identifica com alguma corrente religiosa (PewResearch Center, 2017) e questiona-se hoje em dia até que ponto alguns estados são laicos de fato. Ainda assim, em comparação a outros períodos da história da humanidade, observa-se um movimento crescente de secularização. Ao analisarmos os dados acerca do perfil global das religiões, observa-se que O grupo dos que se declaram ateus, agnósticos ou sem religião em todo o mundo só fica atrás daqueles que se dizem cristãos e muçulmanos. Esse grupo compõe 16,3% da população mundial, percentual superior ao de hindus, 15%, budistas (7,1%), seguidores de religiões étnicas ou folclóricas (5,9%) e judeus (0,2%). O mesmo fenômeno pode ser observado no Brasil pelo aumento daqueles que se declaram “sem religião”, entre eles os ateus e agnósticos, seguindo uma tendência global. A diversidade religiosa passou assim a incluir um novo contingente de pessoas, que são aquelas que não creem na existência de nenhum Deus (ou deuses), no caso os ateus, ou aquelas que argumentam que sua existência não pode ser verificada ou comprovada, os agnósticos. 37 Religião. Fé e Modernidade Universidade Santa Cecília - Educação a Distância Nesse contexto, observa-se o surgimento de um novo discurso de intolerância que circula dos religiosos em direção aos ateus e agnósticos e vice-versa, e que se reflete no atual cenário político, econômico, social e cultural. 2. O crescimento dos “sem-religião” no Brasil Como vimos na segunda aula desta disciplina, nosso país acompanha, mesmo que timidamente, uma tendência global de aumento do número de pessoas que não tem religião. No Censo de 2010 (IBGE, 2012), os sem religião eram 8% da população brasileira, ou mais de 15 milhões de pessoas. Esse percentual vem crescendo década após década: os sem religião eram 0,5% da população brasileira em 1960, 1,6% em 1980, 4,8% em 1991 e 7,3% em 2000. Resta ainda aguardarmos pela consolidação dos dados do Censo mais recente, realizado em 2022-2023, para verificarmos se essa tendência se manteve. Entretanto, é preciso ter clareza que os ateus e agnósticos representam apenas uma parcela daqueles que se declaram “sem religião”. Muitos daqueles que se declaram sem ter qualquer religião ainda assim creem em Deus, ou em alguma divindade. Essas pessoas apenas não se identificam com alguma religião em específico e muitas vezes frequentam cerimônias religiosas em mais de uma. No Censo de 2010, por exemplo, dos 15,3 milhões de brasileiros que se diziam sem religião, apenas 615 mil (4% dos sem religião) se consideravam ateus e 124 mil se afirmavam agnósticos (0,8%). Fontes: https://www.bbc.com/portuguese/brasil-61329257 Porém, não se trata de um contingente populacional que deve ser descartado das análises acerca da dinâmica religiosa no Brasil. Em nosso país o número de ateus e agnósticos ultrapassa a soma do número de praticantes do candomblé, da umbanda e de outras 38 Religião. Fé e Modernidade Universidade Santa Cecília - Educação a Distância religiões afro brasileiras, e também é maior do que o número de judeus e budistas juntos (Filla e Fantini, 2016). Do ponto de vista conceitual, o ateísmo é definido pela ATEA (Associação Brasileira de Ateus e Agnósticos) como a ausência de crença em qualquer divindade (www.atea.org.br), ao passo que o agnosticismo acredita na incapacidade do espírito humano de alcançar o conhecimento necessário para que se tome juízo sobre a existência ou não de divindades (Lima Júnior, 2012).Ambos fazem parte do movimento de descrença, assumindo uma posição que reforça a secularização, ao mesmo tempo em que vai contra a consolidação das crenças religiosas na atualidade (Filla e Fantini, 2016). Esse movimento, porém, em alguns casos pode se refletir até mesmo no campo do fundamentalismo, seja ele o religioso para com os ateus e agnósticos ou vice-versa, ou até mesmo em práticas de intolerância. Ateísmo é a negação na existência de divindades ou de qualquer experiência transcendental. Ateísmo é uma palavra que deriva de ateu. Por sua vez, esta tem sua origem do grego atheos, ou seja, “sem deus” (prefixo “a” indicando negação + “theos”, que significa Deus). Foi utilizada a partir do século V a.C., para designar aqueles que não acreditavam nos deuses ou que desrespeitavam seus lugares sagrados. Desde a Antiguidade, existiram pessoas que não creiam nos deuses que sua comunidade acreditava. O exemplo mais conhecido é o de Sócrates, que foi condenado à morte, dentre outras acusações, por não acreditar nos deuses. Com a paulatina cristianização da sociedade europeia, o simples fato de duvidar da existência de Deus, já não era bem visto pela Igreja Católica. Posteriormente, após a Reforma Protestante, o ateísmo foi rechaçado por estas novas correntes. Foi a Revolução Científica e o Iluminismo que levantaram, efetivamente, a ideia que a Bíblia e a tradição religiosa não tinham todas as repostas para as questões humanas. A partir de então surgiram ideologias que são abertamente ateias, como o socialismo, mas que posteriormente também levaram ao surgimento de correntes cristãs, como o socialismo cristão. Fonte: https://www.todamateria.com.br/ateismo/ 39 Religião. Fé e Modernidade Universidade Santa Cecília - Educação a Distância 3. Fundamentalismo(s) O fundamentalismo é um fenômeno relativamente recente, pelo menos como posição articulada e autoconsciente (Paine, 2010). Seu uso costuma ser mais associado àqueles que adotam alguma filiação religiosa, e muitas vezes acaba por reproduzir uma visão estereotipada dos seguidores de alguma fé, como se todos aqueles que a seguem o fizessem de maneira cega. O termo, porém, tem uma origem histórica, e hoje em dia debate-se até a sua aplicação a determinados segmentos do campo ateu. Na virada do século XX, há mais de cem anos, algumas décadas já tinham passado na notória guerra entre religião e razão, ou entre religião e ciência. Esses conflitos tinham começado já no século XVIII, na Grã-Bretanha, com o metodismo e, na América do Norte, com o “GreatAwakening” e o revivalismo – ambas reações ao iluminismo e aos primeiros filósofos ateus mais conhecidos do séc. XVIII. Seguiram-se a uma dupla tentativa: primeiramente, a tentativa de porta-vozes das novas conquistas na área das ciências da natureza de tirar conclusões filosóficas e até teológicas (ou ateológicas) dessas conquistas, e de contextualizá-las dentro de cosmovisões que nem sempre provinham dos próprios achados científicos, e sim de agendas ideológicas alheias (marxismo, fascismo, darwinismo social, positivismo lógico etc.). A segunda tentativa veio da parte dos integrantes das religiões abraâmicas, em particular do cristianismo protestante, e visou defender as bases de fé e certeza religiosa através do uso de certas barreiras. Essas foram erigidas contra interpretações ateias ou antirreligiosas provindas do mundo da ciência ou da filosofia e cultura modernas (secularismo, historicismo, criticismo bíblico, evolucionismo), ou mesmo da própria teologia liberal protestante da época (Paine, 2010). O termo “fundamentalismo” surge assim a partir do campo protestante cristão, e ao longo do século XX, o termo continuava sendo usado apenas dentro dessa comunidade para designar certas correntes mais ligadas à interpretação literal da Bíblia e, frequentemente,a atitudes apocalípticas ou milenaristas. Para se ter uma ideia de como a disseminação desse termo é um fenômeno recente, até o ano 1950 o verbete “fundamentalism” não figurava no Oxford EnglishDictionary, e “fundamentalist” apareceu apenas na edição de 1989 (OXFORD, 1989), mas não associada ao campo cristão, e sim ao islã. A partir de então o conceito passou a se expandir, para incluir seitas menos tolerantes do budismo (como a Nichiren, no Japão), de certos partidos políticos na Índia (theBharatiyaJanataParty, o BJP, por exemplo) que aderiram a uma versão mais rigorosa 40 Religião. Fé e Modernidade Universidade Santa Cecília - Educação a Distância de hinduísmo (chamada de “hindutva”) e, enfim, de qualquer tipo de ideologia que exibiu traços semelhantes de firmeza e inflexibilidade de suas convicções (Paine, 2010). Apesar de contemporaneamente estar mais associado pelo senso comum a algumas correntes do Islã, o termo “fundamentalismo” surgiu associado a correntes cristãs. Fonte: https://static.mundoeducacao.uol.com.br/mundoeducacao/conteudo_legenda/0e0d5bc8135d9cb05e09169c6 f4deffa.jpg 4. Fundamentalismo e intolerância ateus O crescimento no número de ateus e agnósticos tem levado a um duplo caminho: o crescimento dos casos de intolerância e preconceito para com esse grupo, mas também desse grupo em relação às correntes religiosas existentes. A intolerância do religioso para com o ateu e o agnóstico pode ser observada hoje em dia tanto de forma direta, nos atos cotidianos, quanto através das mídias tradicionais -temos no Brasil um sem número de emissoras de televisão e rádio estritamente religiosos, além de espaços comprados em emissoras laicas. Além disso, os discursos intolerantes circulam pelas chamadas novas mídias, cujo maior expoente são as redes sociais, especialmente no que diz respeito à laicidade do Estado, ao direito da população LGBTT (Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais e Transgênicos) e ao ensino religioso nas escolas. Uma pesquisa de opinião realizada pela Fundação Perseu Abramo (www.fpabramo.org.br), em 2008, revelou que “gente que não acredita em Deus” provoca repulsa e ódio em 17% da 41 Religião. Fé e Modernidade Universidade Santa Cecília - Educação a Distância população brasileira e antipatia em 25%. Os números se equiparam ao sentimento provocado por usuários de drogas. Outra pesquisa realizada pela mesma instituição, em 2010, mostrou que 63% dos brasileiros nunca votariam em um candidato ateu, e 12% dificilmente votariam (Filla e Fantini, 2016). Por outro lado, a intolerância também se dá por outra via, partindo daqueles que não creemem direção àquele que crê, provocando um discurso antirreligioso. Uma das principais formas de ação dos ateus e agnósticos para expressar suas ideias é a exposição na mídia, principalmente nas redes sociais, que por vezes caracteriza-se pelo ataque ao religioso por meio do humor e da agressividade, assumindo uma posição de menosprezo em relação à religião (Silva, 2012).As novas mídias são o principal campo dessa luta e, nessa tentativa de se afirmar perante a maioria religiosa, o descrente acaba recorrendo, muitas vezes, à mesma intolerância da qual se queixa para legitimar sua liberdade de descrer (Filla e Fantini, 2016). Porém, em alguns casos, o campo ateu se articula em torno de pautas mais concretas, que evidenciariam o fato da laicidade do Estado não ser plena no caso brasileiro. Exemplo disso seria a utilização de cruzes ou símbolos católicos em órgãos públicos, ou mesmo dentro das três esferas de poder, como é o caso do Poder legislativo. Fonte: https://www12.senado.leg.br/institucional/presidencia/img/copy_of_Tofolli_capa01.jpg Diante desse contexto, marcado pela dialética do avanço das práticas religiosas e do aumento do movimento articulado por ateus e agnósticos, emerge a questão da intolerância, que circula em ambas as direções. Argumenta-se assim pela existência (ou do surgimento) de um discurso fundamentalista que parte também do campo ateu ou agnóstico, quanto apoiando-se nos resultados da ciência se proclamam além dos limites de 42 Religião. Fé e Modernidade Universidade Santa Cecília - Educação a Distância competência das próprias ciências, e ousam pronunciamentos filosóficos, até metafísicos, sobre assuntos que, metodologicamente, jazem fora do seu campo de pesquisa (Paine, 2010). Apesar do surgimento do conceito de fundamentalismo estar associado ao campo cristão em sua origem, ele posteriormente se espalhou. Ainda que contemporaneamente ele seja mais associado, até pelo senso comum e pela propagação de estereótipos, a religiões orientais, tal como o islã, debate-se a pertinência dele ser aplicado também ao campo ateu e agnóstico, que vem crescendo, como reflexo de um processo limitado de secularização. Almeida, M.R.H.2005. Religião e modernidade: algumas conclusões acerca do processo de secularização no ocidente. Cadernos de Campo: Revista de Ciências Sociais, n. 11; Berger, P. 1999. (org.) The desecularization of the world: resurgment religion and world politics. Washington D.C.: Ethics and Public Policy Center; GrandRapids, Michigan: Willian B. Eerdmans Publishing Company; Burity,J. A2008. Religião, política e cultura. Tempo Social, 20(2), 83-113. Recuperado em 7 de abril, 2014, de www.scielo.br/scielo.php?pid=S0103- 20702008000200005&script =sci_arttext; Filla, M. G., &Fantini, J. A. (2016). A construção mutual de discursos intolerantes: ateus, agnósticos e religiosos. 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