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LA BORATÓRIO ARQ.FUTURO DE CIDADES DO INSPER GUIA DE URBANISMO SOCIAL LA BORATÓRIO ARQ.FUTURO DE CIDADES DO INSPER SÃO PAULO 2023 GUIA DE URBANISMO SOCIAL Correalização: Núcleo de Urbanismo Social do Laboratório Arq.Futuro de Cidades do Insper e Diagonal Organização: Carlos Leite, coordenador do Núcleo de Urbanismo Social V LA BORATÓRIO ARQ.FUTURO DE CIDADES DO INSPER O que é o Laboratório Arq.Futuro de Cidades do Insper Resultado de uma parceria firmada em 2019 entre o Insper — Insti- tuto de Ensino e Pesquisa e a plataforma Arq.Futuro, o Laboratório tem na interdisciplinaridade e na inovação, a orientação para o ensino e a pesquisa sobre a cidade, com a missão de contribuir para o impacto real na vida das populações urbanas. Por que um “Laboratório de Cidades”? As abordagens tradicionais do urbanismo já não são capazes de equacionar os complexos desafios enfrentados pelas cidades contemporâneas. Com o extraordinário aumento da disponibilidade de dados georreferenciados e a evolução de métodos analíticos, a pesquisa interdisciplinar sobre os conglomerados urbanos avançou muito em diversos países. No Brasil, entretanto, constata-se uma carência de práticas inovado- ras na gestão das cidades e uma escassez de avaliação de impacto sobre a eficácia das políticas públicas para a sua transformação. O Laboratório Arq.Futuro de Cidades tem como objetivo enfrentar esses desafios, integrando-se a uma escola de negócios que é referência nas suas atividades acadêmicas de pesquisa e ensino. Como funciona o Laboratório? Estruturado em núcleos, o Laboratório Arq.Futuro de Cidades do Insper se integra aos programas educacionais e centros de pes- quisa existentes na instituição de modo transversal, oferecendo grande liberdade para a reflexão e o estabelecimento de múltiplas associações e criando um ambiente particularmente propício ao aprendizado, à pesquisa e à inovação. A proposta é que o conhecimento sobre cidades seja compreendido não como uma especialização e sim como um campo de atuação no qual profissionais de diversas disciplinas aplicam seus conhe- cimentos e ferramentas. Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Guia de urbanismo social (livro eletrônico) / organização Calos Leite. --1. ed.-- São Paulo: BEI Editoal: Núcleo de Urbanismo Social do Laboratório Arq.Futuro de Cidades do Insper e Diagonal, 2023. PDF. Vários colaboradores. ISBN 978-65-86205-34-3 1. Arquitetura — Aspectos sociais 2. Arquitetura sustentável — Aspectos ambientais 3. Cidades — Aspectos sociais 4. Paisagismo 5. Planejamento urbano 6. Políticas públicas I. Leite, Carlos. 23-146825 CDD - 711 Índice para catálogo sistemático: 1. Urbanismo social 711 Aline Graziele Benitez - Bibliotecária - CRB-1/3129 VI VII UMA CONTRIBUIÇÃO EM FAVOR DE CIDADES DESENVOLVIDAS, JUSTAS, INCLUSIVAS E SUSTENTÁVEIS As cidades — a maior invenção da espécie humana, como atesta o economista norte-americano Edward Glaeser — vivem, atualmente, um desconcertante paradoxo. Enquanto no Norte Global, sobretudo, elas vêm ganhando “inteligência”, explorando o uso de tecnologias e desenvolvendo práticas de sustentabilidade para melhorar o seu funcionamento e a qualidade de vida dos cidadãos, no Sul Global os direitos mais básicos seguem distantes da maioria da população. Superar essa vergonhosa contradição, que a pandemia de covid-19 apenas escancarou aos olhos do planeta, é mais que um desafio para a sociedade contemporânea: é um dever moral. Dentre as ferramentas disponíveis para realizar essa complexa e incontornável tarefa, o urbanismo social tem se revelado uma das mais eficazes. A estratégia, que teve como uma das referências o projeto Favela-Bairro, do Rio de Janeiro, consagrou-se mundo afora a partir de Medellín. Nos anos 1990, a metrópole colombiana chegou a ser a mais violenta da Terra. Graças ao urbanismo social — cujo propósito é, por meio da inclusão cidadã, promover uma transformação real nas comunidades pobres —, em 2013 ela foi considerada a mais inovadora do globo. Sendo um país que tem cerca de 85% dos seus habitantes morando em cidades, e quase um quarto deles em situação de pobreza, o Brasil precisa cada vez mais do urbanismo social (e, de fato, já o adotou, com êxito, em algumas localidades). Daí a pertinência e a importância de uma obra como esta que o Laboratório Arq.Futuro de Cidades do Insper traz agora ao público, em uma correalização com a empresa Diagonal. Trata-se do primeiro livro do gênero nessa área lançado no país. Sua ambição é falar de perto a todos os agentes envolvidos nas questões das populações periféricas brasileiras, fornecendo-lhes conhecimento teórico e indicações de práticas bem-sucedidas para ajudá-los a superar as dificuldades que assolam tais territórios. _APRESENTAÇÕESA Diagonal é uma consultoria pioneira em Gestão Social, que apoia empresas, organizações e governos a elevarem seu padrão ESG (governança ambiental, social e corporativa) e a gerarem impacto socioambiental positivo para a sociedade. Ao longo da sua trajetória, executou ações em mais de 22 países e mil municípios brasileiros, e sua atuação integrada, humanizada e disruptiva foi um marco para a gestão social do Brasil, tendo influenciado a evolução de políticas públicas voltadas ao trabalho social, ao relacionamento e ao diálogo com as comunidades. As bases metodológicas de sua atuação partem do princípio de que todos os problemas são integrados, simultâneos, sistêmicos e interdependentes; além da certeza de que para propor soluções para os problemas complexos dos territórios e de suas comunidades, é necessária uma abordagem integrada e que leve em consideração diferentes perspectivas e olhares. O território é visto como a base do trabalho, porém, para conhecê-lo profundamente, a Diagonal compreende-o como matriz da vida social, econômica e política de cada comunidade em que atua. E, para isso, combina conhecimento interdisciplinar às tecnologias sociais e digitais, tendo como premissas a participação, a cocriação e o diálogo social, pois acredita que só é possível traçar planos estratégicos que incorporam ações realmente sustentáveis por meio da escuta ativa, do acolhimento e da cooperação. O trabalho participativo constrói as soluções com a população e não apenas para ela, favorecendo o desenvolvimento sustentável e estabelecendo uma relação mais humana, justa e duradoura entre as pessoas e seus territórios. VIII IX O presente Guia, que inaugura a nossa “Coleção Urbana”, é outra iniciativa pioneira do Laboratório, que, em 2020, criou o primeiro curso de pós-graduação lato sensu em urbanismo social do Brasil, já em sua terceira turma. Ambos, obra e curso, têm em sua organização o Núcleo de Urbanis- mo Social do Laboratório, cuja missão destaca a qualificação dos territórios vulneráveis de modo propositivo, com vistas à promoção de cidades desenvolvidas, justas, inclusivas e sustentáveis. A solução dos problemas das populações urbanas passa necessa- riamente pela gestão compartilhada. É preciso não só “enxergar” as comunidades invisibilizadas como também “ouvi-las”. Esse processo de escuta está na raiz do urbanismo social cujas diretrizes o Laboratório anseia contribuir para difundir e consolidar no país. Por um motivo simples: é o caminho mais robusto, solidário, ético e curto para que todos os brasileiros possam realmente, um dia, considerar as cidades como a maior invenção humana. PELA TRANSFORMAÇÃO PREMENTE DA REALIDADE SOCIOAMBIENTAL DE UMA IMENSA PARCELA DA POPULAÇÃO DO PAÍS É com grande satisfação que vemos a consolidação deste Guia de Urbanismo Social e sua disponibilização abrangente a fim de que possa se constituir em mais um subsídio ao planejamento de intervenções em assentamentos precários e bairros marcados por altos índices de vulnerabilidade socioambiental. Neste trabalho,vários profissionais sintetizam suas experiências individuais e coletivas, elencando caminhos possíveis ante as dificuldades e potencialidades que se apresentam nas ações que visam diminuir diferenças históricas ou recentes de padrão de vida urbana nas periferias desassistidas das grandes cidades brasileiras. A experiência da Diagonal, de mais de 32 anos de consultoria socio- ambiental em planos e projetos de habitação de interesse social e de urbanização de áreas degradadas de diversos portes e matizes setoriais (habitação, saneamento, mobilidade e outros), aponta a importância do trabalho social junto às comunidades impactadas, com foco na organização e mobilização para uma participação social efetiva nos processos de intervenção que contemplem, para além das melhorias físicas urbanísticas, ações no âmbito das dimensões da sustentabili- dade ambiental e do desenvolvimento local das comunidades. Tal processo de trabalho social estabelece uma aproximação dos agentes públicos com a comunidade, a partir da qual se evidencia como grande desafio a articulação das políticas sociais nesses territórios. Articular na ponta, no território, o que muitas vezes não está presente na estrutura central da gestão pública tem se mostrado uma difícil tarefa na condução das discussões acerca das demandas das comunidades envolvidas. Não se pode ignorar que as necessidades das comunidades exigem uma visão integrada da totalidade dos aspectos e problemas que afligem a vida de famílias em situação de vulnerabilidade que vão além das questões tratadas pela intervenção física e urbanística, reivindicando um arcabouço de políticas sociais — educação, saúde, trabalho e renda, cultura, esporte, assistência social, segurança e outras. Tomas Alvim Coordenador-Geral Laboratório Arq.Futuro de Cidades do Insper X XI A perspectiva do urbanismo social vem lançar luz sobre a importân- cia do acolhimento das diversas necessidades sociais dos bairros. Realça a relevância de um planejamento territorial a partir de uma compreensão mais abrangente da questão social, buscando articular, no tempo, intervenções estruturantes com outras de ca- ráter pontual, mas igualmente importantes para a melhoria da vida cotidiana desses bairros. Sua ênfase na implementação de planos locais integrados, a partir de processos de participação delibera- tivos, também induz à necessidade de articulação desses planos locais com uma agenda de planejamento global do município para que não surjam descolados do orçamento geral da cidade. Nesse sentido, a experiência da Diagonal tem mostrado a importância de uma liderança capaz de articular políticas sociais, possibilitando resultados satisfatórios no atendimento holístico das demandas das comunidades vulneráveis. Esses argumentos reforçam os princípios nos quais a Diagonal acre- dita e que adota em sua atuação junto às prefeituras, governos esta- duais e federal, empresas privadas e organismos multilaterais, tanto no Brasil quanto em outros países. Parte desse conteúdo compõe capítulos do presente Guia, trazendo aspectos de uma metodologia de abordagem muito similar e aderente ao que defende o urbanismo social: qual seja, colaborar para a busca de um planejamento urbano efetivo em áreas de vulnerabilidade, imprescindível para a redução das desigualdades socioambientais das cidades, propósito central que vem mobilizando toda a nossa trajetória. Esperamos que a leitura deste Guia contribua para a transformação premente da realidade socioambiental de uma imensa parcela da população brasileira. _PREFÁCIOS O TERRITÓRIO IMPORTA: SUPERANDO AS DESIGUALDADES COM INTERSETORIALIDADE, CONTINUIDADE E PROTAGONISMO LOCAL Perto do final deste primeiro quarto do século XXI, estamos viven- ciando, enquanto humanidade, um conjunto de novas e velhas crises, uma das quais é o crescimento das desigualdades. O abismo que separa as condições de vida das camadas mais altas para as mais baixas da população só cresce em termos materiais e subjetivos, com a tecnologia e a ciência levando uns a experimentar arte, cultura e viagens por meio da realidade virtual, além da superação de doenças crônicas e sonhos de vida em outros planetas, enquanto outros ainda não dispõem de algo tão simples como um banheiro ou água corrente em suas casas. A intensidade dessas desigualdades tem se ampliado, bem como a velocidade com que crescem, de modo a ser possível imaginar um ponto de não retorno social, uma situação em que já não seremos capazes de conectar os mundos e construir uma sociedade efetivamente justa e inclusiva. É urgente, portanto, repensar as formas como lidamos com o processo de desenvolvimento e, em particular, como construímos alternativas para a superação das vulnerabilidades na ponta mais frágil desse cenário. Infelizmente, estamos acostumados a buscar soluções rá- pidas, setoriais e generalizáveis para um fenômeno que, na verdade, é complexo e específico. As famílias que se encontram em situação de vulnerabilidade vivenciam um conjunto de restrições materiais e de oportunidades que se articulam para dificultar as possíveis estratégias de saída. Não se trata apenas de uma questão de baixa renda. É a falta de renda em conjunto com a menor mobilidade, com educação e saúde de mais baixa qualidade, ausência de saneamento básico, pouca oferta de opções culturais e de entretenimento e mais um conjunto de condições que criam uma vulnerabilidade sistêmica. Ou seja, não é possível resolver a questão com ações e políticas setoriais e pontuais. É preciso abarcar esse conjunto de aspectos que condicionam a vida das pessoas em situação de vulnerabilidade. Kátia Mello Copresidente da Diagonal XII XIII Mas, ao mesmo tempo que essa multiplicidade de vulnerabilidades pode ser identificada, e de certa maneira, generalizada para diversos territórios, as soluções específicas que devem ser construídas não são genéricas. Elas devem levar em consideração as condições particulares de cada local e de cada família, com um olhar atento para o fato de que não é apenas de vulnerabilidades que essas pes- soas se constituem. Cada uma delas, em seus bairros e territórios, desenvolve estratégias próprias de sobrevivência, bem como rotinas potentes de convívio e colaboração que constroem suas histórias de luta e superação dentro desse difícil contexto. As novas soluções de combate às desigualdades têm que considerar essa potência local como fonte propulsora do desenvolvimento territorial. É nas histórias específicas que está a chave de articulação dos aspectos mais ur- gentes e que podem dar início a um ciclo positivo de superação das vulnerabilidades. Nesse sentido, o fortalecimento das organizações locais, com respeito e estrutura para a sua atuação, seria o modo de impulsionar projetos intersetoriais de transformação contínua e efetiva para os territórios. Entendemos que esses são os grandes valores por trás do urbanismo social, conceito que este Guia nos convida a aprofundar. Para nós, falar em urbanismo social é reconhecer que os territórios urbanos são o lugar onde a vida efetivamente acontece e, que por isso, mes- mo eles devem ser o motor da transformação social. Por meio dos territórios se constitui sentido de pertencimento, se compartilham anseios sociais, se constroem projetos concretos. A superação das desigualdades é urgente. A valorização dos territórios é um caminho estruturante para que possa ser efetiva. Esperamos que gestores e líderes sociais possam se inspirar nas reflexões aqui trazidas para que tenhamos cada vez mais ações promovendo a intersetorialidade, a continuidade de políticas e o protagonismo local. Maria Alice Setubal Presidente do Conselho Curador da Fundação Tide Setubal Mariana Neubern de Souza Almeida Diretora-executiva da Fundação Tide Setubal URBANISMO SOCIAL: O GRANDE DESAFIO DO FUTURO DE NOSSAS CIDADES Desde o início do século XX, as cidades latino-americanas, do norte do México até a Patagônia argentina, caracterizaram-sepela superurbanização. Ausentes do horizonte de políticas públicas territoriais, elas facilitaram décadas de ocupação irregular de suas periferias e, com isso, deram margem ao aumento da pobreza, da desigualdade social e da injustiça. As cidades que se urbanizaram informalmente em decorrência de diversos fatores, como o êxodo rural em sua direção, a busca de oportunidades e, recentemente, em decorrência da migração de outros países por problemas políticos, assentaram-se em territórios sem capacidade de suporte (serviços públicos, ruas, equipamentos de qualidade e moradia digna). Tais assentamentos, desconectados da cidade formal, distantes de sua dinâmica social e econômica, são hoje o grande problema de nossas urbes e o maior desafio a assumir nas próximas décadas. Por isso, é preciso construir políticas públicas que permitam a disponi- bilização simultânea de todas as ferramentas de desenvolvimento, possibilitando identificar e enfrentar as carências presentes em bairros, favelas e outros conglomerados socialmente vulneráveis e, assim, pagar a dívida histórica que a cidade e a liderança insti- tucional têm com os seus cidadãos e seus territórios. A referida política pública, que para os fins deste texto denomi- namos urbanismo social, é uma iniciativa que focaliza o cidadão como sujeito e a cidadania como coletivo e sociedade. A estratégia propõe um estudo tangível e imaterial do território e, com base nisso, a geração e formulação de programas e projetos de forma integral e urbanisticamente definidos como ações sistemáticas e não isoladas, com o objetivo de proporcionar o maior impacto possível na população e sua vinculação com a dinâmica da cidade formal, melhorando todos os indicadores de cobertura básica da vida urbana e, com ela, a qualidade de vida. XIV Na América Latina têm sido realizados programas específicos no âmbito do urbanismo social. As experiências de Projetos Urbanos Integrais (PUIs), como as desenvolvidas no Rio de Janeiro, caso do programa Favela-Bairro; modelos como o de Medellín; as iniciativas em Iztapalapa, no México, e as ações que vêm sendo realizadas no Recife (os Centros Comunitários da Paz — Compaz) e estão come- çando na capital paulista são, entre outras, as apostas para assumir o desafio de transformar os territórios de maior vulnerabilidade. No entanto, de acordo com minha experiência em vários países, elas muitas vezes não constituem uma política pública integral; não representam uma decisão dos governantes das cidades. Por fim, e enfatizando o título dado a esta breve apresentação, temos quatro desafios realmente importantes para o futuro. Primeiro, fazer prevalecer a diretriz política por meio da qual os governos entendam que muitos dos problemas dos referidos territórios vul- neráveis existem devido à sua fragmentação em relação à cidade formal e à dívida social acumulada. Em segundo lugar, destacar a importância de estudar, compreender e atuar naquelas localidades em favor de seus habitantes para buscar soluções conjuntas, a fim de conseguir, mediante projetos enquadrados em uma política pública como o urbanismo social, implementar o PUI. Terceiro: dignificar o cidadão e, finalmente, dar o primeiro passo que nos leve, a todos, do medo à esperança. Carlos Mario Rodriguez Urbanista e professor do Instituto Tecnológico de Monterrey _SUMÁRIO _APRESENTAÇÕES 7 _PREFÁCIOS 11 SUMÁRIO EXECUTIVO 16 URBANISMO SOCIAL: CONCEITOS 32 PLANO DE AÇÃO LOCAL 66 DIMENSÃO GOVERNANÇA 80 DIMENSÃO TERRITORIAL 102 DIMENSÃO SUSTENTABILIDADE URBANA 152 DIMENSÃO SOCIOECONÔMICA E CULTURAL 190 TÓPICOS EM POLÍTICAS PÚBLICAS 210 TÓPICOS EM REGULAÇÃO URBANA 226 TÓPICOS EM FORMAS DE FINANCIAMENTO 240 TÓPICOS EM CIDADE E CRIANÇAS 254 TÓPICOS EM SAÚDE URBANA 272 TÓPICOS EM MULHERES E TERRITÓRIOS 284 TÓPICOS EM MONITORAMENTO E AVALIAÇÃO 298 CASOS REFERENCIAIS 310 01_ 02_ 03_ 04_ 05_ 06_ 07_ 08_ 09_ 10_ 11_ 12_ 13_ 14_ 15_ Capítulo 01 : Sumário Executivo 17 Este Guia apresenta um “cardápio” amplo de tópicos e temas sobre a pauta do urbanismo social, aqui entendida e abordada de forma abrangente. Sabe-se que provavelmente nenhum caso referencial ou programa de urbanismo social contempla todos os itens apresentados nos quinze capítulos do livro. A ideia é oferecer às leitoras e aos leitores as diversas alternativas e oportunidades que possam ser utilizadas e que sirvam de referência tanto no conteúdo do capítulo específico como nas indicações apresentadas em “Para saber mais” — ou ainda nos casos referenciais citados em diferentes momentos da obra e analisados na parte final do trabalho, o Capítulo 15. Conforme está explicado no Capítulo 2, o termo “urbanismo social” foi consagrado internacionalmente no início do século XXI com a experiência colombiana, em especial de Medellín. Assim, a referência primordial é essa; não por acaso, existem muitos artigos acadêmicos e livros sobre o urbanismo social de Medellín (vários, aliás, citados neste Guia). Isso não implica que o caso de Medellín não tenha limitações ou críticas, como também se aponta no mencionado capítulo. O caso de Medellín inclui alguns elementos que justificam a sua fama e referência como o grande modelo na América Latina de “urbanismo social”, trazendo, assim, os conceitos do que se entende por essa estratégia de atuação de modo amplo: (i) a continuidade do programa por quase quinze anos e várias gestões municipais; (ii) a efetivação de uma entidade pública empoderada que coordena as diversas políticas e ações públicas e as integra e territorializa nos PUIs (Projetos Urbanos Integrais), a EDU (Empresa de Desenvolvimento Urbano); (iii) a construção de modelos de governança compartilhada entre a gestão pública, a academia e, claro, com protagonismo da comunidade local; (iv) a efetiva implantação de ações, projetos e obras em diversos territórios, com destaque para a construção de grandes equipamentos públicos-âncora (bibliotecas-parque; UVA — Unidades de Vida Articulada e outros) com altíssima qualidade arquitetônica; (v) as entregas rápidas de espaços públicos de qualidade articulados com outros elementos do plano urbanístico e, em especial, com os O QUE É O GUIA? QUAL O OBJETIVO?1.1_ SUMÁRIO EXECUTIVO 1.1_ O que é o Guia? Qual o objetivo? 1.2_ A quem interessa? O público-alvo 1.3_ Como organizamos as dimensões do urbanismo social e o Guia? 1.4_ O contexto 1.5_ Onde encontrar mais informações? 1.6_ Quem contribuiu? AUTORES Núcleo de Urbanismo Social 01_ Capítulo 01 : Sumário ExecutivoGuia de Urbanismo Social 1918 sistemas de mobilidade urbana, tendo como destaque as estações do Metrocable (teleférico); (vi) a ênfase na redução da violência urbana, desde a seleção inicial dos territórios (sempre aqueles com índices de maior violência), passando pelas abordagens sociais e urbanas integradas às de cultura e educação como estratégia de ação (em contraposição à postura policial repressora). Vale lembrar ainda que o programa de urbanismo social iniciado em 2004 continha uma nova visão de cidade, em essência mais inclusiva socialmente, ou seja, tratava-se de um projeto amplo e abrangente, com estratégias gerais e integradas de transformação e não apenas de ações ou planos específicos para alguns territórios. E o termo “urbanismo social”? De fato, popularizada desde o início do programa pelo prefeito Sergio Fajardo e sua equipe em Medellín (gestão 2003-7), a expressão adjetivou a palavra urbanismo, en- fatizando sua demanda focada no impacto social, e o sucesso do programa a tornou um conceito com o qual se passou a trabalhar em diversas cidades da América Latina. Naturalmente, a expressão trouxe consigo esperadas polêmicas. Questiona-se por que agregar a palavra “social” se “todo urbanismo deva ser social”1. Para este Guia, justifica-se o uso da expressão sobretudo por se reconhecer na prática do urbanismo social trazido da experiência de Medellín um programa de urbanismo com algumasespecificidades. Obviamente, não se intenciona no Guia buscar rivalizar ou deixar de reconhecer a enorme importância e pioneirismo dos programas de urbanização de favelas que são anteriores, pioneiros e inspiraram o programa de Medellín e, sim, trabalhar no âmbito das especificidades dos projetos de urbanismo social, assim como apontar diversos elementos que são comuns às duas abordagens, as quais, portanto, não devem ser vistas como excludentes. 1 Ao avaliar as inúmeras ações e programas de urbanismo no mundo inteiro, ao longo da história, há que considerar, naturalmente, uma imensa pluralidade e di- versidade de enfoques: desde as políticas e ações públicas promotoras de instru- mentos urbanos e seus planos até inúmeros projetos e ações de caráter privado e imobiliário. Ou seja, existem “urbanismos” de caráter público e social, assim como há “urbanismos” não sociais que promovem exclusão. E, entre os dois extremos, exis- tem inúmeros “urbanismos” com enfoques variados e mesclados. Vale aqui lembrar da expressão consagrada no Brasil, inclusive legalmente, do conceito e termo “ha- bitação social”. Essa expressão diferencia e qualifica a palavra “habitação”, dando foco para aquela específica de interesse social. Ainda no Capítulo 2, comenta-se sobre os tradicionais programas de urbanização de favelas, desenvolvidos no Brasil desde a década de 1990, referenciando-se o pioneiro e premiado Favela-Bairro, que teve lugar no Rio de Janeiro, com o propósito de esclarecer as diferenças e as aproximações entre os dois conceitos. Nesse sentido, destaca-se que este não é um “guia de urbanização de favelas”, pois: (i) o urbanismo social apresenta algumas especificidades e diferenças e (ii) já existem diversos e ótimos livros, teses, artigos e manuais publicados no Brasil e América Latina a respeito daquele tema, seja via produção acadêmica consistente ou por intermédio de órgãos públicos e organizações multilaterais2 (apontam-se alguns desses trabalhos nos Capítulos 2 e 15). As cidades sempre foram palco de disputas no uso do território, e nos países com imensas desigualdades sociais, como o Brasil, é nelas que os problemas se concretizam e quaisquer programas e ações no campo do urbanismo e afins se polemizam. Não se intenciona, no presente Guia, alimentar competição entre programas — cada qual tem o seu contexto histórico e local — e, sim, evidenciar suas especificidades, além, é claro, de apresentar nossas definições de urbanismo social. Não existe um “modelo único” de urbanismo social; o que se tem são diversos processos e programas nos quais, em diferentes situações e contextos específicos, utilizam-se itens variados do “cardápio” do urbanismo social, mais completos ou parciais, mais ou menos dura- douros, mais ousados ou restritos. E haverá ações e programas que serão nominados de urbanismo social, de modo polêmico. O que se procurou trazer no Guia foi aportar o referencial amplo de temas de urbanismo social e apresentar alguns casos concretos. Propõe-se aqui um aprendizado sobre os diversos temas, processos, estratégias e lições que tenham potencial de replicabilidade nas cidades brasileiras. O objetivo final do urbanismo social é a promoção de melhores condições de vida à população que vive nas favelas por meio da qua- lificação integrada dos territórios precários com base na governança 2 BID (Banco Interamericano de Desenvolvimento); Cities Alliance; Banco Mundial; CAF (Banco de Desenvolvimento da América Latina). Capítulo 01 : Sumário ExecutivoGuia de Urbanismo Social 2120 A QUEM INTERESSA? O PÚBLICO-ALVO1.2_ Como em todo guia, ou manual, procurou-se fazer deste um produto prático, de linguagem objetiva e acessível ao grande público, não especializado. O objetivo é que quem mais precise promover, de algum modo, práticas de urbanismo social nas diversas cidades do Brasil encontre aqui explicações, definições, conceitos, meto- dologias e exemplos concretos. Assim, os públicos-alvo do Guia são: (i) lideranças comunitárias e moradores das favelas das cidades brasileiras; (ii) gestores públicos; (iii) lideranças do terceiro setor; (iv) meio acadêmico e demais interessados em promover melhorias nos territórios e na vida dos moradores das favelas, por meio das diversas práticas de urbanismo social aqui apresentadas. COMO ORGANIZAMOS AS DIMENSÕES DO URBANISMO SOCIAL E O GUIA? 1.3_ Por se tratar de objeto de estudo em área multi e interdisciplinar, organizou-se o presente Guia e seus diversos conteúdos em termos de dimensões e tópicos de atuação. Eles ajudam a visualizar como o programa está estruturado e permitem abordar cada aspecto em separado, sem prejuízo da proposta de integralidade das diversas ações. Tudo deve se conectar no território e no seu uso pela comu- nidade. Assim, as dimensões e sua organização no Guia são estas: INSTITUCIONAL E GOVERNANÇA A governança diz respeito aos espaços de tomada de decisão e aos atores (stakeholders) que participam desse processo em determinado território. Deve-se refletir sobre a forma de organização de tais atores, seja nos órgãos públicos — nas suas diversas escalas e setores de atuação —, privados ou nas entidades comunitárias, tendo em vista os objetivos do programa. Aspectos como transparência, participação ▸ O Capítulo 4, principalmente, e também o 3 e o 5 abordam aspectos dessa dimensão. compartilhada entre a população local e a gestão pública, atuando de modo integrado e com continuidade dos programas. Trata-se de demanda social urgente no Brasil, pois estima-se que cerca de 17 milhões de pessoas, 8% da população, residam em favelas3, e que o déficit habitacional no país seja de aproximadamente 5,8 milhões de moradias (18,5 milhões de pessoas)4. Existem diversos termos para favelas no Brasil: comunidades, territó- rios de vulnerabilidade social, territórios periféricos, bairros informais, assentamentos precários (usada pelos governos, assim como favelas), "áreas degradadas, ocupadas desordenadamente e sem infraestrutura", aglomerados subnormais (IBGE) e outros. Optou-se no Guia pela utilização do termo favela por ser o mais comumente utilizado e provavelmente o de maior aceitação pelas comunidades desses territórios. Obviamente não se deve impor ao termo nenhum tipo de significado pejorativo ou precon- ceituoso, muito pelo contrário: trata-se, sobretudo, do reconhecimento do termo junto à sua população, com seus desafios e potencialidades, como se mostra ao longo do Guia. O Guia tem como objetivos: ▸ Apresentar um elenco de possíveis soluções e propostas, apren- dizados e referências para a promoção do urbanismo social de modo amplo em nossas cidades; uma sistematização de conceitos, práticas e metodologias orientados para a replicabilidade; ▸ Servir de apoio técnico e instrumento de mobilização na imple- mentação de programas de urbanismo social, especialmente junto às comunidades das favelas e suas potencialidades; ▸ Gerar impacto social pela divulgação e disseminação ampla e gratuita de conhecimentos em urbanismo social. 3 MEIRELLES, Renato; ATHAYDE, Celso. Um país chamado favela: a maior pesquisa já feita sobre a favela brasileira. São Paulo: Gente, 2014 4 Ver: O déficit habitacional no Brasil. Fundação João Pinheiro, 2019. ! PARA SABER MAIS, VER: ▸ Instituto Locomotiva, 2021. Educação, cultura, periferia e racismo: um levantamento do Instituto Locomotiva para a Central Única das Favelas. ▸ Fundação João Pinheiro, 2021. Déficit habitacional no Brasil. https://fjp.mg.gov.br/deficit-habitacional-no-brasil-2016-2019 https://ilocomotiva.com.br/estudos/educacao-cultura-periferia-e-racismo/ https://ilocomotiva.com.br/estudos/educacao-cultura-periferia-e-racismo/ https://ilocomotiva.com.br/estudos/educacao-cultura-periferia-e-racismo/ https://ilocomotiva.com.br/estudos/educacao-cultura-periferia-e-racismo/ https://ilocomotiva.com.br/estudos/educacao-cultura-periferia-e-racismo/ https://ilocomotiva.com.br/estudos/educacao-cultura-periferia-e-racismo/https://fjp.mg.gov.br/deficit-habitacional-no-brasil https://fjp.mg.gov.br/deficit-habitacional-no-brasil Capítulo 01 : Sumário ExecutivoGuia de Urbanismo Social 2322 ▸ O Capítulo 5, sobretudo, e também o 3 e o 15 abordam aspectos dessa dimensão. ▸ Contudo, o Capítulo 7, em especial, e também o 2, 4, 5, 8, 11, 13 e 15 tratam dessa dimensão. ▸ O Capítulo 6, principalmente, e também o 5 abarcam aspectos dessa dimensão. ▸ O Capítulo 9, sobretudo, e também o 10, abordam aspectos dessa dimensão. ▸ O Capítulo 10 aborda aspectos dessa dimensão. social, capacidade de gerenciamento de processos e resultados devem ser considerados no desenho institucional, do mesmo modo que novas formas de governança compartilhada podem ser desenvolvidas. TERRITORIAL O ordenamento territorial implica a correlação entre um conjunto de políticas setoriais que se relacionam direta ou indiretamente com a política de desenvolvimento urbano a partir de diferentes escalas. Em linhas gerais, devem ser consideradas ações de um conjunto de políticas, programas, planos, ações e projetos relacionados aos seus diversos elementos: Sistema de Infraestrutura; Sistema de Transporte e Mobilidade; Sistema de Áreas Protegidas, Áreas Verdes e Espaços Livres; Sistema de Equipamentos Urbanos e Sociais; Serviço de Moradia Social; Sistema de Proteção do Patrimônio Cultural, dentre outros. Tais sistemas podem ser entendidos como o hardware com o qual o programa deve dialogar, da mesma maneira que as dimensões de governança e participação social se refeririam ao software. SOCIOECONÔMICA E CULTURAL As dimensões socioeconômica e cultural dizem respeito ao conjunto de políticas públicas e recursos locais que tratam desses aspec- tos em termos de desenvolvimento social, empreendedorismo, artes, hábitos e costumes presentes que atendem determinado território ou são produzidos pela comunidade da área em ques- tão. Relacionam-se aos programas de tais políticas e, como eles, dialogam com os territórios quanto à abrangência, qualidade, prioridades e mecanismos de integração de serviços. Aqui também se apresentam as fundamentais ações que emergem nas diversas comunidades a partir de seus moradores, os diversos processos bottom-up, a potência das favelas. Essa temática está presente de modo transversal em diversos capítulos do livro. SUSTENTABILIDADE URBANA As dimensões ambiental e de sustentabilidade abordam a melhoria do padrão de vida em todos os espaços da cidade por meio de uma relação mais bem-sucedida entre a ocupação urbana e a natureza, de modo a garantir condições socioambientais satisfatórias para a população nos bairros e nas comunidades. Essas dimensões olham para os seguintes aspectos: Sistema de Espaços Livres e Infraestrutura Verde, Sistema de Abastecimento de Água e de Esgotamento Sanitário, Drenagem da Superfície, Coleta e Disposição dos Resíduos Sólidos e Orgânicos, Gestão de Riscos Urbanos e Educação Ambiental e Ações e Instrumentos de Redução dos Impactos das Ações Climáticas. Como as periferias são impactadas e podem ser territórios de recuperação ambiental e ações de sustentabilidade urbana? Como reduzir áreas de risco ambiental levando sempre em conta as comunidades locais? Como promover a justiça ambiental nas periferias? JURÍDICA (MARCOS REGULATÓRIOS) O elemento jurídico alude aos instrumentos que prezam pela promoção da função social da cidade e da propriedade e da ges- tão democrática urbana. Trata ainda de todos os demais itens da regulação urbana que podem ajudar na promoção de cidades mais justas e inclusivas e na qualificação dos territórios de vulnerabili- dade social. Tais instrumentos podem responder ao desequilíbrio de forças no que diz respeito ao desenvolvimento local de áreas urbanas vulneráveis e suas populações. Para essa dimensão é importante realizar o levantamento e a análise do marco regula- tório aplicável, especialmente em relação à política urbana e às interfaces com as demais políticas setoriais que dialogam com o escopo do programa. FINANCEIRA (FORMAS DE FINANCIAMENTO) Refere-se ao potencial ou formato de investimentos público e/ou de agências multilaterais de financiamento (Banco Mundial, BID, CAF etc.), assim como àqueles derivados da política fundiária, utilizados para viabilizar os programas de urbanismo social. A depender das estruturas organizacionais, normas legais e interesses políticos, as formas de viabilização do projeto podem ser distintas e, por vezes, inovadoras para o investimento público. Capítulo 01 : Sumário ExecutivoGuia de Urbanismo Social 2524 O CONTEXTO1.4_ Este Guia emerge do Núcleo de Urbanismo Social do Laboratório Arq.Futuro de Cidades do Insper, que tem como missão congregar de forma integrada, multidisciplinar e inovadora as dimensões de extensão e impacto social, pesquisa aplicada, ensino e capacitação. Trata-se do primeiro centro especializado no tema no Brasil com tal agenda emergencial, que consiste em uma complexa pauta de promoção das cidades inclusivas, com a qualificação dos territórios de vulnerabilidade social de modo propositivo e transformador, incremental e contínuo. O Núcleo busca atuar como um “laboratório de conceituação”, estudos de caso e pesquisa baseada em dados e evidências, visan- do à construção de conhecimento em urbanismo social e unindo pesquisadores e instituições das áreas pública e privada, do âmbito acadêmico e do terceiro setor, além de lideranças comunitárias, e promovendo parcerias com instituições multilaterais. O Guia surge também alinhado à Pós-graduação em Urbanismo Social do Laboratório Arq.Futuro de Cidades do Insper. Pioneiro no país, o curso traz uma agenda emergencial para as cidades brasileiras: capacitar profissionais a estarem aptos a trabalhar na qualificação dos territórios de vulnerabilidade social. Inserida no Núcleo de Urbanismo Social, a pós-graduação é resultado de uma parceria entre Insper, Itaú Cultural e Arq.Futuro e compõe, de maneira transversal, uma plataforma interdisciplinar que oferece grande liberdade para a reflexão e o estabelecimento de múltiplas associações, propício ao aprendizado, à pesquisa e à inovação. Tal plataforma compreende que o conhecimento sobre as cidades deve ser entendido como um campo de atuação no qual profissionais de diversas áreas desenvolvam as competências e habilidades necessárias à atuação em favelas. Além de tais dimensões — as mais tradicionais, por assim dizer —, apresentam-se alguns tópicos que complementam o cardápio da obra. São temas e pautas de crescente importância em nossas cidades e nos territórios de vulnerabilidade social: ▸ Tópicos em políticas públicas — Capítulo 8 ▸ Tópicos em cidade e crianças — Capítulo 11 ▸ Tópicos em saúde urbana — Capítulo 12 ▸ Tópicos em mulheres e territórios — Capítulo 13 ▸ Tópicos em monitoramento e avaliação de impacto — Capítulo 14 A pauta específica dos Planos de Ação Local — que, em uma situação ideal, deve aglutinar em seu escopo todas as dimensões e tópicos mencionados, integrando-os e territorializando-os — está no Capítulo 3. Por fim, no Capítulo 15 abordam-se alguns casos referenciais no Brasil e na América Latina. https://www.insper.edu.br/laboratorio-de-cidades/ https://www.insper.edu.br/laboratorio-de-cidades/ https://www.insper.edu.br/pos-graduacao/programas-avancados/pos-graduacao-em-urbanismo-social/ https://www.insper.edu.br/pos-graduacao/programas-avancados/pos-graduacao-em-urbanismo-social/ Capítulo 01 : Sumário ExecutivoGuia de Urbanismo Social 2726 QUEM CONTRIBUIU? ONDE ENCONTRAR MAIS INFORMAÇÕES? 1.6_ 1.5_ O Guia é uma iniciativa do Núcleo de Urbanismo Social, em parceria com outras áreas do Laboratório Arq.Futuro de Cidades do Insper — Arquitetura e Cidade; Cidade e Regulação; Habitação & Real State; Mobilidade Urbana; Mulheres e Territórios e Saúde Urbana — e a empresa Diagonal, que tem longa, ampla e reconhecida experiência prática no assunto. Em diversos temas específicos,contou-se com a colaboração de entidades parceiras e de especialistas, além dos membros do Núcleo de Urbanismo Social e da Diagonal: Anaclaudia Rossbach (Lincoln Institute of Land Policy); André L. Duarte (Insper); Camila Maleronka (Insper); Carlos Mario Rodriguez (Instituto Tec- nologico de Monterrey); Elisabete França (Prefeitura de São Paulo); Fernanda Almeida (Territórios Clínicos, FTAS); Fundação Tide Setubal (FTAS); Gabriela Massuda; Gareth Doherty (Harvard University Graduate School of Design); Fernanda Moreira; Hubert Klumpner e Klearjos E. Papanicolaou (Urban Think Thank Next, Zurique); Instituto Alana; Instituto Pólis; Jorge Melguizo (Medellín); José Brakarz; Lizete Ao longo do Guia, apresentamos destaques de conteúdo em formato de box e em “Para saber mais” damos indicações de leitura para quem tiver interesse em se aprofundar nos tópicos discutidos no livro. Sendo um guia prático e não um produto acadêmico, pro- curou-se evitar citações e referências bibliográficas, exceto em passagens nas quais isso era absolutamente necessário. Nesses casos elas são apresentadas como notas de rodapé. Sempre que possível, tanto as indicações de “Para saber mais” como as de referências acadêmicas são acompanhadas de hiperlinks para os conteúdos disponíveis na internet. Imagens e fotografias dos casos estão no Capítulo 15. M. Rubano e Vigliecca & Associados; Lucas Bueno (FAU-USP); Lucas B. Rosin (EACH/USP); Marcus A. Y. Salusse, Juliana M. Mitkiewicz e Luiz F. C. S. Durão (Insper); Marcos Rosa (FAU-USP); Martín Motta e Mariana Poskus (CAF — Banco de Desenvolvimento da América Latina); Murilo Cavalcante (Prefeitura de Recife); Nadia Somekh (CAU-BR); Observatório de Olho na Quebrada de Heliópolis; Portal de Dados Urbanos do Insper; Renato Anelli, Angélica Alvim e Andresa Marques; Antonio Fabiano Jr. (FAU-Mackenzie); Ricardo Henriques (Instituto Unibanco); Roland Krebs e Markus Tomaselli (Urban Design Lab, Universidade Técnica de Viena); Sérgio Magalhães (FAU-UFRJ); Simone Gatti (WRI Brasil / FICA); Ygor Santos Melo e Camila Jordan (TETO Brasil); Vera S. Luz (PUCCAMP). Cabe destacar que o Guia contou com a colaboração fundamental não só de pesquisadores da academia, mas também de profissionais técnicos e gestores públicos e de lideranças que atuam diariamente nos territórios de vulnerabilidade social e favelas, em especial as que integram o Núcleo Mulheres e Territórios. Em cada capítulo, apontam-se os nomes dos autores e das respectivas instituições/entidades às quais eles são ligados. Nos casos de autoria de membros dos núcleos do Laboratório Arq.Futuro de Cidades do Insper ou da Diagonal — os mais recorrentes no Guia —, creditamos ambas, enquanto os autores aparecem referenciados nos quadros adiante. A organização e a coordenação-geral do Guia ficaram a cargo de Carlos Leite, coordenador do Núcleo de Urbanismo Social, com apoio de Ana Letícia Salla, pesquisadora do mesmo núcleo. O Núcleo teve ainda a participação de Fernando Túlio em 2020 e 2021 e de Laryssa Kruger em 2022, ambos colaborando na estruturação dos temas da pesquisa. A revisão editorial dos textos é de Rinaldo Gama, coordenador de Conteúdo do Laboratório Arq.Futuro de Cidades do Insper e inte- grante da equipe BEĨ. O projeto gráfico e a diagramação são de Mariana Demuth e da San.po Arquitetura e Design. https://www.insper.edu.br/laboratorio-de-cidades/ https://diagonal.social/ Capítulo 01 : Sumário ExecutivoGuia de Urbanismo Social 2928 CAPÍTULO AUTORES 1 Sumário Executivo 2 Urbanismo social: conceituação 3 Plano de Ação Local 6 Dimensão sustentabilidade urbana 8 Tópicos em políticas públicas 10 Tópicos em formas de financiamento 11 Tópicos em cidade e criança 13 Tópicos em mulheres e territórios 14 Tópicos em monitoramento e avaliação 15 Casos referenciais 12 Tópicos em saúde urbana 9 Tópicos em regulação urbana 7 Dimensão socioeconômica e cultural 4 Dimensão governança 5 Dimensão territorial Núcleo de Urbanismo Social Núcleo de Urbanismo Social; Lucas Bueno Núcleo de Urbanismo Social; Diagonal Diagonal; André L. Duarte; FAU-Mackenzie Lucas B. Rosin; Ricardo Henriques; Jorge Melguizo Camila Maleronka; Anaclaudia Rossbach; Diagonal Instituto Alana; Núcleo de Urbanismo Social; Núcleo Mulheres e Territórios; Observatório de Olho na Quebrada de Heliópolis Núcleo Mulheres e Territórios Ana L. M. Salla; Fundação Tide Setubal Núcleo de Urbanismo Social; Gabriela Massuda; Sérgio Magalhães; José Brakarz; Elisabete França; Diagonal; Lizete Rubano e Vigliecca & Associados; CAF; UTT_next; Roland Krebs e Markus Tomaselli; Gareth Doherty; Simone Gatti (WRI Brasil / FICA). Núcleo de Saúde Urbana; Fernanda Almeida Núcleo Cidade e Regulação; Instituto Pólis Núcleo de Urbanismo Social; Núcleo Mulheres e Territórios; Marcus A. Y. Salusse, Juliana M. Mitkiewicz e Luiz Fernando C. S. Durão; Marcos Rosa; TETO Brasil Carlos Mario Rodriguez; Fundação Tide Setubal; Núcleo Mulheres e Territórios; Antonio Fabiano Jr. e Vera S. Luz. Diagonal; Portal de Dados Urbanos do Insper; Núcleo Arquitetura e Cidade; Murilo Cavalcante; Núcleo de Urbanismo Social; Núcleo de Mobilidade Urbana; Núcleo Habitação & Real State; Núcleo de Mulheres e Territórios; Núcleo de Urbanismo Social; Nadia Somekh. A seguir, a participação dos diversos autores nos respectivos capítulos: NÚCLEO COORDENADOR EQUIPE Urbanismo Social Cidade e Regulação Mobilidade Urbana Saúde Urbana Arquitetura e Cidade Habitação & Real State Mulheres e Territórios Carlos Leite Victor Carvalho Pinto Sérgio Avelleda Paulo Saldiva Laura Janka José Police Neto Juliana Mitkiewicz Ana Letícia Salla, Laryssa Kruger José Antonio Apparecido Junior Adriano Borges Costa, Evandro Luís Alves Paulo Afonso André Carmen Silva; Cleide Alves, Eliana Silva, Ester Carro, Evaniza Rodrigues, Joelma Sousa, Marília Di Santis Nesta página estão listados os núcleos do Laboratório Arq.Futuro de Cidades do Insper e os integrantes deles que colaboraram com o Guia: CAPÍTULOS AUTORES 3 Plano de Ação Local 6 10 15 Casos referenciais 5 Dimensão territorial José Guilherme Schutzer, Katia Mello e Vilma Dourado Matos Maia Gomes Daniela Lira Mariz, Deise Coelho, Fabio Pereira dos Santos, José Guilherme Schutzer, Rafael Costa e Silva Andressa Capriglione e Deise Coelho Sandra Capriglione, Laís Rebeque Dagola, Carolina de Queiroga Jucá, Kátia Mello e Vilma Dourado Matos Maia Gomes Andressa Capriglione, Letícia Canonico, Paulo Olivato, Rodrigo Tavares A equipe da Diagonal que participou do livro foi esta: Coordenação-geral: Katia Mello Coordenação técnica: José Guilherme Schutzer Dimensão sustentabilidade urbana Tópicos em formas de financiamento Guia de Urbanismo Social 30 AGRADECIMENTOS O coordenador do Guia, Carlos Leite, agradece especialmente a Tomas Alvim, coordenador-geral do Laboratório Arq.Futuro de Cidades do Insper, e a Katia Mello, presidente da Diagonal, pelos apoios fundamentais durante todo o período de desenvolvimento desta obra — da fase de pesquisas à edição final, passando pelo amplo trabalho de alinhamento das contribuições dos diversos colaboradores. Registra ainda um agradecimento ao revisor edi- torial, Rinaldo Gama. Capítulo 02 : Urbanismo Social — Conceitos 33 URBANISMO SOCIAL: CONCEITOS 2.1_ Definições, origem e contexto 2.2_Medellín: contexto e singularidade (o que é replicável e o que é específico) 2.3_ Programas de urbanização de favelas e urbanismo social: semelhanças e complementaridades 02_ AUTORES 2.1_ 2.3_ Núcleo de Urbanismo Social; 2.2_ Lucas Bueno. DEFINIÇÕES, ORIGEM E CONTEXTO2.1_ “O urbanismo social coloca o cidadão no centro da transformação; não é a cidade que se transforma, mas, sim, o cidadão que se transforma e acaba por transformar a cidade.” Jorge Melguizo1 O termo “urbanismo social” tornou-se internacionalmente conhe- cido no início do século XXI, com a experiência colombiana, em especial de Medellín. A referênciaprimordial é essa; não por acaso existem muitos artigos acadêmicos e livros sobre o Urbanismo Social dessa cidade2. Reforça-se aqui a importante explicação apresentada no Capítulo 1: O caso de Medellín inclui alguns elementos que justificam a sua fama e referência como o grande caso na América Latina em “urbanismo social”, trazendo, assim, os conceitos do que se entende por urbanismo social de modo amplo: (i) a continuidade do programa por quase quinze anos e várias gestões municipais; (ii) a efetivação de uma entidade pública empoderada que coordena as diversas políticas e ações públicas e as integra e territorializa nos PUIs (Projetos Urbanos Integrais), a EDU (Empresa de Desen- volvimento Urbano); (iii) a construção de modelos de governança compartilhada entre a gestão pública, a academia e, claro e com protagonismo, a comunidade local; (iv) a efetiva implantação de ações, projetos e obras em diversos territórios com destaque para a construção de grandes equipamentos públicos-âncora (Bibliotecas-Parque; UVA — Unidades de Vida Articulada e outros) com altíssima qualidade arquitetônica; (v) as entregas rápidas de espaços públicos de qualidade articulados com outros elementos 1 Nascido na Comuna 13, o bairro periférico mais violento na época do narcotrá- fico e do protagonismo de Pablo Escobar, Jorge Melguizo foi secretário de Cultura Cidadã e de Desenvolvimento Social de Medellín e um dos responsáveis pela pro- moção do urbanismo social. É atualmente escritor, consultor em diversas cidades da América Latina e professor do curso de Pós-graduação em Urbanismo Social do Laboratório Arq.Futuro de Cidades do Insper. 2 Ver Capítulo 15, com os casos referenciais. Capítulo 02 : Urbanismo Social — ConceitosGuia de Urbanismo Social 3534 do plano urbanístico e, em especial, com os sistemas de mobilidade urbana, com destaque para as estações do Metrocable (teleférico); (vi) a ênfase na redução da violência urbana, desde a seleção inicial dos territórios (sempre os com índices de maior violência), passando pelas abordagens sociais e urbanas integradas às de cultura e educação como estratégia de ação (em contraposição à postura policial repressora). Vale lembrar ainda que o programa de urbanismo social iniciado em 2004 continha uma nova visão de cidade, essencialmente mais inclusiva socialmente, ou seja, tratava-se de um projeto amplo e abrangente, com estratégias gerais e integradas de transformação e não apenas ações ou planos específicos para alguns territórios. No Capítulo 1 apresentou-se a explicação e a justificativa do uso do termo “urbanismo social”. Urbanismo social não é uma experiência que surge de modo isolado na Colômbia. É o resultado de aprendizados, da construção de conhecimentos e de práticas coletivas que tornaram possível a transformação e qualificação das favelas na América Latina, cujas populações há décadas vêm sofrendo com a violência de conflitos, a pobreza, as desigualdades, as carências de infraestrutura urbana de todo tipo e de habitação digna. E que, reconhecidamente pelos seus autores de Medellín, é influenciado pelo caso pioneiro e premiado de urbanização de favelas, o programa Favela-Bairro3, desenvolvido no Rio de Janeiro na década de 19904. Ou seja, deixa-se claro que ambos os conceitos — urbanismo social e urbanização de favelas — não são aqui vistos como excludentes ou objeto de disputa e sim como abordagens complementares e derivadas do desenvolvimento em contextos diversos. 3 Sobre o programa Favela-Bairro, ver item 2.3, adiante. 4 Programas de urbanização de favelas (ou “assentamentos informais”), “Mejo- ramiento de barrios” (espanhol) ou “Slum upgrading programs” (inglês) são os ter- mos utilizados na literatura, bastante ampla, sobre o tema produzida no Brasil e na América Latina, na academia, em programas estatais e nas agências internacio- nais de fomento como BID, CAF, Banco Mundial, ONU Habitat ou Cities Alliance. Ver item 2.3, adiante. No Guia também se pretende mostrar que alguns desses elemen- tos trabalhados pelo urbanismo social já vêm sendo aplicados e desenvolvidos em outras intervenções no Brasil e nos demais países da América Latina inspirados pela experiência de Medellín, mesmo que ainda de modo parcial, em especial os casos do Compaz (Centro Comunitário da Paz) no Recife, desde 2016, e das Utopias de Iztapalapa, desde 2018, na cidade do México. Destaca-se que a experiência pioneira de Medellín, as de Recife e Iztapalapa e as mais recentes sendo desenvolvidas no estado do Pará (Usinas da Paz — Territórios pela Paz) e na cidade de São Paulo (Urbanismo Social em São Paulo, em fase de planejamento e licitação de obras) têm com elemento protagonista a escolha dos territórios com altos índices de violência (ver esses casos no Capítulo 15). Menos enfáticos no protagonismo da redução da violência, mas com ins- pirações no urbanismo social e abordagens específicas, pode-se citar os programas Rede CUCA (Centros Urbanos de Cultura, Arte, Ciência e Esporte) em Fortaleza, Vida Nova nas Grotas, em Maceió, e Mais Vida nos Morros, em Recife. Aqui já se anota, então, um elemento particular dos programas de urbanização social que o diferencia dos programas de urbanização de favelas — o foco na atuação em territórios de maior violência, com robustas ações modeladas para sua redução — e que teve no Brasil uma experiência pioneira, mesmo que infelizmente de curta duração na sua concepção original abrangente, o programa UPP Social (Unidades de Polícia Pacificadora), criado no Rio de Janeiro em 2010 e que chegou a implantar alguns equipamentos- âncora inspirados nas Bibliotecas-parque de Medellín, as Praças do Conhecimento, pontos de referência dos serviços públicos nos bairros pacificados. Ou, como apontado no documento do Pacto pelas Cidades Justas, movimento da sociedade civil reunindo quase trinta instituições da sociedade civil para promoção do urbanismo social em São Paulo em parceria com a Prefeitura da cidade criado em 2020: O papel do urbanismo como instrumento contra a violência das cidades foi amplamente comprovado pela experiência de Medellín, ! PARA SABER MAIS, VER: ▸ Artigo Medellín: inspiração para resgatar as cidades brasileiras. Outras Palavras, 2022. ▸ Os diversos webinários e publicações na página do Laboratório Arq. Futuro de Cidades do Insper. https://www.cufa.org.br/ https://outraspalavras.net/outrasmidias/medellin-inspiracao-para-resgatar-as-cidades-brasileiras https://outraspalavras.net/outrasmidias/medellin-inspiracao-para-resgatar-as-cidades-brasileiras https://outraspalavras.net/outrasmidias/medellin-inspiracao-para-resgatar-as-cidades-brasileiras https://www.insper.edu.br/laboratorio-de-cidades https://www.insper.edu.br/laboratorio-de-cidades https://www.insper.edu.br/laboratorio-de-cidades Capítulo 02 : Urbanismo Social — ConceitosGuia de Urbanismo Social 3736 na Colômbia. A transformação ocorreu graças a um projeto que integrou a construção de espaços e equipamentos públicos de qualidade, soluções inteligentes de mobilidade e investimento contínuo em educação e cultura. Sobretudo, o sucesso se deveu ao fato de que o projeto não se vinculou a uma gestão ou mandato, tendo sido mantido pelas sucessivas administrações da cidade. Medellín foi a cidade que conseguiu consolidar, de maneira articulada, diversas intervenções simultâneas que geraram um resultado urbano e social surpreendente em um período relativamente curto, dado o escopo de todas elas. Isso não significa que esse processo é isento de desafios e críticas. Nenhuma política pública é infalível nem tem o poder de resolver por completo todos os problemas a que se propõe. O surgimento de tal política pública e da metodologia de intervenção participativa centrada na comunidade visando à qualificação de favelas ou territórios de vulnerabilidade social é resultado de um conhecimento coletivo acumulado ao longo dos anos por diversos atores, e em várias cidades, que encontrouambientes com condições mais ou menos favoráveis para a sua implementação. Medellín, por variadas razões, como veremos mais à frente, não é um caso considerado de fácil replicação. Nem deveria ser. As especificidades históricas, culturais, sociais, jurídicas e financeiras de cada cidade demandam adaptações e traduções de estratégias empregadas em circunstâncias distintas. O contexto local importa, o processo importa. O que se propõe aqui, vale reiterar, é justamente um aprendizado sobre os processos e estratégias — lições que tenham potencial de replicabilidade — e não das soluções específicas em si desenvolvidas para o contexto de Medellín ou outras cidades que, mais recentemente, também têm promovido o urbanismo social. Esse exercício de análise também permite aprender com os impasses e desafios encarados nessas cidades, com a possibili- dade de antecipá-los durante o processo de adaptação da política para outros territórios, lembrando que se aprende com os erros e acertos, limitações e avanços e, sempre que possível, por meio de análises de avaliação e monitoramento calcadas em dados e evidências (ver Capítulos 14 e 15). O urbanismo social, em situações ideais com programas completos, opera uma transformação integral no território, promove a quali- ficação e a geração rápida de espaços públicos e a construção de equipamentos públicos-âncora que, juntos e integrados à rede de mobilidade urbana, se transformam rapidamente em lugares públicos qualificados para a vida comunitária ocorrer, elemento essencial de vitalidade urbana e de empoderamento da comunidade local da favela. Ainda, busca-se promover a oferta de infraestrutura urbana e da mobilidade urbana, a construção de habitação social e a recuperação do sistema natural associado às estruturas ecológicas do território, além da redução da violência urbana. Para tanto, é determinante o restabelecimento e o incentivo às relações sociais e culturais solidárias, com o propósito de recuperar o tecido social local e de consolidar uma relação de confiança junto aos atores pro- motores. Esses processos são ainda caracterizados pela presença de ferramentas e instrumentos participativos nas diversas etapas do projeto (desenho, implementação e pós-implementação), que objetivam estabelecer abordagens inclusivas levando em conside- ração perspectivas, demandas e potencialidades das comunidades em questão. Seu escopo é amplo, complexo e variado de caso para caso, porém se busca promover a adequada integração das comunidades às cidades, objetivando melhorar as condições de vida dos habitantes daquelas áreas e ampliar o direito à cidade. Assim, o urbanismo social não apresenta um desenho ou solução únicos e sim pressupostos que permitem a criação de diversas soluções “personalizadas” para os problemas locais complexos. Soluções essas que também surgem e são viabilizadas a partir das possibilidades institucionais e arranjos de governança, com a presença do Estado e de atores locais. Desse modo, o urbanismo social convida ao diálogo multidisciplinar que lida com a diversidade e os desafios dos conflitos sócio-urbanos e ambientais, aportando uma visão sistêmica tanto dos problemas quanto das soluções. Ressalta-se que as questões que afetam as favelas são muitas vezes estruturais e interligadas, podendo constituir causa ou consequência de outros problemas lá presentes. A própria concepção de vulnerabilidade social é entendida como Capítulo 02 : Urbanismo Social — ConceitosGuia de Urbanismo Social 3938 um conceito multidimensional no qual privações de acesso e de garantia de direitos se acumulam e se interconectam. Assim, as diversas ações e políticas do urbanismo social devem procurar promover os acessos básicos ao direito à cidade e à moradia digna, assim como também às ações afirmativas, à pluralidade e diversidade de gênero e étnico-raciais, à equidade socioeconômica, à acessibilidade, à inclusão digital e social. Ressalte-se que o urbanismo social busca sempre valorizar a experiência e história local das comunidades, integrando-as, de forma participativa, aos projetos: o reconhecimento da potência das favelas e das vozes da comunidade local é essencial. A imple- mentação busca manter um alto nível de comprometimento com a execução e entrega das obras (sejam elas de grande ou pequena escala). Esse compromisso também se estende à construção sólida de colaboração local e de articulação institucional, nas quais o processo de governança compartilhada e integrada das intervenções entre as instâncias governamentais e comunitárias é fundamental. O urbanismo social deve nascer ancorado em um plano integrado de ação local, que integra e territorializa todas as políticas públicas e ações, de curto, médio e longo prazo. Há uma governança pública local forte que reúne todos os setores e promove entregas rápidas de elementos catalisadores da trans- formação territorial, como os equipamentos-âncora. Urbanismo social, deve-se acentuar, é um chamado para a ação — as ações de infraestrutura são fundamentais para garantir e melhorar as condições de vida local, ao mesmo tempo que funcionam como instrumentos para unir a população em torno de um objetivo con- creto em comum. Essas intervenções podem eventualmente ser reduzidas, desde que sejam substanciais, ou seja, obras significativas para o desenvolvimento adequado da comunidade e que estejam alinhadas às suas demandas. Os projetos podem começar por ca- minhos diferentes, contudo é essencial promover ações integradas tanto no planejamento quanto na fase de implementação. ! PARA SABER MAIS, VER: ▸ Conceito de vulnerabilidade social ver IPEA. Atlas da Vulnerabilidade Social. Brasília: Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), 2017 mais adiante. A perspectiva de urbanismo social traz elementos de transfor- mações urbanas, ambientais e arquitetônicas visando melhorias socioeconômicas, físicas e sociais do território através de práticas inclusivas para regenerar conexões em áreas vulneráveis. Apesar de demandarem grandes investimentos e esforços para as trans- formações físicas do território, as obras de arquitetura e urbanismo de alta qualidade técnica são concebidas como importantes fer- ramentas que conduzirão à mudança. Ou seja, “o melhor para os mais pobres”, como dizia o ex-prefeito de Medellín (2003-7), Sergio Fajardo, o gestor público pioneiro do urbanismo social junto com o arquiteto e urbanista Alejandro Echeverri, nomeado e devidamente empoderado por Fajardo como gerente-geral da EDU, Empresa de Desenvolvimento Urbano. Ainda: não é a obra em si que transforma o território, mas o tecido social de confiança institucional e comunitária consolidado no exercício cidadão e participativo ao longo do processo de trans- formação física e social e após sua conclusão. ! PARA SABER MAIS: ▸ Atualmente Alejandro Echeverri é Diretor da Urbam EAFIT em Medellín, professor convidado em diversas universidades e membro do Conselho do Laboratório Arq.Futuro de Cidades do Insper. http://ivs.ipea.gov.br/index.php/pt/ http://ivs.ipea.gov.br/index.php/pt/ https://www.insper.edu.br/laboratorio-de-cidades/ https://www.insper.edu.br/laboratorio-de-cidades/ Capítulo 02 : Urbanismo Social — ConceitosGuia de Urbanismo Social 4140 ! PARA SABER MAIS, VER: ▸ Capítulo 5 sobre a Dimensão Territorial. ! PARA SABER MAIS, VER: ▸ Adiante a seção a respeito dos PUIs e o Capítulo 3, sobre Planos de Ação Local. ▸ Forte engajamento de lideranças políticas empoderadas na coordenação do programa, tanto de figuras públicas como de lideranças comunitárias; ▸ Governança integrada e compartilhada das intervenções, tanto entre as instituições da gestão pública (secretarias, agências governamentais etc.) quanto com a comunidade e, quando possível, com outras instituições (terceiro setor, academia); ▸ Participação social deliberativa da comunidade local nas diversas etapas do projeto (desenho, planejamento, implementaçãoe pós-implementação) e controle social visando a uma gestão democrática da cidade na escala local; ▸ Estabelecimento de relações de confiança entre os atores promotores e a comunidade, consolidando um tecido social solidário; ▸ Abordagem integrada (sistêmica) do planejamento, desenho e implementação dos diversos projetos e ações: infraestrutura, mobilidade, equipamentos sociais, habitação social, espaços públicos etc.; ▸ Planos integrados de ação local: ações de curto, médio e longo prazo e processo incremental contínuo: “Nada se faz, em qualquer setor ou secretaria da administração pública, sem que não esteja no PUI”, como se dizia — e fazia — em Medellín; ▸ Ações concretas de entrega rápida: espaços públicos recuperados e criados, preferencialmente integrados à mobilidade urbana; ▸ Equipamentos-âncora públicos com alta qualidade dos projetos arquitetônicos e das obras e com formas de autogestão ou cogestão junto à comunidade e à sociedade civil organizada; ▸ Atuação prioritária em territórios com indicadores de grande violência por meio da adoção de abordagens sociais e urbanas integradas às de cultura e educação como estratégia de ação (em contraposição à postura policial repressora); ▸ Priorização da agenda pública em territórios de alta vulnerabilidade social, visando à mitigação ou redução das assimetrias no acesso aos serviços urbanos; ▸ Monitoramento e avaliação das intervenções no território por meio de evidências: ações que efetivamente não impactem em melhoria na qualidade de vida nos territórios devem ser revistas. A seguir são apresentados alguns dos processos importantes para uma abordagem de urbanismo social: CONHECIMENTO DOS TERRITÓRIOS E DAS DINÂMICAS LOCAIS A complexidade dos problemas inerentes aos territórios das fa- velas representa um desafio para a implementação de quaisquer políticas públicas. Conhecer os obstáculos que cada comunidade enfrenta é um diferencial na efetivação de políticas bem-sucedidas. Para o urbanismo social, é fundamental compreender a situação concreta dos territórios — as condições de pobreza e desigualdade e seus principais desafios; como elas se manifestam e se perpe- tuam — antes de enfrentá-la. Esse conhecimento profundo sobre espaços e as comunidades moldará o planejamento e a execução dos projetos às necessidades e costumes locais. Além disso, é uma abertura para a construção de uma relação de confiança entre as comunidades e a gestão pública, que deverá perdurar ao longo de todo o projeto, sendo essencial nas diferentes etapas. CONSTRUÇÃO DE PLANOS DE AÇÃO LOCAL OU INTEGRADOS Os Planos integrados ou de Ação Local são ferramentas que definem e orientam as estratégias de intervenção no território. Nele estão definidos os projetos de pequeno e grande porte e as ações que serão implementadas no curto, médio e longo prazo. Ele guiará as ações integradas e integrais que acontecem sob um processo de governança compartilhada e transparente. Um exemplo de Plano de Ação Local são os PUIs de Medellín, que articulavam ao mesmo tempo várias ferramentas, estratégias e programas de urbanização buscando uma melhoria sistemática dos territórios em que atuavam. CONVERGÊNCIA E VISÃO COMPARTILHADA DO PROJETO Um dos aspectos mais importantes do urbanismo social é a compreensão de que os projetos convergem e se concretizam PRINCIPAIS ASPECTOS E PRINCÍPIOS METODOLÓGICOS DO URBANISMO SOCIAL EM MODO ABRANGENTE Capítulo 02 : Urbanismo Social — ConceitosGuia de Urbanismo Social 4342 ! PARA SABER MAIS, VER: ▸ Capítulo 5, sobre a Dimensão Territorial. nos territórios. Os projetos a serem implementados devem ser compartilhados e discutidos detalhadamente num mesmo espaço decisório, alcançando de maneira compreensível os diferentes atores envolvidos. Isso previne disputas e descompassos entre agentes que possam vir a ter uma atuação de oposição, capaz de atrasar ou mesmo impedir o andamento do projeto. Ter um espaço decisório compartilhado entre todos os atores também contribui para que a comunidade se sinta parte do processo. Trata-se, afinal, de construir e realizar intervenções com a comunidade e não apenas para a comunidade. Ações descoordenadas entre secretarias da administração pública, por exemplo, podem levar a processos mais longos, com disfunções burocráticas e desconectadas do nível local. A construção de uma visão compartilhada entre a comunidade e aqueles que planejam e executam as intervenções age como um fio condutor do projeto. APROXIMAÇÃO MULTIDISCIPLINAR DO TERRITÓRIO E PROCESSO DE COMUNICAÇÃO ABERTO E INCLUSIVO COM A POPULAÇÃO O engajamento da população passa por um esforço intencional e conjunto de aproximação entre o poder público e as comunidades. Isso implica que o diálogo com a população local não deve ser res- ponsabilidade unicamente de assistentes sociais, mas também de outros gestores especialistas, que precisam conhecer os espaços e seus moradores para compreender suas demandas e preocupações. Essa pode não ser uma aproximação fácil — muitas comunidades sofrem repetidas vezes com a falta de acesso e atenção de políticas públicas e esperam há anos por soluções para os serviços urbanos mais básicos. Ao mesmo tempo, os servidores podem frustrar ou não saber gerenciar a quantidade de demandas e desafios apresentados pela população que precisam atender. Entender os lados dessa relação é parte essencial para criação de um ambiente cooperativo. Para que eles dialoguem são necessários paciência, linguagem clara e inclusiva e esforços coletivos. Os técnicos precisam considerar a dificuldade que os habitantes possam ter para compreender linguagens e conteúdos de caráter técnico, buscando ferramentas para democratizar o entendimento dessas informações. Devem ainda encorajar a comunidade a pensar sobre soluções estimulan- tes e inovadoras para o seu território, superando o mero debate do básico, do essencial, e se aproximando da dimensão do “sonhar”. Apresentar possibilidades em ambientes com grandes restrições e ter a capacidade de traduzir demandas e sonhos é o primeiro passo para ativar potencialidades tanto pessoais quanto da comunidade. Por sua vez, a população local deve utilizar esse espaço de diálogo para apresentar suas demandas, percepções e contrapontos sobre as propostas dos técnicos e do poder público. Também é uma oportuni- dade para construir conhecimento a respeito de temas que afetam a vida da comunidade, como a interdependência entre os problemas, e sobre os processos políticos existentes na produção e implementação de projetos. Usar esse espaço participativo, no qual a contribuição de todos tem o mesmo peso e importância, é essencial para a construção de projetos melhores e mais alinhados às demandas locais. GOVERNANÇA COMPARTILHADA NOS TERRITÓRIOS DE INTERVENÇÃO A governança compartilhada, para o urbanismo social, diz respeito aos espaços de participação e de tomada de decisão, bem como aos atores que participam desse processo nos territórios que passam pelas intervenções de qualificação. A governança compartilhada busca unir tanto as instituições quanto a comunidade em si. Sua criação demanda uma reflexão sobre o modo de organização desses atores (instituições públicas em suas distintas escalas e setores de atuação, entidades privadas ou organizações comunitárias) presentes e atuantes nos territórios, consolidando mecanismos de gestão social, financeira e institucional e atribuindo responsabilidades e obrigações aos agentes do território. Tal processo consiste na criação de grupos de organizações que trabalham coletivamente como uma rede e que têm como ponto forte o envolvimento dos parceiros na tomada de decisões que afetarão a implementação e o planejamento das intervenções locais, bem como a flexibilidade e a responsividade às necessidades do território e de sua população. É um modelo que, para ser eficiente, exige comprometimento e esforços dos participantes, com recursos e Capítulo02 : Urbanismo Social — ConceitosGuia de Urbanismo Social 4544 ! PARA SABER MAIS, VER: ▸ Item 2.2, sobre o caso de Medellín. ▸ SILVEIRA, Mariana Costa. O ativismo da burocracia estatal nas políticas públicas. Jornal Nexo, 2020. ! PARA SABER MAIS, VER: ▸ Capítulo 9, sobre Tópicos em Formas de Financiamento; ▸ Capítulo 8, a respeito dos Tópicos em Regulação Urbana. ! PARA SABER MAIS, VER: ▸ Capítulo 4, sobre Governança. ASPECTOS FINANCEIROS E JURÍDICOS PARA MANUTENÇÃO E CONTINUIDADE DOS PROJETOS O desenvolvimento de projetos de urbanismo social, assim como de outras intervenções urbanas, precisa estar de acordo com o arcabouço jurídico e os marcos legais vigentes nas cidades onde os planos serão implementados. Uma dificuldade recorrente é que nem sempre os marcos legais levam em consideração ca- racterísticas e desafios específicos de territórios das favelas – e que parcela considerável da população urbana vive em bairros irregulares, "invisíveis", portanto, à aplicação das políticas pú- blicas e suas ações. Outro ponto importante é compreender que se, mesmo após a intervenção, esses territórios continuarem sem acesso a serviços públicos básicos — como coleta de lixo, manutenção da rede de esgoto, oficialização de ruas, iluminação adequada etc. —, haverá um processo de deterioração que ameaçará todo o avanço e os benefícios levados até aquela população. Sem a devida manu- tenção dos serviços públicos, qualquer bairro se deteriora. Por isso, a regularização desses bairros e o fornecimento de serviços públicos básicos é um fator essencial para que o investimento governamental não tenha sido em vão. MANUTENÇÃO E CONTINUIDADE DOS PROJETOS Outros dois grandes dilemas enfrentados em quaisquer políticas públicas são (i) a manutenção e (ii) a continuidade de projetos implementados durante uma gestão pelos seus sucessores. O ciclo eleitoral é, claro, parte do processo democrático, assim como a alternância no poder. Prefeitos vêm e vão; entretanto, como garantir a continuidade dos projetos ao longo dos anos e das gestões? Pro- jetos socialmente considerados positivos e cujo valor é percebido e compartilhado com a população têm mais chances de sobrevida. A comunidade e os processos (e espaços) de participação e controle social são dois elementos cruciais. Muitas vezes a realização de tempo dedicados ao seu funcionamento — daí a importância de uma boa articulação com a comunidade, do compromisso com prazos e da promoção de entregas que darão credibilidade às ações. LIDERANÇA E COORDENAÇÃO POLÍTICA COMO CHAVE PARA INTEGRAR AS POLÍTICAS PÚBLICAS Um dos pontos mais desafiadores do urbanismo social é a coor- denação política e a presença de uma liderança forte na figura do prefeito (e/ou de seus secretários, ou de um grupo gestor específico). Por se tratar de uma política que presume eficiente coordenação institucional, integração intersetorial e destinação orçamentária expressiva no médio e longo prazo, o prefeito é a liderança que pode colocar todos esses atores na mesa para dialogar e priorizar a agenda em seu governo. Tais alinhamentos políticos e institucionais reclamam muita co- ordenação, de modo que o apoio dos secretários e dos demais servidores é igualmente importante para que o projeto seja bem- -sucedido. A construção e a condução do processo são coletivas e participativas não apenas em relação à comunidade como também entre os órgãos e secretarias do governo local. Não se trata uni- camente do estabelecimento de metas compartilhadas e sim de uma visão compartilhada do projeto, que é aprimorado por meio das contribuições de cada área. Isso evita que os projetos sofram com sobreposições de competências e disputas internas na ges- tão pública. Além da legitimidade do voto e do apoio que atores eleitos venham trazer às políticas, a burocracia, representada pelos servidores públicos, pode ter um papel crucial como agente incentivador ou de resistência aos projetos de urbanismo social. A boa comunicação e o alinhamento entre os distintos atores internos em relação ao poder público podem fazer a diferença no encami- nhamento das várias etapas de tramitação que a política pública demanda. Os servidores, além de terem condição de atuar como facilitadores, ainda podem ser parceiros ou até mesmo contribuir de forma engajada com a agenda, trazendo possíveis inovações e perspectivas complementares. https://www.nexojornal.com.br/academico/2020/04/16/O-ativismo-da-burocracia-estatal-nas-pol%C3%ADticas-p%C3%BAblicas https://www.nexojornal.com.br/academico/2020/04/16/O-ativismo-da-burocracia-estatal-nas-pol%C3%ADticas-p%C3%BAblicas https://www.nexojornal.com.br/academico/2020/04/16/O-ativismo-da-burocracia-estatal-nas-pol%C3%ADticas-p%C3%BAblicas Capítulo 02 : Urbanismo Social — ConceitosGuia de Urbanismo Social 4746 Ao partilhar de uma visão positiva sobre uma política pública ou projeto, a sociedade dá maior legitimidade a ela e, por isso, pode contribuir para garantir a sua continuidade, apesar dos desafios existentes. Por esse motivo, é importante desenvolver um trabalho constante de conscientização da população — como um todo, não apenas dos territórios que estão no foco das intervenções — a respeito do valor e dos bons resultados gerados a partir das ações propostas. Persuadir a opinião pública pode não ser uma tarefa fácil, então aqui estão algumas sugestões de como fazer isso de modo sério: ▸ Monitorar indicadores sociais e processos de avaliação dos resultados com base em evidências; ▸ Divulgar essas informações de maneira transparente e acessível em diferentes meios de comunicação; ▸ Participar de fóruns de debate com outras comunidades e organizações da sociedade civil, apresentando as experiências, os resultados alcançados e compartilhando desafios; ▸ Apresentar experiência e processos de monitoramento e avaliação em espaços de debate no ambiente acadêmico, como universidades, encontros e seminários; ▸ Compartilhar as boas experiências em órgãos multilaterais. ▸ Ver mais nos Capítulo 8 e 14. CONSTRUÇÃO DA PERCEPÇÃO SOBRE A POLÍTICA PÚBLICA grandes projetos é evitada por haver receio de riscos políticos associados (rejeição e críticas). Uma forma de diminuir esse risco é dividi-lo com outros atores (desde a população até servidores públicos e secretários), consolidando mecanismos de gestão social, institucional e financeira, atribuindo responsabilidades e obrigações para os agentes do território. Ao incentivar uma ampla participação na formulação dos projetos com as diferentes partes interessadas, cria-se uma lógica coletiva alinhada com demandas e necessidades locais, bem como capacidades institucionais. Ao espalhar a decisão entre instituições e entes públicos, não se está compartilhando apenas o poder de decisão; ao mesmo tempo, reduz-se o risco associado a certas políticas e projetos. A partici- pação comunitária em todo o processo orienta à apropriação social coletiva da comunidade, que cobrará dos agentes e dos usuários a manutenção e conservação do projeto. Outra abordagem possível é introduzir algumas etapas do projeto de maneira incremental ao longo do tempo. Isso permite que certos aspectos sejam discutidos e incorporados de modo gradual, evitando mudanças bruscas que possam gerar atritos e questionamentos. Um prazo maior também permite processos participativos mais robustos e elaborados. Ambas as estratégias diminuem os riscos porque constroem visões compartilhadas, fortalecendo a legitimidade. Os possíveis problemas e conflitos vão surgindo e sendo solucionados durante o processo, e não somente após a entrega da intervenção. Quando uma política é construída de forma participativa, cria-se um vínculo com aquela ação, que passa a ser de todos, gerando incentivos para a sua continuidade. Capítulo 02 : Urbanismo Social — ConceitosGuia de Urbanismo Social 4948 ! PARA SABER MAIS, VER: ▸ Capítulo 3, sobre Planos de Ação Local.▸ Capítulo 15, com casos referenciais. ▸ CAVALCANTI, Murilo. Conexão Recife Medellín Compaz — Laboratório de boas práticas urbanas. Recife: Cepe, 2022. ▸ PONZI, Túlio, LEITE, Carlos. Urbanismo Social com as cores do Recife, Revista Piauí, 2021. coordenada no mesmo projeto com as mesmas metas e os mesmos objetivos; ▸ Descontinuidade ocasionada por mudanças nas gestões, tanto pelo ciclo eleitoral quanto pela troca de secretários e equipe das secretarias; ▸ Sustentabilidade dos projetos, intervenções de longo prazo e com alto custo de implementação e manutenção posterior; ▸ Manutenção das intervenções no território, especialmente se não houver ação coordenada para oficialização da respectiva localidade e fornecimento de serviços públicos; ▸ Manutenção da mobilização e engajamento da população (processos participativos e de governança) sem que haja mudanças ou entregas concretas acontecendo. Bons projetos e bons planos de intervenção integrada fazem a diferença — inclusive para a manutenção posterior dos bairros e projetos — desde que combinados com processos planejados de entregas rápidas e alinhados com as ações incrementais e sistêmicas de médio e longo prazo. ENTREGAS RÁPIDAS DE AÇÕES CONCRETAS A dinâmica das entregas representa um importante diferencial no urbanismo social: implementar as ações concretas e de modo rápido e contínuo, superando o campo do planejamento, gargalo recorrente nos programas de urbanização de favelas no Brasil e na América Latina. Entregas rápidas e recorrentes são fundamentais para garantir maior aderência, credibilidade e participação da comunidade local. Uma característica importante que distingue o urbanismo social é a rapidez dos projetos. A base dessa característica está na necessidade de implantar ações físicas e materializadas no terri- tório, como um compromisso social do poder público para aquela comunidade. O aspecto central é consolidar ações concretas no território, como os equipamentos-âncora e os espaços públicos que promovem a qualificação da vida coletiva de forma imediata. Paralelamente a isso, trabalha-se em processos e projetos mais complexos, e consequentemente mais morosos, como a promoção de infraestrutura e de habitação social (via de regra, em mais de uma gestão). Aqui vale a máxima "não se trata do que fazer, mas como de fazer". Naturalmente, é fundamental ter bons processos de planejamento e projetos de alta qualidade de futuras interven- ções, no entanto é necessário superar essa etapa, consolidando ações concretas no território que ratifiquem os compromissos dos agentes promotores com a comunidade. Materializar ações programadas nos planos de intervenção local, independentemente de seu porte, contribui para a transformação do cenário habitual de estagnação e descontinuidade de projetos, o que leva ao perigoso descrédito da população com o poder público, cristalizando a ideia de que se “produzem muitos planos sem que nada saia do papel”. PRINCIPAIS DESAFIOS DA ABORDAGEM DE URBANISMO SOCIAL ▸ Baixa articulação institucional dentro do governo para atuar de maneira Capítulo 02 : Urbanismo Social — ConceitosGuia de Urbanismo Social 5150 MEDELLÍN: CONTEXTO E SINGULARIDADE (O QUE É REPLICÁVEL E O QUE É ESPECÍFICO) 2.2_ Na década de 1990, Medellín chegou a ser considerada a cidade mais violenta do mundo, com índices altíssimos de homicídios: em torno de 380 mortos por 100 mil habitantes em 19915. A metrópole colombiana era campo de um violento conflito interno — que envolvia atores do Estado aplicando fortes políticas de repressão contra o narcotráfico, as guerrilhas e os grupos paramilitares —, em um cenário que refletia uma complexa dinâmica local de disputa nas áreas sociais, políticas e econômicas. Foi naquele contexto que Medellín desenvolveu e implementou o urbanismo social, concebido a partir da mediação de conflitos e da abertura de diálogo institucional com a comuni- dade e consolidado com os projetos urbanos integrais executados posteriormente. Sublinhe-se que as intervenções de urbanismo social em si não trataram problemas de violência local por meio de ações de forças policiais e sim de abordagens construtivas de prevenção e mediação de conflitos nos assentamentos informais dos “bairros populares” — favelas — de Medellín, localizados nas encostas do vale, em regiões íngremes e de alto risco. Como em outros centros urbanos, a violência, a pobreza e as desigualdades sociais dominavam as regiões periféricas ou zonas excluídas da cidade, que eram ocupadas e comandadas por diferen- tes grupos armados. Esse contexto e os diversos atores em disputa evidenciam a enorme dificuldade e urgência de implementação naquele território de projetos urbanos para a entrada (e perma- nência) do governo em tal área e para a conquista da confiança da população local no governo municipal. A presença da violência na vida e nos espaços urbanos do cotidiano, ao lado da complexidade social dos territórios, exigia do Estado uma resposta maior do que os meros deveres básicos de fornecimento de serviços públicos. A solução encontrada foi um modelo de intervenção aberto a novas 5 Disponível em: Urbanismo Social que promove segurança. Arq.Futuro/Casa Vo- gue, 2019. dinâmicas de participação, que respondesse ao conjunto de deman- das dos habitantes, ao mesmo tempo que se reconstruía a coesão do tecido social e se reintegravam os espaços físicos, reconectando as zonas historicamente excluídas ao restante da cidade. Naturalmente, há uma história prévia que contextualiza a emer- gência do programa de urbanismo social na gestão do prefeito Sergio Fajardo em 2014, que passa (i) pela emergência no âmbito nacional colombiano de um marco regulatório urbanístico inovador e robusto — derivado das leis colombianas de reforma urbana — e a criação de instrumentos jurídicos locais; (ii) pelas especificidades da estrutura urbana e econômica de Medellin; (iii) pelo ambiente político, por arranjos institucionais e agentes estratégicos para a proposta de mudanças sociais e espaciais mencionadas adiante e (iv) pelas transformações inovadoras e impactantes que vinham ocorrendo havia alguns anos na capital do país, Bogotá6. No Capítulo 15 aprofundamos o caso de Medellin, e aqui destacamos três iniciativas locais que foram fundamentais para a construção, coordenação e implementação das intervenções de urbanismo social: a Empresa de Desenvolvimento Urbano (EDU), os Projetos Urbanos Integrais (PUIs) e a Empresa Pública de Medellín (EPM). Elas, além de inovadoras, são parte do que tornou a metrópole colombiana um caso singular, no qual financiamento, planejamento, articulação interinstitucional e implementação integrada transfor- maram não apenas as comunidades mas a cidade como um todo. EMPRESA DE DESENVOLVIMENTO URBANO (EDU) O urbanismo social em Medellín é marcado pelo robusto exercício da coordenação interinstitucional. Os PUIs foram coordenados e implementados pela Empresa de Desenvolvimento Urbano (EDU) — instituição jurídica municipal essencial para viabilizar a transformação urbana e social. 6 Mariana Wilderom em LEITE, Carlos et al. Social Urbanism in Latin America: Cases and Instruments of Planning, Land Policy and Financing the City Transformation with Social Inclusion. Cham: Springer Nature, 2020. https://arqfuturo.com.br/post/urbanismo-social-cidadania-que-promove-seguranca https://digitalfavela.com.br/ https://digitalfavela.com.br/ https://link.springer.com/book/10.1007/978-3-030-16012-8 https://link.springer.com/book/10.1007/978-3-030-16012-8 https://link.springer.com/book/10.1007/978-3-030-16012-8 Capítulo 02 : Urbanismo Social — ConceitosGuia de Urbanismo Social 5352 Com uma proposta inovadora, a EDU é uma empresa pública mu- nicipal que possui patrimônio próprio e autonomia administrativa e financeira. Com essas características, a EDU liderou todo o processo de implementação das intervenções (elaboração, coor- denação institucional,planejamento e implementação via PUIs). Essa empresa pública tornou-se um poderoso espaço institucional intersetorial para a articulação de órgãos públicos e privados. A EDU começou a mobilizar e coordenar diferentes agentes de acordo com a competência necessária de cada intervenção sob sua super- visão: agências de planejamento, Empresas Públicas de Medellín (EPM), as diversas secretarias municipais etc. Essa capacidade de articulação, planejamento, gestão e monitoramento de resultados desenvolvida pela EDU foi fundamental para a expansão dos PUIs. ▸ Espaço institucional intersetorial empoderado de articulação de órgãos públicos e junto à sociedade; ▸ Mobilização e coordenação de diferentes órgãos de acordo com a competência necessária a cada intervenção sob a sua supervisão, como agências de planejamento e de implementação (diversas secretarias); ▸ Capacidade de articulação, planejamento, formulação e gestão, o que se revelou fundamental para a metodologia integrada proposta pelo urbanismo social. PROJETOS URBANOS INTEGRAIS (PUIS) Os PUIs começaram a ser realizados em 2000 e são uma evolução dos Programas de Melhoramento Integral de Bairros Subnormais (PMID). Atuam em três dimensões —física, social e institucional —, promovendo ações integradas entre as diferentes secretarias com o objetivo de reduzir as desigualdades socioterritoriais e ampliar o direito à cidade às comunidades afetadas. As ações são destinadas à promoção e qualificação do espaço público, construção de equipa- mentos de uso coletivo — os chamados equipamentos-âncora — como bibliotecas, escolas, creches, recuperação do sistema natural, promo- ção da regularização fundiária e construção de moradias populares. Os projetos consolidados promoveram, articulados entre si, novas formas de apropriação do espaço público urbano, a partir da acessi- bilidade e da inclusão, por meio de articulações locais com equipes especializadas e multidisciplinares. Os PUIs propunham programas e projetos complementares focados na educação, empreendedorismo, segurança, convivência, saúde, esporte e recreação. Eles concentra- vam esforços de atuação em bairros com certo grau de consolidação urbana porém baixo índice de desenvolvimento humano, segregados e com altos índices de pobreza e violência — onde a ausência do Estado era notável. Os PUIs sempre foram os instrumentos essenciais à promoção do urbanismo social, alinhando as diversas ações e políticas públicas, integrando-as e territorializando-as. RECORTES DE ATUAÇÃO DOS PUIS No âmbito físico ▸ Intervenções concretas em infraestrutura, equipamentos de uso coletivo, saneamento e habitação, com priorização das zonas mais conflituosas das comunas, criando ambientes seguros contra os diversos riscos; ▸ Recuperação de áreas ambientalmente degradadas e consolidação de sistema de espaço público associado à mobilidade e aos projetos definidos para cada zona. DESTAQUES DA ATUAÇÃO DA EMPRESA DE DESENVOLVIMENTO URBANO (EDU) https://conhecimento.fgv.br/sites/default/files/iptu_no_brasil_um_diagnostico_abrangente_0.pdf Capítulo 02 : Urbanismo Social — ConceitosGuia de Urbanismo Social 5554 No âmbito social ▸ Reconhecimento das lideranças e agentes locais dos territórios, estabelecendo atores-chave para a comunicação e o desenvolvimento das etapas subjacentes; ▸ Implementação de conselhos gestores e de processos participa- tivos para resolução de conflitos associados aos territórios e para o planejamento das atividades previstas, legitimando as ações definidas para o território; ▸ Amplo diagnóstico das condições de vida da população local, residente na área de intervenção, procurando identificar os prin- cipais problemas para o exercício digno da vida, seja associado ao acesso à terra, à moradia, ao saneamento básico, aos serviços ou à infraestrutura pública. No âmbito institucional ▸ Articulação com agentes estabelecidos nos territórios, de maneira a consolidar parceiros locais, fortalecendo a gestão institucional e ampliando os laços com a comunidade; ▸ Definição de instrumentos, mecanismos e responsabilidades para a efetivação dos projetos estipulados; ▸ Gestão financeira responsável e articulada entre secretarias e instituições promotoras, determinando responsabilidades e atribui- ções para a execução dos projetos; ▸ Planejamento da gestão durante e após a execução dos projetos, elencando as atribuições e responsabilidades pertinentes para cada agente da comunidade e das instituições participantes. A promoção dos PUIs orientados através dos eixos de mobilidade projetados para a cidade — como os metrocables (teleféricos) — permitiu a transformação integral desses territórios, promovendo a articulação das comunidades e da cidade formal, potencializada pela estratégia do equipamento-âncora como impulsionador das atividades e como um contrato social com a comunidade, e a qualificação dos espaços públicos, estruturando um sistema que expande o caráter das transformações sociais instituídas nos territórios em questão. EMPRESAS PÚBLICAS MUNICIPAIS (EPM) A implementação de políticas públicas sociais e urbanas complexas e de escopo tão extenso quanto as realizadas em Medellín necessita de consideráveis investimentos. Outro órgão de grande relevância para as ações foi a Empresas Públicas Municipais de Medellín (EPM), que se mostrou essencial para o financiamento das amplas obras de reintegração física e social do território. A EPM constitui um grupo empresarial que atua na área de infraestru- tura, incluindo geração e distribuição de energia elétrica, tratamento e distribuição de água, coleta e tratamento de esgoto, distribuição de gás encanado, coleta e destinação de resíduos sólidos e serviços de telecomunicação, entre outros. Controlada pela prefeitura de Medellín, presta serviço também para várias cidades da Colômbia e de outros países da América Latina. É considerada referência internacional em matéria de governança corporativa de empresas públicas. Entre 2001 e 2011, a EPM contribuiu com US$ 877 milhões, uma média de 50% de seus lucros para o município, o que, por sua vez, representa 27% dos recursos de investimento da cidade7. 2.2.1_ ALGUMAS LIMITAÇÕES E CRÍTICAS AO URBANISMO SOCIAL A abordagem no presente Guia é sempre no sentido de analisar e referenciar uma experiência duradoura que permita uma reflexão crítica sobre os seus avanços e limites. Apesar dos vários e robustos ganhos em potencial apresentados, o urbanismo social não está isento de avaliações mais críticas sobre seus conceitos e implementações. Tais reparos demonstram a complexidade que as políticas públicas urbanas podem enfrentar na sua implementação em ambientes sociais complexos e os revezes a que elas estão sujeitas se houver baixa aderência política e/ou social ao projeto que vem sendo desenvolvido. 7 Mariana Wilderom. Ibidem. https://www.edu.gov.co https://www.edu.gov.co Capítulo 02 : Urbanismo Social — ConceitosGuia de Urbanismo Social 5756 PROGRESSIVA DESCONTINUIDADE DAS AÇÕES E PROGRAMAS APÓS TRÊS GESTÕES Os projetos de urbanismo social em Medellín existem há quase vinte anos. Os diferentes prefeitos apoiaram com maior ou menor intensidade a continuidade do que foi implementado por outros governantes. Mas mesmo lá, porém, o prosseguimento dos projetos ainda é dependente de um ciclo político favorável. Depois de três gestões, a continuidade ou manutenção daquilo que fora implanta- do foi sendo reduzida gradativamente conforme acontecia a troca de prefeitos. Apesar dessa falta de disposição para seguir com os projetos de urbanismo social atualmente, cabe apontar que a institucionalização deles e a forte aderência da população podem ser apontados como fatores que contribuíram para que a política e os equipamentos não fossem desmobilizados por completo. A CRÍTICA AO “MARKETING URBANO”, “CITY BRAND” E APRESENTAÇÃO DA CIDADE COMO O “MEDELLÍN MIRACLE” OU O “MODELO MEDELLÍN” Junto com a surpreendentetransformação pela qual passou a cidade colombiana8, começaram a surgir algumas críticas: ▸ Crítica ao uso do “modelo Medellín” de urbanismo social como uma fórmula com apelo de marketing que permitiria “exportar” o que se fizera naquele município para outras cidades da América Latina, sem levar em conta os seus contextos locais e suas peculiaridades; ▸ Crítica ao fato de que supostamente o sucesso de Medellín haveria sido capturado pela publicidade turística, gerando, assim, uma forte e valiosa marca, uma “city brand”. Esse fator teria sido responsável por um grande afluxo de visitantes, vindos de diversos lugares do planeta, só para conhecer os territórios transformados pelo urbanismo social, as chamadas comunas. ▸ 8 Medellín: da mais violenta à mais inovadora do planeta, BBC Brasil, 2013. A “GENTRIFICAÇÃO” CAUSADA PELO URBANISMO SOCIAL Trata-se do processo de valorização urbana que ocorre após a transformação e a qualificação de territórios precários, com a consequente expulsão da população local de baixa renda, impos- sibilitada de lá continuar vivendo devido à elevação dos custos e a dificuldade de atrair população de baixa renda para esses lugares. Vale lembrar que o fenômeno da valorização dos preços — particu- larmente da terra e dos imóveis — ocorre inexoravelmente em todos os territórios que se qualificam, em quaisquer cidades do mundo. O que se tenta fazer nos processos de transformação urbana é atenuar o fenômeno por meio de alguns instrumentos de política fundiária, dentre eles: a demarcação de áreas/zonas destinadas exclusivamente à moradia social — e, quando for necessário, a construção de moradia social nesses lugares — para a manutenção da população local; a promoção dos instrumentos de captura da valorização do solo. Por fim, como qualquer processo de transformação urbana du- radouro em uma grande cidade (Medellín tem aproximadamente 2,5 milhões de habitantes) — e esse é um dos maiores méritos do urbanismo social dessa cidade —, há sempre limitações conjunturais de difícil superação. Ainda assim, “talvez o elemento fundamental e catalisador da transformação urbana de Medellín tenha sido o conjunto de estratégias participativas que ativaram diferentes estruturas e representações da sociedade civil dentro do processo político. Ao convidá-los a pensar, desenvolver e pactuar planos e intervenções, vislumbrou-se a possibilidade de um novo contrato social. Esse talvez tenha sido o maior mérito de Fajardo: criar o ambiente adequado para que isso acontecesse. E talvez seja tam- bém o seu maior legado, pois, na medida em que a população tem reconhecido os seus direitos de cidadão na tomada de decisões, pode, afinal, vir a exigi-los”9. 9 Mariana Wilderom. Op. cit. ! PARA SABER MAIS, VER: ▸ Capítulo 9. Capítulo 02 : Urbanismo Social — ConceitosGuia de Urbanismo Social 5958 PARA SABER MAIS, VER: ▸ Publicações da Urbam EAFIT, Medellín; ▸ ALCALDÍA DE MEDELLÍN. Guía de la Transformación Ciudadana, 2004-2011. Medellin: Alcaldía de Medellín, 2011; ▸ ALCALDÍA DE MEDELLÍN e BID. Medellín, Transformación de una Ciudad. Medellin: Alcaldía de Medellín e BID, 2009; ▸ CAVALCANTE, Murilo (org.). As lições de Bogotá e Medellín: Do caos à referência mundial. Recife: INTG, 2014; ▸ Publicações e webinários do Núcleo de Urbanismo Social; ▸ ANTONUCCI, Denise e BUENO, Lucas. A construção do espaço público em Medellín. Quinze anos de experiência em políticas, planos e projetos integrados. São Paulo: Arquitextos, 2018; ▸ COELHO, Tiago. Como escapar do inferno. Outras Palavras, 2022; ▸ Capítulo 15 (Casos Referenciais). ! PROGRAMAS DE URBANIZAÇÃO DE FAVELAS E URBANISMO SOCIAL: SEMELHANÇAS E COMPLEMENTARIDADES 2.3_ Nas cidades brasileiras, a atuação da gestão pública no que se refere às favelas foi até o final dos anos 1980, pautada pela lógica de erradicação desses espaços e não pelo seu reconhecimento e pela busca por solucionar seus problemas. Tais territórios eram encarados como anomalias, em vez de resultado de fatores estru- turais, e suas peculiaridades e potencialidades passavam ao largo. As características dos assentamentos precários são muito diversas, variando em localização (morros, vales, periferias urbanas), tamanho e densidade (com poucas famílias ou milhares de habitantes), tipo e qualidade de construções, situação da propriedade (ocupações em áreas públicas ou privadas), situação de (i)legalidade e regulari- zação fundiária, grau de consolidação e níveis de integração com a chamada cidade formal, isto é, aquela regularizada, equipada e com infraestrutura. O que esses territórios geralmente têm em comum é a forte carência de infraestrutura urbana, baixo acesso a serviços e equipamentos públicos essenciais, significativa segregação em relação à cidade formal, precariedade associada a suas formas de morar e a incerteza na posse da terra onde estão localizados, além da presença de crescentes e variados modos de violência urbana. A relação entre Estado e favelas no Brasil veio se transformando ao longo das décadas, passando pela repressão, tolerância, su- bordinação, relativa aceitação, reconhecimento de existência e permanência e, finalmente, por sua legitimação na cidade, incluindo o reconhecimento e valorização das potências locais construídas pelas comunidades. São transformações alcançadas tanto por mu- danças nos marcos institucionais quanto por pressões sociais — de maneira progressiva e através de um longo processo de lutas pelos direitos básicos à cidade e à moradia10. A partir daí tem emergido em diversas cidades brasileiras o entendimento sobre a necessidade de metodologias que permitam intervenções mais abrangentes, capazes 10 O Capítulo 5 aborda mais o tema da habitação social. https://www.eafit.edu.co/centros/urbam/articulos-publicaciones/Paginas/produccion-urbam.aspx https://acimedellin.org/wp-content/uploads/publicaciones/libro-transformacion-de-ciudad.pdf https://www.insper.edu.br/laboratorio-de-cidades/ https://vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/19.218/7022 https://vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/19.218/7022 https://piaui.folha.uol.com.br/materia/como-escapar-do-inferno/ Capítulo 02 : Urbanismo Social — ConceitosGuia de Urbanismo Social 6160 de incluir todo o território, apesar de ainda estarem distantes do necessário e da urgente demanda por ganhar escala e continuidade11. Em geral, no Brasil e nos demais países da América Latina, os pro- gramas de urbanização de favelas têm como aspectos centrais a promoção de habitação social e de infraestrutura urbana essencial. E, nos programas mais completos, chamados integrais, as ações incluem: mapeamento e reassentamento de famílias situadas em áreas de risco; o provimento de infraestrutura urbana (sistemas de água, esgoto, saneamento, energia elétrica, drenagem e iluminação); promoção de obras de contenção e estabilização de encostas; aber- tura de ruas; promoção de moradia; construção de espaços públicos; inserção de equipamentos públicos essenciais e, na sequência, as dimensões de regularização fundiária e dos direitos básicos de cidadania (endereço oficial). Durante todo o processo, há o acompanhamento social junto à comunidade e o empenho para que ela participe do processo. Tais ações são fundamentais para promover a inserção da população no contexto legal da cidade e, na situação ideal, visa-se transformar uma favela com inúmeros problemas e carências em um “bairro regular”, com melhores condições de vida. Daí o nome do programa brasileiro pioneiro nessa frente: Favela-Bairro (ver Capítulo 15). Como tais intervenções são bastante complexas, morosas e de alto custo, além de essencialmente dependentes de ações públicas, com frequência não é possível entregar “o pacote completo”, de modo que o que foi planejado, muitas vezes, não tem êxito em sua totalidade. Com frequência, os programas são interrompidos ou executados apenas em parte; isso por diversas razões: ausência de uma liderançapolítica forte com essa pauta empoderada na gestão, baixa integração setorial das políticas públicas e suas as ações, ausência de financiamento para todas ações, falta de priorização do programa por parte dos prefeitos, descontinuidade de gestão etc. 11 BONDUKIi, Nabil (org.). A luta pela reforma urbana no Brasil: do seminário de habitação e reforma urbana ao plano diretor de São Paulo. São Paulo: Instituto Casa da Cidade, 2018. SANTOS, Milton. A urbanização brasileira. São Paulo: Hucitec, 1993. As ações de urbanização de favelas podem ser utilizadas em territórios onde predominam formas de ocupação mais precárias, como palafitas, ruas sem asfaltamento, sem ligação de esgoto etc. Nesses casos, serão necessários investimentos maiores em infraestrutura urbana, como saneamento e recuperação de áreas de risco. A provisão habitacional também se torna essencial, tendo em vista a condição de precariedade existente. Por sua vez, no urbanismo social, ainda que haja projetos de infraestrutura e expansão de acesso a esses serviços básicos, os programas atuam prioritariamente em territórios cujo grau de precariedade física não seja tão amplo e intenso a ponto de monopolizar a urgência de investimentos apenas para essas ações essenciais e custosas. Seja por impasses relacionados à descontinuidade de gestão, con- tingenciamento orçamentário ou baixa integração entre secretarias e coordenadorias que cuidam de políticas setoriais de maneira independente, os programas de urbanização de favelas, salvo exceções, infelizmente têm revelado descontinuidade ao longo do tempo, não conseguindo concluir todas as entregas previstas inicialmente. A população, mobilizada e inserida no processo de escuta e de decisão, acaba muitas vezes deixando de acreditar no processo. Além do efeito simbólico de confiança nas instituições públicas, essa prática tem o efeito de deslegitimar as contribui- ções advindas do processo participativo. Por isso, parte central da política de urbanismo social são as entregas contínuas, de curto, médio e longo prazo e de baixa, média e alta complexidade. Assim, é sempre possível enxergar o que está sendo realizado, mantendo o engajamento e a legitimidade da comunidade. Os programas tradicionais de urbanização de favelas dão um enfoque maior a dois elementos: (i) melhorias de infraestrutura urbana e (ii) moradia. Ambos são os mais custosos e morosos. Apesar de serem demandas essenciais e urgentes na promoção da qualificação do território e consequente melhoria nas condi- ções de vida da comunidade, talvez a abordagem integrada e que contempla entregas rápidas de elementos menos complexos e morosos do urbanismo social — espaços públicos, urbanismo tático e equipamentos públicos — possa complementar os programas. http://www.casadacidade.org.br/wp-content/uploads/2018/12/A-Luta-Pela-Reforma-Urbana-no-Brasil_CAU-SP_2018.pdf http://www.casadacidade.org.br/wp-content/uploads/2018/12/A-Luta-Pela-Reforma-Urbana-no-Brasil_CAU-SP_2018.pdf Capítulo 02 : Urbanismo Social — ConceitosGuia de Urbanismo Social 6362 Deve-se ressaltar a enorme diferença de contexto em escala dessas demandas essenciais — melhorias de infraestrutura urbana e promoção de moradia — entre Medellín e duas grandes cidades brasileiras, São Paulo e Rio de Janeiro, cujos tamanhos de população e carências são muito maiores. Nesse sentido, remete-se o leitor do Guia a algumas experiências de urbanização e favelas amplamente estudadas nas duas grandes metrópoles nacionais: o já mencionado programa Favela-Bairro, no Rio de Janeiro (com mudanças de nome no decorrer do tempo, entre paralisações e retomadas), e os programas em São Paulo nos mananciais, em Paraisópolis e em Heliópolis. Adiante são apontadas referências a essas e experiências em outras cidades do país. Ao se lembrar dos elementos característicos e das singularidades do urbanismo social apontadas no item “2.1_ Definições, origem e contexto”, deve-se novamente ressaltar que há muitas aproxi- mações e semelhanças entre os dois conceitos, a começar pelo objetivo central: a promoção da melhoria das condições de vida das comunidades que vivem nas favelas. As abordagens podem ser vistas como complementares, e as lições advindas — sucessos e reveses — dos casos de urbanismo social e dos programas de urbanização de favelas no Brasil e na América Latina como um todo devem servir para os aprendizados, sejam quais forem as abordagens. Lembre-se ainda de que há muito mais experiências desenvolvidas por meio dos programas de urbanização de favelas nas cidades do chamado Sul Global, assim como é farta a produção bibliográfica a respeito no meio acadêmico, livros, manuais e referências publi- cadas por governos, instituições do terceiro setor e multilaterais. Apontamos a seguir algumas de destaque. PARA SABER MAIS, VER: ▸ ALIANÇA DE CIDADES e PMSP (Prefeitura da Cidade de São Paulo). Urbanização de favelas em foco — Experiências de seis cidades. Washington: The Cities Alliance, 2008; ▸ CARDOSO, A. L. Avanços e desafios na experiência brasileira de urbanização de favelas, Cadernos Metrópole, 2007; ▸ CARDOSO, Adauto e DENALDI, Rosana (orgs.). Urbanização de favelas no Brasil: um balanço preliminar do PAC. Rio de Janeiro: Letra Capital, 2018; ▸ FERREIRA, L.; OLIVEIRA, P. e IACOVINI, V. Dimensões do Intervir em Favelas. São Paulo: Peabiru TCA / Coletivo LabLaje, 2019; ▸ IBAM. Estudo de avaliação da experiência brasileira sobre urbanização de favelas e regularização fundiária. IBAM: Rio de Janeiro, 2002; ▸ LIBERTUN DE DUREN, Nora R. E OSORIO RIVAS, Rene. Favela-Bairro: 10 anos depois. Washington: BID, 2020; ▸ MAGALHÃES, Sérgio e CONDE, Luiz Paulo. Favela-Bairro: Uma outra história da cidade do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: RioBooks, 2021; ▸ Plataforma Global por el Derecho a la Ciudad. Decálogo para el Mejoramiento Integral de Barrios; ▸ SILVA, M. N.; CARDOSO, A. L. e DENALDI, R. Urbanização de favelas no Brasil : trajetórias de políticas municipais. Rio de Janeiro: Letra Capital, 2022; ▸ VILLAROSA, Francesco di e MAGALHÃES, Fernanda. Urbanização de favelas — Lições aprendidas no Brasil. Washington: BID, 2012; ▸ ZUQUIM, Maria de Lourdes (org.), 2014. Práticas recentes de intervenções contemporâneas em cidades da América Latina. São Paulo: FAU-USP, 2014; ▸ Capítulo 15, Incluindo textos da Diagonal, Elisabete França, Jose Brakarz e Sérgio Magalhães. ! Diante de todos esses critérios e orientação, pode restar a dúvida se projetos de urbanismo social somente poderão ser implementados nessas condições ideais. Como mencionado no item 2.1, existem algumas iniciativas que bebem das experiências e aprendizados de tal estratégia de intervenção e tentam adaptá-los às suas realidades e possibilidades locais. O urbanismo social como foi implementado na Colômbia tem especificidades que vão além dos projetos e contextos urbanos e sociais locais, refletindo uma forma própria de organização do Estado naquele país e algumas especificidades regionais muito https://www.citiesalliance.org/sites/default/files/Urbanizacao-de-Favelas-em-Foco.pdf https://www.citiesalliance.org/sites/default/files/Urbanizacao-de-Favelas-em-Foco.pdf https://revistas.pucsp.br/index.php/metropole/article/view/8771 https://revistas.pucsp.br/index.php/metropole/article/view/8771 https://www.observatoriodasmetropoles.net.br/wp-content/uploads/2019/06/Adauto-CARDOSO-e-Rosana-DENALDI-Urbaniza%C3%A7%C3%A3o-de-favelas-no-Brasil.pdf https://www.observatoriodasmetropoles.net.br/wp-content/uploads/2019/06/Adauto-CARDOSO-e-Rosana-DENALDI-Urbaniza%C3%A7%C3%A3o-de-favelas-no-Brasil.pdf https://observatoriodefavelas.org.br/ https://blogs.iadb.org/brasil/pt-br/favela-bairro-avaliacao-de-resultados-10-anos-depois/ https://blogs.iadb.org/brasil/pt-br/favela-bairro-avaliacao-de-resultados-10-anos-depois/ https://www.right2city.org/es/decalogo-para-el-mejoramiento-integral-de-barrios-hoja-de-ruta-para-america-latina-y-el-caribe/ https://www.right2city.org/es/decalogo-para-el-mejoramiento-integral-de-barrios-hoja-de-ruta-para-america-latina-y-el-caribe/https://publications.iadb.org/pt/node/17403 https://publications.iadb.org/pt/node/17403 http://www.favelasaopaulomedellin.fau.usp.br/wp-content/uploads/2015/11/ZUQUIMDOTTAVIANO_2014.pdf http://www.favelasaopaulomedellin.fau.usp.br/wp-content/uploads/2015/11/ZUQUIMDOTTAVIANO_2014.pdf Guia de Urbanismo Social 64 PARA SABER MAIS, VER: ▸ SALLA, Ana Leticia. Desafios na Transferências de políticas públicas: experiências de urbanismo social em perspectiva comparada. São Paulo: Revista Exame, 2021. ▸ Capítulo 15 (Casos Referenciais) ! relevantes e de enorme dificuldade de replicar em outros contextos (como apresentado na seção sobre Medellín). Inspirar-se em políticas bem-sucedidas de outros governos ou re- plicá-las não é uma novidade na área da gestão pública. No entanto, esse movimento de transferir políticas não é tão simples quanto parece. Ele é o processo no qual o conhecimento sobre políticas de um determinado tempo ou local é usado no desenvolvimento da gestão em outro tempo ou local. Transferir, porém, não é apenas “copiar e colar” uma política ou uma “boa prática”. Esse processo pode ser bem complexo, a depender dos contextos (e problemas) locais e do escopo da política de interesse. Transferir uma política para um contexto diverso daquele em que foi originalmente dese- nhado apresenta vários desafios, obstáculos e riscos que devem ser levados em consideração para que ela se converta em uma iniciativa exitosa após sua transferência. É possível tomar empres- tado boas soluções, mas é necessário adaptá-las e customizá-las às possibilidades e realidades locais do município adotante. https://exame.com/colunistas/impacto-social/transferencia-de-politicas-publicas-o-caso-do-urbanismo-social https://exame.com/colunistas/impacto-social/transferencia-de-politicas-publicas-o-caso-do-urbanismo-social AUTORES 3.1_ Núcleo de Urbanismo Social 3.2_ Diagonal Capítulo 03 : Plano de Ação Local 67 PLANO DE AÇÃO LOCAL 3.1_ Plano de Ação Local 3.2_ Contribuições para a metodologia do Plano de Ação Local 03_ PLANO DE AÇÃO LOCAL3.1_ 3.1.1_ INTRODUÇÃO Dentro de uma metodologia de planejamento urbano, e não apenas no contexto do urbanismo social, um Plano de Ação Local tem a função de articular justamente o planejamento do território e as priorizações de projeto, considerando as questões orçamentárias e os objetivos traçados, de forma a organizar as diversas ações previstas, tanto em relação à sua temporalidade — curto, médio e longo prazo — quanto à espacialidade. Tudo isso por meio da terri- torialização das ações previamente definidas e também das ações estratégicas e sistêmicas, além de alinhar-se desde o início com o processo de governança compartilhada. Diante de um cenário de descontinuidade de políticas públicas e considerando os ciclos político-administrativos de gestão, o Plano de Ação Local pode funcionar como garantia de implementação a médio e longo prazo dos programas elaborados, assim como a destinação planejada dos investimentos previstos. Como comentado no Capítulo 1 (e será detalhado no Capítulo 14), a maior referência de Plano de Ação Local em urbanismo social são os PUIs, Projetos Urbanos Integrais de Medellín. No Brasil, infelizmente, há poucos casos de desenvolvimento e implantação de Planos de Ação Local e mesmo de Planos de Bairro — que poderiam incorporar Planos de Ação Local dentro deles. No caso da cidade de São Paulo, por exemplo, o Plano Diretor Estra- tégico de 2014 (PDE) define que a cada quatro anos é necessária a realização dos Planos de Ação das Subprefeituras, “que têm o objetivo de detalhar as propostas e intervenções necessárias, na escala local, para o desenvolvimento urbano e ambiental da região”, articulando o planejamento territorial, as leis orçamentárias (como o Plano Plurianual — PPA, a Lei de Diretrizes Orçamentárias — LDO e a Lei Orçamentária Anual — LOA) e o Programa de Metas de cada gestão. ! PARA SABER MAIS, VER: ▸ Prefeitura de São Paulo. Portal Gestão Urbana SP. https://gestaourbana.prefeitura.sp.gov.br https://gestaourbana.prefeitura.sp.gov.br Capítulo 03 : Plano de Ação LocalGuia de Urbanismo Social 6968 Utilizando como referência os marcos legais mencionados — PDE e Plano de Ação das Subprefeituras, entre outros (Planos de Bairro, por exemplo) —, a iniciativa do Pacto pelas Cidades Justas reuniu, em 2019, diferentes entidades da sociedade civil para a implementação de estratégias para projetos de urbanismo social em algumas áreas da cidade de São Paulo, através de uma metodologia estabelecida pelo Plano de Ação Local. A experiência do Pacto pelas Cidades Justas no âmbito do ur- banismo social foi também inspirada no projeto de Medellín para territórios em situação de vulnerabilidade social. Portanto, além da implementação de um planejamento urbano integrado, realizado a partir de diagnósticos técnico e social-participativo e de um planejamento detalhado para cada localidade, os projetos seguem diretrizes de: (i) priorização dos investimentos em áreas em situação de alta vulnerabilidade; (ii) articulação territorial das ações públicas e da sociedade civil; (iii) participação comunitária em todas as etapas de projeto; (iv) implementação de um modelo de governança integrado e compartilhado na escala local; e (v) avaliação e monitoramento dos impactos das políticas públicas. Sendo assim, o Plano de Ação Local, de acordo com a metodologia elaborada pelo Pacto, é montado a partir da priorização das ações propostas nos Planos Urbanos Integrados e Programas Sociais Integrados, a fim de colocar em prática as diretrizes propostas em um período de tempo de médio prazo. Essas priorizações se dão a partir das avaliações e consultas com a equipe técnica, secretarias envolvidas e também diretamente nos territórios, levando em consideração aspectos como: (i) urgência e gravidade do problema; (ii) custo; e (iii) oportunidade (se está dentro de um contexto de implementação facilitada pelas condições gerais que influenciam no andamento do projeto/programa). Vale ainda ressaltar que, assim como todos os processos de im- plementação de projetos e planejamento realizados pela via do urbanismo social, o Plano de Ação Local deve considerar as formas organizadas de participação contínua e permanente da população local e das lideranças comunitárias, pois a priorização de ações, bem ▸ Pacto pelas Cidades Justas. Produto 5: Relatório Final. PARA SABER MAIS, VER: como a cobrança pela continuidade dos projetos, estão diretamente ligadas aos interesses da própria comunidade beneficiada. 3.1.2_ FASES DE IMPLEMENTAÇÃO DO PLANO DE AÇÃO LOCAL NO URBANISMO SOCIAL O Plano de Ação Local tem como objetivo viabilizar a implementação de programas e projetos estratégicos para favelas, levando em conta a diversidade de cada localidade em transformação, suas problemáticas sociais e ambientais. Sendo assim, ele funciona como um importante instrumento para urbanização e integração desses territórios à cidade formal — através da priorização de recursos para transformações no espaço físico urbano e também das intervenções sociais, com a participação e gestão ativa das comunidades locais. Pode-se considerar o Plano de Ação Local um mapeamento de todas as ações planejadas e contextualizadas dentro do território beneficiado, integrando as questões orçamentárias (fontes de financiamento, investimentos públicos e/ou privados), os atores envolvidos no processo (comunidade, poder público, setor privado, sociedade civil etc.), os modelos de gestão, os tipos de intervenções e a priorização dos projetos. Sua viabilização segue uma metodologia com quatro eixos prin- cipais de ação: ▸ Planejamento; ▸ Formulação; ▸ Implementação e Gestão; ▸ Avaliação e Monitoramento. Na etapa de Planejamento, é realizada uma análise de reconhe- cimento da área de intervenção, de suas características e pro- blemáticas. Para isso são feitos diagnósticos físicos, espaciais e socioparticipativos,tais como: ! https://www.cidadesjustas.org.br/assets/downloads/00_Relatorio_Produto05_PactopelaCidade-v3.pdf https://www.cidadesjustas.org.br/assets/downloads/00_Relatorio_Produto05_PactopelaCidade-v3.pdf Capítulo 03 : Plano de Ação LocalGuia de Urbanismo Social 7170 ▸ Diagnóstico Físico: morfologia urbana (topografia, hidrografia, uso e parcelamento do solo, traçado viário etc.); ▸ Diagnóstico Social: composição da popu- lação e sua caracterização (nível de escolari- dade, saúde pública, segurança pública etc.); ▸ Diagnóstico de Inserção Política e Insti- tucional: análises de programas e políticas estatais e municipais, ações preexistentes em benefício da população local, secretarias envolvidas e suas atividades; ▸ Diagnóstico Participativo: identificação das demandas junto aos moradores e demais atores envolvidos (prefeitura, profissionais e técnicos e entidades da sociedade civil), estabelecendo as agendas prioritárias. A etapa de Formulação é iniciada após a identificação dos problemas levantados na etapa de diagnósticos. Nela, portanto, são desenvolvidas as estratégias e soluções que darão andamento aos projetos e sua execução. Nessa fase, a participação da comunidade local e seu envolvimento na formulação dos projetos são essenciais para o seu desenvolvimento. O processo coletivo de desenho e discussão é geralmente rea- lizado no formato de oficinas participativas comunitárias, nas quais são expostas as propostas dos participantes e definidas as ações prioritárias dentro do território, por meio de mapas, práticas de desenho e visualização de imagens representativas. Juntamente com o exercício de territoriali- zação das ações de cada área estudada e a definição dos objetivos propostos, é necessá- rio realizar um detalhamento das atividades definidas para cada lugar específico, soman- do-se ao planejamento estratégico sobre as demandas locais e suas prioridades, pois, além dos projetos de estruturação urbana e qualificação ambiental dos territórios, existe a preocupação de que as ações estratégicas dos programas sociais promovam a qualifica- ção da vida das pessoas que habitam essas áreas, com ações que vão desde a comple- mentação de renda à segurança alimentar, passando pela inclusão digital, a capacitação profissional e o empreendedorismo, além de toda uma ativação do território através de atividades culturais e de educação. A etapa de Implementação e Gestão com- pactua com todo o processo anterior de diagnóstico, planejamento e formulação, estabelecendo de maneira clara uma organi- zação da governança entre todos os atores envolvidos nos projetos e seus objetivos. É de extrema importância que haja uma comunicação e uma gestão transversal entre a totalidade desses atores para que todas as fases do projeto estejam alinhadas, coordenadas, e que consigam sair do papel como planejado, dentro dos prazos de curta, média e longa duração. No campo das políticas públicas, a imple- mentação é compreendida não como a mera execução daquilo que foi planejado, mas como um complexo processo de interação entre atores, no qual a intervenção pública é continuamente influenciada e redefinida pelas ações que a põem em prática. Uma implementação coerente e coordenada deve prever, portanto, espaço para aprendizados e acomodações, que devem ser comparti- lhados na rede de governança. Nos modelos de gestão no urbanismo social é fundamental que exista a capacitação dos líderes comunitários e a tomada de responsabilidade pela população local, pois a transformação do espaço físico não está desassociada da transformação social, impactada diretamente pela integração da comunidade e seu envolvimento na apro- priação e gestão do espaço construído de modo coletivo. O planejamento e a gover- nança compartilhada permitem justamente que a comunidade local esteja incluída nos processos de deliberação e tomada de deci- sões de todas as etapas do Plano de Ação Local, de forma que o desenvolvimento dos projetos possa ser monitorado e avaliado pelos próprios moradores. A etapa de Avaliação e Monitoramento é uma continuidade do modelo de governança com- partilhado. Segundo experiências de urba- nismo social acompanhadas pelo Programa Pacto pelas Cidades Justas, o monitoramento das entregas do Plano de Ação Local e a avaliação de seus impactos no território são parte fundamental para a efetividade das intervenções. Esse modelo de governança organiza entidades da sociedade civil junto à população local para que, de maneira colabo- rativa, sejam capazes de avaliar e monitorar a implementação dos projetos nos territórios, através da coleta de dados e do acompanha- mento periódico e a longo prazo. Ressalta-se também a importância de ga- rantir a transparência dentro da estrutura de governança, com o acompanhamento das atividades dos atores que a compõem, além da necessidade de prestar contas à sociedade, à população e aos órgãos de controle. O accountability (prestação de contas/transparência) funciona como uma estratégia para continuidade dos projetos ao longo do tempo, além de fortalecer o senso de responsabilidade dos gestores públicos locais perante às ações pactuadas. Saiba mais sobre a metodologia de urbanismo social, com foco nos Pla- nos de Ação Local desenvolvido pelo: Pacto pelas Cidades Justas. https://www.cidadesjustas.org.br/#:~:text=O%20Pacto%20pelas%20Cidades%20Justas%20integra%20o%20Programa%20Cidade%20Solid%C3%A1ria,emerg%C3%AAncia%20e%20o%20estado%20de Capítulo 03 : Plano de Ação LocalGuia de Urbanismo Social 7372 CONTRIBUIÇÕES PARA A METODOLOGIA DO PLANO DE AÇÃO LOCAL 3.2_ Serão apresentadas a seguir três contri- buições metodológicas para a construção de Planos de Ação Local no que tange às questões de governança e participação co- munitária. A primeira dá relevância ao olhar metodológico para a desigualdade, para as questões de nível macro e micro das polí- ticas públicas no combate às duas formas de desigualdade, a territorial e a social. A segunda realça a inclusão dos processos de mobilização, organização e fortalecimento social relacionados à elaboração de Planos de Ação Local. A terceira contribuição lança o olhar para a leitura e análise das instituições e organizações locais, como um instrumento relevante para o planejamento dos processos de governança e participação, englobando os desafios relacionados à prática da gestão participativa e a necessidade de considerar a interdependência entre plano global e local, com exemplos de práticas desenvolvidas pela Diagonal. 3.2.1_ OLHAR INTEGRADO DAS DESIGUALDADES Favelas, de forma geral, se confundem com áreas urbanas degradadas, pois são o reflexo de uma construção humana pau- tada pela necessidade, recursos escassos e busca de uma localização urbana para morar. São um produto social contraditório, no qual a ocupação do núcleo de vivência deflagra uma sequência de ações e impac- tos desfavoráveis à condição humana nesse hábitat. Essa realidade constantemente produzida e reproduzida em territórios de vulnerabilidade dá lugar a grandes espaços de precariedade. Nesse sentido, é neces- sário olhar para o território em questão fundamentando-se minimamente em dois princípios básicos: a abordagem integrada e interdisciplinar e a participação e o pro- tagonismo das comunidades. Estão ancoradas na abordagem integrada e interdisciplinar dois procedimentos: a leitura territorial integrada das desigualdades e as estratégias globais de combate a elas. Os esquemas a seguir ilustram esses dois as- pectos de leitura e planejamento das ações junto às áreas em condição de vulnerabilidade. No primeiro, ressalta-se a importância do cruzamento de ambas as dimensões da vulne- rabilidade de uma comunidade — a territorial e a social — e a necessidade da focalização e da universalização das políticas públicas no território, entendidas como um direito. No segundo, enfatiza-se a relevância de consi- derar os doisníveis de ações que intervêm no planejamento territorial: o macro, que orienta as ações globais e estruturantes da organiza- ção do território, e o micro, que olha e articula as ações locais dentro das especificidades de cada área, em uma perspectiva de outra temporalidade, visando ao atendimento de demandas históricas e urgentes. INFOGRÁFICO 01: LEITURA TERRITORIAL INTEGRADA DAS DESIGUALDADES Fonte: Diagonal. Precariedade Territorial Desigualdade Social POLÍTICAS PÚBLICAS FOCALIZADAS E UNIVERSALIZADAS POLÍTICAS PÚBLICAS COMO DIREITO BASEADAS EM EVIDÊNCIAS Periferia marcada pela inseguridade do solo/ relevo, da infraestrutura, da construção, da condição jurídica da posse do terreno. PRECARIEDADE TERRITORIAL DESIGUALDADE SOCIAL Territórios vulneráveis marcados pela desigualdade econômica estrutural impactando em: Baixo índice de desenvolvimento humano: educação infantil, mortalidade, violência, padrão de tolerância/ intolerância a heterogeneidades de gênero, etnia, opção sexual, opção religiosa, trabalho feminino. Qualidade de vida: capacidade de subsistência-renda, qualidade ambiental (água, esgoto, lixo), qualidade dos domicílios, propriedade; deslocamentos nas ruas, ofertas de serviços básicos (saúde, educação, transporte público, lazer). Contradição; Gera uma cadeia para a cidade inteira; Crescimento geográfico desigual. V U LN ER A B IL ID A D ES Vulnerabilidades socioambientais; A precariedade territorial nas cidades brasileiras é mais do que a imagem da desigualdade, é condenação de todas as cidades de coexistirem com um urbanismo de risco. https://diagonal.social/ Capítulo 03 : Plano de Ação LocalGuia de Urbanismo Social 7574 3.2.2_ PARTICIPAÇÃO E PROTAGONISMO COMUNITÁRIO No Brasil, a evolução das abordagens participativas dentro das experiências de urbanização integrada de assentamentos precários deu protagonismo ao trabalho social de mobilização, organização e fortalecimento das comunidades impactadas pelas obras, estrutu- rando e proporcionando visibilidade à importância desse trabalho no contexto das intervenções. A própria normatização realizada no âmbito do Ministério das Cida- des — atual Ministério da Integração e do Desenvolvimento Regional (MDR) — para o financiamento de projetos reforça essa relevância no INFOGRÁFICO 02: ESTRATÉGIAS GLOBAIS DE ATAQUE Fonte: Diagonal. Fonte: Diagonal. INFOGRÁFICO 03: FLUXOGRAMA DOS PLANOS DE AÇÃO LOCAL EM FAVELAS NÍVEL MACRO NÍVEL MICRO VISÃO GLOBAL DAS ÁREAS DEGRADADAS ESPECIFICIDADES DE CADA ÁREA [região, município ou estado] ESTRATÉGIAS GLOBAIS DE ATAQUE PROJETOS E AÇÕES ESPECÍFICAS RETROALIMENTAÇÃO ▸ Principais problemas; ▸ Principais demandas de cada área; ▸ Quadro geopolítico e das organizações. ▸ Diagnóstico integrado da área e individualizado por unidade familiar; ▸ Diagnóstico integrado geopolítico. ▸ Propostas e Programas de Ações Globais; ▸ Propostas de captação de recursos (opção de implantação gradual). ▸ Projetos específicos; ▸ Implantação e monitoramento das ações. AÇÕES PRELIMINARES INVESTIGAÇÕES, ANÁLISES E ESTUDOS AÇÕES PRELIMINARES Mobilização da Comunidade; Pesquisa de Fontes Secundárias; Diagnóstico Socioeconômico; Discussão do Programa Melhorias para o Bairro; Pesquisa Socioeconômica- Ambiental; Diagnóstico Sócio-organizativo; Discussão do Plano de Trabalho da Equipe, diagrama de fluxos e cronograma; Discussão do papel da comunidade e definição do modelo de gestão participativa. Pesquisa Sócio- organizativa (quantitativa); Levantamento do Perfil das Instituições; Estudos sobre Tendência da Terra; Estudos Urbanísticos e Ambientais. Diagnóstico Urbanístico; Diagnóstico Jurídico e Fundiário. Diagnóstico Integrado e Diretrizes da Intervenção. PROCESSO 1 AÇÕES INICIAIS E PLANO DE TRABALHO PROCESSO 2 DIAGNÓSTICO processo de implementação, buscando abrir espaço para o protagonismo comunitário. Tais diretrizes participativas e deliberativas constituem parte dos preceitos do urbanismo social e devem ser incorporadas em seus projetos. O fluxograma apresentado a seguir ilustra sinteticamente os principais processos de elaboração de planos de ação que agregam a contribuição do trabalho social, incorporando suas principais linhas ou eixos de atuação, nas distintas fases das obras/intervenções: Capítulo 03 : Plano de Ação LocalGuia de Urbanismo Social 7776 3.2.3_ DIAGNÓSTICO SÓCIO-ORGANIZATIVO COMO INSU- MO NOS PROCESSOS DE GOVERNANÇA E PARTICIPAÇÃO O desenvolvimento de um Plano de Ação Integrado demanda um diagnóstico sócio-organizativo do território, composto pelo mape- amento das instituições/organizações locais, além de pesquisas qualitativas que contribuam para a compreensão do sistema de governança local. MAPEAMENTO DAS INSTITUIÇÕES O trabalho integrado com a comunidade requer um amplo diagnóstico das organizações comunitárias e institucionais inseridas nos terri- tórios que envolvem a ação, tomando como base o cadastramento e georreferenciamento de todas as unidades presentes e operantes nas comunidades. Poderá ser complementado com organizações/ instituições do entorno ou da cidade em forma de tabela. Os dados básicos do mapeamento devem contemplar: ▸ Identificação; ▸ Natureza das organizações (formal ou informal); ▸ Objetivos; ▸ Serviços prestados; ▸ Capacidade de atendimento; ▸ Convênios (caso existam); ▸ Parcerias, canais de reivindicação; ▸ Identificação e papel dos líderes; ▸ Constituição da organização (estatuto); ▸ Representação em conselhos gestores de governos; ▸ Indicação de outras lideranças da comunidade ou fora dela; ▸ Redes de comunicação virtuais; ▸ Outros dados necessários ao objetivo do projeto integrado. PESQUISAS QUALITATIVAS A pesquisa qualitativa procura, junto às lideranças e a atores de referência, indivi- dualmente ou em grupo, resgatar a história das comunidades, coletando suas principais reivindicações, mobilizações e formas de lutas. Com as informações coletadas, junto a essas lideranças e aos moradores mais antigos, é possível situar num contexto his- tórico o processo de ocupação das áreas, as etapas mais importantes do desenvolvimento das comunidades e os traços marcantes da dinâmica das relações sociais internas e ex- ternas, inclusive no que diz respeito ao poder. O roteiro utilizado é semiestruturado em torno das seguintes referências básicas: ▸ Histórico de ocupação; ▸ Organizações comunitárias: processos de lutas e reivindicações; ▸ Participação em conselhos e movimentos populares; ▸ Principais demandas das comunidades; ▸ Correlação de forças internas e externas. As informações obtidas, somadas aos cadas- tros, fornecem quadros das relações sociais que permitem o planejamento de diversas frentes de trabalho, ações conjuntas e de- finição de estratégias com menor margem de erro. Descrever em cada comunidade as análises e marcar os pontos facilitadores e dificultadores colabora muito para a iden- tificação e priorização de ações de acordo com as especificidades dos grupos locais. Com o intuito de exemplificar as perspec- tivas de uma análise integrada das orga- nizações sociais, demonstra-se a seguir uma das possibilidades de avaliação das organizações visando à governabilidade dos planos e as atenções para capacitação e ações participativas, incluindo as estratégias a serem adotadas. Exemplos de aspectos a serem considerados para a construção da Matriz de Avaliação das Organizações/Instituições Comunitárias: VARIÁVEIS DE ANÁLISE retângulo ▸ Mobilidade para mudança e resistência; ▸ Organização e representatividade; ▸ Formalidade ou informalidade; ▸ Relações políticas (institucionais/partidárias); ▸ Reivindicações por grau de necessidade; ▸ Situação fundiária; ▸ Pontos críticos. Capítulo 03 : Plano de Ação LocalGuia de Urbanismo Social 7978 DESAFIOS E OBSTÁCULOSPARA O PROTAGONISMO SOCIAL A proposição de novas linhas de ação que envolvem processos de governabilidade so- cial integrada prevê mudanças significativas e desafios em diversos aspectos. Exemplos: ▸ Tarefas: que passarão de simples, já en- tão vivenciadas, para multidimensionais, mais complexas no fazer e nas relações que estabelecem; ▸ Papéis: de beneficiários do poder público para gestores de programas; ▸ Valores: de solidariedade e responsabilida- de social nos “negócios” (empreendimentos); ▸ Serviços de apoio e assistência: para serviços de gerenciamento e execução de ações que envolvem fatores econômicos e financeiros, técnicos e sociopolíticos num contexto determinado. Os obstáculos para a participação popular e o protagonismo social podem ser sinte- tizados pela falta dos seguintes aspectos: ▸ Experiência dos três lados (governos, comunidades e parceiros privados); ▸ Organização pontual para reivindicar e garantir o objeto de suas demandas (flui de acordo com os moradores e as emergências); ▸ Organização para a autogestão; ▸ Conhecimento sobre custos, variáveis téc- nicas e processos envolvidos na realização dos seus objetivos; ▸ Visão pontual e segmentada sobre o am- biente local e a cidade. 3.2.4_ A INTERDEPENDÊNCIA ENTRE PLANO GLOBAL E PLANO DE AÇÃO LOCAL As experiências obtidas no desenvolvimento das ações de acompanhamento social das intervenções em áreas vulneráveis indicam que os melhores resultados têm correspon- dido aos momentos em que os Planos de Ação Local são discutidos e priorizados na formulação de um planejamento territorial mais amplo da cidade. É nesse processo que as questões locais são articuladas com aquelas mais gerais dos municípios, na combinação dos aspectos estruturais das políticas setoriais com as múltiplas necessi- dades sociais e urbanísticas de cada bairro, em suas carências históricas e nas novas, surgidas nos tempos atuais. Nesse trânsito de escalas, o orçamento pode ser priorizado de modo mais claro para os agentes técnicos e de governança — e de maneira transparente para as comunidades envolvidas. Trata-se da busca pela construção de pla- nejamento e pactos territoriais olhando para a totalidade, e que não sejam sobrepujados pelos planos e pactos setoriais orientados e/ou determinados por uma lógica predomi- nantemente econômica, na qual se ressalta o poder político de determinados agentes e de classe social. Em muitas intervenções de urbanização integrada de assentamentos precários as políticas setoriais de saneamento e mobili- dade estrutural tendem a determinar — em virtude de sua rigidez técnica-tecnológica e elevado consumo de recursos orçamen- tários e de financiamentos — os principais investimentos no tempo e no espaço, pro- porcionando pouca margem decisória e de atendimento a outras demandas sociais da vida do bairro. Configura-se, assim, a prática corrente de um planejamento de cima para baixo (top-down), no qual a racionalidade econômica se impõe sobre uma questão que é política: a discussão do uso do território. Algumas poucas experiências de elaboração de Planos de Ação Local derivados de uma discussão mais ampla dos problemas e do orçamento da cidade podem ser relatadas, como as que aconteceram em Curitiba (PR), em 1999, e Boa Vista (RR), entre 2001-2004. Na capital paranaense, o Plano Decidindo Curitiba, elaborado na primeira gestão do prefeito Cássio Taniguchi (1997-2000), vi- sou aplicar para toda a cidade metodologia de intervenção desenvolvida em áreas e assentamentos vulneráveis, que pressupu- nha abordagem territorializada, integrada, focalizada, participativa e negociada com a comunidade. Desse plano decorreram inter- venções integradas em toda a cidade. Em bairros periféricos, múltiplas ações setoriais desenvolvidas se articularam às necessida- des identificadas e priorizadas, tendo como centro as demandas da comunidade. Essas ações são exemplos de urbanismo social, pois tiveram como foco o atendimento das principais questões do lugar, enquanto to- talidade que expressa o acontecer solidário das relações sociais e a construção e ressig- nificação da paisagem do bairro de vivência. Em Boa Vista/RR, o Programa Braços Aber- tos — elaborado nos primeiros meses de gestão de Teresa Surita na prefeitura (2001- 2004), desenvolvendo metodologia similar à de Curitiba, acima mencionada — foi o instrumento de planejamento das ações estruturais e locais da cidade, com foco na participação social. Para tanto, foi criada a Secretaria de Gestão Participativa e Cidada- nia, designada a trabalhar todo o processo de relação com a população, organização e levantamento de dados, informações e pesquisas, além de definir planos locais de ação integrada, com a participação das comunidades. Valendo-se da estratégia de engajamento e envolvimento da população no processo, o programa combinou a reali- zação de obras estruturais da cidade e do bairro, de médio e longo prazo, com entregas rápidas, de curto prazo, focando aquelas de alto impacto e baixo custo e que gerassem emprego e renda para as pessoas. A priorização de investimentos e intervenções urbanísticas e sociais nos bairros mais vul- neráveis de Boa Vista configura exemplo de urbanismo social em que as demandas locais do bairro assumem protagonismo no processo de decisão e escolhas do poder público. AUTORES 4.1_ Carlos Mario Rodrigues (Instituto Tecnologico de Monterrey); 4.2_ a 4.7_ Pedro Marin e Andrelissa Ruiz (Fundação Tide Setubal); [Box A Maré que Queremos] Núcleo Mulheres e Territórios; [Box Ações cooperativas academia- -comunidade-escola pública no Jardim Ângela] Vera S. Luz (PUC-Campinas) e Antonio Fabiano Jr. (FAU-Mackenzie). Capítulo 04 : Dimensão Governança 81 PROCESSOS DE GOVERNANÇA NO URBANISMO SOCIAL4.1_ O urbanismo social em Medellín como política pública territorial visou construir uma governança corresponsável do território, focando a relação entre Estado e sociedade no cidadão como sujeito de transformação social, econômica e cultural. Essa ideia de governança, nascida no início dos anos 1990, levantou a necessidade de boas práticas na forma como o Estado intervém no território e define instâncias e cenários de discussão com uma estrutura menos piramidal e mais horizontal, gerando, assim, espaços de tomada de decisão compartilhada, o que implica o empoderamento da sociedade nas ações levadas a cabo na comunidade. A governança como estratégia de eficiência requer uma demanda por processos de planejamento que permitam pensar e repensar o território de modo democrático. No urbanismo social, e espe- cificamente nos Projetos Urbanos Integrais (PUIs) — que são mediados por processos de planejamento tangíveis da área em questão —, isso se faz com a leitura conjunta do território pelo Estado e pela sociedade. O reconhecimento do território por todos os seus intervenientes e o acompanhamento constante durante os processos de imple- mentação garantem a sustentabilidade, a melhoria das condições econômicas, o aumento dos indicadores da qualidade de vida dos habitantes e por último, mas não menos importante, a construção do capital social. A governança é o principal objetivo desses processos enqua- drados no urbanismo social. A partir dos diferentes programas e projetos que visam à democratização dos territórios, eles são implementados e fazem da transformação da cidade intervenções integrais nas quais todas as ferramentas de desenvolvimento estão disponíveis de forma simultânea. DIMENSÃO GOVERNANÇA 4.1_ Processos de governança no urbanismo social 4.2_ Diretrizes para construção de um modelo de governança territorial para o urbanismo social 4.3_ Eixos para construção de uma boa governança territorial 4.4_ Diagnóstico dos principais problemas de governança 4.5_ Diretrizes para a modelagem de uma boa governança territorial 4.6_ Objetivos, instâncias e instrumentos 4.7_ Mobilização e protagonismo comunitário 04_Capítulo 04 : Dimensão GovernançaGuia de Urbanismo Social 8382 DIRETRIZES PARA CONSTRUÇÃO DE UM MODELO DE GOVERNANÇA TERRITORIAL PARA UM URBANISMO SOCIAL 4.2_ Uma das premissas do urbanismo social é a necessidade do estabelecimento de um modelo de governança diferenciado para os territórios que são objeto de intervenção. A descontinuidade administrativa, as dificuldades das diversas pastas de trabalharem de acordo com o mesmo planejamento e o baixo nível de institucio- nalização das instâncias participativas locais, como os conselhos gestores de equipamentos públicos, são características frequentes na atuação do poder público em favelas. Os capítulos anteriores já demonstraram que o sucesso do ur- banismo social em casos de referência como Medellín e Recife também estão atrelados a modelos consistentes e inovadores de governança compartilhada no território. Isso porque o sucesso da implementação das intervenções urbanas e das diretrizes de integração de políticas sociais aqui propostas depende, em grande parte, da capacidade do poder público de fortalecer a coordenação intersetorial e de estreitar seus laços com a sociedade civil local, além de garantir a continuidade dos investimentos necessários ao longo do tempo. Para alcançar tais objetivos, é de interesse do poder público pro- mover mudanças significativas na maneira como as políticas para o território são planejadas, implementadas e avaliadas. A esses arranjos formais e informais de interdependência entre diferentes atores estatais e não estatais que produzem e implementam as políticas públicas no território chamamos de governança1. 1 MARQUES, Eduardo. Government, political actors and governance in urban poli- cies in Brazil and São Paulo: concepts for a future research agenda. Brazilian Political Science Review, [s. l.], v. 7, p. 8-35, 2013. STOKER, Gerry. Governance as theory: five propositions. International Social Science Journal, [s. l.], v. 50, p. 17-28, 2002. DOI 10.1111/1468-2451.0010. Nos capítulos anteriores, vimos que não há um único modelo de urbanismo social, uma “receita pronta” que funcione para todos os contextos. Da mesma forma, a implementação de um modelo de governança para o urbanismo social deve ser pensada a partir da realidade de cada território, em diálogo próximo com os atores envolvidos no processo. Sendo assim, em vez de algo pronto, apresentaremos a seguir algumas diretrizes para a construção de um modelo de governança que permita enfrentar os desafios elencados acima e dar um salto de qualidade na capacidade de implementação das ações planejadas no âmbito de projetos de urbanismo social. Essas diretrizes foram elaboradas no âmbito do projeto de cooperação entre o Pacto pelas Cidades Justas e a Prefeitura Municipal de São Paulo a partir de um extenso trabalho de levantamento sobre o funcionamento das instâncias de participação local nos territórios-alvo no diagnóstico sobre a governança dos Centros Educacionais Unificados, bem como nos estudos de benchmark a respeito dos principais casos de referência: Medellín; Compaz e Porto Digital, no Recife; Comitê das Bacias Hidrográficas dos rios Piracicaba, Capivari e Jundiaí, no Estado de São Paulo (CBH-PCJ). O QUE É GOVERNANÇA? Governança é um termo amplo que pode ser usado em diversos contextos. Aqui, porém, entendemos governança como arranjos formais e informais nos quais participam representantes do poder público, entidades privadas locais e organizações comunitárias que estão presentes nos territórios. Esses arranjos são espaços de articulação, de participação e de tomada de decisões que afetam tanto o território e sua população quanto as próprias intervenções. Nele se constitui uma interdependência entre diferentes atores estatais e não estatais que produzem e implementam as políticas públicas na área em questão. É um espaço para discutir e alinhar os diferentes interesses do território. Lembrando que o sucesso na mobilização comunitária é um dos aspectos determinantes para a construção de modelos bem-sucedidos de governança territorial. PARA SABER MAIS, VER: ▸ Capítulo 15 (Casos Referenciais) PARA SABER MAIS, VER: ▸ Comitê das Bacias Hidrográficas dos Rios Piracicaba, Jundiaí e Capivari (PCJ). ! ! https://www.comitespcj.org.br https://www.comitespcj.org.br https://www.comitespcj.org.br https://www.comitespcj.org.br Capítulo 04 : Dimensão GovernançaGuia de Urbanismo Social 8584 EIXOS PARA CONSTRUÇÃO DE UMA BOA GOVERNANÇA TERRITORIAL 4.3_ Estudos sobre governança2 estabelecem três principais eixos que devem orientar o desenho de um modelo dessa natureza que produza bons resultados. Em primeiro lugar, um arranjo de governança deve ser capaz de produzir um planejamento compartilhado, ou seja, que todos os atores envolvidos no desenho das políticas públicas participem de sua construção e estejam cientes de quais objetivos devem ser perseguidos no curto, médio e longo prazo. Esse planejamento definido no e com o território deve ser efetivamente transmitido às instâncias superiores de todas as organizações envolvidas na governança, de modo que o plano local esteja contemplado nos instrumentos centrais de planejamento físico e orçamentário. Para o poder público, isso significa que instrumentos de planejamento como planos setoriais, planos regionais, planos estratégicos, Plano Plurianual e Lei Orçamentária Anual devem trazer de maneira explícita o planejamento pactuado nos territórios-alvo dos proje- tos de urbanismo social, de forma a garantir a priorização dessas ações em face do imenso conjunto de demandas com as quais as secretarias têm de lidar no dia a dia. Uma boa estrutura de governança deve também favorecer uma implementação coerente e coordenada das ações pactuadas na etapa do planejamento. A implementação será coerente se seguir, sempre que possível, o planejamento estabelecido, sendo que os inevitáveis ajustes no planejamento original devem ser feitos de modo integrado, com a participação e a ciência de todos os atores envolvidos. A dimensão da coordenação refere-se à capacidade das diversas áreas responsáveis pela implementação das ações de compartilhar conhecimento técnico, protocolos e recursos na condução das atividades planejadas, garantindo que as ações 2 PIERRE, Jon; PETERS, Guy. Governing complex societies: trajectories and scena- rios. Houndmills, Basingstoke: Palgrave Macmillan, 2005. ISBN 978-0-230-51264-1. PRINCIPAIS DIRETRIZES PARA A CONSTRUÇÃO DE UM MODELO DE GOVERNANÇA ▸ Planejamento compartilhado; ▸ Implementação coerente e coordenada das ações pactuadas na etapa do planejamento; ▸ Accountability ou transparência no processo e responsabilização contínua daqueles que participam da estrutura de governança. aconteçam na ordem em que têm que acontecer e que haja efetiva ação intersetorial no enfrentamento dos problemas. Por fim, é necessário garantir o accountability, ou seja, a transpa- rência no processo e a responsabilização contínua daqueles que participam da estrutura de governança. Tal prática se dá de duas maneiras principais. A primeira é interna, e se manifesta na medida em que os atores que compõem a rede de governança necessitam dar satisfações uns aos outros na condução das atividades do cotidiano. A segunda é externa, e refere-se à prestação de contas da estrutura de governança à população do território, aos órgãos de controle e à sociedade como um todo. Ambas as formas de accountability são vitais para garantir a con- tinuidade do projeto no tempo, considerando as descontinuidades administrativas que são características do regime democrático no Brasil. O fortalecimento do accountability interno fortalece o senso de responsabilidade dos gestores públicos locais e da burocracia de nível de rua perante o projeto e a sociedade civil envolvida. A cobrança entre pares torna mais difícil que o novo gestor de um equipamento público local adote práticas muito diferentes daquelas pactuadas.Já o accountability externo mantém o projeto em evi- dência perante a população local e à sociedade como um todo ao longo do tempo, criando novos constrangimentos que favorecem a continuidade das ações pactuadas. ▸ Burocracia de nível de rua se refere ao servidores públicos que atuam diretamente no atendimento à população — são a face do Estado em contato com os cidadãos. Capítulo 04 : Dimensão GovernançaGuia de Urbanismo Social 8786 DIAGNÓSTICO DOS PRINCIPAIS PROBLEMAS DE GOVERNANÇA4.4_ A modelagem de uma estrutura de governança orientada pelos eixos apresentados anteriormente deve partir da consolidação do diagnóstico dos principais problemas e lacunas da estrutura atual em cada território. Com base nos levantamentos conduzidos pela equipe do Pacto pelas Cidades Justas nos três territórios que foram objeto de intervenção na cidade de São Paulo, foi possível identificar quatro problemas principais relacionados à governança naquele contexto. Esses problemas, embora detectados no processo de diagnóstico de três casos específicos, tendem a se reproduzir em outros contextos de vulnerabilidade social, razão pela qual iremos discuti-los a seguir. Entretanto, recomendamos que cada processo de intervenção territorial tenha sua etapa própria de diagnóstico dos problemas de governança, de modo que o processo de modelagem seja conduzido de maneira mais adaptada ao contexto local. BAIXA RESPONSIVIDADE ÀS DEMANDAS LOCAIS A baixa capacidade de resposta das diversas secretarias municipais às demandas apresentadas pela população tem gerado um forte sentimento de frustração, apatia e descrédito em relação ao poder público nas favelas. Décadas de demandas ignoradas, promessas não cumpridas e intervenções que levam muito mais tempo para ocorrer do que deveriam fizeram com que as lideranças e a popu- lação em geral nutram um forte sentimento de desconfiança em relação ao poder público e à própria possibilidade de mudanças significativas na qualidade de vida no território. Nesse cenário, a mobilização da população local em torno de um projeto de ur- banismo social participativo como o proposto neste Guia é tarefa especialmente desafiadora. ▸ Capítulo 5 (Dimensão Territorial), sobre a elaboração de diagnóstico local. PARA SABER MAIS, VER: ! BAIXO NÍVEL DE PARTICIPAÇÃO COMUNITÁRIA Como consequência do problema apontado anteriormente, verifi- ca-se um alto nível de fragmentação e um baixo grau de institu- cionalidade das instâncias de participação social nos territórios. A atuação nas instâncias formais de participação, como o conselho participativo ou os conselhos gestores de equipamentos públicos, não é vista pelas lideranças públicas locais como estratégica na busca por soluções para o território, uma vez que essas instâncias não têm se mostrado capazes de fornecer respostas efetivas para os problemas. Em tal contexto, as lideranças comunitárias do território também têm dificuldade de mobilizar pessoas em torno de objetivos coletivos. POUCA INTEGRAÇÃO DAS POLÍTICAS LOCAIS Os funcionários do poder público responsáveis pela implementação das políticas públicas na ponta têm pouca interação significativa entre si na formulação, construção ou implementação de políticas. Há uma dificuldade do poder público de engajar esses servidores em torno de objetivos comuns, bem como de estabelecer uma escuta ativa e contínua dos funcionários. Essa integração torna-se ainda mais difícil quando envolve quadros de diferentes níveis de governo (estadual e municipal) que atuam no mesmo território. DESCONTINUIDADE POLÍTICO-ADMINISTRATIVA As mudanças políticas oriundas de eleições ou trocas de secreta- riado ou subprefeitos costumam levar a alterações relativamente frequentes da equipe responsável pela direção de equipamentos públicos vitais para o sucesso do projeto de urbanismo social. Capítulo 04 : Dimensão GovernançaGuia de Urbanismo Social 8988 DIRETRIZES PARA A MODELAGEM DE UMA BOA GOVERNANÇA TERRITORIAL 4.5_ Com base nos problemas aqui apresentados, estabelecemos as seguintes diretrizes de modelagem para um novo sistema de governança local compartilhada: PACTUAÇÃO CLARA DE OBJETIVOS Os objetivos comuns a serem perseguidos no âmbito do projeto de urbanismo social no curto, médio e longo prazo devem ser de conhecimento de todos os atores do território e, ainda, ser objeto de priorização no planejamento físico e orçamentário de cada pasta. Esse processo de priorização é fundamental não apenas para dar orientação integrada às equipes técnicas locais e facilitar o pro- cesso de coordenação intersetorial no território como também para garantir que haja recursos orçamentários para financiar as ações pactuadas com os atores da comunidade em questão, garantindo responsabilidade e diminuindo o sentimento de frustração da socie- dade civil local. Nesse sentido, é fundamental que o planejamento não seja apenas uma “lista de desejos” irrealista, mas constitua, isto sim, uma programação de ações possíveis de serem implementadas nos tempos previstos e com os recursos disponíveis. CENTRALIZAÇÃO DOS PROCESSOS PARTICIPATIVOS LOCAIS A fragmentação de espaços de participação social no território desmobiliza a população local e pulveriza a energia comunitária em torno de diversos pequenos conselhos sem poder efetivo de influenciar as políticas públicas na área em questão. Combater essa fragmentação de espaços participativos requer a concentração de recursos institucionais e de mobilização de modo a fortalecer um fórum que de fato seja reconhecido no território como interlocutor na definição e monitoramento das políticas públicas para a localida- de. Tal fórum deve ser intersetorial; neles, o planejamento do bairro como um todo é debatido e deliberado. Para que seja fortalecido, é fundamental que as decisões tomadas tenham consequências, refletindo no trabalho de todas as secretarias envolvidas. COORDENAÇÃO INTERSETORIAL Um planejamento comum e compartilhado entre as equipes téc- nicas locais de todas as secretarias com presença no território é um primeiro passo importante no sentido de construir uma coor- denação intersetorial mais robusta. Outro passo fundamental diz respeito à criação de instâncias de coordenação intersecretarial na escala territorial e na escala central em torno de temas de natureza intersetorial. Desafios concretos e de interesse comum tendem a facilitar o início de um processo mais amplo de integra- ção de políticas públicas. Um exemplo de desafio desse tipo é o de proteção da primeira infância, que mobiliza áreas tão diversas quanto Saúde, Educação, Assistência e Desenvolvimento Social, Segurança Pública, além dos Conselhos Tutelares. APOIO À MOBILIZAÇÃO COMUNITÁRIA Para além dos mecanismos formais de participação, é preciso estabelecer incentivos para a mobilização comunitária mais ampla, que permita integrar ao processo de urbanismo social pessoas que não têm experiência prévia com processos de construção coletiva. Para tanto, é importante empoderar lideranças locais e se apoiar nas microrredes dos atores que já estão mobilizados, além de identificar temas que têm o potencial de mobilizar pessoas no território. Ações de urbanismo tático, por exemplo, têm o potencial de mobilizar novas pessoas em torno de processos mais complexos de planejamento comunitário. COMPARTILHAMENTO DA GOVERNANÇA COM A SOCIEDADE CIVIL As experiências bem-sucedidas de governança em urbanismo social demonstram que formas inovadoras de parceria com a sociedade civil costumam render bons frutos. No caso do Porto Digital de Recife, referência no modelo de governança, a direção Capítulo 04 : Dimensão GovernançaGuia de Urbanismo Social 9190 DIRETRIZESPROBLEMAS retângulo RESPONSIVIDADE ÀS DEMANDAS SOCIAIS Baixa capacidade de resposta às demandas apresen- tadas pela população, gerando frustração e apatia. retângulo OBJETIVOS PACTUADOS Priorizar os objetivos pactuados no território no planejamento físicoe orçamentário de cada pasta, garantindo responsividade. retângulo INTEGRAÇÃO DAS POLÍTICAS LOCAIS Dificuldade de engajar funcionários da ponta em torno de objetivos comuns. retângulo COORDENAÇÃO INTERSETORIAL Criar instâncias de coordenação intersecretarial na escala territorial e central em torno de temas de natureza intersetorial (ex: primeira infância). retângulo PARTICIPAÇÃO COMUNITÁRIA Baixo nível de participação social, fragmentação e baixo grau de institucionalidade das instâncias de participação social. retângulo FOMENTO À MOBILIZAÇÃO E CENTRALIZAÇÃO DAS INSTÂNCIAS PARTICIPATIVAS Criar incentivos para a mobilização comunitária e concentrar recursos institucionais para fortalecer um fórum participativo que de fato seja reconhecido no território. retângulo DESCONTINUIDADE Descontinuidade político-administrativa relacionada aos ciclos eleitorais. retângulo GOVERNANÇA COMPARTILHADA Estabelecer parceria com a sociedade civil para atuar como guardiã do planejamento e como responsável por seu monitoramento. Fonte: Pacto pelas Cidades Justas. Fonte: Pacto pelas Cidades Justas. OBJETIVOS, INSTÂNCIAS E INSTRUMENTOS4.6_ Com base nas diretrizes e nos eixos elencados, é possível propor um modelo de governança que englobe o uso de instrumentos de planejamento existentes e a criação de novas instâncias de coordenação de modo a reunir os atores relevantes em torno de objetivos específicos relacionados à construção e implementação de um projeto de urbanismo social. A figura a seguir traz propostas de instrumentos e instâncias pensados a partir dos três eixos da boa governança: planejamento compartilhado, implementação coerente e coordenada e accountability. retângulo retângulo retângulo retângulo PLANEJAMENTO COMPARTILHADO IMPLEMENTAÇÃO COERENTE E COORDENADA ACCOUNTABILLITY OBJETIVOS PROPOSTAS DE INSTRUMENTOS PROPOSTAS DE INSTÂNCIAS DE COORDENAÇÃO ▸ Unificar e integrar o planejamento para intervenções no território. ▸ Garantir a priorização pelas diversas pastas em seus respectivos planejamentos físicos e orçamentários. ▸ Plano de Bairro. ▸ Programa de Metas, PPA, LOA, Planos Setoriais. ▸ Conselho Gestor do Plano de Bairro. ▸ Comitê intersecratarial de Urbanismo Social. ▸ Conselho Gestor do Plano de Bairro. ▸ Núcleo de Desenvolvimento Local (em parceria com a OSC). ▸ Comitê intersecretarial de Urbanismo Social. ▸ Núcleo de Desenvolvimento Local (em parceria com a OSC). ▸ Termo de Parceria com a Organização da Sociedade Civil (OSC). ▸ Protocolos específicos para políticas integradas. ▸ Termo de Parceria com a Organização da Sociedade Civil (OSC). ▸ Observatório local. ▸ Implementar as políticas previstas no planejamento de forma integrada. ▸ Implementação do planejamento pactuado sem descontinuidade. ▸ Monitoramento participativo da imple- mentação do plano. ▸ Garantir a responsabilidade continuada do Poder Público pelos objetivos pactuados, mesmo com mudanças políticas. INFOGRÁFICO 01: PROBLEMAS E DIRETRIZES PARA GOVERNANÇA LOCAL INFOGRÁFICO 02: OBJETIVOS, INSTRUMENTOS E INSTÂNCIAS DE COORDENAÇÃO DO MODELO DE GOVERNANÇA do equipamento público é tripartite e compartilhada entre governo, academia e sociedade civil. Em São Paulo, um Termo de Parceria poderia instituir a sociedade civil como guardiã do Plano de Ação Local e empoderá-la para atuar como responsável formal por seu monitoramento. A figura a seguir resume essa construção das diretrizes de mo- delagem a partir da consolidação do diagnóstico dos principais problemas da governança nos territórios: https://www.cidadesjustas.org.br https://www.cidadesjustas.org.br Capítulo 04 : Dimensão GovernançaGuia de Urbanismo Social 9392 No eixo do planejamento compartilhado, temos como objetivos principais a unificação e integração do planejamento das interven- ções no território e a garantia da priorização pelas diversas pastas em seus respectivos planejamentos físicos e orçamentários. A função desse planejamento unificado é traduzir as ações estabelecidas no projeto de urbanismo social em um pacto entre poder público e população local para o curto, médio e longo prazo, tendo em vista as demandas da área em questão, as prio- ridades político-administrativas da gestão pública e a disponibilidade de recursos. No contexto paulistano em que tal proposta de modelo de governança está baseada, compreendeu-se que o melhor instrumento para consolidar esse planejamento unifi- cado é o Plano de Bairro, um dispositivo que tem como base a participação da po- pulação no planejamento da cidade e que está previsto em diversos Planos Diretores municipais. No entanto, diferentes instru- mentos poderão ser adotados em outros contextos, a depender das possibilidades e institucionalidades locais. A criação do Plano de Bairro ou outro instrumento integrado de planejamento territorial deve ser conduzida por uma instância de coordenação e participação com enfoque territorial. No caso de São Paulo, tal instância foi denominada Con- selho Gestor do Plano de Bairro. É esse o fórum que permitirá centralizar o processo de participação no território, reunindo a sociedade civil local, equipes técnicas e os órgãos de coordenação territorial do poder público em torno da pactuação de objetivos compartilhados para a área em questão. Mas o Plano de Bairro não deve ser o único instrumento público de planejamento em que as ações de desenvolvimento ter- ritorial pactuadas no urbanismo social estejam refletidas: como já foi dito, é fun- damental que o os planos estratégicos, o Plano Plurianual (PPA), a Lei Orçamentá- ria Anual (LOA) e os planos setoriais de políticas públicas garantam os devidos recursos e esforços institucionais e polí- ticos para que o planejamento territorial seja priorizado nos processos internos de cada órgão do poder público. Para discutir a incorporação do planejamento territorial no planejamento central das secretarias, pleitear e decidir a destinação de recursos oriundos de fundos públicos e dar visibi- lidade ao projeto por parte do chefe do Executivo deve existir um fórum de alto nível que congregue funcionários de médio e alto escalão das secretarias envolvidas no projeto de urbanismo social. Nessa pro- posta denominamos tal instância “Comitê Intersecretarial de Urbanismo Social”. Uma vez pactuados os objetivos e concluído o processo inicial de planejamento territo- rial, entramos na etapa de implementação. Uma implementação coerente e coordenada deve prever espaço para aprendizados e acomodações, que, por sua vez, devem ser compartilhadas na rede de governança. As- sim sendo, temos como principais objetivos no eixo de implementação coordenada e coerente a execução das políticas previstas no planejamento de forma integrada e a não descontinuidade em relação ao planejado. Os aprendizados e dificuldades naturais da etapa de implementação devem ser retroa- limentados ao processo de planejamento; contudo, não devem ser usados como pre- textos para abandonar o projeto original. Há duas propostas de instrumentos para atingir esses objetivos. Em primeiro lugar, é necessário estabelecer protocolos es- pecíficos para a integração de políticas. O segundo instrumento representa uma das maiores inovações do modelo de gover- nança proposto no âmbito do projeto do Pacto pelas Cidades Justas com a Prefei- tura Municipal de São Paulo. Trata-se do estabelecimento de um Termo de Parceria, baseado no Marco Regulatório das Organi- zações da Sociedade Civil (MROSC), com organizações sem fins lucrativos (OSC) que possam colaborar de diversas maneiras com o processo de implementação, moni- toramento e avaliação do urbanismo social nos territórios. A organização ou rede de organizações a serem selecionadas teriam experiência em mobilização social e gestão intersetorial e capacidade de articulação com os atores do território. Essa OSC pode atuarsensibilizan- do e mobilizando os atores do território em torno da implementação do plano, incluindo equipes técnicas, associações de bairro e movimentos sociais locais, somando esfor- ços de coordenação aos do poder público. Outra maneira como a OSC pode contribuir é fornecendo apoio e aconselhamento técnico no desenho de projetos urbanos e protocolos de integração de políticas. A coordenação do processo de implementa- ção seria, dessa maneira, compartilhada por um Núcleo de Desenvolvimento Local, “braço local” do poder público no território, e pela OSC. O Comitê Intersecretarial de Urbanismo Social a que nos referimos no eixo anterior também tem um papel a cumprir, facilitando as negociações em torno da construção de protocolos integrados. Por fim, é importante estabelecer fóruns de integração de políticas locais que reúnam as equipes técnicas do território em torno de desafios comuns, como no exemplo da proteção da primeira infância mencionado antes. Por fim, no eixo de accountability, temos como objetivos a viabilização do monito- ramento participativo da implementação do plano e a garantia da transparência do processo e responsabilização contínua do Poder Público pelos objetivos pactuados, mesmo com mudanças políticas. O Termo da Parceria com a OSC é instrumento-chave, sendo a responsabilidade pelo monitora- mento do plano um dos objetivos principais da construção de tal parceria. Caberá às OSCs selecionadas construir estratégias de monitoramento e avaliação na forma de um “observatório local”, acompanhando de perto as ações do projeto, reunindo dados e dando publicidade à atualização dos indicadores de impacto. Em parceria com o Núcleo de Desenvolvimento Local, serão elaborados ainda relatórios periódicos de prestação https://projects.worldbank.org/en/projects-operations/project-detail/P165695 https://projects.worldbank.org/en/projects-operations/project-detail/P165695 Capítulo 04 : Dimensão GovernançaGuia de Urbanismo Social 9594 de contas, os quais chegarão às instâncias de coordenação responsáveis pelo controle do processo no território. Como foi possível notar, a governança de um projeto de urbanismo social não diz respeito apenas às esferas com atuação específica nos territórios-alvo. Ela envolve também as estruturas de coordenação central das se- cretarias e do poder público como um todo. MOBILIZAÇÃO E PROTAGONISMO COMUNITÁRIO4.7_ Falar sobre estratégias de participação comunitária é pensar o território não apenas como espaço urbano: é considerá-lo também em sua condição de território de direitos, onde espaço, seres e sub- jetividades compõem uma organização para um bem viver coletivo. Talvez o motivo determinante para uma comunidade se mobilizar ou não seja o quanto ela se identifica com o território em questão, sobretudo em áreas de ocupações, nas quais há muita rotatividade em função das precárias condições de habitação. Moradores de territórios periféricos são afetados pela rotina exaustiva de trabalhar longe de casa, o que gera anseio por mudanças, todavia não possi- bilita brechas para uma vivência mais intensa das questões locais. O bairro é muitas vezes apenas o território de moradia, o lugar para o qual se retorna no fim do dia, não permitindo o estabelecimento de vínculos sociais mais profundos. Por isso, ao lidar com mobilização é necessário primeiro aproximar a população do sentido de território; promover a identificação local, pois haverá baixo engajamento se o objetivo principal for apenas individual — ou seja, melhorar a própria vida para sair dali. O território precisa ser mais do que uma delimitação geográfica sobre a qual recai uma proposta de transformação: há um sentido a ser construído. A peça-chave de todo esse processo são os atores envolvidos e suas expectativas em relação àquele espaço em que vivem. A relação das pessoas na construção de um território pressupõe identidade com o lugar e o que viver ali representa para elas. A participação comunitária, portanto, não pode ser traduzida em uma receita e sim em estratégias que precisam se moldar às questões socioespaciais de maneira a fortalecer as potências locais a fim de que possam contribuir com o processo de forma autêntica e estimulante. Também é importante perceber o que freia a participação, como o descrédito no próprio potencial individual e a falta da vivência de coletividade. Capítulo 04 : Dimensão GovernançaGuia de Urbanismo Social 9796 Outro elemento que dificulta a mobilização comunitária em ter- ritórios periféricos é uma espécie de “cultura da ruptura” que predomina nesses locais. Como por muito tempo eles não foram o foco do poder público, passaram-se longos períodos sem que se conseguisse algo concreto capaz de servir de estímulo à participação comunitária — ou, como é bastante comum, alcançando coisas pela metade. Nada se conclui, ou seja, o provisório quase sempre se torna permanente nesses locais. Isso, sem contar a demora, às vezes de gerações, para se obter alguma transformação. Sendo assim, encontra-se nessas áreas uma complexidade de problemas que só se resolverão a partir de um olhar interdisciplinar e inter- setorial por parte da gestão pública, aliado com a participação comunitária, capaz de alcançar camadas que uma ação de melhoria pensada somente pelo poder público jamais alcançaria, dadas as especificidades locais. Apesar dos desafios a serem superados, implementar projetos baseados no urbanismo social no Brasil é uma abordagem pro- missora. Medellín constitui uma referência que traz esperança de que é possível fazer grandes mudanças nos territórios de favelas e periferias, com base em um trabalho focado na me- lhora das condições de vida dos moradores desses espaços e no desenvolvimento local. O Jardim Lapena, um dos três territórios com atuação do Pacto pelas Cidades Justas em São Paulo, tem uma longa história de mobilização social, iniciada por líderes comunitários em 1965. Na última década, a mobilização popular no local foi responsável por conquistas importantes, como a construção dois CEIs (Centro de Educação Infantil), uma UBS (Unidade Básica de Saúde), um acesso ao bairro pela estação São Miguel da CPTM (Companhia Paulista de Trens Metropoli- tanos) — que não constava no projeto original da nova estação — além de melhorias expressivas no saneamento básico e na coleta de resíduos sólidos. Em 2017, o Jardim Lapena iniciou o processo de construção do seu Plano de Bairro, cujo objetivo era conectar as ações de participação comunitária já existentes com um instrumento de planejamento urbano estabelecido pelo poder público. Sua metodologia de construção foi desenvolvida em parceria com moradores e organizações locais e contou com a composição de um grupo fixo de participação, mas com entrada sempre aberta, deno- minado Colegiado Plano de Bairro Jardim Lapenna, o que gerou sentido de protagonismo e identidade ao movimento de transformação local. Não existe, sublinhe-se, uma receita para a participação comunitária, no entanto é possível afirmar: ninguém melhor do que uma comunidade ribeirinha, por exemplo, para saber o que de fato faz diferença para quem vive em beiras de rios; ninguém melhor do que um jovem da periferia de uma grande cidade para saber qual política pública atende seus anseios e os de seus pares; ou seja, quem vive as adversidades e dinâmicas locais são os melhores consultores para qualquer projeto local. Essa é a riqueza da participação comunitária: abrir espaços para as diferentes vozes, descentralizar planejamentos e decisões e, sobretudo, estabelecer uma governança territorial, na qual cada um tem o seu papel e os cidadãos podem realmente se reconhecer como sujeitos políticos da sua cidade. PARA SABER MAIS, VER: ▸ Fundação Tide Setubal. 2019. ! MOBILIZAÇÃO COMUNITÁRIA E PLANEJAMENTO TERRITORIAL: REFLEXÕES A PARTIR DA EXPERIÊNCIA DO JARDIM LAPENA https://fundacaotidesetubal.org.br/iniciativas/https://fundacaotidesetubal.org.br/iniciativas/ Capítulo 04 : Dimensão GovernançaGuia de Urbanismo Social 9998 EXEMPLOS DE INICIATIVAS COMUNITÁRIAS: A MARÉ QUE QUEREMOS, O SONHO QUE MOVIMENTA A LUTA A Maré que Queremos é um conjunto de mo- vimentos que buscam articular ações estrutu- rantes a partir da mobilização, do envolvimento e do fortalecimento de agentes atuantes no contexto territorial das dezesseis favelas do Complexo da Maré e que impactam de modo direto na qualidade de vida dos moradores. Ele se baseia em três iniciativas estruturantes que caminham juntas: 1_ Fórum das Associações dos Moradores/ FAM: Reúne-se mensalmente, desde 2010, visando à melhoria da qualidade de vida dos moradores da região nas mais diferentes áreas, especialmente no âmbito da política urbana, direito socioam- biental, educação, saúde e segurança pública. Em tais encontros, são identificadas e debatidas diferentes reivindicações da população local, promovendo o fortalecimento de lideranças comunitárias e iniciativas do território, aproxi- mando-as dos representantes do poder público. 2_ Missão em Foco: Busca apoiar jovens, suas iniciativas e fazeres, que pensam no desenvolvi- mento territorial da Maré. A partir dessa articu- lação em rede e de processos de formação — o que inclui ferramentas para o desenvolvimento de projetos e gestão de equipes —, o propósito é contribuir para que tais ações sejam ainda mais potentes e próximas do que almejam. A iniciativa é do Itaú Social, Redes da Maré e Projeto Maré que Queremos. O último Missão em Foco ocorreu em 2020 e, no momento (outubro de 2022), não há previsão de abertura de novas inscrições para o processo de mentoria. 3_ Regularização das Ruas: Propõe-se a ga- rantir o reconhecimento dentro do processo de urbanização dos espaços e territórios do conjunto de 16 favelas da Maré e incidir, de maneira política, na garantia e na efetivação de uma gestão pública que promova a regularização das comunidades. Desse modo, é incentivada a inclusão urbana definitiva em equilíbrio com a natureza e o meio ambiente, junto com projeto Maré Verde. Em julho de 2021, o Programa de Engenharia Ambiental (PEA-UFRJ) convidou a comunidade para participar do seminário “Segun- das Ambientais”, a partir do trabalho realizado pelo Maré Verde — Campanha Climão. As metodologias das ações do projeto Maré que Queremos envolvem produções de diagnósticos e conhecimento, mobilização e formação de dife- rentes grupos, coletivos, iniciativas e atores locais estratégicos na articulação de diferentes redes de parcerias, incidência política e práticas. Abordar as realidades mareenses a partir de uma perspectiva de interseccionalidade implica que as políticas públicas considerem os impactos distintos que são gerados em relação ao terri- tório, classe social, etnia e meio ambiente, entre outros. Além disso, que levem ao reconhecimento territorial e ao direito à cidade, possibilitem e condicionem as práticas de desenvolvimento. Assim, figuram no radar do diálogo: informação, participação e mobilização, urbanismo, susten- tabilidade, regularização urbana, equipamentos comunitários, integração ambiental e gestão comunitária, entre outros temas. AÇÕES COOPERATIVAS ACADEMIA- COMUNIDADE-ESCOLA PÚBLICA NO JARDIM ÂNGELA O conjunto de três intervenções apresentadas a seguir tem como âncora a Escola Municipal de Educação Infantil (EMEI) Chácara Sonho Azul, locali- zada no Fundão do Jardim Ângela, periferia da zona sul de São Paulo — um modelo de escola-comunidade, sob direção e coordenação pedagógica de Antonio Norberto Martins, Shirlei do Carmo e Kelly Batista. Tais iniciativas, idealizadas e construídas entre os anos 2016 e 2017, se estruturam pela compreensão do ensino acadêmico associado à pesquisa permanente e como ponte inexorável de atividades de extensão com ações reais no local. Por meio de construção de relação e colaboração entre os professores Vera S. Luz e Antonio Fabiano Jr, alunos e alunas do último ano do curso de Arquitetura e Urbanismo da PUC-Campinas e lideranças comunitárias do Jardim Ângela, o desafio a ser pensado e continuamente reformulado foi a perspectiva do alargamento democrático, atrelada a processos de formação do ser político técnico-científico. Dentro do escopo do Trabalho Final de Graduação (TFG), ao longo de dois anos alunos e alunas daquela instituição universitária elaboraram um projeto urbano em escalas sucessivas — metropolitana, regional e local — e desenvolveram projetos de arquitetura compromissados com o território escolhido. Esses direcionamentos propositivos geraram também atuações efetivas junto à comunidade, da pequena escala local à sistêmica, articulando essas ações concretas como horizonte possível. Vislumbrou-se também uma reflexão crítica e propositiva e, em certa medida, um apoio aos modos e formas de articulação da parceria academia-comunidade como modelo de participação comunitária, para o fortalecimento dos sistemas de estabelecimento de programa de necessidades, projeto e gestão. Dentre as atividades propostas realizadas figuraram: ▸ O desenvolvimento de forro térmico no galpão da escola, iniciado e concluído em 2016, estruturado em três etapas: i) campanha de recolhimento de isopor utilizado na FAU/PUC-Campinas para os trabalhos acadêmicos dos alunos ao longo de um ano; ii) instalação de duas faixas desse material sobre tecidos de chita atirantados para proteção térmica da cobertura da área coletiva da escola; iii) instalação completa do forro da cobertura; Guia de Urbanismo Social 100 ▸ Aperfeiçoamento do ateliê de artes da escola, iniciado e concluído em 2016, estruturado em duas etapas: i) criação de crowfunding para arrecadação de valores em dinheiro para a aperfeiçoamento de ateliê de arte para a comunidade dentro da EMEI Chácara Sonho Azul; ii) acompanhamento técnico de restauração de sistema de esgotos e instalação de pia de trabalho no ateliê de arte e educação da EMEI Chácara Sonho Azul; ▸ Plantio de árvores de espécies nativas da Mata Atlântica em área pública para criar espaço de estudo ambiental, convívio e sombreamento para atividades comunitárias da escola, em 2017. Essa iniciativa foi realizada em três etapas e fez parte da programação da 11ª Bienal Internacional de Arquitetura de São Paulo: i) preparação de terreno em área verde pública contígua à EMEI Chácara Sonho Azul para cultivo de horta educativa em extensão à atividade já existente; ii) construção de um muro na área que, antes, em projeto, estava destinada à praça pública aberta. Construir um muro na cidade já tão segregada e confinada, onde a disputa pelo território urbano é fato declarado, constante e intrínseco em sua lógica, se apresentou necessário como posicionamento coletivo no propósito da sua preservação; como ato de resistência à grilagem praticada em área contígua; como resposta necessária para a luta diária; iii) Plantio em mutirão com a comunidade. Tais atividades foram premiadas no 23º Prêmio IAB (Instituto de Arquitetos do Brasil) – 2022, categoria Urbanismo, Planejamento e Cidade. Mais do que isso, ainda reverberam em ações no território, com a professora Vera S. Luz integrando a comissão do Fórum Fundão das Águas, em defesa da represa Guarapiranga, o Fórum de Pesquisadores do M’Boi Mirim e o Fórum em Defesa da Vida, da Sociedade Santos Mártires. Capítulo 05 : Dimensão Territorial 103 DIMENSÃO TERRITORIAL 5.1_ Diagnósticos técnico-territorial e social-participativo 5.2_ Dados em territórios informais 5.3_ Mapeamento de territórios invisibilizados 5.4_ Identificação de potencialidades 5.5_ Processos de urbanização 5.6_ Desenho urbano e urbanismo tático 5.7_ Espaços públicos, de convivência e áreas verdes 5.8_ Equipamentos públicos e sociais e equipamentos-âncora 5.9_ Tópicos em mobilidade urbana 5.10_ Tópicosem habitação social 5.11_ Tópicos em segurança pública 05_ AUTORES 5.1_ 5.2_ 5.4_ 5.5_ 5.7_ Diagonal; 5.3_ Adriano B. Costa e Evandro L. Alves (Portal de Dados Urbanos Insper); 5.6_ Diagonal e Núcleo Arquitetura e Cidade; 5.8_ Murilo Cavalcante e Núcleo Urba- nismo Social; 5.9_ Núcleo Mobilidade Urbana; 5.10_ Núcleos Habitação & Real State e de Urbanismo Social; 5.11_ Núcleo Mulheres e Territórios (5.11.1) e Murilo Cavalcante (5.11.2). BOX Urbanismo social e Arquitetura Popular: Nadia Somekh (CAU-BR) DIAGNÓSTICOS TÉCNICO-TERRITORIAL E SOCIAL-PARTICIPATIVO5.1_ RECONHECIMENTO E PERTINÊNCIA: UMA ABORDAGEM MULTIDISCIPLINAR E PARTICIPATIVA SOBRE O TERRITÓRIO O urbanismo social tem duas características fundamentais em seu processo de transformação das favelas e áreas de maior vulnerabilidade social visando a sua qualificação. A primeira delas é o reconhecimento, característica que, por meio de uma jornada exploratória e crítica sobre diferentes aspectos relacionados à condição local, é responsável pela identificação e reflexão sobre as principais questões presentes no território. Orientada por uma abordagem multidisciplinar e territorializada sobre diferentes temas e políticas setoriais, essa característica ajuda a revelar as particularidades físicas e sociais do local e sua situação atual de maneira integrada, constituindo-se numa fotografia sobre a realidade imediata da comunidade. A segunda característica é a pertinência, um complemento essencial à primeira, pois o reconhecimento da realidade local, de acordo com a abordagem proposta pelo urbanismo social, é inseparável do olhar de quem vive o cotidiano da área. A pertinência, nesse sentido, compreende uma abordagem inclusiva que valoriza a perspectiva da própria comunidade, que, ao explorar as questões presentes em seu território, identifica as principais demandas e potencialidades do local, além de conferir ao futuro das intervenções o devido pertencimento comunitário. LEITURA TÉCNICA PRELIMINAR Em geral, o reconhecimento do território tem seu início na leitura técnica multidisciplinar. Seu olhar exploratório é responsável pela reunião dos primeiros dados e indicadores sobre os temas e políticas setoriais de interesse, organizando, em suas respectivas dimensões, uma leitura preliminar sobre o território que será objeto Capítulo 05 : Dimensão TerritorialGuia de Urbanismo Social 105104 Do ponto de vista prático, essas duas características, reconhecimento e pertinência, estão reunidas na abordagem que orienta o processo de elaboração do diagnóstico técnico-territorial e sócio-participativo. Base para o planejamento das intervenções, o diagnóstico deve ser compre- endido como um exercício de construção coletiva, conciliando análises técnicas e práticas do cotidiano para identificar os principais problemas presentes no território. O objetivo principal é que o diagnóstico organize uma leitura integral dos fatores que interferem na qualidade de vida das pessoas e sua relação, contribuindo para a fundamentação das propostas de intervenção e tomada de decisão. das intervenções. Aqui teremos as primeiras impressões sobre o local, o que auxiliará na identificação de questões prioritárias para discussão coletiva e aprofundamentos. Para a elaboração da leitura técnica, a equipe responsável tem como fontes principais dados e documentos públicos já consoli- dados, como o Censo Demográfico1; diagnósticos setoriais (saúde, educação, assistência social etc.); e planos municipais (Plano Municipal de Habitação, entre outros). A análise desses dados, de maneira crítica e integrada, é o que permite localizar o território em seus diferentes níveis de necessidades, seja pela ausência de equipamentos públicos e serviços essenciais, ausência ou insufi- ciência de infraestrutura urbana básica, entre outros aspectos que compreendem a investigação. Objetivamente, trata-se de um exercício que situa o território em relação aos principais temas e políticas setoriais de forma articulada com a cidade, auxiliando na identificação das condições externas e internas que configuram a condição de vulnerabilidade local. As cidades brasileiras, em sua maioria, refletem, no uso do território, imensas desigualdades quanto ao acesso às diversas oportunidades. As favelas são os territórios com maiores carências. O acesso às 1 Os dados do Censo Demográfico podem ser acessados em diferentes níveis terri- toriais (distritos, bairros e setores). Ver: Sidra. pesquisas territoriais com dados continuamente atualizados é de grande relevância para a formulação do diagnóstico técnico, seja para uso no desenvolvimento de Planos de Ação Local, Planos de Bairro e exposição no diálogo com a comunidade local, seja na formulação de políticas públicas e ações visando à qualificação dos territórios mais vulneráveis. LEITURA COMUNITÁRIA E VIVÊNCIA LOCAL Embora os processos de intervenção urbana tragam, atualmente, componentes participativos em suas discussões, o urbanismo social apresenta uma ruptura com os modelos de intervenção mais fechados, optando pela valorização da experiência local e pelo engajamento deliberativo das comunidades na elaboração dos projetos de intervenção. Esse caráter deliberativo é o ponto disruptivo da abordagem proposta pelo urbanismo social, ao inserir o cidadão no centro do processo de transformação de sua comunidade e pela sua escala local. Por esse motivo, o engajamento e a participação da comunidade são fundamentais desde o início. Ao considerar o território enquanto ator de mudança, o urbanismo social estabelece uma camada humana no processo de leitura integrada dos aspec- tos que organizam a área em questão, refletindo em si a própria organização social da comunidade. Utilizando métodos de produção de dados primários sobre a vivência local, tais como mapeamento de atores, mapas comunitários, rodas de diálogo e pesquisas qualitativas, o componente participativo auxilia na construção do olhar em primeira mão sobre as principais questões que caracterizam o cenário de vulnerabilidade das áreas, bem como na identificação das demandas da população para o projeto de intervenção. PARA SABER MAIS, VER: ▸ Insper Metricis. A lupa na cidade: Painel de indicadores de desenvolvimento de áreas urbanas vulneráveis. 2021; ▸ Rede Nossa São Paulo. Mapa da desigualdade. 2021; ▸ PMSP Geosampa. Mapa digital da cidade de São Paulo; ▸ Pacto pelas Cidades Justas. Diagnóstico participativo para elaboração de projetos de integração de políticas setoriais visando ao desenvolvimento local; ▸ Fundação Tide Setubal. Territórios de direitos — Um guia para construir um Plano de Bairro com base na experiência do Jardim Lapena. 2019. ! https://sidra.ibge.gov.br/home/pimpfrg/nordeste https://sidra.ibge.gov.br/home/pimpfrg/nordeste https://fundacaotidesetubal.org.br/publicacoes/a-lupa-na-cidade-painel-de-indicadores-de-desenvolvimento-de-areas-urbanas-vulneraveis/ https://fundacaotidesetubal.org.br/publicacoes/a-lupa-na-cidade-painel-de-indicadores-de-desenvolvimento-de-areas-urbanas-vulneraveis/ https://fundacaotidesetubal.org.br/publicacoes/a-lupa-na-cidade-painel-de-indicadores-de-desenvolvimento-de-areas-urbanas-vulneraveis/ https://fundacaotidesetubal.org.br/publicacoes/a-lupa-na-cidade-painel-de-indicadores-de-desenvolvimento-de-areas-urbanas-vulneraveis/ https://fundacaotidesetubal.org.br/publicacoes/a-lupa-na-cidade-painel-de-indicadores-de-desenvolvimento-de-areas-urbanas-vulneraveis/ https://fundacaotidesetubal.org.br/publicacoes/a-lupa-na-cidade-painel-de-indicadores-de-desenvolvimento-de-areas-urbanas-vulneraveis/ https://www.nossasaopaulo.org.br/2021/10/21/mapa-da-desigualdade-2021-e-lancado https://geosampa.prefeitura.sp.gov.br/PaginasPublicas/_SBC.aspx https://geosampa.prefeitura.sp.gov.br/PaginasPublicas/_SBC.aspx https://www.cidadesjustas.org.br/assets/downloads/00_Relatorio_Produto05_PactopelaCidade-v3.pdf https://www.cidadesjustas.org.br/assets/downloads/00_Relatorio_Produto05_PactopelaCidade-v3.pdfhttps://www.cidadesjustas.org.br/assets/downloads/00_Relatorio_Produto05_PactopelaCidade-v3.pdf https://www.cidadesjustas.org.br/assets/downloads/00_Relatorio_Produto05_PactopelaCidade-v3.pdf https://www.cidadesjustas.org.br/assets/downloads/00_Relatorio_Produto05_PactopelaCidade-v3.pdf https://www.cidadesjustas.org.br/assets/downloads/00_Relatorio_Produto05_PactopelaCidade-v3.pdf https://www.cidadesjustas.org.br/assets/downloads/00_Relatorio_Produto05_PactopelaCidade-v3.pdf https://fundacaotidesetubal.org.br/midia/publicacao_2986.pdf https://fundacaotidesetubal.org.br/midia/publicacao_2986.pdf https://fundacaotidesetubal.org.br/midia/publicacao_2986.pdf https://fundacaotidesetubal.org.br/midia/publicacao_2986.pdf https://fundacaotidesetubal.org.br/midia/publicacao_2986.pdf https://fundacaotidesetubal.org.br/midia/publicacao_2986.pdf Capítulo 05 : Dimensão TerritorialGuia de Urbanismo Social 107106 5.2_ Um princípio para a implementação de um projeto de intervenção de qualidade em um território é o seu reconhecimento adequado. Para isso, é importante recorrer a dados fundamentados e bem elaborados. Assim será possível o desenvolvimento de um bom diagnóstico e planejamento da intervenção. No entanto, um desafio comum na elaboração de um diagnóstico técnico e participativo é a indisponibilidade de dados e informações sobre o território das comunidades. Em geral, não há uma variedade de dados disponíveis sobre os diversos temas de uma investigação territorial como a proposta pelo urbanismo social. Esses dados, classificados como secundários, quando disponíveis, ainda correm o risco de estarem defasados, ou seja, em descompasso com o momento atual da comunidade. Isso pode comprometer a investigação e o nível de planejamento das intervenções que buscam a melhoria de suas condições na localidade. Além disso, há outras questões que demandam informações mais qualificadas e atuais que esses dados não conseguem fornecer no nível de leitura que se pretende — como é o caso das formas de acesso às políticas setoriais de saúde, edu- cação e assistência social pela perspectiva da própria comunidade. Diante desse desafio, a própria comunidade surge como um im- portante recurso para produzir e organizar esses dados sobre sua realidade. A produção de dados comunitários, nesse sentido, é uma fonte importante de dados primários atualizados para a identificação de questões relevantes no território, auxiliando na leitura e contribuindo para que o diagnóstico forneça os principais elementos para o planejamento das intervenções futuras. Dessa maneira, tanto a leitura técnica quanto a comunitária podem se valer de métodos de coleta de dados primários que utilizem a perspectiva da própria comunidade na produção de informações atualizadas. Dentre as principais formas de produção desses dados, a pesquisa qualitativa auxilia na compreensão de significados e situações DADOS EM TERRITÓRIOS INFORMAIS que dificilmente os dados secundários poderiam fornecer. Essa abordagem, focada na perspectiva das pessoas que residem no território, é um olhar contextualizado e autêntico sobre as principais questões que integram a leitura do diagnóstico. Tal tipo de pesquisa, que tem a possibilidade de ser estruturada para abordar questões objetivas do diagnóstico sobre diversos temas, não descarta a alternativa de ser realizada tanto individualmente — através de entrevistas com lideranças e pessoas de referência da comunidade — como de modo coletivo, com grupos focais que tragam um olhar específico sobre determinadas questões, caso de mulheres que tenham interesse em discutir questões de gênero, ou de jovens focados nas perspectivas de mercado de trabalho. Além da pesquisa qualitativa, outro método de produção de dados primários em conjunto com a comunidade é o mapeamento comu- nitário, que consiste na identificação espacializada de questões relevantes para o diagnóstico. Ele pode ser realizado com mapas impressos ou digitais e permite aos participantes a elaboração de um exercício de reconhecimento sobre o território, contribuindo para o desenvolvimento de uma perspectiva espacial a respeito das principais demandas e potencialidades do local. Pode-se, então, trabalhar na produção de dados primários, através do mapeamento comunitário e da pesquisa qualitativa em complementação aos dados secundários, quando existentes. Capítulo 05 : Dimensão TerritorialGuia de Urbanismo Social 109108 5.3_ MAPEAMENTO DE TERRITÓRIOS INVISIBILIZADOS O DESAFIO DA INFORMAÇÃO SOBRE AS FAVELAS E TERRITÓRIOS DE VULNERABILIDADE SOCIAL Territórios ocupados pelas parcelas mais pobres da população nas grandes cidades tendem a concentrar maior vulnerabilidade socioambiental, a estar localizados perto de lixões, aterros sani- tários, áreas inundáveis, plantas industriais. Somada à falta de infraestrutura e serviços adequados, essa situação cria um cenário complexo, merecendo um olhar aprofundado de tomadores de de- cisão nas esferas governamentais e da sociedade civil organizada. Mas, analisando o problema mais de perto, torna-se fundamental também ressaltar que esses territórios não são negligenciados apenas pela falta de infraestrutura urbana e de serviços públicos: eles padecem ainda de uma carência sistemática de dados confiáveis sobre a realidade local, que informem em maiores detalhes seus problemas e suas potencialidades. Para além dos já bastante conhecidos problemas relacionados à informalidade e à vulnerabilidade social, é importante também constatar que tais territórios são invisibilizados nos processos tradicionais de aplicação de metodologias de mapeamento e de caracterização socioterritorial. Sua complexidade não está bem representada nos mapas e nos números oficiais e nem se encontram bem representados os desafios vividos cotidianamente por seus habitantes. Isso acaba por dificultar muito uma tomada de decisão baseada em evidências que seja capaz de garantir a implementação das soluções mais efetivas de transformação social, gerando um círculo vicioso de sobrevulnerabilização, especialmente para pessoas que carregam no seu corpo grandes marcadores da diferença social (pobres, mulheres, pessoas não brancas, pessoas LGBTQIA+ etc.). Uma das dimensões desse problema de maior destaque em debates especializados e junto à opinião pública é a baixa representativi- dade de pesquisas censitárias nas favelas, evidenciada por uma recorrente diferença entre as contagens populacionais realizadas por diferentes fontes para uma mesma comunidade. Um exemplo ilustrativo é a favela de Heliópolis, em São Paulo, que tem 65 mil habitantes segundo o Censo de 2010, 180 mil segundo a subprefei- tura de Ipiranga, 140 mil moradores segundo a Secretaria Municipal de Saúde e mais de 200 mil moradores segundo a UNAS, União de Núcleos, Associações dos Moradores de Heliópolis e Região, organização da comunidade local. Ao competirem entre si, as informações, avalizadas pelo poder público e de caráter oficial, acabam confundindo o tomador de decisão, gerando um cenário de incerteza que pressiona os agentes a implementar soluções que podem agravar os problemas, quando não os leva a se omitirem do dever de implementar soluções. Há várias causas possíveis para essa dificuldade de obter in- formações censitárias básicas sobre a população residente em favelas. Destacamos, primeiramente, um problema relacionado à metodologia de pesquisa, dado que o Censo Demográfico trabalha com amostras que nem sempre são representativas em escala territorial mais local, comunitária — ou seja, informações sobre bairros, comunidades, aldeias, vilarejos etc. Há também o problema de, muitas vezes, ocorrerem intensos fluxos migratórios em tais territórios, o que dificulta uma boa medição e um monitoramento dessa medição nos espaçados intervalos de tempo entre uma pesquisa censitária e outra. Contudo, saltam aos olhos também problemas que não são de natureza estritamente metodológica, como a dificuldadede estruturar e interpretar de maneira coor- denada os resíduos informacionais de atendimentos de políticas públicas presentes no território — isto é, a falta de “diálogo” entre o CRAS (Centro de Referência de Assistência Social), a UBS (Uni- dade Básica de Saúde), as escolas etc.—, bem como a dificuldade de implementar pesquisa de modo mais adequado em função do controle que grupos civis armados exercem sobre a comunidade. E cabe destacar também que a incorporação de tecnologias de fronteira ao processo de coleta, produção e sistematização de informações em tais territórios é peça essencial na jornada de supe- ração dessa situação de invisibilização informacional que estamos https://www.unas.org.br https://www.unas.org.br Capítulo 05 : Dimensão TerritorialGuia de Urbanismo Social 111110 diagnosticando aqui, no entanto, não é garantia de sucesso por si mesma. A figura a seguir é ilustrativa da invisibilização também existente em soluções high tech, destacando o forte “contraste car- tográfico” na comparação entre as mesmas comunidades informais no Google Maps (à direita) e no OpenStreetMap (à esquerda). No exemplo, podemos observar que o mapeamento do Complexo do Alemão, na cidade do Rio de Janeiro, produzido pelo Google Maps apresenta menos detalhes de configuração espacial do que aquele produzido pela iniciativa Open Street Map. Esse contraste pode ser atribuído a um maior viés da ferramenta do Google para “colocar no mapa” apenas lugares onde transitam os carros. Fonte: Google Maps/Open Street Map. BOAS PRÁTICAS NA PRODUÇÃO DE INFORMAÇÃO SOBRE AS FAVELAS E TERRITÓRIOS DE VULNERABILIDADE SOCIAL Nas primeiras tentativas de encontrar formas de superar o desafio da informação em territórios invisibilizados, pode ficar a impressão de um "beco sem saída". Contudo, um olhar mais atento é capaz de enxergar uma série de experiências inovadoras de mapeamento que nos ajudam a vislumbrar soluções sistemáticas para tal problema. São experiências que chamam a atenção por serem, em geral, muito ricas em termos de caráter participativo e também porque normalmente se utilizam de uma relação orgânica com a dinâmica territorial e/ou de inventivas aplicações de tecnologias de fronteira em geoprocessa- mento e em ciência de dados — e que podem ser complementares a processos oficiais de mapeamento, inclusive oferecendo perspectivas de aperfeiçoamento das teorias e métodos aplicados. ▸ A destacada experiência do Censo da Maré, que mobilizou o complexo de favelas da Maré, no Rio de Janeiro, para a realização de uma pesquisa censitária no território; ▸ A interessante ferramenta “Mapa de Direitos”, da TETO Brasil, que se utiliza de BI (Business Intelligence) e de aprendizado de máquina (Machine Learning) para estruturar informações a partir dos registros de atendimentos realizados pela instituição; ▸ A inovadora experiência da Fundação Tide Setubal com seu projeto A Lupa na Cidade, no Jardim Lapena, periferia de São Paulo, que mobiliza um sofisticado instrumental de métricas relacionadas a uma Teoria da Mudança e organiza indicadores de diagnóstico socioterritorial aplicados junto a grupos de tratamento e de controle; ▸ O interessante projeto Observatório de Olho na Quebrada, em Heliópolis, que tem se colocado como uma referência em produção de informações sobre a maior favela de São Paulo e que constrói um importante ciclo de formação de jovens e adultos para o trabalho com pesquisa socioespacial aplicada à comunidade; ▸ A pioneira aplicação da metodologia LiDAR na maior favela do Brasil, a Rocinha, no Rio de Janeiro, que foi implementada pela Prefeitura da cidade em parceria com o MIT (Massachusetts Institute of Technology) no projeto Favelas 4D e que oferece uma importante alternativa ao uso de drones e outras técnicas de identificação do ambiente construído por sensoriamento remoto, que sofrem resistência em razão de reivindicações de privacidade; ▸ O projeto Territórios da Cidadania, organizado pela ONU-Habitat em Juiz de Fora (MG), que promove parcerias com o poder público local e incorpora aprendizados da atuação da instituição no Brasil em termos de diagnósticos participativos e facilitação do uso de tecnologias de fronteira. ALGUNS EXEMPLOS PODEM SER LISTADOS EM UM ROL NÃO EXTENSIVO DE PRÁTICAS retângulo retângulo retângulo retângulo retângulo retângulo retângulo retângulo Capítulo 05 : Dimensão TerritorialGuia de Urbanismo Social 113112 Experiências como essas nos remetem a uma série de ações de diagnóstico, monitoramento e avaliação que devem ser estudadas de perto e que podem ser tomadas como boas práticas. São ações que possuem várias camadas de complexidade e que apresentam resultados que merecem acompanhamento e detalhamento mais profundo, mas é possível concluir algumas questões a partir de uma análise geral. Podemos, em primeiro lugar, destacar algumas diretrizes que são comumente tidas como boas práticas em qualquer contexto de aplicação de ciência de dados e que se manifestam nessas prá- ticas de referência em territórios populares. É possível ver nelas abordagens muito diretas para questões como reprodutibilidade, produtização, escalabilidade de soluções e também forte interação com movimentos/princípios hoje largamente promovidos pelas comunidades de desenvolvimento como Dados para o Bem (Data for Good), Software Livre e Dados Abertos. São diversas as hipóteses de trabalho que podemos inferir de ex- periências de mapeamento em territórios invisibilizados. Podemos destacar algumas: primeiramente, a constatação de que há uma sistemática falta de evidência para essas comunidades que está prejudicando a tomada de decisão de políticas públicas relacio- nada a eles; a ideia de que questões de governança são melhores solucionadas com o fortalecimento da rede de sociedade civil organizada que já atua nos territórios; a visão de que é prioridade trabalhar com a integração e a incorporação das coisas que já exis- tem antes de se lançar a explorar novos caminhos metodológicos; a perspectiva de que novas tecnologias de fronteira no campo da computação visual, do geoprocessamento e da ciência de dados têm muito a contribuir; a aplicação em contextos de projetos pilo- tos e experimentais antes de aplicar soluções em larga escala; e também a noção de que existe um enorme ganho para processos de mapeamento e diagnóstico socioterritorial se forem feitos de modo integrado em Planos de Ação Local (ver Capítulo 3). INFOGRÁFICO 01: QUAIS DIRETRIZES DE TRABALHO PODEMOS DESTACAR A PARTIR DA ANÁLISE DE ALGUMAS BOAS PRÁTICAS DE MAPEAMENTO DE TERRITÓRIOS INVISIBILIZADOS? DADOS PARA O BEM (DATA FOR GOOD) REPRODUTIBILIDADE Boas práticas em análise de dados em territórios populares podem ser consideradas parte do movimento Data for Good. São resultados de processos de trabalho cada vez mais vinculados à era do Big Data e orientados a dados (data- driven), porém, mais que isso, são intrinsecamente relacionadas ao propósito de gerar impacto positivo em termos de desenvolvimento social e sustentabilidade, sendo esses resultados lucrativos ou não. É essencial para coleta, produção e sistematização de informações em territórios populares. Os métodos, transparentes, são compartilhados com as partes interessadas e podem ser reproduzidos por pesquisadores e servidores públicos. DADOS ABERTOS Boas práticas de mapeamento e diagnóstico socioespacial em territórios populares são fortemente ligadas aos princípios do movimento de Dados Abertos. Há um intenso esforço de compartilhar, além dos métodos e procedimentos de tratamento de dados, os dados em si. Soluções em análises de dados em territórios populares são fortemente orientadas à produtização e ao ganho de escala. Mesmo que circunscritas a iniciativas pequenas, geralmente aparecem como projetos pilotos que pretendem ser aplicados não apenas ao contexto específico de cada projeto como também a problemas relacionadose a outros territórios similares. PRODUTIZAÇÃO/ ESCALABILIDADE Capítulo 05 : Dimensão TerritorialGuia de Urbanismo Social 115114 retângulo retângulo retângulo retângulo retângulo retângulo retângulo retângulo retângulo retângulo H0: Há falta de evidências sobre a cidade informal, prejudicando a tomada de decisão H1: Uma rede de sociedade civil organizada no território produz melhor governança H2: A prioridade é integrar o que já existe H3: Novas tecnologias podem contribuir de forma decisiva H4: É preferível iniciar com um projeto piloto Investir tempo e recursos na produção de melhores evidências sobre a realidade socioespacial da cidade informal para fins de monitoramento e avaliação configura um melhor cenário para a redução da vulnerabilização social de seus habitantes. Apostar que instituições atuantes em territórios vulnerabilizados adaptarão seus processos de trabalho para fins de mapeamento é algo preferível a investir em abordagens de especialistas que ainda não atuam no local. Processos e atividades de mapeamento que já estão em curso têm qualidade técnica razoável e sua integração deve ser priorizada em relação a novas intervenções de mapeamento. Tecnologias de fronteira — sobretudo no campo da computação visual — podem enriquecer os processos de mapeamento que já estão em curso e produzir novos percursos metodológicos a serem explorados. Para uma solução de mapeamento que alinhe atores estratégicos para uma metodologia comum de trabalho e que seja, ao mesmo tempo, replicável a todos os territórios invisibilizados é necessário começar com um projeto piloto em um território específico. INFOGRÁFICO 02: QUAIS HIPÓTESES DE TRABALHO SÃO SUGERIDAS PELA ANÁLISE DE ALGUMAS BOAS PRÁTICAS DE MAPEAMENTO DE TERRITÓRIOS INVISIBILIZADOS? retânguloretângulo H5: O mapeamento deve ser integrado a um Plano de Ação Local para garantir melhores resultados Para tornar os eventos de mapeamento um processo que também seja orientado para a transformação da realidade social desses territórios, é desejável que, em vez de pensar problemas em separado, o processo seja vinculado a uma ampla concertação de interesses e iniciativas de intervenção social na forma de um Plano de Ação Local. Por fim, cabe ressaltar a mais crítica e mais simples das hipóteses: a conscientização acerca do fato de que há uma importante trajetória de aprendizado sendo construída por essas e outras iniciativas, que pode (e deve) ser fortalecida e priorizada pelas partes interessadas no desenvolvimento territorial local. Não há necessidade nem serventia de pensarmos esse processo como algo que parte de uma folha em branco, o que nos leva a ter como questão primordial pensar primeiramente em caminhos que promovam a integração e o aprimoramento metodológico dos bons processos de mapeamento que estão em curso. Podemos pensar nisso como a meta muito direta de um primeiro passo para contornar os gargalos de informação em territórios invisibilizados. Nela, o verbo integrar aparece como a palavra-chave. E integrar as experiências exige não apenas o simples ato de juntar os produtos resultantes do trabalho desses agentes mapeadores. Exige também viabilizarmos cenários em que esses diversos levan- tamentos possam construir momentos de aprendizagem em comum e se tornem processos comparáveis entre si, promovendo, assim, um grande apoio à tomada de decisão baseada em evidências para territórios hoje invisibilizados. Trata-se de uma iniciativa bem-vinda e urgente promovermos espaços físicos e virtuais para que essa convivência de experiências aconteça e floresça no país. retângulo retângulo retângulo retângulo retângulo retângulo Capítulo 05 : Dimensão TerritorialGuia de Urbanismo Social 117116 5.4_ IDENTIFICAÇÃO DE POTENCIALIDADES Etapa fundamental no processo de planejamento das intervenções, a identificação das potencialidades locais pode ser considerada o ponto mais importante da síntese do diagnóstico técnico-territorial e social-participativo. Essa síntese, integrando as leituras da carac- terização preliminar com a vivência local, auxilia na identificação dos fatores que podem contribuir para alavancar as intervenções e maximizar seus resultados no cotidiano da comunidade. Para colocar tal olhar em prática, o primeiro passo é a definição das categorias de análise integrada. Essas categorias, além de orientar o exercício de reflexão conjunta sobre a intervenção local, vão definir as estratégias de ação, planejando o fio condutor de todo o processo de transformação da área em questão. Dentre as categorias de análise integrada sobre as potencialidades da comunidade, esse exercício pode, por exemplo, direcionar seu olhar para os potenciais humano, social e urbano — categorias essas que permitem uma visão abrangente a respeito da diversidade de temas e questões locais. Outras categorias podem ser definidas em conjunto com a comu- nidade por meio de oficinas de integração técnica e comunitária. O ideal é que essas categorias permitam uma reflexão ampla sobre todas as questões abordadas no diagnóstico e, sempre que possível, façam do exercício de integração um espaço de debate no qual a comunidade enxergue sua própria perspectiva de análise. POTENCIAL HUMANO POTENCIAL SOCIAL POTENCIAL URBANO Envolve o conhecimento, as competências e capacidades locais (educação e experiência) existentes na comunidade e que facilitam a criação de bem-estar pessoal, social e econômico. Abrange não somente o tamanho de sua população como também a existência, a quantidade e a distribuição no território das instituições públicas e privadas e suas redes de equipamentos e serviços. É refletido pela existência de uma adequada infraestrutura urbana e ambiental que possibilite um padrão de vida digno para a população. Nesse quesito entram os dados sobre infraestrutura de mobilidade e acessibilidade, saneamento, energia etc., além das condições habitacionais (dos domicílios, conjuntos, bairros), da regularização jurídico- fundiária e da segurança urbana, por meio dos serviços nessa frente, do controle das áreas de risco etc. INFOGRÁFICO 03: CATEGORIAS DE ANÁLISE INTEGRADA SOBRE AS POTENCIALIDADES DA COMUNIDADE Capítulo 05 : Dimensão TerritorialGuia de Urbanismo Social 119118 5.5_ PROCESSOS DE URBANIZAÇÃO Verificam-se dois distintos processos de ocupação urbana: o de produção da cidade formal e o da cidade informal. Nas áreas for- mais sua configuração física se dá por meio da realização de três operações de estruturação do espaço. Os parâmetros em cada uma delas são: (i) parcelamento (a divisão de grandes glebas, por meio da rede viária, em porções menores, as quadras) e microparcelamento (a divisão das quadras em lotes); (ii) implantação de infraestrutura; e (iii) construção das edificações. A cidade formal, portanto, corresponde aos bairros mais centrais, consolidados e dotados de maior infraestrutura urbana, que podem, todavia, se mesclarem em situações e práticas de informalidade (bem como nas áreas informais podem existir traços de formalidade). As áreas formais costumam apresentar uma estrutura viária legível, em uma malha mais ou menos regular, mais ou menos densa, sobre a qual podem ainda ser realizadas intervenções diversas como redesenho das suas espacialidades, novas articulações viárias, ampliação e adequação das infraestruturas existentes, qualifi- cação de espaços públicos, novos equipamentos, adensamento habitacional etc. As chamadas áreas informais correspondem às configurações nas quais predominam precariedades diversas. Uma das operações citadas anteriormente está ausente ou incompleta. No caso dos loteamentos irregulares, por exemplo, o parcelamento do solo foi realizado por meio de um projeto técnico com os lotes comer- cializados, porém o empreendedor não cumpriu a obrigação de fornecer toda a infraestrutura básica2. Frequentemente,algumas ações ainda devem ser endereçadas, envolvendo a implantação de infraestrutura por meio das redes oficiais, pavimentação das vias, qualificação dos passeios públicos e, ao mesmo tempo, regularização fundiária dos lotes, entre outras. 2 Lei Federal No 6.766/79. As favelas, por sua vez, não contam com projeto de parcelamento e ocupação do solo e a maior parte da infraestrutura básica está ausente. Tomamos as favelas como exemplo para discussão de infraestrutura por serem assentamentos nos quais estão presentes elevados graus de vulnerabilidade social. A intervenção nos pro- cessos de urbanização das favelas requer uma análise cuidadosa do tecido urbano, ao associarmos as questões de vulnerabilidade social às de riscos diversos — e incluindo severas situações de insalubridade e isolamento territorial. Deve-se considerar reverter tais situações com ações técnicas, contudo sem perder de vista um cuidadoso acompanhamento e envolvimento dos moradores. Intervir tanto em áreas formais quanto informais da cidade pressupõe reconhecer a sua conexão os sistemas que possuem rebatimentos nas escalas micro e macro. Para isso, pode-se trabalhar com as camadas territoriais, enquanto leitura cartográ- fica de cada uma das grandes temáticas, inter-relacionando-as, conforme o quadro a seguir: retângulo retângulo retângulo retângulo retângulo retângulo CAMADAS SUBCATEGORIAS ANALÍTICAS Capítulo 05 : Dimensão TerritorialGuia de Urbanismo Social 121120 INFRAES- TRUTURA Sistematização e cruzamento das camadas relativas às infraestruturas: ▸ Mobilidade e acessibilidade; ▸ Sistema de abastecimento de água; ▸ Sistema de coleta e tratamento de esgoto; ▸ Drenagem de águas pluviais; ▸ Energia elétrica etc. Compreende recolher informações necessárias à descrição dos diversos componentes dos sistemas, caracterizando, segundo as diversas modalidades e níveis hierárquicos implicados, as deficiências e pendências, limitações e potencialidades de desempenho técnico e funcio- nal das redes e serviços existentes. Implica ainda analisar as demandas atuais e futuras. FÍSICO- AMBIENTAL Camadas físico-ecológicas e de uso dos sistemas naturais (serviços ambientais): ▸ Relevo-geomorfologia; ▸ Geologia; ▸ Hidrografia e hidrologia; ▸ Aspectos climáticos; ▸ Cobertura vegetal; ▸ Sistemas de regulação e proteção ambiental. A síntese dessas leituras leva ao reconhecimento dos compartimentos ambientais da paisagem, propiciando a elaboração de diretrizes de ordenamento, respeitando o equilíbrio entre os processos naturais e a urbanização e os usos do território. As informações cartográficas e quantitativas necessárias à tarefa de construção do mapeamento têm obtido importante ajuda dos programas de georreferenciamento dos dados coletados em campo e das informações públicas advindas de diversas fontes de pesquisa. O trabalho de transformação das áreas informais tende a gradativa- mente promover o fortalecimento dos valores de dignidade humana e do tecido social, minimizando as desigualdades. A implantação das infraestruturas corresponde a elevados investimentos públicos e faz enorme diferença no processo de urbanização de favelas. Nas duas ou três últimas décadas, diversas intervenções foram rea- lizadas em favelas nas cidades brasileiras na tentativa de incorporar áreas informais às áreas formais da cidade. As características mais comuns desses planos referem-se à redução das situações de risco, com remoções de habitações em tais condições e reassentamento na própria comunidade ou nas suas proximidades, implantação de infraestrutura de saneamento, instalação de equipamentos públicos e melhorias nos espaços públicos de uso coletivo. ▸ Capítulo 15 (Casos Referenciais). ! PARA SABER MAIS, VER: USO E OCUPAÇÃO DO SOLO A análise das formas de uso e ocupação do solo deve contemplar, quando possível ou aplicável, questões como: ▸ Caracterização tipológico-funcional das zonas habitacionais, industriais, de comércio e serviços da área em estudo e sua articulação com os sistemas de mobilidade e transportes; ▸ Localização e caracterização tipológico-funcional das áreas de centralidade ou de pontos de referência, ou daquelas que exercem atração ao usufruto coletivo da população, ao contribuírem para a legibilidade da área; ▸ Características locacionais dos espaços abertos de uso público, verificando sua continuidade, articulação e condições de acessibilidade em relação às linhas e modalidades de circulação e transportes; ▸ Características locacionais da rede de equipamentos públicos destinados à promoção da educação, da saúde e assistência social; ▸ Uso e ocupação do solo (tendências de expansão, desocupação, deterioração, substituição, adensamento, mudança de função etc.). INFOGRÁFICO 04: CAMADAS TERRITORIAIS INTER-RELACIONADAS Capítulo 05 : Dimensão TerritorialGuia de Urbanismo Social 123122 5.6_ DESENHO URBANO E URBANISMO TÁTICO O direito à cidade deve assegurar uma vida digna a todos, garantindo os fundamentais espaços de sociabilidade. O cuidado em valorizar as narrativas da vida comunitária, por vezes esquecidas pelo olhar tecnicista, torna-se um procedimento central na promoção do urba- nismo social e, nesse sentido, deve-se promover o desenho urbano adequado, tecnicamente desenvolvido em processos produtivos de interação junto à comunidade local. Algumas alternativas ao planejamento urbano tradicional vêm surgindo na última década, como as ações do urbanismo tático. Ele pode apontar para uma saída diante de uma crise de governança nas cidades e da corriqueira morosidade da gestão pública em implantar as melhorias dos espaços públicos nas favelas. Trata-se de intervenções urbanas de ação rápida, baixo custo e, por vezes, em uma escala pontual (microescala), chamada de acupuntura urbana. O urbanismo tático propõe alternativas ao processo tra- dicional de projeto urbano e propõe a mobilização da base para o topo, no que se refere aos agentes de transformação, além de, por sua escala mais pontual, não demandar muitos investimentos concentrados. Dessa maneira, ele mantém pontos de contato com o urbanismo social desde o seu aspecto estratégico, com desdo- bramentos locais e participativos, até, eventualmente, intervenções mais sistêmicas. O urbanismo social e o urbanismo tático mobilizam um conjunto de agentes com capacidades produtivas e criativas na transformação socioespacial e que têm uma boa dose de viabilidade em suas proposições. Nesse caso, ele pode ser um importante desencadeador, em etapas iniciais, de ações mais duradouras e estruturantes, aumentando o engajamento em políticas vinculadas coletivamente, com maior empoderamento social. As intervenções urbanas devem, assim, ser pensadas não apenas em termos das configurações espaciais das porções mais visíveis dos assentamentos e sim considerando também a articulação das proposições, de modo a prever as transformações, incorporando suas bordas ao contexto circundante e estabelecendo formas de penetração de urbanidade nas porções interiores dos recortes territoriais em questão. Ressalte-se a importância do efetivo diálogo entre o novo e os elementos preexistentes da paisagem com seu valor simbólico e identitário. Por fim, sugere-se, durante a criação de projetos que envolvam o redesenho urbano, a elaboração de propostas que combinem atividades, ampliando o repertório de programas conhecidos, via de regra, excessivamente utilitaristas e monofuncionais. Esse olhar crítico ajuda a reposicionar a atuação não apenas nas áreas formais e legíveis, como também nas situações mais difíceis, eventualmente desprezadas, ou residuais, geralmente resultan- tes da interferência entre as grandes linhas de infraestrutura (viadutos, linhas de energia etc.) e o tecido urbano do bairro. O desenho, nesse sentido, pode ser um parceiro para ressignificar áreas consideradas, por vezes, como degradadas. O urbanismo social deve procurar estendera atuação para escalas mais amplas, por meio de um plano de ação global, associando um conjunto de ações locais a um olhar sistêmico. No entanto, as ações locais e rápidas como as do urbanismo tático, quando mul- tiplicadas, possuem um potencial de impacto no todo. Trata-se de compor soluções multifuncionais e em diversas esferas, resultando em uma transformação de visão, enquanto aproximação com as questões territoriais. O urbanismo tático, sublinhe-se, é um método de transformação urbana estratégico para criar mudanças rápidas e maior aderência social. Como um processo de engajamento e de governança comu- nitária, baseia-se na construção de ambientes criativos: campos de ação, inovação e imaginação, transformando espaços concretos em laboratório de experiências voltadas para a melhoria do hábitat. O urbanismo tático fomenta o ambiente coletivo: processos engajando a comunidade que se apoia na infraestrutura social local e que buscam refletir a identidade dos espaços com a participação ativa dos cidadãos. O processo é iterativo. O método “Planejamento baseado em ações" surge como alternativa para prever os impactos das transformações Capítulo 05 : Dimensão TerritorialGuia de Urbanismo Social 125124 futuras, a partir de dinâmicas de cocriação3. Os processos de desenho e planejamento urbano tradicional são baseados numa sequência linear com pouca margem de mudança. Já no planejamento baseado em ações, as soluções de desenho sustentam-se em uma lógica mais ágil de testar e corrigir — vale dizer, medição, testagem e redefinição —, existindo abertura para mudanças e adaptações que se revelarem necessárias ao longo do processo. Por fim, ações de urbanismo tático têm ajudado na implementação de áreas de trânsito calmo, definidas com o objetivo de melhorar a segurança de usuários vulneráveis por meio de medidas como exigência de baixa velocidade no entorno de uma escola, com priorização dos pedestres nas vias em detrimento dos veículos. 3 Gehl. Action Oriented Planning Methodology. 2016. PARA SABER MAIS, VER: ▸ WRI. Guia para áreas de trânsito calmo. 2022. ! ▸ Inspiração para projetos estruturantes: as mudanças concretas, e especialmente físicas, embora temporárias, servem de modelo de transformação a longo prazo. São projetos pilotos que permitem trazer para o presente propostas para o futuro e, com isso, avaliar os impactos e planejar melhor o que será feito e até mesmo visibilizar outras mudanças. ▸ Equipamentos seguros: os equipamentos, especialmente aqueles considerados “âncora”, e o seu entorno são importantes porque geram vida pública e comunitária, sendo também chamarizes para frequentadores. ▸ Coleta de dados: o urbanismo tático apresenta um momento inovador no processo tradicional de planejamento: o de acertar os indicadores baseados numa ação real. Ao mesmo tempo, é uma oportunidade para conhecer melhor a localidade, a partir de dados quantitativos ou qualitativos, como o nível de participação e a aceitação do projeto. ▸ Ampliação da participação social: o engajamento comunitário é complexo e precisa se apoiar não apenas em dinâmicas de planejamento. As ações concretas criam ânimo de mudança, assim como estabelecem novos pontos de partida ao longo dos processos participativos. Como o urbanismo tático trata de transformações físicas nos espaços, principalmente, comunitários, é uma oportunidade para atrair diferentes atores. ▸ Convocatória: nesse modelo, é mais fácil despertar a percepção sobre necessidades ou possibilidades de mudança que estavam passando em branco. Para os moradores da região pode ser uma oportunidade para que grupos alheios ao projeto experimentem fisicamente um espaço de maneira distinta. O engajamento comunitário com resultados físicos concretos no entorno é um bom caminho para trazer setores do poder público para a conversa. ▸ Processo Bottom-up: o urbanismo tático é uma ferramenta valiosa para incorporar práticas de baixo para cima, em oposição ao planejamento tradicional de cima para baixo (Top-Down). ▸ Processo pedagógico: uma cidade educadora é um lugar que potencializa todos os espaços físicos e aspectos subjetivos, como oportunidades de aprendizagem. O urbanismo tático permite passar da teoria à prática e da prática ao desenho, ao mesmo tempo que traduz estratégias complexas em transformações concretas e visíveis. ▸ Capital social: o desenvolvimento do capital social entre os cidadãos e a construção da capacidade organizacional entre instituições públicas/privadas, organizações do terceiro setor e a população local são indissociáveis do modelo de urbanismo tático. CARACTERÍSTICAS DO URBANISMO TÁTICO Fotografias: Carlos Leite. O Mutirão da Praça dos Sonhos no Jardim Lapena, favela na Zona Leste em São Paulo, foi desenvolvido em um fim de semana de 2022 na forma de mutirão junto à comunidade local. Dentre várias atividades, contou com ações de urbanismo tático e teve a participação de dezenas de crianças do CEI (Centro de Educação Infantil) que desenvolveram desenhos e maquetes. https://issuu.com/gehlarchitects/docs/action_oriented_planning_february_0/12 https://www.wribrasil.org.br/publicacoes/guia-para-areas-de-transito-calmo https://www.wribrasil.org.br/publicacoes/guia-para-areas-de-transito-calmo Capítulo 05 : Dimensão TerritorialGuia de Urbanismo Social 127126 5.7_ ESPAÇOS PÚBLICOS, DE CONVIVÊNCIA E ÁREAS VERDES A matriz pública dos espaços urbanos é composta pelos espaços de domínio público e acessíveis a toda a população. São os lugares de passagem, de encontro, de integração e de trocas — como ruas, calçadas, largos, praças, parques e jardins, entre outros — a partir dos quais se desdobram os demais usos e atividades de convivência. Essa vivência nos espaços livres públicos ocorre no cotidiano das cidades através dos seus mais diversos percursos. Mas não são raras as vezes em que nos deparamos com a falta de conexão, pertencimento e articulação entre as áreas urbanas. Essas bar- reiras, presentes em inúmeras situações de segregação, geram inacessibilidade e percepção de insegurança à população. Pensar e promover a diversidade nos espaços urbanos é essencial para a construção de lugares mais saudáveis, inclusivos e seguros. O debate atual por cidades mais justas e inclusivas se depara com o enorme desafio de propiciar espaços mais humanos, adequados e receptivos, que integrem e acolham as diferentes características de seus usuários, como gênero, raça, etnia, orientação sexual, renda, idade e condições físicas diversas. Deve-se ter um olhar atento para o protagonismo comunitário, desde as escolhas iniciais dos projetos até a gestão desses espa- ços. É fundamental dialogar e integrar quem vivencia o território; valorizar e incentivar a participação da população nas decisões e processos, em todas as etapas. Além disso, é preciso pensar polí- ticas públicas que permitam outras formas de habitar e interagir com o território, incentivem outras relações com o tempo, com a memória, com o trabalho, com o alimento, com o brincar, com os resíduos e com o diferente — e, sobretudo, possibilitem que surjam potências locais, estimulem e exercitem uma visão sistêmica que integre o corpo, a ecologia, a cultura e o território. O caso das hortas urbanas e outras ações comunitárias em di- ferentes áreas, como a Praça Sete Jovens, na Brasilândia, ou a Comunidade Cultural Quilombaque, em Perus, ambas em São Paulo, constituem exemplos de iniciativas nas quais a própria população, através de editais públicos e privados de apoio a projetos de base e periféricos, como a Lei de Fomento à Periferia, atua em seu território. Isso se dá em diferentes escalas, desde a individual até a urbana, com atendimentos psicológicos, incremento de projetos de educação formal e ambiental, recuperação de nascentes, rodas de jogo e de samba etc. que valorizam o indivíduo, a sua cultura eo seu território, promovendo ações sociais e ambientais. Novamente, deve-se lembrar da carência desses espaços abertos de convivência, praças e áreas verdes nas favelas brasileiras, onde comumente a única área de tal natureza é o campo de futebol, que, a despeito de cumprir uma função esportiva, é um espaço de uso predominantemente masculino e não arborizado. Os indicadores de distribuição territorial de praças e parques nas cidades do país mostram a urgência na implantação desse tipo de área nas periferias de nossas cidades. Capítulo 05 : Dimensão TerritorialGuia de Urbanismo Social 129128 5.8_ EQUIPAMENTOS PÚBLICOS E SOCIAIS E EQUIPAMENTOS-ÂNCORA Toda cidade deve ter uma rede de equipamen- tos públicos equitativamente distribuída pelas suas diversas regiões e bairros, de modo que a população possa acessar, de modo equâni- me, as oportunidades de saúde, transporte, esportes e lazer, cultura etc. Infelizmente, essa não é uma realidade no Brasil, onde as favelas e territórios periféricos são os que menos possuem equipamentos públicos. Assim, é parte fundamental dos processos e programas de urbanismo social o adequado mapeamento desses equipamentos, que naturalmente possuem, cada qual com suas especificidades e demandas, as áreas de influência e abrangência nas cidades e a respectiva promoção de oferta. Novamente aqui trazemos a referência de Medellín, com um de seus elementos-chave do urbanismo social: os grandes equipamen- tos públicos implantados nas diversas "comu- nas" (favelas) situadas nos morros da cidade, em geral com programas multifuncionais, alta qualidade de projeto e execução, conectados com os sistemas de mobilidade — as estações do famoso teleférico (Metrocable) e escadas rolantes —e os espaços públicos. Sendo projetados sempre nos Projetos Ur- banos Integrais (PUIs) e alinhados com as demais ações setoriais, a implantação de tais equipamentos consistiu ações públicas de "entregas rápidas", ou seja, das primeiras de porte nos processos de urbanismo social. Isso porque, além de cumprirem suas fun- ções essenciais, fizeram também o papel de acelerar as transformações nos territórios, gerando importantes locais de encontro da comunidade e propiciando o desejável processo de credibilidade da comunidade em relação ao programa. Em Medellín, os equipamentos-âncora são as grandes escolas públicas, bibliotecas e bibliotecas-parque, Unidade de Vida Articu- lada (UVA) e Casa da Justiça, dentre outros. Em duas de suas célebres afirmações como o gestor público que pioneiramente criou tais programas, o então prefeito Sergio Fajardo (2004-2008) apontava "o melhor para os mais pobres" e "o bom design educa". Assim, os melhores projetos, obras, equipamentos públicos, escolas da metrópole colombiana estão nas áreas de menor IDH e extrema pobreza da cidade e se transformaram ra- pidamente em referências nos territórios. A ideia foi alinhar ética e estética para acabar com o ciclo da pobreza e exclusão social: em Medellín, toda arquitetura deve ser peda- gógica e toda engenharia deve ser social. Lá, os equipamentos-âncora configuram centralidades no território e simbolizam as transformações sociais e culturais. Com as lições aprendidas em Medellín, nasce a Rede Compaz em Recife4 O Centro Comunitário da Paz – Compaz foi concebido com foco na prevenção à violência, na inclusão social e no fortaleci- mento comunitário. Baseado em experiên- cias colombianas de urbanismo social e de outras fontes de espaços de cidadania, o Compaz possui quatro unidades no Recife. Conhecidos como “Fábricas de Cidadania”. Os equipamentos se destacam tanto pela estrutura quanto pelos serviços e atendi- mentos oferecidos, a exemplo de cursos de capacitação profissional. Os Compaz fazem parte da Secretaria de Segurança Cidadã da Prefeitura do Recife, e, em 2019, o projeto foi escolhido como o me- lhor para a redução da desigualdade social no país pelo Programa Cidades Sustentáveis e Oxfam Brasil. O prêmio objetiva reconhe- cer projetos nacionais de larga escala social que tenham impacto em vários setores. A primeira unidade do projeto foi inaugurada em 2016, no bairro do Alto Santa Terezi- nha, zona norte da capital pernambucana. O Compaz Governador Eduardo Campos oferece diversos atendimentos e ativida- des esportivas, com destaque para o Dojô, espaço de artes marciais, e a biblioteca Afrânio Godoy. Mais de quinze mil pessoas estão cadastradas no equipamento público. Em média, 250 pessoas frequentam diaria- mente sua biblioteca, a maior construída 4 CAVALCANTI, Murilo. Conexão Recife, Medellin, Compaz. Recife: Cepe, 2022. pela Prefeitura do Recife, com 850 m2 e um acervo de cerca de quinze mil livros. Já o Dojô chegou à marca de mais de oi- tocentos praticantes. O número qualifica o espaço como o maior centro público de treinamento de artes marciais de Pernam- buco e o coloca como o principal projeto social ligado à prática de artes marciais no Brasil. Vários alunos já se tornaram atletas profissionais, vencendo competições nacio- nais e internacionais. Os bairros diretamente beneficiados, além do Alto Santa Terezinha, e que estão no raio de 1 km de lá, são: Bebe- ribe, Água Fria, Dois Unidos, Linha do Tiro e Bomba do Hemetério. Em março de 2017, a segunda unidade foi entregue à população no bairro do Cordei- ro: o Compaz Escritor Ariano Suassuna. O equipamento oferece espaços para resolver pendências de documentação, orientações judiciárias, mediar conflitos e informações sobre assistência social. Entre os destaques da unidade da zona oeste recifense está o Ateliê Compaz, cujo foco é capacitar os par- ticipantes para a geração de renda. As duas quadras de tênis e a quadra poliesportiva também são diferenciais. O equipamento abriga com exclusividade uma Junta Militar e tem mais de 22 mil pessoas cadastradas. A segunda “Fábrica de Cidadania” da cidade atende, além de Cordeiro, os moradores dos bairros San Martin, Torrões, Prado, Bongi, Mustardinha e Afogados e as comunidades da Roda de Fogo e Vietnã. Capítulo 05 : Dimensão TerritorialGuia de Urbanismo Social 131130 Já o Compaz Governador Miguel Arraes, terceira unidade da rede, foi inaugurado em 2019, na comunidade do Sítio do Berardo, na Praça da Caxangá. Entre seus diferenciais, está a atenção especial à cultura maker, com uma Unidade de Tecnologia (UTEC), da Secretaria de Educação, oferecendo cursos básicos de computação, de robótica, animação digital e a oficina de Arduino. Essa unidade atende os moradores dos bairros da Iputinga, Torre, Zumbi, Madalena, Ilha do Retiro, Derby, Graças, Santana e Várzea. A quarta “Fábrica de Cidadania”, o Compaz Dom Hélder Câmara, foi inaugurada em 2020, na comunidade do Coque. Possui piscina, quadra poliesportiva, Dojô, Centro de Referência em Assistência Social — CRAS e o auditório Geneton Moraes Neto. Entre os serviços que só essa unidade oferece estão: Sala Mãe Coruja, espaço do empreendedo- rismo, estúdios de rádio, TV e fotografia e Casa da Justiça e Cidadania. 5.9_ TÓPICOS EM MOBILIDADE URBANA FATORES QUE DIFICULTAM A MOBILIDADE E O ACESSO NAS FAVELAS As comunidades urbanas desprovidas de in- fraestrutura são as que mais sofrem também com a exclusão do acesso às oportunidades de trabalho, serviços públicos, lazer e outros equipamentos das cidades. Quando não são distantes dos centros comerciais, de serviços e de empregos, tais comunidades sofrem com a falta de integração com infraestruturas e serviços de transporte existentes. Linhas de ônibus não penetram em seus territórios, as ruas não se conectam de forma a otimizar a circulação e a conexão com estações de metrô ou corredores de média capacidade, por exemplo. A insegurança viária e a pre- cariedade das infraestruturas para desloca- mentos ativos predominam. A dificuldade de se mover dentro das favelas, bem como para fora delas, é mais uma cama- da de vulnerabilidade que se soma a tantas outras e que afeta de modomarcante o dia a dia de seus moradores. Uma mobilidade precária afeta o acesso a serviços públicos e torna ainda mais penosos deslocamentos fundamentais para a vida urbana, como em direção ao trabalho, à escola e a comércios. Assim, a mobilidade urbana digna e eficiente, além de ser um direito, é um meio para a efetivação de outros — e fundamental para uma vida digna e saudável. Entre os fatores comuns que tornam a mobilidade urbana precária nas favelas, destacam-se a ausência, a inadequação ou a precariedade dos seguintes elementos: ▸ Viário: uma das características mais visíveis das favelas é a ocupação desor- denada, que leva à ausência de sistema viário articulado, tal como nas áreas urbanas consolidadas em geral; ▸ Calçadas: quando presentes, caminhos segregados para deslocamentos a pé são irregulares, estreitos e muitas vezes ocupados por automóveis estacionados e comércio. Comumente, pedestres e veículos são obrigados a compartilhar o mesmo espaço, expondo os caminhantes a riscos de atropelamento, especialmente idosos e crianças. Apesar disso, os des- locamentos a pé são meio fundamental para moradores circularem no território e acessarem serviços de transporte público para locomoção diária com destino ao trabalho ou a serviços públicos; ▸ Rotas de bicicletas: em territórios com topografia não acentuada, em que o uso da bicicleta é frequente, ciclistas conflitam no precário e limitado espaço viário com carros, motos, pedestres e comércios, o que torna o uso de tal meio deslocamento ineficiente e inseguro; Capítulo 05 : Dimensão TerritorialGuia de Urbanismo Social 133132 ▸ Serviços de transporte público capilariza- dos: as rotas coletoras ou de bairro operadas por ônibus não possuem penetração nessas áreas. Os veículos, mesmo de menor porte (micro-ônibus), não conseguem transitar pelas vielas, ruas irregulares e pequenos espaços entre as construções que caracteri- zam as favelas e outros territórios informais; ▸ Conectividade com sistemas por trilho: o sistema viário não articulado e as condições precárias para deslocamentos ativos (a pé e de bicicleta) dificultam a conectividade com estações de metrô e trem urbano, quando elas estão presentes no entorno das favelas. Condições mais adequadas para ciclistas e pedestres poderiam tornar o deslocamento até tais infraestruturas de transporte de massa menos penoso, mais rápido e seguro. Esses fatores reduzem enormemente o acesso dos moradores aos benefícios de viver em cidades. Além de comprometer o acesso a serviços públicos e empregos, bair- ros precarizados também veem seriamente dificultada a entrega de produtos e serviços nessas regiões, elevando custos logísticos e excluindo a população da possibilidade de aquisição de bens e serviços. Mal existindo espaço para automóveis, motos e pedestres, também não há condições para a implanta- ção de infraestrutura ciclística, que poderia viabilizar deslocamentos em um veículo sus- tentável, barato, acessível e, também, seguro. A presença de ruas de terra em algumas dessas comunidades torna-as intransitáveis e ainda mais inseguras em dias de chuva. São camadas de vulnerabilidade que se somam em um mesmo território e que comprometem fortemente a capacidade de seus moradores de ter uma vida produtiva, digna e saudável. PROMOVENDO MOBILIDADE E ACESSIBILIDADE NAS FAVELAS Melhorar a mobilidade em favelas e promo- ver acesso a oportunidades urbanas a seus moradores passa não só por intervenções urbanísticas que remodelem as condições do viário como também pela adequação dos sis- temas de transporte às condições existentes nessas comunidades. Experiências no Brasil e em países cidades latino-americanos com sistemas de gôndolas conectando ocupações em regiões de morro a bairros consolidados e infraestruturas de transporte ganharam grande visibilidade nas duas últimas décadas. Especial destaque foi dado ao Metrocable de Medelín (ver Capítulo 15) e ainda às expe- riências de Caracas, La Paz (Mi Teleférico), Manizales, Cali (MÍO Cable), Bogotá (Trans- MiCable) e Greater Mexico City (Mexicable). O Rio de Janeiro também implementou essa solução com o Teleférico do Alemão, que foi inaugurado em 2011; mas o serviço foi suspenso em 2016, quando o governo do estado deixou de pagar os subsídios que mantinham o sistema em operação. No entanto, muitas favelas não estão lo- calizadas em regiões de morros e, mesmo assim, encontram barreiras não naturais que dificultam seu acesso às oportunidades que as cidades oferecem. Algumas ações e medidas podem ser desenvolvidas com o objetivo de enfrentar tal situação. Entre elas destacamos: PROMOVENDO MOBILIDADE E ACESSIBILIDADE NAS FAVELAS É um serviço de transporte de passageiros por teleférico com o objetivo de conectar assentamentos informais localizados nos morros que mar- cam a topografia da cidade ao Metrô. É considerado o primeiro sistema de transporte urbano movido a cabo na América do Sul e o primeiro no mundo promovendo acesso para um bairro pobre, violento e precário. Em funcionamento desde 2004, atualmente o sistema é composto por seis linhas. Um estudo acadêmico encontrou evidências de que a implantação do Metrocable levou à redução da criminalidade nos bairros que passaram a ser conectados à cidade consolidada1. 1 CERDÁ, M. et al. Reducing violence by transforming neighborhoods: a natural expe- riment in Medellín, Colombia. Am. J. Epidemiol. 175 (10): 1045–53, 2022. ▸ Manuais de desenho urbano para territórios informais: cidades podem elaborar manuais de sistemas viários que contemplem regras, padrões e diretrizes para todos os tipos de vias, inclusi- ve aquelas localizadas em favelas. Entender as necessidades específicas dessas áreas e oferecer padrões de soluções pode facilitar imensamente o trabalho de implantação de soluções que melhorem a caminhabilidade e a convivência entre diferentes modos de transporte. A capital paulista já conta com um manual que especifica soluções para vielas e becos. ▸ Plano diretor de mobilidade para favelas: para além da gestão do sistema viário, seria interessante ter um verdadeiro plano de mobilidade urbana para favelas, contendo diretrizes para o viário, mas também para implantação de soluções ciclísticas. Além disso, a gestação desse plano, desde que ele seja construído com a participação da comunidade, pode identificar com muito mais eficiência as rotas prioritárias que conectam as residências às escolas, creches, unidades de saúde e pontos de ônibus mais próximos. Identificadas as rotas prioritárias, devem elas receber a atenção primeira do poder público com intervenções que melhorem ▸ PMSP, Secretaria Municipal de Mobilidade e Transportes. Manual de Desenho Urbano e Obras Viárias de São Paulo, que contempla diretrizes para vielas e becos em contextos de favelas. ! PARA SABER MAIS, VER: https://www.manualurbano.prefeitura.sp.gov.br https://www.manualurbano.prefeitura.sp.gov.br https://www.manualurbano.prefeitura.sp.gov.br https://www.manualurbano.prefeitura.sp.gov.br Capítulo 05 : Dimensão TerritorialGuia de Urbanismo Social 135134 sua caminhabilidade, a segurança, a superação de obstáculos e o aumento da sua atratividade. A chave para o sucesso de um plano dessa natureza é assegurar o engajamento social das comunida- des, envolvendo a população local na formulação e execução das intervenções e melhorias. ▸ Planejar o transporte público com flexibilidade e prioridade de atendimento: o desenho das rotas de transporte público deve priorizar atender os pontos de conexão mais fáceis para as comu- nidades onde os veículos não podem entrar. Entretanto, ao mesmo tempo, a autoridade gerenciadora do sistema de transporte coletivo deve buscar flexibilizar o tamanho dos veículos para lograr acessar o maior número possível de pontos dentro das favelas. A lógica da rentabilidade deve dar lugar ao compromisso de garantir acesso a todas e todos que moram nessas localidades.Além disso, o desenho das rotas deve assegurar o atendimento não apenas radial, partindo das comunidades em direção às centralidades econômicas, como também contemplar a demanda de viagens para equipamentos de saúde, escolas e creches, onde mãe e pais possam deixar seus filhos antes de irem para o trabalho. ▸ Financiamento do transporte público: a lógica do financiamento do transporte público considera o rateio dos custos entre os seus usuários. Apesar de o transporte ser tão essencial quanto a saúde e a educação, que têm os custos suportados por toda a sociedade, são os usuários que financiam tal serviço, salvo poucas cidades brasileiras onde existe subsídio público. É preciso reduzir o valor das tarifas, oferecendo integração e descontos, além de políticas de gratuidade aos que mais precisam, a fim de assegurar o direito ao transporte e o acesso a todas as pessoas, independentemente de renda ou posição social. ▸ Políticas para aumentar a oferta de transporte por aplicativo: através da regulação do transporte por aplicativos a cidade pode incentivar a oferta do serviço de maneira mais igualitária, bene- ficiando os moradores das favelas e comunidades mais carentes. Em São Paulo, por exemplo, a regulação do serviço oferece um desconto às empresas de aplicativo sobre o valor que elas devem à cidade como contrapartida do uso quando a viagem é iniciada fora do centro expandido. Essa medida cria uma racionalidade econô- mica em favor do atendimento das regiões mais pobres da cidade. ▸ Políticas para oferta de bicicletas compartilhadas nas regiões mais carentes: as cidades devem buscar oferecer sistemas de compartilhamento de bicicletas, que democratizam o acesso e viabilizam o uso desses veículos por uma gama muito maior de pessoas do que apenas os seus proprietários. Contudo, nas poucas cidades brasileiras que contam com esse serviço, não há registro de oferta nas regiões mais carentes. Cabe ao poder público exigir das empresas operadoras um balanço equânime na oferta de bicicletas, indo além dos bairros mais ricos ou das centralidades econômicas. Ajuda muito se o mesmo meio de pagamento do transporte público puder ser aceito para liberação das bicicletas e, inclusive, se existirem tarifas integradas com descontos para conjugação das viagens. ▸ Foco na logística sustentável: assegurar que as comunidades tenham acesso a serviços de entregas e que os comércios locais sejam regularmente abastecidos é outra tarefa fundamental para melhorar a inclusão social. Uma possibilidade é o incentivo público à construção de centros logísticos destinados a concentrar a entrega de produtos comprados e que precisam ser entregues em domicílio, nas franjas das comunidades, consolidando em um único local a entrega desses produtos. Incentivar a adoção de veículos leves, preferencialmente não motorizados, ou elétricos, a fim de permitir a entrega eficiente de produtos e o abastecimento do comércio local. Para a maior parte dos moradores de favelas, deslocar-se para o trabalho, para a escola, frequentar serviços de saúde ou se envol- ver em atividades sociais requer caminhadas longas e inseguras, demoradas esperas entre serviços mal conectados, em locais inconvenientes ou viagens caras em veículos desconfortáveis e inseguros. Promover a capacidade dos moradores de circularem dentro e para fora de seus bairros, especialmente utilizando modos ativos, promove a garantia de direitos básicos e o acesso aos benefícios urbanos para uma vida produtiva, digna e saudável. Capítulo 05 : Dimensão TerritorialGuia de Urbanismo Social 137136 5.10_ TÓPICOS EM HABITAÇÃO SOCIAL Segundo estudo da Fundação João Pinheiro, o déficit habitacio- nal no Brasil em 2019 era de 5.876.699 unidades habitacionais. Esse total está distribuído em diferentes componentes: habitação precária, coabitação, ônus excessivo com aluguel e adensamento desmedido de domicílios. O componente de habitação precária demanda 1.482.585 unidades (25,2%) e é subdividido em domi- cílios rústicos (696.849 unidades 11,9%), domicílios improvisados (785.736 unidades 13,4%); coabitação demanda 1.358.374 unidades (23,1%), subdividida em unidades domésticas conviventes (1.261.407 unidades, 21,5%) e domicílios cômodos (96.968 unidades, 1,7%); ônus excessivo com aluguel: 3.035.739 unidades (51,7%). Destaca-se ainda o déficit qualitativo de moradias, em que a pro- visão de nova unidade não precisa ser a solução, que pode partir das melhorias das habitações existentes. A distribuição territorial entre as regiões e diferentes tamanhos de cidades, seu perfil socioeconômico, bem como a dinâmica dos diversos componentes do déficit, indicam a necessidade de políticas diversas que possam afetar intencionalmente cada um dos problemas. O principal referencial legal na política de moradia no país é a Lei 11.124/2005, que estabelece as diretrizes gerais para uma política de habitação de interesse social, além de criar um fundo específico para financiamento da política e mecanismos de governança. Também são relevantes as leis que criaram os programas de aquisições, o Casa Verde Amarela e o Minha Casa Minha Vida, responsáveis pela contratação de mais de cinco milhões de unidades de habitação social e mercado popular. Outro marco legal que vale destaque é a nova Lei de Regularização Fundiária — Reurb (ver Capítulo 9), ainda que alguns de seus instrumentos dependam de regulamen- tação municipal. Há ainda que se mencionar as políticas setoriais que dialogam dire- tamente com a questão da moradia por tratarem da infraestrutura do entorno. É o caso do Marco Regulatório do Saneamento Básico5, da Política de Mobilidade6 e da Política Nacional de Resíduos Sóli- dos7 . Todavia, é necessário lembrar que os elementos essenciais de regulação da política urbana estão contidos nas legislações municipais em função das atribuições constitucionais distribuídas a cada ente federativo. Aqui são apresentadas algumas das principais reavaliações suge- ridas, a serem consideradas no conjunto de propostas oferecidas em habitação, direito à moradia e à cidade. O primeiro passo é a concepção moderna de Direito à Moradia e Direito à Cidade que vá além da infraestrutura primária e da unidade habitacional. Locais infraestruturados contribuem para a redução da necessidade de investimentos futuros, em especial de mobilidade e equipamentos públicos, assim como têm o papel de reduzir a ociosidade na própria infraestrutura. Apesar da existência de várias políticas setoriais, inclusive com bons resultados, não há mecanismos eficientes de articulação entre elas, sobretudo entre as de infraestrutura primária e as políticas urbanas. Essa condição se reflete nas três esferas de governo e nas relações interfederativas, gerando superposição ou mesmo conflito de diretrizes que poderiam ser compartilhadas, mas que, na prática, competem entre si. A concepção do grande conjunto habitacional, distante das centralidades e com limitações para a criação de sua própria centralidade, está definitivamente ultrapassada. É necessário que os programas de regularização e urbanização levem em conta os espaços para usos comerciais e que possam ter condições de indução de negócios capazes de gerar emprego e renda endógenos, preservando os antigos e ampliando as novas oportunidades. 5 Marco Regulatório do Saneamento Básico (2007 e 2020). 6 Política de Mobilidade (2012). 7 Política Nacional de Resíduos Sólidos (2010). https://fjp.mg.gov.br http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2017/lei/l13465.htm Capítulo 05 : Dimensão TerritorialGuia de Urbanismo Social 139138 É necessário acompanhar e exigir a plena utilização dos recursos disponíveis aos municípios através dos instrumentos urbanísticos da política fundiária (ver Capítulo 10). Além disso, implementar ferramentas de avaliação de custos, resultados e impactos das políticas em suas diversas fases per- mite encaminhar decisões com base em evidências empíricas. Essaprodução de dados também deve servir para estabelecer uma métrica capaz de equilibrar o atendimento ao déficit nas áreas metropolitanas, onde os custos de produção, bem como as externalidades negativas resultantes do adensamento periférico, são muito diversos. Há ainda alguns instrumentos e ferramentas possíveis para qualifi- car a política habitacional. Primeiramente, trata-se de estabelecer estímulos e induções à adoção pelos municípios de instrumentos de controle da função social da propriedade e a transferência do direito de construir para fins de moradia. A medida tem importân- cia fundamental, uma vez que coloca pressão negativa sobre o valor da terra infraestruturada, estimulando sua comercialização e a produção de novas unidades habitacionais e empreendimen- tos comerciais em áreas melhor localizadas. O instrumento está previsto no Estatuto da Cidade (ver Capítulo 9), que estabelece a possibilidade de utilização da Transferência do Direito de Cons- truir (TDC) para áreas associadas a programas habitacionais. A concessão de coeficientes adicionais a empreendimentos que contemplem a demanda por habitação social, a possibilidade de pagamento de outorga pela produção de unidades de Habitação de Interesse Social (HIS) no mesmo território, o estímulo ao uso misto e a mescla de classes sociais em um mesmo empreendimento, entre outras medidas, podem assegurar a viabilidade econômica de empreendimentos. Porém, apesar das contribuições apresentadas, em muitos casos o atendimento ao direito à moradia em áreas infraestruturadas e com oferta de empregos só é possível por meio de um arranjo de programa de locação e não de transferência de propriedade. Essa também é uma solução viável de atendimento para a crescente população com idade superior a 60 anos, uma vez que os cálculos atuariais inviabilizariam os financiamentos habitacionais. A locação social é um instrumento relevante no sentido de poder atender cada família nas suas necessidades específicas, que variam ao longo da vida. Adicionalmente, a adoção em escala permitiria maior accountability da relação entre a demanda atendida e a ocu- pação efetiva dos imóveis subsidiados. Esse controle atualmente é difícil, gerando desgaste burocrático e alto custo, sem que seja de fato eficiente. Ademais, considerando diferentes realidades encontradas a partir do déficit, entende-se como adequada a adoção de soluções diversificadas, que demonstraram resultados positivos quando aplicados de forma piloto. Alguns bons exemplos são programas de geração de emprego, renda e fomento ao empreendedorismo, a preservação de atividades econômicas em áreas reurbanizadas e a criação de incentivos ao teletrabalho. Por fim, as soluções também devem contemplar programas de autogestão, que empoderem as comunidades e entidades de maneira mais significativa, como foi o Programa Minha Casa Minha Vida — Entidades e outros arranjos de governança compartilhada. ▸ CHIESA, Mariana. A locação social como opção para reduzir o déficit habitacional. Nexo Jornal, 2021. ▸ Entrevista com José Police Neto: O desafio do déficit habitacional (Insper Notícias/Laboratório Arq.Futuro de Cidades, 2022). ! ! PARA SABER MAIS, VER: PARA SABER MAIS, VER: URBANISMO SOCIAL E ARQUITETURA POPULAR: QUAL PARTICIPAÇÃO? A existência de mais de vinte milhões de moradias precárias no Brasil confirma que a regulação urbanística exclui a população mais pobre, reproduzindo as desigualdades presentes no espaço urbano. Entendemos que é possível contrapor um urbanismo social ao histórico urbanismo corporativo, usual na regulação das cidades brasileiras. https://www.nexojornal.com.br/ensaio/2021/A-loca%C3%A7%C3%A3o-social-como-op%C3%A7%C3%A3o-para-reduzir-o-deficit-habitacional https://www.nexojornal.com.br/ensaio/2021/A-loca%C3%A7%C3%A3o-social-como-op%C3%A7%C3%A3o-para-reduzir-o-deficit-habitacional https://www.nexojornal.com.br/ensaio/2021/A-loca%C3%A7%C3%A3o-social-como-op%C3%A7%C3%A3o-para-reduzir-o-deficit-habitacional https://www.nexojornal.com.br/ensaio/2021/A-loca%C3%A7%C3%A3o-social-como-op%C3%A7%C3%A3o-para-reduzir-o-deficit-habitacional https://www.insper.edu.br/noticias/o-desafio-do-deficit-habitacional Capítulo 05 : Dimensão TerritorialGuia de Urbanismo Social 141140 Segundo pesquisa da Fundação João Pinheiro, o número acima é de domicílios no país que apresentaram ao menos um tipo de inadequação (de infraestrutura, edilícia, fundiária). Quando se trata de déficit habitacional (domicílios que não oferecem as condições mínimas de segurança), a maioria desses lares são de responsabilidade das mulheres. Nesse sentido, o Conselho de Arquitetura e Urbanismo do Brasil (CAU Brasil) e as unidades federativas vêm apoiando cada vez mais a implementação de serviços gratuitos de Assistência Técnica em Habitação de Interesse Social (ATHIS) para construção e reformas de moradias, a serem prestados por profissionais de arquitetura e urbanismo a famílias de baixa renda. Desde 2008, o país tem uma Lei de Assistência Técnica (Lei nº 11.888), que garante esse direito a famílias com renda de até três salários mínimos. Contudo, a legislação ainda é pouco aplicada no território nacional. O CAU Brasil entende a ATHIS como um direito fundamental do cidadão, assim como saúde e educação. Trata-se da qualidade de vida da população, não apenas em sua residência, mas na cidade como um todo. No entanto, a construção de uma política pública específica — e complementar à já anunciada retomada do Programa Minha Casa Minha Vida — é imperiosa. Além disso, a inclusão dos municípios numa perspectiva de desenvolvimento local e a conscientização da população de seu direito a uma moradia adequada em um espaço urbano digno demandam ainda a existência de recursos para se atingir uma escala própria às necessidades sociais, sempre excluídas das pautas do urbanismo corporativo. O CAU Brasil deu o primeiro passo para promover a ATHIS em 2015, com um edital que oferecia R$ 150.000,00 para financiar ações de desenvolvimento e socialização da arquitetura e do urbanismo. O primeiro projeto financiado foi a concepção e execução de 98 uni- dades habitacionais do Loteamento Canhema II, em Diadema (SP). Com o sucesso da experiência, o plenário do CAU Brasil aprovou uma resolução destinando 2% do total das receitas de arrecadação dos 27 Conselhos de Arquitetura e Urbanismo dos Estados e do Distrito Federal (CAU/UF) para o desenvolvimento de projetos de ATHIS. Em 2018, o CAU Brasil e a revista Projeto lançaram uma edição especial dedicada ao tema da habitação social. Ela vinha encartada com a Cartilha ATHIS, produzida em coedição pelo CAU Brasil com o CAU/SC. O documentário Habitação social: Uma questão de saúde pública (2020), com 52 minutos de duração, mostrou como a pandemia da covid-19 agravou a situação de vulnerabilidade das famílias que vivem em assentamentos precários. Na gestão 2021-2023 do CAU Brasil, em meio ao surto do novo coronavírus, foi lançado o Programa Mais Arquitetos, evidenciando também que habitação social é uma questão de saúde pública. Campanhas nas redes sociais buscaram a conscientização da popu- lação de baixa renda sobre seu direito a uma moradia digna através da Lei de ATHIS. Vídeos e podcasts com influenciadores digitais impactaram uma audiência de mais de sessenta milhões de pessoas. No Congresso Nacional, o CAU Brasil conseguiu que senadores e deputados destinassem emendas parlamentares para projetos de ATHIS nos municípios. O entidade lançou ainda no mesmo período dois editais de ATHIS, oferecendo financiamento de até R$ 2 milhões para ações de constru- ção e reformas em habitações de interesse social. O objetivo desses editais de Assistência Técnica é mostrar a importância fundamental desse tipo de intervenção nas cidades brasileiras, convencendo os gestores públicos a promover tais ações em escala necessária para atingir as 25 milhões de famílias que vivem em moradias precárias. Na perspectivade promover o urbanismo social e a arquitetura po- pular, essenciais ao Programa Mais Arquitetos, o Edital Nº 05/2022 do CAU Brasil está investindo mais R$ 1,5 milhão em projetos de ATHIS com foco na prevenção e mitigação de riscos e em ações que visem a recuperação de áreas degradadas por desastres ambientais recentes (últimos cinco anos). Os exemplos a seguir apontam o direcionamento desse instrumento — que, para atingir a escala necessária, requer o apoio do governo federal, https://causp.gov.br https://causp.gov.br Capítulo 05 : Dimensão TerritorialGuia de Urbanismo Social 143142 estados e municípios, além da conscientização da população sobre os seus direitos e os recursos específicos. O projeto Reabilitação urbana e ambiental do bairro Gogó da Ema (Itabuna-BA) apontou que há mais de cinquenta anos aquela localidade sofre com as enchentes. O propósito da iniciativa é enfrentar esse problema histórica a partir de uma proposta de ATHISt estruturada em seis fases, que envolvem desde cursos de extensão universitária — em parceria com o programa de residência da Universidade Federal da Bahia — até a implementação de relatórios e publicações a serem entregues às prefeituras da região. Em São Paulo, o Mutirão para mitigação de risco em Franco da Rocha mostrou que os deslizamentos de terra já destruíram muitas moradias no bairro de São Carlos. Lá, o terreno íngreme, o saneamento precário e o descarte indevido de resíduos de cons- trução potencializam os estragos em períodos de chuva intensa. O projeto prevê, então, a construção de um muro de contenção e um dissipador pluvial na área mais afetada. Na área coberta pelo projeto Casa Eco-Pantaneira (Ladário-MS), localizada no Pantanal Mato-Grossense do Sul, as queimadas cons- tantes afetam a vida da população. A ATHIS realizada justamente na Área de Proteção Ambiental Bahia Negra vai construir habita- ções adequadas para a população ribeirinha, dentro das regras do Plano de Manejo da Unidade de Conservação de Uso Sustentável. Será também promovido um programa de capacitação conjunta, pilotado pela Universidade Federal do Mato Grosso do Sul (UFMS), Secretaria de Patrimônio da União e a ONG Ecoa. A iniciativa Projeto Morar Bem, em Rio Branco do Sul (PR), visa capacitar mulheres para realização de melhorias habitacionais, promovendo a autonomia da população no processo de readequação do espaço de moradia. A ideia é fornecer conhecimento e material para que a população, principalmente donas de casa, possam identificar e reparar problemas em sua habitação e no interior da comunidade. De modo indireto, toda a comunidade será impactada pela proposta, tendo em vista a multiplicação do conhecimento por meio de tecnologias sociais. Em São Carlos (SP), os projetos Reurb-S nas Ocupações “Em busca de um sonho” e “Em busca por moradia”, se veem às voltas com moradores que enfrentam diversas dificuldades de acesso à cidadania: risco de vulnerabilidade socioambiental, condições habi- tacionais precárias e insegurança jurídica sobre a posse das casas. Os pilares da ação de reurbanização consistem na recuperação de áreas degradadas, aplicação de políticas públicas ambientais, capacitação da população e divulgação e conscientização sobre ATHIS, entre outros. Exemplo de urbanismo social pode ser encontrado no projeto Entre o parque e a favela, no bairro da Coréia de Mesquita (Rio de Janeiro). A comunidade foi muito afetada pelas fortes chuvas de abril de 2022, que causaram enchentes e deslizamentos na região. O objetivo do projeto financiado pelo CAU Brasil é conscientizar e envolver a população por meio de dinâmicas baseadas na prática de jogos, exercícios e técnicas teatrais baseadas no Teatro do Oprimido, de Augusto Boal. Um caso particularmente dramático é o abarcado pelo Plano comunitário de gestão de riscos na comunidade caiçara de Ponta Negra (Paraty-RJ): Também em abril de 2022, um deslizamento atingiu várias residências na localidade e vitimou sete pessoas. Desenvolvido pelo Pólis - Instituto de Estudos, Formação e Assessoria em Políticas Sociais, o projeto consiste na criação de um Plano de gestão de riscos. A ideia é estudar e mapear a região, identificando, assim, possíveis riscos de deslizamento de terra, como já ocorreram anteriormente, e realocar as famílias moradoras do território. Já o principal objetivo do projeto Autourb-Reurb Anchieta (São Paulo) é retirar famílias da comunidade Anchieta Grajaú de regiões de risco de deslizamentos e alagamentos e assentá-las em lotes marcados. A proposta é desenvolvida pela Peabiru Trabalhos Co- munitários e Ambientais, que atua desde 2019 na ocupação, visando não só as melhorias habitacionais na comunidade como também o processo de regularização fundiária e urbanística, inserindo mais arquitetos, urbanistas e estudantes nesse campo de atuação. Exemplos similares aos aqui mencionados estão sendo desenvolvidos Capítulo 05 : Dimensão TerritorialGuia de Urbanismo Social 145144 pelos Conselhos de Arquitetura e Urbanismo dos Estados e do Dis- trito Federal, onde de 2% a 10% de cada orçamento estão sendo investidos. Todavia, reiteramos que, para atingir a escala necessária, é fundamental formular uma política pública que envolva a União, estados e municípios e tenha a participação da população, além da destinação de recursos para um fundo por meio do qual o CAU Brasil possa sustentar ações capazes de atingir o país inteiro. 5.11_ TÓPICOS EM SEGURANÇA PÚBLICA 5.11.1_ SEGURANÇA PÚBLICA E TERRITÓRIOS PERIFÉRICOS A discussão sobre o direito à segurança pública, no contexto da elaboração de projetos que trabalham com o conceito de urbanismo social, é primordial. Isso porque na construção de novos paradigmas no campo das políticas públicas, da mobilização social e da efetiva- ção de direitos devemos levar em consideração a necessidade de uma compreensão mais elaborada das representações, vivências e violações que existem nos espaços nos quais as desigualdades sociais se fazem mais presentes. Nessa perspectiva, é preciso reconhecer que a ação do aparato do Estado, no que tange às políticas de segurança pública nos territórios populares, é marcada, historicamente, pela diferença de tratamento e de investimento em relação aos espaços ditos formais. Materializar o direito à segurança pública como um elemento integrado a outras políticas públicas e dentro de um escopo de direito humano para o conjunto dos cidadãos e cidadãs numa cidade está longe de ser efetivado na maioria dos estados brasileiros. Ao contrário disso, o que prevalece é uma lógica nor- teada pela conservação da ordem social vigente, na qual práticas diferenciadas afirmam um modo de funcionamento do Estado que tem pressupostos sustentados em hierarquias sociais distintas e pela reprodução de um processo de privatização da soberania nas favelas e periferias conduzido por grupos que se organizam em variadas frentes de atividades ilícitas e criminosas, em geral. Nesse quadro, o Estado, que deveria garantir a segurança pública de toda cidade, age nos territórios considerados periféricos sem considerar condicionantes e necessidades dos cidadãos. Essa postura naturaliza o uso da violência como eixo axial da estratégia policial para conter os grupos criminosos vinculados ao comércio de drogas no varejo, modalidade de crime transformada em prioridade absoluta de combate pelo Estado no espaço urbano brasileiro. Dessa ▸ CAU-BR. ▸ Levantamento revela que mais de (ou apenas...) 20 cidades brasileiras têm leis ATHIS; ▸ Plataforma colaborativa que visa fomentar o debate sobre a Assistência Técnica de Habitação de Interesse Social (ATHIS). ! PARA SABER MAIS, VER: https://causp.gov.br https://causp.gov.br/mapa-da-arquitetura-social-oferece-panorama-da-athis-no-brasil https://causp.gov.br/mapa-da-arquitetura-social-oferece-panorama-da-athis-no-brasil https://www.athis.org.br https://www.athis.org.br Capítulo 05 : Dimensão TerritorialGuia de UrbanismoSocial 147146 maneira, a superação das formas de soberania diferenciadas na cidade e, em função disso, dos modos distintos de ação das forças de segurança é o caminho necessário para a construção de uma cidade democrática, onde exista apenas um tipo de cidadão. Nessa lógica, constata-se — no que se refere à percepção global dos moradores de favelas e periferias e também de profissionais que nelas atuam — uma visão de que é necessário mudar radical- mente a forma de atuação das forças policiais nessas regiões, já que é consenso o fracasso das atuais políticas/programas para lidar com a questão da segurança pública, na maioria dos estados do país. É evidente, também, um sentimento de impotência que domina os olhares e práticas daqueles agentes sociais, o que contribui, sobremaneira, em alguns contextos, para uma inércia e passividade diante da grave negligência que vem ocorrendo em relação à priorização de políticas públicas por parte dos governos voltadas para as populações que mais são atingidas pela desigualdade social no Brasil. Nesse entendimento, é importante olhar para algumas experiências da sociedade civil, que colocam foco no fundamental papel que as populações diretamente atingidas devem ter na necessária e urgente mudança no campo da segurança pública. O trabalho desenvolvido nessa área a partir de uma organização da sociedade civil, a Redes da Maré, no Rio de Janeiro, é um exemplo, dentre alguns que existem no país, que colocam como foco da sua atuação o fortalecimento das populações — no caso, das dezesseis favelas do Complexo da Maré, onde residem 140 mil pessoas —como prerrogativa para que se modifique o contexto de violações de direitos cometidos por profissionais da segurança pública e também por integrantes de grupos civis envolvidos em atividades ilícitas e criminosas na região. O EXEMPLO DA MARÉ REDES DA MARÉ O bairro Maré, no Rio de Janeiro, é uma expressão concreta não só dos limites das representações tradicionais sobre as favelas como também da necessidade de se construírem novas interpretações sobre complexos territórios, que levem em conta a pluralidade, a riqueza da vida cotidiana e de sua estrutura material. Ao longo da consolidação das dezesseis favelas na região da Maré, foram se formando diferentes movimentos sociais em torno de lutas para a efetivação dos direitos mais básicos da população que ali chegava. As associações de moradores tiveram, e, ainda têm, papel determinante na organização e conquista do conjunto de equipamentos e serviços públicos existentes até o momento. Foi nesse contexto que a Redes da Maré surgiu, sendo alguns de seus fundadores parte do processo histórico de lutas empreendidas nas favelas daquela localidade. Com uma longa tradição de atuação nas dezesseis favelas do complexo, a Redes da Maré tem como missão maior fomentar a criação de processos que contribuam de forma estruturante e concreta, em curto, médio e longo prazo, para a efetivação dos direitos de sua população. Sempre numa perspectiva de reconhecimento e investimento no potencial local, produz conhecimento sobre os modos de vida dos moradores e elabora projetos e ações que con- tribuam para ampliação e consolidação das políticas públicas que devem ser implementadas numa escala que é responsabilidade dos governos. Do ponto de vista da sua organização, a Redes da Maré atua a partir de quatro eixos programáticos, quais sejam: (i) Arte, Cultura, Memórias e Identidades; (ii) Direitos Urbanos Socioambientais e Saúde; (iii) Educação; e (iv) Direito à Segurança Pública e Acesso à Justiça. De modo articulado, essas áreas de trabalho formulam iniciativas, a partir das quais respondem a demandas específicas trazidas pelos moradores da comunidade. A ideia básica é que seja possível construir, de maneira coerente, processos político-pedagógicos que mobilizem os moradores e os envolvam de forma orgânica nas invenções que precisam acontecer para que, de fato, disso resulte mais igualdade no acesso e qualidade das políticas públicas. Tal engajamento também deve alcançar o enfrentamento das violências que estruturam o processo desigual que se configura no racismo, bem como da criminalização em relação aos habitantes da região. Capítulo 05 : Dimensão TerritorialGuia de Urbanismo Social 149148 O Eixo de Direito à Segurança Pública e Acesso à Justiça da Redes da Maré busca fortalecer a concepção justamente sobre segurança pública e justiça a partir de uma lógica de direitos humanos. Para tanto, as ações desenvolvidas se organizam em três grandes áreas: ▸ Produção de conhecimento sobre o contexto de violência armada na Maré: Atua a partir da seguinte metodologia: a) coleta de dados sobre violência e violações de direitos in loco, durante os confrontos armados e até 48 horas depois de seu início; b) articulação de rede de colaboradores locais que reportam e validam evidências sobre as violências ocorridas; c) coleta de dados oficiais; d) levantamento em meios de comunicação de massa e redes sociais; e) produção e manutenção de banco de dados; e f) publicação anual do Boletim Direito à Segurança Pública da Maré. ▸ Atendimento às vítimas de violações de direitos: Prestação de serviço de atendimento sociojurídico gratuito aos moradores, no contexto da violência armada. Acolhimento realizado por assistentes sociais, psicólogas e advogadas, buscando viabilizar e fortalecer o acesso a direitos, sobretudo à justiça. ▸ Mobilização de moradores: Atividades de sensibilização e disseminação de conteúdo acerca de direitos fundamentais. A partir do diálogo cotidiano nas ruas, pretende-se fortalecer estratégias de reivindicação de direitos, especialmente nas áreas onde são perpetradas recorrentes violações. ▸ Redes da Maré. Boletim Direito à Segurança Pública na Maré. ! PARA SABER MAIS, VER: SEGURANÇA E JUSTIÇA 5.11.2_ MEDELLÍN: O URBANISMO SOCIAL AJUDA A REDUZIR A DESIGUALDADE SOCIAL E A COMBATER O NARCOTRÁFICO Medellín já foi a cidade mais violenta do planeta — na década de 1990, dominada pelo narcotráfico de Pablo Escobar, apresentava o índice de 380 assassinatos por 100 mil habitantes, situação de guerra. Atualmente, esse indicador caiu para vinte. O que garan- tiu, a longo prazo, a queda dos índices de violência de Medellín foi um conjunto de políticas públicas pensadas para reduzir as desigualdades sociais e garantir que os moradores dos bairros pobres tivessem acesso aos serviços públicos oferecidos nos bairros de classe média. Por meio dos Projetos Urbanos Integrados (PUIs), Medellín pacificou territórios violentos e reduziu as distâncias físicas, éticas e morais entre a cidade formal (a cidade de todos os direitos) e a cidade informal (a cidade dos esquecidos, a cidade dos invisíveis, a cidade dos direitos negados). O caso mais emblemático de Medellín se deu através do PUI da Comuna 13. Uma grande oferta de equipamentos públicos de altíssima qualidade — escolas públicas, bibliotecas, Casa da Justiça, Unidade de Vida Articulada (UVA), iluminação pública, saneamento, mobilidade, dentre outras intervenções — transformou o território no maior destino de turismo internacional da metrópole colombiana. Algo impensável há vinte anos, quando a própria polícia tinha dificuldade de entrar naquela área. Medellín mostrou para o mundo que o contrário de insegurança não é polícia, é convivência. Quanto mais gente nos espaços públi- cos, mais seguros esses espaços serão. A metrópole colombiana, literalmente, deu dignidade para a população que mora nas áreas mais vulneráveis da cidade. Para as autoridades públicas de Medellín, “a vida é o valor máximo e não há uma só ideia ou propósito que justifique o uso da violência”. Se em Medellín todos não são iguais perante a lei, são, de fato, iguais perante os recursos públicos investidos na cidade. Eis o verdadeiro princípio da equidade. https://www.redesdamare.org.br/media/downloads/arquivos/Boletim-Direito-Seguranca-Publ.pdfGuia de Urbanismo Social 150 Em Medellín, a segurança não é tratada como um problema de esquerda, centro ou direita. É um direito do cidadão à vida, porque a vida é sagrada. Duas palavras são chave na gestão pública: confiança e esperança. Ao estabelecer tais políticas públicas, Medellín abandonou um passado que definitivamente deve ser esquecido. Ela é hoje reco- nhecida internacionalmente por ser a cidade mais inovadora do globo — título obtido em um concurso promovido pelo Wall Street Journal, em parceria com o Citigroup — e a que, também em todo o planeta, mais reduziu a taxa de homicídios. ▸ Urbanismo e segurança pública. Org: Arq.Futuro e Escola da Cidade, Bei, 2019. ! PARA SABER MAIS, VER: https://bei.com.br/livro/urbanismo-e-seguranca-publica/174 Capítulo 06 : Dimensão Sustentabilidade Urbana 153 DIMENSÃO SUSTENTABILIDADE URBANA 6.1_ Introdução 6.2_ Diagnóstico Ambiental 6.3_ Processos de Qualificação Ambiental: ações estratégicas, sistêmicas e locais 6.4_ Resiliência urbana e justiça ambiental em territórios periférico 6.5_ Projeto Campo-Favela: um caso escalar 06_ AUTORES 6.1_ 6.2_ 6.3_ Diagonal; 6.4_ Angélica B. Alvim; Renato Anelli e Andresa L. Marques (FAU-Mackenzie); 6.5_ André L. C. M. Duarte (Insper). INTRODUÇÃO6.1_ A dimensão da sustentabilidade urbana e ambiental traz um olhar para a melhoria da qualidade de vida em todos os espaços da cidade por meio de uma melhor relação entre a ocupação urbana e a natureza, garantindo condições socioambientais satisfatórias à vida nos bairros e comunidades. Toda ocupação e uso do solo gera alterações nas dinâmicas naturais, modificando a intensidade dos processos que compõem a ambi- ência do território. O crescimento das aglomerações urbanas e os elevados padrões de consumo geram graves impactos ambientais, especialmente nas grandes cidades. A implantação de infraestru- tura urbana básica e social frequentemente não acompanha esse processo, excluindo de parcelas da população o direito à cidade e a condições ambientais adequadas à saúde e à sua reprodução social. Esses déficits, resultado de assimetrias de poder no planejamento e na distribuição dos recursos da cidade, historicamente vêm sendo confrontados pelas reivindicações por melhores condições de habi- tabilidade (habitação, saneamento, mobilidade, segurança urbana), de saúde, educação, cultura e espaços de lazer. Nas áreas em que a situação de vulnerabilidade social é elevada, as questões ambientais são percebidas no bojo das reivindicações pelos direitos à moradia e infraestrutura urbana e social básica. Assim, diferentemente das demandas daqueles que moram nos bairros bem servidos de infraestrutura, o "ambientalismo dos pobres" emerge geralmente dentro desse quadro de luta contra conflitos distributivos1 de maneira pragmática, e menos por uma compreensão de sustentabilidade ambiental conforme impulsionada pelos organismos globais. Nessa perspectiva é que cabe salientar a grande variedade de acepções que o termo sustentabilidade alcança na atualidade, 1 Ver ALIER, Joan Martinez. O ecologismo dos pobres: conflitos ambientais e lingua- gens de valoração. São Paulo: Contexto, 2009 retânguloretângulo retânguloretângulo retânguloretângulo retânguloretângulo retânguloretângulo retânguloretângulo retânguloretângulo Capítulo 06 : Dimensão Sustentabilidade UrbanaGuia de Urbanismo Social 155154 caminhando em meio às contradições entre os padrões de consumo e capacidade de suporte do planeta e de seus territórios, da distri- buição desigual da poluição e das amenidades verdes nas cidades, da desigual oferta de infraestrutura urbana e social, dentre outras, denotando que o conceito ainda está fortemente dominado por uma racionalidade mais econômica do que ambiental2. A desigual adequação da infraestrutura e condições de habita- bilidade nos amplos espaços periféricos e/ou degradados das grandes cidades do Sul Global faz com que a questão ambiental seja, muitas vezes, confusamente percebida nas comunidades com elevado grau de vulnerabilidade. É nesse ponto que se destaca a importância da execução de um trabalho de educação ambiental durante todo o processo de urbanismo social, desde o planejamento até as intervenções por melhorias nas áreas vulneráveis. Assim, a dimensão sustentabilidade urbana aqui trabalhada para fins de um Urbanismo Social agrega os elementos que compõem a infraestrutura ambiental de um território urbanizado3 , incluindo o olhar para os aspectos apresentados no Infográfico 01. Dessa forma, este capítulo apresenta as duas principais etapas da abordagem da dimensão sustentabilidade urbana e ambiental no planejamento de intervenções de Urbanismo Social: o diagnóstico ambiental e os processos de qualificação ambiental. 2 LEFF, Enrique. Ecologia, capital e cultura: a territorialização da racionalidade am- biental. Petrópolis: Vozes, 2009. 3 SCHUTZER, J. G. Infraestrutura verde no contexto da infraestrutura ambiental ur- bana e da gestão do meio ambiente. Revista Labverde n. 8, jun. 2014. INFOGRÁFICO 01: DIMENSÃO SUSTENTABILIDADE URBANA: ELEMENTOS E ASPECTOS QUE COMPÕEM A INFRAESTRUTURA AMBIENTAL DE UM TERRITÓRIO URBANIZADO retângulo retângulo ELEMENTOS ASPECTOS SISTEMA DE ESPAÇOS LIVRES — INFRAESTRUTURA VERDE SISTEMA DE ABASTECIMENTO DE ÁGUA SISTEMA DE ESGOTAMENTO SANITÁRIO DRENAGEM DA SUPERFÍCIE SISTEMA DE COLETA E DISPOSIÇÃO DOS RESÍDUOS SÓLIDOS E ORGÂNICOS GESTÃO DE RISCOS URBANOS EDUCAÇÃO AMBIENTAL Sistema de espaços livres e áreas verdes, en- tendidos como uma rede de espaços abertos multifuncionais — ambiental e social — conectados; Vinculados ao uso e consumo do bem natural água, requerendo um olhar para a qualidade, dis- ponibilidade e desperdício (consumo consciente); Utiliza a água como suporte à diluição e transporte dos efluentes; Inclui a drenagem natural (espaços permeáveis, bairros ecológicos, bairros verdes) e a construída (sistema de drenagem convencional e soluções de drenagem sustentável/infraestrutura verde); Faz uso da superfície do solo como agente recep- tor, incluindo os aterros sanitários, a coleta seletiva e soluções alternativas; Os sistemas de controle dos riscos urbanos, que envolvem áreas de risco e áreas contaminadas; Importante instrumento de difusão do cuidado com o meio ambiente, mudança de valores, de padrões de consumo e de engajamento da popu- lação para intervenções ambientais de cuidado com a natureza e a saúde. Capítulo 06 : Dimensão Sustentabilidade UrbanaGuia de Urbanismo Social 157156 DIAGNÓSTICO AMBIENTAL6.2_ O diagnóstico que aqui será abordado se baseia nos pressupostos apresentados ao longo do Capítulo 5 — Dimensão Territorial. Para entender e pensar um processo ambiental integrado às ações de urbanismo social, é elaborado um diagnóstico único, adotando as mesmas estratégias metodológicas em todas as dimensões presentes. Em síntese, a construção do diagnóstico ambiental deve ser conduzida no âmbito da elaboração do diagnóstico geral da dimensão territorial, reconhecendo e articulando as questões am- bientais nos levantamentos técnico-territorial e social-participativo. Portanto, esta seção está estruturada em duas frentes. Na primeira são apresentados os temas e estudos ambientais a serem conduzi- dos e integrados no diagnóstico técnico-territorial. Na segunda são organizadas as principais questões ambientais a serem tratadas junto à população no diagnóstico socioparticipativo. O diagnóstico ambiental, para fins de planejamento territorial em áreas vulneráveis, deve conter informações técnicas de dados secundários e primários sobre os sistemas ambientais locais e regionais, obtidos a partir de visitas de reconhecimento de campo, e, o mais importante, de insumos colhidos junto à população mo- radora. Os territórios vulneráveis, periféricos ou não, apresentam em comum situações de degradação da paisagem de seus bairros. Essa degradação, como se sabe, combina vulnerabilidadesocial e ambiental, em virtude das carências de infraestrutura, em especial de saneamento ambiental (esgoto, drenagem e resíduos) e da ausên- cia de oferta de terrenos urbanizados ou habitação adequada para as faixas da população de mais baixa renda. Assim, tanto em áreas periféricas quanto em bairros degradados centrais, a população em vulnerabilidade ocupa, predominantemente, fundos de vale suscetíveis a enchentes e alagamentos, ou encostas de morros e anfiteatros de nascentes passíveis de ocorrência de deslizamentos. A seguir estão destacadas as principais abordagens ambientais a serem trabalhadas no diagnóstico técnico-territorial. DIAGNÓSTICO AMBIENTAL: TÉCNICO-TERRITORIAL O objetivo da leitura técnica sobre as questões ambientais do território é realizar um levantamento detalhado de informações dos sistemas ambientais da área de intervenção, devendo-se considerar os seguintes temas: ▸ Compartimentos ambientais da paisagem: o relevo como con- dicionante dos processos naturais e urbanos Neste tema é importante observar e caracterizar as condições do relevo, em seus aspectos topográficos, formas de relevo e da ocupação inserida, bem como as condições geotécnicas, chegando à identificação dos compartimentos ambientais existentes (topo, vertentes e fundos de vale)4, em suas particularidades, e conside- rando suas fragilidades e potencialidades em relação ao uso urbano. Muito mais que uma simples caracterização topográfica, é impor- tante reconhecer quais funções, ante as dinâmicas do clima e da água, cada compartimento desempenha, para fins de proposição de ações e intervenções adequadas a cada um deles, visando reduzir impactos no meio ambiente urbano e perda de recursos monetários em investimentos de baixa efetividade. Será importante a identificação, nos fundos de vale, da presença de setores de planície aluvial, com seus ambientes de várzeas alagáveis, e seu estado de preservação, conservação e ocupação. Também é relevante a demarcação dos setores íngremes das vertentes, que geralmente caracterizam anfiteatros de nascentes abrigando en- costas de alta declividade, ambientes extremamente suscetíveis à erosão, que impulsiona os riscos de deslizamentos, gerando impactos negativos na vida das comunidades que ali residem. 4 SCHUTZER, J. G. Cidade e meio ambiente: a apropriação do relevo no desenho am- biental urbano. São Paulo: Edusp, 2012. Capítulo 06 : Dimensão Sustentabilidade UrbanaGuia de Urbanismo Social 159158 ▸ Sistema hídrico e drenagem Associada à investigação dos compartimentos ambientais da paisagem, cabe uma caracterização atenta da situação do local em relação à bacia hidrográfica na qual o bairro se encontra inserido. Para isso, identificar o canal receptor mais próximo que recebe o escoamento das águas pluviais e servidas do bairro, e suas condições de conservação e/ou ocupação urbana, é muito importante. Nas reuniões com a comunidade e encontros de reconhecimento participativo com grupos de interesse (lideran- ças, futuros agentes ambientais, ativistas etc.), é pedagógico identificar o caminho das águas locais, pelos terrenos internos às quadras e ao longo do sistema viário. Ao mesmo tempo, verificar as condições do canal receptor, seja ele perene ou intermitente, aparente à superfície ou canalizado, é relevante para reconhecer as fragilidades que apontam para os riscos de enchentes, nos casos de estrangulamento do canal e depósito de entulho e lixo, e riscos à saúde, nos casos de conta- minação da água pelo recebimento de efluentes. Nessa investigação é importante verificar e quantificar os espaços que permitem a infiltração da água no solo, em especial nos com- partimentos ambientais do relevo em que essa função é desejada, para subsidiar a discussão e o planejamento de ações que visem uma maior porosidade no tecido urbano do bairro como estratégia natural de prevenção de enchentes e reabastecimento do lençol freático. Essa abordagem traz bons subsídios para a implementação de estratégias de infraestrutura verde como os jardins de chuva, biovaletas, grades verdes, poços e lagoas de infiltração5 . ▸ Sistema de áreas verdes e dinâmicas do clima associadas Neste tema cabe identificar dois aspectos: o primeiro é composto pela quantidade e pelas condições dos espaços livres e verdes existentes, 5 CORMIER, Nathanael S.; PELLEGRINO, Paulo R. M. Infraestrutura verde: uma es- tratégia paisagística para a água urbana. In Revista Paisagem e Ambiente: ensaios, nº 25, p. 127-142, Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo. São Paulo: FAU, 2008. como as praças e parques de vizinhança acessíveis à comunidade. O segundo são as condições de ambiência desses espaços públicos de lazer, circulação e vivência (sistema viário e calçadas). Quanto ao primeiro, os parâmetros urbanísticos recomendados mencionam distâncias de quinhentos metros para praças e parques de vizinhança e de mil metros para parques de bairro e demais equipamentos de esportes e lazer. Em relação às condições de ambiência do bairro, cabe mensurar a quantidade de espaços arborizados (conjuntos arbóreos e arborização nas calçadas) e superfícies verdes (jardins arbustivos e gramados) presentes no sistema viário, praças e parques, bem como os estudos sobre ilhas de calor e aquecimento da superfície, que possam trazer subsídios para a percepção do conforto ambiental existente. Com a finalidade de tangibilizar essas condições da ambiência urbana em que a comunidade vive, é possível analisar a fisiologia da paisagem local quanto ao conforto térmico, por meio da relação entre cobertura vegetal (arborização e superfícies verdes) e as dinâmicas do clima. Muitas soluções de infraestrutura verde vêm sendo aplicadas atualmente por várias cidades em escala mundial, como estímulo à transformação desse cenário de desconforto térmico e engajamento das comunidades na regeneração ambiental dos espaços livres. Mutirões para conservação e plantio de arborização nos espaços livres e calçadas, implantação de hortas comunitárias, tetos e paredes verdes, viveiros de mudas, entre outras, são experiências que podem ser mostradas como estímulo à ação. ▸ Saneamento básico Dentre os grandes desafios atuais postos ao urbanismo social, a superação do déficit e das desigualdades no acesso aos serviços de saneamento pode ser incluída como uma questão fundamental colocada para toda a sociedade e, em particular, para os profis- sionais e instituições atuantes no setor. A resposta sobre como é possível planejar e gerir de uma maneira mais adequada a prestação desses serviços ainda não foi plenamente apresentada, ▸ Exemplo de organização social Mulheres do GAU (Zona Leste de São Paulo) — Viveiro Escola União de Vila Nova. ! PARA SABER MAIS, VER: https://agricultoreszonaleste.org.br/viveiro-escola-quebrada-sustentavel https://agricultoreszonaleste.org.br/viveiro-escola-quebrada-sustentavel Capítulo 06 : Dimensão Sustentabilidade UrbanaGuia de Urbanismo Social 161160 e insiste em desafiar a capacidade de reflexão e de formulação de políticas públicas para o setor. É necessário o convencimento de todos da importância de tratá-lo de forma associada às demais dimensões — drenagem e resíduos sólidos — em toda a sua complexidade, o que significa pensar e desenhar adequadamente as soluções tecnológicas e a infraes- trutura, assim como considerar todas as variáveis socioculturais e ambientais envolvidas na formulação dessas soluções, desde a adequação às necessidades, expectativas e valores culturais locais. Os serviços de abastecimento de água e saneamento constituem, juntamente com o manejo de resíduos sólidos e a drenagem das águas pluviais urbanas, o saneamento básico. Esses serviços bási- cos levam à melhoria da qualidade de vida das pessoas, sobretudo na saúde da criança6, com redução da mortalidade infantil, além de melhorias na educação, na expansão do turismo, na valorização dos imóveis, na renda do trabalhador,na despoluição dos rios e preservação dos recursos hídricos, repercutindo, inclusive, na melhoria da autoestima dos habitantes de uma região, produzindo efeitos positivos em diversos setores da sociedade e do país tanto em termos socioambientais quanto econômicos. É importante destacar a conformação espacial de cada localidade, considerando que a concepção desses sistemas deverá levar em conta um ou mais formatos de atendimento. Para isso, é preciso vencer as dificuldades locais, buscando métodos, tecnologias e inovações que se adéquem à realidade local. Os maiores impactos da falta de água, de saneamento, de drenagem e coleta de lixo estão presentes nos extratos da população mais vulnerável, que ocupam os territórios que sobraram da urbanização regular, ora situada às margens de vales, canais ou rios sujeitos a alagamentos, ora em encostas, sujeitas a erosões e deslizamentos, 6 Estudos da Organização das Nações Unidas (ONU) estimam que uma criança morra no mundo a cada 2,5 minutos por causa de água não potável, saneamento e higiene deficientes. Um avanço que ocorreu na metade da década passada foi a Organização das Nações Unidas (ONU) ter reconhecido o Saneamento como um di- reito humano, separado do direito à água potável7 . Contribuiu para esse avanço o que fora estabelecido através dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS), no caso do saneamento o ODS 6 — Água Potável e Saneamento — que estabelece: Assegurar a disponibilidade e gestão sustentável da água e saneamento para todos. aliado às maiores densidades populacionais. São locais com maior risco de transmissão de doenças de veiculação hídrica ou transmitida por vetores, como mosquitos, ratos e baratas. Em relação ao esgotamento sanitário, é muito comum o uso de sistemas de drenagem para o afastamento dos esgotos, mesmo que sejam apenas das águas servidas, os quais trazem consigo uma sensação de “problema resolvido”, que tende a afastar os usuários de uma solução definitiva, quando esta lhes é oferecida, produzindo impactos significativos sobre o meio ambiente e a saúde de todos que ali residem. Essa condição propicia o contato direto da população com esse líquido. Esse cenário demonstra um paradoxo incrível no processo de urbanização das cidades: serviços considerados essenciais para a vida e responsáveis por garantir as condições mínimas de habita- bilidade da população, são precários, ou são os últimos ofertados, implantados depois dos serviços de energia, pavimentação etc. Em termos técnicos, no diagnóstico ambiental os principais aspectos que devem ser considerados quanto ao saneamento básico são apresentados no Infográfico 02. 7 A natureza é reconhecida distintamente, embora tenha mantido os direitos juntos. ▸ Sistema Condominial — alternativa para favelas e áreas de baixa renda.W ! PARA SABER MAIS, VER: SANEAMENTO COMO UM DIREITO HUMANO https://brasil.un.org/pt-br/sdgs https://brasil.un.org/pt-br/sdgs https://allevanteducacao.com.br/wp-content/uploads/Cursos/%20SISTEMAS%20DE%20ESGOTO%20SANIT%C3%81RIO%20M%C3%93DULO%202/07SIST~1.PDF https://allevanteducacao.com.br/wp-content/uploads/Cursos/%20SISTEMAS%20DE%20ESGOTO%20SANIT%C3%81RIO%20M%C3%93DULO%202/07SIST~1.PDF https://allevanteducacao.com.br/wp-content/uploads/Cursos/%20SISTEMAS%20DE%20ESGOTO%20SANIT%C3%81RIO%20M%C3%93DULO%202/07SIST~1.PDF retânguloretângulo retânguloretângulo retânguloretângulo retânguloretângulo Capítulo 06 : Dimensão Sustentabilidade UrbanaGuia de Urbanismo Social 163162 retângulo retângulo TEMAS ASPECTOS ESGOTAMENTO SANITÁRIO RESÍDUOS SÓLIDOS DRENAGEM ▸ Mapeamento da rede de esgotos instalada; ▸ Identificar os setores não servidos pela rede; ▸ Taxa de adesão de domicílios ao sistema junto à operadora; ▸ Organizar informações sobre os sistemas alternativos, descentralizados e ecológicos de coleta e tratamento passíveis de incorporação nas condições urbanas e naturais do bairro: como o sistema condominial, wetlands (zona de raízes), biodigestores, entre outros. ▸ Sistema de coleta e disposição dos resíduos sólidos e orgânicos; ▸ Forma de atendimento no bairro; ▸ Pontos de descarte irregular; ▸ Cooperativas atuantes na região; ▸ Existência de ecopontos, coleta seletiva, pátios de compostagem e composteiras comunitárias, entre outras. ▸ Mapeamento da rede de drenagem existente; ▸ Pontos de concentração do escoamento superficial; ▸ Qualidade das águas superficiais; ▸ Percentual de áreas permeáveis; ▸ Setores de relevo plano e/ou suave ondulado nos compartimentos de topo compatíveis para o incentivo à infiltração das águas pluviais; ▸ Condições de conservação dos canais de drenagem aparentes; ▸ Organizar informações sobre medidas não estruturais de drenagem sustentável ligadas às soluções de infraestrutura verde, como: biovaletas, grade verde, jardins de chuva, poços de infiltração, lagoa pluvial, alagado construído, cisternas e pequenos reservatórios de detenção integrados aos parques lineares, dentre outras; ABASTECIMENTO DE ÁGUA ▸ Áreas ou domicílios não atendidos pela rede regular; ▸ Intermitências no sistema; ▸ Ligações clandestinas; ▸ Perda de água; ▸ Sistema de tarifação do local; ▸ Existência de cisternas, poços, entre outros. INFOGRÁFICO 02: DIAGNÓSTICO AMBIENTAL: ASPECTOS TÉCNICOS DO SANEAMENTO BÁSICO ▸ Áreas de risco e gestão de risco A contínua ressignificação das definições de risco, realocou-o nas ciências sociais, resgatando os aspectos social e econômico e o definindo como “a probabilidade de danos e perdas futuras asso- ciadas à ocorrência de um evento físico danoso”8, dando ênfase aos prováveis impactos e perdas sobre as pessoas e comunidades, como os moradores de setores de risco de deslizamento ou inundação. A presença da população, comunidades e infraestruturas expostas a possíveis impactos causados por perigos associados a processos físicos, como deslizamentos e inundações, são fatores indispen- sáveis para que o desastre aconteça. Entretanto, além desses elementos, a vulnerabilidade é a variável que exerce influência direta para determinar o grau de risco. A mudança de abordagem mostrou que os riscos resultam das fragilidades e vulnerabilidades da sociedade, de comunidades, pessoas, bens e infraestrutura a diferentes processos físicos e sujeitos a seus impactos. Logo, ele pode ser entendido como a probabilidade de ocorrência futura de um acidente, um desastre ou qualquer outro evento físico que resulte em danos e perdas sociais, econômicas e até de vidas humanas. Assim, considera-se que para o seu enfrentamento, ou gestão, as ações devem integrar, necessariamente, três aspectos fundamentais: (a) conhecimento sobre o tema dos riscos e suas componentes; (b) intervenções e ações para a redução dos riscos socioambientais; e (c) planejamento e organização para o manejo de desastres. O conhecimento sobre o território é indispensável para a efetiva gestão de riscos socioambientais e ponto de partida para o diagnóstico, que deve considerar tanto fatores que contribuem para a construção do perigo no meio físico quanto para aspectos da exposição e fragilidades (vulnerabilidade física e social) e das capacidades de enfrentamento. Para tanto é necessário identificar, mapear e avaliar os perigos e as vulnerabilidades. Assim sendo, deve-se estar atento para caracte- rísticas e dados relacionados ao (i) Meio físico; (ii) Demográfico, (iii) 8 NARVÁEZ, L.; LAVELL, A,; ORTEGA, G. P. La gestión del riesgo de desastres: un enfoque basado en procesos. San Isidro: Secretaría General de la Comunidad An- dina, 2009. retânguloretângulo retânguloretângulo retânguloretângulo retânguloretângulo retânguloretângulo retângulo retângulo Capítulo 06 : Dimensão Sustentabilidade UrbanaGuia de Urbanismo Social 165164 Socioeconômico; (iv) Urbanístico; (v) Ambiental. Logo, as cartografias geotécnicas (carta de suscetibilidade a movimento de massa e inun- dações a carta de aptidão à urbanização)são instrumentos, quando disponíveis, indispensáveis para o ordenamento e planejamento territorial, respectivamente, e podem ser utilizadas no processo de diagnóstico para entender as potencialidades e limitações dos terrenos nas áreas de intervenção. Dados do censo demográfico, informações provenientes das secretarias de assistência social, de saúde, habitação, defesa civil, entre outras, são essenciais para a caracterização social, econômica e demográfica das populações e comunidades nas áreas de intervenção. Dessa forma, para o diagnóstico de riscos elencamos os principais pontos a serem considerados na vistoria em campo: retângulo retângulo CAMADAS SUBCATEGORIAS ANALÍTICAS ENCOSTAS NAS MARGENS DE CURSO D’ÁGUA ▸ Taludes: de corte, aterro ou naturais, altura e se o solo está compactado ou não; ▸ Distância entre moradia e encosta; ▸ Declividade; ▸ Estrutura do solo; ▸ Presença de blocos rochosos e matacões, paredões rochosos; ▸ Se a ocupação é em cabeceira de drenagem; ▸ Se há trincas nas moradias; ▸ Árvores, muros ou postes inclinados ou muros embarrigados; ▸ Degraus de abatimento, cicatrizes de escorregamentos anteriores, outras rupturas ou feições erosivas. ▸ Tipo de canal e se ele é natural, sinuoso ou retificado; ▸ Distância da moradia à margem; ▸ Altura do talude marginal; ▸ Altura de cheias no curso d’água. INFOGRÁFICO 03: DIAGNÓSTICO DE RISCOS: PRINCIPAIS PONTOS A CONSIDERAR NA VISTORIA EM CAMPO DRENAGEM E ESGOTAMENTO INFRAESTRUTURA URBANA VEGETAÇÃO VULNERABILIDADES ▸ Concentração de águas superficiais; ▸ Lançamento de água servida em superfície; ▸ Presença de fossas ou lançamento de esgoto. ▸ Sarjetas e redes de drenagem pluvial; ▸ Rede de abastecimento de água; ▸ Rede de coleta de esgoto; ▸ Coleta de resíduos sólidos regular ou caçamba; ▸ Energia elétrica e sua origem; ▸ Intervenções estruturais anteriores para controle de riscos. ▸ Presença de árvores, vegetação rasteira ou área desmatada; ▸ Áreas de cultivo. ▸ Moradores idosos, portadores de ncessidades especiais, dependentes químicos ou alcoólicos; ▸ Evidências de fragilidade construtiva, de instabilidade estrutural ou de degradação significativa da edificação; ▸ Acúmulo de lixo significativo no entorno da moradia; ▸ Evidência clara de perigo ou impacto ou dano à moradia por ocorrência pretérita, sem que haja providência observável de reparo ou mitigação por parte do morador; ▸ Desorganização espacial e/ou adensamento excessivo das edificações na área vistoriada, afetando fluxos de drenagem superficial; ▸ Lançamento desorganizado de águas servidas sobre taludes (NOGUEIRA et al., 2018). O diagnóstico de riscos deve ser feito, obrigatoriamente, em campo. Isso não significa que sistemas de informação geográfica e outras ferramentas remotas não devem ser utilizados para dar suporte ao trabalho. Também é importante considerar aspectos funcio- nais — como o viário local, principais vias de acesso, localização de equipamentos públicos —, aspectos de conforto ambiental — como o material construtivo, densidade construtiva e conformação espacial das edificações —, e aspectos legislativos — como lei de uso e ocupação do solo, zoneamento, plano diretor, ZEIS. Capítulo 06 : Dimensão Sustentabilidade UrbanaGuia de Urbanismo Social 167166 AMBIENTE CONSTRUÍDO E HABITABILIDADE A forma e a configuração dos assentamentos são fatores relevantes para as condições ambientais. Aqui nos referimos não somente à relação com elementos naturais, como (cursos d’água e relevo, por exemplo), mas também a própria configuração física dos assen- tamentos, o que denominamos ambiente construído, interfere nas referidas condições ambientais. Para além da relação com elementos naturais e da definição de sistema de vias que permita a circulação e a implementação de infraestrutura, fatores como definição de espaços livres, arborização e permeabilidade do solo, parcelamento e controle da densidade construtiva das quadras, bem como observância a afastamentos e recuos das construções, permitem obter favoráveis condições de habitabilidade. Tais fatores tomam maior emergência a partir do contexto da pandemia de covid-19, que demonstrou a importância da busca por condições favoráveis de moradia nos assentamentos que permitam observar variáveis de salubridade e habitabilidade, adensamento, bem como a segurança física dos espaços construídos e domicílios. Dados da maior incidência de doenças respiratórias em assentamen- tos vulneráveis demonstram a correlação entre moradia e saúde. Nesse contexto, é importante observar que quando tratamos de moradia digna, adequada e saudável devemos considerar elementos em duas dimensões, como mostra o Infográfico 04. É importante observar que, ao contrário do que preza o senso co- mum, os assentamentos vulneráveis não são territórios informais desprovidos de regras. A dinâmica de produção desses assenta- mentos é, por vezes, negociada e pactuada entre os moradores. Nesse contexto, podemos elencar alguns princípios que orientam o processo de Produção do Espaço em assentamentos vulneráveis: ▸ A destinação prioritária da terra para a moradia; ▸ A edificação como a célula — em geral e diferentemente dos assentamentos planificados que têm o lote como unidade do retânguloretângulo retânguloretângulo retângulo retângulo DIMENSÕES ELEMENTOS INSERÇÃO E CONFIGURAÇÃO DO ASSENTAMENTO ASPECTOS DA UNIDADE DOMICILIAR Para além de condição de vizinhança (disponibilidade de serviços e oportunidades no entorno) e riscos geotécnicos (enchentes e deslizamentos etc.), relaciona-se, de forma mais objetiva, com: ▸ Forma e parcelamento do assentamento (incluindo tamanho dos lotes); ▸ Densidade construtiva, recuos e afastamentos entre edificações (de modo a permitir a disposição de janelas e poços de iluminação/ventilação); ▸ Definição de espaços livres. Relacionada às condições de cada moradia, em síntese: ▸ Habitabilidade e salubridade (iluminação e ventilação, eliminação de situações de umidade etc.); ▸ Densidade da moradia (relacionada ao número de pessoas por domicílio); ▸ Segurança estrutural (patologias construtivas, eliminação de riscos de acidentes e injúrias). INFOGRÁFICO 04: DIMENSÕES PARA O ESTUDO DAS CONDIÇÕES DE HABITABILIDADE parcelamento, a edificação é que configura o Ambiente Construído dos assentamentos vulneráveis; ▸ O direito de construir — a liberdade para construir, que se sobre- põe à necessidade do vizinho ter acesso a iluminação e ventilação; ▸ O direito de passagem — a construção de uma edificação não poderá impedir a passagem e o acesso de vizinhos aos seus res- pectivos domicílios. Observar essa dinâmica de produção dos assentamentos vulne- ráveis pode ser um subsídio para a definição de estratégias para negociação e pactuação de intervenções e projetos. Capítulo 06 : Dimensão Sustentabilidade UrbanaGuia de Urbanismo Social 169168 DIAGNÓSTICO AMBIENTAL: SOCIAL-PARTICIPATIVO Neste trabalho reforçamos a pertinência da perspectiva comunitária somada às análises técnicas para entender os problemas presentes no território, conforme discutido no Capítulo 5. Aliar a leitura da realidade aos processos sociais participativos pode sensibilizar, promover a mobilização social e compartilhar decisões sobre as ações, que serão inclusive desenvolvidas na prevenção de riscos. O convite à participação social, que considera a centralidade dos grupos sociais no diagnóstico e nas ações, gera responsabilização e conscientização social, que promove as comunidades a prota- gonistas dos processos. Os princípios metodológicos desse diagnóstico são elencados a seguir: ▸ Identificação dos atores (stakeholders) e fortalecimento da organização comunitária O estímulo à participação de lideranças comunitárias, agentes de saúde ambiental, agentes comunitários de saúde, de saneamento, auxilia no mapeamento e compartilhamento das visõessobre os principais problemas ambientais enfrentados. Nesse sentido, caberá mapear associações de moradores, grupos sociais ambientais, ONGs que atuam com defesa do meio ambiente, que devem ser articuladas e convidadas a dialogar com os estudos e promover a difusão do trabalho. PROCESSOS PARTICIPATIVOS DE ESCUTA Os processos participativos de escuta podem assumir diferentes formatos de acordo com o contexto da ação. Nesse sentido, a coleta de informações pode utilizar ferramentas quantitativas ou qualitativas. São consideradas ferramentas como oficinas, grupos focais e rodas de conversa para entender como a população reconhece as questões do bairro e as situações relacionadas aos diversos riscos, como enchentes, deslizamentos, solapamento das construções e erosão. Tais processos levam em consideração a percepção das pessoas e suas falas. Eles ganham contornos objetivos ao serem desenhados e registrados a partir de conversas facilitadas pela equipe de trabalho social. Assim, mapeiam-se as condições gerais dos serviços de limpeza urbana e coleta (seletiva) de lixo e de manutenção dos córregos, situação das áreas verdes, dados do sistema viário e das calçadas, abastecimento de água, coleta e tratamento de esgoto, mobilidade e acessibilidade, dentre outros. A sistematização dessa leitura pode ocorrer nos chamados mapas falados, mapeamentos participativos variados, totens, painéis, entre outros, apontando eventuais fragilidades, potencialidades e pontos de atenção com a localização das questões indicadas. Capítulo 06 : Dimensão Sustentabilidade UrbanaGuia de Urbanismo Social 171170 PROCESSOS DE QUALIFICAÇÃO AMBIENTAL: AÇÕES ESTRATÉGICAS, SISTÊMICAS E LOCAIS 6.3_ Na dimensão Sustentabilidade Urbana, os processos de qualificação do território apresentam uma natureza transversal aos sistemas de infraestrutura urbana e social. Suas ações estratégicas, sistêmicas e locais integram os objetivos dos principais instru- mentos do Urbanismo Social, que são os Planos Urbanos Integrados e os Programas Sociais Integrados. Pautado pelas informa- ções trazidas no Diagnóstico Ambiental, esta etapa visa à identificação do conjunto de ações estruturantes, locais e pontuais (urgentes) a serem implementadas para a melhoria das condições ambientais no bairro, para fins de dimensionamento e priorização. Essas ações buscam encontrar respostas aos principais problemas presentes nos ter- ritórios de alta vulnerabilidade social identi- ficados nas leituras técnica e participativa. A partir dos temas estudados no diagnóstico realiza-se uma primeira integração temática relacionando as questões ambientais às seguintes frentes de ação: ▸ Sistema de áreas verdes e espaços pú- blicos: ações voltadas à expansão, recu- peração e qualificação dos espaços livres das áreas de intervenção (praças, parques, unidades de conservação etc.), visando à integração no sistema de áreas verdes da região e do município, na perspectiva da conectividade e multifuncionalidade desses espaços, incluindo a conservação ambiental associada ao lazer, cultura, saúde e desen- volvimento local (agricultura urbana, hortas urbanas, turismo de base comunitária, vivei- ros de produção e educativos etc.). ▸ Sistema de saneamento ambiental: ações vinculadas à qualificação da infraestrutura básica de abastecimento de água, esgoto, drenagem e resíduos sólidos, incluindo a recuperação ambiental de corpos d´água e incorporação de sistemas ecológicos e sustentáveis de esgotamento sanitário, drenagem urbana e resíduos. ▸ Sistema de mobilidade: ações voltadas à qualificação ambiental do sistema viário (ruas, calçadas, vielas, ciclovias, travessias) visando melhorar as condições de conforto térmico e da paisagem, incorporando ele- mentos de infraestrutura verde e soluções baseadas na natureza. ▸ Ambiente construído e habitabilidade: ações vinculadas à melhoria das condições entre ambiente, moradia e saúde para a qualificação das condições gerais do assentamento. ▸ Áreas de risco e gestão de risco: ações voltadas à gestão dos riscos urbanos por meio da implementação de medidas estru- turantes e não estruturantes, para controle, redução e erradicação dos riscos, tendo em vista os processos do seu reconhecimento e subsequente integração a projeto de maior amplitude. ▸ Sustentabilidade das intervenções e do território: ações voltadas à educação am- biental, articulação de parcerias e promoção de intervenções ambientais no âmbito de ativismos verdes, economia circular, desen- volvimento local/geração de renda, consumo consciente, entre outras. SISTEMA DE ÁREAS VERDES Nas leituras técnica e comunitária realizadas na fase do diagnóstico ambiental pode-se identificar e avaliar as potencialidades e fragilidades da área em relação à oferta de espaços verdes de lazer, conjuntos arbóreos, arborização viária e a qualidade existente ou desejada desses ativos. Assim, entre as ações prioritárias estão aque- las voltadas à expansão do sistema de espa- ços livres e verdes na área de intervenção, o que pode incluir a criação de novas praças, parque de vizinhança ou de bairro, ou ainda unidades de conservação (fundos de vale com várzeas ou encostas íngremes florestadas). Na existência desses ativos, cabe a avaliação da necessidade de sua recuperação e/ou quali- ficação (com a inclusão de novos elementos ou equipamentos). A perspectiva de conec- tividade ecológica e social desses espaços com os do entorno é um desafio que deve ser explorado, bem como a multifuncionalidade que devem abrigar em face de seu conteúdo urbano, visando articular a conservação da natureza e dos processos naturais com usos sociais associados ao lazer, à cultura, à saúde, e quando possível ao próprio desenvolvimento comunitário e econômico. Outra ação estratégica para a qualificação da ambiência urbana da área de intervenção é a ampliação da arborização urbana nos espaços públicos existentes, especialmente nas praças, calçadas e canteiros centrais de avenidas, e nos equipamentos sociais públicos do entorno e demais espaços li- vres que incorporem nascentes, fundos de vale e encostas. Para isso, a articulação do poder público com a comunidade local é de extrema relevância. De cunho sistêmico são as ações relativas à implementação das soluções baseadas na natureza impulsionadas pelo conceito de infraestrutura verde, que visam tirar partido dos processos naturais, muitas vezes mimetizando-os. Entre as soluções que podem ser desenvolvidas pelo poder público em parceria com a comunidade local e/ou com coletivos e outras formas de ativismos verdes estão: ▸ Propor e implementar soluções de Drena- gem Urbana Sustentável, como biovaletas, grades verdes e jardins de chuva, ligadas às calçadas e canteiros centrais de avenidas, e lagoas pluviais nas praças e parques; ▸ Propor e implementar soluções de Conecti- vidade Ecológica, por meio de caminhos ver- des, arborização urbana e parques lineares; ▸ Em alguns casos, propor e implantar solu- ções de estabilização de taludes, encostas e margens de córregos — naturalizadas, associadas às ações de gestão de riscos urbanos; Capítulo 06 : Dimensão Sustentabilidade UrbanaGuia de Urbanismo Social 173172 ▸ Propor e viabilizar soluções de Regu- lação e Amenização Climática por meio da implantação de paredes (muros) verdes, tetos verdes e arborização dos espaços públicos e privados. As ações ambientais que desenvolvem o potencial humano, social e produtivo das comunidades não podem ser ignoradas. Den- tre elas destaca-se a agricultura urbana, com suas variantes na implementação de hortas comunitárias, ações de difusão de alimentação saudável, venda de produtos, operacionalização de viveiros de mudas, educação ambiental, entre outras. Nessa ação, a articulação do poder público a cole- tivos, grupos comunitários, associações etc. é de extrema relevância para impulsionar o potencial local por meio de fomentoe formas diversas de apoio, dando funcionalidade a muitos espaços livres vazios e ociosos, como o exemplo das faixas de domínio das infraes- truturas de abastecimento de água e energia, de equipamentos públicos, praças etc. SISTEMA DE SANEAMENTO BÁSICO A cultura generalizada de que mediante o distanciamento dos esgotos das residên- cias o problema estaria resolvido tem sido danosa para as cidades, especialmente devido ao processo de contaminação dos recursos hídricos. Esse cenário se inten- sifica nos segmentos da população de renda baixa ou muito baixa, que dispõem de instalações intradomiciliares precárias ou até mesmo inexistentes, sem possuir capacidade financeira para adequar-se às necessidades de melhoria nas instalações. Alinha-se a esse fato a reprodução de uma cultura ainda centrada na individualidade (presente não exclusivamente nestes ter- ritórios), mas que demanda esforços para sua desconstrução e para pôr em marcha processos participativos que possam atenu- ar o impacto desse modo de encarar a vida urbana. Assim, é fundamental considerar a necessidade de mobilização social para reforçar o processo participativo na busca de soluções conjuntas. Diante de toda essa problemática, para que se possa intervir em saneamento básico, integradamente com os demais segmentos do urbanismo, propõe-se que 5 cinco pre- missas sejam consideradas, a saber: ▸ Inter-relação entre os quatro sistemas que compõem o saneamento básico Os quatro sistemas que compõem o sanea- mento básico funcionam dentro do espaço urbano de forma muito próxima. A operação de cada um deles, quando não é realizada de forma eficiente, tende a produzir impactos negativos sobre os demais sistemas. Con- siderando a adoção do sistema separador absoluto, em que as águas residuais pro- venientes do uso doméstico ou industrial são conduzidas por um sistema de coleta e as de chuva por outro sistema, este sem a necessidade de sofrer tratamento para seu lançamento nos corpos hídricos, é fundamental que as redes de saneamento sejam implantadas de forma a garantir a melhor estanqueidade possível, absorvendo apenas uma pequena parcela de água por infiltração. Por seu turno, o sistema de dre- nagem das águas pluviais também não deve receber qualquer contribuição da produção dos esgotos domésticos ou industriais. O lançamento indevido da água da chuva na rede coletora de esgotos, além de diluir o esgoto, pode ocasionar extravasamentos e até mesmo seu retorno às residências. Já as ligações de esgoto, realizadas clandestina- mente nas redes de drenagem das águas pluviais, provocam danos graves ao meio ambiente e afetam a saúde da população. Em períodos de chuva de maior intensidade ou de alagamentos, essas águas extravasam do sistema coletor de drenagem para as vias, gerando o contato da população e po- luindo o espaço citadino. Além disso, esses espaços abertos nos dispositivos do sistema de drenagem propiciam a proliferação de vetores de transmissão de doenças, além de causarem mau odor no território próximo a esses dispositivos. ▸ Gradualismo das intervenções Diante desse desafio, como avançar para a implantação de um sistema de esgota- mento sanitário único, sendo esse sistema um dos mais caros? O esgoto deve ser conduzido a favor da gra- vidade, ou seja, sempre se encaminhando para os pontos mais baixos da topografia local. Em áreas planas isso resulta em re- des profundas, cuja implantação demanda grandes escavações para sua implantação, e, a depender do tipo de solo (rochoso ou com lençol freático elevado), o uso de explosivos ou de rebaixamento do lençol, esgotamento de vala e escoramento. Em função da dimensão do território que se quer sanear, e da disponibilidade financeira para implantação do sistema, é possível concebê-lo de forma a adotar um gradu- alismo para essa intervenção. No primeiro momento, a questão mais im- portante é afastar os esgotos do contato com a população. Coletar, bombear, trans- portar e tratar em um nível que atenda às exigências ambientais do corpo receptor. Se na partida, ou seja, na concepção, esse território foi avaliado e planejado de for- ma a se constituir em “pequenos espaços territoriais de coleta”, a disponibilidade de recurso pode atender um ou mais espaços e o tratamento, pensado em etapas, pode ser implantado por partes. Esses “pequenos espaços territoriais” são na realidade as microbacias, definidas a partir de divisores naturais (divisor de água, canais, rios, áreas de proteção ambiental) ou divisores físicos (linha férrea, grandes avenidas, equipamen- tos como aeroporto etc.), descentralizadas, sempre a depender da disponibilidade dos recursos financeiros. ▸ Soluções alternativas de atendimento Examinada a questão do abastecimento de água e coleta de esgotos, podem ser identificados dois pontos circunstanciais que precisam ser destacados na busca da solução do problema: o primeiro diz respeito à necessidade de concentrar esforços na redução de perdas do sistema de abasteci- mento de água, o segundo na necessidade de reduzir custo, simplificar a implantação Capítulo 06 : Dimensão Sustentabilidade UrbanaGuia de Urbanismo Social 175174 e operação dos sistemas de esgotamento sanitário, adequando-o perfeitamente a todos os tipos de urbanização, com menos transtorno e mais diálogo entre os envol- vidos. A conjunção adequada da solução desses dois pontos não só implica a distri- buição dos recursos financeiros entre os dois sistemas de forma equilibrada, como atende à necessidade urgente de buscar medidas eficazes que promovam a sua universalização. Conhecido mundialmente, o Sistema Condo- minial, conforme já mencionado na seção an- terior, é uma alternativa de atendimento que alia uma solução técnica a um componente de participação da sociedade cujo foco é a busca mais adequada de atendimento a cada imóvel, adaptando-se a todo tipo de ocupa- ção. Esses dois componentes fortemente integrados é que proporcionam o sucesso da aplicação do Modelo Condominial. A ação integrada física e social parte de uma estratégia de trabalho social muito bem planejada para o empoderamento da população beneficiária. Essa tecnologia propicia uma nova forma de exercer a Engenharia Sanitária. A prática precisa ser integrada para: (i) atuar com as equipes integradas: projeto, social, obra e operação; (ii) conhecer e se adequar à realidade, nos seus aspectos urbanísticos, socioeconômicos e ambientais; (iii) cons- truir pactos e dialogar com as instituições públicas, ONGs, formadores de opinião, lide- ranças locais e a população; (iv) conquistar a adesão consciente e a fidelização dos usuários ao sistema e, por conseguinte, a tão deseja universalização. Outra alternativa são as chamadas Wetlands ou Zonas de Raízes, cujas experiências já acumula três décadas de aperfeiçoamento dessa forma ecológica de tratamento de águas residuais em todo o mundo. Esse tipo de tratamento pode servir para esgoto, águas residuais industriais e agrícolas, lixi- viação de aterro e escoamento de águas plu- viais. Nessa solução a poluição é removida através de processos naturais comuns, mas realizados em condições mais controladas. As Zonas de Raízes podem ser projetadas como ecossistemas de múltiplos propósitos, fornecendo outros serviços ecossistêmicos tais como controle de inundações, sequestro de carbono ou hábitat da vida selvagem. Podem estar vinculadas a parques lineares e áreas de conservação nas áreas de pre- servação permanente de córregos em áreas urbanas, pulverizadas no tecido urbano da cidade, como solução de atendimento na microescala de bairros. ▸ Setorização da Distribuição da Água Potável no Centro Urbano — contribuindo para o controle do sistema e a redução das perdas de água Uma das questões graves que afetam a gestão do setor de saneamento básico é a situação dramática das perdas de água nos sistemas de distribuição existentes nas ci- dades. Trata-se de umdesafio para o avanço do saneamento básico e a escassez hídrica. Diversas medidas podem e devem ser implementadas para o enfrentamento des- sa questão, porém o controle operacional da distribuição de água pode ser a partida para esse enfrentamento. Em função da conformação urbanística e topografia local, a concepção de uma rede de distribuição da água para uma localidade poderá contar com mais de um ponto de alimentação, mesmo tendo como ponto de partida para o abaste- cimento um reservatório. Se a região for muito acidentada, deve-se estabelecer faixas de atendimento para que se garanta pressões dinâmicas mínimas para cada habitação e pressões estáticas máxi- mas, evitando, dessa forma, pressão elevada na rede, que acaba propiciando perdas físicas provenientes de vazamentos, rupturas da tubulação etc. Dessa forma criam-se Setores de Distribuição (ou Ilhas Hidráulicas) que favorecem o controle de perdas de água no sistema, uma vez que essa tarefa não é realizada em toda área onde se concentra o número total de conexões domiciliares. Cada um dos setores contará apenas com um ponto de alimentação, controlado por um medidor de vazão e uma válvula de in- terrupção (ou registro de parada). Se a região for plana, pode-se definir um traçado mais econômico para a linha tronco principal, a qual não deverá ter distribuição em marcha, buscando ao máximo sua otimi- zação, e a partir desse traçado criar setores de distribuição, os quais contarão com um ponto de distribuição alimentando a rede secundária de cada setor e serão controlados por um medidor e um registro. ▸ O Processo Participativo e sua importân- cia na implantação e manutenção/operação do Saneamento Básico A participação dos agentes institucionais, nas suas várias esferas, que têm uma rela- ção direta ou próxima na implantação dos sistemas, da sociedade civil organizada e da população usuária, é um pré-requisito para que um sistema de saneamento básico seja implantado em qualquer território, urbano ou rural. Para a população em geral, o direito à in- formação sobre o serviço, as obras, suas condições de acesso e os transtornos cau- sados durante essas obras, no caso dos três sistemas que contam com redes físicas (drenagem, água e saneamento), é uma questão de cidadania. Uma peculiaridade que demanda atenção no sistema de esgoto é que a matéria-prima do sistema é produzida no domicílio, por- tanto, esse sistema depende do usuário. A população pode não sentir a necessidade do serviço, o que demanda ao interveniente conscientizá-la a seu respeito. Ou pode não ter os requisitos mínimos para o serviço de atendimento (instalações sanitárias míni- mas), informações para o uso correto e/ou disponibilidade (fácil) para o pagamento, sendo necessário que qualquer intervenção considere essas dificuldades. É importante também que a população entenda quais são seus direitos e deveres, a partir das informações fornecidas de forma clara, aprofundada e verdadeira. As Capítulo 06 : Dimensão Sustentabilidade UrbanaGuia de Urbanismo Social 177176 entidades locais, no plano institucional, da sociedade e do sistema produtivo, devem ser envolvidas para que se possa criar uma Rede de Difusão do projeto. Da mesma forma, é importante identificar e trazer para o processo aquelas entidades que podem abrir seus espaços para também constituir uma Rede Operativa, tais como templos religiosos, escolas, mídia, associações co- munitárias, entre outras. O papel da mulher no planejamento, imple- mentação, gestão, utilização e manuten- ção das infraestruturas de abastecimento de água e saneamento; tem se mostrado necessário. De fato, a mulher é a grande protagonista desse setor; ela sempre está à frente de suprir as necessidades básicas de sua família, sendo a água uma neces- sidade vital para a vida. A escola também deve ser um espaço de destaque para promover a importância de ter um serviço adequado de saneamento. Esse processo impacta sobremaneira no funcionamento dos sistemas, nos quais a população usuária ocupa um papel ativo e, portanto, precisa entender o conceito de coparticipação, assumindo o compromisso com a despoluição ambiental e tornando-se Agentes de Transformação. SISTEMA DE MOBILIDADE A relação da dimensão ambiental com os assuntos de mobilidade é de natureza com- plementar e visa dar qualidade ambiental aos passeios, calçadas e ao próprio sistema viário. Essas ações estão voltadas à quali- ficação paisagística e de conforto térmico, mas também visam explorar a multifun- cionalidade desses espaços, abrigando, quando possível e adequado, soluções de infraestrutura verde ligadas à drenagem sustentável. Dentre elas, destacam-se as biovaletas, jardins de chuva e grade verde. Das soluções baseadas na natureza para melhorar as condições microclimáticas dos espaços de mobilidade, a de maior relevân- cia é a arborização, pois é ela que interfere positivamente na redução da emissividade de calor das superfícies urbanas, trazen- do condições climáticas mais amenas aos passeios públicos. Atua também como um importante refrigerador climático ao impul- sionar os processos de evapotranspiração que umidificam o ar. Em áreas tropicais esses serviços ambientais são fundamentais para promover ainda mais o uso público dos espaços abertos. Há mais de três décadas que se acentu- aram os estudos sobre os benefícios da arborização e da vegetação urbana para o microclima das cidades; no entanto, em muitos lugares a arborização permanece como um contínuo desafio em virtude da prevalência de uma visão utilitarista dos espaços públicos do sistema viário, sempre privilegiando o automóvel. Nesse sentido, as principais ações que o urbanismo social deve considerar são: ▸ Articular comunidades e prefeitura local para a implementação de programas de As intervenções e ações para a redução serão, necessariamente, definidas após o processo de conhecimento e reconhecimen- to territorial. O risco, nessa abordagem, é totalmente dependente do processo de uso e ocupação do solo e sua relação com o meio físico, com as dinâmicas socioterritoriais, características urbanísticas e ambientais. Dessa forma, é possível propor soluções viáveis e que se integrem aos processos de qualificação urbano-ambiental, elevando a segurança de populações vulneráveis e expostas aos perigos. Para cada situação identificada é proposta uma tipologia de intervenção para reduzir a situação de risco diagnosticada. As tipo- logias básicas de intervenções e ações são: ▸ Serviço de limpeza e recuperação de en- tulhos e lixos. Recuperação ou limpeza de sistemas de drenagem, esgoto e acessos. Inclui também limpeza de canais de dre- nagem. São serviços manuais ou que se utilizam de maquinário de pequeno porte; ▸ Obras de drenagem superficial, proteção vegetal com gramíneas e desmonte de blo- cos e matacões. Incluem implantação de canaletas, escadas hidráulicas, plantação de cobertura vegetal adequada. Predomínio de serviços simples, manuais ou com auxílio de máquinas de pequeno porte; ▸ Obras de urbanização agregadas a dre- nagem e esgotamento sanitário. Pequenas obras de urbanização como aberturas de acessos, melhoria de passagens e vielas e becos, execução de passarelas, urbanização arborização urbana, promovendo interven- ções de plantio em parceria com moradores e alunos das escolas do entorno; ▸ Promover estudos para a ampliação de calçadas e a incorporação de baias no leito carroçável para possibilitar o plantio de árvores em ao menos um lado da rua; ▸ Promover a implantação de calçadas verdes nas ruas de baixa declividade, in- corporando paisagismo e abrindo espaço para a infiltração das águas pluviais; ▸ Articular as discussões entre poder pú- blico e comunidade para a implementação de medidas de drenagem sustentável nos passeios públicos, como biovaletas, cantei- ros pluviais, jardins de chuva e pavimentos permeáveis; ▸ Identificar necessidades deimplantação de barreiras acústicas vegetadas e articular comunidade e poder público para discutir sua implementação. ÁREAS DE RISCO/GESTÃO DE RISCO O resultado do diagnóstico possibilita a sistematização de referenciais técnicos e gerenciais para a implementação de inter- venções estruturais e ações não estruturais para controle, redução e erradicação dos riscos. As áreas identificadas com situações de riscos são setorizadas, possibilitando executar ações de qualificação ambiental de acordo com os problemas identificados em cada situação, porém sempre integrados a projetos de maior amplitude. Capítulo 06 : Dimensão Sustentabilidade UrbanaGuia de Urbanismo Social 179178 de áreas visando à implantação de rede de drenagem e esgotamento sanitário; ▸ Estruturas de contenção de pequeno por- te. Implantação de estruturas como gabiões e muros de concreto; ▸ Estruturas de contenção de médio e gran- de porte e que envolvem obras de contenção ativas e passivas, como muros de gravidade, cortinas atirantadas, entre outros; ▸ Obras de terraplanagem de médio e gran- de porte com auxílio de maquinário; ▸ Remoções de edificações, que podem ser definitivas ou não. Priorizar, sempre que possível, realocamentos dentro da própria área ocupada e em local seguro. AMBIENTE CONSTRUÍDO E HABITABILIDADE Como mencionado anteriormente9, o Am- biente Construído — casas e demais cons- truções no território — é fator relevante para as condições ambientais dos assentamentos. Tal fator influencia também as condições de habitabilidade, tema que toma maior emer- gência a partir do contexto da pandemia de covid-19, não desconsiderando outras enfer- midades que sistematicamente acometem populações residentes em assentamentos vulneráveis ou precários. Assim, é importante prever alternativas para intervir no Ambiente Construído, bem como para melhorias nas condições de 9 Ver o tópico 6.2_ Diagnóstico Ambiental. habitabilidade dos domicílios, considerando a correlação entre condições ambientais, moradia e saúde. ▸ Requalificação do ambiente construído — que implica, via de regra, a atuação do Poder Público para intervir na configuração do assentamento ou ambiente construído — buscando adequar a forma de parcelamento, a densidade construtiva (garantindo vãos e recuos para iluminação e ventilação) e a pre- visão de espaços livres. Por vezes, esse tipo de intervenção pode implicar a necessidade de remoções ou reparcelamento. Para tanto, é fundamental prever, desde o planejamento, os recursos para garantir o atendimento habi- tacional para eventuais moradias removidas, ou seja, que cada morador tenha garantido o direito à moradia, tendo acesso a um novo domicílio, sempre que possível no mesmo assentamento ou em localidade próxima; ▸ Melhorias habitacionais — que contem- plem a qualificação das moradias, intervindo em problemas relacionados à: habitabilidade e salubridade —iluminação e ventilação, eliminação de situações de umidade etc.; densidade da moradia — relacionada ao nú- mero de pessoas por domicílio, prevendo-se ampliações, quando possível ou viável; e segurança estrutural — de modo a solucio- nar patologias construtivas — eliminação de riscos de acidentes e injúria. É importante também observar alternativas de ações sistêmicas e locais que se relacio- nam à qualificação do Ambiente Construído, por meio de mutirões, manutenção de espa- ços públicos e plantio de hortas, entre outros. SUSTENTABILIDADE DAS INTERVENÇÕES E DO TERRITÓRIO A sustentabilidade das intervenções e das transformações al- cançadas no território demanda construir e manter um trabalho abrangente de mobilização e engajamento da comunidade residente, compreendida como agente protagonista do processo de produção do espaço urbano na escala intraurbana das áreas vulneráveis. Nesse sentido, a Educação Ambiental refletida pela sociedade representa um dos temas transversais mais importantes das polí- ticas, dos programas e dos investimentos nas áreas de habitação, mobilidade e saneamento ambiental. Mais recentemente, vem sendo percebida como importante instrumento nas ações de prevenção e mitigação dos desastres ambientais. As ações do trabalho social no eixo Educação Ambiental devem ser desenvolvidas em todas as fases do processo de intervenção, desde a escuta e planejamento até a execução e consolidação das transformações produzidas. Assim, as ações com vistas ao alcance da sustentabilidade visam promover mudanças de atitude em relação ao meio ambiente, ao patrimônio e à vida saudável, fortalecendo a percepção crítica da população sobre os aspectos que influenciam sua qualidade de vida, além de refletir sobre os fatores sociais, políticos, culturais e econômicos que determinam sua realidade, tornando possível alcançar a referida sustentabili- dade ambiental e social da intervenção. O envolvimento de vários segmentos sociais, como moradores, lideranças comunitárias, professores, gestores municipais, conselheiros, entre outros, é fator determinante para o sucesso das ações, promovendo a consolidação e a consistência dos investimentos. O trabalho a ser desenvolvido deve ser capaz de subsidiar, sensi- bilizar e orientar a população sobre a importância das questões ambientais e patrimoniais presentes no seu bairro e na moradia, através das informações teóricas e práticas disponibilizadas e das vivenciadas pela população, que sirvam de ferramentas para apropriação de novos conhecimentos e estimulem atitudes positivas Capítulo 06 : Dimensão Sustentabilidade UrbanaGuia de Urbanismo Social 181180 e comportamentos ativos em relação à conservação, manutenção e recuperação de seu ambiente de vivência e dos aspectos que influenciam sua qualidade de vida. A sustentabilidade das intervenções prevê uma abordagem sistêmi- ca, portanto, a Educação Ambiental deve ser inserida não somente no pós-obra, mas em todas as fases da intervenção (pré, durante e pós-intervenção/obra). Dessa forma, a estratégia de mobilização, que se inicia no planejamento do projeto e/ou intervenção, deve abranger, para além de observar as discussões mais diretamente relacionadas às questões ambientais, aspectos relacionados à autoestima dos moradores, do fomento ao trabalho coletivo, e, em especial, a articulação ou associação com dinâmicas de geração de trabalho e renda. A qualificação do Espaço Construído, bem como sua manutenção, deve estar associada com questões ambientais, de saúde e habi- tabilidade e estratégias de subsistência, contemplando iniciativas como manutenção de espaços comuns, cultivo de hortas urbanas e preparo de alimentos para comercialização, coleta e triagem de materiais para reciclagem. A partir dessas iniciativas pode-se, por exemplo, oportunizar e potencializar o fomento à visitação dos espaços e da valorização da história e ações locais por meio de Turismo de Base Comunitária, entre outros. Em síntese, no fomento à Educação Ambiental junto aos moradores e demais atores (stakeholders) locais pode-se articular a realização de atividades nos seguintes temas: Sensibilização sobre meio ambiente: construção de conhecimentos, atitudes e habilidades voltadas à preservação do meio ambiente e levantamento de interesse sobre a temática. Manejo dos espaços verdes e comuns: incentivo e desenvolvimento de práticas ambientais relacionadas ao manejo (do solo, plantio e manutenção) e melhorias nos espaços livres do bairro (áreas verdes e comuns) e entorno. Resíduos sólidos: ▸ Coleta seletiva: sensibilização e apoio à implementação de coleta seletiva e óleo de cozinha, bem como aproveitamento de material orgânico para compostagem, e material reciclável para arte-artesanato; ▸ Catadores de materiais recicláveis: articulação/apoio a processos de organização e capacitação de catadores de materiais recicláveis e/ou de famílias que sobrevivem em lixão, quando da sua existência na área de intervenção; Saneamento Básico (água e esgotos): orientaçãosobre o uso racional de água e do sistema de esgotamento sanitário (rede e equipamentos), e da tarifa social vinculada a esses serviços; Segurança Alimentar e Nutricional: sensibilização da comunidade para o consumo de alimentação saudável, redução das despesas por meio do aproveitamento integral e produção e preparo de alimentos; Formação de Multiplicadores/Agentes/Influenciadores: identi- ficação e formação de agentes ambientais, e, quando oportuno, constituição e formação de comissão de conservação, manutenção e melhorias dos espaços verdes e públicos. Capítulo 06 : Dimensão Sustentabilidade UrbanaGuia de Urbanismo Social 183182 RESILIÊNCIA URBANA E JUSTIÇA AMBIENTAL EM TERRITÓRIOS PERIFÉRICOS 6.4_ O debate acerca da resiliência urbana e da justiça ambiental torna-se cada vez mais relevante e urgente, sobretudo quando se considera o contexto de precariedade das cidades brasileiras, com suas enormes desigualdades socioespaciais e exposição a riscos socioambientais crescentes10. Nas cidades do século XXI os desastres ambientais e as pandemias evidenciam as precárias condições de vida de grande parte da população do planeta. A crescente destruição da natureza, com o consumo exacerbado e a poluição da atmosfera, tem impactado o meio ambiente com inundações frequentes, secas severas, incêndios extensivos, deslizamentos de terra, dentre outros danos prejudiciais ao hábitat humano. O 6º Relatório de Avaliação do IPCC (2021) indica que o agravamento desses desastres corresponde à efetivação das previsões de alterações nos regimes de precipitações modelados ao longo da última década, assim como a elevação das temperaturas médias. Os impactos dos eventos extremos atingem com maior rigor as populações mais pobres, distribuídas em regiões que se pautam pela precariedade dos assentamentos onde vivem. Nesse cenário emergem os temas da resiliência urbana e justiça ambiental, entendidos aqui como conceitos indissociáveis que remetem ao enfrentamento de algumas das principais proble- máticas da população das cidades na contemporaneidade, em especial aquelas que ocupam territórios periféricos e áreas de fragilidade ambiental. O modelo de urbanização disperso e extensivo das cidades brasi- leiras resulta em assimetrias socioespaciais que se expressam, na maioria das vezes, no avanço ilegal e predatório da ocupação urbana 10 Pesquisas : (i) O papel das redes de infraestrutura na redução das vulnerabilidades das cidades brasileiras às mudanças climáticas (Renato Anelli, apoio do CNPq e Fun- do MackPesquisa); (ii) Planos e projetos urbanos para cidades brasileiras: desafios da resiliência em áreas protegidas (Angélica Alvim, Bolsa Produtividade CNPq). sobre áreas protegidas, fundamentais à garantia da sustentabilidade da sociedade11. Para Anelli12, os esforços do planejamento urbano para reverter esse modelo de urbanização dispersa seguiram o conceito de cidade compacta, buscando o maior adensamento das áreas estruturadas. Nesse sentido, destaca-se o Plano Diretor Estratégico de São Paulo, no qual o adensamento foi concebido associado às linhas de transporte público de alta capacidade, constituindo uma malha que deveria reestruturar o crescimento urbano, revertendo a tendência à dispersão. Estudos recentes avaliam o impacto desse novo modelo urbano na produção de ondas de calor e na distribuição de chuvas, trazendo subsídios ainda não incorporados na revisão dos instrumentos de planejamento urbano e em políticas públicas. As favelas inserem-se em um cenário de crise ambiental, defla- grando uma série de problemas, incluindo os de caráter social, que se configuram em grandes desafios para as metrópoles contem- porâneas. Grande parte dos domicílios situados nas favelas das cidades brasileiras localizam-se em margens de rios, córregos e lagos; uma parte situa-se em áreas contaminadas (aterros, lixões etc.) ou em unidades de conservação, devendo sua permanência ser objeto de discussão. O número de favelas em áreas de risco é alto e crescente. A publicação “População em áreas de risco no Brasil” do IBGE, em parceria com o Cemaden (Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais), apresenta números inéditos sobre o problema, a partir dos dados do Censo de 2010, mapeados em 872 municípios monitorados pelo próprio Centro. A população em áreas de risco em tais localidades chegava a 8.270.127 habitantes, que moravam em 2.471.349 domicílios particulares permanentes. Cerca de 17,8% das pessoas que viviam nas áreas de risco desses municípios eram idosos ou crianças, os grupos etários mais vulneráveis; 20,3% moravam em “aglomerados subnormais” (1,7 milhão de pessoas), em 19,9% de domicílios (total de 490.849). 11 ALVIM, A. T. B.; RÚBIO, V. M. (org.). Sustentabilidade em projetos para urbanização de assentamentos precários no Brasil: contexto, dimensões e perspectivas. Barueri: Manole, 2022. 12 ANELLI, R. L. S. As cidades e o aquecimento global: desafios para o planejamento urbano, as engenharias e as ciências sociais e básicas. Journal of Urban Technology and Sustainability, v. 3, edição 1, 2020. Capítulo 06 : Dimensão Sustentabilidade UrbanaGuia de Urbanismo Social 185184 A questão da urbanização em favelas nas cidades brasileiras é recorrente, com investimentos públicos alocados ao longo de décadas. Entretanto, as intervenções têm sido desarticuladas e insuficientes, não indicando avanços socioambientais qualitativos de abrangência coletiva. Evidencia-se, também, a importância central de uma abordagem sistêmica sobre a cidade, uma vez que nenhum dos setores da realidade urbana é dissociável e ações que levam à resiliência urbana podem contribuir para a redução da desigualdade e para a ampliação da justiça ambiental O conceito de resiliência urbana tem ganhado enorme repercussão em pesquisas ligadas ao urbanismo social, principalmente por sua inserção no documento Transformando o nosso mundo: A agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável, que apresenta os 17 Objetivos do Desenvolvimento Sustentável (ODS), com destaque para o Objetivo 11: Tornar as cidades e os assentamentos humanos inclusivos, seguros, resilientes e sustentáveis. Para Meerow et al.13, a resiliência urbana é entendida a partir de uma perspectiva complexa como a capacidade dos sistemas urbanos de manter ou retornar suas funções após situações de choques e distúrbios, ou ainda adaptar e transformar os sistemas que limitam a adaptação atual ou futura. Ao considerar a complexidade dos sistemas urbanos, os autores apontam que eles são formados não apenas pela dimensão técnica como também pelas redes socioecológicas e sociotécnicas em diferentes escalas espaciais e temporais. A literatura aponta que a resiliência urbana possui múltiplas di- mensões. Há quatro centrais e inter-relacionadas que configuram a construção de resiliência urbana: fluxos metabólicos (e.g., cadeias de produção, abastecimento e consumo); rede de governança (e.g., estruturas institucionais e organizações); dinâmicas sociais (e.g., 13 MEEROW, S.; NEWELL, J. P.; STULTS, M. Defining urban resilience: a review. Landscape and Urban Planning, v. 147, p. 38-39, mar. 2016. demografia, capital humano e desigualdades); ambiente construído (e.g, serviços ecossistêmicos nas paisagens urbanas)14. Essa reflexão é fundamental, pois o debate acerca da resiliência urbana não pode estar dissociado dos problemas e desigualdades existentes nos ambientes urbanos. Sendo assim, a construção da resiliência nas cidades brasileiras não deve assumir uma pers- pectiva tecnocêntrica e rígida, que reproduz profundas injustiças ambientais, transferindo as consequências dos desequilíbrios dos ecossistemas para as comunidades e territórios mais vulneráveis, como tem sido apontado por diversos autores no debate acerca da sustentabilidade. O termo “justiça ambiental” aparece como um conceito aglutina- dor e mobilizador, por integrar as dimensões ambiental, social e ética da sustentabilidadee do desenvolvimento, frequentemente dissociados nos discursos e nas práticas. Justiça ambiental, mais que uma expressão do campo do direito, assume-se como campo de reflexão, mobilização e bandeira de luta de diversos sujeitos e entidades locais, muitos deles afetados por diversos riscos, cuja participação é essencial para a boa governança15. Em tal contexto, operam em rede a governança multiescalar (que articula o local, a região e a nação) e a multissetorial (que articula as questões setoriais, partes de um único sistema). Trata-se da implementação de uma cogestão da resiliência, dividida entre atores locais e de âmbito global, entre público e privado, entre indivíduos, empresas e governos. É através do processo participativo e democrático que os gru- pos mais vulneráveis podem ter voz, colocar suas demandas e se tornar atores ativos na busca de um equilíbrio de força na 14 RESILIENCE ALLIANCE. Urban resilience research prospectus: a resilience alliance Initiative for transitioning urban systems towards sustainable futures. USA, Sweden, Australia, Arizona State University, Stockholm University: Commonwealth Scientific and Industrial Research Organisation — CSIRO, 2007. 15 ACSELRAD, H. Justiça ambiental: ação coletiva e estratégias argumentativas. In: ACSELRAD, H.; HERCULANO, S.; PÁDUA, J. A. (org.). Justiça ambiental e cidadania. Rio de Janeiro: Relume Dumará; Fundação Ford, 2004. http://ecam.org.br/blog/o-que-e-a-agenda-2030-e-quais-os-seus-objetivos/#:~:text=A%20Agenda%202030%20%C3%A9%20um,de%20vida%20das%20pr%C3%B3ximas%20gera%C3%A7%C3%B5es. http://ecam.org.br/blog/o-que-e-a-agenda-2030-e-quais-os-seus-objetivos/#:~:text=A%20Agenda%202030%20%C3%A9%20um,de%20vida%20das%20pr%C3%B3ximas%20gera%C3%A7%C3%B5es. http://ecam.org.br/blog/o-que-e-a-agenda-2030-e-quais-os-seus-objetivos/#:~:text=A%20Agenda%202030%20%C3%A9%20um,de%20vida%20das%20pr%C3%B3ximas%20gera%C3%A7%C3%B5es. Capítulo 06 : Dimensão Sustentabilidade UrbanaGuia de Urbanismo Social 187186 PROJETO CAMPO-FAVELA: UM CASO ESCALAR6.5_ Um dos dezessete Objetivos para o Desen- volvimento Sustentável é fome zero e agri- cultura sustentável. Esse objetivo visa acabar com a fome, garantindo acesso a alimentos seguros e nutritivos em quantidade suficiente para todos até 2030. Faz parte do mesmo objetivo dobrar a produtividade e a renda de pequenos produtores de alimentos, incluindo os pequenos agricultores familiares. Alcançar esse objetivo é um grande desafio para as grandes cidades brasileiras. Dados do IBGE mostram que a disponibilidade domiciliar de alimentos in natura ou minima- mente processados vem perdendo espaço para alimentos processados e ultraproces- sados. Esse movimento é ainda mais forte em territórios mais vulneráveis, locais onde a oferta de produtos saudáveis e nutritivos (frutas, verduras e legumes) é significati- vamente menor quando comparada com a realidade em bairros mais ricos, reforçando dessa forma uma forte desigualdade social e alimentar. Estabelecimentos comerciais e varejistas existentes nesses locais preferem trabalhar com produtos processados ou ultraprocessados, pois são menos pere- cíveis, não precisam de refrigeração, são facilmente estocados e, muitas vezes, são também mais baratos. Muitas dessas áreas das grandes cidades podem ser consideradas desertos ou pân- tanos alimentares, ou seja, são locais onde o acesso a alimentos in natura ou minima- mente processados é raro ou inexistente (desertos alimentares) ou áreas onde há a predominância da venda e distribuição de produtos altamente processados e ultra- processados, altamente calóricos e pouco nutritivos (pântanos alimentares). Garantir o acesso a uma alimentação saudável, segura e em quantidade adequada é, ou deveria ser, uma preocupação de muitos gestores públicos do país, tendo enorme impacto no sistema de saúde local. Se a ponta consumidora mais vulnerável tem dificuldade para acessar alimentos frescos de maior qualidade nutricional, a ponta produtora desses alimentos também tem grande dificuldade para produzir e escoar a sua produção. Estima-se que cerca de 70 a 80% da alimentação de produtos in natura do dia a dia das famílias seja proveniente do pequeno produtor familiar. Com a pandemia, as duas pontas frágeis dessa cadeia sofreram ainda mais. O acesso a alimentos frescos ficou ainda mais restrito aos moradores de áreas mais vulneráveis das grandes cidades, em especial os mora- dores de favelas. O fechamento de escolas e creches impediu que crianças e adoles- centes tivessem acesso a uma alimentação saudável. Dados da Unicef de 2021 apontam que as famílias de baixa renda foram as que mais sofreram com a queda na renda, disputa por territórios em conflitos ambientais. Assim, torna-se indispensável a implementação de políticas públicas urbanas e ambientais — integradas às intervenções que promovam a resiliência urbana de comunidades vulneráveis, por meio de um processo de governança que valorize a participação da sociedade e, ao mesmo tempo, incorpore princípios de preservação e de recuperação ambiental, em prol da justiça ambiental. Guia de Urbanismo Social 188 com o aumento da insegurança alimentar e da ingestão de alimentos não saudáveis ou ultraprocessados. Com o objetivo de ajudar as duas pontas frágeis dessa cadeia, surgiu a ideia do Projeto Campo Favela. No campo, havia produtos sendo jogados fora e produtores familiares sem renda. Nas favelas, havia famílias sem renda ou com pouca renda para comprar alimentos, e crianças sem acesso a uma alimentação saudável. Um grupo de professores e pesquisadores do Insper se reuniu para desenvolver e executar o projeto e, com a participação de alunos e de grande parte da comunidade do Insper, conseguiram alavancar o projeto, que teve dois grandes objetivos: (1) ajudar as famílias do campo e das favelas nesse período de pandemia, e simultaneamente (2) criar um modelo sustentável que permitisse uma ligação direta entre produtores e consumidores das favelas. Com a redução do número de intermediários, haveria uma diminuição do desperdício de alimentos, e os produtos frescos poderiam chegar às famílias de baixa renda, moradoras de favelas, a um preço mais baixo, mas ao mesmo tempo re- munerando de forma justa todos os agentes envolvidos nessa complexa cadeia. Como resultado, o projeto Campo-Favela conseguiu arrecadar cerca de R$ 4 milhões em doações de pessoas físicas e jurídicas. Foram mais de um milhão de quilos de ali- mentos frescos distribuídos gratuitamente para mais de 130.000 famílias carentes das favelas de diversas cidades do país. Mais de 1.500 pequenos produtores rurais foram beneficiados pelo projeto. O projeto, em uma escala menor, continua, com o apoio de uma empresa de fertilizantes e com a operação de uma cooperativa de pequenos produtores familiares. Além disso, algumas associações de moradores de comunidades passaram a comprar frutas e verduras diretamente de agricultores familiares e a vendê-los a preços competitivos. As pesquisas com o objetivo de redesenhar as cadeias de alimentos frescos, propondo modelos alternativos e sustentáveis para atender áreas de baixa renda, também continuam sendo desenvolvidas, e contam com pesquisadores não só do Insper, mas também do MIT (Massachusetts Institute of Technology) e da LSE (London School of Economics), contando com financiamento da British Academy. https://www.campofavela.ong.br/ Capítulo 07 : Dimensão Socioeconômica e Cultural 191 DIMENSÃO SOCIOECONÔMICA E CULTURAL 7.1_ A dimensão socioeconômica e o urbanismo social 7.2_ Cultura local 7.3_ Empreendedorismo nos territórios 7.4_ A coprodução urbana pelas lentes de iniciativas comunitárias 7.5_ A potência das comunidades fortalecidas a partir de tecnologia social e cívica 07_ AUTORES 07.1_ Núcleo de Urbanismo Social; 07.2_ Núcleos de Mulheres e Territórios e de Urbanismo Social; 07.3_ Marcus A. Y. Salusse, Juliana M.Mitkiewicz e Luiz F. C. S. Durão (Insper); 07.4_ Marcos L. Rosa (FAU-USP); 07.5_ Ygor Santos Melo e Camila Jordan (TETO Brasil). A DIMENSÃO SOCIOECONÔMICA E O URBANISMO SOCIAL7.1_ Quando nos referimos aos aspectos socioeconômicos e culturais das favelas, estamos, de modo inevitável, falando das condições de vida das pessoas e das comunidades que habitam esses territórios. Tal qualidade de vida passa pela presença e disponibilidade de serviços públicos atendendo à população local (tais como serviços de saúde, esporte, lazer, cultura, assistência social, direitos humanos, abastecimento, segurança alimentar e desenvolvimento econômico), assim como pelo conhecimento em profundidade do território e de sua população. Conforme já mencionado no Capítulo 2, na pers- pectiva do urbanismo social, os principais indicadores que guiam as intervenção nos territórios devem ser os indicadores sociais e não apenas os indicadores urbanos e de infraestrutura. Para o urbanismo social, as intervenções devem ser pensadas e planejadas para resolver também questões sociais, e não somente do espaço urbano, em processos colaborativos. Obviamente há uma relação entre qualidade do espaço urbano e qualidade de vida, mas a construção e a reformulação desse espaço precisam acompanhar as características e demandas da população local — lembrando que o urbanismo social pretende deixar mudanças sociais duradouras e que empoderem as comunidades, criando um ciclo positivo de desenvolvimento local. Entregas previamente formatadas sem construção conjunta com a comunidade podem levar a desperdícios de recursos valiosos por não corresponderem às necessidades reais daquele território e de sua população, além de potencialmente não estimularem um sentimento de apropriação e pertencimento da comunidade em relação aos produtos ou serviços que estão sendo entregues. Por isso, ressalta-se a importância de processos de diagnóstico e planejamento que sejam participativos e equitativos, refletindo a rica e potente diversidade social do território de forma inter- seccional, abarcando todas e todos, mulheres, crianças, idosos, população LGBTQIA+, migrantes e negro(a)s. É importante incentivar e buscar de maneira ativa a participação de públicos historicamente Capítulo 07 : Dimensão Socioeconômica e CulturalGuia de Urbanismo Social 193192 sub-representados em processos decisórios e em espaços de representação política. A participação permite que as decisões refli- tam de forma mais democrática e inclusiva as características de cada território e sua comunidade — suas demandas e potências. A construção de políticas públicas e suas ações para e nas comunidades das favelas devem conciliar as necessidades e deman- das dos territórios com as características particulares de cada local e o reconheci- mento dos seus potenciais; ações diversas nos âmbitos sociais, culturais, educativos, econômico etc. que são desenvolvidas a partir da população local. Saber, por exemplo, o número de crianças e de migrantes, os índices de gravidez pre- coce e de violência pode mudar o rumo e a escolha das políticas e programas a serem priorizados localmente. Apesar de esses espaços urbanos, de um modo geral, enfren- tarem desafios socioeconômicos similares, dado o contexto de exclusão, pobreza e vulnerabilidade social, é importante ressal- tar que cada território possui um contexto e uma realidade específica que devem ser conhecidos e considerados. Em um país de proporções continentais como o Brasil, isso fica mais evidente quando olha- mos para municípios de diferentes regiões: uma comunidade no Rio de Janeiro é igual ou enfrenta os mesmos problemas de uma comunidade no Pará? E mesmo dentro de um município do tamanho de São Paulo, por exemplo, o distrito de Marsillac (situado na zona sul da cidade) — que possui forte presença de comunidades indígenas, baixíssi ma densidade populacional e grandes áreas de proteção ambiental —, precisa ou deve receber exatamente as mesmas políticas públicas que Paraisópolis (também localizada na região sul), a segunda maior favela da cidade e com altíssima densidade demo- gráfica? Conhecer as especificidades dos territórios é dar visibilidade aos seus prin- cipais problemas e também reconhecer as potencialidades ali presentes. As soluções nem sempre vêm de fora. Muitas vezes elas precisam ser reconhecidas e fomentadas localmente. Porém, isso só será possível com um conhecimento profundo e a pro- dução de dados qualitativos e quantitativos sobre os territórios e suas populações, para que decisões sejam tomadas de maneira informada e deliberada1. O que o urbanismo social também procura alcançar é a redução de distâncias geo- gráficas, éticas e morais entre as cidades “formal” e “informal”. Busca-se romper com estigmas contra as comunidades das fave- las, proporcionando espaços para que elas possam continuar criando e expressando suas culturais locais e também garantindo acesso a espaços e oportunidades da cidade como um todo. Em última instância, ao unir as cidades formal e informal, o urbanismo social almeja que a cidade como um todo também possa acessar livremente e sem 1 Marsillac e as comunidades indígenas: Extremo Sul de São Paulo: terra indígena, SESC-SP, 2022. E também: Sobre as diversas ações da comunidade de Paraisópolis. preconceitos as culturas locais e periféricas. Conectar esses territórios é o primeiro passo para uma transformação mais profunda na cidade e na sociedade. De forma clara, na perspectiva do urbanismo social não se faz uma intervenção para manter a favela no “gueto” e sim para conectá-la à cidade. O modo como caracterizamos as favelas ou territórios de vulnerabilidade social influencia ou demonstra os preconceitos em relação a esses territórios e seus mora- dores ou os reconhece na sua rica e potente vida comunitária social e cultural. Se olharmos apenas essas características sem levar em conta a complexidade e di- versidade na formação e constituição das favelas, acaba-se gerando pressupostos centrados em parâmetros negativos, que se baseiam em noções idealizadas de cidades “normais” versus territórios permeados por diversas ausências e carências, estimulan- do-se, assim, a perpetuação de estigmas e preconceitos por não seguirem padrões hegemônicos de certos modelos urbanís- ticos (muito reproduzidos pelo mercado e pelo Estado). Esses territórios rompem com o imaginário de “cidade ideal” e nos confrontam com a realidade da desigual- dade social, da crescente pobreza urbana e da segregação socioespacial presente em nossas urbes. O Observatório das Favelas, por exemplo, propõe uma outra maneira para caracterizar as favelas que congrega aspectos urbanos, sociais e políticos e que procura romper com a estigmatização socioespacial. Isso passa por compreender esses territórios como espaços urbanos que sofreram com uma insuficiência histórica de investimentos do Estado. Também são territórios nos quais se costuma dizer que há pouca presença do Estado quando, na verdade, há uma presença precária por parte dele — inclusive, recor- rentemente essa presença se dá de forma violenta e repressiva. Assim, para construir uma caracterização de maneira mais huma- nizada com suas peculiaridades resultantes de processos socioeconômicos complexos, precisamos levar em consideração e ressig- nificar certos aspectos presentes ali, como: ▸ Relações de trabalho marcadas por níveis elevados de subemprego e informalidade; ▸ Apropriação social do território, especial- mente para fins de moradia; ▸ Construções predominantemente carac- terizadas pela autoconstrução e realizadas de acordo com os espaços disponíveis no território; ▸ Indicadores socioeconômicos e ambien- tais abaixo da média do verificado na cidade como um todo; ▸ Territórios permeados por alto grau de vulnerabilidade ambiental; ▸ Elevada densidade habitacional e taxa de densidade demográfica acima da média; ▸ Forte presençade relações sociais e de vi- zinhança, com uma sociabilidade que valoriza os espaços comuns como lugar de encontro; ▸ Alta concentração de negro(a)s e pardo(a)s; https://www.sescsp.org.br/extremo-sul-de-sao-paulo-terra-indigena/ https://www.sescsp.org.br/extremo-sul-de-sao-paulo-terra-indigena/ https://www.facebook.com/ParaisopolisSP/ https://www.facebook.com/ParaisopolisSP/ https://observatoriodefavelas.org.br Capítulo 07 : Dimensão Socioeconômica e CulturalGuia de Urbanismo Social 195194 ▸ Índices de violência, sobretudo a letal, acima da média do observado na cidade “formal”. Ao destacar aspectos sociais, econômicos, políticos e culturais que caracterizam esses territórios, abrimos espaço para quebrar concepções negativas e preconceituosas de espaços periféricos e de suas populações. A consideração dos interesses dos benefici- ários ou afetados (por qualquer intervenção urbana) é necessária para garantir que um processo de decisão seja justo e democrá- tico e não gere injustiças e/ou reproduza um processo de dominação por padrões hegemônicos. Uma comunidade informada e empoderada também sustenta a manu- tenção e continuidade do projeto. Para que isso se concretize, podemos articular ações em termos de quatro componentes cruciais: ▸ Componente comunicacional Implementar uma linguagem comum com espaços de troca entre técnicos, gestores e a comunidade, para que “aprendam a falar a mesma língua”. Construir essa linguagem comum proporciona a criação de estratégias de comunicação mais eficazes. ▸ Componente cultural Lembrar que nem sempre os projetos são replicáveis de maneira literal nos territórios. Realizar leituras dos territórios a partir dos valores sociais e culturais da comunidade é fundamental. Importante também é com- preender como os territórios constroem laços, assim como seus conflitos internos, e caracterizar essas comunidades com suas distintas condições. E deve-se buscar reco- nhecer e valorizar as ações lá existentes, quase sempre desenvolvidas sem apoio ou financiamento públicos. ▸ Componente social Entender como está a educação, a primeira infância, a saúde e a segurança ajuda a construir insumos para a construção de equipamentos que acolham essas neces- sidades. Trata-se de conhecer os aspectos sociais e culturais para que os componentes físicos possam abrigar essas relações que já existem no território e não desenvolver o projeto primeiro de maneira desconectada. São as dinâmicas próprias locais que darão valor aos projetos sendo desenvolvidos. ▸ Componente econômico Investigar e buscar entender quais são as fortalezas da economia local e como forta- lecê-las. Como vinculá-las com a economia da cidade como um todo? Essas economias internas ao território geram e mantêm a eco- nomia local viva e são fontes de valor para produzir relações econômicas importantes e positivas com a cidade como um todo. Em inúmeras favelas do país existem ações de empreendedorismo local. Portanto, o urbanismo social estimula pro- jetos que respeitam e integram em seu desenho as preexistências do território e a cultura local. Assim, é importante levar em consideração e integrar aos projetos de urbanização as lógicas urbanas, sociais e culturais locais presentes em cada território e valorizar os espaços públicos enquanto morada do coletivo dessas comunidades. Outro ponto importante é a perspectiva de que todo projeto deve estimular a forma- ção de capacidade instalada no território, fortalecendo associações e comunidades locais. Podemos considerar que a susten- tabilidade do projeto a médio e longo prazo também depende dessa formação para gerar capacidade instalada no território (que per- durará após a implementação e entrega final dos projetos). Organizações sociais de base, associações e lideranças fortalecidas geram e mantêm a capacidade instalada nos territó- rios de forma a dar continuidade a processos de cidadania participativa, engajamento no desenho e planejamento das intervenções e, inclusive, atuando como controle social. Essa capacidade instalada também auxilia na construção de uma narrativa cidadã com- partilhada sobre e nos territórios. Além disso, a articulação desses componen- tes nos projetos de urbanismo social exige uma mudança de lógica institucional com integração entre as diferentes secretarias — para saber mais, ver o Capítulo 8. CUFA — Central Única das Favelas: é uma organização brasileira reconhecida nacional e internacionalmente nos âmbitos político, social, esportivo e cultural que existe há vinte anos; G10 Favelas — é formado por um grupo de líderes e empreendedores de impacto social das favelas; Observatório das Favelas: Organização da So- ciedade Civil de Interesse Público sediada no Conjunto de Favelas da Maré, dedicada à pro- dução de conhecimento e metodologias visando incidir em políticas públicas sobre as favelas e periferias e promover o direito à cidade. Para saber mais sobre os dados e as pesquisas, ver as referências seguintes: ▸ Instituto Locomotiva ▸ Fundação Tide Setubal — Iniciativas ▸ Dicionário de Favelas Marielle Franco ▸ ANF – Agência de Notícias das Favelas ▸ Portal Favelas ▸ Digital Favela ALGUMAS INICIATIVAS DAS E NAS FAVELAS https://www.cufa.org.br/ https://g10favelas.com.br/ https://observatoriodefavelas.org.br/ https://ilocomotiva.com.br/estudos/ https://fundacaotidesetubal.org.br/iniciativas/ https://wikifavelas.com.br/index.php/Dicionário_de_Favelas_Marielle_Franco https://www.anf.org.br/ https://www.portalfavelas.com https://digitalfavela.com.br/ Capítulo 07 : Dimensão Socioeconômica e CulturalGuia de Urbanismo Social 197196 CULTURA LOCAL7.2_ A cidade como lugar de encontro deve propiciar a interação entre pessoas diferentes, dentro de uma vasta diversidade, presente em cada indivíduo, e sobretudo na coletividade, pois justamente são as pessoas que constituem a cidade, e não o contrário. O encontro é necessário pelas mais diversas razões, tais como para trabalhar, vender o que se produz, consumir o que foi produzido, para o lazer, para debater e refletir politicamente, para construir e desconstruir, entre muitas outras possibilidades. Contudo, sabemos que existe uma desigualdade explícita em relação à distribuição de equipamen- tos e atividades culturais e sua acessibilidade dentro do território da cidade. A política cultural, historicamente, na sua efetivação, é muitas vezes tratada como objeto de consumo, limitando não apenas o consumo e acesso como também o reconhecimento dos mais variados produtos e ações culturais. Investir e desenvolver territórios com baixo acesso a equipamentos culturais passa por valorizar e reconhecer o potencial cultural pe- riférico, assim como os atores e as organizações locais. É essencial reconhecer as múltiplas organizações e projetos comunitários que trabalham com cultura. São territórios que, por diversas razões, estão apartados dos principais centros culturais das cidades e possuem uma carência de equipamentos públicos (ou privados) para atividades dessa natureza. No entanto, são espaços que têm desenvolvido suas próprias linguagens e produções culturais — na música, rap, funk, passinho, rodas de samba; nas artes visuais, o grafite, para citar só duas áreas — que historicamente são pouco reconhecidas pelo Estado e por quem não está inserido naquele contexto sociocultural. O urbanismo social entende a construção simbólica do valor da cultura como um eixo essencial para a transformação da socie- dade e do território. A cultura é uma das fortalezas que permitem aproximar pessoas e deve avançar de modo simultâneo com a ▸ Instituto de Estudos Avançados — USP. Periferias como potência. ! PARA SABER MAIS, VER: arquitetura física e a arquitetura social. Trata-se, então, de criar e fortalecer espaços nos quais a cultura local periférica ou da favela já presente nos territórios possa se manifestar e crescer. Além de fortalecer a produção culturallocal, é importante estimular e proporcionar acesso dos moradores dessas comunidades a outros centros culturais da cidade (facilitando a mobilidade urbana e tor- nando o custo dos eventos culturais mais acessíveis, por exemplo). Por fim, promover a ida a esses espaços culturais nas periferias e favelas por moradores de outras regiões da cidade é uma forma de estimular a integração do tecido social urbano como um todo, abrindo oportunidade para romper com preconceitos. Assim, a cultura local também precisa de estímulos para crescer e romper com concepções negativas com as quais podem ser asso- ciadas por preconceitos e superar a negação da cultura específica produzida nesses territórios. Além da criação de equipamentos públicos culturais mais próximos das favelas, é importante fortalecer as entidades e grupos culturais locais via políticas públicas mais acessíveis. Instrumentos formais de estímulo à cultura (como uma Lei Rouanet) não dão conta de alcançar grupos menos formalizados. Uma opção é repensar o desenho de eventos culturais para trans- formá-los em geradores de inclusão, equidade e oportunidades, e para que sejam fonte e evidência das novas propostas culturais. ARTISTAS DA MARÉ – MARÉGRAFIA A pesquisa “Marégrafia”, desenvolvida pela Redes da Maré, foi realizada no conjunto de favelas da Maré, no Rio de Janeiro. Seu objetivo foi romper a lógica eurocêntrica, branca e rica sobre o que é cultura e arte, reivin- dicando o reconhecimento da importância da arte e da cultura na favela. A pesquisa aponta como os artistas vivem e produzem seus trabalhos. É preciso reunir esforços para que a sociedade entenda e reconheça a realidade e as potencialidades dos artistas brasileiros. ▸ Instituto de Estudos Avançados – USP. Periferias como potência. ! PARA SABER MAIS, VER: https://conexoesperiferias.iea.usp.br/periferias-como-potencia https://conexoesperiferias.iea.usp.br/periferias-como-potencia https://conexoesperiferias.iea.usp.br/periferias-como-potencia Capítulo 07 : Dimensão Socioeconômica e CulturalGuia de Urbanismo Social 199198 EMPREENDEDORISMO NOS TERRITÓRIOS7.3_ Nesta seção serão apresentadas as dimensões socioeconômica e cultural do urbanismo social, que se manifestam por meio da atividade empreendedora tradicional e do empreendedorismo social e cultural nos territórios urbanos e de sua relação com as políticas públicas e recursos locais. Oferece-se uma análise de iniciativas em empreendedorismo tradicional, social e cultural que levam em consideração as características específicas dos territórios, referências para pensar ações de urbanismo social. Historicamente, as cidades são palco de disputas no uso do território, e, assim como em outras economias emergentes, as desigualdades sociais e níveis de pobreza no Brasil tornam as disputas no uso dos territórios2 ainda mais presentes. Isso porque, em sociedades caracterizadas por elevados níveis de desigualdade, as instituições e infraestrutura existentes podem não ser suficientes para prover à população o suporte adequado ao desenvolvimento de atividades econômicas, culturais e sociais. Esses vazios institucionais podem limitar a participação de estratos da população em mercados formais e sua intenção de empreender e ter sucesso/impacto dos negócios desenvolvidos nesses territórios. Em tal contexto, as ausências demandam esforços adicionais da população para garantir o exercício de seus direitos e afetam o desenvolvimento socioeconômico dos territórios. É importante analisar a dimensão socioeconômica e cultural do urbanismo social sob a perspectiva dos indivíduos e sua relação com os elementos social, cultural e comunitário presentes nos territórios de maior vulnerabilidade social. Sob a perspectiva individual, o processo empreendedor se inicia a partir de um determinado conjunto de recursos que são mobilizados e que determinam as possibilidades, objetivos e oportunidades. Trata-se 2 Ver mais em BARKI, E. et al., U. Em busca do empreendedorismo social inclusivo. Stanford Social Innovation Review (SSIR), 2022. não apenas de recursos financeiros e conhecimento, aspectos que tradicionalmente são relacionados ao desenvolvimento de atividades socioeconômicas, mas também das redes de relacionamento dos indivíduos e de seus aspectos psicológicos, como a confiança para desenvolver tarefas e atividades desafiadoras, pontos inerentes ao processo empreendedor. Esses recursos são chamados de “capital” e são de quatro tipos: financeiro, humano, social e psicológico. O capital financeiro se refere à quantidade de recursos como dinheiro, poupança e acesso a crédito dos indivíduos dos territórios urbanos e está relacionado, em diversas pesquisas, ao bem-estar e a maiores níveis de satisfação e felicidade dos empreendedo- res. Por sua vez, a escassez de recursos está associada a altos níveis de estresse desses indivíduos, uma vez que as atividades socioeconômicas desenvolvidas contribuem diretamente para a subsistência de suas famílias. Como se trata de um recurso central para a dimensão socioeconômica, é essencial que se desenvolvam políticas e projetos de acesso a recursos financeiros que sirvam de apoio à criação e desenvolvimento de negócios. Por sua vez, o capital humano refere-se ao conhecimento formal e informal adquirido ao longo da vida e se traduz por meio de habili- dades para desenvolver atividades que possam gerar valor, seja ele econômico, social ou cultural. Iniciativas de urbanismo social devem considerar maneiras de gerar acesso a conhecimentos que gerem valor para o entorno, além de incorporar o próprio conhecimento das comunidades locais. Também é importante considerar o capital social dos empreende- dores, ou seja, as redes de relacionamento que esses indivíduos podem acessar e mobilizar através de laços pessoais fortes e fracos — homogêneos e heterogêneos. Elas permitem aos indivíduos acessar informações e recursos de outras pessoas e redes, que são relevantes para o sucesso das iniciativas empreendedoras, especialmente em ambientes carentes de sistemas de apoio. Por fim, iniciativas de empreendedorismo precisam considerar o capital psicológico dos indivíduos, seu estado de confiança para https://ssir.com.br/negocios-sociais/em-busca-do-empreendedorismo-social-inclusivo Capítulo 07 : Dimensão Socioeconômica e CulturalGuia de Urbanismo Social 201200 assumir tarefas desafiadoras, otimismo com relação ao sucesso atual e futuro da organização, perseverança, redirecionamentos quando necessário e resiliência3. O capital psicológico influencia positivamente o bem-estar e a satisfação com relação às suas ini- ciativas e impacta todo o processo empreendedor, da identificação de oportunidades à promoção de inovações. É a partir desses recursos, no sentido amplo, que importantes ações emergem nas diversas comunidades. Essas conexões com suas redes de relacionamento permitem aos indivíduos preencher e superar vazios institucionais que limitam a atividade empreendedora e que geram valor financeiro, cultural e social para suas comunidades. Da interação entre esses dois elementos, recursos individuais e ambiente institucional, é que o urbanismo social deve ser pensado, especificamente em modos de promover as iniciativas individuais por meio do desenvolvimento das infraestrutura e ambiente favorável às atividades culturais, sociais e de negócios. 3 Para saber mais, veja SARASVATHY, S. D. What makes entrepreneurs entrepre- neurial?, SSRN, 2021. Feira Preta — “Considerado hoje o maior festival afro da América Latina, a Feira Preta nasceu em 2002 como uma feira para produtos de empreen- dedores negros”, com foco em empreendedorismo, tecnologia, literatura, música, artes digitais e o que há de mais urgente e futurista nas reflexões da existência preta; ExpoFavela — “A Expo Favela é uma feira de negócios cujos expositores são empreendedores e startups da favela. O objetivo é dar visibilidade para essas iniciativas e, assim,promover um palco para esee encontro com investidores que possam acelerar estes empreendimentos”. FAVELAR — Desenvolve projetos de engenharia, arquitetura e urbanismo social, executando reformas e integrando soluções sustentáveis, em habitações de favelas e comunidades periféricas; Moradigna — Negócio social que reforma casas em situação de insa- lubridade, unindo a opção de “ter uma casa bonita mas também um ambiente saudável e longe de doenças que o mofo, a umidade e outros fatores podem causar”; Be.Sun — Realiza a logística reversa de materiais de construção novos, seminovos e usados qualificados para reúso. Destina-os à venda com preço acessível a todos. Parte do lucro é destinada, por meio de doações, às instituições filantrópicas apoiadas ou organizações parceiras de incentivo ao desenvolvimento sustentável local; Coletando — Primeira green fintech do mundo a disponibilizar pontos móveis, promove uma economia circular ecológica, trocando lixo por dinheiro em comunidades vulneráveis. FEIRAS DE EMPREENDEDORISMO NEGRO E DAS FAVELAS EXPERIÊNCIAS E INICIATIVAS DE EMPREENDEDORISMO EM FAVELAS https://papers.ssrn.com/sol3/papers.cfm?abstract_id=909038 https://papers.ssrn.com/sol3/papers.cfm?abstract_id=909038 https://festivalfeirapreta.com.br https://expofavela.com.br https://habitatbrasil.org.br/mapeamentos/favelar/ https://moradigna.com.br/#o-que-fazemos https://www.besun.blog http://coletando.org Capítulo 07 : Dimensão Socioeconômica e CulturalGuia de Urbanismo Social 203202 A COPRODUÇÃO URBANA PELAS LENTES DE INICIATIVAS COMUNITÁRIAS 7.4_ Recentemente, processos auto-organizados que atualizam as maneiras de uso de espaços subutilizados nas cidades, especialmente nas periferias, têm ganhado visibilidade, denunciando a desigualdade, a exclusão, o impacto ambiental e a precariedade urbana. Trata-se de práticas relacionadas à geração de emprego e renda, à melhoria da qualidade do espaço, a formas de expressão de grupos margina- lizados por meio da arte, cultura e educação. Essas práticas seguem demandas e agendas ligadas às comunidades e movimentos locali- zados. Manifestam desejos de sujeitos concretos, expressando uma diversidade de modos de lidar com o espaço cotidiano que são distintas daquelas dominantes. São diversas formas de produção sociocultural na cidade que demandam o reconhecimento e a afirmação de sujeitos e territórios no contexto de disputa sobre o projeto e as ideias que definem o urbano. Essa miríade de iniciativas projeta um imaginário urbano e amplia o debate sobre a coprodução dos espaços das cidades. Sua ação qua- lifica o espaço a partir de ações diretas, apontando para maneiras de democratizar processos de decisão e produção da cidade, em resposta a diversas formas de exclusão. Apesar das relações limitadas, mas, em outros casos, também por causa de parcerias saudáveis com governos municipais, há inúmeros exemplos exitosos da participação ativa da sociedade civil na construção e qualificação da cidade. Politicamente, são experiências fundamentais para revelar demandas reais e tornar legíveis problemas relacionados às políticas públicas: um pré-requisito para se mover adiante. Socialmente, são atos localizados na escala humana, buscando providenciar serviços e qualidades necessários para a vida cotidiana. Espacialmente, sua ação revela as limitações de um modelo abstrato e prescritivo de desenho e plane- jamento urbano que impôs de modo homogêneo espaços genéricos à cidade como um todo. Os espaços que ocupam revelam novos campos de ação em que são experimentadas práticas especializadas. Nessas experiências, a ideia de coprodução inclui questões relevantes sobre como reconhecer um problema, desvelar potencial, inspirar soluções e desenvolver respostas programáticas. Envolve também questões de agência e sustentabilidade em relação à forma de implementação, gerenciamento e manutenção de serviços, espaços e infraestruturas urbanas. THRIVE, CIDADE DO CABO, ÁFRICA DO SUL Criada em 2009, a Thrive — que em inglês significa crescer, prosperar — é uma organização mul- tifacetada que se dedica a iniciativas relacionadas à reciclagem e ao gerenciamento de resíduos. Operando a partir de uma instalação de resíduos urbanos na fronteira entre um assentamento informal (Imizamo Yethu) e condomínios de alto padrão (Hout Bay), sua localização escancara a desigualdade existente na paisagem pós-apartheid na Cidade do Cabo e evidencia um forte desejo comum de mudança. É gerida pela cooperativa comunitária de reciclagem Hout Bay Recycling (HBR), contemplada pela licitação governamental para reciclagem na área. Trabalhando com materiais descartados, onze membros recuperam itens reutilizáveis, além de classificar e vender materiais recicláveis. De maneira adicional a esse escopo básico de trabalho com reciclagem, a ação do grupo criou frentes de inovação: o TrashBack é um novo empreendimento social que consiste em um programa de reciclagem baseado em incentivos, no qual cerca de 500 membros da comunidade adjacente são recompensados por trazer materiais recicláveis para a HBR. As recompensas incluem vales para uma rede de lojas e serviços da comunidade, fortalecendo a economia local. Sua ação também aumenta a conscientização sobre o desperdício por meio de atividades escolares, apresentações e contatos com a mídia local. Aparas descartadas como resíduos de jardinagem florescem em jardineiras feitas de velhas telhas e em jardins cercados por pedras e pneus pintados, irrigados por um sistema de mangueiras reutilizadas. Essa prática de jardinagem se espalhou pelos espaços subutilizados nos terrenos vizinhos, com impacto na qualidade do espaço urbano em que ocorre. As atividades no local se fortalecem mutuamente ao demonstrar a possibilidade de verdejar uma paisagem árida, gerar renda e fortalecer a economia local junto à iniciativa de cashback capilarizada na comunidade. Capítulo 07 : Dimensão Socioeconômica e CulturalGuia de Urbanismo Social 205204 CONSELHO COMUNITÁRIO DE MIRAVALLE, CIDADE DO MÉXICO Dentro dos limites da Cidade do México e no topo de uma colina com vista para a paisagem urbana metropolitana, Miravalle é um bairro de Iztapalapa construído no final dos anos 1980 em antigas terras agrícolas. Por décadas, o assentamento foi caracterizado pela falta de infraestru- tura urbana e insegurança. Desde 2006, diferentes organizações locais se reuniram em um conselho comunitário com o objetivo de melhorar a qualidade urbana do bairro. Ações iniciais conquistaram junto ao governo serviços de infraestrutura básica como água, esgoto, arruamento e ilumi- nação pública. Na sequência, o projeto se consolidou buscando criar uma rede de espaços recreativos e culturais seguros para crianças e jovens, articulados a um projeto focado na sustentabilidade no manejo da água e dos recursos naturais locais. Como resultado, espaços abandonados foram transformados em espaços públicos, dispostos em uma área aberta com uma grande variedade de instalações e programas. Eles incluem uma biblioteca, um centro de treina- mento digital, uma sala para oficinas, um refeitório comunitário que atende trezentas pessoas, um centro de saúde, uma distribuidora subsidiada de leite e duas arenas abertas usadas para diferentes atividades culturais e recreativas. Adjacente a uma reserva natural, a comunidade utiliza áreas fronteiriças para atividades produtivas e educacionais, desenvolvendo o manejo sustentável por meio do cultivo de alimentos e da instalação de um centro de reciclagem que processa toneladas de resíduos plásticos, além de empregar trinta jovens da comunidade. Essa rede de espaços configura um limite claro e permeável entre o espaço construído e a reserva ecológica, viabilizando uma relação mutuamente benéfica. A rede de cooperação criada entre as partes interessadas locais, academia, governo e organizações civis vem fomentando um processo de trans- formaçãolocal que figura como um modelo de reativação sociocultural para outras comunidades urbanas marginalizadas na Cidade do México. As formas de coprodução que caracterizam essas práticas locais podem servir para avançar na agenda da justiça social e sustenta- bilidade, na medida em que oferecem alternativas às estruturas que reproduzem desigualdade, contribuindo para a construção de outros imaginários desdobrados do fazer-saber local. Esse entendimento expande a definição de serviços urbanos básicos oferecidos pelo governo, para incluir o papel de cidadãos organi- zados no mapeamento e reivindicação de outras demandas, nos processos de decisão e manutenção dos espaços coletivos. Nesse sentido, essas práticas podem informar modos de engajamento mutuamente relevantes à arquitetura e planejamento urbano, e à ação de movimentos e organizações para encontrar formas de ação localizadas, com base nas experiências do lugar. ▸ Marcos Rosa. Urbanismo feito à mão, 2013. ! PARA SABER MAIS, VER: https://www.marcoslrosa.com/Handmade-Urbanism-Urbanismo-feito-a-mao Capítulo 07 : Dimensão Socioeconômica e CulturalGuia de Urbanismo Social 207206 A POTÊNCIA DAS COMUNIDADES FORTALECIDAS A PARTIR DE TECNOLOGIA SOCIAL E CÍVICA 7.5_ Dentre as principais contribuições da TETO Brasil à atuação em assentamentos vulneráveis, como no caso da Favorita, em Curitiba, está seu modelo de intervenção baseado na Mesa de Trabalho, tecnologia social que busca estimular as capacidades comunitá- rias de identidade, organização, participação e trabalho em rede. Ao longo dos mais de 25 anos de experiência da TETO Brasil na América Latina trabalhando lado a lado com as comunidades, per- cebemos como crucial que as primeiras ações e projetos com os territórios sejam ágeis, baratos, simples e com impacto concreto e imediato, pois assim são fortalecidos laços e interesses que se revelam fundamentais na execução de iniciativas futuras de maior complexidade. A construção da confiança se dá majoritariamente pelo contato próximo e contínuo, a divisão das responsabilidades e a entrega do que foi acordado de maneira coletiva. Os projetos desenvolvidos entre a TETO Brasil e as comunidades sempre têm como objetivo final o fortalecimento das capacidades comunitárias: identidade, organização, participação e trabalho em rede. Dentro dos aprendizados da TETO Brasil com as Mesas de Trabalho está a constante disposição para resolução de crises e suporte às comunidades em momentos de dificuldade, tendo em vista a frequência dos ataques e outras dinâmicas, pois a partir do fortalecimento da capacidade de resistência e luta dos territórios está justamente uma das chaves importantes da tecnologia social Mesa de Trabalho. Entende-se que esse fortalecimento de capacidades possibilitará, em seu devido tempo, que os próprios moradores das comunida- des ganhem autonomia para aplicar instrumentos de gestão na execução de projetos comunitários, além de ampliar suas noções de cidadania e capacidade de reivindicação política, em face da violação de seus direitos. A experiência da comunidade Favorita, na capital paranaense, compartilha diferentes características em comum com outros assentamentos populares. O contexto de vulne- rabilidade aglutina diferentes dinâmicas, as quais influenciam mais ou menos no dia a dia das lideranças comunitárias e organizações que trabalham em conjunto com os territórios. Nada disso teria sido possível sem os desafios inerentes a processos comunitários como momentos de baixa participação de moradores, de conflitos com a equipe de voluntariado da TETO Brasil, de dificuldades com o poder público e a iniciativa privada, dentre outros. Entretanto, a robustez da tecnologia social da Mesa de Trabalho permitiu que mesmo diante os desafios o esforço conjunto impactasse de forma concreta as comunidades e, estimulando o desenvolvimento de lideranças e projetos — que fazem a diferença dentro e fora das fronteiras comunitárias. Capítulo 07 : Dimensão Socioeconômica e CulturalGuia de Urbanismo Social 209208 MESA DE TRABALHO: A EXPERIÊNCIA DA COMUNIDADE FAVORITA (CURITIBA, PR) A comunidade Favorita está há dezesseis anos localizada no município de Araucária, na região metropolitana de Curitiba. De acordo com dados da TETO Brasil4 — que trabalha há mais de cinco anos com o território — a comunidade possui cerca de 715 domicílios e aproximadamente 2.145 pessoas moradoras no total5. Com o interesse comunitário validado durante uma assembleia de abertura e alinhado com os objetivos institucionais, em março de 2018 foi estabelecida a Mesa de Trabalho (MdT) na comunidade Favori- ta — composta por moradore(a)s da comunidade e voluntário(a)s para estruturar em conjunto projetos e ações voltados ao fortalecimento das capacidades comunitárias. Em seguida à criação da Mesa de Trabalho, a fase de diagnósticos foi o primeiro passo para que as partes envolvidas, so- bretudo a comunidade, conheçam seus potenciais e desafios, a fim de construir soluções coletivas capazes de responder com o vigor necessário à ampla e escancarada violação de direitos sofrida pelo território. A ação Escutando Comunidades (ECO)6 reuniu informações quantitativas sobre e 4 A TETO Brasil atua há quinze anos no país, mobili- zando voluntários e voluntárias para atuar lado a lado de moradores e moradoras em comunidades precárias de diferentes estados. 5 Estimativas do Relatório Escutando Comunidades (ECO). TETO Brasil, setembro de 2022. A margem de erro é de 3,6% para mais ou para menos. 6 TETO Brasil. Documento Interno — Relatório Final Escutando Comunidades (ECO). Favorita, Araucária, Paraná, 2018. para a comunidade. O questionário possui mais de 190 questões, e pode ser aplicado a todos ou em uma amostra representativa de moradores das comunidades7. Após a aplicação, os dados de 2018 foram sistematizados e devolvidos à comunidade conforme exemplo, juntamente com o mapeamento do território8. Os relatórios quantitativos são fundamentais para compreender aspectos gerais do território e facilitar, na sequência, processos qualitativos que utilizam os dados em debates e deliberações coletivas na Mesa de Trabalho. A TETO aprendeu que só é possível compreender com profundidade determinado dado a partir de espaços ativos de tro- ca entre as pessoas envolvidas. E é justamente em espaços como esse que o processo de diagnóstico qualitativo da TETO Brasil, conhecido como Olhar Participativo, é aplicado e serve para identificar oportunidades de projetos comunitários e ações que dialoguem com a realidade local representada pelos dados e cartografias. Assim, seguindo essas metodologias e analisando os dados levantados em associação com uma leitura da conjuntura realizada pela TETO Brasil e a comunidade, o primeiro projeto deliberado na Mesa de Trabalho foi uma Oficina de Regularização Fundiária e Reintegração de Posse9 — articulada com apoio de organizações e 7 Na ECO de 2018 foi mapeado e considerado um universo amostral de 398 casas, excluídos os imó- veis desocupados constatados nos três dias de co- leta amostral (em número de 25). Dentro do universo amostral foram aplicadas 280 enquetes, das quais 261 completas e 19 recusadas (o equivalente a 70,35% da comunidade). Devido à limitação de tempo estabeleci- da para a execução do evento, 143 casas do universo não foram visitadas. 8 Veja aqui o relatório completo. 9 Oficinas que a TETO Brasil aplica regularmen- te nas comunidades onde atua, conhecidas também como Oficinas de Empoderamento Legal ou Oficina de Direitos. profissionais parceiros, consistindo em dinâmicas, exposições, palestras e diálogos coletivos sobre a situação fundiária da comunidade, o zoneamento, órgãos públicos de apoio ao tema (onde pedir ajuda) e alternativas de organização comunitária. Hoje, a Mesa de Trabalho da Favorita continua atuante no processo de reintegração de posse e desenvolveu