Baixe o app para aproveitar ainda mais
Prévia do material em texto
GESTÃO DE POLÍTICAS PÚBLICAS AULA 5 Prof. Paulo Nascimento Neto 2 CONVERSA INICIAL Análise de políticas públicas Ao concluirmos os estudos das etapas do agir público, passaremos agora a um nível mais profundo de reflexões sobre a gestão de políticas públicas. Para podermos realizá-lo de forma científica e consistente, partiremos de modelos teóricos de análise de políticas públicas que, elaborados com base em estudos efetivos de situações reais, nos permitem extrair questões e variáveis essenciais a serem consideradas, para que possamos enxergar de forma mais clara o cenário complexo no qual se insere a agenda pública e a produção de respostas pelo Estado. Passaremos por diferentes modelos e suas estruturas fundamentais, chegando, ao final desta aula, na análise crítica da Reforma da Previdência, desenvolvida no Brasil em 2009, a partir de diferentes aportes teóricos. Desejamos a você um excelente estudo! TEMA 1 – MODELOS ANALÍTICOS: ELEMENTOS INTRODUTÓRIOS Uma das vertentes de estudo do campo de políticas públicas é denominada análise de políticas públicas (policy analysis) e se volta à compreensão não apenas do conteúdo de uma política pública, mas de como se estruturam os processos decisórios e de formação da agenda pública, em um nível mais profundo de compreensão dessas dinâmicas. Para poder instrumentalizá-lo, trabalhamos com modelos teóricos de base, ou seja, modelos de simplificação da realidade e da vida política que permitem analisar um grupo privilegiado de elementos, considerados fundamentais por cada modelagem. Veja que, inclusive, utilizamos de um desses modelos (ciclo da política pública) para estruturar nossas aulas anteriores, organizando os estudos em etapas do processo de agir público. O ciclo da política pública é reconhecido como um modelo heurístico que nos auxilia na ordenação didática das etapas, mas com pouca capacidade explicativa. Há modelos mais robustos, produzidos em gerações posteriores de estudos, que podem nos ajudar na compreensão dos motivos pelos quais decisões públicas são tomadas, quais seus impactos e por que elas são alteradas ao longo do tempo (Dye, 2009; Souza, 2006). 3 Esses modelos podem partir de diferentes pressupostos. Um elemento fundamental é a perspectiva de interpretação do processo de tomada de decisão. Adotaremos aqui a perspectiva da racionalidade limitada dos gestores públicos, entendendo que os gestores públicos buscarão a melhor alternativa, pesando custos e benefícios, mas em um contexto isento de neutralidade, restringido por questões de natureza cognitiva, de tempo e de recursos (financeiros, materiais e humanos). Essa perspectiva, chamada pós-positivista, parte, em essência, do entendimento que não há um objetivo inquestionável e único dos problemas públicos e de suas soluções, mas sim um atendimento de critérios e condições possíveis e desejáveis naquele momento (Howlett; Ramesh; Perl, 2013; Thissen; Walker, 2013). Dentro do caleidoscópio de modelos existentes, selecionamos em nosso curso quatro deles, que constituem o grupo de modelos amplamente utilizados em estudos contemporâneos de policy analysis, quais sejam: modelo da lata de lixo, modelo dos fluxos múltiplos, modelo do equilíbrio pontuado e modelo de Coalizão de Defesa. A partir da compreensão de seus elementos de base, você poderá inclusive adaptá-los à sua necessidade no cotidiano da gestão pública. TEMA 2 – MODELO DA LATA DE LIXO Desenvolvido na década de 1970 por Cohen, March e Olsen (1972), o modelo da lata de lixo (garbage can) utiliza a metáfora de uma cesta de lixo na qual políticas públicas são aleatoriamente selecionadas e passam a formar a agenda pública. Para os autores, as decisões públicas se caracterizam por um processo desestruturado e quase acidental de confluência entre problemas públicos, alternativas de soluções, oportunidades e interação entre autores. Em uma leitura polêmica das instituições e de seu comportamento, os autores afirmam que: Ainda que seja conveniente imaginar que oportunidades de escolha levem primeiro à criação de alternativas de decisão, que são seguidas do exame de suas consequências, e então da avaliação objetivo de seus impactos e, finalmente, a uma decisão, esse tipo de modelo, via de regra, é uma descrição pobre do que realmente ocorre. No modelo da lata de lixo, de outro lado, a decisão é um resultado ou interpretação de diversos fluxos relativamente independentes dentro da organização. (Cohen; March; Olsen, 1972, p. 2-3, tradução nossa) A atenção, então, passa a ser direcionada para quatro fluxos – problemas, soluções, participantes e oportunidades de escolha – que se articulam e geram 4 condições específicas nas quais as decisões são tomadas. No fluxo dos problemas, temos as preocupações consideradas pelos governos, que podem ser geradas interna ou externamente à esfera pública, abrangendo desde percepções individuais até temas pautados pela mídia. Por conseguinte, no fluxo das soluções temos não apenas respostas a determinados problemas, mas também respostas procurando por uma pergunta. Essa é uma questão importante no modelo da lata de lixo, pois, conforme Cohen, March e Olsen (1972), dificilmente saberemos precisamente a pergunta que motivou a resolução de um problema antes que você tenha resposta. Esses dois fluxos são influenciados pelos participantes da arena decisória, que variam conforme as características das escolhas a serem feitas. Dessa forma, a quantidade de tempo e dedicação demandada influenciam decisivamente no número e na tipologia de atores presentes. Por fim, há momentos específicos em que são geradas o que os autores chamam de oportunidades de escolhas, ou seja, momentos que ensejam tomadas de decisão ou mesmo mudanças de rumo. Isso pode ocorrer, por exemplo, em momentos de alternância da alta cúpula decisória, da assinatura de contratos ou de redistribuição de responsabilidades entre os participantes. Como parte de uma lógica não estruturada de tomada de decisão, seus pressupostos podem ser, em uma primeira leitura, de difícil compreensão. Contudo, por meio de diferentes análises estatísticas, os criadores desse modelo demonstraram que a maior parte das decisões tomadas não tem relação direta com a resolução específica de um problema, mas ocorrem um ambiente de negociação diverso de uma leitura simplista de escolha racional da solução. Ao longo de sua jornada profissional, provavelmente você já deve ter se deparado com alguma proposta considerada tecnicamente excelente pela equipe de trabalho, bem fundamentada, mas que, após ser apresentada para debate acabou desconfigurada e, por vezes, sequer chegou a ser efetivada. Essa dinâmica, mais comum do que pensamos, evidencia a natureza pouco estruturada de muitos processos decisórios, nos impondo desafios de diferentes ordens. Sem adentrar nos detalhes desses desafios, que desviam de nosso foco nesta aula, devemos destacar que esse modelo gerou elementos de reflexão consistentes que possibilitaram aperfeiçoamentos futuros, dando origem, inclusive, ao modelo dos fluxos múltiplos de John Kingdon, que estudaremos no tópico a seguir. 5 TEMA 3 – MODELO DOS FLUXOS MÚLTIPLOS Com base no modelo da lata de lixo, o cientista político norte-americano John Kingdon (1995) propôs um aperfeiçoamento de seus elementos de suporte após uma extensa pesquisa com os servidores públicos de alto nível hierárquico dos Estados Unidos nas áreas de Saúde e Transporte. Em sua proposição, denominada modelo dos fluxos múltiplos (Multiple Streams), o autor estabelece uma ordenação do processo de agir público segundo três fluxos independentes, quais sejam: (i) o fluxo dos problemas (problems); (ii) o fluxo da dinâmica política (politics); e o (iii) fluxo das soluções (policies). Em contraposição ao modeloda lata de lixo, a dimensão dos participantes passa a não conformar um fluxo específico, compondo diferentes grupos de interesse e comunidades que estão presentes em cada um dos três fluxos previamente citados, articulando justamente problemas e soluções. Ademais, os participantes também passam a incorporar uma das variáveis do fluxo da dinâmica política, particularmente relativa aos eventos políticos (vamos retomar posteriormente este ponto). No primeiro fluxo – problemas –, estão presentes os debates sobre os elementos responsáveis por incluir um problema na agenda governamental. Partindo do pressuposto de que os tomadores de decisão não conseguem se concentrar simultaneamente em todas as questões demandadas, apenas um número restrito de condições socialmente percebidas passa a conformar um problema público1. Esse processo é influenciado, basicamente, por três mecanismos, a saber: 1. Indicadores, que evidenciam a gravidade de determinada condição, possibilitando interpretá-lo desde uma perspectiva que sensibilize os formuladores de políticas públicas. Como exemplo recente, podemos mencionar os dados do Índice de Desenvolvimento Humano e como eles influenciaram as políticas de educação e assistência social no Brasil ao longo das duas últimas décadas. 2. Eventos e crises relacionados à ocorrência de eventos de grande magnitude, que tendem a reforçar a percepção de um problema e pressionam o poder público para incluí-lo ou alterar seu grau de prioridade 1 Sugerimos aqui retomar o estudo sobre as distinções entre condições e problemas públicos, explorado em aulas anteriores. 6 na agenda governamental. Como exemplo recente, podemos citar a tragédia ocorrida em uma casa noturna na cidade de Santa Maria (RS), em 2013. A partir desse evento trágico, houve uma ampliação substancial das atividades de fiscalização do Corpo de Bombeiros e das equipes municipais, de diferentes estados, para ampliar o controle do licenciamento e operação de casas noturnas. Outro exemplo atual é o avanço da pandemia de Covid-19 e como ela tem alterado as políticas de assistência social no Brasil, promovendo, inclusive, programas de transferência direta de renda aos trabalhadores informais, um tema que historicamente está na pauta de movimentos sociais, mas que antes não tinha se viabilizado no país. 3. Feedbacks de ação governamental, diretamente vinculados aos aspectos que estudamos nas aulas anteriores. A partir do monitoramento dos gastos públicos e da efetividade do cumprimento de metas, determinados problemas públicos adquirem maior atenção dos formuladores de políticas públicas. O caso da Reforma da Previdência é um exemplo desse tipo de mecanismo, em que os indicadores de déficits do sistema previdenciário, articulado aos debates sobre a insustentabilidade do modelo anteriormente vigente, fomentaram a proposição e aprovação de reformas. No segundo fluxo – soluções –, nos concentramos na análise das alternativas que são socialmente reconhecidas como adequadas para intervir sobre determinados problemas públicos. No modelo de Kingdon (1995), esse fluxo ocorre de forma independente do anterior e, não necessariamente envolve os mesmos atores. As soluções tendem a ser gestadas em ambientes específicos (o que ele denomina comunidades de políticas públicas), nos quais as ideias mais aderentes aos valores socialmente compartilhados e com adequada viabilidade técnica e financeira se sobressaem. Como metáfora, o autor utiliza a ideia da seleção natural de Darwin, na qual apenas um conjunto muito restrito de proposições vence esse processo e é efetivamente considerado pelos tomadores de decisão. Já no terceiro fluxo – dinâmica política –, são colocadas em evidência as articulações e as interações próprias da arena política, com tempos e dinâmicas diversas da consolidação dos problemas públicos e definição de soluções viáveis. Os principais mecanismos de influência nesse fluxo são: (i) as mudanças 7 governamentais, sejam de cargos estratégicos ou mesmo da alternância de governo; as (ii) forças políticas, que podem se arranjar e alterar a correlação de apoios e resistências contra determinadas pautas; e (iii) o clima nacional, representado pela tendência de convergência da atenção pública em determinados momentos para determinados problemas públicos. A interação desses fluxos é um aspecto central do modelo dos fluxos múltiplos, tendo como ponto de atenção o que Kingdon (1995) chama de janela política, quando verificamos uma convergência na qual uma condição socialmente percebida atinge o patamar de problema público, há uma solução socialmente reconhecida como adequada e há disposição política para a tomada de decisão (figura 1). Figura 1 – Representação esquemática do modelo de fluxos múltiplos Fonte: Nascimento Neto, 2020. Uma característica essencial dessas janelas é justamente sua natureza transitória, podendo se desarticular tanto por alterações em qualquer um dos fluxos quanto por aberturas periódicas, como o final de mandatos eleitorais e o encerramento de ciclos orçamentários. Para Capella (2005), a estrutura fluida e a negação de regras diretas de causa e efeito são elementos marcantes desse modelo, que nos permite interpretar o processo político a partir de um conjunto de lentes que captura a dinâmica da política pública frente a um cenário incerto e ambíguo, comumente presente nesse campo. TEMA 4 – MODELO DO EQUILÍBRIO INTERROMPIDO Os dois modelos que estudamos anteriormente se concentram na articulação de fluxos de problemas e soluções e como esses interagem na conformação das políticas públicas. Divergindo em parte dos pressupostos de 8 organização, o modelo do equilíbrio interrompido (punctuated equilibrium) também parte da ideia de racionalidade limitada do gestor público, mas se apresenta como uma alternativa entre a concepção de incrementalismo nas políticas públicas (alterações graduais) e de seus críticos, organizando um modelo teórico que articula períodos de estabilidade, interrompidos ocasionalmente por mudanças de maior magnitude. Criado em 1993 por Baumgartner e Jones (2010) após avaliação dos períodos de estabilidade e instabilidade nas políticas americanas, o modelo foi aperfeiçoado por estudos subsequentes dos mesmos autores na Bélgica e na Dinamarca (Baumgartner et al., 2009), e por outros autores em diferentes contextos, como John e Bevan (2012), no Reino Unido. Suas reflexões partem dos estudos de sistemas complexos econômicos e dos processos evolutivos biológicos para defender que as políticas públicas tendem a se manter constantes por longos períodos, intercalados por transformações rápidas e significativas. Nesse contexto, instituições são elementos importantes, pois têm papel crucial na delimitação do conjunto de participantes políticos dentro de um processo. Dentro delas, os padrões de articulação entre diferentes atores e grupos de coalizão, motivados por interesses específicos, auxiliam na identificação de alterações ou consolidações de determinadas agendas públicas. Como bem sintetizado por John (2006, p. 180), “atores individuais e seus interesses são cruciais. A mudança nas agendas é dirigida pelo caminho a partir do qual o sistema político premia alguns enquanto exclui outros”. Para os autores, como os tomadores de decisão não conseguem lidar com todos os problemas existentes e soluções disponíveis, sua atuação tende a se assemelhar a de um malabarista, que procura articular um amplo espectro de questões, por vezes concorrentes, na formação da agenda pública. Esses padrões de restrição de recursos, tempo e conhecimento induzem gestões mais conservadoras, com a proposição de apenas pequenas modificações de caráter incremental. Apenas em momentos específicos, nos quais háum ambiente político propício e relações de custo-benefício vantajosas para buscar novas soluções, veremos transformações mais substanciais nas políticas públicas (Baumgartner et al., 2009; Robinson, 2006). Um conceito interessante deste modelo é a ideia de fricção institucional, segundo a qual o fluxo de informação dentro do subsistema de uma política 9 pública tende a encontrar resistência (portanto, gerando fricção) ao buscar se ajustar dentro de uma estrutura institucional previamente existente. Temos, por exemplo, questões específicas de imperfeição no desenho organizacional de instituições públicas, problemas nos procedimentos operacionais, na cultura organizacional e, inclusive, da própria organização cognitiva dos seres humanos, que tendem a buscar estabilidade e certa previsibilidade das ações, gerando resistência a políticas públicas desenhadas de forma disruptiva (Jones; Baumgartner, 2012). A maior limitação desse modelo está no seu direcionamento na identificação das magnitudes das mudanças, relegando ao segundo plano o debate dos fatores que supostamente motivaram essas transformações (Weimer; Vining, 2011). Isso não significa dizer que esse modelo não possui relevância em nossos estudos, mas sim que, em nossa prática cotidiana da gestão pública, sua pertinência é muito maior enquanto instrumental de compreensão desse processo evolutivo de produção de políticas públicas. TEMA 5 – MODELO DE COALIZÃO DE DEFESA O último modelo que estudaremos tem sido reconhecido como o mais utilizado para estudos de políticas públicas no contexto contemporâneo internacional, particularmente em casos nos quais há discordância quanto aos objetivos a serem alcançados e às técnicas a serem adotadas, envolvendo diversos atores de diferentes níveis governamentais, grupos de interesse, instituições de pesquisa e a mídia (Weible; Sabatier, 2007). Desenvolvido por Sabatier e Jenkins-Smith na década de 1980, o modelo de coalizão de defesa (advocacy coalition framework) buscou avançar sobre as lacunas existentes nos modelos previamente disponíveis na literatura, articulando abordagens top-down e bottom-up e dando particular importância ao conhecimento técnico-científico no processo político. A unidade básica, nesse contexto, é o subsistema da política pública, no qual estão em destaque o problema objeto da política pública, os atores envolvidos na tomada de decisão e os grupos envolvidos com o tema em questão. Ao mesmo tempo, o modelo também leva em consideração a influência de eventos, estruturas institucionais e fatores socioeconômicos externos a esse subsistema (Sabatier; Jenkins-Smith, 1999). Esse subsistema da política pública está inserido em contextos geográficos e temáticos específicos, que, por consequência, conformam um 10 grupo determinado de participantes, de diferentes níveis governamentais, grupos de interesse, instituições de pesquisa e da mídia. O interessante nesse modelo é o que os atores não são vistos a partir de seus vínculos institucionais (setor público, academia, sociedade civil etc.), mas desde suas ideias e como se articulam em coalizões de defesa. Essas coalizões geralmente envolvem atores de diferentes setores, mas com crenças comuns. O modelo, originalmente concebido na década de 1980, passou por revisões e complementações no final das décadas de 1990 e, posteriormente, nos anos 2000 (Sabatier; Jenkins-Smith, 1999; Weible; Sabatier, 2007), chegando à forma final apresentada na figura 2. Figura 2 – Modelo de Coalizão de Defesa Fonte: Nascimento Neto, 2020. Conforme falamos anteriormente, a ideia de coalizão de defesa é central na compreensão desse modelo, podendo ser entendido como o conjunto de indivíduos de diferentes posições (atores políticos, profissionais de órgãos oficiais, líderes de grupos de interesse, pesquisadores, ativistas, jornalistas etc.), que compartilham de um sistema de crenças e demonstram um grau coordenado de atividades. Essas coalizões buscam defender suas pautas de interesse por meio do exercício de influência em cinco diferentes frentes: (i) sobre os legisladores, por meio de contribuições de campanha e declarações de apoio, 11 para modificar o orçamento e o poder de determinadas agências; (ii) sobre a definição dos titulares de determinados cargos, sobretudo nomeados para o alto escalão; (iii) sobre os meios de comunicação, com vistas a influir sobre a opinião pública; (iv) por meio de manifestações e boicotes, de forma a alterar o comportamento do grupo-alvo de determinada política; e (v) por meio de pesquisas sobre a percepção dos grupos envolvidos em uma política pública, intentando transformá-la gradativamente (Sabatier; Jenkins-Smith, 1999). Essas ações se processam em um contexto, representado no modelo por duas categorias. A primeira, relativa aos parâmetros relativamente estáveis, se refere aos valores socioculturais fundamentais, à estrutura social e ao desenho constitucional fundamental, que delimitam a definição do problema, restringem os recursos disponíveis, estabelecem um sistema mínimo de valores e crenças e definem regras e procedimentos para que se promovam alterações nas políticas públicas. Devido à resistência de mudança, esses parâmetros usualmente são considerados como fixos pelos atores inseridos em um subsistema de política pública. A segunda categoria, relativa aos eventos externos, engloba os impactos de outros subsistemas e as mudanças mais significativas nas condições socioeconômicas e nas coalizões governamentais, e podem atrair a atenção pública e, consequentemente, ampliar ou reduzir o direcionamento de recursos e disposição política para determinada política. Um aspecto central desse modelo é a concepção de indivíduo adotada. De forma semelhante aos demais modelos que estudamos, aqui também a ideia de racionalidade limitada dos gestores públicos é adotada, contudo, a partir de uma estrutura cognitiva particular. Para Weible e Sabatier (2007), os indivíduos tendem a ignorar informações que conflitem com suas crenças e ao mesmo tempo tendem a absorver sem maiores resistências informações que as reforcem. Ademais, há uma tendência maior de recordar eventos de perdas do que momentos de vitórias, estabelecendo uma espécie de aversão emocional aos adversários políticos e desestimulando um pensamento mais racional. Em outras palavras, nesse modelo somos convidados a considerar o arcabouço psicológico e emocional dos atores inseridos dentro do subsistema da política pública, pois eles interferem nos movimentos de cooperação ou conflito e, em última instância, conformam as coalizões de defesa. Sabatier e Jenkins-Smith (1999) tratam essa questão em três níveis de crenças individuais. No nível mais profundo, estão as convicções ontológicas 12 fundamentais e que possuem grande resistência à mudança, como a opção religiosa e o posicionamento entre direitos individuais e direitos sociais. Em um nível intermediário, essas crenças são mediadas por aquelas específicas de uma política pública, envolvendo o conjunto de crenças empíricas, compromissos normativos básicos e percepções de relações causa-efeito, como o adequado grau de distribuição de poder entre governo e mercado. Por fim, em um nível mais superficial estão as crenças secundárias, relacionadas a aspectos específicos de uma política pública e mais suscetíveis às mudanças. São esses níveis de crenças que vão influenciar a perenidade das coalizões de defesa e nas alterações realizadas nas políticas públicas, estimuladas, entre outros aspectos, pelo acúmulo de conhecimento técnico- científico (que pode alterar a compreensão de um fenômeno) e pelo acontecimento de eventos traumáticos (que apontem para a inviabilidade de manutenção do desenho atual). Vemos por meio dessa breve explicação do modelo que o grande número de variaçõese relações busca justamente estruturar um conjunto de dimensões que expressam a complexidade da gestão de políticas públicas. Sua compreensão com base em diferentes subsistemas, articulados a um contexto maior e pautados por sistemas de crenças e valores é uma contribuição fundamental desse modelo, que nos permite olhar para o cotidiano da gestão pública não mais pela divisão tradicional de atores do Estado e de fora dele, mas sim a partir de diferentes coalizões de interesse, formadas por atores diversos ao redor de um mesmo conjunto de crenças e preferências. NA PRÁTICA Em aulas anteriores, elegemos como caso de estudo prático a Reforma da Previdência aprovada em 2019 no Brasil, com vistas a ilustrar os conceitos de políticas de Estado versus políticas de governo e os processos de formulação de políticas públicas em um contexto de autonomia relativa do Estado. Você se recorda? Sugerimos reler brevemente aquelas reflexões para retomá-las, pois, a partir delas, podemos avançar em uma compreensão mais profunda desde os conceitos e modelos estudados nesta aula. Caberá a nós, como profissionais do contexto da gestão pública, adotarmos as lentes que melhor nos instrumentalizam para enxergar a realidade. Por isso, como exercício analítico, faremos uma leitura sintética com base em 13 três modelos: o modelo dos fluxos múltiplos, o modelo do equilíbrio interrompido e o modelo das coalizões de defesa. Como cada um deles nos ajuda a enxergar a realidade? Acompanhe na sequência! Ao entendermos o processo de aprovação da Reforma da Previdência a partir dos aportes teóricos do modelo dos fluxos múltiplos, naturalmente somos levados a nos recordar do conceito de janela política, de forma que mudanças estruturais em determinadas políticas públicas apenas ocorrem quando há convergência entre os fluxos do problema, da solução e da dinâmica política. E, de fato, ao olharmos para a conjuntura existente em 2019, veremos o início de um novo governo, a proposição de uma nova configuração de solução e um processo intensivo de legitimação de uma leitura específica do sistema de previdência social brasileiro, economicamente deficitário. A conjugação desses fluxos, em um momento particular, possibilitou a consecução da reforma pretendida. No contexto atual, seria possível aprová-la? É difícil prevermos, mas, no mínimo, podemos afirmar com certo grau de certeza que as resistências seriam maiores e que o capital político exigido seria muito superior. Paralelamente a esta leitura, ao olharmos essa política pública desde a teoria do equilíbrio interrompido, veremos que em um curto espaço de tempo se operou uma mudança significativa da política de previdência social, após um longo período de pequenas mudanças incrementais. Novamente, retoma-se agora um período em que não há maiores expectativas de mudanças nessa política. Há, contudo, diversas dificuldades de implementação das mudanças aprovadas, levando, inclusive, a uma fila de agendamentos para solicitação e análise do benefício. Essas resistências de encaixe entre o novo modelo delineado e a estrutura institucional vigente nos faz recordar da ideia de fricção institucional e como ela pode interferir nos resultados esperados de uma política pública. Por fim, por meio do modelo de coalizão de defesa podemos identificar claramente como os indivíduos se organizaram em grupos de interesse, segundo pautas específicas, extrapolando a leitura de atores do estado e de fora dele. Assim, por exemplo, as categorias de militares ou professores dispunham de representantes de seus interesses no processo legislativo, no meio técnico- científico e na estrutura do Estado, pressionando para alterações na proposição inicial do governo. Ao mesmo tempo, os argumentos defendidos pelo governo 14 para promover a reforma também encontravam ressonância em parte do corpo legislativo, em outro grupo de representantes do meio técnico-científico e, obviamente, na estrutura do Estado. Essas tensões evidenciam a limitação da mera divisão conceitual entre atores do poder público e da sociedade civil para enxergarmos como se operam os mecanismos de influência e pressão sobre a agenda pública. O papel das ideias e de como os sistemas de crenças se articulam, por sua vez, se reveste de grande importância. FINALIZANDO A compreensão dos diferentes modelos teóricos de policy analysis nos permite alçar a um nível superior de debate e compreensão dos processos de formulação de políticas públicas. Passamos a dominar não apenas aspectos técnicos e operacionais do cotidiano da gestão pública, mas também aspectos intangíveis desse processo, que nos revelam pistas de como operam as arenas de negociação e conflito no qual as políticas públicas são permanentemente pactuadas e alteradas. A partir desses aportes teórico-conceituais reunidos ao longo desta e das aulas anteriores, passaremos ao estudo específico de diferentes políticas de desenvolvimento no contexto brasileiro. Nos vemos na próxima aula! 15 REFERÊNCIAS BAUMGARTNER, F. R. et al. Punctuated Equilibrium in Comparative Perspective. American Journal of Political Science, v. 53, n. 3, p. 603-620, July 2009. BAUMGARTNER, F. R.; JONES, B. Agendas and Instability in American Politics. Chicago: University of Chicago Press, 2010. CAPELLA, A. C. N. Formação da Agenda Governamental: perspectivas teóricas. XXIX Encontro anual da ANPOCS. Anais... Porto Alegre: UFRGS, 2005. COHEN, M.; MARCH, J.; OLSEN, J. A Garbage Can Model of Organizational Choice. Administrative Science Quarterly, v. 17, n. 1, p. 1-25, 1972. DYE, T. R. Understanding Public Policy. Boston: Longman, 2009. HOWLETT, M.; RAMESH M.; PERL, A. Política pública: seus ciclos e subsistemas – uma abordagem integradora. Rio de Janeiro: Elsevier, 2013. JOHN, P. Analyzing Public Policy. London: Continuum, 2006. JOHN, P.; BEVAN, S. What Are Policy Punctuations? Large Changes in the Legislative Agenda of the UK Government, 1911–2008. The Policy Studies Journal, v. 40, n. 1, p. 89-107, 2012. JONES, B. D.; BAUMGARTNER, F. R. From There to Here: Punctuated Equilibrium to the General Punctuation Thesis to a Theory of Government Information Processing. The Policy Studies Journal, v. 40, n. 1, p. 1-19, 2012. KINGDON, J. Agendas, Alternatives, and Public Policies. New York: Harper Collins, 1995. NASCIMENTO NETO, P. Gestão de políticas públicas: conceitos, aportes teóricos e modelos analíticos. Curitiba: Intersaberes, 2020 (no prelo). ROBINSON, S. E. Punctuated Equilibrium Models in Organizational Decision Making. In: MORCOL, G. (Ed.). Handbook on Human Decision-Making. Flórida: CRC Press, 2006. SABATIER, P. A.; JENKINS-SMITH, H. C. The Advocacy Coalition Framework: an Assessment, In: SABATIER, Paul A. (Org.). Theories of the Policy Process. Colorado: Westview Press, 1999. 16 SOUZA, C. Políticas públicas: uma revisão de literatura. Sociologias, ano 8, n. 16, p. 20-45, jul./dez. 2006. THISSEN, W. A. H.; WALKER, W. E. Public Policy Analysis: New Developments. Boston: Springer, 2013. WEIBLE, C. M.; SABATIER, P. A. A Guide to the Advocacy coalition framework. In: FISCHER, F.; MILLER, G. J.; SIDNEY, M. S. Handbook of Public Policy Analysis: Theory, Politics and Methods. New York: CRC Press, 2007. WEIMER, D. L.; VINING, A. R. Policy Analysis: Concepts and Practice. Boston: Pearson, 2011.
Compartilhar