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Universidade, Democracia e Combate ao Neofascismo Neoliberal
Graça Druck, Denise Vieira, Luiz Filgueiras1
O que significa exatamente formação? Antes de
mais nada, como a própria palavra indica, uma relação
com o tempo: é introduzir alguém ao passado de
sua cultura (no sentido antropológico do termo, isto
é, como ordem simbólica ou de relação com o ausente),
é despertar alguém para as questões que esse
passado engendra para o presente, e é estimular a
passagem do instituído ao instituinte.(...)
(...) a autonomia deve ser pensada,
como autodeterminação das políticas acadêmicas,
dos projetos e metas das instituições
universitárias e da autônoma condução administrativa,
financeira e patrimonial.(...)
(...) a autonomia
universitária só será efetiva se as universidades
recuperarem o poder e a iniciativa de
definir suas próprias linhas de pesquisa e prioridades,
em lugar de deixar-se determinar externamente
pelas agências financiadoras.(...)
(Marilena Chaui)
A Universidade no contexto neoliberal
O “Curso de Extensão Movimento Popular e Direito à cidade: uma abordagem
formativa” colocou em prática as afirmações de Marilena Chaui que abrem esse texto.
Uma experiência que reuniu professores, lideranças de movimentos populares e
profissionais de órgãos públicos, comprometidos em construir uma atividade de
formação que combinasse os conhecimentos acumulados de uns e outros. E assim foi
feito. De forma autônoma e livre, o curso foi concebido em parceria da universidade
com os participantes dos movimentos e organizações. Um rico exemplo do que uma
universidade autônoma, livre e democrática pode fazer, apesar de todas as dificuldades
que o atual modelo de sociedade lhe impõe.
A Universidade pública é um lugar de encontro, de convergências e
divergências, de aprendizagem, de troca, de produção científica e de conhecimento. É
nela que se forma grande parte das profissões das mais diferentes áreas. É na
universidade pública que a educação atinge o nível mais elevado de sua perspectiva
emancipatória.
A universidade sempre teve um papel central na construção das sociedades
democráticas. E nas não democráticas também, pois, via de regra, constitui um dos
principais espaços de resistência e de luta, mesmo quando são colocadas em questão
pelos governos autoritários. É o que se vive hoje no Brasil.
1 Respectivamente, Professora Titular da FFCH/UFBA, Professora Adjunta do IHAC e Pró-reitora de
Pessoas da UFBA, Professor Titular da Faculdade de Economia/UFBA.
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Nos últimos 40 anos, o capitalismo sofreu muitas transformações. É a era da
“acumulação flexível”, sob a hegemonia de um processo de financeirização inédito na
história, cuja lógica subordinou todas as esferas da sociedade, redefinindo o modo de
trabalho e de vida, marcados pela volatilidade, efemeridade e descartabilidade de
homens e mulheres que trabalham. Um capitalismo globalizado e dominado pelas
finanças, que colocou o desemprego nos mais altos patamares em todo o mundo e que
fez da precarização do trabalho o centro da sua dinâmica.
Ao lado da globalização e da reestruturação produtiva, que estabelecem as
condições materiais e objetivas dessa fase do capitalismo, a dominância do
neoliberalismo cria as condições subjetivas para dar sustentação a essas
transformações. A essência política e ideológica do neoliberalismo, sustentada
fundamentalmente no “culto ao mercado”, foi impregnando quase toda a sociedade.
Assim, constata-se o reforço do individualismo em contraposição à ação coletiva;
estimula-se a concorrência de todos contra todos; eleva-se o mercado e as “coisas” à
condição de sujeitos soberanos; difunde-se uma visão privatista da sociedade em
contraposição a tudo que é público, negam-se os direitos sociais e do trabalho,
buscando transformar, de forma meramente ideológica, os trabalhadores em
empreendedores. E defende-se a inexorabilidade e a inevitabilidade dessa ordem
social, política e econômica.
Nesse contexto, o direito à educação se transformou em custo para o Estado,
com a redução progressiva dos recursos públicos para a educação pública. O mesmo
ocorreu com a saúde pública e a previdência social.
No caso do Brasil, a redução de verbas para a educação em geral, e para as
universidades em particular, se tornou permanente, sobretudo a partir da Emenda
Constitucional 95, votada em 2016, que congelou os gastos sociais por 20 anos, cujos
resultados têm sido penosos para toda a sociedade.
Em tempos neoliberais, para além da redução do financiamento público, as
Universidades Federais foram e têm sido pressionadas a “aderir” ao mercado, isto é, a
buscarem recursos no setor privado, subordinando-se a sua lógica. Aos poucos se
introduziu nas universidades públicas, a ideia de que elas devem ser “operacionais” e
agir como se fossem empresas privadas.
Desde os anos 1990, o Banco Mundial (BIRD) tem insistido, através de
documentos, programas e pressões aos governos, especialmente dos países periféricos
como o Brasil, sobre a necessidade de acabar com o ensino gratuito nas universidades,
proclamando que estas devem se autofinanciar, sem mais depender do Estado,
diagnosticando que as universidades desperdiçam recursos públicos. A última investida
do Banco Mundial, no documento “Um Ajuste Justo: Análise da Eficiência e Equidade
do Gasto Público no Brasil”, de 2017, propõe: 1- redução dos recursos destinados às
Universidades Federais, o que as obrigaria “redefinir a sua estrutura de custo e/ou
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buscar recursos em outras fontes”; 2- introdução de “tarifas” escolares (ensino pago);
3- financiamento para os estudantes que não puderem pagar as mensalidades
instituídas pelas Universidades Federais, tal como já ocorre com o FIES; bolsas de
estudos gratuitas para os estudantes mais pobres, através do PROUNI. (Filgueiras et al,
2017)
O argumento central para essas propostas é o necessário (e permanente) ajuste
fiscal. Este é um dos principais mantras do neoliberalismo para os países da periferia: a
crise fiscal do Estado, por gastar mais do que arrecada. É o que alguns autores
denominam de “sociedade da austeridade” (Ferreira, 2011), que significa, em síntese,
reduzir gastos sociais com funcionários e políticas públicas num quadro de “direito do
trabalho de exceção”. Em nome de um desequilíbrio das finanças públicas, a receita é
sempre a mesma: corte nos direitos sociais, como educação, saúde e previdência
social.
No entanto, o orçamento federal da união, que computa todas as receitas e
despesas do estado, mostra qual é a realidade dessa suposta crise fiscal. Isso porque
nos últimos três anos, mesmo após a Emenda 95 que congelou os gastos sociais, a
composição do orçamento federal executado para os anos de 2017, 2018 e 2019,
mostra que em média, 39% dos gastos do governo correspondem a pagamento de
juros e amortizações da dívida pública aos bancos. Enquanto que para educação foram
3,7%, para saúde 4,15%, para assistência social 3,34%, para a previdência social 25,13%
e para a ciência e tecnologia 0,24%, dentre outros gastos2 - em uma clara
demonstração que o desequilíbrio nos gastos do governo é provocado por essa fatia de
recursos públicos que é transferida ao sistema financeiro. Tal situação é que
compromete o orçamento público e não os gastos sociais.
A relevância das Universidades Federais brasileiras
As Universidades Federais, expressivo patrimônio público do Brasil, sem
correspondência entre os países do hemisfério sul, abriga 69 unidades em todo o
território nacional, cujo corpo docente altamente qualificado tem em torno de 70%
com doutorado. São dois Centros Federais de Educação Tecnológica (CEFETs), dois
Institutos Federais de Educação, Ciência e Tecnologia (IFETs) e 63 Universidades
Federais – localizadas em todos os estados da Federação e no Distrito Federal. Em
muitas regiões correspondem à única opção de ensino superior e cumprem, em todas,
relevante papel de indução do desenvolvimento econômico, social e cultural.
Nas Universidades Federais estudamcerca de um milhão de alunos de
graduação e de pós-graduação, em todas as áreas do conhecimento, e também alunos
de ensino fundamental e médio nos Colégios de Aplicação, escolas técnicas e agrícolas.
Além da formação de profissionais qualificados, produzem pesquisas e desenvolvem
tecnologias que contribuem para o crescimento do país e auxiliam a superação das
2 Ver orçamentos federais executados in: www.auditoriacidada.org.br
http://www.auditoriacidada.org.br
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desigualdades regionais. Os 45 hospitais universitários formam a maior rede pública
brasileira de saúde, que oferece atendimento gratuito e com qualidade a mais de
5.278.000 brasileiros por ano (www.andifes.org.br).
Uma instituição com um projeto de longa duração, delineado de forma
autônoma e assegurado pela Constituição, o que lhe confere a natureza de função de
Estado e não de governo. As Universidades Federais no Brasil são espaços
fundamentais de geração de conhecimento indispensável ao desenvolvimento do país,
se constituindo em um importante patrimônio nacional.
A integração de saberes gera, no âmbito da universidade, o desenvolvimento
crítico criativo fundamental para o progresso da ciência, da qualidade do ensino e
também do modelo de gestão, que possibilita à vida universitária ser conduzida pelas
melhores práticas democráticas e de combate ao autoritarismo, pautadas nos valores
republicanos, constituindo-se em um exemplo para toda a sociedade.
Do ponto de vista discente, o ingresso dos estudantes, através da política de
cotas, também foi transformando o ethos universitário, à medida que passou a
contemplar o acesso das classes populares à universidade gratuita e de qualidade,
oferecendo uma política de assistência estudantil, permanentemente atenta à
diversidade de raça, etnia, gênero e respectivas necessidades especiais de inclusão na
comunidade acadêmica.
No entanto, as Universidades Federais vêm sofrendo cortes e
contingenciamentos de verbas, que dificultam em muito o seu funcionamento. Para
além da suspensão de recursos de capital, para a infraestrutura e equipamentos, o
custeio da Universidade está comprometido. Uma situação que atinge diretamente o
segmento de servidores mais precarizados, mas que são indispensáveis para a sua
existência: os trabalhadores terceirizados. A dificuldade de manter a pontualidade no
pagamento das empresas intermediadoras de mão-de-obra, chamadas de prestadoras
de serviços, tem levado a demissões em massa, assim como vêm piorando as
condições de trabalho dos que permanecem.
O modo de financiamento é central para garantir a autonomia na produção do
conhecimento e na liberdade de discussão, de posicionamento frente à realidade
econômica, social, política e cultural. O financiamento público é decisivo para a
existência pública da Universidade. A educação pública é um direito que o Estado tem a
obrigação constitucional de sustentar.
Mais recentemente, após as eleições presidenciais de 2018, como podemos
compreender que essa instituição, de valor substantivo para a nação brasileira, passe a
ser colocada como alvo de ataques sistemáticos, que buscam negar sua missão, desviar
sua natureza pública para interesses privados, desqualificar seu corpo docente e
discente de forma caluniosa?
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A Universidade no “olho do furacão” e a resistência ao neofascismo neoliberal
A única maneira de responder a questão colocada é aprofundar a compreensão
das premissas, diretrizes e estratégias do governo atual e seus fieis seguidores - que
buscam deslocar completamente o papel das Universidades Federais, públicas,
gratuitas, laicas, de qualidade e socialmente referenciadas nas necessidades da maioria
da população. É importante ressaltar que essas tentativas encontraram e encontram
forte resistência, ao se confrontarem com o pensamento crítico e criativo, que emerge
naturalmente do debate fluente e permanente sobre a vida política e social que faz
parte da cultura da Universidade pública.
O Governo Bolsonaro, pautado pela reprodução de uma política neoliberal
errática de destruição das políticas sociais, dos direitos trabalhistas, da previdência
social, dos direitos das minorias, devastação do meio ambiente e da qualidade de vida
do povo brasileiro, é perpassado por dimensões fascistas presentes em todas as áreas,
presentes em todas as decisões governamentais. O olhar mais detido na natureza do
conjunto dessas ações pode lançar luzes sobre o fato das Universidades Federais terem
se transformado em alvo preferencial de ataque e desmonte.
Uma primeira dimensão estruturante do governo Bolsonaro é o ataque
permanente às instituições democráticas, embora o Presidente tenha tomado posse
jurando obediência à Constituição. Uma sequência de fatos, permeados de ataques,
culminou com uma manifestação de rua contra o Congresso Nacional e o Supremo
Tribunal Federal, pedindo o retorno do Ato Institucional nº 5, que contou com a
participação do Presidente da República, em um flagrante ato de desrespeito à
Constituição.
Nesse contexto político é que o sistema de consulta para escolha de Reitor nas
Universidades Federais, possivelmente um dos melhores exemplos de exercício
democrático, começou a ser questionado e desrespeitado pelo governo Bolsonaro.
Essa atitude tem raízes e referência no nosso modelo precário de democracia, que
afasta os representados de seus representantes, enquanto que, no âmbito
universitário, a consulta para Reitor aproxima a comunidade universitária do seu líder
maior, o que é reproduzido dentro das unidades acadêmicas.
Tal como nos governos fascistas, o modus operandi no Brasil, usa a mesma base
social patriarcal autoritária, cuja ordem moral é a família, a disciplina, o controle e a
punição (REICH,1988) que termina por atribuir, projetar em um líder, um herói, a
condução da vida e da liberdade. No âmbito desse padrão conservador, não é possível
exercer o protagonismo da própria vida em virtude de prisões psíquicas internas,
construídas social e historicamente, e que no Brasil está atravessado pela herança
escravagista e, mais recentemente, pela corrente religiosa neopentecostal - que
alienam em relação às necessidades fundamentais do ser humano e à visão da
realidade social e política.
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Essa atribuição de poder ao líder torna-se ilimitada, dando margem a todo tipo
de violência simbólica e até física, em uma prática social sustentada na violência
permanente, cega e generalizada, utilizando-se de uma comunicação permeada de
“fake news”, que promovem falsificações importantes dos fatos. Não há argumento
lógico, só chavões, imagens que acionam, rapidamente, atitudes impulsivas,
exacerbadas e agressivas por parte dos apoiadores. A conexão com o líder se torna
predominantemente emocional, impossibilitando o diálogo, o argumento lógico. A
lógica do discurso se faz, paradoxalmente, pela negação da própria lógica.
O resultado é uma espécie de processo de sugestão, contágio, de infecção
psíquica, por ideias que atribui ao indivíduo que a elas adere um poder invencível, que
faz com que ele ceda a instintos, que se livre da repressão dos seus impulsos
instintivos, inconscientes (nos quais se acha contido tudo de mal da alma humana). A
partir da exaltação e impetuosidade desmedidas, a ação do indivíduo desce vários
degraus na civilização, tornando-se um bárbaro (Freud, 1986); um processo de
alienação da natureza do ser em si, da própria vida! Segundo Freud, trata-se de uma
contaminação pela sugestão e pela condição de anonimato do indivíduo no meio da
massa. Nesse cenário as pessoas adotam, facilmente, condutas extremadas, ou seja, a
suspeita se transforma em certeza sem base nos fatos, antipatia em ódio selvagem.
Essa impetuosidade, indução direta da emoção, termina criando um bárbaro acrítico,
um ser exatamente oposto ao que se desenvolve no interior das comunidades
acadêmicas.
Com a matéria prima do pensamento crítico, criativo, que leva em conta a
diversidade de opiniões, o diferente, a Universidade Públicase opõe naturalmente a
esse tipo de psicologia de massas. Sendo espaço do pensar, da reflexão e do
desenvolvimento do conhecimento, gera seus próprios anticorpos e cria a base
necessária para a ação de resistência e combate ao obscurantismo! A Universidade é
ativa, é viva, mesmo quando enfrenta processos acadêmicos contraditórios na sua
trajetória de ensino e aprendizagem.
O aparato ideológico do governo, que emerge da pseudodemocracia vai se
materializar, então, na disseminação da negação da ciência, da cultura, da arte, dos
partidos políticos, dos movimentos sociais, e da esquerda no seu sentido mais amplo –
com o uso de estratégias de manipulação e alienação exercidas pelo poder autoritário
de características fascistas.
Assim, além da privatização e da financeirização, há um projeto de um governo
neofascista, que precisa destruir todos os campos que lhe fazem oposição. As
declarações do então Ministro da Educação expressam isso: “as universidades só fazem
balbúrdia, são controladas pela esquerda, só doutrinam, querem liberdade para
plantar maconha”, etc. Um conjunto de acusações falsas, irresponsáveis e que denotam
a raiva que o governo tem dos espaços de democracia e de autonomia, como o que as
universidades públicas oferecem. É um local de diversidade política, acadêmica,
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científica e teórica, no qual a liberdade de pensar, criticar e produzir conhecimento é
central. Além de ser uma instituição que deve estar em sintonia com as demandas
sociais da sociedade brasileira e não com os interesses privados.
No plano das ações concretas, cotidianas, o Ministério da Educação - MEC
emitiu ao longo de 2019 e continua a fazê-lo em 2020, inúmeros decretos e instruções
normativas visando alterar a essência do ensino superior e restringir financeiramente
sua capacidade de atuação com cortes e bloqueios orçamentários. O principal deles foi
o projeto Future-se, que pretendia atingir a essência acadêmica, entregando a gestão e
o financiamento das IFES para fundos privados, definindo as áreas prioritárias como as
ciências exatas e excluindo as humanidades, numa perspectiva empresarial do
conhecimento.
A Universidade pública em tempos de pandemia
Se o quadro descrito acima já era muito difícil para as universidades públicas e
para o conjunto da sociedade brasileira, que já vinham sofrendo as consequências de
um governo neofascista e neoliberal, a conjuntura que se abriu com a pandemia do
coronavírus é de extrema gravidade, descortinando uma tragédia sanitária e social no
país, sob a (i)responsabilidade do governo federal.
Presenciou-se a postura de um governo que insiste em opor a saúde e a vida
das pessoas à economia, acirrando a crise sanitária e da saúde, estimulando as
disputas politicas internas e aprofundando a crise política em meio aos efeitos
desastrosos da pandemia. Um governo que nega a ciência e o conhecimento produzido
por instituições credenciadas como a OMS, com aparições e declarações do Presidente
da República que desqualificam e ridicularizam as medidas tomadas e recomendadas, a
exemplo do isolamento social, que despreza as vitimas da pandemia, demonstrando
não ter qualquer empatia social.
Um governo que ameaça permanentemente as instituições democráticas e
radicaliza as políticas neoliberais, cujo espírito está presente nas medidas adotadas
frente à crise da pandemia, cujas ações emergenciais para socorrer aos mais pobres e
desprotegidos são insuficientes, com demora na liberação de recursos e atraso na sua
execução. Uma política de chantagem com os estados e municípios, retardando o
repasse de recursos e a suspensão das dívidas, indicador de um comportamento
genocida do governo federal. Ao lado da constante reafirmação do Ministério da
Economia sobre a necessidade de pautar e aprovar no Congresso a continuidade das
contrarreformas; especialmente a “Reforma Administrativa”, que tem por objetivo
redefinir o estatuto do funcionalismo público, numa perspectiva de reduzir o seu
número e adotar todo tipo de contrato flexível e precário - através da terceirização, de
organizações sociais, contratos temporários e outras modalidades afins, colocando fim
aos concursos públicos e ao Regime Jurídico Único.
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Enquanto isso, um Congresso Nacional, cuja maioria subserviente ao governo e
aos interesses do grande capital, vem aprovando pautas, através de medidas
provisórias e projetos de leis que penalizam drasticamente os trabalhadores. Trata-se
de uma defesa fundamentalista das políticas neoliberais, representado
destacadamente pelo Ministro da Economia, que tem como única resposta à crise,
mais do mesmo, isto é, aprofundar as contrarreformas – do trabalho, previdenciária e
do Estado – na defesa de um permanente ajuste fiscal, responsabilizando os gastos
sociais do governo com as políticas públicas de educação, saúde, segurança, assistência
social, etc e os agentes executores dessas políticas – os funcionários públicos.
A instabilidade política do governo Bolsonaro, cada vez mais isolado e criticado
por forças que o elegeram, foi agravada pela sua total incapacidade e
irresponsabilidade de dirigir o país em uma conjuntura de crise humanitária como a
que estamos vivendo, a exemplo da situação dos dois principais ministérios – saúde e
educação –, sem capacidade de coordenar as ações contra a pandemia no país,
deixando a sociedade à deriva. O caso do Ministério da Saúde é o mais grave, pois após
a passagem de dois ministros, que não contrariaram a ciência e as recomendações da
OMS, demitidos por Bolsonaro, foi ocupado por militares sem qualquer experiência na
área de saúde pública, desfazendo e desconstruindo as orientações até então em vigor,
coordenadas com os estados e municípios, chegando ao ponto de tentar esconder as
estatísticas e informações sobre o número de contaminados e mortos.
O Ministério da Educação está há quase um mês sem ministro, depois que o
titular saiu fugido do país, após ser denunciado e virar objeto de processo, por ofensa a
instituições da república. A sua gestão foi, desde o início, pautada na desqualificação
das Universidades Federais e de seus dirigentes, com violentos ataques não só
retóricos, mas com cortes e contingenciamentos de recursos; intervenção em
instituições, com a nomeação de reitores não eleitos pelas comunidades; chantagem
sobre as universidades que não aderissem ao Programa Future-se; manutenção do
calendário do Enem em plena pandemia; revogação da portaria sobre a adoção de
cotas nos cursos de pós-graduação, dentre outros.
Interessante registrar que essas últimas três ações do Ministro foram revogadas
frente a forte reação da sociedade, especialmente das universidades, da mídia, dos
movimentos sociais e instituições da sociedade civil, de parlamentares do congresso e
de ministros da suprema corte.
Nesta conjuntura de crise humanitária, revelou-se com toda força que o Estado
e suas políticas públicas são fundamentais e indispensáveis para salvar vidas,
contrariando radicalmente tudo o que o neoliberalismo fez nos últimos 40 anos. Só a
intervenção do Estado, com a liberação de recursos públicos, pode impedir uma
tragédia maior do que a que estamos vivendo. O papel das instituições e das políticas
públicas é fundamental nesse contexto. A existência de um sistema público de saúde, o
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SUS, mesmo que enfraquecido pela falta de recursos, tem se mostrado crucial para o
combate ao coronavírus.
Em uma situação de calamidade pública, a função da universidade pública de
qualidade, referenciada nos problemas sociais se revela, de forma mais contundente,
através do seu papel no desenvolvimento da pesquisa relacionada à COVID-19,
fundamental para o delineamento de cenários para as ações governamentais e a busca
de medicamentos e de uma vacina capaz de debelar a pandemia. As Universidades
Federais ainda colaboram através dos projetos de extensão de ajuda à comunidade,
com a fabricação de álcool em gel, máscaras e respiradores, entre outras ações, enfim,
para o desafioque se coloca no momento de salvar vidas.
Além disso, as universidades públicas produzem e desenvolvem novas
tecnologias para atender a demanda por equipamentos necessários aos adoecidos em
estado grave, como respiradores e afins. E, também, elaboram protocolos de
orientação médica no campo da saúde do trabalhador, em especial para os que
trabalham nas atividades essenciais, e que estão na linha de frente de combate ao
coronavírus. É nessas instituições que se discute e definem-se propostas de ação frente
à crise social, política, econômica e sanitária.
É nas universidades públicas que avança a construção de conhecimento, através
de uma cooperação interdisciplinar, que tem por objetivo responder às necessidades
da sociedade brasileira, levando em conta a enorme desigualdade econômica, social,
cultural, étnica e de gênero. E, por ser um espaço público, sem comprometimento com
interesses privados e particulares, pode contribuir decisivamente para transformar a
sociedade.
A Universidade Federal da Bahia – UFBA, que já tinha uma importância histórica
para a Bahia, o Nordeste e para o Brasil, vem cumprindo um papel fundamental nessa
nova, difícil e crítica conjuntura. Para além das ações já elencadas acima no campo da
extensão e da pesquisa, a UFBA realizou um Congresso virtual em maio desse ano, que
teve 38.055 inscritos, com 440 mesas ao vivo e 191 gravadas, 1.037 vídeo-pôsteres,
257 intervenções artísticas e 200 atividades do “UFBA mostra sua cara”. Contou com a
participação de grandes nomes do mundo acadêmico e artístico – nacionais e
estrangeiros –, discutindo os principais temas da atualidade, com destaque para a crise
atual. Mostrou para o Brasil, o que faz uma universidade pública e porque é necessária.
Mostrou que apesar das atividades presenciais estarem suspensas por conta do estado
de emergência, continua em movimento.
Frente à atual situação de incertezas, da falta de perspectivas de um retorno às
aulas presenciais em decorrência da pandemia e da inexistência de vacina, a educação
pública em especial tem um grande desafio. Como enfrentá-lo? Nas palavras da
administração central da UFBA:
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Serenidade e firmeza na observância de princípios fundamentais
para a universidade têm sido decisivas na travessia desta longa e incerta
quarentena, imposta a cada um de nós pela pandemia do novo
coronavírus. O respeito pela vida humana, a garantia da isonomia de
oportunidades e a defesa constante da qualidade da universidade pública
em ensino, pesquisa e extensão são os princípios que têm orientado a
Administração Central da UFBA e lastreado ações e reflexões. Estamos
assim atentos ao presente e também a nosso futuro, sem jamais
descurar da autonomia, da unidade e da segurança que devem
caracterizar uma instituição pública, gratuita, inclusiva e de qualidade.
(...) A reflexão sobre os atuais desafios da educação foi um
ponto forte do Congresso da UFBA. Nossa universidade, com efeito, já
utiliza e seguirá ampliando e aprimorando métodos e ferramentas
digitais. Todavia, não se deixará tragar pelo perigoso açodamento de
certos discursos que, no limite, julgam possível a mera substituição do
presencial pelo virtual. Nesse sentido, a UFBA trata essa questão com
toda seriedade, não se inclinando em função de ameaças ou de
vantagens transitórias. Nesse caso, a pressa e o imediatismo resultariam
na exclusão da grande parcela de estudantes que não têm condições
adequadas de acesso a meios digitais, bem como em alguma
improvisação indesejável, tendo em conta o largo percentual de
docentes que necessita de capacitação para transpor ao ambiente virtual
a reconhecida qualidade de seus cursos presenciais. (...)” (Documento A
UFBA em Movimento, 2020)3
A resistência das Universidades tem se mostrado efetiva e o mal maior, o
Projeto Future-se, não emplacou, pelo menos, até o presente momento. Novos
projetos virão porque o incômodo com o poderio das 69 IFES (Instituições Federais de
Ensino Superior), que se espalham por todo o Brasil é muito grande, elas representam
uma força considerável que se contrapõe a todo e qualquer projeto que tente
subverter a sua natureza de instituição autônoma, tal como definida pela Constituição.
A sua existência se opõe frontalmente a qualquer projeto autoritário e fascista de
sociedade, porque sua natureza já é em si mesma uma contraposição, pois sua
dinâmica estimula a articulação coletiva para a defesa dos seus valores maiores ligados
ao ensino, pesquisa e extensão. Na sua trajetória, a Universidade Pública, Democrática,
Laica, de Qualidade, Socialmente Referenciada ensina a toda sociedade como reagir,
como ser protagonista do seu destino, ao tempo em que se constitui numa trincheira
fundamental no combate ao neofascismo neoliberal.
Referências
AUDITORIA CIDADÃ DA DÍVIDA. Orçamento Federal Executado. Disponível em:
www.auditoriacidada.org.br, Acesso em: 15/03/2020.
Chaui, Marilena. A universidade pública sob nova perspectiva, Revista Brasileira
de Educação, nº 24, Set /Out /Nov /Dez 2003.
3 Disponível em: https://www.ufba.br/ufba_em_pauta/ufba-em-movimento
http://www.auditoriacidada.org.br
https://www.ufba.br/ufba_em_pauta/ufba-em-movimento
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FERREIRA, A. C. A sociedade de austeridade: Poder, medo e direito do trabalho
de exceção. Centro de Estudos Sociais, Universidade de Coimbra. Revista Crítica de
Ciências Sociais, nº 95, 2011, pp 119-136. Disponível em:
https://journals.openedition.org/rccs/4417.
FILGUEIRAS, L., DRUCK,G, MOREIRA, U. Ajuste fiscal e as universidades públicas
brasileiras: o banco mundial ataca outra vez. Caderno do CEAS, v. 242, p. 603-635,
2017.
FREUD,Sigmund. Psicologia das massas e análise do eu e outros textos.
Tradução de Paulo César de Souza. Companhia das letras,1986.
REICH,Wihelm. A psicologia de massas do fascismo. São Paulo : Martins
Fontes,1988
ANDIFES . http://www.andifes.org.br/institucional/andifes/
UFBA. A UFBA em movimento. 09/06/2020. Disponível em:
https://www.ufba.br/ufba_em_pauta/ufba-em-movimento. Acesso em: 13/06/2020.
https://journals.openedition.org/rccs/4417
http://www.andifes.org.br/institucional/andifes/
https://www.ufba.br/ufba_em_pauta/ufba-em-movimento

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