Logo Passei Direto
Buscar
Material
páginas com resultados encontrados.
páginas com resultados encontrados.
left-side-bubbles-backgroundright-side-bubbles-background

Crie sua conta grátis para liberar esse material. 🤩

Já tem uma conta?

Ao continuar, você aceita os Termos de Uso e Política de Privacidade

left-side-bubbles-backgroundright-side-bubbles-background

Crie sua conta grátis para liberar esse material. 🤩

Já tem uma conta?

Ao continuar, você aceita os Termos de Uso e Política de Privacidade

left-side-bubbles-backgroundright-side-bubbles-background

Crie sua conta grátis para liberar esse material. 🤩

Já tem uma conta?

Ao continuar, você aceita os Termos de Uso e Política de Privacidade

left-side-bubbles-backgroundright-side-bubbles-background

Crie sua conta grátis para liberar esse material. 🤩

Já tem uma conta?

Ao continuar, você aceita os Termos de Uso e Política de Privacidade

left-side-bubbles-backgroundright-side-bubbles-background

Crie sua conta grátis para liberar esse material. 🤩

Já tem uma conta?

Ao continuar, você aceita os Termos de Uso e Política de Privacidade

left-side-bubbles-backgroundright-side-bubbles-background

Crie sua conta grátis para liberar esse material. 🤩

Já tem uma conta?

Ao continuar, você aceita os Termos de Uso e Política de Privacidade

left-side-bubbles-backgroundright-side-bubbles-background

Crie sua conta grátis para liberar esse material. 🤩

Já tem uma conta?

Ao continuar, você aceita os Termos de Uso e Política de Privacidade

left-side-bubbles-backgroundright-side-bubbles-background

Crie sua conta grátis para liberar esse material. 🤩

Já tem uma conta?

Ao continuar, você aceita os Termos de Uso e Política de Privacidade

left-side-bubbles-backgroundright-side-bubbles-background

Crie sua conta grátis para liberar esse material. 🤩

Já tem uma conta?

Ao continuar, você aceita os Termos de Uso e Política de Privacidade

left-side-bubbles-backgroundright-side-bubbles-background

Crie sua conta grátis para liberar esse material. 🤩

Já tem uma conta?

Ao continuar, você aceita os Termos de Uso e Política de Privacidade

Prévia do material em texto

Elsa Oliveira Dias
Sobre a confiabilidade
e outros estudos
© by DWW editorial para a edição em língua portuguesa
1ª edição digital: 2011
ISBN: 978-85-62487-09-5 (on line)
Diretores: Elsa Oliveira Dias (elsadias@uol.com.br)
Zeljko Loparic (loparicz@uol.com.br)
Conselho editorial: Ariadne Moraes (ariadne.moraes@uol.com.br)
Caroline Vasconcelos Ribeiro (carolinevasconcelos@hotmail.com)
Conceição A. Serralha (serralhac@hotmail.com)
Eder Soares Santos (edersan@hotmail.com)
Oswaldo Giacoia Junior (ogiacoia@hotmail.com)
Róbson Ramos dos Reis (robsonramosdosreis@gmail.com)
Roseana Moraes Garcia (roseanagarcia@uol.com.br)
Vera Laurentiis (veralaurentiis@terra.com.br)
Coordenação editorial: Meire Cristina Gomes (meire@sbpw.com.br)
Diagramação digital: Microart Com. Editoração Eletrônica Ltda (http://www.microart.com.br).
Capa: Sandra Rosa
Revisão final: Meire Cristina Gomes (meire@sbpw.com.br)
Texto em conformidade com o novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa
Ficha catalográfica elaborada pela Bibliotecária
Eliana Marciela Marquetis – CRB-8 nº 3573
Dias, Elsa Oliveira.
Sobre a confiabilidade e outros estudos [recurso eletrônico] / Elsa Oliveira Dias. – São
Paulo : DWW Editorial, 2011.
v.: digital.
ISBN 978-85-62487-09-5 (on line)
1. Winnicott, D. W. (Donald Woods), 1896-1971. 2. Psicanálise. 3. Psicologia clínica. I. Título.
21. CDD 150.195
157.9
Índice para catálogo sistemático
Psicanálise 150.195
Psicologia clínica 157.9
mailto:elsadias@uol.com.br
mailto:loparicz@uol.com.br
mailto:ariadne.moraes@uol.com.br
mailto:carolinevasconcelos@hotmail.com
mailto:serralhac@hotmail.com
mailto:edersan@hotmail.com
mailto:ogiacoia@hotmail.com
mailto:robsonramosdosreis@gmail.com
mailto:roseanagarcia@uol.com.br
mailto:veralaurentiis@terra.com.br
mailto:meire@sbpw.com.br
http://www.microart.com.br/
mailto:meire@sbpw.com.br
DWW editorial
Rua João Ramalho, 146 – Perdizes
CEP 05008-000 – São Paulo – SP
Tel.: (11) 3676-0635
E-mail: dwweditorial@sociedadewinnicott.com.br
http://www.dwweditorial.com.br
mailto:dwweditorial@sociedadewinnicott.com.br
http://www.dwweditorial.com.br/
Para Zeljko
Sumário 
Prefácio
1. Sobre a confiabilidade: decorrências para a prática clínica
1. Introdução
2. A clínica winnicottiana e a teoria do amadurecimento
3. As necessidades da dependência absoluta
4. A constituição do si-mesmo e a confiabilidade ambiental
5. Ilustração clínica
6. Algumas implicações clínicas da questão da confiabilidade
Referências
2. O “brinquedo divino”: a ilusão em Winnicott
1. Introdução
2. Os sentidos de realidade e o sentimento de real (feeling of
real)
3. A área de ilusão de onipotência
4. A cisão essencial
Referências
3. A regressão à dependência e o uso terapêutico da falha do
analista
1. Introdução
2. O estado de não-integração e a psicose
3. Duas tarefas analíticas: suporte para a não-integração e
aproveitamento da falha do analista na regressão à
dependência
Referências
4. Winnicott: agressividade e teoria do amadurecimento
1. Introdução
2. Pressupostos básicos da concepção winnicottiana sobre a
agressividade
3. Raízes da agressividade
3.1 A agressividade no período de dependência absoluta
3.1.1 A motilidade
3.1.2 A raiz instintual: o bebê incompadecido
3.1.3 A reação às invasões ambientais
4. Desenvolvimento da agressividade na fase de desadaptação
4.1 A destrutividade no anger: a criação da externalidade
e o uso do objeto
5. A conquista da capacidade para o concernimento
Referências
5. Winnicott em Nova Iorque: um exemplo da incomunicabilidade
entre paradigmas
1. Aspectos gerais do debate
2. O teor central do artigo
3. Implicações para a clínica
4. O debate
Referências
6. Da sobrevivência do analista
1. Uma questão de base
2. A tarefa terapêutica
3. O valor da sobrevivência
4. A sobrevivência da mãe
5. A sobrevivência do analista
6. O que permite ao analista sobreviver?
Referências
7. Incorporação e introjeção em Winnicott
1. Introdução
2. Rápida retrospectiva da literatura tradicional acerca dos
conceitos
2.1 Incorporação, introjeção e interiorização em Freud
2.2 Incorporação, introjeção e interiorização em Melanie
Klein
3. A incorporação (ou internalização) e introjeção em
Winnicott
3.1 A incorporação
3.2 A introjeção
3.3 A incorporação, a introjeção e a introjeção mágica
Referências
8. A interpretação na clínica winnicottiana
1. Introdução
2. Pressupostos teóricos para o uso ou não uso da
interpretação na clínica winnicottiana do amadurecimento
3. A interpretação na clínica winnicottiana do
amadurecimento
3.1 A interpretação nos casos de neurose e depressão
reativa
3.2 Alguns aspectos gerais a serem observados
3.3 A interpretação nos casos de psicose
4. Redescrição da tarefa interpretativa
5. Alguns cuidados e/ou cautelas com a tarefa interpretativa
6. Considerações finais
Referências
9. Ferenczi: o affaire, o caso clínico e o analista precursor de
Winnicott
1. Introdução
2. O affaire Ferenczi
3. Convergências entre Ferenczi e Winnicott: críticas à
psicanálise tradicional
4. Pontos não coincidentes: algumas inovações teóricas e
técnicas de Ferenczi
4.1 A confusão de línguas: o trauma e a identificação
com o agressor
4.2 A análise mútua
5. O caso Ferenczi
6. Conclusões
Referências
10. Unabomber: a violência do impotente
1. Introdução
2. O Manifesto “Freedom Club: o futuro da sociedade
tecnológica”
3. A recepção ao Manifesto
4. A edição francesa
5. O que vale o Manifesto de um terrorista ou o que a loucura
tem a nos dizer?
6. Quem é Theodore Kaczynski?
7. Minha hipótese diagnóstica
8. Explicitação das categorias diagnósticas envolvidas
Referências
Prefácio 
O atual lançamento de Elsa Oliveira Dias reúne dez artigos que possuem
em comum um profundo estudo da teoria e da prática psicanalítica de D. W.
Winnicott. Abrangem um período de 18 anos de pesquisa dedicados à busca
de uma apreensão da teoria winnicottiana em toda a sua complexidade, bem
como de suas aplicações clínicas. Nos trabalhos aqui reunidos, fica
evidenciada a procura incansável da autora pela compreensão,
aprofundamento e descrição minuciosa dos conceitos, além da organização
dos resultados obtidos na realização dessa tarefa.
Quando nos interessamos por estudar Winnicott, deparamo-nos com
várias dificuldades; uma delas é o uso que o autor faz da terminologia da
psicanálise clássica com um significado todo particular. Além disso, embora
seja absolutamente coerente com suas formulações teóricas, Winnicott não
apresenta as suas ideias de modo linear. É só pela análise de toda sua obra,
uma das mais extensas da história da psicanálise, que podemos estabelecer
as conexões necessárias e preencher as eventuais lacunas do conjunto do
seu pensamento.
Elsa faz precisamente isso: ela caminha por todos os textos de Winnicott
em busca da riqueza que neles se encontra e, por vezes, se esconde. Seus
achados impressionam pela consistência e clareza com as quais, reunindo
fragmentos esparsos por toda a obra, expõe conceitos fundamentais do
pensamento winnicottiano e reconstitui as partes mais importantes da
mesma. A fluência da autora, seu humor vivo, sua concisão e precisão nas
descrições teóricas e clínicas emprestam vivacidade adicional aos conceitos
expostos, tornando a leitura agradável, e a compreensão teórica mais
disponível.
A riqueza e a meticulosidade dos artigos não nos permitem salientar
algum deles em especial. Todos fazem parte de uma sinfonia, cada qual
trazendo uma contribuição específica e enriquecedora, seja no sentido de
propiciar um aprofundamento na compreensão da teoria do
amadurecimento pessoal, seja no esforço de ilustrar, por meio de casos
clínicos, diferentes elementos dessa teoria, entre eles o de natureza humana
conforme concebido por Winnicott.
O primeiro artigo, “Sobre a confiabilidade: decorrências para a prática
clínica”, trata do modo como a confiabilidade ambiental (mãe
suficientemente boa) participa da constituição da identidade e dos sentidos
de realidade e do mundo. A partir dessa base teórica, o trabalho tece
esclarecimentos sobre os processos deadoecimento – principalmente
relacionados aos distúrbios psicóticos – e os processos terapêuticos
adequados, uma vez que, como mostrou Winnicott, a técnica clássica é
inaplicável no tratamento da esquizofrenia e quadros afins. No ambiente
terapêutico, é a confiabilidade do analista e da situação analítica o que vai
permitir a regressão à dependência. O artigo desenvolve de maneira clara e
minuciosa as etapas que o paciente vive com o analista até que a
confiabilidade permita a ele recorrer à regressão para retomada do processo
de amadurecimento, interrompido pelo colapso causado pelo ambiente
original. Com uma ilustração clínica, a autora mostra a aplicabilidade das
teorias que estão expostas na parte teórica. É um enriquecimento
imprescindível ao texto.
No artigo seguinte, “O ‘brinquedo divino’: a ilusão em Winnicott”, é
estudada a “cisão essencial” comum a todo ser humano como a área de
“solidão essencial” e também as cisões patológicas e suas origens,
evoluções e exacerbações: as patologias que têm a “tarefa de evitar o
imprevisível”. A autora indica ramificações da saúde e da doença nesse
setor, sem deixar de esclarecer a importância da experiência artística. Elsa
aproveita esse tema para mostrar de modo bem esclarecedor qual a função
da análise e do analista com pacientes fronteiriços e esquizoides, a qual
difere muito da função de cuidar de neuróticos. Nesse artigo, podemos
colher fundamentos importantíssimos para nosso trabalho cotidiano.
A tarefa analítica também é discutida em “A regressão à dependência e o
uso terapêutico da falha do analista”. Foi este o primeiro artigo que a autora
escreveu e apresentou sobre Winnicott, em 1993, no II Encontro Latino-
Americano sobre o pensamento de D. W. Winnicott, cujo tema geral era os
aspectos técnicos da obra winnicottiana. O trabalho, extremamente
agradável de ser lido, além de ter conteúdo de peso, versa sobre dois casos
clínicos de Winnicott: o paciente cuja análise é descrita no livro Holding e
interpretação e o caso “A busca do self”, relatado no quarto capítulo de O
brincar e a realidade. Encontra-se aqui uma exposição precisa, sintética e
muito viva das vicissitudes do bebê rumo à integração, com o bebê
dependendo do ambiente facilitador “que reconhece, aceita, reúne e dá
suporte a esse estado de não-integração, sem apressar-lhe o andamento”. A
autora apresenta o problema que se coloca para o analista diante de
pacientes que não contaram com esse ambiente facilitador e que, portanto,
necessitam, na análise, regredir à dependência, o que é um sinal de
esperança. Fica muito bem esclarecido pelo artigo que a necessidade desses
pacientes não é a de recordar, mas viver certas experiências pela primeira
vez.
No artigo “Winnicott: agressividade e teoria do amadurecimento”, a
autora estuda as diferenças fundamentais das conceituações de Winnicott
em relação às de Freud e Klein, no que diz respeito ao conceito de
agressividade. Ela salienta as contribuições de Winnicott nas quais “a
agressividade e a destrutividade humanas estão intrinsecamente
relacionadas à questão da constituição do sentido da realidade externa”. O
artigo, além de profundo e extenso, é sintético, no sentido de nos facilitar a
união de importantes ideias de Winnicott. São desenvolvidas ideias
essenciais, ligando motilidade, agressão, invasões e agressividade,
verdadeiro e falso self, criação da realidade, culpa, responsabilidade e
perseguição, o incompadecimento e outros aspectos característicos do
processo de amadurecimento. Os temas vão sendo expostos e pesquisados
meticulosamente: uso do objeto, capacidade de se preocupar, o amor
incompadecido do bebê, responsabilidade pela destrutividade, tendências à
reparação, sustentação da culpa. A possibilidade de poder contar com a
presença do pai nesses momentos críticos é também ricamente discutida em
suas variantes.
No quinto artigo, “Winnicott em Nova Iorque: um exemplo da
incomunicabilidade entre paradigmas”, a autora apresenta um comentário
crítico sobre o debate ocorrido na Sociedade Psicanalítica de Nova Iorque,
por ocasião da apresentação do trabalho de Winnicott “O uso de um
objeto”. Para isso, Elsa se utiliza da tese de Thomas Kuhn sobre a
“dificuldade de interlocução entre adeptos de paradigmas diferentes da
mesma disciplina”. De modo muito didático, ela expõe a contribuição
original de Winnicott e os pontos em que suas inovações colidiram com o
establishment, bem
como as confusões conceituais que os comentadores fizeram sobre o
trabalho apresentado. Ela nos fornece uma visão das possíveis dificuldades
que as inovações de Winnicott causaram nos comentadores e tece
importantes considerações a respeito das incompreensões e oposições
sofridas por Winnicott em Nova Iorque.
O sexto artigo: “Da sobrevivência do analista” é extremamente rico e
tem algumas observações lapidares da autora, que nos apresenta o modo de
compreender o significado de sobrevivência em Winnicott, principalmente
relacionada às incertezas de quem cuida e, particularmente, da mãe, que
tem que se adaptar às “necessidades variáveis de seu filho”. As falhas são
inevitáveis e precisam ser reconhecidas. Não somente nos coloca diante da
grande diversidade e das dificuldades próprias a cada situação em que a
sobrevivência do analista é imprescindível, mas também nos ajuda, ao
mostrar as principais diretrizes para um trabalho clínico bem-sucedido.
No artigo “Incorporação e introjeção em Winnicott”, a autora explicita, à
luz da teoria do amadurecimento e da distinção entre psique-soma e mente,
o significado desses conceitos e sua utilidade na compreensão das
patologias primitivas, deixando claras as diferenças com a teoria
psicanalítica tradicional. A autora passa em revista os conceitos em Freud,
Klein e Ferenczi, comparando-os meticulosamente em seus significados
particulares e chama a atenção para o fato de que a diferença entre os dois
termos não estava clara nos textos iniciais de Winnicott, pois “ele usava
termos mais consagrados para expressar ideias radicalmente novas”. O
trabalho é uma investigação profunda, completa e coerente das funções de
elaboração imaginativa e do surgimento da mente como um desdobramento
do psique-soma.
Em vários de seus artigos, a autora deixa claro que “a interpretação não é
mais, em Winnicott, o método por excelência que define a prática
analítica”. Particularmente no trabalho “A interpretação na clínica
winnicottiana”, ela se dedica à tarefa de elucidar o conceito; tarefa essa que
a própria autora reconhece difícil, uma vez que Winnicott não usou o termo
interpretação com as qualificações da interpretação padrão. Esse tema é
ricamente discutido e a autora nos mostra a importância do diagnóstico,
principalmente quanto ao uso de interpretações ou de manejo adequados.
As variações clínicas são trazidas e elucidadas. Tudo enriquecido, como
sempre, com exemplos clínicos muito esclarecedores. Elsa parte de uma
função genérica da interpretação, qualificando-a como uma “comunicação”
em nível verbal com “outro ser humano”, que está baseada em outra
“silenciosa e profunda”, a da “confiabilidade”. Ela se baseia, além disso, na
convicção do analista segundo a qual nem tudo é dizível; e de que existe em
cada ser humano uma solidão essencial, que é sagrada e deve ser
preservada. Nesse importante trabalho, a autora mostra sua capacidade de
esclarecer assuntos tão importantes, além de sua generosidade com o leitor,
fazendo tudo isso com dedicação e profundidade, procurando reunir os
fragmentos desse tema que se espalham por toda a obra de Winnicott.
Em “Ferenczi: o affaire, o caso clínico e o analista precursor de
Winnicott”, a autora nos traz suas pesquisas em relação aos dois autores que
ousaram enfrentar o establishment da psicanálise, mostrando que, embora
ambos tenham coincidido em muitos pontos, na crítica à psicanálise
tradicional, eles, entretanto, encaminharam suas teorias e técnicas em
direções diferentes. O artigo é um exercício minucioso que enriquece o
pensamento psicanalítico. Na história da psicanálise, Ferenczi procurouinovar devido à sua inclinação a cuidar de casos que não seriam, naquela
época, susceptíveis de serem analisados; o mesmo sucedeu com Winnicott.
O trabalho de Elsa vai além dessas semelhanças; ela aprofunda o tema,
tratando também dos pontos não coincidentes entre os dois autores,
principalmente em relação aos modelos teóricos de ambos, bem como ao
encaminhamento técnico decorrente. Nas conclusões, a autora mostra as
semelhanças e diferenças entre Ferenczi e Winnicott, tornando bem
evidente que a “revolução winnicottiana”, com sua teoria do
amadurecimento, foi muito mais enriquecedora e efetiva do que a de seu
predecessor, abrindo possibilidades de trabalho até então inexistentes.
Finalmente, em seu último artigo, a autora utiliza a psicopatologia
winnicottiana para tentar entender melhor Ted Kaczynski, o Unabomber,
um homem que praticou atos terroristas durante 18 anos até sua captura. A
história do caso, muito ampla e interessante, é apresentada no artigo
“Unabomber: a violência do impotente”. Os dados todos são
minuciosamente avaliados pela autora, em termos de sua história de vida,
desde a sua infância primitiva, principalmente no que se refere ao episódio
de sua hospitalização aos nove meses de idade e às condições extremamente
desfavoráveis em que foi afastado de sua mãe. A partir desses dados, a
autora se propõe a fazer um exercício diagnóstico, usando a teoria do
amadurecimento de Winnicott, de modo a entender o que levou Ted a se
transformar no Unabomber. Um exemplo é a conexão que a autora
estabelece entre a revolta de Unabomber contra a tecnologia alienante e a
violência que ele sofreu, ainda bebê, relacionada a ter sido “impedido de
ser” e à falta de proteção para poder “viver como um si-mesmo” e “não se
sentir aprisionado e sob ameaça de aniquilamento”. O texto é
profundamente enriquecido pelas ligações que a autora vai acrescentando
através das alternativas muito prováveis que permitem o exercício do
pensar em termos winnicottianos, fazendo, do “caso Unabomber”, um
mergulho em fatos do amadurecimento que podem influir em toda uma
vida.
Como podemos ver, o atual lançamento da autora abarca, nesses dez
artigos, uma ampla gama temática e conceitual, de fundamental importância
para o conhecimento e exercício prático das formulações winnicottianas.
Como pesquisadora, a autora já nos tinha dado demonstração de sua
disponibilidade, clareza e generosidade em seu livro anterior A teoria do
amadurecimento de D. W. Winnicott. Este novo livro de Elsa é um guia
indispensável para todos os que estudam a teoria e a prática winnicottianas.
Orestes Forlenza Neto
1 
Sobre a confiabilidade: decorrências para a
prática clínica1
1. Introdução
Confiabilidade é uma dessas palavras que falam por si. Na compreensão
comum, dizemos de uma pessoa que ela é confiável quando sabemos que é
possível contar com ela; quando acreditamos que fará o que prometeu ou
que não fará mau uso do que lhe dissemos num momento de intimidade; ou
de quem, capaz de reconhecer que alguém se encontra indefeso, não abusa
nem se aproveita de um estado de fragilidade, distração ou incapacidade do
outro. Na teoria winnicottiana, o significado geral da palavra confiabilidade
vai na mesma direção. É preciso, contudo, examinar o sentido específico do
termo no interior do processo de amadurecimento e com relação à tarefa
terapêutica.
Em Winnicott, mais do que uma qualidade desejável em qualquer relação
humana, a confiabilidade é a característica central do ambiente facilitador,
materno e terapêutico, e está intimamente ligada à dependência, cujo
protótipo é, por excelência, o estado de dependência absoluta do bebê com
relação à mãe nos estágios iniciais da vida. O ponto que quero examinar,
neste estudo, é a função essencial da confiabilidade durante esse período
inicial. Nesse momento, a confiabilidade ambiental está diretamente
implicada na constituição da identidade e dos sentidos de realidade, do si-
mesmo e do mundo. É só através da experiência repetida da confiabilidade
ambiental que começam a ser constituídos os fundamentos do sentido de
ser, de ser real e de poder habitar num mundo real. Toda essa questão tem
implicações clínicas importantes, sobretudo no que se refere ao tratamento
de pacientes que usam a situação analítica para regredir à dependência, em
busca de experiências primitivas de ser.
Sabemos, pela teoria do amadurecimento pessoal do indivíduo, que o
estabelecimento mais consistente do si-mesmo, como um eu integrado, só
se dá no estágio em que, se pudesse falar, o bebê diria EU SOU. Mas muitas
conquistas se fazem necessárias até o bebê chegar aí. Em cada uma dessas
etapas, a confiabilidade do ambiente é fundamental e ganha diferentes
relevos.2 Vou limitar-me aqui ao início do processo, ao estágio da primeira
mamada teórica, em que estão sendo constituídas as bases desse processo e,
a propósito desse ponto, apresentarei uma ilustração clínica.
2. A clínica winnicottiana e a teoria do amadurecimento
A clínica winnicottiana está baseada numa teoria dos distúrbios
psíquicos que tem, como fundamento, a teoria do processo de
amadurecimento pessoal do indivíduo. Descrevendo as tarefas e conquistas
que caracterizam os vários estágios do amadurecimento saudável, sobretudo
em suas etapas iniciais, essa teoria norteia o estudioso ou analista na
compreensão da natureza do distúrbio com que se depara e na finalidade
eminentemente clínica de fornecer os cuidados concernentes às
necessidades específicas, e sempre variáveis, do paciente, no decorrer do
processo terapêutico. É explícita a conexão essencial que Winnicott traça
entre a teoria dos distúrbios psíquicos e a teoria do amadurecimento:
“Precisamos chegar a uma teoria do amadurecimento normal para podermos
ser capazes de compreender as doenças e as várias imaturidades, uma vez
que não nos damos por satisfeitos a menos que possamos preveni-las e
curá-las” (Winnicott, 1965vc/1983, p. 65).
Segundo essa teoria, todo ser humano é dotado de uma tendência inata
ao amadurecimento e à integração numa unidade. Mas, embora inata, a
tendência não vai de si, como se bastasse a mera passagem do tempo. Trata-
se de uma tendência e não de uma determinação. Para que a tendência
venha a realizar-se, o bebê depende fundamentalmente da presença de um
ambiente facilitador que forneça cuidados suficientemente bons. Isso é
tanto mais verdadeiro quanto mais primitivo o estágio que consideramos.
Uma das principais contribuições de Winnicott ao estudo da natureza
humana e de suas formas de adoecer é sua minuciosa descrição dos estágios
iniciais do amadurecimento, nos quais estão sendo constituídas as bases da
personalidade e da saúde psíquica. As tarefas e conquistas do bebê, nesse
momento inicial, não são de natureza instintual, mas se referem à
possibilidade de tornar-se real e existir. Se o ambiente falha na sua função
de facilitador no campo dessas conquistas fundamentais, há risco de
psicose, uma vez que, não sendo ainda um eu, o bebê não tem como
defender-se da falha ambiental sem ser aniquilado. A falha ambiental,
ocorrida mais tarde, já não impede a estruturação do indivíduo e acarreta
outro tipo de distúrbio.3 Desse modo, a natureza do distúrbio que aflige o
indivíduo está relacionada com o estágio do amadurecimento em que este
teve origem, e, portanto, com o ponto de imaturidade ou maturidade relativa
em que o indivíduo se encontrava, e a natureza da tarefa com a qual estava
envolvido, por ocasião do fracasso ambiental.
Os bebês que, no início, não recebem cuidados suficientemente bons,
“não conseguem se realizar nem mesmo como bebês. Os genes não são
suficientes” (Winnicott, 1968d/1988, p. 84). Isso significa que o processo
de alcançar a vida pode falhar. Estar vivo e tornar-se real pode jamais vir a
acontecer. Há bebês que, embora fisicamente saudáveis, morrem porque
não encontram, desde o começo, uma base para ser, para continuarem vivos,
sendo. Há outros que não necessariamente morrem: eles “são persuadidos a
alimentar-se e a viver, ainda que a base para esse viver sejadébil ou mesmo
ausente” (1988/1990, p. 127). Nesses casos, o indivíduo cresce e, apesar de
biologicamente vivo e até saudável, não alcança viver ou sentir-se vivo;
permanece imaturo num sentido básico, fundamental. Essa é a questão dos
psicóticos e é por isso que Winnicott afirma que suas dificuldades e
problemas “não fazem parte da vida, mas sim da luta para alcançar a vida”
(1988/1990, p. 100). A paciente com que vou ilustrar este artigo, e cujas
dificuldades apresentam claramente aspectos esquizofrênicos, disse-me:
“Ando por aí sem saber de mim. Jamais tenho certeza da direção que tomo.
Sempre me espanto quando ouço as pessoas dizerem, com toda a segurança,
‘estou indo a tal lugar’. Nunca me senti real, sinto que fui indo, empurrada,
pela vida, mas vejo agora que nada, jamais, fez qualquer sentido”.4
Uma das questões de maior relevância para a clínica winnicottiana
consiste em que, numa análise com qualquer tipo de paciente, à medida que
o trabalho prossegue e a confiabilidade se estabelece, a possibilidade de
uma psicose, ou elementos psicóticos, aparecer nunca pode ser excluída, em
princípio. Para aqueles analistas que dizem não ter nenhum interesse em
casos de psicose, Winnicott oferece a sua experiência como resposta: “Deve
partir-se da base de que minha experiência é a de um psicanalista que, quer
lhe agrade ou não, vê-se envolvido no tratamento de pacientes fronteiriços e
daqueles que talvez imprevistamente tornam-se esquizoides durante o
tratamento” (1989vq/1994, p. 151).
Segundo Winnicott, a teoria concebida originalmente para a
compreensão das neuroses é insuficiente para dar conta da compreensão e
do tratamento das patologias psicóticas ou dos episódios de natureza
psicótica que surgem no tratamento analítico. Ele é incisivo ao afirmar que
“a técnica psicanalítica clássica é inaplicável no tratamento da
esquizofrenia” (1964h/1994, p. 372). Numa neurose pura, se é que tal
formação pode ainda ser suposta, a estrutura da personalidade está intacta e
o indivíduo adoece ao lidar com as dificuldades inerentes à instintua lidade
no quadro das relações interpessoais. Na psicose, no entanto, o
amadurecimento foi paralisado num certo momento dos estágios iniciais,
em função de falhas ambientais traumáticas. A despeito de esses indivíduos
se apresentarem, e de serem, muitas vezes, pessoas capazes de lidar com as
exigências da realidade externa, podendo ser altamente competentes em
suas profissões, chegando inclusive a ter sucesso, suas experiências iniciais
foram tão deficientes ou distorcidas que o analista terá que ser a primeira
pessoa na vida do paciente a fornecer certas coisas que são simples e
essenciais, e que só podem ser oferecidas pelo que se chama ambiente
suficientemente bom. Essas pessoas precisam que lhes seja fornecida a
oportunidade de viverem experiências primitivas, com o ambiente desta vez
atendendo com sucesso, ao invés de fracassar, às necessidades específicas
do momento. No caso das patologias psicóticas, se se quer chegar ao
problema efetivo do paciente, a regressão à dependência é necessária. Essa
afirmação está baseada numa necessidade do paciente e não da teoria, ou do
que seria uma “técnica” winnicottiana.
O que dá suporte à afirmação da necessidade do paciente de regredir à
dependência é o fato de ele achar-se compelido a chegar à “loucura
original”, que nele habita sem ter sido experienciada. A loucura original foi
o fragmento de segundo em que, quando bebê, ele perdeu
momentaneamente o ser em função de uma reação à falha ambiental. Sofreu
uma agonia impensável e, imediatamente após, houve uma organização de
defesas. A defesa operou uma cisão, isolando o “núcleo” espontâneo e
sagrado do si-mesmo para que ele nunca mais voltasse a ser ferido. Ao
invés de prosseguir integrando os vários aspectos do ser, em contato com as
experiências da vida, o si-mesmo verdadeiro torna-se inacessível, enquanto
a outra parte − a falsa identidade, com a qual o indivíduo apresenta-se ao
mundo − fica aprisionada na tarefa de manter a defesa armada e impedir a
repetição da experiência traumática.
Na clínica, o que aparece como doença é esse sistema defensivo,
organizado contra o colapso já ocorrido. Tudo o que o indivíduo faz ou
“escolhe” é orientado, sem que ele o saiba, na direção de evitar qualquer
contato com a área de perigo letal. Tornado invulnerável o núcleo
verdadeiro do si-mesmo, fica isolada a possibilidade de traumatismo, mas,
ao mesmo tempo, a pessoa também perde o contato com suas necessidades
mais básicas e passa a prescindir daquilo de que todo ser humano precisa,
uma relação baseada na confiabilidade e uma comunicação pessoal e
verdadeira. Qualquer proximidade, contudo, traz consigo a ameaça de
invasão e aniquilação do si-mesmo e, desse modo, ele fica incólume a
qualquer ajuda. A vida toda torna-se um esquema defensivo, nada é real,
nenhum encontro tem consistência, não há mais nenhuma espontaneidade e
não há, portanto, lugar para acontecimentos que possam ser vividos como
experiências pessoais, restando apenas o sentimento de que tudo é fútil ou
falso, inclusive o si-mesmo. A vida é vivida como uma permanente cilada
do imprevisível da qual é preciso, sem cessar, se precaver. Atrás de todas as
defesas, há uma permanente ameaça de confusão, de um colapso da falsa
integração.
3. As necessidades da dependência absoluta
É a extrema imaturidade do bebê que torna graves as falhas ambientais
que estão na base das patologias psicóticas. De fato, no mais primitivo dos
estágios iniciais, o da primeira mamada teórica, o bebê é uma mera
continuidade de ser e sua única expectativa é continuar a ser. Ele está não-
integrado, não tem nenhum sentido de tempo ou de espaço e, portanto,
nenhum sentido de realidade, nem do si-mesmo, nem do mundo. Ele só
pode viver nesse estado em função de sua dependência absoluta da mãe e
sem nenhuma consciência, seja de sua própria situação, seja das condições
que lhe permitem viver nesse estado.
Embora a palavra dependência aponte imediatamente para a existência
do outro, o outro não é, nesse momento inicial, nenhum objeto, no sentido
clássico do termo, uma vez que o bebê não está suficientemente
amadurecido para ter ou perceber objetos. A mãe não é um objeto externo,
nem interno, porque o sentido da externalidade, assim como o de mundo
interno, ainda não foi constituído. Do ponto de vista do bebê, diz Winnicott,
“não há, nesse estágio tão primitivo, nenhum fator externo; a mãe é parte da
criança” (1965n/1983, p. 59). E, no entanto, o bebê é imediatamente afetado
pelo tipo de cuidados que recebe. Ou seja, os cuidados maternos participam
intrinsecamente da constituição paulatina do si-mesmo do bebê.
Pela própria tendência inata ao amadurecimento, ou seja, à integração, a
necessidade do bebê é chegar a existir e alcançar o sentimento de ser real e
habitar num mundo real. Para dar início a essas conquistas, ele se vê
envolvido com três tarefas: 1) a temporalização e a espacialização, que deve
dar-se inicialmente num tempo e num espaço subjetivos; 2) o alojamento da
psique no corpo; 3) o início da relação objetal que culminará, mais tarde,
com a criação e o reconhecimento da existência de objetos externos. À
medida que essas tarefas estão sendo realizadas, uma outra conquista está se
processando: a constituição do si-mesmo enquanto identidade. Todas essas
tarefas são interdependentes, portanto, uma não pode ocorrer sem a outra,
mas é possível dizer que a mais básica é a da temporalização e
espacialização do bebê: não há sentido de realidade − nem corpo, nem
mundo, nem si-mesmo − fora de um espaço e de um tempo; não há
indivíduo, se não houver uma memória de si, aquilo que mantém a
identidade em meio às transformações; não há encontro de objetos se não
houver um mundo onde os objetos possam ser encontrados e se não houver
um si-mesmo que possa encontrá-los.
A essas tarefas do bebê, correspondem cuidados maternos específicos: à
integração no espaço e no tempo corresponde o segurar (holding); o
alojamento da psique no corpo é facilitado pelomanuseio (handling), que é
um aspecto especializado do segurar relativo aos cuidados físicos; à relação
objetal pertence, por parte da mãe, a apresentação de objetos (object-
presenting). Ao mesmo tempo em que a mãe facilita, de forma
especializada, cada uma das tarefas do bebê, o conjunto dos cuidados
maternos constitui o ambiente total. Melhor dizendo, o modo de ser desses
cuidados totais configura um mundo para o bebê. A característica central do
primeiro mundo onde o bebê habita é a de ser confiável. A confiabilidade
materna não reside em nenhum fazer específico, mas no “como”, no modo
como ela faz e providencia as coisas que são necessárias ao bebê. Mais do
que qualquer fazer, são os modos de ser da mãe que estão em questão.
O principal traço da confiabilidade reside no fato de a mãe cuidar para
que o bebê tenha preservada a sua continuidade de ser e, para tanto, ela o
introduz e mantém na área de ilusão de onipotência. Isso significa que lhe é
permitido habitar, durante o tempo necessário, num mundo subjetivo no
qual ele exerce um controle mágico, onipotente, ou seja, as experiências
acontecem no momento exato da necessidade do bebê e correspondem ao
seu gesto espontâneo; o seio aparece quando a fome ou a precisão de
encontrar algo aponta e desaparece quando a tensão cessa. Nesse mundo,
nenhuma amostra da realidade externa se intromete, porque a mãe evita
qualquer irrupção imprevisível, e incompreensível para ele, da realidade
(externa para o observador) que o bebê ainda não pode abarcar na sua
experiência. Se ela insiste, por exemplo, em excitá-lo quando ele já se
retirou para descanso; se, ao invés de corresponder ao gesto do bebê, ela
impõe a ele seu próprio gesto, a existência de algo fora de seu âmbito de
onipotência aparece antes que o lactente esteja preparado para tal realidade.
Isso se constitui em intrusão.
No mundo subjetivo, tudo o que chega ao bebê, o seio, um manuseio, um
ruído, deve ter, para ele, o caráter de objeto subjetivo. Esses objetos são de
tal natureza que não aparecem como destacados do si-mesmo do bebê e,
portanto, não o surpreendem, não causam sobressaltos, chegam no
momento exato e são do tamanho exato da sua capacidade para assimilá-los
como parte dele. Sua forma de presença é tal que não denuncia a sua
existência externa e, desse modo, não o obriga a reagir e não interrompe a
sua continuidade de ser. O bebê não tem maturidade suficiente para
suspeitar da existência de algo fora de seu controle.5
Saliento, aqui, a distinção que Winnicott faz entre mundo e objetos. Uma
coisa é o mundo onde o bebê habita; outra, são os objetos que podem ser
encontrados no interior desse mundo. A essa distinção correspondem as
duas formas do cuidado materno: a mãe-objeto e a mãe-ambiente.6 A mãe-
objeto é aquela que é alvo do amor excitado do bebê. O cuidado materno
aqui reside no modo como os objetos são apresentados ao bebê e a
confiabilidade consiste na mãe apresentar o seio de tal maneira que permita
ao bebê ter a experiência de criar o objeto que, na verdade, já estava lá para
ser encontrado. Ao criar o seio, o bebê faz uma pequena experiência de
integração momentânea que é sentida como real. O encontro “realiza” a
necessidade não apenas no sentido da satisfação, mas no de tornar real a
própria necessidade, o impulso, o gesto espontâneo e o algo que encontra,
pois, para o si-mesmo imaturo de um bebê muito pequeno, o que ele sente
como real é essa expressão de si-mesmo (cf. 1993h[1956]/1993, p. 25).
Essa integração momentânea, durante os estados excitados, será descrita por
Winnicott, em seus escritos mais tardios, como as primeiras experiências de
identidade: o bebê é o seio que encontra. Depois da experiência de
integração, o bebê como que se desmancha e volta ao estado relaxado da
não-integração.
Mas, além de ser o objeto a ser encontrado, a mãe é o contexto, o mundo
onde um encontro pode acontecer. O mundo do bebê é feito da totalidade
dos cuidados maternos, incluídos aí os cuidados específicos relativos às três
tarefas. A palavra-chave, aqui, é confiabilidade e esta significa, nesse
primeiro momento, previsibilidade. A mãe-ambiente cuida para que o
mundo do bebê, e ela mesma, se mantenham consistentes, regulares,
monótonos, em uma palavra, previsíveis. Ela cuida para que não haja
alterações na atmosfera do ambiente, e para que o manejo não seja brusco
nem apressado; é ela, também, que preserva imperturbado o isolamento do
bebê quando este se retira para descansar. Ela permanece lá, sustentando a
situação no tempo, aguardando que ele retome uma busca qualquer. Quando
o bebê desperta e faz um gesto de comunicação, lá está ela apresentando um
fragmento de mundo ou um manejo que confirmam, para ele, que o mundo
continua presente e vivo. É a repetição monótona e regular dessa
experiência que vai criando no bebê a capacidade de confiar. Ele começa a
ter um “conhecimento” do ambiente, que não é mental, mas baseado na
familiaridade. Sendo-lhe assegurado a cada vez a existência de algo que
espera, o bebê torna-se gradualmente capaz de reconhecer coisas e predizer
acontecimentos.
A manutenção do mundo do bebê é essencial. Primeiro, porque tanto a
experiência excitada do encontro com o objeto quanto o retorno à não-
integração só são possíveis sobre o fundo de um mundo subjetivo, que pode
ser repetidamente reencontrado, pois está assegurado pela confiabilidade
materna. O bebê só pode retirar-se para descansar porque começa a confiar,
pela repetição da experiência, que o mundo continua vivo e permanece lá
assim que ele precisar. Além disso, para que o gesto espontâneo seja
sentido como real, é preciso que parta de um estado de repouso. O retorno
à não-integração é a condição necessária para que, o que quer que se dê nos
estados excitados, seja sentido como real e favoreça a integração num si-
mesmo sentido como real. Se o que se estabelece é uma impossibilidade de
descanso, o gesto já estará alienado na base.
Vejamos um detalhe da confiabilidade ambiental. Winnicott diz que, no
momento inicial, o bebê está elaborando a capacidade de manter as pessoas
vivas em sua realidade psíquica, no mundo subjetivo. Dada a sua extrema
imaturidade, ele ainda não tem, por exemplo, o sentido do que é “presença”.
Não da presença deste ou daquele objeto, mas da presença enquanto tal. O
bebê não sabe da existência permanente da mãe − e do mundo e das coisas
que o rodeiam −, mas sente os seus efeitos e, vagarosamente criando uma
memória dessa experiência, conta com isso, estabelecendo uma crença na
permanência do mundo e dos objetos. Tudo isso só pode se dar na área de
ilusão de onipotência e, para que a crença na realidade e na consistência da
presença se instaure, é indispensável que ela seja anterior à consciência da
existência externa de objetos e do mundo. A crença na realidade é condição
de possibilidade para a posterior constatação intelectual da existência da
realidade externa. Mas essa constatação jamais substitui a crença básica.
No entanto, há ambientes que deixam o bebê entregue a seus próprios
recursos e, nesses casos, ele não pode construir a necessária crença na
consistência da presença e no fato de o mundo ser encontrável. A criança
pode manter viva por algum tempo a imagem da presença, mas se a
ausência da mãe exceder o que a criança é capaz de sustentar, então essa
imagem se esvanece e começa a morrer. A sensação é de aniquilamento, de
loucura. O apagamento da memória da presença é um dos traumas
específicos que aparece na etiologia das patologias psicóticas. Trata-se de
uma agonia impensável. O que impede essa agonia − no caso, a de perder
todo o sentido de real − é o fato de a mãe assegurar a permanência do
mundo e tecer permanentemente a presença, apresentando continuamente o
mundo ao bebê, em pequenas porções, no momento do gesto espontâneo.
Winnicott relata o caso de uma paciente que só podia manter viva a
imagem do analista se fosse atendida três vezes por semana. Duas vezes
ainda era aceitável, mas uma vez por semana não era suficiente. A imagem
esmaecia. “É tãogrande a sua dor de ver todos os sentimentos e todo o
significado se esvaindo que ela me diz que não vale a pena, que é melhor
morrer” (1968b/1989, p. 115). Do mesmo modo, a paciente que ilustrará
este estudo se perguntava se valia a pena todo aquele esforço da análise.
Dizia que, assim que saía da sala, tudo se desmanchava. Não ficava nada.
Era imediatamente arrastada para fora de si, para o mundo. Não conseguia
mais se lembrar de mim, não conseguia refazer o rosto, a figura. Tudo lhe
parecia longínquo, irreal, como se não existisse.
4. A constituição do si-mesmo e a confiabilidade ambiental
A questão que agora se põe é o modo como a confiabilidade ambiental
auxilia na constituição da realidade do si-mesmo, ou seja, passa a pertencer
ao indivíduo como uma característica do si-mesmo. Esse ponto é
claramente elucidado por Winnicott num texto sobre a comunicação pré-
verbal entre mãe e bebê. Ele diz:
A capacidade que a mãe tem de ir ao encontro das necessidades em constante processo de
mutação e amadurecimento deste bebê permite que sua trajetória de vida seja relativamente
contínua; permite-lhe, também, vivenciar situações de não-integração ou relaxadas, a partir da
confiança (confidence) que deposita na realidade do fato de o segurarem bem, juntamente com
fases reiteradas de integração [nos momentos de excitação e encontro do objeto] que faz parte da
tendência inata ao crescimento. O bebê passa, então, com muita facilidade da integração ao
conforto descontraído da não-integração e o acúmulo dessas experiên cias torna-se um padrão e
forma a base para as expectativas do bebê. Ele passa a acreditar [believe] na confiabilidade
[reliability] dos processos internos que levam à integração em uma unidade. (1968d/1988, p.
86)
Para a questão em pauta, o ponto principal é o seguinte: o bebê passa a
acreditar na confiabilidade dos processos internos que levam à integração
em uma unidade. Através da confiabilidade ambiental, fazendo inúmeras
vezes o percurso que vai da não-integração à integração, e vice-versa,
estabelece-se a confiança na vigência da sua própria tendência à integração.
O bebê passa a acreditar que a integração voltará a seu tempo e não precisa
preocupar-se com isso. A natureza faz seu próprio trabalho. Note-se: o bebê
depende inteiramente da confiabilidade da mãe, mas não sabe disso: nem da
existência do ambiente e muito menos do sucesso dos cuidados adaptativos.
Para um bebê bem cuidado, não é a mãe que funciona bem, que é confiável,
senão é o vigor de sua tendência à integração que fica acima de qualquer
suspeita.7
Winnicott continua: “À medida que o amadurecimento prossegue e o
bebê adquire um interior e um exterior, a confiabilidade do meio ambiente
passa então a ser uma crença, uma introjeção baseada na experiência de
confiabilidade (humana, e não mecanicamente perfeita)” (1968d/1988, p.
87).
O senso do real − do si-mesmo e do mundo − está diretamente ligado à
confiabilidade e ao estabelecimento de uma crença; uma crença que não é
nisto ou naquilo, mas em que algo é encontrável, permanece, tem vida
própria, não precisa ser produzido. Winnicott mostra como a crença em... é
uma base inaparente que, no entanto, dá sustentação às possibilidades
humanas e está presente no mais corriqueiro cotidiano. O real encontrado
através dessa crença é uma espécie de fundamento que, no entanto, não tem
fundamento concreto em si mesmo. É um real que se apoia numa ilusão.
Essa crença básica só pode chegar a pertencer naturalmente ao indivíduo
quando atos silenciosos de confiabilidade humana estabelecem uma
comunicação muito antes que a fala signifique algo. Através dos cuidados, a
mãe mostra ao bebê que é confiável, não por ser uma máquina, mas por
saber, a cada momento, o que ele necessita. O bebê, diz Winnicott, “não
ouve ou registra a comunicação, mas apenas os efeitos da confiabilidade”
(1968d/1988, p. 87). A confiabilidade materna é um traço inaparente e
essencial que se faz sentir em todos os cuidados e os reúne em um mundo
para o bebê, sem jamais falar de si mesma: é silenciosa. E, para Winnicott,
ou bem a comunicação é silenciosa e a confiabilidade está garantida, ou
bem é traumática, produzindo a experiência de uma angústia impensável ou
primitiva (cf. 1970b/1994, p. 201).
A confiabilidade se assenta na comunicação silenciosa, em primeiro
lugar, porque os cuidados maternos não são propriamente deliberados, mas
provêm “de um nível mais fundo, e não necessariamente daquela parte da
mente onde há palavras para tudo” (1968f[1967]/1988, p. 53). Em cada
caso, diz Winnicott, a questão consiste em alguém encontrar alguém em
nível profundo, e para isto não há palavras. Além disso, se a mãe tem a
necessidade de demonstrar e garantir o reconhecimento do bebê quanto à
sua própria confiabilidade, esta falhará exatamente aí: ela estará apelando
para uma compreensão para a qual o bebê não tem nenhuma maturidade e
não terá confiança suficiente no processo de amadurecimento em curso do
bebê.8 Não temos nada a dizer ao nosso paciente para que ele compreenda a
nós e às nossas razões. Temos apenas que possibilitar a ele viver a
experiência.
Se o ambiente falha em prover o bebê de confiança na realidade de si-
mesmo e do mundo, o indivíduo não alcança a capacidade de acreditar em..,
de confiar. O resultado é uma desconfiança básica, uma inconsistência que
torna tudo irreal. O indivíduo não pode entregar-se aos acontecimentos da
vida e fica todo o tempo tomando conta do ambiente, à espreita de alguma
invasão ou tomando conta do frágil si-mesmo, sempre passível de ser
perdido, aniquilado. É exatamente a propósito desse ponto que gostaria de
apresentar um fragmento clínico.
5. Ilustração clínica
Esta ilustração clínica visa a mostrar de que modo a ausência da crença
básica impede a constituição do sentido de realidade do si-mesmo e do
mundo. Visa também a refletir acerca do papel do analista nesses casos. No
fundo, trata-se de dar conteúdo à afirmação de Winnicott de que, em certos
casos, só nos cabe esperar e esperar e esperar. Para dar a dimensão da
confiabilidade que é necessária ao trabalho terapêutico, Winnicott afirma
que, no trabalho analítico, cuidamos de ser confiáveis num sentido que só
podemos sustentar no espaço estrito de nosso trabalho profissional.
A paciente a que vou me referir jamais havia alcançado saúde psíquica
suficiente para padecer das vicissitudes referentes às relações interpessoais.
Suas dificuldades eram de tipo psicótico, mais precisamente na linha das
esquizofrenias. Apresentava problemas com a constituição da sua
identidade e evidências claras de que carregava consigo a memória latente
de agonias impensáveis. Toda a sua vida fora orientada no sentido de evitar
a repetição do colapso. Em S., podia-se observar o efeito devastador do fato
de um bebê não ter sido introduzido ou mantido por tempo suficiente na
área de ilusão de onipotência e não ter tido preservado o mundo subjetivo.
Ela cresceu sem qualquer capacidade para a ilusão, para a crença de que a
realidade é encontrável e de que é possível uma comunicação humana e
verdadeira. Ou essa capacidade era tão frágil que facilmente se quebrava no
menor contato com uma realidade externa que se impusesse como tal.
S., uma mulher jovem, bonita e bem-vestida, veio me procurar dizendo
que há muito tempo pensava fazer uma terapia, mas nunca tomara a
iniciativa e que, agora, estava ali em função de um encontro casual com
uma amiga que falara de mim. Contou algo sobre a amiga e, em meio a
outras observações genéricas, como uma informação a mais, disse que sua
mãe acabara de falecer. A terapia seria útil, pois havia problemas práticos a
serem resolvidos e ela se sentia desorientada. Era a mais velha dos três
irmãos, e apenas ela havia se disposto a cuidar da mãe em seus últimos
meses. Não sabia dizer o que sentia. Tivera pena da mãe e gostaria de ter-
lhe podido aliviar mais os sofrimentos, mas não podia dizer que estava
arrasada. Na verdade, surpreendia-se, às vezes, dizendo a si mesma que
perdera a mãe e que isso era grave. Masa situa ção toda ficava envolta em
um sentimento de estranheza. “O que ela devia sentir?”, perguntava-se.
S. falava de modo pausado, sem nenhuma entonação na voz, como que
recitando um monólogo. Notava-se que estava exaurida e talvez fosse esse
o único sinal de alguma realidade nela. De resto, era uma presença que se
desfazia; ela estava lá e não estava; o olhar, vago, era atravessado por uma
espécie de desalento. Lembro-me de que, quando saiu, nas duas primeiras
vezes, tive a estranha impressão de não saber sobre o que havíamos falado.
Mostrava-se passiva e desorientada com relação à vida e às pessoas. Nunca
havia tido relações estáveis que a marcassem, nem campo específico de
interesse ou profissão. Tinha apenas duas amigas antigas, do tempo de
colégio, algumas amizades ocasionais e dedicava-se, também
ocasionalmente, a atividades artesanais.
Durante algumas semanas, medindo as palavras, S. trouxe questões
relacionadas à partilha dos bens, ao seu receio de não fazer o mais acertado,
às dúvidas sobre o que fazer com as coisas da mãe e o descaso do pai e dos
irmãos. Não confiava em ninguém a esse respeito e não sabia por onde
começar. Ficava claro que, ao mesmo tempo em que queria, ou sabia que
devia, tomar posse do que lhe era de direito, tinha a tendência a desfazer-se
de tudo o que viera da sua mãe. Acompanhei-a com atenção e permaneci no
âmbito que ela abrira. A situação toda e sua evidente imaturidade exigiam
manejo: ponderamos juntas desde minúcias – havia objetos a serem
divididos, alguns preciosos, outros que lembravam a infância – até imóveis
dos quais ela nem sabia da existência. Dei algumas orientações precisas:
instei-a, por exemplo, a que tivesse a ajuda especializada de um advogado.
Disse-lhe também que seus bens deviam ser postos a salvo e guardados para
quando ela soubesse como usá-los, de modo a que lhe favorecessem a vida.
Mas, por ora, era preciso começar a viver. Assinalei que ela estava apenas
começando a análise e que era preciso tempo para que as coisas clareassem;
ela parecia saber muito pouco ainda sobre si mesma, sobre o que queria, e
qualquer decisão sobre o que fazer com a herança seria prematura. Embora
fizesse aqui e ali algumas observações como essa, não aludi ao que me
parecia o seu estado de total desorientação na vida nem ao fato, óbvio pra
mim, de que estava aprisionada numa armação defensiva, vivendo através
de uma identidade artificialmente construída. Pareceu-me necessário que
ela se sentisse acompanhada, no nível em que lhe era possível, antes de eu
tentar uma comunicação com algo dela mesma que ainda não estava
disponível.
Houve, então, um feriado mais longo. Quando retomamos o trabalho,
não fez nenhuma alusão ao intervalo e, para minha surpresa, começou a
narrar exatamente as mesmas coisas que me dissera nas primeiras sessões,
como se nunca tivesse estado ali. Fui completando seu relato, mencionando
nomes, mostrando-lhe que guardara, sim, o que dissera. Espantava-se de eu
saber essas coisas. Apontei-lhe então, simplesmente, como uma
constatação, e não como se se tratasse de uma desconsideração, o fato de
ela haver como que anulado os nossos encontros. Isso talvez mostrasse,
disse-lhe, que era muito difícil para ela, provavelmente em função do que já
vivera e sofrera, acreditar que alguém pudesse mantê-la viva dentro de si,
guardando as suas coisas, assim como também lhe era difícil manter algo
vivo dentro de si. Olhou-me com profunda estranheza. Disse-lhe que,
apesar de se dispor a segurar tudo, inclusive a si mesma, ela necessitava,
mais do que podia imaginar, sentir-se acompanhada e protegida. Havia
apagado o que tínhamos vivido pois já não valia; e não valia porque, depois
de ter tido uma pequena amostra de ser vista e ouvida, vira-se de novo,
repentinamente, sozinha e desamparada, como tantas outras vezes em sua
vida. E agora precisava, como sempre, começar novamente, sem nenhuma
história.
S. ficou calada muito tempo, olhando para mim sem me ver. Depois,
lentamente e em voz muito baixa, como quem toca em algo intocável, disse
que sim, que fora sempre assim, que não aguentava mais, que nunca pudera
contar com ninguém, que só contava consigo mesma, mas nem isso era
possível, porque não sabia quem era nem o que queria. Só se sentia viva
enquanto fazia algo prático e concreto. Todo o resto, dizia ela, era uma
“imensa escuridão” e um permanente “sentimento de irrealidade”. Nada
fazia sentido e ela passou toda a vida como uma sonâmbula. Tentava
sempre “desaparecer”, tornar-se invisível, evaporar. Fazia o que lhe
mandavam, exatamente para não aparecer, e, quando a situação tornava-se
insuportável, escondia-se no quarto, fingindo dormir. No entanto, havia um
sobressalto impossível de apaziguar e ela tinha que permanecer horas a fio
muito quieta para conseguir aplacar o tumulto interno que a assolava.
Nas sessões subsequentes, continuou a falar-me com um fio de voz,
quase inaudível. Sem me dar conta, comecei, também eu, a falar-lhe em voz
muito baixa e isso perdurou durante algum tempo ao longo da análise.
(Anos mais tarde, nós duas chegamos a rir do fato de que nossa sessão era
quase toda sussurrada, como se estivéssemos no quarto de um bebê.) Disse
que a sua única lembrança consistente era a de sentir medo. Lembrava-se
dos pesadelos recorrentes da meninice, do medo dos vãos escuros da sua
casa da infância. Essa casa, agora ela percebia, retroativamente, parecia um
cenário: havia sido toda montada por decoradores, sem nenhuma
pessoalidade e era muito escura, pois as pesadas cortinas dificultavam a
entrada da luz. Era essa a atmosfera de que sua mãe gostava. No último ano
do colegial, teve uma crise de pânico que durou alguns meses e ela não sabe
como sobreviveu. Seu único pensamento era como evitar ver-se assolada
pelo medo agudo que a atravessava e a deixava paralisada. Naquela época,
não teve coragem de falar a ninguém sobre isso, mas colava nas amigas e
fazia tudo para não voltar cedo para sua casa.
Contou que sua mãe fora uma pessoa muito inteligente, mas muito
perturbada; era uma mulher caótica, disruptiva e violenta. Se se irritasse
durante uma refeição, podia lançar a faca a esmo sobre quem quer que
fosse. Casara-se porque a vida estava tediosa e pelo fato de que o rapaz,
bem colocado, resolveria a situação de insolvência financeira da família.
Era inteiramente desorganizada; não tinha horário para coisa alguma, comia
ou dormia nas horas mais extravagantes. Tinha alguns momentos bons, em
que ria muito e parecia uma menina. Nessas horas, podia ser afetuosa, mas,
no geral, andava pela casa, absorta, como uma sombra, e não entrava em
contato com nada em torno dela. Era impossível saber o que pensava ou
sentia. Às vezes, passava tardes inteiras em seu quarto, olhando para o teto
e arrancando fios do cabelo. Não suportava ruídos e, às vezes, quando S.
brincava com sua irmã, ela descia intempestivamente do quarto aos gritos,
xingando-as e mandando-as calar. Se estava presente, durante as refeições,
envenenava tudo com sua ironia e amargor. O pai era um homem de
negócios que ganhou muito dinheiro com transações escusas. Fazia piada de
tudo e jamais conversou com os filhos sobre o que interessasse a estes.
Nunca falou aos filhos sobre a mãe; ria, sem graça, das cenas de violência
da mulher e se retirava deixando-os à mercê da tempestade. Esse pai tinha,
no entanto, algo de meigo e materno, e S. teve sempre muita pena dele.
Num momento bem mais adiantado da análise e de seu amadurecimento,
acabou por sentir muita raiva dele por não a ter ajudado a entender as
impossibilidades da mãe e não a ter protegido das suas irrupções.
Durante aproximadamente os primeiros seis meses, na primeira sessão
após o fim de semana, S. voltava formal, distante, e falava comigo como se
tivesse acabado de me conhecer. Após algum tempo, eu lhe dizia: “Percebo
que a cada vez que nos afastamos você teme chegar aqui e não me
encontrar tal como me conhece. Desse modo, primeiro investiga o
território”. Ela sorria e assentia com a cabeça. Às vezes, eu não comentava
nada; apenascontinuava a falar com ela em voz muito baixa. Depois de uns
dez minutos, ela relaxava e voltava ao que já tínhamos. Em alguns desses
momentos formais, ela trazia perguntas sobre mim: se eu tinha filhos, em
qual escola havia estudado, se gostava do meu trabalho etc. Respondia às
suas indagações de forma direta e breve. Certa vez acrescentei: “Acho que
você está tentando saber se sou capaz de vê-la e compreender o seu
sofrimento. Quer ter alguns dados para ver se consegue aumentar a
confiança. Posso perfeitamente lhe dar essas informações, mas a confiança
de que você necessita não pode ser produzida por dados; é totalmente
pessoal e crescerá ou não. Não há nada que possamos fazer nesse sentido, a
não ser criar as condições para que ela venha a acontecer”. S. compreendeu
e sorriu. Qualquer outra coisa seria uma falsa solução e, além disso, um
apelo à sua mente já por demais saturada.
No que S. ia relatando, mostrava-se a extrema fragilidade do eu, que não
chegou a constituir-se como realidade integrada e autônoma. Sua vida era
uma perpétua defesa contra agonias impensáveis, uma das quais era vir a
perder todo o sentido do real. Não tendo sido provida da ilusão básica, não
tinha onde se apoiar no que se refere à vigência de suas experiências ou à
permanência de suas possibilidades. De fato, tudo nela se desmanchava e
estava sempre em sobressalto pela possibilidade de desfazer-se, de tornar-se
irreal, sem consistência. Surpreendia-se, muitas vezes, por exemplo, com o
fato de as pessoas a verem e reconhecerem. Certo dia, precisava voltar a
uma loja para trocar uma peça que ela comprara no dia anterior. Foi tomada
de grande sobressalto e hesitou muito. Temia que o dono simplesmente não
a visse ou então que ele, mesmo vendo-a, não a reconhecesse e achasse
absurdo o seu pedido. Lembrei-me da cliente de Winnicott cuja vida era um
permanente esforço para estabelecer-se como uma identidade e que disse a
ele: “Não seria horrível se a criança olhasse para o espelho e não visse
nada?” (1967c/1975, p. 160).9 O sentimento de não ter presença visível
aparecia também no consultório: à vezes, ela ficava em pé, na sala de
espera, com medo que eu não reparasse nela. Contou-me também sobre
algo que denominou de timidez: numa situação social qualquer, e mesmo
conversando com alguém, ficava imediatamente sem recursos, aquém do
outro, não tinha nada a dizer, via-se inadequada, malvestida, desengonçada,
exposta. Fomos percebendo que a mera presença do outro a arrastava para
fora e a dominava. Ela era tragada por esse olhar externo e já não sabia de
si. Precisava isolar-se para resgatar algo do sentimento de si mesma.
Estava sempre lutando também, sem consciência disso, com o temor de
perder todo o senso de orientação. Algumas vezes, ao sair de casa ou do
consultório, tinha o sentimento de que jamais conseguiria voltar, nunca
mais acharia de novo o caminho, tantas ruas a distinguir, tantas casas, como
se todas as referências se apagassem. Sentia-se muitas vezes esgotada,
como alguém que tenta manter algo escrito sobre a areia. Foi percebendo
que não tinha propriamente uma história. Apenas alguns flashes aqui e ali,
quase tudo coisas que lhe foram contadas, mas das quais não tinha memória
da experiência. Pegava, às vezes, fotos da infância e adolescência, e ia
tentando montar de novo a sequência, ordenando acontecimentos, primeiro
isto, depois aquilo, mas sempre se perdia pelo caminho. Falava também do
sentimento de pobreza que a acompanhava. Objetivamente, fora educada
em bons colégios, vestia-se com o que havia de melhor e frequentara clubes
e lugares caros. Mesmo na época, comprava, às vezes, uma roupa de grife,
mas, assim que a vestia, a roupa perdia toda a graça, ficava “caipira”. Foi
mais ou menos nessa ocasião que trouxe um sonho impressionante: ela
estava deitada e dava-se de mamar em seu próprio peito. Nesse dia, falou de
sua indigência. Eu lhe disse que entendia, pois a pobreza, numa criança, era
não ser vista e cuidada pela mãe, pela família, e que nenhuma riqueza
concreta podia suprir essa falta. Ela chorou muito, pela primeira vez.
Num dado momento, era claro que uma regressão à dependência
começava a se estabelecer. Ela já não empinava o corpo, como no início, e
começou a andar com muito cuidado, como se temesse desfazer-se. Ao
entrar para a sessão, olhava nos meus olhos, profundamente, com grande
inquietação. Perscrutava se eu continuava ali, se podia recebê-la, se a
reconhecia. Precisava sobretudo saber, nos meus olhos, quem era ela em
mim. Passou também a reparar minuciosamente no ambiente e a apontar
quando algo estava diferente ou “fora do lugar”. Queixava-se que havia
muito a dizer e não ia dar tempo, que os intervalos entre as sessões eram
muito longos e, em especial, que, no fim de semana, eu lhe parecia
longínqua e irreal, como um sonho que se esvai. Nesses momentos, perdia o
contato consigo mesma; qualquer coisa a fazer era fútil e sem sentido, e sua
casa parecia-lhe inteiramente vazia. Tínhamos duas sessões na semana e eu
lhe propus mais uma.
S. se assustou com o estado de dependência que começava a instalar-se.
Precisava imensamente disso, estava compelida a entregar-se para vivê-lo,
mas o medo era brutal. Vivera toda a vida sustentando a si mesma e era
terrível, agora, abandonar, mesmo que parcialmente, a organização
defensiva na qual se apoiava. Sua desconfiança, que ela tentava manter em
níveis de sensatez, envolvia a questão crucial de saber, e mais do que saber,
de acreditar, se havia alguma coisa real na vida, se existia alguém,
consistente, real e confiável, capaz de dar sustentação ao que desse e viesse.
Essa descrença na possibilidade de uma comunicação verdadeira e
persistente, e em que alguém pudesse acompanhá-la ao lugar do temor e
sofrimento básicos, tornaram-se sobretudo agudas em relação a mim, uma
vez que eu era, agora, ao mesmo tempo, o lugar da proteção possível e o
lugar de maior ameaça. Se, pela primeira vez em sua vida, como em geral
ocorre com esses pacientes, ela tivesse cuidados suficientemente bons ou
mesmo se a minha adaptação às suas necessidades fosse apenas melhor do
que a que recebeu no início, de qualquer modo uma falha minha no âmbito
da confiabilidade seria pior do que as falhas originais, uma vez que permiti
o retorno da esperança (cf. 1989b/1994, p. 129). O que S. temia, mais que
tudo, era que o trauma inicial se repetisse; ou seja, que, de novo, ela
esperasse por uma comunicação que não viria. Temia sentir-se outra vez um
estorvo tendo que, de novo, ser um nada; que eu, repentinamente, não
reconhecesse a intensidade de seu sofrimento, ou não pudesse tolerá-lo.
Escondida e temendo em alto grau não ser encontrada, S. precisava que
alguém, capaz de uma comunicação silenciosa e altamente confiável,
testemunhasse a existência de um verdadeiro si-mesmo escondido. O
perigo, de um lado, era que eu atravessasse seu muro artificial de proteção e
tentasse entrar em comunicação com um eu que, como diz Winnicott, ainda
não estava lá para ser encontrado. De outro, era que seu muro artificial de
proteção fosse tratado como real. Isso só faria crescer seu sentimento de
futilidade e desespero.
Eu, ciente da extrema precariedade de um si-mesmo que nem sequer
havia nascido, empenhei-me muito para que nada de imprevisível a
atingisse. Cuidei de estar sempre a mesma, o que não era difícil, pois ela me
punha nesse lugar: seu modo de presença era tal que me solicitava
naturalmente para o cuidado. Atentei ainda para que nada na sala fosse
alterado. Mudar um horário nem pensar e, obviamente, nenhum atraso.
S. lutou muito contra a regressão e o advento de qualquer esperança. De
fato, como já mencionado, a situação de dependência é arriscada e dolorosa
para o paciente; traz uma sensação de precariedade que é inerente ao
depender, embora não sejam essas as características normais do
amadurecimento original. O risco, diz Winnicott,
não é somente que o analista possa morrer como também que ele se torne subitamente incapaz
de acreditar na realidade e intensidade da angústiaprimitiva do paciente, do medo de
desintegração ou de aniquilamento ou de queda contínua para sempre. (1965vd/1983, p. 216)
Uma regressão a estados infantis na situação clínica, esclarece ele, só
adquire caráter terapêutico se os intensos sofrimentos associados à
dependência puderem ser suportados. É preciso, portanto, ter em mente, diz
Winnicott, que “as toscas habilidades do psicoterapeuta, se o compararmos
com a mãe real, faz com que seja inconcebível − mesmo na terapia mais
cuidadosamente controlada − uma regressão à dependência vivida com
prazer” (1988/1990, p. 179).
À medida que uma maior confiança foi substituindo o estado de alerta, a
dependência foi se instalando. Eu fui me tornando, para S., objeto subjetivo.
Era apenas na relação comigo, não destacada como pessoa separada, mas
confundida com o ambiente, que ela podia fazer a experiência da realidade
da presença e não se sentir arrastada pela minha presença externa, que só
exigiria alerta e submissão. A partir desse lugar, era às vezes possível
comunicar-me com o bebê assustado que ela trazia, para a análise, quando
podia. Essa possibilidade nunca era total, uma vez que sua desconfiança a
fazia lembrar-se de minha presença concreta e a impelia, imediatamente, a
prevenir invasões. Mais ou menos nessa ocasião, começaram a aparecer
dois tipos de sonhos recorrentes, que eram, a meu ver, a elaboração, tornada
agora possível, de situações primitivas traumáticas. Em uns, ela estava
andando e, repentinamente, o chão acabava. “Não era um buraco”, disse,
“era o chão mesmo que acabava e não havia mais nada, apenas névoa”. Em
outros sonhos, ela estava perdida e se esgueirava por beiradas estreitas e
íngremes ou então por caminhos labirínticos, escuros e úmidos; alguns a
levavam a cavernas pré-históricas ou lugares inóspitos, e ela tinha que
atravessar rios, sempre em busca da sua casa, que não encontrava ou, às
vezes, de sua cama que havia sumido. Pensei inicialmente tratar-se de
sonhos de nascimento, numa espécie de elaboração do que teria sido um
parto difícil ou demorado; contudo, não conseguimos nenhum dado sobre
seu nascimento e, além disso, o sentimento que prevalecia nos sonhos não
era aperto, angústia ou claustrofobia, mas, apontando para agonias
impensáveis, o perigo sempre eminente de cair, de despencar.
A regressão foi seguindo seu próprio curso e, quando atingiu um cume,
teve que ser vivida no que tinha de mais primitivo. Uma angústia
persecutória começou a manifestar-se com toda a intensidade.
Paradoxalmente, é apenas numa situação de confiabilidade ambiental,
sentida como tal pelo paciente, que ele pode viver a desconfiança e a
persecutoriedade de forma cabal. Ele precisa chegar à “loucura original” e
precisa estar seguro de que o analista saberá entender e sobreviverá à sua
“transferência delirante”.10 S. deitava-se no divã e, a partir de um certo
momento do processo, qualquer movimento meu na poltrona, ou uma
respiração mais funda, fazia com que ela se virasse para ver o que tinha
acontecido. “O que foi, está cansada? Já se encheu? Quer que eu vá
embora?” Às vezes, ficava em silêncio e, depois de algum tempo,
assustava-se e dizia: “O que você está resmungando?”. Eu tentava falar o
menos possível, fazer intervenções breves, tomando cuidado com o tom da
voz, porque qualquer modulação diferente a assustava. Mesmo assim, o que
quer que eu dissesse tornava-se uma perseguição e era prontamente
recusada. Também não podia ficar em silêncio, pois ela imaginava que eu
havia me ausentado, chegando um dia a acusar-me de eu haver saído da sala
enquanto ela falava. Houve um momento em que o estado de alerta e
sobressalto foi tal que se sentou bruscamente no divã e olhou-me fixamente
até que a sessão terminasse. Sentia que eu podia machucá-la a qualquer
momento e precisava verificar se eu continuava lá, se era a mesma, se havia
qualquer vestígio de mudança em meus olhos. Convidei-a para sentar-se, de
vez, na poltrona, e prosseguimos assim durante o resto da análise.11
Tudo isso se amainou com o tempo, mas era difícil para ela abandonar a
desesperança, pela qual se protegia da decepção, e dispor-se à proximidade.
Numa certa ocasião, houve um silêncio prolongado. De repente, ela pôs-se
a falar e o que dizia não fazia nenhum sentido. Deixei-a falar e, quando
silenciou novamente, perguntei-lhe o que é que quisera me dizer. Ela baixou
o rosto e disse: “Não era nada mesmo. Falei qualquer coisa porque havia
muita intimidade no silêncio. Falei para afastar você, para pôr uma distância
entre nós”. Numa outra vez, repetiu-se o mesmo fenômeno do começo da
análise: ela mencionou uma amiga pelo nome e acrescentou, como que para
me esclarecer: “aquela que eu conheci de criança, com quem estive esta
semana, aquela...”. Ocorre que ela havia falado dessa amiga durante toda a
sessão anterior, mas não podia alimentar a ideia de que eu ainda me
lembrasse. Disse-lhe, novamente, que era temeroso, para ela, abrigar a
esperança de que eu guardasse o que ela me contara e se garantia contra a
decepção antecipando todas as informações, exatamente como fizera logo
no início da terapia. O problema é que, assim, ela ficava sem saber que era
possível, sim, que eu guardasse suas coisas e as conservasse comigo. O
medo talvez fosse exatamente esse: constatar que eu guardava e que podia
haver esperança. Nesse dia, ela chorou muito sentida, dizendo que há muito
tempo reparava que eu me recordava até de sonhos dos quais ela mesma já
havia se esquecido e que tinha muito medo, muito, de acreditar nisso.
Certo dia, trouxe um sonho: ela andava por uma rua e viu uma menina
bem pretinha, sozinha num canto, toda suja de barro e doce misturados,
quase indistinguível no meio de cacarecos e lixo. Passou e pensou: que
nojo. Depois parou, lembrou que essa era a expressão preferida de sua mãe,
voltou e pegou a menina com toda a energia e disse: o que ela precisa é de
um bom banho, de alguém que cuide dela e a deixe ser uma menina. Riu e
disse: “Agora sei do que preciso: de alguém que cuide de mim e me ponha
para viver”. E, então, rindo, disse, numa fala já modulada pela análise:
“Bem, eu já sei como você diria: que eu preciso de alguém que me veja
através de toda a minha inexistência e que continue me vendo mesmo
quando eu mesma me perco de mim. E que, quando eu olho, está ali do
mesmo jeito, sem se transformar”. Sem saber, ela me dava, tal como
Winnicott, o roteiro central de meu lugar de analista:
O vislumbre do bebê e da criança vendo o eu (si-mesmo) no rosto da mãe e, posteriormente,
num espelho, proporcionam um modo de olhar a análise e a tarefa terapêutica. Psicoterapia não é
fazer interpretações argutas e apropriadas; em geral, trata-se de devolver ao paciente, a longo
prazo, aquilo que o paciente traz. É um derivado complexo do rosto que reflete o que há para ser
visto. Essa é a forma pela qual me apraz pensar em meu trabalho, tendo em mente que, se eu o
fizer suficientemente bem, o paciente descobrirá seu próprio si-mesmo e será capaz de existir e
sentir-se real. (1967c/1975, p. 161)
Um dia, passados bem uns quatro anos de análise, disse-me: “Eu ainda,
às vezes, perco tudo. Nos fins de semana, o tempo se alarga, torna-se
infinito e tudo fica irreal. Falando com você volto a mim. Mas nem sempre
consigo. Imediatamente uma dúvida atravessa tudo e já não sei nada nem o
que estou fazendo aqui. Se algo me tumultua, como no outro dia em que
falei com meu pai, penso que nem adianta vir. Fica apenas o tumulto e não
consigo nenhuma comunicação”. Respondi: “Sim, posso entender. Mas,
vindo, uma outra coisa importante acontece. Você fica sabendo que, mesmo
que não consiga contato, as condições para o contato estão asseguradas, seu
lugar está aqui, guardado, quer você possa usá-lo ou não”.12
S. necessitou, sim, de modo absoluto, que eu a acompanhasse por todos
os avanços e regressões de um processo de amadurecimento reiniciado, sem
me assustar ou me sentir pessoalmente atingida pela sua “loucura”,
sobrevivendo e cuidando de mim mesma e do setting de modo a deixar-lhe
livres e protegidosos caminhos de constituição de si mesma de que
necessitava. Era essencial que eu entendesse o que estava se passando, e
permitisse que o amadurecimento tivesse seu curso, de modo a não apressar
o processo com uma “urgência psiquiátrica” de curá-la (cf.
1989vk[1965]/1994, p. 99), tendo sempre em mente que sua “loucura” não
era tanto a enfermidade, mas o primeiro passo na direção da saúde. O fato
de eu acompanhá-la de perto em seus estados de ânimo, de não interpretar
cada coisa, o que seria falar sobre ela, mas não com ela, de sobreviver ao
seu desânimo e à desconfiança foi da maior importância. Ela precisava de
alguém que a deixasse acontecer como pessoa; que permanecesse ali com a
mesma atitude quando a loucura, primeiro, e a raiva, depois, tomassem
conta da cena. Mas, simultaneamente, uma outra coisa essencial, silenciosa,
estava ocorrendo e sendo constituída, e isto diz respeito à mãe-ambiente: a
crença num mundo previsível, sempre passível de ser reencontrado.
Depois de muito caminho andado e num momento em que S., mais
integrada num eu, vivia agora um outro tipo de persecutoriedade − ou seja,
sofria com os perigos que acompanham a integração num eu −, cometi uma
falha de modo que, durante algum tempo, tivemos que retornar a padrões
antigos de dependência. Ela havia conhecido um rapaz por quem, pela
primeira vez na vida, se interessou vivamente, tecendo inclusive projetos de
futuro, e que parecia gostar muito dela. Vários dados induziam a se pensar
que ele era bastante estável emocionalmente; a relação ia indo bem e tudo
levava a que pudesse haver um compromisso mais sério. Num dado
momento, ele precisou viajar a serviço, para fora do país, por uns dez dias,
e convidou-a. Ela mostrou-se entusiasmada e, inadvertidamente, também
eu, entusiasmada com a possibilidade que se abria, manifestei aprovação. A
viagem aconteceu e foi boa em muitos sentidos. Ela, no entanto, sentiu-se
muito pequena e despreparada, perdendo o contato consigo mesma. Voltou
desfeita, magoada primeiro e furiosa em seguida por eu tê-la deixado ir,
sobrestimando a sua capacidade maturacional. “Você queria livrar-se de
mim; estava louca para livrar-se de mim”, dizia ela.
É difícil para o analista, depois de ter se aplicado muito num caso,
cometer um erro que causa sofrimento ao paciente e põe várias conquistas a
perder. Mesmo sabendo que, sobretudo em pacientes com esse tipo de
problemática, são exatamente as falhas do analista os momentos de maior
valia terapêutica, ainda assim se pensa que o erro talvez pudesse ter sido
evitado. Tive algum consolo quando li, numa carta de Winnicott, que ele
reconhecia ter a tendência a “comportar-se mal” nesse estágio em que a
dependência se torna relativa. “É tão grande o alívio que sobrevém”, diz
ele, “quando não é mais preciso ser tão artificialmente adaptativo, bem para
além do que se faria na vida particular, que começo a morder a isca que o
paciente oferece e me vejo falando de assuntos gerais e agindo como se o
paciente houvesse repentinamente ficado bom” (1987b/1990, p. 158).
Não me defendi em nenhum momento e disse-lhe que, de fato, eu devia
ter percebido que ela ainda era muito pequena para sair assim pelo mundo.
Disse-lhe também que eu entendia que estivesse tão furiosa comigo, pois
esse abandono que tinha sentido a remetia a todos os abandonos que foram
vividos ao longo da vida, mas que só agora, estando eu ali para escutar, ela
podia queixar-se e ter muita raiva de todos eles.
6. Algumas implicações clínicas da questão da confiabilidade
Como o protótipo do analista, na clínica winnicottiana, é a mãe
suficientemente boa, será útil examinarmos o que a faz confiável. A
confiabilidade materna, nos estágios de dependência absoluta, está
relacionada a dois atributos conjugados da mãe: 1) a sua capacidade de,
identificando-se com o bebê ou a criança, adaptar-se de modo absoluto às
suas necessidades e 2) a capacidade de permanecer adulta e poder devotar-
se ao bebê. A confiabilidade da mãe depende de que essas duas capacidades
operem juntas.13
A capacidade da mãe de identificar-se com o bebê deve-se ao estado
natural regredido de “preocupação materna primária”, que lhe permite
saber, a cada momento, o que o bebê necessita. Essa capacidade não tem
nada a ver com inteligência nem advém de algum conhecimento obtido em
cursos ou livros: vem da sua saúde ou relativa saúde emocional, de sua
própria experiência de ter sido um bebê, de ter sido cuidada de algum
modo, de estar viva e ter imaginação. Se a mãe é do tipo que teme a
regressão e não é capaz de pôr-se no lugar do bebê, ela tenderá a cuidar dele
por via de conhecimentos intelectualmente adquiridos. Ela poderá prover o
bebê de algumas coisas básicas, mas não entrará em comunicação com ele e
não saberá o que de fato ele necessita num dado momento. Ela cuidará de
seu bebê “como se cuida de bebês” e essa generalização tornará seu cuidado
impessoal. Esse é tipicamente o caso da mãe que faz, mas não é.
Ora, o mesmo vale para o analista. Sendo humano, ele já sentiu na pele o
que é desamparo e o que é ser cuidado; é, sobretudo, a sua sensibilidade
pessoal que o guia na compreensão das necessidades do paciente. O
analista, contudo, não tem o benefício natural da preocupação materna
primária além de não ter, como a mãe, vinte e quatro horas por dia para
estar e conhecer o bebê. Pela sua tarefa, pelas condições especiais e
especializadas que pode oferecer, talvez consiga fazer melhor do que fez a
própria mãe do paciente, mas é preciso alguma humildade para saber, com
Winnicott, que as habilidades do analista são toscas se comparadas com as
da mãe suficientemente boa. Além disso, embora seja o paciente quem
constantemente ensina o analista, que é capaz de aprender, sobre suas
próprias necessidades, este, assinala Winnicott, “deveria conhecer
teoricamente os aspectos referentes aos traços mais profundos e centrais da
personalidade, pois, do contrário, não poderá reconhecer as novas
exigências impostas à sua compreensão e técnica, e fazer-lhes frente”
(1971va[1966]/1994, p. 134). Ademais, quando lidamos com pacientes que
regridem à dependência e estes, em busca da cura, enlouquecem cada vez
mais, é preciso alguma compreensão do que está se passando para poder
suportar as tensões que são pertinentes a essa tarefa. Por tudo isso, em seu
trabalho especializado, o analista deve poder contar com a orientação que
lhe vem da teoria do amadurecimento pessoal. Mas, seguindo a crítica que
Winnicott faz ao uso da interpretação na psicanálise tradicional, a teoria não
deve ser um instrumento que se interpõe entre o analista e o paciente; ela
não existe para ser aplicada, mas tão somente para iluminar o fenômeno e
ajudar a vê-lo. É exemplar o modo como Winnicott descreve a participação
da teoria em seu trabalho clínico: “A única companhia que tenho, ao
explorar o território desconhecido de um novo caso, é a teoria que levo
comigo e que se tem tornado parte de mim e em relação à qual sequer
tenho que pensar de maneira deliberada” (1971b/1984, p. 6; os itálicos são
meus).
Além de pôr-se na pele do bebê, é preciso também que a mãe permaneça
adulta para poder cuidar dele de forma confiável. O bebê precisa de uma
mãe capaz de acreditar que ele é um processo de amadurecimento em curso
e que, portanto, não é ela, nem o seu controle da situação, que darão vida a
ele. Sua importância limita-se à função de facilitadora de um processo de
amadurecimento que pertence ao bebê. A mãe é mera parteira da natureza
humana. Seu cuidado é confiável na medida em que, usando toda a sua
pessoalidade para cuidar do bebê, não põe a sua pessoa, enquanto
subjetividade, no centro da cena.
Pela capacidade de ultrapassar suas próprias necessidades, os cuidados
maternos são orientados pelas necessidades do bebê e não pelas
necessidades da mãe, mesmo que se trate da necessidade de ser boa, ou
muito boa. Muitas vezes, o cuidado que a mãe fornece excede a necessidade
do bebê e este se vê compelido a ter aquelas necessidades que a mãe quer
suprir. Quem cuida de quem? − essa é aquestão. Se a mãe é confiável, ela:
1) previne fatos imprevisíveis: cuida para que o ambiente permaneça
regular, monótono, consistente, previsível enfim, permanecendo
consistentemente ela mesma, segurando a situação no tempo, diante das
inúmeras variações do bebê. 2) Abdica, portanto, de ser criativa quando isto
interfere na regularidade dos cuidados e contenta-se em ser monótona e
repetitiva deixando que o bebê exerça a criatividade. É claro que é preciso
um bocado de criatividade cotidiana para proteger o bebê do imprevisível,
mas essa criatividade deve ser exercida nos “bastidores” e não deve, de
modo algum, sobrepor-se ou antecipar-se à do bebê. 3) Lida com este como
o ser humano que ele já é, mas tendo sempre em mente que ele ainda não é
um eu. O bebê não sabe nada acerca da existência da mãe, do mundo ou
dele mesmo e, no entanto, é imediatamente afetado por qualquer variação
do ambiente. 4) Jamais deixa de ter presente a extrema imaturidade do bebê
e seu estado de dependência absoluta; de modo que não requisita do bebê
mais do que ele pode dar em termos de amadurecimento; não apela, por
exemplo, para sua compreensão em termos mentais. Ao contrário, ela o vê
sempre como um ser que está permanentemente à beira de sofrer uma
agonia impensável. 5) Sabe que o bebê não tem nenhuma consciência da
existência do ambiente e muito menos do sucesso da adaptação da mãe, de
modo que ela não tem nenhuma expectativa quanto ao reconhecimento do
trabalho que ele dá. 6) Não apressa o processo do bebê e não impede o
retorno a estágios já ultrapassados quando essa é a sua necessidade.
É muito difícil, sobretudo em pacientes adultos, mantermos firme a ideia
de que há, ali, um bebê a ser cuidado. É verdade que o paciente só é capaz
de regredir à dependência porque alguma estrutura de eu permite-lhe tolerar
a regressão. Há, sem dúvida, uma parte um pouco mais desenvolvida junto
à parte doente de sua personalidade. Mas, adverte Winnicott, a porção
enferma é tão enferma quanto possível e é com a parte enferma que o
analista trata. O analista não pode, de modo algum, descuidar da adaptação
às necessidades pelo fato de saber que o paciente tem uma parte mais sadia.
Quando digo a S. que não há nada a fazer em termos de aumentar a
confiança a não ser criar as condições para que a confiança brote, estou
dizendo a mim mesma que a única coisa a ser feita é, silenciosamente, dia
após dia, estar lá, no horário previsto, “viva e respirando”, com
aproximadamente a mesma disponibilidade, ou seja, sem que nenhuma
mudança no ambiente ou em meu estado de ânimo a surpreenda, obrigando-
a a reagir. Não basta exercer bem a função de mãe-objeto e tentar
acompanhá-la em suas idas e vindas. O que de principal tento propiciar é
aquilo que silenciosamente permanece e se mantém: um mundo, um lugar
confiável e seguro onde o bebê possa crescer.
Creio que é a essa questão que Winnicott se refere quando diz que, em
certos casos, só nos resta esperar, esperar e esperar. Naturalmente, há uma
qualidade nessa espera e uma delas é não tentar “curar” o paciente. Se for
esse o intuito do analista, o paciente saberá imediatamente que tememos o
seu estado e não o seguramos do modo como ele está. O inadmis sível, em
termos da confiabilidade, é não trair o pacto silencioso da dependência:
permitimos ao paciente que ele mostre a sua imaturidade e, de repente,
flagramos a dependência ao modo de uma infantilidade a ser superada. Ou,
no momento em que o bebê do paciente aparece para mostrar a dor e o
medo, falamos com o adulto que ali está a nossa frente, apontando para
dados da realidade. O nome disso, para o paciente, é traição.
Mesmo que o analista cuide para que a confiabilidade ambiental não
falhe, ele falhará, sim, pelo mero fato de sua humanidade. A confiabilidade
é humana e não mecanicamente perfeita. A perfeição pertence ao domínio
das máquinas. Confiabilidade não significa ser imune ao erro; ao contrário,
exatamente porque falível, a pessoa humana pode então ser confiável. O
fato é que mães e analistas permanentemente falham em sua adaptação às
necessidades do bebê ou paciente. O problema não é esse. O problema
consiste no reconhecimento e atitude do ambiente diante da falha. Na
verdade, o bebê ou paciente precisa de nossos erros (desde que,
naturalmente, não sejam erros grosseiros que envolvam decepções
insuperáveis). Por que nossos erros podem ser úteis no contexto de análise?
Em primeiro lugar porque, quando as falhas são ocasionais e não chegam
a constituir um padrão e a mãe ou analista estão genuinamente preocupados
com o indivíduo, elas são corrigidas e, nesse caso, a par do trauma relativo,
algo de muito importante acontece. As falhas às quais se dá uma solução
imediata acabam sendo comunicadas e é desse modo que o bebê ou
paciente acaba tomando conhecimento do sucesso da adaptação. Segundo
Winnicott, a primeira organização do si-mesmo é silenciosa e “deriva da
experiência de ameaças de aniquilação que não chegam a se cumprir, e das
quais, repetidamente, o bebê se recupera” (1958n/2000, pp. 403-404).
A essa formulação (cf. 1993h[1956]/1993) vem juntar-se um outro
argumento, mais tardio, relativo à teoria das psicoses e das agonias
impensáveis que habitam o indivíduo. As agonias impensáveis não podem
pertencer ao passado a menos que possam ser experienciadas pela primeira
vez no presente. Essa é a razão que fundamenta a necessidade de regressão
à dependência, de um retorno a um momento anterior ao colapso ou, como
diz Winnicott, anterior à perda da esperança. A necessidade específica do
paciente é que, desta vez, a falha aconteça − e ela sempre acontece −, mas
possa agora ser experienciada, pela primeira vez, e percebida, com a ajuda
do analista, como falha do ambiente. Isso só pode acontecer em condições
especiais como as de um setting analítico no qual, em virtude de se ter
construído um alto grau de confiabilidade, o paciente se permite, com o
suporte do analista, a loucura que só é permitida aos bebês.14
Podem se passar anos até que o paciente se aproprie da confiabilidade
ambiental como sendo um traço do si-mesmo; até que se instaure, nele, o
sentimento de previsibilidade; até que ele se torne seguro da realidade e da
consistência do si-mesmo, ao mesmo tempo em que se torna capaz de
confiar na existência e permanência do mundo.
Às vezes, a espera produz alguns resultados:
– “Saio daqui mais forte, mas, depois, é como uma criança que vai longe,
não vê mais a mãe e precisa voltar para saber quem é e onde está. Esse
processo é muito lento e as dúvidas voltam sempre. Mas eu agora, às vezes,
quando sinto tudo mais real, falo com você, no meu quarto. Fico ensaiando
de ligar pra você e te dizer umas verdades, dizer que não venho mais, que
não preciso de você, que você está velha, ultrapassada e é boba. Faço isso
na imaginação, como um treino. Depois, passa a raiva e eu acho graça. É
como criança. Não pensei que seria capaz de contar isso a você. Às vezes,
chego a pensar que vai ter um dia em que vou ficar muito brava mesmo e
sou capaz de te xingar na cara.”
– “Sim, eu sei. Quando você crescer mais um pouquinho, ficará cada vez
mais exigente e brava comigo. E reclamará das coisas que não tem. Mas
creio que é assim mesmo, é desse modo que uma criança comunica à mãe o
que lhe faz falta. Mas isso depende, naturalmente, de a criança acreditar que
a mãe a escutará, que não ficará exasperada e não a humilhará por isso.”
– “Sim, tudo depende da crença e eu sei que ainda não tenho crença. No
domingo, eu estava completamente desorientada e fiquei um tempo no meu
quarto, sentada e dizia: Aquela tonta pensa que me engana. Se soubesse de
fato o que eu passo, não me largaria aqui, deste jeito. (ri) Exatamente como
a criança que espera a mãe.”
– “Claro, exatamente como criança. Você pode, agora, se queixar de um
modo que nunca pôde antes, quando era de fato uma criança. Você nunca
pôde dizer a sua mãe o quanto precisava dela.”
– “Ah, não, ela não escutaria e, se escutasse, não suportaria. Ela nunca
nos viu. Tinha uma amargura que tomavaconta de tudo e nós, os filhos,
éramos um peso a mais em sua vida.”
– “Para não ser um peso, um estorvo, para escapar do horror de não ser
vista, você fez tudo para não existir, para tornar-se um nada, algo
inconsistente que mal aparece. Tentou ainda fazer-se autossuficiente para
nunca mais precisar de alguém. Como não havia esperança nenhuma de que
a escutassem, você perdeu muito cedo contato com sua necessidade. É
como se não precisasse de nada.”
– “É, mas agora pode ser que eu precise cada vez mais. Pode ser que eu
fique cada vez mais exigente.”
Referências15
Dias, E. O. (1997). A regressão à dependência e o uso terapêutico da falha
do analista. In J. Outeiral & S. Abadi (Orgs.), Donald Winnicott na
América Latina. Rio de Janeiro: Revinter.
Pessanha, J. G. (1999). Sabedoria do nunca. São Paulo: Ateliê Editorial.
Winnicott, D. W. (1975). O brincar e a realidade. Rio de Janeiro: Imago.
(Trabalho original publicado em 1971a. Título original: Playing and
Reality)
Winnicott, D. W. (1975). O papel de espelho da mãe e da família no
desenvolvimento infantil. In D. Winnicott (1975/1971a), O brincar e a
realidade. Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1967c)
Winnicott, D. W. (1983). O ambiente e os processos de maturação. Porto
Alegre: Artes Médicas. (Trabalho original publicado em 1965b. Título
original: The Maturational Processes and the Facilitating Environment)
Winnicott, D. W. (1983). A capacidade para estar só. In D. Winnicott
(1983/1965b), O ambiente e os processos de maturação. Porto Alegre:
Artes Médicas. (Trabalho original publicado em 1958g)
Winnicott, D. W. (1983). Distúrbios psiquiátricos e processos de maturação
infantil. In D. Winnicott (1983/1965b), O ambiente e os processos de
maturação. Porto Alegre: Artes Médicas. (Trabalho original publicado em
1965vd)
Winnicott, D. W. (1983). A integração do ego no desenvolvimento da
criança. In D. Winnicott (1983/1965b), O ambiente e os processos de
maturação. Porto Alegre: Artes Médicas. (Trabalho original publicado em
1965n)
Winnicott, D. W. (1983). Provisão para a criança na saúde e na crise. In D.
Winnicott (1983/1965b), O ambiente e os processos de maturação. Porto
Alegre: Artes Médicas. (Trabalho original publicado em 1965vc)
Winnicott, D. W. (1984). Consultas terapêuticas em psiquiatria infantil. Rio
de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1971b. Título original:
Therapeutic Consultations in Child Psychiatry)
Winnicott, D. W. (1987). Privação e delinquência. São Paulo: Martins
Fontes. (Trabalho original publicado em 1984a. Título original:
Deprivation and Delinquency)
Winnicott, D. W. (1987). Variedades de psicoterapia. In D. Winnicott
(1987/1984a), Privação e delinquência. São Paulo: Martins Fontes.
(Trabalho original publicado em 1984i[1961])
Winnicott, D. W. (1988). O ambiente saudável na infância. In D. Winnicott
(1988/1987a), Os bebês e suas mães. São Paulo: Martins Fontes.
(Trabalho original publicado em 1968f[1967])
Winnicott, D. W. (1988). Os bebês e suas mães. São Paulo: Martins Fontes.
(Trabalho original publicado em 1987a. Título original: Babies and Their
Mothers)
Winnicott, D. W. (1988). A comunicação entre o bebê e a mãe e entre a mãe
e o bebê: convergências e divergências. In D. Winnicott (1988/1987a), Os
bebês e suas mães. São Paulo: Martins Fontes. (Trabalho original
publicado em 1968d)
Winnicott, D. W. (1989). O aprendizado infantil. In D. Winnicott
(1989/1986b), Tudo começa em casa. São Paulo: Martins Fontes.
(Trabalho original publicado em 1968b)
Winnicott, D. W. (1990). O gesto espontâneo. São Paulo: Martins Fontes.
(Trabalho original publicado em 1987b. Título original: Selected Letters
of D. W. Winnicott)
Winnicott, D. W. (1990). Natureza humana. Rio de Janeiro: Imago.
(Trabalho original publicado em 1988. Título original: Human Nature)
Winnicott, D. W. (1993). Conversando com os pais. São Paulo: Martins
Fontes. (Trabalho original publicado em 1993a. Título original: Talking to
Parents)
Winnicott, D. W. (1993). O que sabemos a respeito de bebês que chupam
pano?. In D. Winnicott(1993/1993a), Conversando com os pais. São
Paulo: Martins Fontes. (Trabalho original publicado em 1993h[1956])
Winnicott, D. W. (1994). Ausência e presença de um sentimento de culpa
ilustradas em duas pacientes. In D. Winnicott (1994/1989a), Explorações
psicanalíticas. Porto Alegre: Artes Médicas. (Trabalho original publicado
em 1989b)
Winnicott, D. W. (1994). Um caso de psiquiatria infantil que ilustra a reação
retardada à perda. In D. Winnicott (1994/1989a), Explorações
psicanalíticas. Porto Alegre: Artes Médicas. (Trabalho original publicado
em 1965f)
Winnicott, D. W. (1994). O conceito de trauma em relação ao
desenvolvimento do indivíduo dentro da família. In D. Winnicott
(1994/1989a), Explorações psicanalíticas. Porto Alegre: Artes Médicas.
(Trabalho original publicado em 1989d[1965])
Winnicott, D. W. (1994). Os elementos masculinos e femininos cindidos
encontrados em homens e mulheres. In D. Winnicott (1994/1989a),
Explorações psicanalíticas. Porto Alegre: Artes Médicas. (Trabalho
original publicado em 1971va[1966])
Winnicott, D. W. (1994). A experiência mãe-bebê de mutualidade. In D.
Winnicott (1994/1989a), Explorações psicanalíticas. Porto Alegre: Artes
Médicas. (Trabalho original publicado em 1970b)
Winnicott, D. W. (1994). Explorações psicanalíticas. Porto Alegre: Artes
Médicas. (Trabalho original publicado em 1989a. Título original:
Psychoanalytic Explorations)
Winnicott, D. W. (1994). O pensar e a formação de símbolos. In D.
Winnicott (1994/1989a), Explorações psicanalíticas. Porto Alegre: Artes
Médicas. (Trabalho original publicado em 1989vq)
Winnicott, D. W. (1994). A psicologia da loucura: uma contribuição da
psicanálise. In D. Winnicott (1994/1989a), Explorações psicanalíticas.
Porto Alegre: Artes Médicas. (Trabalho original publicado em
1989vk[1965])
Winnicott, D. W. (1994). Resenha de Memories, Dreams, Reflections (C. J.
Jung). In D. Winnicott (1994/1989a), Explorações psicanalíticas. Porto
Alegre: Artes Médicas. (Trabalho original publicado em 1964h)
Winnicott, D. W. (2000). Formas clínicas da transferência. In D. Winnicott
(2000/1958a), Textos selecionados: da pediatria à psicanálise. Rio de
Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1956a)
Winnicott, D. W. (2000). A mente e sua relação com o psique-soma. In D.
Winnicott (2000/1958a), Textos selecionados: da pediatria à psicanálise.
Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1954a[1949]
Winnicott, D. W. (2000). Preocupação materna primária. In D. Winnicott
(2000/1958a), Textos selecionados: da pediatria à psicanálise. Rio de
Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1958n)
Winnicott, D. W. (2000). Textos selecionados: da pediatria à psicanálise
(Davy Bogomoletz, trad.). Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original
publicado em 1958a. Título original: Collected Papers: Through
Paediatrics to Psychoanalysis)
1. Este texto, originalmente publicado na revista Natureza humana, vol. 1, n. 2, 1999, foi corrigido e
revisado para a presente edição.
2 . No estágio em que o bebê passa da dependência absoluta para a dependência relativa da mãe, por
exemplo, a questão da confiabilidade ambiental torna-se crucial. Caberá à mãe falhar ao bebê
sem, no entanto, falhar na confiabilidade. Esse tema, da maior importância, não será tratado neste
artigo.
3 . Isso não significa que, mesmo tendo tido um bom começo, o indivíduo, mais tarde, sendo exposto
a uma situação traumática, para além da sua capacidade de suportá-la naquele momento, não
possa desenvolver uma psicose. De qualquer modo, esta será diferente das psicoses que se
desenvolvem nos momentos iniciais da vida, anteriores à integração num eu unitário. Uma coisa é
não ter alcançado uma conquista do amadurecimento. Outra coisa é perdê-la.
4 . Circunscrevendo a realidade ao princípio de realidade, oposto ao princípio do prazer, a psicanálise
tradicional não chegou a considerar a necessidade que todo indivíduo tem de sentir-se real
(feeling of real)e de alcançar o sentido de realidade (sense of real). Em Winnicott, o primeiro
sentido de realidade é o do mundo subjetivo; é apenas quando este pode ser experimentado, no
início da vida, que o sentido da externalidade do mundo compartilhado pode, mais tarde, fornecer
ao indivíduo o senso de ser real. Sentir-se real implica ser capaz de relacionar-se com o mundo
objetivamente percebido sem perder a criatividade originária. Desse modo, mesmo o sentido da
realidade objetivamente percebida difere, em parte, do que se chama, na psicanálise freudiana, de
princípio de realidade. Em várias passagens de sua obra, Winnicott assinala essa crucial diferença.
Num texto escrito em1961, ele diz que, enquanto o sentido do real depende de a espontaneidade e
a criatividade originária serem preservadas na área de ilusão de onipotência, o princípio de
realidade é o “arqui-inimigo da espontaneidade, criatividade e do sentido de Real”
(1984i[1961]/1987, p. 241).
5 . Parece-me plausível pensar que, quando M. Klein fala de objetos maus e persecutórios, e Bion
refere-se aos objetos bizarros, eles estão se referindo ao fenômeno que corresponde, em
Winnicott, à irrupção de uma amostra da realidade externa para cujo sentido o bebê ainda não está
preparado. Na teoria winnicottiana, o que traumatiza o bebê não é algo que possa ser valorado
como bom ou mau no sentido configurado por Klein, por exemplo. Uma amamentação
instintualmente satisfatória pode violar e traumatizar o bebê, se for realizada de forma impessoal
ou se for extemporânea à sua necessidade. Manifestações primitivas de persecutoriedade, por
precoces que sejam, não podem ser simplesmente debitadas na conta de uma destrutividade inata,
relativa à pulsão de morte, ou à lei de talião, sem levar em conta o comportamento do ambiente;
elas podem ocorrer se o mundo e os objetos não foram apresentados ao bebê de modo a que este
pudesse criá-los, invadindo o seu mundo antes de ele estar preparado para abarcar o sentido de
externalidade.
6 . Haver “duas” mães não se deve a que a mãe tenha sido cindida pela destrutividade do bebê. O que
ocorre é que ela ainda não foi, nos primeiros estágios, integrada numa só.
7 . Um bebê que não sente segurança ambiental toma para si, por via de um funcionamento mental
precocemente ativado, os encargos que são da natureza e da mãe. Cf. Winnicott
1954a[1949]/2000. Num texto de 1958, Winnicott diz que, embora muitas vezes, a falta de tensão
possa produzir ansiedade, “a integração da personalidade no sentido do tempo permite esperar
pelo retorno natural da tensão do id” (1958g/1983, p. 33).
8 . Contando a sua experiência terapêutica com um garoto de 15 anos (que havia perdido o pai aos 11
anos e reagia tardiamente à perda), Winnicott diz que, na primeira entrevista, muito trabalho
significativo foi realizado através do jogo de rabiscos. Depois de duas horas, afirma Winnicott,
“nós dois já tínhamos bastante. Provavelmente, ambos sabíamos que muito ficava por fazer, mas
nenhum disse nada ao outro. Isto teve o efeito de Patrick adquirir confiança em mim [...]”
(1965f/1994, p. 271; os itálicos são meus). Ou seja, se a comunicação havia sido realizada, não
era preciso desmerecê-la, garantindo tudo em palavras.
9 . O mesmo acontece com o personagem Z, do conto “Deslocamento” de Juliano Pessanha.
Perambulando, informe, num aquém da existência, ele diz , num certo momento, que “sua
esperança era a de atingir uma tal realidade que não apenas um pedestre se desviasse do seu corpo
na agitação de uma calçada mas que alguém o sentisse mesmo quando ele estivesse parado dentro
de alguma sala” (Pessanha, 1999, p. 25).
10 . SegundoWinnicott, foi Margaret Little, analista da Sociedade Britânica de Psicanálise e sua
paciente, quem lhe sugeriu essa expressão. Ele a usa para nomear o modo pelo qual o paciente
organiza a situação na relação analítica de maneira a chegar, ao menos de modo aproximado, à
“loucura original”. Cf. Winnicott, 1989vk[1965]/1994, p. 98 e 1989d[1965]/1994, p. 106.
11. Se há confiabilidade, os pacientes insistem até que o analista compreenda a sua necessidade.
Levei tempo para entender que era essencial para S. olhar-me diretamente nos olhos, ver-se e ser
vista por mim. Depois disso, sobretudo com pacientes que necessitam regredir à dependência,
nunca mais usei o divã, pois me dei conta que, além da necessidade de se verem em nós e de
serem vistos, se sou capaz, pela confiabilidade, de tornar-me objeto subjetivo para os pacientes,
eles não precisam deitar-se no divã para experimentar a área de ilusão de onipotência. Em geral,
são pessoas mais amadurecidas que gostam do divã; elas querem deitar-se com a finalidade de
relaxar e de se perderem melhor em suas fantasias.
12. No extremo de um caso fronteiriço, diz Winnicott, “tudo se reduz, no final, ao que tentei
descrever como a sobrevivência do analista; só que podem se passar anos até que o paciente se
torne confiante o suficiente quanto à transferência para ser capaz de correr o risco de um
relacionamento, no qual o analista está absolutamente desprotegido” (1987b/1990, p.157). Em
outro texto, ele esclarece o que ocorre quanto o analista é defendido: “Se ele [analista] se defende,
o paciente perde a chance de zangar-se com uma falha passada justamente no momento em que a
raiva tornou-se possível pela primeira vez” (1956a/2000, p. 397).
13. Se estivéssemos examinando também os estágios em que a dependência se torna relativa,
teríamos que falar da capacidade da mãe em separar-se gradual mente do bebê à medida que esta
for a exigência da tendência maturacional.
14. Para maiores detalhes sobre a questão da falha do analista, cf. Dias, E. O. 1997 “A regressão à
dependência e o uso terapêutico da falha do analista”, reeditado neste livro, pp. 69-87.
15 . A citação das obras de Winnicott neste e nos demais artigos deste livro, inclu sive as que se
encontram no corpo do texto, segue a bibliografia compilada pelo Prof. Dr. Knud Hjulmand, do
Departamento de Psicologia da Universidade de Copenhagen, cujo critério é o ano da primeira
publicação do artigo ou do livro do autor. No corpo do texto, após a menção do ano de
publicação, no original, cito a página em que citação pode ser encontrada nas edições brasileiras.
A bibliografia feita pelo Prof. Dr. Hjulmand foi reproduzida em Natureza humana – Revista de
Filosofia e Psicanálise, vol. 1, n. 2, 1999. Consta, também, no seguinte endereço da Internet:
www.winnicottnaturezahumana.com.br. Sempre que possível, comparei as traduções brasileiras
com os originais e, quando necessário, procedi a correções que, entretanto, não foram
explicitamente indicadas.
2 
O “brinquedo divino”: a ilusão em
Winnicott1
“O tédio... é talvez, no fundo, a insatisfação da alma íntima por não lhe termos
dado uma crença, a desolação da criança triste que intimamente somos, por não
lhe termos comprado o brinquedo divino. (...) O tédio é uma falta de mitologia. A
quem não tem crenças, até a dúvida é impossível, até o cepticismo não tem forças
para desconfiar. Sim: o tédio é isso: a perda, pela alma, da sua capacidade de se
iludir, a falta, no pensamento, da escada inexistente por onde se sobe, sólido, à
verdade.”
Bernardo Soares, Livro do desassossego
“Essa ilusão (...) pode ser a base essencial de toda a verdadeira objetividade (...),
a base não apenas da percepção interna, mas também de toda a percepção
verdadeira do meio ambiente.”
D. W. Winnicott
1. Introdução
Há um conceito de ilusão em Winnicott que, longe de ter o sentido de
erro, engano ou desfiguramento da realidade – tal como em toda a tradição
ocidental, incluída aí a psicanálise freudiana que a toma sob o signo do
infantilismo –, é um elemento positivo, essencial na constituição do
indivíduo, e fundamento da capacidade de estabelecer relações
significativas com a realidade externa. Trata-se da “ilusão de onipotência”,
que caracteriza a fase de dependência absoluta de um bebê bem cuidado:
quando a mãe responde de maneira adaptativa ao gesto espontâneo – em
que o bebê busca algo em algum lugar –,ele sente como se o seio e o leite
fossem o resultado de seu próprio gesto e faz a experiência de criar aquilo
que encontra. A mãe sabe que aquilo que o bebê criou, de acordo com a
necessidade, foi na verdade encontrado, mas ela tem o compromisso de
jamais lhe perguntar se ele encontrou ou criou o objeto. O paradoxo é
inerente, diz Winnicott; não está aí para ser resolvido, mas para ser
sustentado e suportado.
É, portanto, por sua adaptação absoluta às necessidades do bebê que a
mãe realiza o que talvez seja a sua mais importante tarefa: a de introduzir o
bebê na ilusão de que é ele o criador o mundo de que necessita. Pela
experiência contínua da confiabilidade ambiental, que protege a
continuidade de ser da criança e preserva o mundo subjetivo em que ela
habita, a ilusão de onipotência do início perde gradualmente o teor
onipotente, característico da fase de dependência absoluta, e se transforma,
aos poucos, numa crença. Referindo-se, por exemplo, à etapa em que o
bebê alcança uma identidade unitária, Winnicott afirma que “o bebê adquire
um interior e um exterior; a confiabilidade do meio ambiente passa então a
ser uma crença, uma introjeção baseada na experiência de confiabilidade
(humana e não mecanicamente perfeita)” (1968d/1988, p. 86). De que
crença se trata? Não de uma crença nisto ou naquilo, mas na capacidade de
acreditar em... “Eu me apego a essa frase feia”, diz Winnicott, “incompleta,
acreditar em...” (1963d/1988, p. 89). A frase, naturalmente, tende a ser
completada com o tempo, mas o processo de completá-la é secundário, pois
o que importa, e do que todo o resto depende, é daquilo que está na base, a
simples capacidade de acreditar em... Bem mais tarde, esse bebê, que
recebeu as condições necessárias para começar a existir como pessoa real,
crescerá e saberá “quão precário era tudo!” (1988/1990, p. 179).
O atendimento de bebês e suas mães, e o estudo – mediante observação e
cuidado, no setting analítico – das várias formas de impossibilidade de
viver dos psicóticos, mostraram a Winnicott que é através dessa crença
fundamental que o homem comum e saudável se sente real, habita num
mundo real e pode relacionar-se com a realidade externa, sem perda do
sentido pessoal da existência.
Se a dificuldade, nas psicoses, é o contato com a realidade, isto se deve
não a uma denegação ou rompimento com uma certa porção intolerável da
realidade – o que seria dar por suposto que a realidade enquanto tal teria
sido encontrada, e depois amputada pela censura –, mas exatamente à falta
da experiência de ilusão de onipotência. É esta que fornece as bases para a
capacidade de relacionar-se com a realidade objetivamente percebida, sem
ser por ela aniquilado. Deparamo-nos, aqui, com a ideia – insólita eu diria,
ao menos no que se refere à psicanálise tradicional –, de que, para
Winnicott, não é a presença, mas exatamente a ausência de capacidade para
a ilusão o que, em última análise, está na base das patologias psicóticas.
2. Os sentidos de realidade e o sentimento de real (feeling of
real)
Qualquer consideração sobre o conceito de ilusão remete ao conceito de
realidade nele implicado. Uma análise dessa temática exigiria um
tratamento filosófico que, em rigor, escapa à minha competência e à alçada
deste artigo. Pode-se dizer, contudo, que a questão da realidade concerne a
todos os seres humanos, estando nela envolvidos, de maneira crucial, os
bebês e os psicóticos e, num outro sentido, nem sempre tão crucial, também
os filósofos. No que se refere à teoria winnicottiana: a) há não apenas um,
mas vários sentidos de realidade; na saúde, esses vários sentidos vão sendo
constituídos no decorrer do processo de amadurecimento, tendo na base,
como condição sine qua non, o sentido subjetivo da realidade; b) o que rege
a existência do ser humano, tanto no início da vida como no decorrer dela,
não é o princípio de prazer, mas a necessidade de ser, de continuar a ser, de
sentir-se real e de poder habitar num mundo real.
Segundo Winnicott, o sense of real e o feeling of real não advêm do que
Freud chamou de princípio de realidade, entendida esta no sentido da
realidade que é representável, perceptível, visualizável, dizível. Ao
contrário, o chamado “princípio de realidade”, que, na redefinição de
Winnicott, “é o fato da existência do mundo, independentemente de o bebê
tê-lo criado ou não (1986h[1970]/1989, p. 32), é, para este autor, “o
arquiinimigo da espontaneidade, da criatividade e do sentido de real”
(1984i/1987, p. 241). Sentir-se real, sentir que o mundo é real e poder
transitar entre um e outro dos sentidos de realidade – a realidade do mundo
subjetivo, a terceira área da experiência (transicionalidade) e a realidade do
mundo objetivamente percebido – são possibilidades que derivam do fato
de o indivíduo ter iniciado a vida fazendo a experiência do primeiro e
fundamental sentido de realidade: a do mundo subjetivamente concebido,
através da ilusão de onipotência. Um homem de 40 anos, que não teve
constituída a capacidade para a ilusão básica, e cuja total desconfiança
corrói qualquer realidade, disse-me: “Fui socializado antes de me tornar
uma pessoa. Sei muito bem o que se espera de mim e cumpro meus deveres
com exatidão, mas nada, jamais, fez qualquer sentido. Não sei por que vivo
ou continuo vivendo”. Este homem não tem problemas com o princípio de
realidade, mas padece da falta do sentimento de real.
Existem pessoas, assinala Winnicott, para quem “a possibilidade de
serem chamados de doidos, de alucinados, faz com que se aferrem à
sanidade; agarram-se a uma objetividade que se poderia denominar
realidade compartilhada (...)” (1986h[1970]/1989, p. 41). Agarram-se a ela
devido à permanente ameaça de não saberem de si, de se sentirem irreais;
não tendo nenhuma relação direta consigo mesmos, colam-se às regras e
aos padrões da realidade externa como um roteiro ou script para a vida, um
parâmetro do que são ou do que fazem. Mas, no sentido humano,
“objetividade é um termo relativo, porque aquilo que é objetivamente
percebido é, por definição, subjetivamente concebido” (1971g/1975, p. 96).
Não há nem pode haver objetividade absoluta no que se refere às questões
humanas. Como a capacidade para a percepção da realidade objetiva,
enquanto externa e separada do eu, está fundada no senso e no sentimento
de real fornecidos pela morada no mundo subjetivo do início, toda
objetividade é, ao mesmo tempo, subjetividade. Se assim não fosse,
cairíamos numa espécie de fisicalismo inteiramente desprovido de sentido,
além de inóspito, presos a uma perceptividade inteiramente objetivada e,
nesse sentido, paradoxalmente irreal, como é o caso, por exemplo, da moça
esquizofrênica, Renée, tratada por M. Sechehaye. No relato de seu
sentimento de irrealidade, Renée descrevia o modo como via uma amiga:
“Eu a via tal qual era e, apesar disso, já não era ela” (Sechehaye, 1988, p.
122). Ou seja, no nível objetivo, Renée reconhecia a amiga, mas, ao mesmo
tempo, esta tornara-se estranha. A percepção, como capacidade mental,
permanece intacta, mas tudo fica permeado por uma total estranheza; não se
perde a objetividade, mas a familiaridade, a intimidade, o sentido.
Ilustrando ainda o fato de que é apenas dentro de um mundo, como um todo
de significações, que as pessoas e as coisas remetem umas às outras e
adquirem sentido humano, Renée diz em outro trecho do seu relato: “Os
objetos e pessoas, com seus gestos e seus ruídos, tornavam-se artificiais,
separados uns dos outros, sem vida, irreais” (Sechehaye, 1988, p. 133). Esse
é o motivo pelo qual Winnicott afirma, como se pode ver na epígrafe a este
trabalho, que a ilusão inicial é a base essencial para toda a verdadeira
objetividade, o que aqui significa: para a objetividade humana.
No início da vida, o bebê não tem nenhum sentido de real constituído e
começa a viver num mundo subjetivamente real. Com o tempo, pela própria
tendência ao amadurecimento, ele irá constituir um outro sentido de
realidade, o da externalidade, mas isto só será possível sobre a base da
realidade domundo subjetivo:
De início, o relacionamento é com um objeto subjetivo e é uma longa jornada daqui até o
desenvolvimento e estabelecimento da capacidade de se relacionar com um objeto que é
percebido objetivamente e que tem a possibilidade de ter uma existência separada, uma
existência exterior ao controle onipotente do indivíduo. (1963c/1988, p. 202)
Nenhuma objetividade, por concreta que seja, é capaz de fornecer ao
indivíduo uma crença na realidade das coisas e do si-mesmo que tenha a
mesma qualidade e consistência daquela que deriva das experiências na
área de ilusão de onipotência e que é instaurada anteriormente à aquisição
da consciência da existência externa de objetos e do mundo. A crença na
realidade é condição de possibilidade para a posterior constatação
intelectual da existência da realidade externa. Mas essa constatação jamais
substitui a crença básica. Aplicando Winnicott às palavras do poeta que
estão transcritas na epígrafe deste estudo, pode-se dizer que é a experiência
de ilusão de onipotência, no início da vida, que provê o indivíduo, “da
escada inexistente por onde se sobe, sólido, à verdade”.
3. A área de ilusão de onipotência
A questão da ilusão básica é frequentemente associada às experiências da
transicionalidade, tema pelo qual Winnicott tornou-se conhecido. Não resta
dúvida que essas experiências pertencem à área de ilusão e que os
fenômenos transicionais – o brincar, o simbolizar e as atividades culturais –
derivam dessa área de ilusão básica; no decorrer do amadurecimento, eles
constituirão a chamada “terceira área de experiência”, que, aliás, quando há
saúde, é o lugar em que habitualmente vivemos, para poder descansar da
eterna tarefa de separar o que é objetivo do que é subjetivamente concebido.
Contudo, da perspectiva da totalidade da obra winnicottiana, deve-se
assinalar que não apenas as experiências de ilusão de onipotência começam
muito antes de os fenômenos da transicionalidade começarem a acontecer e
de a capacidade para simbolizar e brincar se estabelecerem como
capacidades do indivíduo, como são condição de possibilidade destas.
Winnicott explicita esse ponto quando, descrevendo as conquistas iniciais,
alude “aos passos iniciais do bebê nas relações objetais que levam à
capacidade de adotar objetos simbólicos e à existência de uma área entre o
bebê e as pessoas, na qual o brincar é significativo” (1996c[1966]/1997, p.
192; os itálicos são meus).
Já no início da vida, sobretudo durante os estados excitados da
amamentação, cabe à mãe suficientemente boa a tarefa de introduzir e
manter o bebê, durante o tempo adequado, num mundo subjetivo em que
este faz a experiência da ilusão de onipotência.2 Essa ilusão é necessária,
diz o autor, pois “toda criança precisa tornar-se capaz de criar o mundo (a
técnica adaptativa da mãe faz com que isso seja sentido como um fato);
caso contrário, o mundo não terá significado” (1984b/1987, p. 116). A mãe
é capaz dessa “técnica” em virtude de sua capacidade de regredir até o
estado primitivo do bebê e de identificar-se com ele. Isso se dá, sobretudo,
devido ao seu estado natural de “preocupação materna primária”,
relacionado à gravidez.
Os cuidados maternos que mantêm o bebê na área da ilusão de
onipotência estão direcionados, sobretudo, no sentido de evitar que o bebê
seja surpreendido com um sentido de realidade para o qual ainda não está
preparado. A mãe protege o bebê da irrupção de qualquer amostra da
realidade externa, incompreensível para ele, e impossível de ser abarcada
no âmbito de sua onipotência. Devido a sua extrema imaturidade, o bebê só
pode fazer experiências, sentidas como reais, no único sentido de realidade
para o qual está preparado: a realidade do que é subjetivo. No mundo
subjetivo, tudo o que chega ao bebê deve ter o caráter de objeto subjetivo,
ou seja, como resposta ao seu movimento, ele encontra o objeto de tal modo
que tem o sentimento de ter criado o que precisa, no momento em que
precisa. O objeto chega ao bebê no momento exato em que a necessidade
aponta e é do tamanho exato da sua possibilidade de receber e assimilar
como parte dele, naquele preciso instante. Em suma, os objetos subjetivos
são de tal natureza que o bebê não é afrontado com algo que ele não pode
abarcar na experiência: eles não surpreendem, não causam sobressaltos, isto
é, não são extemporâneos no sentido de imprevisíveis. Sua forma de
presença é tal que não denuncia o caráter externo de sua existência e, desse
modo, eles não extrapolam o âmbito da experiência subjetiva do bebê. Por
tudo isso, o objeto subjetivo é confiável e, nesse sentido, real. É também
esse o sentido da “onipotência” na expressão ilusão de onipotência.
Como se vê, o bebê faz, no mundo subjetivo, a experiência de um
controle total sobre os objetos. Do ponto de vista dele (que nem existe ainda
como um eu, para poder ter um ponto de vista), trata-se de um mundo
mágico, onde as exigências do mundo objetivo ainda não fizeram a sua
inscrição. O seio aparece quando a fome aponta, e desaparece quando a
tensão cessa. Mas, note-se: o fato de o mundo subjetivo ser mágico não
quer dizer que ele é regido pelo princípio do prazer; ilusão de onipotência
não significa a satisfação dos desejos do bebê, mesmo porque este não tem
ainda maturidade suficiente para algo tão sofisticado quanto desejos, que
são mais próprios de um eu já integrado. O mundo subjetivo é mágico
porque a mãe, por identificar-se com seu bebê, adapta-se ao tempo e à
capacidade dele, reconhece as suas necessidades e responde a elas, de um
modo que só é possível para um ser humano vivo, que entra em contato
íntimo com sua criança e que se comunica com ela num nível pré-verbal,
pré-representacional e pré-simbólico. O que está em pauta, nesse momento
inicial, na relação mãe-bebê, não é o prazer, mas a qualidade da presença e
da comunicação que possibilita experiências reais. Quando as condições de
apoio de ego são satisfatórias, diz Winnicott, “os impulsos instintivos, quer
satisfeitos ou frustrados, tornam-se experiências do indivíduo”
(1965vd/1988, p. 217).
Protegido no mundo subjetivo, o bebê faz inúmeras experiências na área
de ilusão de onipotência e são essas experiências que possibilitam a
integração gradual das várias “dissociações”, inerentes ao estado não-
integrado. Mais: permitem “curar” a cisão básica, da qual falarei adiante,
própria à natureza humana, que não pode ser extinguida, mas para a qual
podem, gradualmente, ser construídas as pontes que ligam o mundo
subjetivamente concebido ao mundo objetivamente percebido.
A seu tempo, o bebê terá que aceitar o fato da existência externa do
mundo, sobre o qual ele não terá controle, e esse processo de desilusão é
fundamental. Segundo Winnicott, é inteiramente errado pensar que a
aquisição do sentido de realidade, pela criança, depende da insistência da
mãe quanto à natureza externa e objetiva das coisas do mundo externo.
Somente após uma bem instalada capacidade para a ilusão, é possível
esperar que, aos poucos, a criança seja capaz de aceitar a existência
independente do mundo externo e de assimilar as desilusões: “A adaptação
ao princípio de realidade deriva espontaneamente da experiência de
onipotência dentro da área que faz parte do relacionamento com objetos
subjetivos” (1965j/1988, p. 164). Numa carta a Meltzer, de 1966, Winnicott
escreve: “É verdade que as pessoas passam a vida sustentando o poste onde
estão apoiadas, mas, em certo ponto da fase inicial, tem de existir um poste
que se mantenha por conta própria, do contrário, não há introjeção de
confiança” (1987b/1990, p. 137).
Há uma tendência bastante geral a se pensar que, na teoria winni cottiana,
tal como no senso comum, a desilusão é um processo de quebra da ilusão,
mas isso não é correto. Segundo o autor, o que o bebê deixa para trás ao
amadurecer não é a ilusão básica, que permanece, mas a ilusão de
onipotência. Com o tempo, surgirá, na criança, a compreensão intelectual
de que a existência do mundo é anterior e independente dela, de que o
mundo sempre esteve lá e continuarálá após a sua morte. Contudo, o
sentimento de que o mundo foi criado pessoalmente, e pode continuar a ser
criado, não desaparece. Ao defrontar-se com o fato da separação, da
externalidade e da falta de controle sobre o mundo compartilhado, o
indivíduo retém a capacidade para a ilusão, exercendo naturalmente a
criatividade que “é a manutenção, através da vida, de algo que pertence à
experiência infantil: a capacidade de criar o mundo” (1986h[1970]/1989, p.
32).
Uma linda passagem de Pontalis, em seu livro autobiográfico, ilustra,
além de muitos outros pontos, o modo como um adulto, que foi introduzido
na ilusão de onipotência, crê na realidade em que vive:
Ao me levantar, aprecio o chuveiro que, pela graça da água, restitui-me a pele e me extrai
vivamente dos limbos da noite; depois, o café tomado no balcão − “Forte?” “Sim, bem forte,
obrigado Pierre”; depois o cumprimento à pequena Choupette e à sra Gisou quando pego minha
correspondência na rua Sebastien-Bottin. O acidente, nesses começos de meus dias, seria que
eles me faltassem, esses hábitos inocentes. Sei que quando tiver esquecido as centenas de
manuscritos lidos, os livros editados, os rostos dos autores encontrados, são eles que ficarão. De
que evidência, de que confiança serão eles portadores para que, uma vez adquirida a certeza de
que eles comparecerão ao encontro, eu vá com um passo mais vivo e tranquilo, tendo, ancorada
em mim, a ilusão de saber aonde vou? Pressinto que, privado desses pequenos sinais de vida
considerados insignificantes, erraria como uma alma privada de um lugar onde habitar...
(Pontalis, 1986, p. 130)
O paradoxo contido na ilusão de onipotência consiste em que aquilo que
o bebê cria é, na verdade, encontrado por ele e já estava lá antes de ele tê-lo
criado. Mas, além disso, aquilo que o bebê cria não é exatamente aquilo que
a mãe forneceu, do mesmo modo que jamais encontramos na realidade
externa aquilo que concebemos no mundo subjetivo. Esse problema jamais
terá solução. É inerente à natureza humana e, ao longo da vida, teremos
sempre que nos haver com ele. Através do estudo das psicoses, Winnicott
chegou a um fundo do humano que era inaparente nas neuroses ou na
saúde. Esse fundo revela que o problema do contato com a realidade jamais
se extingue ou chega a ser superado.
4. A cisão essencial
O lugar da ilusão no processo de amadurecimento pode ser
compreendido através de um aspecto central da concepção winnicottiana de
ser humano: a de o homem ser cindido já na raiz. Essa cisão, inerente à
natureza humana, não é resultado de um conflito pulsional e não é
patológica em si mesma. Numa passagem do livro de Winnicott, Natureza
humana, encontra-se a seguinte afirmação: “A cisão é um estado essencial
em todo ser humano, mas não é necessário que ele se torne significativo...”
(1988/1990, p. 158). Trata-se, portanto, de uma cisão básica, que está na
raiz mesma da existência humana e que permanece como fundamento
imutável, inultrapassável, constituinte da própria essência do humano: ao
mesmo tempo em que existe uma solidão essencial, um fundo intocável,
eternamente imune a qualquer comunicação com a realidade externa ou a
qualquer objetivação pelas categorias da realidade externa, uma outra parte
do indivíduo é lançada na luz do mundo, para que seja possível nele habitar,
para que a vida, que inclui viver na proximidade das coisas e com-o-outro,
possa se instaurar e acontecer.
As várias formas de cisão patológica, assim como as dissociações
normais – as do estado de não-integração do início e as que dele derivam –,
estarão sempre sendo configuradas, a partir da cisão essencial, na forma de
duas vertentes que vão em direções opostas. Enquanto uma metade do split
vai na direção de simplesmente ser, da solidão, da quietude, do verdadeiro
si-mesmo, a outra metade vai na direção da realidade externa, da busca de
objeto, dos estados excitados, do fazer, do falso si-mesmo. Essa forma de
partição encontra seu fundamento na própria concepção winnicottiana de
natureza humana.
Mas essa cisão, dirá Winnicott, só se torna significativa – ou seja,
patológica, algo que precisa sempre ser levado em conta –, quando a falha
ambiental, da qual decorre a interrupção do processo de amadurecimento,
“exacerba ao invés de curar a cisão na pessoa do bebê” (1988/1990, p. 128).
Isso leva a que, na saúde, quando o processo de integração segue o seu
curso, a cisão é, aos poucos, absorvida e “curada”. Vejamos a citação
completa: “A cisão é um estado essencial em todo ser humano, mas não é
necessário que ele se torne significativo se a camada protetora de ilusão
tornou-se possível através do cuidado materno” (os itálicos são meus). O
que é, portanto, que “cura” ou que permite que a cisão essencial seja aos
poucos absorvida? É o prosseguimento do processo de amadurecimento
tendo na base, e mantida, a ilusão de criar o mundo, a capacidade de
acreditar em..., a despeito de o processo de desilusão seguir o seu curso.
Mas, se o ambiente fracassa em fornecer cuidados confiáveis, o bebê é
sistematicamente confrontado com algo para o qual não está preparado e
tem interrompida a sua continuidade de ser. Nesse caso, a ilusão básica não
se estabelece como experiência; ao contrário, a cisão se exacerba: enquanto
o si-mesmo verdadeiro, que é a sede da espontaneidade, se retrai e se isola,
um si-mesmo falso, artificialmente construído, fica encarregado de lidar
com a realidade externa e com a ameaça de invasão que advém dela. Desse
modo, o falso si-mesmo protege o verdadeiro, para que este nunca mais
volte a ser ferido. O indivíduo que, de qualquer modo, continua a crescer
física e intelectualmente, embora não como existência psicossomática,
nunca se sente preparado para coisa alguma, na medida em que, operada a
cisão, ele tem que seguir adiante desprovido da ilusão básica, ou seja, sem
que seu si-mesmo esteja disponível para a experiência. Esse é o caso do
bebê que “desistiu”, perdeu a esperança na possibilidade de comunicação.
Para aqueles que não puderam desenvolver a capacidade de acreditar em...,
a vida toda, com seu movimento, sua desordem essencial, sua
imprevisibilidade básica, torna-se uma espécie de cilada potencial da qual é
preciso precaver-se. Viver torna-se uma tarefa permanente de evitar o
imprevisível. É isso que Winnicott quer significar quando diz que “a falha
exacerba ao invés de curar a cisão na pessoa do bebê”.
Nos casos favoráveis, a par da compreensão intelectual de que o mundo
existe por conta própria (e, de modo algum, tal qual o concebo), permanece
na pessoa o sentimento de que o mundo foi pessoalmente criado por ela, e
que continua a ser possível achar ou recriar o nicho em que se possa levar
uma existência pessoal. O que propicia esse sentimento é a “camada
protetora de ilusão”; é ela que permite ao indivíduo manter-se criativo e
preservar o sentimento da criação pessoal do mundo. Isso ocorre com os
bebês que tiveram
a sorte de contar com uma mãe, cuja adaptação ativa à necessidade foi suficientemente boa. Isto
os capacita a terem a ilusão de realmente encontrarem aquilo que eles criaram. Finalmente,
depois que a capacidade para o relacionamento foi estabelecida, estes bebês podem dar o
próximo passo rumo ao reconhecimento da solidão essencial do ser humano. Mais cedo ou mais
tarde, um desses bebês crescerá e dirá: “Eu sei que não há nenhum contato direto entre a
realidade externa e eu mesmo, há apenas uma ilusão de contato, um fenômeno intermediário
que funciona muito bem quando não estou muito cansado. A mim não importa nem um pouco se
aí existe ou não um problema filosófico”. (1988/1990, p. 135; os itálicos são meus)
Por outro lado, continua Winnicott, existem os bebês que tiveram
experiências menos afortunadas e estes
veem-se realmente aflitos pela ideia de que não há nenhum contato direto com a realidade
externa. Pesa sobre eles, o tempo todo, uma ameaça de perda da capacidade de se relacionar.
Para eles, o problema filosófico torna-se e permanece sendo vital, uma questão de vida ou morte,
de comer ou passar fome,de alcançar o amor ou perpetuar o isolamento. (1988/1990, p. 135)
O estudo e tratamento das pessoas que padecem de distúrbios psicóticos
nos ensinam acerca dos pré-requisitos para a relação com a realidade
externa. A questão central, nos psicóticos, é a constituição do si-mesmo
unitário e o contato com a realidade externa. No início, esse contato não
existe, nem pode existir, dada a extrema imaturidade do bebê, e Winnicott
dedica-se a descrever, através das minúcias dos estágios iniciais do
amadurecimento, como o contato é favorecido pelo ambiente facilitador e
gradualmente estabelecido. Chegamos agora a um resultado surpreendente:
esse contato, como realidade efetiva, não existe. É fruto da ilusão
propiciada, no início, pela mãe. Vistos em sua pura objetividade, a realidade
externa e seus objetos não fazem nenhum sentido, estão irremediavelmente
separados do mundo subjetivo. A única ponte possível é aquela em que,
através da ilusão, eles possam ser criados e continuem a ser reinventados
pelo indivíduo. Como diz Winnicott, toda criança precisa tornar-se capaz de
criar o mundo; caso contrário, o mundo não terá significado. Criar é “trazer
à existência”. De onde? Da não-existência: “É apenas da não-existência que
a existência pode começar” (1974/1994, p. 76) De um lado, o nada
originário e a solidão essencial; de outro, a tendência inata à integração e à
relação com a realidade externa. Essa cisão pode ser absorvida, isto é, pode
tornar-se não significativa, mas não pode jamais ser extinguida ou curada.
Ela permanecerá sempre, irremissível: pertence intrinsecamente à natureza
humana.
Esse tema permeia todo o pensamento de Winnicott. Já em 1948, ele
dizia que, enquanto há vida, cada um de nós sente que a questão do contato
cru com a realidade é vital e lidamos com ela de acordo com a maneira pela
qual a realidade nos foi introduzida no início. Mas, a menos que estejam
muito cansadas ou doentes, as pessoas, em geral, não sabem que existe um
problema de relacionamento com a realidade. E pergunta:
Não é em geral através da criação artística e da experiência artística que mantemos as
necessárias pontes entre o subjetivo e o objetivo? É por esta razão, acrescento eu, que
valorizamos tão intensamente a solitária batalha do criador em qualquer campo da arte. Para
todos nós, assim como para ele mesmo, o artista está sempre vencendo brilhantes batalhas em
uma guerra que, na verdade, não tem fim possível. O fim consistiria em descobrir algo que não é
verdade, ou seja, que o que o mundo oferece é igual ao que o indivíduo cria. (1948b/2000, p.
251)
Há pessoas que, devido a uma experiência inicial extremamente
deficitária, não chegaram nem ao menos a habitar num mundo subjetivo ao
qual retornar para descanso e no qual se reabasteceriam de experiências do
si-mesmo verdadeiro. Nesses casos, uma descrença profunda esgarça
qualquer realidade. Esse estado de coisas transparece, de forma brutal, no
início da obra Ferdydurke, do autor polonês Gombrowicz:
Naquela terça, despertei nesse momento sem alma e sem graça em que a noite se acaba e a
aurora não pode ainda nascer. Acordado em sobressalto, quis pegar um táxi para a estação,
parecia-me que eu devia partir, mas, no último minuto, compreendi com dor que não havia na
estação nenhum trem para mim, que nenhuma hora havia soado. Permaneci deitado numa
claridade turva, meu corpo tinha um medo insuportável e oprimia meu espírito, e meu espírito
oprimia meu corpo e cada uma das minhas fibras se contraíam ao pensamento de que nada
passaria, de que nada mudaria, nada jamais aconteceria e que, qualquer que fosse o projeto, não
sairia nada de nada. Era o medo do nada, o pânico diante do vazio, a inquietude diante da
inexistência, o recuo diante da irrealidade... (Gombrowiz, 1973, p. 5)
Existem, entretanto, pessoas para as quais, provavelmente, as
experiências iniciais do mundo subjetivo foram intensamente reais, mas o
ambiente talvez tenha falhado em promover o processo de desilusão,
mantendo ao mesmo tempo intacta a criatividade originária, ou seja, o
sentimento de poder criar o mundo. Para essas pessoas, nenhuma rea lidade,
por concreta ou palpável que seja, fornece um sentimento de realidade
comparável ao que ele é capaz de provar no contato com o mundo
subjetivo. Winnicott assinala que talvez seja esse o significado das
experiências de isolamento ou de reclusão mística, as quais põem o
indivíduo “em posição de se comunicar secretamente com fenômenos e
objetos subjetivos, a perda de contato com o mundo da realidade
compartilhada sendo contrabalançada por um ganho em termos de se sentir
real” (1965j/1988, p. 169). Numa carta ao poeta brasileiro Ronald de
Carvalho, escreve Fernando Pessoa:
A má sensibilidade dói-me. Por certo que outrora nos encontramos e, entre a sombra de
alamedas, dissemos um ao outro em segredo o nosso comum horror à Realidade. Lembra-se?
Nós éramos crianças.
Tinham-nos tirado os brinquedos, porque nós teimávamos que os soldados de chumbo e os
barcos de latão tinham uma realidade mais precisa e esplêndida que os soldados-gente e os
barcos que são úteis ao mundo. Nós andamos animados longas horas pela quinta. Como nos
tinham tirado as coisas onde púnhamos os nossos sonhos, pusemo-nos a falar delas para as
ficarmos tendo outra vez. E assim tornaram a nós, em sua plena e esplêndida realidade – que
paga de seda para os nossos sacrifícios –, os soldados de chumbo e os barcos de latão; e através
de nossas almas continuaram sendo, para que nós brincássemos com eles. (Pessoa, 1999, p. 151)
Winnicott diz que, entre as pessoas cuja dificuldade central é o
relacionamento com a realidade, é possível vislumbrar dois grupos: as
pessoas esquizoides e as extrovertidas (entenda-se, os fronteiriços cuja
defesa central é o falso si-mesmo patológico); ambas sofrem da
impossibilidade de viver e carregam uma profunda insatisfação consigo
mesmas. “Esses dois grupos de pessoas”, diz o autor,
procuram-nos em busca de psicoterapia, no primeiro caso, para evitar o desperdício de suas
vidas irrevogavelmente fora de contato com os fatos da vida e, no segundo caso, porque se
sentem alheias ao sonho. Têm a sensação de que algo está errado, de que existe uma dissociação
em suas personalidades e precisam de auxílio no sentido de alcançar um status unitário ou um
estado de integração espaço-temporal, onde existe um eu (si-mesmo), que contém tudo, ao invés
de elementos dissociados colocados em compartimentos, ou dispersos e abandonados.
(1971g/1975, p. 98)
Foi exatamente em função desses casos que Winnicott procedeu a uma
revisão crucial da tarefa terapêutica. Instruído, pelo cuidado clínico de
psicóticos fronteiriços, sobre as necessidades primitivas que, na verdade,
fazem parte de cada ser humano, Winnicott redefiniu o papel do analista:
este deverá privilegiar uma outra função do que aquela para a qual a análise
foi originalmente concebida, a saber, a interpretação de conflitos
inconscientes.
Há alguns indivíduos, como foi mencionado anteriormente, sobre os
quais pesa o tempo todo uma ameaça de perda da capacidade de se
relacionar ou de perda do sentido de real. Para eles, o setting analítico terá
que oferecer, pela primeira vez em suas vidas, experiências simples, mas
essenciais, que só podem ocorrer num ambiente que se caracteriza pela
confiabilidade e que não foram possíveis no ambiente original; 3 nem eles
mesmos sabem bem sobre sua necessidade, pois, na desesperança de serem
atendidos, a necessidade foi abafada, retida e, muitas vezes, camuflada em
autossuficiência. São esses os casos em que a experiência de ilusão de
onipotência foi inexistente ou precária. A capacidade de confiar, de
acreditar em... foi minada na raiz, feneceu antes de ter sido estabelecida. A
própria análise está envolvida nessa descrença quanto à possibilidade de
uma comunicação verdadeira. O paciente psicótico tornou-se
desesperançado e, num certo sentido, ele luta contra a esperança, pois esta é
a vizinha mais próxima da decepção; na verdade, sem dar por isso, ele
organiza toda a sua vidaem torno de evitar a repetição da agonia
impensável que está na raiz de tudo.
A responsabilidade que nos cabe como analistas, nesses casos, consiste
em saber se podemos dar sustentação a toda uma fase de dependência
absoluta, em que essas pessoas possam viver, por um tempo indeterminado,
num mundo subjetivo, ou seja, na área de ilusão de onipotência, protegidas
da irrupção de qualquer amostra da realidade externa. Teremos que ser
objetos subjetivos, para o paciente, e suportar o fato de não existirmos para
ele, como pessoas separadas, sabendo, ao mesmo tempo, que nossas
atitudes os afetam imediatamente.
A confiabilidade ambiental inclui darmos continuidade ao processo
terapêutico, às vezes a despeito da instabilidade que o paciente traz devido à
desesperança; inclui, ainda, sermos consistentemente nós mesmos, o que
significa que, mais do que de inteligência ou esperteza, o que o paciente
precisa é de interesse genuíno e autenticidade. Tanto o bebê como o
paciente nessas condições necessitam de um “seio” que é e não de um
“seio” que faz.
Mas, a par da identificação com o paciente e da espontaneidade, que não
pode ser infantil, guardamos um lugar adulto que nos permite, a despeito de
nossas vicissitudes particulares, continuar a cuidar do paciente, vivos e
respirando. Temos sempre em mente que tudo o que de mais importante
acontece, nessa etapa, se dá no pré-verbal. Andamos com o paciente por
onde ele anda, mas o que importa é que estamos lá, na hora marcada, sem
imprevisto, esperando que a repetição regular da experiência vá tecendo
vagarosamente, nele, o sentido da presença.
É sobre esses casos que Winnicott afirma que o analista tem, muitas
vezes, que esperar, esperar e esperar, e foi a propósito desses casos que ele
pôde elaborar a ideia de que o manejo do setting e, às vezes, da situação
global do paciente, é mais importante do que a interpretação: “A
psicanálise”, diz Winnicott, “não se resume a interpretar o inconsciente
reprimido; é, antes, o fornecimento de um contexto profissional para a
confiança, no qual esse trabalho possa ocorrer” (1986f[1970]/1989, p. 89).
Pode levar longo tempo até que o paciente, vagarosamente, incorpore a
estabilidade oferecida e passe a confiar na consistência e confiabilidade da
situação analítica, incluído o comportamento do analista. Algumas vezes,
diz Winnicott,
o analista precisa esperar um tempo muito longo; e, no caso que é mal escolhido para a
psicanálise clássica, é provável que a consistência do analista seja o fator mais importante (ou
mais importante do que as interpretações), porque o paciente não experimentou tal consistência
no cuidado materno na infância e, se tiver de utilizar essa consistência, terá que encontrá-la pela
primeira vez no comportamento do analista. (1960c/1988, p. 39)
Referências
Dias, E. O. (1999). Sobre a confiabilidade: decorrências para a prática
clínica. Natureza humana, 1(2), 283-322.
Pessoa, F. (1986). Livro do desassossego (de Bernardo Soares). In F.
Pessoa, Obra poética e em prosa (3 Vols). Porto Alegre: Lello & Irmão.
(Trabalho original publicado em 1930)
Pessoa, F. (1999). Correspondência (1905-1922). Lisboa: Assírio & Alvim.
Gombrowiz, W. (1973). Ferdydurke. Paris: Christian Bourgois.
Pontalis, J-B. (1986). O amor dos começos. Rio de Janeiro: Globo.
Sechehaye, M. A. (1988). La realización simbólica y Diario de uma
esquizofrénica. Mexico: Fondo de Cultura Económica.
Winnicott, D. W. (1975). O brincar e a realidade. Rio de Janeiro: Imago.
(Trabalho original publicado em 1971a. Título original: Playing and
Reality)
Winnicott, D. W. (1975). A criatividade e suas origens. In D. Winnicott
(1975/1971a), O brincar e a realidade. Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho
original publicado em 1971g)
Winnicott, D. W. (1975). Sonhar, fantasiar e viver: uma história clínica que
descreve uma dissociação primária. In D. Winnicott (1975/1971a), O
brincar e a realidade. Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado
em 1971h)
Winnicott, D. W. (1987). Ausência do sentimento de culpa. In D. Winnicott
(1987/1984a), Privação e delinquência. São Paulo: Martins Fontes.
(Trabalho original publicado em 1984b)
Winnicott, D. W. (1987). Dissociação revelada numa consulta terapêutica.
In D. Winnicott (1987/1984a), Privação e delinquência. São Paulo:
Martins Fontes. (Trabalho original publicado em 1966c)
Winnicott, D. W. (1987). Privação e delinquência. São Paulo: Martins
Fontes. (Trabalho original publicado em 1984a. Título original:
Deprivation and Delinquency)
Winnicott, D. W. (1987). Variedades de psicoterapia. In D. Winnicott
(1987/1984a), Privação e delinquência. São Paulo: Martins Fontes.
(Trabalho original publicado em 1984i)
Winnicott, D. W. (1988). O ambiente e os processos de maturação. Porto
Alegre: Artes Médicas. (Trabalho original publicado em 1965b. Título
original: The Maturational Processes and The Facilitating Environment)
Winnicott, D. W. (1988). Os bebês e suas mães. São Paulo: Martins Fontes.
(Trabalho original publicado em 1987a. Título original: Babies and Their
Mothers)
Winnicott, D. W. (1988). A comunicação entre o bebê e a mãe e entre a mãe
e o bebê: convergências e divergências. In D. Winnicott (1988/1987a), Os
bebês e suas mães. São Paulo: Martins Fontes. (Trabalho original
publicado em 1968d)
Winnicott, D. W. (1988). Comunicação e falta de comunicação levando ao
estudo de certos opostos. In D. Winnicott (1988/1965b), O ambiente e os
processos de maturação. Porto Alegre: Artes Médicas. (Trabalho original
publicado em 1965j)
Winnicott, D. W. (1988). Distúrbios psiquiátricos e processos de maturação
infantil. In D. Winnicott (1988/1965b), O ambiente e os processos de
maturação. Porto Alegre: Artes Médicas. (Trabalho original publicado em
1965vd)
Winnicott, D. W. (1988). Os doentes mentais na prática clínica. In D.
Winnicott (1988/1965b), O ambiente e os processos de maturação. Porto
Alegre: Artes Médicas. (Trabalho original publicado em 1963c)
Winnicott, D. W. (1988). Moral e educação. In D. Winnicott (1988/1965b),
O ambiente e os processos de maturação. Porto Alegre: Artes Médicas.
(Trabalho original publicado em 1963d)
Winnicott, D. W. (1988). Teoria do relacionamento paterno-infantil. In D.
Winnicott (1988/1965b), O ambiente e os processos de maturação. Porto
Alegre: Artes Médicas. (Trabalho original publicado em 1960c)
Winnicott, D. W. (1989). A cura. In D. Winnicott (1989/1986b), Tudo
começa em casa. São Paulo: Martins Fontes. (Trabalho original publicado
em 1986f[1970])
Winnicott, D. W. (1989). Tudo começa em casa. São Paulo: Martins Fontes.
(Trabalho original publicado em 1986b. Título original: Home is Where
We Start From)
Winnicott, D. W. (1989). Vivendo de modo criativo. In D. Winnicott
(1989/1986b), Tudo começa em casa. São Paulo: Martins Fontes.
(Trabalho original publicado em 1986h[1970])
Winnicott, D. W. (1990). O gesto espontâneo. São Paulo: Martins Fontes.
(Trabalho original publicado em 1987b. Título original: Selected Letters
of D. W. Winnicott)
Winnicott, D. W. (1990). Natureza humana. Rio de Janeiro: Imago, 1990.
(Trabalho original publicado em 1988. Título original: Human Nature)
Winnicott, D. W. (1994). Explorações psicanalíticas. Porto Alegre: Artes
Médicas. (Trabalho original publicado em 1989a. Título original:
Psychoanalytic Explorations)
Winnicott, D. W. (1994). O medo do colapso. In D. Winnicott
(1994/1989a). Explorações psicanalíticas. Porto Alegre: Artes Médicas.
(Trabalho original publicado em 1974)
Winnicott, D. W. (1994). Marion Milner: Nota crítica de “On Not Being
Able to Paint”. In D. Winnicott (1994/1989a). Explorações psicanalíticas.
Porto Alegre: Artes Médicas. (Trabalho original publicado em 1951d)
Winnicott, D. W. (1997). Autismo. In D. Winnicott (1997/1996a), Pensando
sobre crianças. Porto Alegre: Artes Médicas. (Trabalho original publicado
em 1996c[1966])
Winnicott, D. W. (2000). Pediatria e psiquiatria. In D. Winnicott
(2000/1958a). Textos selecionados: da pediatria à psicanálise. Rio de
Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1948b)Winnicott, D. W. (2000). Textos selecionados: da pediatria à psicanálise.
Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1958a. Título
original: Collected Papers: Through Paediatrics to Psychoanalysis)
1 . Este artigo, corrigido e atualizado para a presente edição, foi publicado originalmente com o título
“A ilusão originária”, na Coleção Memória da Psicanálise, n. 5 − Winnicott, 2ª edição revista e
atualizada (Revista Viver: Mente & Cérebro, Duetto Editorial, 2009), pp. 40-51.
2 . A palavra onipotência, usada para esse estágio primitivo, descreve um traço essencial da
dependência e significa que o bebê não sabe nada acerca da existência de si mesmo ou do mundo
externo. Não se deve confundir esse significado específico da experiência de onipotência na área
da ilusão, característico do mundo subjetivo, com o sentimento de onipotência, relativo a um
poder que desconhece limites e que justamente “pertence à desesperança em relação à
dependência”. Cf. Winnicott, 1971h/1975, p. 50.
3 . Para um exame mais apurado da questão da confiabilidade no ambiente inicial e no setting
analítico, ver Dias, 1999, reproduzido neste livro nas pp. 15-49.
3 
A regressão à dependência e o uso
terapêutico da falha do analista1
Em memória de Amazonas Alves Lima
1. Introdução
Um dos aspectos técnicos mais fecundos do pensamento de Winnicott
consiste no uso do que chamaremos com ele a “falha” do analista; está
referido, sobretudo, às fases de regressão à dependência, no tratamento de
pacientes fronteiriços. Extremamente provocante, esse ponto requer
explicitação teórica complexa, especialmente acerca de dois conceitos
intimamente imbricados entre si e centrais na sua obra: 1) o caráter
específico do adoecer psicótico (que gerou uma nova classificação das
patologias), seja qual for a organização patológica em que ele se manifeste
e 2) a qualidade peculiar do desenvolvimento emocional, durante o período
de não-integração, em especial no que se refere aos pacientes que regridem
à dependência.
Para a compreensão do primeiro conceito acima mencionado, é
importante atentar para o modo como Winnicott configura a “natureza” da
diferença entre neurose e psicose. Diz ele:
Afora o estudo de pessoas sadias, é talvez apenas na psiconeurose e na depressão reativa que
é possível se aproximar da doença verdadeiramente interna, a doença que faz parte do intolerável
conflito que é inerente à vida e ao viver de pessoas inteiras (whole persons). (1965h[1959]/1983,
p. 124)
“Verdadeiramente interna” refere-se a um território já constituído
(embora jamais estável a ponto de não poder voltar a ser perdido) de onde
se pode perceber o não-eu e até desejá-lo, ou invejá-lo ou querer destruí-lo.
As neuroses, organizadas em solo pulsional, representam um estágio
sofisticado do desenvolvimento.2 Chegar à fase edípica com a possibilidade
de padecer dos afetos e suas sintomatologias defensivas, em meio a relações
interpessoais, significa ter alçado a uma vida emocional na linha da saúde,
da possível e precária saúde humana. Esse é o território que tem sido
tradicionalmente o campo de pesquisas e de interesse analítico: toda a
imensa gama de conflitos e formações fantasmáticas geradas na eterna luta
do amor e do ódio, “conflito que é inerente à vida e ao viver das pessoas
inteiras”( 1965h[1959]/1983, p. 124).
Mas, se as categorias analíticas clássicas, por se basearem nas neuroses,
dão por suposto o território (pulsões, objetos, desejos), ou seja, a integração
(mesmo que precária) num si-mesmo unitário, o que interessa a Winnicott,
atento à vacuidade borderline, é o que acontece antes, ou melhor, o que não
acontece, a ponto de impedir que a integração seja levada a termo. São os
buracos desse não acontecido que, de forma patológica, subjazem, muitas
vezes, à organização neurótica que funciona, então, como cobertura
defensiva de um vazio radical.
Segundo Winnicott, esse é o caso das psicoses fronteiriças. É o caso dos
dois pacientes cuja análise ora destacamos. Foi a experiência analítica com
pacientes borderline que lhe possibilitou aproximar-se do caráter
propriamente psicótico das psicoses; ele afirma ter encontrado aí “a
oportunidade de observar os delicados fenômenos que apontam para a
compreensão dos estados verdadeiramente esquizofrênicos”
(1969i[1968]/1994, p.121). Tratando-se de fronteiriços, sabemos que
Winnicott não irá supor a existência (integração) de um si-mesmo unitário,
que ficou a meio caminho, e, portanto, não tentará encontrar o paciente que
ainda não está lá para ser encontrado. Ele também não esperará deparar-se
com o sofrimento típico dos conflitos pulsionais, pertinentes aos afetos. O
fronteiriço ficou aquém do que se possa chamar vida psíquica. Esses
pacientes, e é essa a característica da patologia fronteiriça, vivem no modo
de uma não existência.3 Aquele, cuja análise é relatada no livro Holding e
interpretação, o chamado caso B, vive num fantasiar (fantasying; cf.
Winnicott, 1971h/1975) que evita e substitui a realidade interna; usa a
mente, hipertrofiada e dissociada da experiência, âmbito que ele
desconhece. A outra (1971r/1975, p. 83) transita entre flashes esparsos e
citações de poetas; vida feita de pedaços amorfos, desconectados e sem
sentido. Ambos protegem-se de uma ameaça, vaga para eles, mas que,
sabemos, é a de vínculos reais, a ameaça de existir.4 Submetem-se, então, às
expectativas do ambiente externo para garantir a sobrevivência da casca, a
partir da qual eles se apresentam a si mesmos e aos outros. Seguindo
Winnicott, é possível supor, a propósito de ambos, que, na etapa mais
precoce, antes de alcançar o lugar (a reunião, o si-mesmo) desde onde
poderiam sentir-se afetados (afetos), concernidos, tornaram-se puramente
reativos, controlando o perigo das invasões e dos sobressaltos.
Prematuramente atentos, a mente substituindo o papel do ambiente protetor,
eles não fizeram a experiência de deixar-se estar, de residir, e perderam a
aventura de viver. Ao invés de concêntricos, tornaram-se excêntricos. Não
acharam o caminho do brincar.
2. O estado de não-integração e a psicose
A tese que dá suporte a essa fenomenologia consiste em que, para
Winnicott, as psicoses estão referidas a um momento de não-integração,
anterior à reunião num si-mesmo, a uma fase de dependência absoluta onde
ocorreram falhas de adaptação no âmago da unidade bebê-mãe. A gravidade
dessas falhas está relacionada ao fato de que, nesse momento, em que o
bebê ainda “não existe” e só “existe” na unidade com a mãe, estão sendo
gestados os fundamentos, as condições de possibilidade de ingresso na vida,
vida que será, então, atravessada de conflitos pulsionais.5
A afirmação de que o bebê “não existe” não é retórica nem simbólica.
Para Winnicott, o existir não é dado e não coincide com o nascimento
biológico. Na não-integração, o bebê não tem eu nem não-eu; não há
intencionalidade, objetos ou interesses. Trata-se, portanto, de um momento
pré-objetal, pré-pulsional e pré-simbólico. Quando tudo corre bem, antes de
se deparar com objetos, nomeá-los e valorá-los, ele irá se encontrar e
habitar, num “meio”, numa “ambiência” espacial e temporal, dotada de uma
“certa atmosfera”. Nesse momento, o que o bebê tem, sim, são
possibilidades virtuais (bebê possível) que requerem ser atualizadas,
“realizadas”, isto é, ganharem configuração e expressão (bebê real): só
assim ele poderá chegar, como diz Heidegger, a ser-no-mundo, isto é, a
existir nas estruturas fundamentais de tempo e espaço, lançado na ordem
mundana como ser situado e datado. Notemos: abrir-se para o mundo e
abrir-se para si mesmo são um único e mesmo acontecimento. Para tanto, o
bebê precisa fazer, com a ajuda da mãe, a experiência de habitar (presença,
permanência, proteção contra invasões, regularidade etc.) de modo a vir a
ter o sentimento de “estar em casa”: num lugar − mundo e si-mesmo − a
partir do qual acolher e deixar-se afetar pelos acontecimentos, um lugar
onde reunir e guardar as coisas que encontra, na duração de um tempo
contínuo (continuidade, previsibilidade,monotonia etc.) em que uma
existência se desdobra em passado, presente e futuro.6
Existir (ex-sistere), portanto, só se inicia quando o bebê, chegando à
integração, que implica o reconhecimento da existência separada do não-eu
e correlativamente do eu, alcança o sentimento de ser real e de habitar num
mundo real. Mas muita coisa tem que acontecer para o bebê chegar aí. “A
integração é uma conquista”, diz Winnicott. Antes disso, pode-se falar em
não existência. Trata-se, portanto, de um momento delicadíssimo que requer
cuidados específicos.
Para fazer essa primeiríssima experiência de habitar e levar a termo a
tendência virtual à integração, esse momento deve poder ser vivido, nas
condições mesmas de imaturidade que lhe são inerentes e no relaxamento
próprio de quem se sente bem-sustentado. Isto só é possível na presença de
um ambiente facilitador que reconhece, aceita, reúne e dá suporte a esse
estado de não-integração, sem apressar-lhe o andamento. O processo deve
seguir o seu próprio curso, tendo garantida e protegida a “continuidade de
ser”. “A base para o estabelecimento do ego é um suficiente ‘continuar a
ser’ que não foi interrompido por reações à invasão” (1958n[1956]/2000, p.
403).7
Cabe à mãe “suficientemente boa” propiciar ao bebê os cuidados de
sustentação, de presença contínua e previsível e de proteção contra
invasões. Na saúde, isso se dá porque, identificada com o bebê, a mãe é
capaz de uma adaptação sensível, ativa e completa às suas necessidades.
Em seguida, ela provê uma desadaptação gradual, na qual pequenas falhas
ocorrem na medida mesma da capacidade maturacional crescente do bebê, o
que significa que essas falhas pertencem à pauta da adaptação. Mas há,
aqui, um ponto a ser destacado, que revela a profundidade do pensamento
de Winnicott: a adaptação completa não visa precipuamente à satisfação
instintiva.8 Algo mais básico e estrutural está acontecendo. A adaptação
completa propicia um encontro e esse encontro é fundamental: é a matriz
dos encontros possíveis, o paradigma existencial dos vínculos de que o
existir se constitui. Observemos que o bebê mesmo não se encontra com a
mãe uma vez que, nesse momento, a mãe não existe e nem o bebê existe.
Mas o encontrar está se dando no completar o gesto do bebê e no atender à
sua necessidade “no ponto” (mãe suficientemente boa). Sem que o bebê dê
por isso, está se criando o sentimento de que o não-eu é encontrável, pode
ser-lhe concernente e fazer sentido. Aí estão sendo plantadas as raízes da
mutualidade e da possibilidade de comunicação, sem perda da solidão
essencial.
Mas pode haver desencontro. Pode ser que a mãe não seja capaz de
sintonizar, desde o íntimo, a necessidade existencial do bebê. Talvez ela não
consiga criar o “entre”, a bolha de intimidade e proteção onde se gesta, na
ilusão da onipotência, o sentimento de que é possível encontrar e significar
o mundo que vai servir-lhe de morada. Ela talvez não possa suportar a
amorfia da não-integração que a relembra do seu próprio desamparo
escondido e recoberto pelas tarefas adultas. E, assim, não há encontro. Essa
mãe, mais zelosa do seu papel de mãe do que de seu bebê, pode enfiar-lhe
alimento e mundo goela abaixo. Se pudesse abrir o “entre” e ensaiar a
possibilidade do encontro, ela saberia que o bebê necessita ser introduzido
no mundo bem devagarinho, na sua medida e ritmo, e ter a oportunidade de
criar o mundo que encontra: habitar no paradoxo.9 Precisa de cuidados
referidos a ele, e não ao gênero bebê. Necessita que ela suporte e dê
sustentação para os avanços e para os recuos. Recuar significa que o bebê,
às vezes, sente necessidade de morrer um pouquinho e deixar-se estar num
lugar ao qual a mãe não tem acesso: “No centro de cada pessoa há um
elemento não comunicável e isto é sagrado e merece ser preservado”
(1965j[1963]/1983, p. 170).
Pela ilusão da onipotência, o bebê é introduzido, imperceptivelmente, no
âmbito aberto do mundo. É-lhe permitido um tempo em que ele está
desincumbido da tarefa de separar eu do não-eu, protegido da consciência
prematura da externalidade do mundo. Sem isso, o que se dá é invasão e
desencontro. A invasão quebra a continuidade de ser: algo extravasa da
possibilidade do bebê ou simplesmente não acontece. O bebê faz o gesto
que lhe vem do impulso (drive) momentâneo e não acha nada, nada lhe vem
ao encontro. Ou tudo lhe é dado em demasia, para fora de sua real precisão.
Aprende, então, a ter aquelas necessidades que dão à mãe a sensação de
estar viva e atuante. Nesses casos, é o bebê que se encarrega de manter a
mãe “viva”. Se isso se torna o padrão de conduta ambiental, pode haver
recuo dramático como no autismo ou recuo defensivo com formação de
couraça externa de submissão, que simula vínculos, como nos fronteiriços.
Inúmeros são os matizes de falhas dessa relação primeira que constrangem
o bebê a pôr-se alerta antes do tempo, desviado de si, interrompido na sua
continuidade de ser e ocupado no controle do ambiente, precocemente
exposto à exterioridade do mundo e à tarefa de existir.
Há, portanto, aqueles que não chegam a nascer e permanecem num
tempo anterior ao tempo do mundo. Um tempo em que o homem “privado
do dom de residir, habita na eternidade de um presente vazio e sem
movimento, onde não há mais acontecimentos”.10 Nessa situação, diz
Winnicott, “estão todos os pacientes cuja análise deve lidar com os estágios
primitivos do desenvolvimento emocional, antes e até o estabelecimento da
personalidade como entidade e antes da aquisição do status de unidade
espaço-tempo” (1955d]1954]/2000, p. 375).
A falha em fornecer a matriz dos vínculos e do habitar pode fazer um
buraco no tecido da continuidade de ser e o bebê cai fora do caminho que o
levaria à integração. Ele não cai no mundo; cai fora.11 Extraviado do viver,
exilado de si mesmo e do mundo, permanentemente estrangeiro, o
indivíduo não sabe habitar. Perambula num deserto sem referências, sem
familiaridade possível: nada lhe diz respeito. Nem ao menos pode saber o
que houve, ou não houve, porque, não nascido, ele não estava lá para que
algo acontecesse. A falha que o habita, como um vazio sem forma, está,
surpreendentemente, fora do psiquismo.12 Diz Winnicott:
Os psicóticos são portadores de distúrbios derivados de um estágio ainda mais precoce e
básico. Suas dificuldades e problemas são especialmente aflitivos. Por não serem inerentes, não
fazem parte da vida, e sim da luta para alcançar a vida. O tratamento bem-sucedido de um
psicótico permite que o paciente comece a viver e comece a experimentar as dificuldades
inerentes à vida. (1988/1990, p. 100)
Para alguns, o entanto, residir no mundo, acreditando na sua realidade, e
deixar-se ser, tornou-se demasiadamente longínquo. Assim com o paciente
de Holding e interpretação. Ele era capaz, às vezes, de deixar-se cuidar por
Winnicott e entregar-se à dependência. Mas isso rapidamente se desvanecia.
Para ele, que só podia viver na rota do script ambiental, o estado de não
orientação e amorfia da não-integração eram terroríficos. Seu principal
recurso defensivo era o retraimento no sono. No excelente prefácio ao livro,
diz Masud Khan:
Desde o início, Winnicott tinha consciência de que toda forma de falar e relatar do paciente
encerrava uma reação terapêutica negativa. O paciente dá seu próprio diagnóstico: “Nunca me
tornei humano. Perdi essa experiência”(p. 107) e, “resumindo, meu problema é como encontrar
uma luta que nunca houve” (p. 185). Winnicott não se deixou intimidar. Muito menos tentou a
cura. (Khan, 1991, p. 16)
Não tentar a cura é a sabedoria clínica de Winnicott. Talvez exatamente
aí residisse a falha original e insuperável: uma mãe que impelia o filho a
manter-se vivo, sempre, a qualquer preço. Mas, isso não significa que
Winnicott não usasse os recursos de que dispunha. Ele estende, disponível,
o chão sobre o qual um nascimento pudesse, porventura, vir a acontecer, ou
para, ao menos, manter o paciente vivendo na estreita abertura que lhe era
possível. Winnicott fornece holding para que o paciente dele faça usoquando e como possa.
Com relação ao fornecimento de holding, no setting analítico, há um
detalhe que merece exame: holding é quase sempre entendido no sentido da
continuidade de cuidados, aquilo que dá suporte, sustentação. Mas há as
falhas, porque sempre há falhas. Winnicott notou, contudo, que pacientes
regredidos aproveitavam exatamente as falhas para avanços no processo de
maturação. Essas falhas repetiam, sim, a invasão inicial. Mas agora,
revividas e configuradas na relação analítica, podiam propriamente
acontecer e passar a fazer parte do psiquismo.
3. Duas tarefas analíticas: suporte para a não-integração e
aproveitamento da falha do analista na regressão à
dependência
Em virtude do acima exposto, e tratando-se de pacientes fronteiriços em
regressão à dependência, temos uma questão para a função da análise: não
há como retraçar ou ressignificar uma história que não se deu, nem como
analisar a qualidade libidinal de vínculos que não existem a não ser como
arremedos de vínculos, externos, artificiais, capas produzidas para encobrir
um campo interno vazio. Dessa perspectiva, a relação analítica terá que
privilegiar uma outra função do que aquela para a qual foi originalmente
concebida (a interpretação de conflitos pulsionais). O analista terá que estar
atento uma vez que o fundo de estranhamento e vacuidade está recoberto
por uma organização psiconeurótica ou um distúrbio psicossomático.
Em tais casos, o psicanalista pode ser conivente, durante anos, com a necessidade do
paciente de ser psiconeurótico (em oposição a louco) e de ser tratado como tal. A análise vai
bem e todos manifestam satisfação. O único inconveniente está em que a análise jamais termina.
Pode ser concluída e o paciente pode mesmo mobilizar um falso eu (si-mesmo) psiconeurótico
para finalizar o tratamento e expressar gratidão. De fato, porém, ele sabe que não houve
alteração no estado (psicótico) subjacente e que analista e paciente tiveram êxito em conluiar-se
para provocar um fracasso. (1969i[1968]/1994, p. 122)
Com pacientes borderline, portanto, se se quer chegar ao fundo, a
regressão é necessária (cf. 1960a/1983, p. 149). E não é verdade que os
clinicamente regredidos sejam os mais doentes. Talvez seja mais difícil a
tarefa de lidar com pacientes psicóticos em estado de fuga para a sanidade
(cf. 1955d[1954]/2000, p. 385), como era o caso do paciente anteriormente
mencionado. Contudo, em geral, se o analista fornece as condições
requeridas, o paciente fronteiriço “atravessa gradativamente as barreiras que
denominei técnica do analista e atitude profissional e força um
relacionamento direto de tipo primitivo chegando até o limite da fusão”
(1960a/1983, p. 150). A regressão à dependência
representa a esperança do indivíduo psicótico de que certos aspectos do ambiente, que falharam
originalmente, possam ser revividos, com o ambiente desta vez tendo êxito ao invés de falhar na
sua função de favorecer a tendência herdada do indivíduo de se desenvolver e amadurecer.
(1965h[1959]/1983, p. 117)
Mas, o que é que o paciente busca repetir, reviver, recordar? Não é
possível resgatar algo que ainda não aconteceu e “essa coisa do passado
ainda não aconteceu porque o paciente não estava ali para que acontecesse”
(1974/1994, p. 74). A falha, o colapso, deu-se fora do psiquismo, num “sem
lugar”, “sem tempo”, “sem forma” e não pode pertencer ao passado a
menos que possa ser experienciada pela primeira vez no presente. “Para
entender isto é preciso pensar, não em um trauma, mas em que nada
aconteceu quando algo deveria ter acontecido” (1974/1994, p. 75). É esta a
razão de o que se deu no período de não-integração não ter como ser
resgatado ao modo de uma lembrança esquecida ou desfigurada nas dobras
do inconsciente, nas formas clássicas da transferência.
Nessas situações de regressão, quase tudo o que está ocorrendo de
importante se dá no pré-verbal e há aí um desafio para o analista: ele
precisa saber tudo o que se refere a interpretações relativas ao material
apresentado, mas
deve ser capaz de se conter para não ser desviado para essa função, que seria inapropriada,
porque a necessidade principal é a de apoio simples ao ego, ou de holding. Esse holding, como a
tarefa da mãe no cuidado do bebê, reconhece tacitamente a tendência do paciente a se
desintegrar, a cessar de existir, a cair para sempre. (1965vd[1963]/1983, p. 217)
De extrema importância, a tarefa analítica é, por via da manutenção
cuidadosa da continuidade previsível e regular do setting, criar as condições
para que uma falha do analista seja sentida como tal, como falha do
ambiente. Note-se que “falha”, aqui, deve ser entendida estritamente com
relação à necessidade do paciente que se permite estar não-integrado,
dependente e fundido com o analista: qualquer movimento deste para fora
da órbita de onipotência do indivíduo poderá ser sentido como falha. E será
essa a ocasião para aquela falha, sofrida, mas não experimentada no período
de não-integração, ganhar um contexto, uma configuração, uma história,
acontecer enfim, e, reconhecida, tornar-se uma experiência do indivíduo. A
esse respeito, relata Winnicott referindo-se a uma paciente: Ela “sempre
sentiu espanto (awful), mas durante um quarto de hora sentiu espanto a
respeito de algo” (1989d[1965]/1994, p. 104). Para Winnicott, quando as
falhas do analista são eventuais e não têm um padrão fixo próprio, o
paciente terá sensibilidade maior para aquele tipo de falha que corresponde
ao padrão segundo o qual o próprio ambiente do paciente falhou a este,
numa etapa significativa (cf. 1989b[1966]/1994, p. 129).
Mas, para que o paciente ouse aproximar-se do vazio amorfo que o
habita sem lugar próprio, há que se tecer, antes, a casa: uma base muito
firme de confiabilidade feita dos cuidados básicos de permanência,
regularidade, simplicidade, monotonia, isto é, estabelecer a ilusão da
onipotência sobre cujo chão, bem-assentado, a falha, a desilusão
configurada, possa ser experimentada, sofrida e suportada. Bem amparado,
o paciente pode começar a ter sentimentos e não apenas estar mergulhado
em sensações; já pode sentir falta de algo, e não, apenas, o vazio de tudo; já
pode sofrer frustração e ódio e não mais aniquilamento. Diz Winnicott,
referindo-se a outra paciente: “Minha tarefa consistia, em primeiro lugar,
em cooperar com seu processo de idealização a meu respeito e depois
compartilhar o peso da responsabilidade pela quebra dessa idealização, na
raiz de seu ódio” (1989d[1965]/1994, pp. 104-105). Nas condições
altamente especializadas do setting analítico, e após estabelecida
firmemente a confiabilidade, a falha pode acontecer e dar cidadania ao ódio.
“Na recuperação da situação original de fracasso, quando a situação
congelada de fracasso descongela, o indivíduo pode, pela primeira vez,
sentir-se frustrado e desenvolver defesas mais complexas, assim como
experimentar fúria ou ira, exatamente contra o fracasso” (1987b/1990, 54).
E ainda:
essas falhas produzem raiva, o que é valioso, porque essa raiva traz o passado para o presente.
No momento da falha (ou falha relativa) inicial, a organização egoica do bebê não estava
suficientemente preparada para uma coisa tão complexa como a de sentir raiva acerca de uma
questão concreta. (1970b[1969]/1994, p. 199)
É apenas na regressão à dependência que a necessidade do paciente de
experienciar o vazio, o não acontecido, a decepção, pode emergir e ter
lugar. É só dentro do suporte do analista que a falha terá essa função e essa
importância. Winnicott relata como seria, se fosse verbal, a demanda de um
paciente que se vê prestes a entrar em regressão à dependência:
Já é hora de você se decidir: ou vai até o final ou se retira. Não me importa que me diga
agora que não está em condições de fazê-lo, mas se continua avançando, eu lhe entregarei algo
que é muito meu e me tornarei perigosamente dependente de você e seus erros terão uma enorme
importância. (1989m[1964]/1994, p. 78)
O destaque a essa questão não nos deve levar a pensar que, no trato do
fronteiriço, Winnicott aconselha,ao analista, programar falhas. Tanto na
adaptação como na desadaptação, no erro ou no acerto, qualquer
mecanicismo malogra na tarefa de introduzir o bebê ou paciente no mundo
humano. Do mesmo modo que a mãe “suficientemente boa”, o analista
falhará espontaneamente pelo simples fato de ser humano e de as
necessidades do paciente, assim como as do bebê, serem, por assim dizer,
“inumanas”. Trata-se de estar atento e usar analiticamente a situação.
Uma das ocasiões mais frequentes de falha refere-se a tempo: em virtude
do próprio cansaço decorrente do caráter absorvente da adaptação completa
e sentindo-se chamados por outros interesses, mãe ou analista superestimam
os progressos do bebê ou do paciente e antecipam possibilidades ainda não
estabelecidas. O paciente sente-se sobrecarregado, não visto e, de novo, seu
“ali estar” se constitui num peso do qual ele mesmo e quem o cuida quer se
livrar. O recuo é inevitável. Temos muita sorte quando o paciente pode
avançar do retraimento para a regressão e entregar-se, em dependência, aos
nossos cuidados (cf. 1955e[1954]/2000, p. 347).
Na regressão à dependência, pisamos num terreno extremamente frágil:
há grandes riscos envolvidos, mas eles têm que ser corridos. “Nos casos
graves, tudo o que importa e é real, pessoal, original e criativo, permanece
oculto e não manifesta qualquer sinal de existência. Nesse caso extremo, o
indivíduo não se importaria de viver ou morrer” (1971g/1975, p. 99).
Silêncios, retraimentos e, sobretudo, aquilo que Freud denominou
resistência terapêutica negativa são, em geral, entendidos como resistência à
própria relação e/ou a um conteúdo pulsional indesejável. Freud
surpreendeu-se ao dar-se conta de que o paciente lutava contra a cura, e só
então pode configurar o mecanismo de resistência. Se levarmos isto até o
final, veremos que a resistência pode estar sediada numa recusa ainda mais
básica, e sem conteúdo, recusa a qualquer possibilidade de ser, de existir.
“Não me faça querer ser”, dizia uma paciente de Winnicott, citando o poeta
Hopkins. Um pouco antes, na sessão, ela dissera: “Tenho às vezes a
sensação de que nasci... Se não tivesse acontecido! Isso me vem; não é
como a depressão”. Winnicott diz: “Se você tivesse podido não existir de
modo algum teria sido bom”. Ela: “Mas o que é tão horrível é a existência
negada! Nunca houve uma época em que eu pensasse: que coisa boa ter
nascido! Tenho sempre presente que teria sido melhor se eu não tivesse
nascido, mas quem sabe? Poderia ser, não sei. É uma questão: quando não
se nasce nada existe também, ou há uma almazinha esperando para aparecer
num corpo?” (1971r/1975, p. 89).
É somente com a permissão e o suporte para não ser que o existir pode
começar a ser possível. “É apenas da não existência que a existência pode
começar”, afirma Winnicott (1974/1994, p. 76). Tal como na aceitação e
suporte da mãe ao estado não-integrado do bebê. Talvez, a falha maior do
analista, nesses casos, seja uma incapacidade de suportar (e até de atinar
com) a negatividade que desfaz toda realidade e uma impaciência para
introduzir o paciente na existência, na positividade da vida onde as coisas
acontecem. A confiabilidade do setting pode ajudar o paciente a querer ser,
mas ele precisa confiar em que pode recuar e, de vez em quando, deixar de
existir; ele necessita saber que o analista suporta esse retorno à não
existência, ao estado não-integrado, amorfo, da completa dependência:
O sentimento do eu (si-mesmo) surge na base de um estado não-integrado que, contudo, por
definição, não é observado e recordado pelo indivíduo e que se perde, a menos que seja
observado e espelhado de volta por alguém em quem se confia, que justifica a confiança e atende
à dependência. (1971r/1975, p. 88)
Referências
Khan, M. (1991). Introdução . In D. Winnicott (1991/1986a), Holding e
interpretação. São Paulo: Martins Fontes.
Khan, M. (2000). Prefácio. In D. Winnicott (2000/1958a), Textos
selecionados: da pediatria à psicanálise (trad. Davy Bogomoletz, trad.).
Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1978)
Loparic, Z. (1990). Heidegger réu: um ensaio sobre a periculosidade da
filosofia. Campinas: Papirus.
Loparic, Z. (1991). Um olhar epistemológico sobre o inconsciente
freudiano. In F. Knobloch (Org.), O inconsciente: várias interpretações
(pp. 43-58). São Paulo: Escuta.
Loparic, Z. (1995). Winnicott e o pensamento pós-metafísico. Psicologia
USP, 6(2), 39-61.
Loparic, Z. (1998). Psicanálise: uma leitura heideggeriana. Veritas, 43(1),
25-41.
Loparic, Z. (1999). É dizível o inconsciente? Natureza humana, 1(2), 323-
385.
Loparic, Z. (2001). Além do inconsciente: sobre a desconstrução
heideggeriana da psicanálise. Natureza humana, 3(1), 91-140.
Pessanha, J. G. (1992). O Ponto K – Heidegger e Freud. IDE − Revista da
Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo, n. 22, 80-89.
Pessoa, F. (1986). Livro do desassossego. In F. Pessoa, Obra poética e em
prosa (Vol. 2). Porto: Lello e Irmão.
Pontalis, J-B. (1977). L’illusion maintenue. In J-B Pontalis, Entre le rêve et
la douleur. Paris: Gallimard. (Trabalho original publicado em 1971)
Pontalis, J-B. (1977). Trouver, accueillir, reconnaître l’absent. In J-B
Pontalis, Entre le rêve et la douleur. Paris: Gallimard. (Trabalho original
publicado em 1975)
Sechehaye, M. A. (1988). La realización simbólica y Diário de una
esquizofrénica. México: Fondo de Cultura Económica.
Winnicott, D. W. (1971). A criança e seu mundo (Álvaro Cabral, trad.). Rio
de Janeiro: Zahar. (Trabalho original publicado em 1964a. Título original:
The child, the family and the Outside World)
Winnicott, D. W. (1975). O brincar: a atividade criativa e a busca do eu
(self). In D. Winnicott (1975/1971a), O brincar e a realidade. Rio de
Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1971r)
Winnicott, D. W. (1975). O brincar e a realidade. Rio de Janeiro: Imago.
(Trabalho original publicado em 1971a. Título original: Playing and
Reality)
Winnicott, D. W. (1975). A criatividade e suas origens. In D. Winnicott
(1975/1971a), O brincar e a realidade. Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho
original publicado em 1971g)
Winnicott, D. W. (1975). Objetos transicionais e fenômenos transicionais.
In D. Winnicott (1975/1971a), O brincar e a realidade. Rio de Janeiro:
Imago. (Trabalho original publicado em 1953c[1951])
Winnicott, D. W. (1975). Sonhar, fantasiar e viver: uma história clínica que
descreve uma dissociação primária. In D. Winnicott (1975/1971a), O
brincar e a realidade. Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado
em 1971h)
Winnicott, D. W. (1983). O ambiente e os processos de maturação. Porto
Alegre: Artes Médicas. (Trabalho original publicado em 1965b. Título
original: The Maturational Processes and the Facilitating Environment)
Winnicott, D. W. (1983). Classificação: existe uma contribuição
psicanalítica à classificação psiquiátrica? In D. Winnicott (1983/1965b), O
ambiente e os processos de maturação. Porto Alegre: Artes Médicas.
(Trabalho original publicado em 1965h[1959])
Winnicott, D. W. (1983). Comunicação e falta de comunicação levando ao
estudo de certos opostos. In D. Winnicott (1983/1965b), O ambiente e os
processos de maturação. Porto Alegre: Artes Médicas. (Trabalho original
publicado em 1965j[1963])
Winnicott, D. W. (1983). Contratransferência. In D. Winnicott
(1983/1965b), O ambiente e os processos de maturação. Porto Alegre:
Artes Médicas. (Trabalho original publicado em 1960a)
Winnicott, D. W. (1983). Distúrbios psiquiátricos e processos de maturação
infantil. In D. Winnicott (1983/1965b), O ambiente e os processos de
maturação. Porto Alegre: Artes Médicas. (Trabalho original publicado em
1965vd[1963])
Winnicott, D. W. (1983). A integração do ego no desenvolvimento da
criança. In D. Winnicott (1983/1965b), O ambiente e os processos de
maturação. Porto Alegre: Artes Médicas. (Trabalho original publicado em
1965n[1962])
Winnicott, D. W. (1987). Privação e delinquência. São Paulo: Martins
Fontes. (Trabalho original publicado em 1984a. Título original:Deprivation and Delinquency)
Winnicott, D. W. (1987). A tendência antissocial. In D. Winnicott
(1987/1984a). Privação e delinquência. São Paulo: Martins Fontes.
(Trabalho original publicado em 1958c[1956])
Winnicott, D. W. (1989). O conceito de indivíduo saudável. In D. Winnicott
(1989/1986b), Tudo começa em casa. São Paulo: Martins Fontes.
(Trabalho original publicado em 1971f [1967])
Winnicott, D. W. (1989). Tudo começa em casa. São Paulo: Martins Fontes.
(Trabalho original publicado em 1986b. Título original: Home is Where
We Start From)
Winnicott, D. W. (1990). O gesto espontâneo. São Paulo: Martins Fontes.
(Trabalho original publicado em 1987b. Título original: Selected Letters
of D. W. Winnicott)
Winnicott, D. W. (1990). Natureza humana. Rio de Janeiro: Imago.
(Trabalho original publicado em 1988. Título original: Human Nature)
Winnicott, D. W. (1991). Holding e interpretação. São Paulo: Martins
Fontes. (Trabalho original publicado em 1986a. Título original: Holding
and Interpretation. Fragment of an Analysis)
Winnicott, D. W. (1994). Ausência e presença de um sentimento de culpa,
ilustradas em duas pacientes. In D. Winnicott (1994/1989a), Explorações
psicanalíticas. Porto Alegre: Artes Médicas. (Trabalho original publicado
em 1989b[1966])
Winnicott, D. W. (1994). O conceito de trauma em relação ao
desenvolvimento do indivíduo dentro da família. In D. Winnicott
(1994/1989a), Explorações psicanalíticas. Porto Alegre: Artes Médicas.
(Trabalho original publicado em 1989d[1965])
Winnicott, D. W. (1994). A experiência mãe-bebê de mutualidade. In D.
Winnicott (1994/1989a), Explorações psicanalíticas. Porto Alegre: Artes
Médicas. (Trabalho original publicado em 1970b[1969])
Winnicott, D. W. (1994). Explorações psicanalíticas. Porto Alegre: Artes
Médicas. (Trabalho original publicado em 1989a. Título original:
Psychoanalytic Explorations)
Winnicott, D. W. (1994). A importância do setting no encontro com a
regressão na psicanálise. In D. Winnicott (1994/1989a), Explorações
psicanalíticas. Porto Alegre: Artes Médicas. (Trabalho original publicado
em 1989m[1964])
Winnicott, D. W. (1994). O medo do colapso. In D. Winnicott
(1994/1989a), Explorações psicanalíticas. Porto Alegre: Artes Médicas.
(Trabalho original publicado em 1974)
Winnicott, D. W. (1994). Tipos de caráter: o temerário e o cauteloso
(Michael Balint). In D. Winnicott (1994/1989a), Explorações
psicanalíticas. Porto Alegre: Artes Médicas. (Trabalho original publicado
em 1989xd[1954])
Winnicott, D. W. (1994). O uso de um objeto e o relacionamento através de
identificações. In D. Winnicott (1994/1989a), Explorações psicanalíticas.
Porto Alegre: Artes Médicas. (Trabalho original publicado em
1969i[1968])
Winnicott, D. W. (1997). Pensando sobre crianças. Porto Alegre: Artes
Médicas. (Trabalho original publicado em 1996a. Título original:
Thinking About Children)
Winnicott, D. W. (1997). Um vínculo entre a pediatria e a psicologia
infantil: observações clínicas. In D. Winnicott (1997/1996a), Pensando
sobre crianças. Porto Alegre: Artes Médicas. (Trabalho original publicado
em 1969f[1968])
Winnicott, D. W. (2000). Aspectos clínicos e metapsicológicos da regressão
dentro do setting psicanalítico. In D. Winnicott (2000/1958a), Textos
selecionados: da pediatria à psicanálise (Davy Bogomoletz, trad.). Rio de
Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1955d[1954])
Winnicott, D. W. (2000). Preocupação materna primária. In D. Winnicott
(2000/1958a), Textos selecionados: da pediatria à psicanálise (Davy
Bogomoletz, trad.). Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado
em 1958n[1956])
Winnicott, D. W. (2000). Retraimento e regressão. In D. Winnicott
(2000/1958a), Textos selecionados: da pediatria à psicanálise (Davy
Bogomoletz, trad.). Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado
em 1955e[1954])
Winnicott, D. W. (2000). Textos selecionados: da pediatria à psicanálise
(Davy Bogomoletz, trad.). Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original
publicado em 1958a. Título original: Collected Papers: Through
Paediatrics to Psychoanalysis)
1. O presente artigo foi apresentado no II Encontro Latino-Americano sobre o pensamento de D. W.
Winnicott: aspectos técnicos de sua obra (outubro de 1993, Montevideo) e publicado
originalmente em espanhol em Enfoques teórico-tecnicos sobre D. W. Winnicott, tomo I
(coletânea dos trabalhos apresentados no encontro mencionado), pela editora da Fundación
Winnicott de Montevideo (1993). Posteriormente, foi publicado em português, pela primeira vez,
em Percurso Revista de psicanálise, n. 13, 1994, pp. 71-78. Para a presente edição, foram feitas
algumas correções vernaculares e acrescentadas algumas notas de atualização conceitual, com a
bibliografia correspondente.
2 . Nota acrescentada em 2011: Hoje eu diria “As neuroses, organizadas em solo instintual...”, e essa
mesma ressalva vale para a maior parte dos termos “pulsão” e “pulsional” que se encontrarem
adiante, embora alguns, como quando uso “conflito pulsional”, devessem ser substituídos por
“conflitos derivados da vida instintual”. Percebo hoje que usei algumas vezes o termo “pulsional”
para referir-me ao que Winnicott chama de “profundo”, relativo ao inconsciente reprimido,
distinguindo este do que é “primitivo”. Esse é o caso quando digo, no início do item 2, tratar-se
de um momento pré-objetal, pré-pulsional e pré-simbólico; hoje, eu substituiria “pré-pulsional”
por “pré-representacional”. Há outras passagens, ainda, em que “pulsional” poderia ser
substituído por “inconsciente”, como é o caso da expressão “conteúdo pulsional indesejável”
quase ao final do artigo. Como se vê, já neste artigo, o termo “pulsão”, consagrado na psicanálise
tradicional, adquiriu uma abrangência que dilui distinções categoriais importantes. O fato é que,
na ocasião em que escrevi o artigo, eu não havia ainda me dado conta que a “pulsão”, sendo um
conceito especulativo pertencente à metapsicologia freudiana, era inteiramente estranho ao tipo
de teorização e à linguagem correspondente praticadas por Winnicott em seu estudo da natureza
humana. A isso se acresceu o fato de que a tradução disponível de Da pediatria à psicanálise era
a de Jane Russo, editada pela Francisco Alves; nela, não só o termo “instinct” ou “instinctual”,
mas também o termo “drive”(impulso), usados por Winnicott, foram traduzidos por “pulsão” ou
“pulsional”.
3 . Nas neuroses, a vida já começou e o indivíduo está enraizado num mundo de cuja realidade não
duvida, apanhado pela trama consistente da positividade do viver: o cheio (positivo) dos
acontecimentos, reminiscências, fantasias, feridas, traumas; a cena aberta onde o enredo do existir
pode se desenrolar, tempo pessoal estendido − passado, presente, futuro − às vezes distorcido,
encavalado, mas horizonte no qual o indivíduo tece a sua história. Nas psicoses fronteiriças, no
entanto, não há cena: uma ausência peculiar, um vazio afetivo atravessa toda presença. Daí a
estranheza e perplexidade que invade o analista ou interlocutor eventual. O indivíduo não
apresenta traços abertamente patológicos e seus relatos, pertinentes, exibem contatos
aparentemente bem-estabelecidos ou coloridos por conflitos neuróticos triviais. Perpassa-os,
contudo, uma inconsistência básica, como se nada pudesse ser propriamente real. Os vínculos,
frouxos, externos, duram o tempo da presença real, concreta e só esta existe. Parece que os
vínculos, atuados, mas não vividos, não têm onde se referir, onde se demorar internamente, nem
como, costurando-se uns aos outros, entretecerem enredos. O mundo está fora, como um filme
que não lhe diz respeito, e não há ponte possível a não ser pela observância das regras e
submissão aos roteiros e expectativas prescritos. O que parece faltar-lhes é a matéria-prima
mesmo do viver: a possibilidade de deixarem-se afetar (afetos) pelos outros e pelos
acontecimentos, e de aí vincular-se. A quebra é anterior ao estabelecimento de vínculos; é relativa
à própria possibilidade de formá-los. É uma quebra na ordem do ser. “Tudo o que conseguifoi
aquilo que não consegui”, dizia uma paciente de Winnicott. Este comenta: “Temos aqui uma
tentativa desesperada de transformar a negativa numa última defesa contra o fim de tudo. O
negativo é o único positivo” (1953c[1951]/1975, p. 42).
4 . Nota acrescentada em 2011: Seguindo Winnicott, eu não usaria hoje o termo “vínculos” (links)
para referir-me a relações, primitivas ou não, entre pes soas. Para relacionamentos pessoais,
Winnicott usa os termos “relationship”, “relations” e mesmo “bonds”; o termo “link” é usado
apenas para o caso de ligações entre setores, categorias ou objetos, por exemplo, no título do
artigo “A link between paediatrics and child psychology: clinical observation”
(1969f[1968]/1997).
5 . É a inconfigurabilidade das pulsões, nesse momento, em que ainda não há eu nem não-eu, que
leva Winnicott a afirmar que “não há id antes do ego” (1965n[1962]/1983, p. 55).
6 . A prioridade dessa necessidade fica clara quando se atenta para aquela que é, em geral,
mencionada, por Winnicott, como a primeira das três conquistas que perfazem o processo de
integração (e também denominada de integração, tal como o processo global, o que sugere que é a
mais básica): trata-se da reunião (integração num si-mesmo) das possibilidades de ser do bebê (aí
entram os impulsos eróticos e agressivos) numa unidade espaço-tempo. Diz Winnicott: “A
tendência principal no processo maturativo está contida nos vários significados da palavra
integração. A integração no tempo se acrescenta ao que poderia ser denominado integração no
espaço” (1965n[1962]/1983, p. 58).
7 . Isto vale para o bebê e vale também para o paciente fronteiriço que, quando tudo corre bem, e são
oferecidas as condições altamente especializadas do holding analítico, alcançará regredir à
dependência.
8 . A dependência absoluta não pode, portanto, ser pensada de modo trivial (a desvalia do bebê para a
sobrevivência), tampouco referida a uma suposta “produção” do bebê, pelo ambiente, o bebê, de
si, tábula rasa. Também não se trata de dependência afetiva, no sentido tradicional, uma vez que,
nesse momento, ainda não há afetos. Trata-se de uma dependência estrutural, ontológica. Como,
em Winnicott, não há como se contar com uma constituição que, autônoma e intrapsiquicamente
vá de si, inscrita na ordem da natureza, tudo só se dá no encontro. Repetindo, isso não significa
que o ambiente faz o bebê, mas, sim, que o bebê depende inteiramente da mãe para chegar a ser
aquilo que já é enquanto possibilidade. As possibilidades virtuais são do bebê, mas precisam ser
atualizadas e isso só acontece no encontro com o mundo do qual a mãe é a primeira representante.
Isto é, ou a mãe, na medida e no ritmo do bebê, tem êxito na tarefa de introduzi-lo no espaço e no
tempo do mundo, na presença das coisas, cuidando de protegê-lo das invasões e precocidades, ou
o bebê fica, por assim dizer, desacontecido. Ao invés de nascer, encrua. É no vazio do não
acontecido que o fronteiriço orbita, sem tempo e sem lugar.
9 . Esse é um dos pontos mais fascinantes da obra de Winnicott e que o vincula ao pensamento pós-
metafísico. Se, para a psicanálise clássica, é preciso desfazer-se das ilusões para chegar à
realidade, em Winnicott é apenas através da ilusão que a relação com a realidade externa, via
realidade compartilhada, é possível (cf. Pontalis, 1971/1977). Fora do lugar da ilusão, isto é, se o
novo indivíduo é exposto prematuramente à consciência da externalidade do mundo, o não-eu
pode ficar definitivamente inóspito, eternamente estrangeiro, e incriável porque já pronto na sua
absoluta e crua exterioridade. Seria como cair na pura fisicalidade, iluminação sem sombras,
mecânica e desprovida de significado: o “sistema”, a “irrealidade” da esquizofrênica de
Sechehaye (1988).
10 . Pessanha, 1992, p. 82. Recomendo vivamente ao leitor interessado na questão da não existência,
desse “aquém do princípio do prazer”, o artigo de Pessanha acerca da temporalidade e
negatividade em Freud e Heidegger. Faz parte de um projeto de reflexão, iniciado por Zeljko
Loparic, que visa a pensar as categorias da psicopatologia freudiana à luz da ontologia
heideggeriana exposta em Ser e tempo (1927). Nota acrescentada em 2011: cf., por exemplo,
entre outros, Loparic, 1995, 1998, 1999 e 2001.
11. Essa é a agonia impensável de “cair para sempre”: cair fora da casa do mundo, exilado do lugar
onde se pode habitar na presença e na familiaridade das coisas, na repetição cotidiana e
asseguradora dos hábitos, e na tradição, entre proximidades e distâncias, concernido e atingido
pelos acontecimentos, lugar onde se vai urdindo o destino em histórias, vida que pode ser
contada, sentida e projetada. Apátrida, o exilado da vida diria como o semi-heterônimo de
Fernando Pessoa, Bernardo Soares: “Sou os arredores de uma vila que não há, o comentador
prolixo a um livro que se não escreveu. Não sou ninguém, ninguém. Não sei sentir, não sei
pensar, não sei querer. Sou uma figura de romance por escrever, passando aérea, e desfeita sem ter
sido, entre os sonhos de quem me não soube completar” (Pessoa, 1986, p. 667).
12. No belíssimo artigo que prefacia a tradução francesa, feita por ele mesmo, de O brincar e a
realidade, descreve Pontalis, pelo negativo, o paradoxo central da falha não experienciada: algo
“teve lugar sem encontrar seu lugar psíquico; não está depositado em parte alguma. Não é um
traumatismo enterrado na memória, qualquer que seja a profundidade com que se o postule. Não
é, igualmente, o reprimido no sentido de um traço que estaria inscrito num sistema relativamente
autônomo do aparelho psíquico. Falar mesmo de clivagem, com aquilo que a noção implica de
um elemento interno irredutível seria, a meu ver, errôneo” (Pontalis, 1975/1977, p. 196).
4 
Winnicott: agressividade e teoria do
amadurecimento1
1. Introdução
Winnicott dedicou muito de seu esforço teórico para a elucidação da
agressividade e destrutividade inerentes à natureza humana. A questão
atravessa toda a sua obra e constitui um dos melhores exemplos de
mudança paradigmática com relação à psicanálise tradicional. Uma
formulação mais acabada da questão só veio a ocorrer, segundo ele mesmo,
em um de seus últimos e mais importantes artigos: “O uso de um objeto e o
relacionamento através de identificações”, de novembro de 1969.2
Ao longo da obra, e já no seu primeiro artigo sobre o tema, “A agressão
e suas raízes”, escrito em 1939, a concepção de Winnicott diverge das
teorias freudiana e kleiniana. Com relação a Freud, o ponto de discordância
central reside no fato de este localizar as raízes da agressividade na reação
às inevitáveis frustrações, no contato com o princípio de realidade. Para
Winnicott, contudo, a agressividade, que é relativa à frustração, pressupõe
um alto grau de amadurecimento impossível de ser concebido nos
momentos iniciais. Ele diz:
Que exista raiva provocada pela frustração durante essa fase é inteiramente óbvio, mas, em
nossa teoria dos sentimentos e estágios mais primitivos, temos que estar preparados para a
agressão que precede a integração do ego, integração que torna possível a raiva pela frustração
instintual e faz com que a experiência erótica seja uma experiência. (1955c[1954]/2000, p. 302)
Com relação à teoria kleiniana, os motivos são bem conhecidos: nela, a
agressividade humana, que se expressa como inveja, ódio ou sadismo, é
sempre uma manifestação da pulsão de morte, ou pulsão destrutiva, e esta é
um elemento constitucional do indivíduo, variando de intensidade. Para
Winnicott, a agressividade que alguns bebês manifestam, desde o início,
nunca é uma questão exclusiva da emergência de instintos agressivos
primitivos e “nenhuma teoria válida sobre a agressividade poderá ser
construída sobre premissa tão falsa” (1957d[1939]/1987, p. 90). Com
relação a ambas, uma outra objeção: as duas teorias deixam de considerar a
importância do ambiente nos estágios iniciais, ou seja, a dependência do
bebê e o fato de que este reage ao tipo de cuidados que recebe.
Pretendo, neste estudo, examinar alguns doselementos conceituais que
Winnicott nos oferece para a compreensão dos vários fenômenos de
agressividade e destacar aspectos da originalidade da sua concepção. Vou
me restringir, basicamente, aos estágios iniciais, nos quais se mostram as
raízes da agressividade.3
2. Pressupostos básicos da concepção winnicottiana sobre a
agressividade
1) A agressividade é inerente à natureza humana e, portanto, inata, mas
não no sentido constitucional, biológico ou psíquico, senão no sentido de
pertencer ao estar vivo e à defesa natural da posição relativa ao EU SOU.
2) A agressividade, que é natural aos seres humanos, não tem uma única
raiz nem significado unívoco. Ao contrário, tem várias naturezas e
diferentes formas de manifestação e a consideração do tema remete a um
estudo de suas raízes.
3) Embora inerente, a agressividade só se desenvolverá, e se tornará
parte do indivíduo, se lhe for dada a oportunidade de experienciá-la de
acordo com a sua necessidade e emergência no processo de
amadurecimento. Para Winnicott, é a atitude do ambiente com relação à
agressividade do bebê que influencia de maneira determinante o modo
como este irá lidar com a tendência agressiva que faz parte da sua natureza
humana.4 No início de um de seus mais famosos artigos, “A agressão e sua
relação com o desenvolvimento emocional”, ele começa dizendo: “A ideia
central por trás deste estudo da agressividade é a de que, se a sociedade
encontra-se em perigo, não é por causa da agressividade do homem, mas
em consequência da repressão da agressividade pessoal nos indivíduos”
(1958b[1950]/2000, p. 288; os itálicos são meus).
4) Se o ambiente fornece cuidados satisfatórios e se mostra capaz de
reconhecer, aceitar e integrar essa manifestação do humano, a fonte de
agressividade − que, no início, é motilidade e parte do apetite − torna-se
integrada à personalidade total do indivíduo e será elemento central em sua
capacidade de relacionar-se com outros, de defender seu território, de
brincar e de trabalhar. Se não for integrada, a agressividade terá que ser
escondida (timidez, autocontrole) ou cindida, ou ainda poderá redundar em
comportamento antissocial, violência ou compulsão à destruição.
5) Isso nos remete ao pressuposto winnicottiano segundo o qual qualquer
potencialidade do indivíduo só se torna dele se for experienciada. Não há,
em Winnicott, uma instância abstrata (e substancial) que predetermina os
modos de ser do homem.
6) Em termos da fenomenologia, é preciso atentar para o fato de que a
fraqueza, o retraimento e a omissão são tão agressivos quanto a
manifestação aberta de agressividade. Ser roubado é tão agressivo quanto
roubar. Suicídio é fundamentalmente igual a assassinato (cf.
1958b[1950]/2000, p. 288).
7) No que diz respeito às raízes da agressividade e, portanto, aos estágios
iniciais, os afetos ainda não estão envolvidos. A agressividade, nesse
momento, nada tem a ver com amor ou ódio. Amar e odiar são conquistas
do amadurecimento que têm pré-requisitos. Se o indivíduo não se constituir
como um EU, se ele não puder proceder à criação da externalidade pela
destruição sem raiva, no anger, dos objetos subjetivos e não puder usar
objetos que são independentes e externos ao si-mesmo, ele não poderá usar
esses objetos para o amor, na genitalidade, por exemplo, nem poderá odiá-
los. O ódio, diz Winnicott, é uma conquista da civilização.
8) Precisamos de dois termos que auxiliem na distinção de tendências de
diferentes naturezas e estes serão: agressividade e destrutividade. Pode
haver destrutividade sem agressão e pode haver agressão sem
destrutividade.
9) Em vez de ser manifestação de forças ou afetos operando intra‐ 
psiquicamente, a agressividade e a destrutividade, na obra de Winnicott,
estão relacionadas à questão da constituição da realidade externa. Num
texto de 1964, lê-se: “a agressão está sempre ligada ao estabelecimento de
uma distinção entre o que é eu e o que é não-eu” (Winnicott, 1964d/1987, p.
98). É essa a questão que acaba por resolver-se, em 1968, no artigo “O uso
do objeto”. A resolução implicou a formulação de um tipo de
destrutividade, sem raiva, não instintual, que, envolvendo um impulso de
destruição efetiva – destruição do objeto subjetivo –, se transforma, caso o
objeto externo (que é subjetivo para o bebê) sobreviva, em capacidade para
a destruição potencial, isto é, destruição na fantasia inconsciente. É através
dessa destruição que o indivíduo cria a externalidade do mundo e chega à
capacidade de usar objetos. Sem essa conquista, pode ocorrer de o
indivíduo jamais chegar à realidade do amor e do ódio referido a outra
pessoa, nem chegar à destrutividade inerente à sua natureza e que é a única
base verdadeira para a capacidade de amar e de construir, também
pertencente à natureza humana.
3. Raízes da agressividade
Se examinarmos as raízes da agressividade, temos que levar em conta: 1)
a raiz instintual da destrutividade, que é inerente ao impulso amoroso
primitivo; 2) a motilidade (erotismo muscular) como manifestação do estar-
vivo; 3) a reação à falha ambiental, que interrompe a linha do ser e
traumatiza; e, 4) num momento posterior, dentro ainda dos chamados
estágios iniciais, a destrutividade no anger, que leva à criação da
externalidade e ao uso do objeto como uma entidade por seu próprio direito.
3.1 A agressividade no período de dependência absoluta
No início, o bebê ainda não está reunido num si-mesmo unitário, vive
num mundo subjetivo onde não há objetos externos ao si-mesmo e a psique
ainda não se alojou no corpo. Nos estados excitados, surgem impulsos
(drives), que têm caráter de urgências, e todos eles decorrem de o bebê estar
vivo. Dois tipos de impulsos devem ser diferenciados: o que tem origem na
tensão instintual e o que deriva da motilidade, da necessidade de
movimentar-se, exercitar a vivacidade, que está presente nos músculos e
tecidos, e de topar com objetos. O primeiro, naturalmente, necessita da
motilidade para manifestar-se.
A motilidade se expressa desde antes do nascimento na movimentação,
algumas vezes intensa e vigorosa, do bebê dentro do útero.5 Depois de
nascer, ao movimentar-se, a criança dá de encontro com alguma coisa e,
com isso, o meio ambiente é constantemente descoberto e redescoberto.
Descobrir o ambiente, nesse momento inicial, não significa que o bebê se
dá conta da existência de objetos externos, mas que começa a haver, pela
repetição do contato, um crescente “conhecimento”, que não é mental, mas
baseado na familiaridade, derivada da experiência repetida, de atributos
como permanência, consistência, durabilidade etc. Tudo isso é anterior à
consciência da existência de um mundo externo e de objetos externos.
A tensão instintual gera no bebê um estado de urgência que pede por
alívio imediato. Ele ainda não sabe nada sobre a necessidade que o aflige ou
o que buscar para aplacá-la, de modo que sua expectativa é vaga e poderia
ser formulada como “o bebê busca algo em algum lugar”. A necessidade é
imperiosa e quando a mãe põe o seio em posição de ser encontrado, ele se
atira impulsivamente a ele. Quando a mãe suficientemente boa atende
prontamente à necessidade, ela não o faz apenas para evitar a frustração,
mas para preservá-lo de uma interrupção da continuidade de ser.
Tanto a movimentação intensa quanto o impulso imperioso de aferrar-se
ao seio e mamar podem parecer, à mãe inexperiente e ao observador, uma
demonstração de agressividade. De fato, dependendo da vitalidade do bebê,
pode acontecer de a atividade da gengiva ser tão vigorosa que machuque o
seio. Para Winnicott, no entanto, não se pode ainda falar de agressividade
nos estágios iniciais, pois esse termo só faz sentido quando a ação é movida
por um propósito e o bebê ainda não está de posse de razões ou
intencionalidade. Não se pode afirmar que o bebê esteja tentando ferir,
“porque ele ainda não está suficientemente amadurecido para que a
agressividade já possa significar alguma coisa” (1969b[1968]/1988, p. 26).
Há muita confusão sobre esse ponto, diz Winnicott, derivada do fato de seusar o termo agressão para esse momento inicial quando o que se quer dizer
é espontaneidade. É a vitalidade e a impulsividade do bebê que se
manifestam no comer e devorar, e na necessidade que ele tem de mexer-se,
topar com objetos e agarrá-los.
3.1.1 A motilidade
Em condições normais, grande parte da motilidade é despendida nas
experiências instintivas e, quando há saúde, cada bebê deve gastar o
máximo possível de motilidade primitiva nessas experiências. No entanto,
haverá sempre um excedente que tem a sua especificidade e precisa ser
experienciado enquanto tal. Para tanto, a motilidade precisa encontrar
oposição, isto é, “precisa de algo contra o qual fazer força, caso contrário,
permanecerá não experimentada, constituindo-se em uma ameaça ao bem-
estar” (1958b[1950]/2000, p. 298). A oposição é necessária para dar
realidade ao impulso e, segundo Winnicott, o que se chama “potencial
agressivo” de um bebê depende da quantidade de oposição até então
encontrada. No contato com o objeto que resiste e se opõe, o bebê
transforma gradualmente a sua vitalidade em capacidade para a agressão.
“Os impulsos agressivos [leia-se espontâneos] não proporcionam nenhuma
experiência satisfatória a não ser que encontrem oposição”
(1955c[1954]/2000, p. 301).6 Ressaltando o que constitui a necessidade
efetiva do bebê, ao mesmo tempo em que reafirma um traço central de sua
teoria, Winnicott diz que “é esta impulsividade e a agressividade que dela
deriva que levam o bebê a necessitar de um objeto externo, e não apenas de
um objeto que o satisfaça” (1955c[1954]/2000, p. 304).
A questão, aqui, é o fornecimento da quantidade adequada de oposição,
porque um excesso de oposição inibe o impulso e impede que a motilidade
se fusione à experiência instintual.7 Se há saúde, a motilidade se funde à
tensão instintual, favorecendo a elaboração imaginativa das funções
corpóreas e, consequentemente, a tarefa de alojamento da psique no corpo é
facilitada. O sentido de real, diz o autor em 1950, se origina especialmente
das raízes motoras (e sensoriais correspondentes) e quando, nas
experiências instintuais, há uma fraca infusão do elemento motor, estas não
fortalecem o sentido de realidade ou de existir. Disso decorre que, muitas
vezes, as experiências instintuais passem a ser evitadas precisamente
porque levam a pessoa a uma sensação de não existir.8 Note-se que esta
questão vai na mesma direção daquela apontada por Winnicott quando diz,
referindo-se à criatividade e à apresentação de objetos, que os impulsos
criativos se apagam se não forem continuamente confrontados com
amostras do mundo que a mãe lhe apresenta (1958j/1980, p. 23).
Além disso − e este é um ponto central −, quando o movimento parte do
bebê, o contato com o meio ambiente é uma experiência do indivíduo. Mas,
se é o meio que repetidamente tem a iniciativa, ao invés de uma série de
experiências individuais, o que ocorre é uma série de reações a invasões; a
impulsividade pessoal fica inibida e a motilidade é experimentada apenas
como uma reação à invasão. Nesse caso, há doença, diz Winnicott. Em
maior ou menor grau, o indivíduo passa a necessitar da oposição, não para
dar realidade ao seu gesto, mas como fonte do movimento, ou seja, o
indivíduo só é capaz de abrir caminho até a importante fonte da motilidade
quando algo se lhe opõe.
Winnicott descreve três padrões: 1) o meio ambiente é constantemente
descoberto pela motilidade e o contato é uma experiência do indivíduo.
Aqui, a impulsividade é pessoal, a motilidade opera junto com a tensão
instintiva e uma experiência pessoal acontece.9 2) É o meio ambiente que
invade o bebê e o que seria uma série de experiências individuais é
substituído por uma série de reações às invasões. Nesse caso, o bebê se
retira para o isolamento e o descanso, a única coisa que permite a existência
individual. 3) No caso extremo, a invasão é de tal ordem que não há nem
mesmo um lugar de descanso para a experiência individual. O indivíduo
passa então a se desenvolver como uma extensão da casca e não do cerne,
como uma extensão do meio ambiente invasor. Nesse caso, já está
ocorrendo o início de um falso si-mesmo patológico.
O primeiro padrão é o que podemos chamar de saudável. Ele é
estabelecido pela totalidade dos cuidados maternos que favorecem os
processos de amadurecimento. Nos dois últimos casos, o impulso só é
experimentado como reação à invasão e, se assim for, o eu não será
estabelecido, uma vez que, na ausência da impulsividade pessoal, as
experiências primitivas de integração num si-mesmo, durante a experiência
instintiva, não ocorrem. “O bebê vive, porque foi seduzido para a
experiência erótica; mas ao lado da vida erótica, que jamais é sentida como
real, há uma vida puramente reativa e agressiva, dependente da experiência
de oposição” (1958b[1950]/2000, p. 303).10 Quando a agressividade é
puramente reativa, ela não chega nem mesmo a organizar-se para a
destruição, uma vez que não tem qualquer raiz no impulso pessoal, mas tem
valor para o indivíduo, porque produz momentaneamente um sentido de
realidade e relação, embora só aconteça por ocasião da oposição ativa e,
mais tarde, pela perseguição. Disto segue que o potencial agressivo
massivo, apresentado por alguns bebês, faz parte da reação às invasões e é
ativado pela perseguição. Nesse caso, o bebê, e, mais tarde, o adulto, dá
boas-vindas à perseguição e se sente real ao reagir a ela. Mas isso, diz o
autor, representa um modo falso de desenvolvimento e o bebê passa a
necessitar de uma perseguição contínua. Deve-se notar que a
persecutoriedade aqui é relativa às invasões ambientais, mas nem toda
ansiedade persecutória se restringe a esse tipo, como veremos. Desse modo,
segundo Winnicott, a quantidade do potencial agressivo não depende de
fatores biológicos, mas sim do acaso das invasões ambientais que
interrompem a continuidade de ser; estas são traumáticas e se devem,
frequentemente, ao estado emocional da mãe ou às suas anormalidades
psiquiátricas (cf. 1955c[1954]/2000, p. 304). Um padrão de personalidade
que pode se tornar característico é o retraimento (agressividade passiva).
Nos casos favoráveis, como já foi dito, é a motilidade que se funde à
tensão instintual, e esse é o caso do primeiro padrão descrito anteriormente.
Quando a fusão, mesmo parcial como sempre é, não ocorre, como no caso
do segundo e terceiro padrão, ou o impulso é inibido ou pode ocorrer uma
falsa fusão, por exemplo, através da erotização dos elementos motores. Ou
seja, na falta do impulso pessoal, o indivíduo “toma carona” na tensão
instintual e, através dela, imprime força à motilidade. Se cresce com esse
padrão, ele terá a tendência de produzir relações, em geral através do
interjogo com outro indivíduo, de modo a achar um caminho para a
agressividade, fazendo fundir o componente erótico com a agressão, que
não é muito mais do que pura motilidade. Nessa falsa fusão, o indivíduo só
se sente real quando é destrutivo e cruel, encontrando-se aí uma das raízes
da tendência sádica compulsiva, tendência que esconde, na verdade, o
masoquismo, uma vez que o indivíduo precisa permanentemente de um
perseguidor.
É possível, portanto, que a ansiedade persecutória de um indivíduo tenha
uma longa história. Esta pode ter se iniciado com a inibição do impulso
pessoal e uma falsa fusão do instinto com a motilidade. Pela ausência do
impulso pessoal, o indivíduo terá dificuldade ou será incapaz, no estágio do
uso do objeto, de proceder à destrutividade que cria a externalidade e,
portanto, de realizar a tarefa de discriminar o eu do não-eu. Sem essa
conquista, não há os requisitos básicos para alcançar a capacidade de sentir
culpa e responsabilidade pela destrutividade contida no impulso de amor
primitivo, no estágio do concernimento.11 A destrutividade (do impulso
amoroso primitivo), que deveria ser pessoal, terá que ser projetada para fora
como não pertencente ao eu, voltando-se contra o indivíduo.
3.1.2 A raiz instintual: o bebê incompadecido
A rigor, quando se refere aos estágios iniciais, Winnicott nãofala em
instintos, mas em tensão instintual. Ele reserva o termo instinto para o
momento do amadurecimento em que a vida instintual puder ser integrada
como uma experiência do eu e isso só se dará no estágio do concernimento,
após a conquista do estatuto de unidade do EU SOU, quando o bebê for
capaz, por ser um eu, de sentir-se concernido e responsável pelos resultados
de seu amor excitado.
No texto de 1939, referindo-se à “agressividade” dos bebês logo no
início da vida, Winnicott a chama de “voracidade teórica”, “amor-apetite-
primário”, e dirá que ela é, originalmente, parte do apetite e se expressa no
comer, devorar. Como já foi mencionado, trata-se de uma impulsividade
que pode parecer cruel, dolorosa, perigosa, mas só o é por acaso (by
chance). “Talvez a palavra voracidade”, diz o autor, “expresse melhor do
que qualquer outra a ideia da fusão original de amor e agressão[...]”. Esse
impulso faz parte da busca de alívio instintual. “O objetivo do bebê é a
satisfação, a paz do corpo e do espírito” (1957d[1939]/1987, p. 92).
Em 1950, reafirmando que a destruição presente no impulso amoroso
primitivo “é apenas incidental à satisfação instintual”, Winnicott acrescenta
um elemento conceitual fundamental que persistirá até o fim de sua obra:
ele postula que, durante os estágios iniciais, o bebê, desconhecendo a
existência tanto do si-mesmo quanto do ambiente, não tem nenhum tipo de
preocupação com respeito aos resultados de seu amor excitado. O bebê é
um si-mesmo primitivo incompadecido (primitive ruthless self). “É
conveniente dizer”, afirma ele, “que os impulsos do amor primitivo (id) têm
uma qualidade destrutiva apesar de o objetivo do bebê não ser a destruição,
já que o impulso é experimentado na era de pré-compadecimento”
(1958b[1950]/2000, p. 296). Há um longo caminho a percorrer até que o
bebê se torne capaz de relacionar-se como uma pessoa total com a mãe
total, podendo, então, sentir-se concernido e preocupado com os efeitos de
seus próprios pensamentos e ações sobre ela.
Esse é um dos pontos que permite uma clara distinção entre a concepção
winnicottiana do amadurecimento pessoal e a teoria do desenvolvimento
das funções sexuais. Como, para Winnicott, o que amadurece é o indivíduo
na direção da integração e não a libido em termos de fases relacionadas a
zonas erógenas, não se trata de as manifestações ditas “agressivas” − o
comer, o devorar, o morder − serem formas sucessivas do desenvolvimento
sexual, cuja progressão é determinada intrapsiquicamente segundo o
modelo biológico. Não se trata de a zona oral ser inicialmente erótica e
depois sádica ou destrutiva. É o bebê que, amadurecendo, torna-se mais
potente e integrado no corpo e precisa, cada vez mais, experimentar sua
força e haver-se com sua crescente capacidade de reconhecer
acontecimentos e objetos. Como, durante todos os estágios iniciais, é
incompadecido, ele continua a manifestar sem preo cupação, e cada vez com
mais força e ousadia, os sinais da sua necessidade nos momentos de
excitação.
O exercício do impulso instintual incompadecido é altamente satisfatório
para o bebê; a maneira como é recebido pela mãe interfere de forma crucial
em como a agressividade será ou não integrada à personalidade total
participando, assim, do amadurecimento do indivíduo. A mãe pode
apavorar-se ou adotar uma atitude moralista, ou ser, talvez, do tipo que se
ressente do ataque do bebê como mais um dos ataques que a vida lhe
reservou. No texto de 1939, Winnicott traz o relato de uma mãe sua
conhecida:
Quando me trouxeram o bebê, ele investiu contra meu seio de um modo selvagem,
dilacerando meus mamilos com as gengivas e, em pouco tempo, o sangue escorria. Senti-me
dilacerada e aterrorizada. Levei muito tempo para me recuperar do ódio que surgiu em mim
contra a pequena fera e acho que essa é uma das principais razões por que o bebê nunca
desenvolveu uma verdadeira confiança quanto ao bom alimento. (1957d[1939]/1987, p. 91)
Pode ocorrer de uma mãe, que aceita muito bem um bebê nos estados
tranquilos, assustar-se e reagir a ele nos estados excitados deste. Às vezes,
há na reação da mãe uma espécie de desaprovação ao “estar vivo”. Também
uma patologia materna, como a depressão, por exemplo, pode traumatizar o
bebê de forma especializada. Cheio de vitalidade, ele avança para o seio e é
amortecido pelo contato de um objeto sem vida. Além disso, existem mães
que resistem à regressão que caracteriza o estado de “preocupação materna
primária” e sentem a amamentação como uma invasão ou uma violência.
Para livrar-se logo da tarefa, elas alimentam o bebê de modo a aplacar o
impulso, a neutralizá-lo. O leite funciona como um narcótico. O bebê, que
estava pronto para um rendez-vous e um ataque canibalístico, é nocauteado.
Esse mesmo resultado pode ocorrer no caso de mães que seduzem o bebê
pela alimentação, e elas o fazem quando se deixam guiar, nos seus
cuidados, pela suposição de que o bebê é primariamente regido pelo
princípio do prazer e o que interessa é a satisfação instintual.12 Há também o
caso em que a mãe, apavorada com a dor, recua, e o bebê, que é vigoroso e
está faminto, se aferra ainda mais ao seio para segurá-lo, detê-lo. Winnicott
assinala também, em um de seus textos mais tardios, que um dos maiores
bloqueios à vida instintual é gerado quando a situação “bebê é o objeto” se
altera violentamente para “bebê confronta o objeto e é confrontado por
este”, o que implica passar repentinamente para uma posição de angústia de
alto grau e um súbito dar-se conta da imaturidade e da dependência.13
Em todos esses casos, só resta ao bebê: 1) esconder seus impulsos, uma
vez que o ambiente não tolera a “agressão” (leia-se a espontaneidade, a
vivacidade); 2) inibir os impulsos instintuais e desenvolver um
autocontrole; 3) cindir os impulsos instintuais, ou seja, o impulso ficará
dissociado, não integrado, desconhecido, cindido, ou 4) desenvolver a
tendência antissocial.
Vejamos este último ponto: se, ao invés de voracidade, aparece avidez,
que já não é vitalidade, mas sofreguidão compulsiva, é preciso supor que a
criança está sofrendo algum grau de deprivação (deprivation), e isso se
manifesta pela busca compulsiva de um cuidado especial, um cuidado que
poderíamos chamar de uma “terapia” para essa deprivação através do meio
ambiente. Winnicott diz: “O impulso de amor primitivo não é a mesma
coisa que avidez implacável. No processo de amadurecimento do bebê, o
impulso instintual voraz e a avidez estão separados pela adaptação materna”
(1958c[1956]/1987, p. 134). O fator de reconhecimento da diferença entre
voracidade e avidez é o valor do incômodo que a criança causa na mãe.
“Qualquer exagero do valor de incômodo de um bebê pode indicar a
existência de um certo grau de privação e tendência antissocial, o que, de
qualquer modo, é sinal de esperança da criança e de potencialidade de
recuperação” (1958c[1956]/1987, p. 133).
Nos fenômenos da deprivação, o que ocorreu é que uma boa experiência
inicial foi perdida. Essa privação, mesmo que referida à amamentação, está
relacionada às necessidades do ego e não às necessidades instintuais e, por
isso, ela não se deve às frustrações.14 Se a amamentação é feita de modo
impessoal, se o que falta é intimidade, comunicação e mutualidade, então as
experiências instintuais tornam-se enfadonhas e “deve ser um grande alívio
chorar de raiva e frustração o que, de qualquer modo, é real e
necessariamente envolve a personalidade toda” (1969b[1968]/1988, p. 24).
A frustração não entra em conta nos fenômenos de privação, porque alguma
frustração sempre há, já que a mãe necessariamente falha em satisfazer as
exigências instintuais. E por que ela necessariamente falha? Porque, caso a
satisfação instintual “fosse completa e sem obstáculos, deixaria insatisfeito
aquilo que, no bebê, deriva da raiz da motilidade” (1958b[1950]/2000, p.
297). A mãe pode, contudo, ser completamente bem-sucedida em satisfazer
as necessidades do ego.
A avidez, que pode se manifestar como inibição de apetite, sujeira
(defecar e urinar) ou destrutividadeexcessiva, é parte da compulsão do
bebê para buscar uma cura por parte da mãe que causou a privação. Essa
avidez é antissocial; é a precursora do furto e pode ser atendida e curada
através de um período especial de adaptação terapêutica da mãe, facilmente
confundida com excesso de mimo. Se a mãe puder reconhecer a avidez do
bebê sem assustar-se, e estiver disposta a satisfazer a necessidade que lhe é
assim comunicada, a compulsão desaparece na grande maioria dos casos.
A mãe, geralmente, é capaz de atender às reclamações compulsivas do bebê e, assim,
realizar uma terapia bem-sucedida do complexo de privação que está próximo do seu ponto de
origem. Ela se aproxima de uma cura porque torna o ódio do bebê capaz de expressar-se embora
ela, a terapeuta, seja de fato a mãe deprivadora. (1958c[1956]/1987, p. 134)15
3.1.3 A reação às invasões ambientais
Uma terceira raiz da agressividade está relacionada com as interrupções
da continuidade de ser. Ela só pode ser entendida a partir da chave
winnicottiana, levando em conta as necessidades de ser do bebê e a sua
situação de dependência inicialmente absoluta e depois relativa. Esse
fenômeno não chegou a ser enfocado pela teoria psicanalítica tradicional
porque, nesta, a situação de dependência do bebê não foi considerada. Isso
não surpreende, uma vez que um dos postulados centrais dessa teoria
estabelece que a realidade não deve entrar na consideração do distúrbio que
atinge o indivíduo, mas apenas a fantasia que encerra o conflito
intrapsíquico inconsciente.16
Ora, o bebê depende inteiramente da mãe para dar sustentação à sua
continuidade de ser. Se o bebê padece, repetidas vezes, de uma quebra na
linha do ser em função de falhas ambientais, instala-se uma espécie de
sobressalto, um estado de alerta contra um perigo ou horror (awful) vago,
mas permanente. Há aí uma raiva embutida, mas esse sentimento não pode
ser configurado e sentido como tal, devido à imaturidade do bebê, no
momento do desastre, que inclui sua total inconsciência quanto à existência
de um ambiente contra o qual insurgir-se.17 Quando o indivíduo, mais tarde,
busca ajuda terapêutica e encontra confiabilidade, a raiva pode começar a
manifestar-se, sobretudo por ocasião de uma falha do analista que atualiza e
dá configuração à falha original. A questão relativa às invasões ambientais
e à raiva não experienciada foi sendo aos poucos formulada com mais
precisão na evolução do pensamento de Winnicott. Por exemplo, no artigo
“Objetos transicionais e fenômenos transicionais”, revisado para a edição
de 1971, de O brincar e a realidade, Winnicott diz que há um momento, no
início, em que o bebê está elaborando a capacidade de manter as pessoas
vivas em sua realidade psíquica, no mundo subjetivo, e necessita da
presença da mãe para que a memória da presença enquanto tal não se
esvaia:
Antes que certo limite seja atingido, a mãe ainda está viva: depois de transposto esse limite,
ela morreu. Entrementes, há um precioso momento de raiva, rapidamente perdida, ou nunca
experimentada talvez, mas sempre potencial e trazendo consigo o medo da violência.
(1953c[1951]/1975, p. 39; os itálicos são meus)
Note-se que a raiva desaparece não em função de uma censura
superegoica a um pensamento ou desejo insuportáveis, mas em virtude de o
bebê, não sendo ainda um eu, não ter como abranger o trauma no âmbito de
sua experiência. O blackout é registrado, de algum modo, mas não pode ser
experienciado enquanto tal.
Dito isso, é fácil entender por que Winnicott não pode aceitar a teo ria
freudiana da agressividade. Essa teoria
revela-se falsa porque deixa de lado duas fontes vitalmente importantes da agressão: aquela
inerente aos impulsos do amor primitivo (no estágio anterior ao concernimento, independente
das reações à frustração) e aquela pertencente à interrupção da continuidade de ser pela intrusão
que obriga a reagir. (1988/1990, p. 155)
4. Desenvolvimento da agressividade na fase de desadaptação
É na fase em que a dependência do bebê se torna relativa que a questão
da agressividade começa a tornar-se crucial. Os componentes agressivos
passam a ter sentido para o indivíduo, o comer se estabelece como parte da
relação com o objeto e as necessidades do bebê incluem, agora, a
oportunidade de ele relacionar-se com os objetos através da agressão
(1989m[1964]/1994, p. 81). De fato, com o tempo, o bebê passa a ter o
impulso de morder, de agarrar e bater com objetos duros, de produzir
barulho, de espernear vigorosamente. Trata-se do início de algo muito
importante, que diz respeito à motilidade cada vez mais forte e desenvolta,
ao exercício do impulso incompadecido e à utilização de objetos
desprotegidos. Muito rapidamente, no entanto, dado o crescente
amadurecimento e o início da elaboração da capacidade de sentir-se
concernido, “o bebê passa a proteger o seio e, na verdade, é muito raro que
mordam o seio com o objetivo de ferir, mesmo quando já possuem dentes”
(1969b[1968]/1988, p. 26). Também pela adoção e posse do objeto
transicional, o bebê vai gradualmente abandonando o controle mágico,
onipotente, do mundo subjetivo e assumindo o controle via manipulação, o
que envolve o prazer do exercício muscular e o da coordenação. Os objetos
transicionais devem ser duráveis, diz Winnicott às mães, porque, a par do
intenso amor que o bebê lhes devota, eles são também tratados com
brutalidade.
Dando continuidade à linha do amadurecimento, a mãe, se é saudável,
começa a cansar-se das exigências da adaptação absoluta e a falhar de
forma gradual, e na medida da crescente capacidade maturacional do bebê.
E é exatamente esta a sua tarefa: desadaptar-se gradualmente e desiludir o
bebê no que se refere à ilusão de onipotência. Se ela não falhar, então estará
falhando com o bebê de forma traumática, isto é, impedindo o seu
amadurecimento. Do processo de desilusão faz parte o desmame, como um
dos seus aspectos mais significativos. São várias, portanto, as ocasiões que
se oferecem de o bebê zangar-se, e é da maior importância que ele possa
encolerizar-se com frequência numa idade em que não precisa sentir
remorso. “Quando o bebê está muito zangado, os pedaços se reúnem na
raiva e com certeza os fragmentos se agrupam”, afirma Winnicott
(1996o[1948]/1997, p.47). O autor assinala que, mesmo na idade adulta,
poder “gritar, vociferar, urrar ou protestar iradamente” é uma das coisas
mais importantes para conectar psique e corpo (1989vm[1969]/1994, p. 92).
Essa raiva não se refere à mãe, que ainda não existe como pessoa separada,
mas é um protesto saudável contra o desconforto de, por exemplo, sentir-se
tolhido em seus movimentos.
Há mães, no entanto, que embora tenham sido particularmente
satisfatórias no período de adaptação absoluta, fracassam na tarefa de falhar
ao bebê. Os bebês cujas mães não são capazes de levar a cabo essa tarefa,
suportando as consequências do processo, veem-se em apuros. Se a mãe se
aferra à adaptação absoluta, desconsiderando a crescente capacidade
maturacional do bebê, pode ocorrer um ódio reativo, que não é ainda o ódio
que comumente se contrapõe ao amor. Isto nos leva à compreensão
winnicottiana do fenômeno teorizado por M. Klein como inveja do seio
bom, fenômeno reconhecido por Winnicott, em seu trabalho clínico, quando
o paciente tenta destruir exatamente a boa capacidade que o analista tem de
analisá-lo.
Vejamos como Winnicott compreende o fenômeno: no mundo subjetivo
do início, o bebê faz a experiência de ser o seio. Dependendo da confiança
que adquiriu em ser capaz de criar aquilo de que necessita, as características
da experiência de ser são incorporadas como atributos do si-mesmo, de
modo que o bebê passa a “ter um seio bom”.18 Este pode então ser projetado
e coincidir com o seio oferecido pela mãe, mas, para tanto, a mãe
suficientemente boa precisa acolher a projeção de tal maneira que a
experiência do bebê com o seio bom seja uma relação com uma projeção de
seu si-mesmo.19 Com o tempo, o bebê de “ter um seio” passa a “usar o
seio”, o que significa que o seio não é apenas uma projeção,mas, além
disso, está disponível para ele, sendo externo ao si-mesmo. Essa conquista
− realizada durante o período de desadaptação gradual que consideraremos
a seguir − implica, entre outras coisas, que a mãe, ao invés de continuar a
adivinhar a necessidade do bebê, permite que este se manifeste através de
sua peculiar comunicação. Se a mãe persiste na adaptação absoluta, se ela
insiste na sua função de provedora para além da necessidade do bebê, se a
consciência da dependência vem antes de o bebê estar preparado, este se vê
diante de duas alternativas: ou regredir para satisfazer a necessidade da mãe
de continuar a provê-lo ou então rejeitar completamente a mãe, mesmo a
mãe que é aparentemente boa. Temos aqui a situação paradoxal de um seio
bom perseguidor, algo que deve ser destruído. Nesse caso, a agressão
dirigida contra o seio bom é reativa e não deve ser confundida com a
agressão inerente ao impulso amoroso primitivo.
Se o indivíduo se vê apanhado nessa situação, pode começar a se
organizar uma defesa baseada numa forte necessidade de ser autônomo e
não precisar de ninguém. “Quando a mãe renuncia a malgrado ou com
excessiva lentidão a seu papel de amamentadora, surge no bebê o ódio e a
necessidade de liberar-se” (1989xf[1962]/1994, p. 343). Mas isso, diz
Winnicott, não é inveja do seio bom a que se refere M. Klein; não se trata
do elemento constitucional de caráter destrutivo, que pertence interna e
exclusivamente ao indivíduo. O que há é uma raiva, não experienciada
enquanto tal, de ser detido no amadurecimento e de ter que ceder o papel de
amamentação à mãe, ou seja, de a mãe ou o seio serem necessários. O que
se poderia chamar de inveja, para Winnicott, “é a intolerância para com a
necessidade de um representante externo daquilo que foi originalmente
sentido como fazendo parte do si-mesmo” (1989xf[1962]/1994, p. 343).20 O
“ódio ao objeto bom”, de Klein, só pode ser entendido se o comportamento
do objeto for levado em conta.
Se o ambiente é invasivo e falha, no sentido de persistir em padrões de
adaptação dos quais o bebê já não necessita, pode ocorrer uma introversão:
o bebê se recolhe e passa a viver no mundo subjetivo. A recuperação de
uma introversão patológica envolve um retorno para fora, para um mundo
que a criança vê cheio de perseguidores e, “neste ponto de seu
restabelecimento a criança torna-se geralmente agressiva”
(1958b[1950]/2000, p. 293). Se esse momento não for bem manejado, a
criança desliza de volta para a introversão.21
4.1 A destrutividade no anger: a criação da externalidade e o
uso do objeto22
Como vimos anteriormente, a questão da agressividade, no pensamento
de Winnicott, esteve sempre ligada à constituição da realidade externa. Em
1969, ele dá por resolvida a questão ao configurar um tipo de
destrutividade, não instintual e sem raiva, ainda dentro dos estágios iniciais,
que envolve não uma destruição efetiva, mas uma destruição potencial, que
se dá na fantasia inconsciente.
O que foi dito anteriormente sobre a passagem de “ter o seio” para “usar
o seio” já faz parte da conquista que leva o bebê da relação com objetos
subjetivos para a relação com objetos objetivamente percebidos, os quais,
tendo existência própria, enriquecem a existência pessoal do indivíduo e
podem ser usados. Por estar amadurecendo e adquirindo, portanto, outros
sentidos de realidade, o bebê não pode continuar a viver num mundo que é
feito apenas de suas projeções; desse modo, a comunicação com objetos
subjetivos, que foi extremamente necessária e sentida como real, torna-se,
ao longo do tempo, um “beco sem saída”. Desse modo, há um momento do
amadurecimento normal em que o bebê destrói o objeto, que, nessa ocasião,
é subjetivo, não para se livrar de algo mau dentro dele (ainda não há dentro
e a questão não é bom ou mau), mas para, expulsando o objeto para fora do
seu controle onipotente e experienciando a sobrevivência do mesmo, poder
reconhecê-lo como uma coisa em si, externa e separada do seu eu, como
algo que vive por sua própria conta. Se o objeto tem que ser usado, “deve
necessariamente ser real, no sentido de fazer parte da realidade
compartilhada, e não um feixe de projeções” (1969i[1968]/1994, p. 173). É
desse modo que o bebê cria a externalidade do mundo como um novo e
necessário sentido do real e pode, a partir de então, usar objetos.
É de interesse notar que é o bebê quem, expulsando o objeto para fora do
âmbito da onipotência, concede a ele o seu caráter de externo. Essa
operação de expulsão do objeto como não mais pertencendo ao mundo
subjetivo é chamada por Winnicott de destruição do objeto. Se, na teoria
freudiana, é o princípio de realidade que envolve o indivíduo em raiva e
destruição reativa, a tese de Winnicott é a de que há uma destruição,
anterior a qualquer entrada do princípio de realidade, que desempenha um
papel na criação da realidade, com o bebê colocando o objeto fora do si-
mesmo. O objeto que é destruído pelo bebê é o objeto subjetivo, ou seja, o
material de projeção (criação).
Mas – e este é o ponto importante – a experiência de destruição depende
de o objeto sobreviver à destruição, o que significa, nesse contexto, não
retaliar, não mudar de atitude, não sucumbir. A palavra “destruição” é
necessária não em função do impulso do bebê a destruir, “mas devido à
suscetibilidade do objeto a não sobreviver, o que também significa mudança
de qualidade, de atitude” (1969i[1968]/1994, p. 176). Se o objeto sobrevive
à destruição, o padrão de desenvolvimento da agressividade pessoal da
criança prossegue e, um pouco mais tarde, servirá de pano de fundo para
uma contínua fantasia (inconsciente) de destruição ou provocação. O objeto
pode então ser usado. Numa passagem famosa, Winnicott ilustra o que diria
o bebê para o objeto: “Eu te destruí”, e o objeto está ali recebendo a
comunicação. Daí por diante, o sujeito diz: “Eu te destruí. Eu te amo. Tua
sobrevivência à destruição que te fiz sofrer confere valor à tua existência,
para mim. Enquanto estou te amando, estou permanentemente te destruindo
na fantasia (inconsciente)” (1969i[1968]/1994, p. 174). É apenas nesse
momento, portanto, que, segundo Winnicott, começa a fantasia para o
indivíduo. A partir daqui, o objeto subjetivo é permanentemente destruído,
na fantasia.
Observe-se que o amor, no sentido específico desse contexto, só surge
após a destruição na fantasia inconsciente. Winnicott também fala em amor
primitivo referindo-se aos estados excitados do bebê, carregados de tensão
instintual. Mas é toda uma outra coisa o amor ao objeto que sobrevive à
destruição: trata-se agora do sentimento de um eu, dirigido para um outro,
como pessoa inteira e separada. Ou seja, também o amor é constituído no
interior do processo de amadurecimento. Disto se conclui que tanto a
realidade objetiva quanto o amor dependem de haver sempre a destruição.
“O objeto está sempre sendo destruído”, diz o autor. Essa destruição torna-
se o pano de fundo inconsciente para o amor a um objeto real, isto é, para
um objeto situado fora da área do controle onipotente do sujeito. Por
exemplo, sem a destruição que cria a externalidade, a sexualidade genital
não seria possível, se a entendermos não na chave do desenvolvimento das
funções sexuais, mas tendo como pré-requisito a conquista do estatuto do
eu, separado do não-eu, ambos como pessoas totais (whole persons).
Ora, a reação ambiental é, para o indivíduo, a realidade do que deve ser
seu próprio impulso provocador, destrutivo ou agressivo. Um bebê, cuja
mãe está deprimida, ou outro, a cuja destrutividade a mãe reagiu ou
retaliou, “jamais pode experienciar a raiz pessoal da agressão ou da fantasia
destrutiva ou fazê-la sua ou ser movido por ela e, por conseguinte, jamais
poderá convertê-la na fantasia inconsciente de destruição do objeto
libidinizado” (1989xa[1969]/1994, p. 190). Em 1970, Winnicott afirma que
“muito da violência do mundo refere-se à tentativa de alcançar a destruição
que em si mesma não é destrutiva” (1986j[1970]/1989, p. 208).
Para ilustrar esse ponto, Winnicott refere-seao relato que Jung faz de sua
primeira infância, no livro autobiográfico, resenhado por Winnicott em
1963. Tudo leva a crer, sustenta Winnicott, que Jung não teve nenhum
contato com sua destrutividade básica. Aos quatro anos, um quadro de
esquizofrenia infantil já havia se instalado e um sistema defensivo
organizou-se para manter a cisão da personalidade em termos de falso e
verdadeiro si-mesmo, contra o perigo de uma desintegração do eu.
Winnicott aponta para um fator externo precoce que foi a depressão da mãe,
compensada, no entanto, pela conduta maternal do pai. Suas brincadeiras de
menino consistiam na construção de um edifício seguida sempre por um
terremoto que destruía o edifício. “O que não podemos encontrar no
material que Jung fornece”, diz Winnicott, “é a destruição imaginativa,
seguida por um sentimento de culpa e, depois, pela construção”
(1989vv[1963]/1994, p. 370; os itálicos são meus). Ou seja, Jung não se
descreve brincando construtivamente em relação com haver destruído (na
fantasia inconsciente). De fato, é muito difícil para uma criança chegar
precisamente a essa destrutividade se ele é cuidado por uma mãe
clinicamente deprimida.23 Esse é motivo pelo qual, diz Winnicott,
Jung passou toda a vida buscando um lugar para guardar sua realidade psíquica interna, por mais
que esta fosse em verdade uma tarefa impossível. Aos quatro anos, adotou a complexa teoria do
subterrâneo do sonho... Baixou ao subterrâneo e encontrou a vida subjetiva. Ao mesmo tempo,
tornou-se uma pessoa retraída, o que o fez pensar, erroneamente, tratar-se de uma depressão
clínica. (1964h/1994, p. 369)
À luz da teoria do amadurecimento, o problema, em Jung, não envolvia
uma depressão clínica, uma vez que esta se relaciona à luta, no mundo
interno, entre o bom e o mau, e à dificuldade em assumir a responsabilidade
para com os aspectos destrutivos da vida instintual, tarefa característica do
estágio do concernimento.24 Jung, contudo, já não havia podido alcançar a
conquista precedente. Sua questão era, portanto, mais básica: o ponto de
origem das dificuldades era a sua incapacidade para a destrutividade que
cria a externalidade e, correlatamente, constitui o si-mesmo como um eu
separado do não-eu. A capacidade para essa destruição depende da
segurança de que o objeto sobreviverá. Jung não podia destruir a mãe na
fantasia, expulsá-la de seu controle onipotente para constituí-la como
pessoa separada, na exterioridade, porque esta não tinha condições nem de
vida, quanto mais de sobrevivência.
A conquista da capacidade de usar o objeto é, segundo Winnicott, a mais
difícil e árdua do amadurecimento. Na clínica, quando um paciente se
debate com essa dificuldade específica, pode ocorrer um fenômeno cuja
compreensão requer a seguinte explicitação: no início do processo, o bebê,
ou paciente, estava vivendo num mundo subjetivo e o objeto é, por assim
dizer, idealizado, perfeito. Como, para chegar ao uso, é preciso destruir o
objeto, se as condições não são favoráveis, é possível que o indivíduo recue
e proteja o objeto da destruição. De que modo? Ele o fará denegrindo o
objeto, sujando-o, aviltando-o, atribuindo-lhe algum tipo de maldade uma
vez que “só o objeto perfeito é digno de ser destruído”. 25 Segundo
Winnicott, o problema prático, diante da destrutividade, consiste em
distinguir entre dois significados: 1) trata-se da destruição do analista como
objeto subjetivo, destruição que exatamente cria a externalidade, a qual,
quando o indivíduo é saudável, passa a acontecer na realidade psíquica
pessoal do indivíduo, em sua vida onírica e em suas atividades lúdicas ou 2)
trata-se de deterioração do objeto bom para torná-lo “menos bom” e, por
isso, menos sujeito à destruição? Neste último caso, o que ocorre é uma
falsa agressividade baseada no temor ou numa recusa a avançar no
amadurecimento.
5. A conquista da capacidade para o concernimento
Até aqui, falou-se da agressividade que não pode ser entendida como tal,
porque, parte intrínseca do impulso amoroso primitivo, é manifestação da
espontaneidade e da vitalidade do bebê, e da agressividade que é reação ao
cuidado insatisfatório, seja pela falha ambiental em adaptar-se, no início da
vida, de forma absoluta, seja pelo fracasso em falhar ao bebê, na passagem
para a dependência relativa. Falou-se também da destrutividade que cria a
externalidade do mundo e permite o uso do objeto. É apenas no estágio do
concernimento que aparece a agressividade propriamente dita, integrada
como parte da personalidade, de caráter instintual, relativa à destrutividade
que está presente na natureza humana. Essa destrutividade não é outra que a
da impulsividade instintual do amor primitivo.26 Mas, até então, o bebê era
incompadecido, não sabendo de si mesmo nem do mundo; agora, tendo
alcançado o estatuto de um eu unitário, separado do não-eu, ele começa a
integrar a instintualidade, e a destrutividade que lhe é inerente, como
fazendo parte do eu. Tem início o reconhecimento de que o eu dos estados
tranquilos e o dos estados excitados é o mesmo, e mais, que a mãe que o
cuida e a que ele ataca nos estados excitados são uma e mesma pessoa. O
bebê passa, então, a sentir-se concernido e responsável pelos resultados de
seu amor excitado tanto na mãe como em si mesmo.
E, diz Winnicott, se é relativamente fácil chegar à destrutividade que
existe em cada um de nós, quando ela está ligada à raiva perante a
frustração ou ao ódio em relação a algo que desaprovamos, ou quando é
uma reação diante do medo, é quase intolerável para os seres humanos em
geral assumir plenamente a responsabilidade pela destrutividade que é
pessoal e inerente a uma relação com um objeto sentido como bom; em
outras palavras, que está relacionada ao amor. Essa conquista só será
possível por meio de um desenvolvimento gradual associado às
experiências de reparação e restituição (cf. 1984c[1960]/1989, p. 64).
Assim que a criança começa a dar-se conta do dano que é provocado pelo
seu amor excitado e começa a preocupar-se e a sentir culpa, sua tendência é
fazer a reparação do dano ou, como diz Winnicott, a remendar “os buracos”
que causou no corpo “cheio de riquezas” da mãe (1955c[1954]/2000, p.
363).
Para que essa conquista se estabeleça como capacidade integrada à
personalidade, a criança precisa sustentar a culpa por algum tempo e isso só
é possível com a ajuda de uma mãe pessoal e viva, que sobrevive e
permanece sustentando a situação durante o tempo necessário para esse
processo. Após o ataque voraz, a mãe permanece lá, disponível, até o gesto
reparador. Se ela continua a sustentar essa situação dia após dia, o bebê tem
tempo de organizar as numerosas consequências imaginativas da
experiência instintiva e de resgatar algo que seja sentido como “bom”, que
apoia, que não machuca, que é aceitável e, com isto, reparar
imaginativamente o dano causado à mãe. Essa sequência machucar-e-curar
repete-se inúmeras vezes e, gradualmente, o bebê passa a acreditar no
esforço construtivo, a suportar a culpa e, assim, a tornar-se livre para o
amor instintivo. É a isso que Winnicott chama de círculo benigno e, se este
se estabelece, a criança torna-se capaz de descobrir sua destrutividade e seu
próprio ímpeto pessoal de dar, construir e reparar (cf. 1958b[1950]/2000, p.
291). Caso contrário, a vida instintiva será inibida e reaparecerá a
dissociação entre os estados tranquilos e os estados excitados; o descanso
torna-se impossível e fica perdida a capacidade de brincar, alhear-se,
concentrar-se.
Toda criança tem necessidade premente de contribuir e restaurar. É tarefa
da mãe suficientemente boa permanecer ali, disponível para reconhecer e
receber o gesto restaurador. A capacidade de reparação de um bebê é muito
limitada e ele depende de que alguém reconheça a sua “dádiva simbólica”.
É desesperador, para a criança, dar-se conta do dano e não haver ninguém
que aceite a oferenda ou reconheça o esforço feito para reparar (cf.
1958b[1950]/2000, p. 291). Nesse caso, a transformação do não
compadecimento em compadecimento e culpa se desfaze a agressão
reaparece.
Já no início, a oportunidade de contribuir pode ser experienciada, pela
criança, quando a sua mera presença ilumina o rosto da mãe. Mais tarde,
precisa continuar a contribuir e também a restaurar, e ela o faz participando
das providências relativas às necessidades da família, constatando ser isso
uma necessidade para a felicidade da mãe ou para o andamento do lar.27 É
como encontrar seu próprio nicho, diz Winnicott. Se a criança não encontra
o nicho onde existir como ela mesma, ela perde a capacidade de encontrar e
pode crescer precisando destruir o que se tornou desértico e sem sentido. A
criança participa fazendo de conta que cuida do bebê, arruma a cama ou faz
doces, mas essa participação só é satisfatória se esse faz de conta for levado
a sério por alguém. “Se alguém zomba, tudo se converte em pura mímica e
a criança experimenta uma sensação de impotência e inutilidade físicas.
Então, poderá ocorrer uma explosão de franca destrutividade e agressão”
(1964d/1987, p.101).
O estágio do concernimento tem uma longa duração. Pode-se encontrar
sinais de preocupação e culpa antes do primeiro ano de vida, e o processo
atinge o auge aproximadamente aos dois anos e meio, embora jamais se
estabeleça de forma consistente antes dos cinco. Naturalmente, as
dificuldades do início são diferentes das que aparecem no final do estágio.
Uma dessas diferenças é relativa ao fato de, em algum momento a partir da
segunda metade da elaboração da capacidade para o concernimento, o pai
entrar em cena como pai, isto é, como terceiro, sendo a sua presença de
extrema importância. Até então, ele era apenas um duplicador da função
materna, mas, mesmo como tal, assinala Winnicott, algo dele foi
acrescentado, algo duro, implacável, intransigente, e que foi vivenciado
pelo bebê como um aspecto da mãe. À medida que a criança já é capaz de
aceitar a existência separada e externa da mãe, esse elemento paterno se
diferencia junto com a pessoa do pai e este passa a ser significativo como
homem, transformando-se “num ser humano, alguém que pode ser temido,
odiado, amado, respeitado” (1986d[1966]/1989, p. 104). A criança começa
a contar com o pai para proteger a mãe de seus próprios ataques a ela, nos
momentos do amor excitado. Desse modo, a presença de um pai forte,
interventor, ajuda a criança a liberar-se para a vida instintiva e lhe permite
correr o risco de movimentar-se, de agir e de excitar-se, porque o pai está
por perto, preparado para remendar estragos ou para impedir, com sua
força, que eles aconteçam (1969i[1968]/1994, p. 184). Ele torna-se o apoio
necessário para a busca de satisfação instintual sem muito perigo. Se o
ambiente não puder fornecer esse tipo de proteção, devido à ausência do pai
ou por uma depressão da mãe, a criança tornar-se-á inibida e perderá a
capacidade para o amor excitado. Terá que adotar, precocemente, um
autocontrole dos impulsos antes de estar em condições de fazê-lo sobre a
base de uma força paterna que é, gradualmente, incorporada como sua.
Nesses casos, há inibição da espontaneidade e do impulso, e um permanente
temor de que algum aspecto da destrutividade fuja ao controle. O resultado
pode ser uma depressão, intercalada às vezes com episódios de violência.
Se, na clínica, a dificuldade que o paciente apresenta está relacionada
com a luta entre o bom e o mau, a construção e a destruição inerentes à
natureza humana, característica desse estágio do amadurecimento,
estaremos lidando com a depressão reativa ou alguma variante dos estados
depressivos. Mas isso só é verdadeiro se houve sucesso nas conquistas
anteriores e o analista pode enganar-se a respeito desse tipo de problemática
se não estiver atento ao amadurecimento como um todo. Há, por exemplo,
um tipo de criança, e mesmo de adulto, que se apresenta encantadora,
atraente e viva, e que, na situação analítica, está permanentemente
divertindo ou presenteando o analista, mas que em casa está sempre irritada
e sujeita à instabilidade de humor. O que Winnicott constatou é que, muitas
vezes, ela não suporta mais conti nuar a sustentar a depressão da mãe. Esta,
por sua vez, tem que suportar o ódio da criança relacionado ao sentimento
de ter perdido a própria identidade. Na análise, a criança está sempre
fazendo reparações, mas não se trata de reparações de sua própria
agressividade pessoal senão das tendências destrutivas da mãe, ocultas na
depressão. Essas crianças, diz Winnicott, são como as danaides da mitologia
grega; estão condenadas a transportar seus baldes perfurados e nunca
chegam à sua própria destrutividade (cf. 1989e[1969]/1994, p.193). Nesses
casos, na clínica, é preciso chegar ao sentimento pessoal de culpa dessas
crianças com o que, talvez, seja possível aliviá-las e liberá-las para o uso do
jogo, do trabalho construtivo ou da atividade criativa que estarão sempre
ligados, nos casos favoráveis, com a agressividade, o ódio, a destruição e a
ambivalência pessoal. Winnicott relata que uma paciente iniciou a análise
com as seguintes palavras: “Quero que me ajude a encontrar minha própria
maldade”. Ele comenta que, tendo vivido desde o começo em um ambiente
terrível, essa mulher precisou de anos de cuidado analítico para alcançar o
ponto de conhecer sua maldade, “o que teria achado em si mesma se tivesse
tido um ambiente bom” (1989b/1994, p. 131). Ainda com respeito à
necessidade básica que as pessoas têm de encontrar sua própria realidade,
um aspecto importante a ser notado, no trabalho clínico, consiste no fato de
que alguns pacientes provocam o ódio do analista porque necessitam
vivenciar um ódio real e chegar ao estado de se sentirem perseguidos,
usando, cuidadosamente, a observação correta do ódio do analista ou de
suas falhas para ter onde apoiar a ideia delirante (cf. 1989e[1969]/1994, p.
194).
Se as ideias e atos reparadores têm êxito, a criança torna-se cada vez
mais audaciosa e isso leva ao enriquecimento da experiência instintiva e da
realidade psíquica da criança, onde está se desenrolando uma tremenda
disputa entre o bom e o mau. Se observarmos a diferença entre a criança
ousada e a tímida, veremos que a primeira tem a tendência a obter o alívio
que vem da manifestação aberta de agressão e hostilidade, ficando feliz por
descobrir que a agressão manifesta é limitada e consumível. Para a tímida, a
agressividade precisa ser posta em algum lugar que não no eu, mas aí a
maldade se volta contra ela e surge a expectativa de perseguição. Essa
persecutoriedade, note-se, é de outra natureza da que advém das invasões
ambientais.
Tudo gira em torno da palavra “integração”. Quando há fracasso da
integração, precisamos encontrar fora de nós as coisas que desaprovamos.
O preço é a perda da destrutividade que, na verdade, nos pertence. Sem a
destrutividade, não há amor verdadeiro. Da tolerância com os impulsos
destrutivos resulta uma coisa nova: a capacidade de desfrutar das ideias
(mesmo que sejam ideias destrutivas) e das excitações corporais que lhe são
correspondentes. “Tal desenvolvimento dá espaço para a experiência de
preocupação que é, em última análise, a base de tudo aquilo que for
construtivo” (1984c[1960]/1989, p. 68). Se uma pessoa está integrada, ela
assume responsabilidade por todos os sentimentos e ideias que pertencem
ao “estar vivo”. A criança pode, por exemplo, sonhar e, nos sonhos, haverá
destruição e assassinato, e essa atividade onírica, que inclui algum grau de
excitação corpórea, é uma experiência concreta e não apenas um exercício
intelectual. Ela poderá brincar de modo a experimentar, com base na
aceitação dos símbolos, tudo o que se encontra em sua íntima realidade
psíquica pessoal, tanto a destrutividade como o amor. Em condições
favoráveis, um impulso construtivo está relacionado com a aceitação
pessoal, por parte da criança, da responsabilidade pelo aspecto destrutivo de
sua natureza. “Uma coisa pode ser dita a respeito da pessoa saudável: ela
não precisa ficar usando o tempo todo a técnica da projeção para lidar com
seus impulsos e pensamentos destrutivos” (1984c[1960]/1989,p. 64).
Teórica e clinicamente, há uma grande diferença entre a proposta
winnicottiana e a da análise tradicional no que se refere à conquista da
capacidade para o concernimento e à tarefa do analista. À luz da teoria
tradicional, um paciente só chegará a uma atitude construtiva se puder
tornar-se consciente de sua destrutividade. Desse modo, se um paciente
presenteia ou faz alguma coisa boa para o analista tradicional, este tenderá a
pensar na destruição inconsciente por trás da construção e deverá apontar-
lhe o mecanismo. Para Winnicott, contudo, são as experiências construtivas
que capacitam o indivíduo a experimentar a sua destrutividade. É através
da reparação que a pessoa constrói uma força pessoal que possibilita a
tolerância para com a destrutividade pertencente à sua natureza. Diante de
uma interpretação, como a do exemplo mencionado, pode ocorrer de o
paciente interromper a reparação, tornada falsa e sem valor. Se
interrompermos ou impedirmos a reparação, a pessoa torna-se incapaz de
assumir a responsabilidade por seus impulsos destrutivos e o resultado
clínico será a depressão ou então uma busca de alívio através da descoberta
da destrutividade em outro lugar, via mecanismo de projeção
(1984c[1960]/1989, p. 68). Não se trata, como querem alguns intérpretes de
Winnicott, de ele, em sua teoria, negar ou negligenciar a destrutividade; ao
contrário. Contudo, diferentemente da teoria tradicional, sobretudo a de M.
Klein, Winnicott entende que, para o paciente aproximar-se de sua
destrutividade, ele precisa antes, como uma plataforma, da oportunidade
para contribuir, relacionada à vida comum, ou seja, a oportunidade para a
atividade criativa, para o jogo imaginativo, o trabalho construtivo etc.
Outras vezes, para escapar da depressão e ocultar o fato simples do
triunfo do mal sobre o bem, do ódio sobre o amor, da agressão sobre a
capacidade de preservação etc., encontramo-nos clinicamente com a
confusão, estabelecida como defesa organizada contra a depressão. O
indivíduo mantém inconsciente e ativamente um certo grau de confusão e,
sobre ela, procedimentos obsessivos que visam, e jamais conseguem, a pôr
ordem na confusão (cf. 1989j[1956]/1994, p. 26). Na análise, é importante o
paciente saber que a confusão é uma defesa organizada, mas a situação só
se altera com a análise do sadismo oral, isto é, da agressividade que está
contida no amor primitivo. Quando isso é possível, diminui a desesperança
que a confusão esconde.
Haveria ainda muito a dizer, o que não é possível no espaço deste artigo,
sobre a agressividade que se desenvolve no estágio edípico, com a criança
tendo que continuar a administrar a luta, em seu mundo interno, entre os
aspectos destrutivos e construtivos, em meio às relações interpessoais e aos
formidáveis problemas da triangulação familiar em que entram o conflito de
lealdades, todo o jogo de identificações com as figuras paternas, a
rivalidade com o genitor do mesmo sexo e, ainda, o fato embaraçoso de que
a genitalidade, alcançada no plano da fantasia, não encontra a potência
correspondente no plano do desempenho efetivo. Nesse estágio, a criança é,
por assim dizer, apanhada pelos instintos e pelo amor, que é violento, e
rapidamente se aproxima do ódio. A criança, diz Winnicott, por ter sido um
bebê, já conhece o amor e a agressão, assim como a ambivalência e o medo
de que aquilo que é amado seja destruído. “Agora, finalmente, na relação
triangular, o ódio pode aparecer livremente, pois o que é odiado é uma
pessoa que pode se defender, e que, na verdade, já é amada” (1988/1990, p.
72). A agressividade que se manifesta nesse estágio não é de natureza
fundamentalmente diversa da que foi tratada no estágio do concernimento.
Primeiro, há a destrutividade inerente à natureza humana, acrescida
naturalmente dos afetos que estão agora na linha de frente; em segundo
lugar, há aquela agressividade que explode se a criança, ao invés de poder
cuidar da primeira, vê sua luta deslocada para um cenário de insegurança,
derivado, por exemplo, dos conflitos entre os pais ou da desagregação
familiar.
Haveria também muito a dizer sobre a agressividade que é própria à
adolescência, quando há um retorno natural a dificuldades básicas e
angústias primitivas. Tal como o bebê, o adolescente empreende a luta para
sentir-se real, para não trair o si-mesmo com falsas soluções ao mesmo
tempo em que enfrenta o fato terrível de que já não é uma criança pequena e
sua capacidade de destruição efetiva é real.
Se na fantasia do amadurecimento primitivo estiver contida a morte, então, na adolescência,
estará contido o assassinato. Mesmo que o crescimento se dê sem maiores crises, crescer
significa ocupar o lugar do genitor. E realmente o é. Na fantasia inconsciente, crescer é,
inerentemente, um ato agressivo. E a criança agora já não é pequena. [...] Se a criança tem que se
tornar adulta, essa transformação será feita sobre o cadáver de um adulto. (1969a/1989, p. 196)
É apenas a passagem do tempo e a experiência do viver que tornam
possível a um indivíduo, já rapaz ou moça, aceitar gradativamente a
responsabilidade por tudo o que ocorre no mundo de sua fantasia pessoal
além de toda a tensão que está associada à identidade de gênero e à escolha
sexual do objeto. Quando o começo foi bom e as bases são sólidas e
verdadeiras, porque pessoais, ainda assim haverá turbulência, mas, se o
ambiente continua a fornecer as condições favoráveis, as chances de a
espontaneidade básica sobreviver e o indivíduo continuar a amadurecer são
grandes. Se, no entanto, não houve um bom começo e o ambiente volta a
fracassar na tarefa de dar sustentação aos novos (velhos) desafios, a ameaça
de colapso torna-se sempre iminente. Por isso, há um forte risco de, na
adolescência, a agressividade tornar-se manifesta sob forma suicida;
alternativamente, ela aparece sob a forma de busca de perseguição, que
constitui uma tentativa de escapar da loucura de um sistema persecutório
delirante. “Onde a perseguição é deliberadamente esperada, há o risco de
que ela seja provocada numa tentativa de fugir à loucura ou ao delírio”
(1969a/1989, p. 200).
Isso dito, é preciso salientar que, dada a importância que Winnicott
concede ao fator ambiental, pode-se erroneamente pensar que, se pais e
mães criarem bem os seus bebês, haverá menos problemas. Longe disso, diz
Winnicott:
Se você fizer tudo o que pode para promover o crescimento pessoal de seus filhos, vai ter de
ser capaz de lidar com resultados incríveis. Se seus filhos acabarem se encontrando, não vão se
contentar senão em se encontrar em sua totalidade, e isso vai incluir a agressão e os elementos
destrutivos em si próprios, assim como os elementos que podem ser rotulados como amor. Vai
ser uma longa luta que vocês terão que enfrentar. [...] É claro que meninos e meninas podem dar
um jeito de atravessar essa fase, por meio de uma série de acordos com os pais, sem
necessariamente manifestar rebelião em casa. No entanto, é prudente lembrar que a rebelião
pertence à liberdade que vocês deram aos seus filhos, quando os criaram de modo a que eles
existissem por si próprios. Poder-se-ia dizer, em alguns momentos: “Você semeou um bebê e
colheu uma bomba”. [...] Os pais não podem fazer muita coisa; o melhor que têm a fazer é
sobreviver, sobreviver intactos, sem mudar de cor, sem negar qualquer princípio importante.
(1969a/1989, p. 124)
Referências
Béziers, M. M. & Hunsinger, Y. (1994). O bebê e a coordenação motora.
São Paulo: Summus Editorial.
Fordham, M. (1962). An evaluation of Jung’s work. Guild of Pastoral
Psychology, Conferência n.119.
Jung, C. G. (1963). Memories, Dreams, Reflections. Nova York: Pantheon
Books.
Little, M. I. (1990). Ansiedades psicóticas e prevenção. Rio de Janeiro:
Imago.
Searles, H. (1965). The effort to drive the other person crazy − an element
in the aetiology and psychoterapy of schizophrenia. In H. Searles,
Collected Papers on Schizophrenia and related subjects. Londres: The
Hogarth Press. (Trabalho original publicado em 1959)
Winnicott, D. W. (1975).O brincar e a realidade. Rio de Janeiro, Imago.
(Trabalho original publicado em 1971a. Título oiginal: Playing and
Reality)
Winnicott, D. W. (1975). Objetos transicionais e fenômenos transicionais.
In D. Winnicott (1975/1971a), O brincar e a realidade. Rio de Janeiro,
Imago. (Trabalho original publicado em 1953c[1951])
Winnicott, D. W. (1980). A família e o desenvolvimento do indivíduo. Belo
Horizonte: Interlivros. (Trabalho original publicado em 1965a. Título
original: The Family and Individual Development)
Winnicott, D. W. (1980). O primeiro ano de vida. In D. Winnicott
(1980/1965a), A família e o desenvolvimento do indivíduo. Belo
Horizonte: Interlivros. (Trabalho original publicado em 1958j)
Winnicott, Donald W. (1987). Agressão, 1a. parte de Agressão e suas raízes.
In D. Winnicott (1987/1984a). Privação e delinquência. São Paulo:
Martins Fontes. (Trabalho original publicado em 1957d[1939])
Winnicott, D. W. (1987). Escolas progressistas e a liberdade da criança. In
D. Winnicott (1987/1984a), Privação e delinquência. São Paulo: Martins
Fontes. (Trabalho original publicado em 1969d[1965])
Winnicott, D. W. (1987). Privação e delinquência. São Paulo: Martins
Fontes. (Trabalho original publicado em 1984a. Título original:
Deprivation and Delinquency)
Winnicott, D. W. (1987). Raízes da agressão. In D. Winnicott (1987/1984a),
Privação e delinquência. São Paulo: Martins Fontes. (Trabalho original
publicado em 1964d)
Winnicott, D. W. (1987). A tendência antissocial. In D. Winnicott
(1987/1984a), Privação e delinquência. São Paulo: Martins Fontes.
(Trabalho original publicado em 1958c[1956])
Winnicott, D. W. (1988). A amamentação como forma de comunicação. In
D. Winnicott (1988/1987a), Os bebês e suas mães, São Paulo: Martins
Fontes. (Trabalho original publicado em 1969b[1968])
Winnicott, D. W. (1988). O ambiente e os processos de maturação. Porto
Alegre: Artes Médicas. (Trabalho original publicado em 1965b. Título
original: The Maturational Processes and the Facilitating Environment)
Winnicott, D. W. (1988). Os bebês e suas mães, São Paulo: Martins Fontes.
(Trabalho original publicado em 1987a. Título original: Babies and Their
Mothers)
Winnicott, D. W. (1988). Da dependência à independência no
desenvolvimento do indivíduo. In. D. Winnicott (1988/1965b), O
ambiente e os processos de maturação. Porto Alegre: Artes Médicas.
(Trabalho original publicado em 1965r[1963])
Winnicott, D. W. (1988). Teoria do relacionamento paterno-infantil. In. D.
Winnicott (1988/1965b), O ambiente e os processos de maturação. Porto
Alegre: Artes Médicas. (Trabalho original publicado em 1960c)
Winnicott, D. W. (1989). Agressão, culpa e reparação. In D. Winnicott
(1989/1986b), Tudo começa em casa. São Paulo: Martins Fontes.
(Trabalho original publicado em 1984c[1960])
Winnicott, D. W. (1989). A criança no grupo familiar. In D. Winnicott
(1989/1986b), Tudo começa em casa. São Paulo: Martins Fontes.
(Trabalho original publicado em 1986d[1966])
Winnicott, D. W. (1989). O lugar da monarquia. In D. Winnicott
(1989/1986b), Tudo começa em casa. São Paulo: Martins Fontes.
(Trabalho original publicado em 1986j[1970])
Winnicott, D. W. (1989). Morte e assassinato no processo adolescente. In D.
Winnicott (1989/1986b), Tudo começa em casa. São Paulo: Martins
Fontes. (Trabalho original publicado em 1969a)
Winnicott, D. W. (1989). Tudo começa em casa. São Paulo: Martins Fontes.
(Trabalho original publicado em 1986b. Título original: Home is Where
We Start From)
Winnicott, Donald W. (1990). Natureza humana. Rio de Janeiro: Imago,
1990. (Trabalho original publicado em 1988. Título original: Human
Nature)
Winnicott, Donald W. (1994). Ausência e presença de um sentimento de
culpa ilustradas com dois pacientes. In D. Winnicott (1994/1989a),
Explorações psicanalíticas. Porto Alegre: Artes Médicas. (Trabalho
original publicado em 1989b)
Winnicott, D. W. (1994). Desenvolvimento do tema do inconsciente da mãe
tal como descoberto pela prática psicanalítica. In D. Winnicott
(1994/1989a), Explorações psicanalíticas. Porto Alegre: Artes Médicas.
(Trabalho original publicado em 1989e[1969])
Winnicott, Donald W. (1994). Explorações psicanalíticas. Porto Alegre:
Artes Médicas. (Trabalho original publicado em 1989a. Título original:
Psychoanalytic Explorations)
Winnicott, D. W. (1994). Fragmentos concernentes a algumas variedades de
confusão clínica. In D. Winnicott (1994/1989a), Explorações
psicanalíticas. Porto Alegre: Artes Médicas. (Trabalho original publicado
em 1989j[1956])
Winnicott, D. W. (1994). A importância do setting no encontro com a
regressão na psicanálise. In D. Winnicott (1994/1989a), Explorações
psicanalíticas. Porto Alegre: Artes Médicas. (Trabalho original publicado
em 1989m[1964])
Winnicott, D. W. (1994). Nota adicional sobre transtorno psicossomático,
parte II do cap. 20 Transtorno psicossomático. In D. Winnicott
(1994/1989a), Explorações psicanalíticas. Porto Alegre: Artes Médicas.
(Trabalho original publicado em 1989vm[1969])
Winnicott, D. W. (1994). Posfácio: D. W. W. sobre D. W. W. In D.
Winnicott (1994/1989a), Explorações psicanalíticas. Porto Alegre: Artes
Médicas. (Trabalho original publicado em 1989f[1967])
Winnicott, D. W. (1994). Primórdios de uma formulação de uma apreciação
e crítica do enunciado kleiniano da inveja, parte II do cap. 53 Melanie
Klein: sobre o seu conceito de inveja. In D. Winnicott (1994/1989a),
Explorações psicanalíticas. Porto Alegre: Artes Médicas. (Trabalho
original publicado em 1989xf[1962])
Winnicott, D. W. (1994). Resenha de Memories, Dreams, Reflections de C.
G. Jung. In D. Winnicott (1994/1989a). Explorações psicanalíticas. Porto
Alegre: Artes Médicas. (Trabalho original publicado em 1964h)
Winnicott, D. W. (1994). Resposta a comentários parte III do cap. 28 Sobre
os elementos masculino e feminino cindidos. In D. Winnicott
(1994/1989a). Explorações psicanalíticas. Porto Alegre: Artes Médicas.
(Trabalho original publicado em 1972c[1968-69])
Winnicott, D. W. (1994). Um sonho de D. W. W. relacionado a uma resenha
de um livro de Jung, parte II do cap. 34 Sobre o uso de um objeto. In D.
Winnicott (1994/1989a), Explorações psicanalíticas. Porto Alegre: Artes
Médicas. (Trabalho original publicado em 1989vv[1963])
Winnicott, D. W. (1994). O uso de um objeto no contexto de Moisés e a
religião monoteísta, parte VII do cap. 34 Sobre “o uso de um objeto”. In
D. Winnicott (1994/1989a), Explorações psicanalíticas. Porto Alegre:
Artes Médicas. (Trabalho original publicado em 1989xa[1969])
Winnicott, D. W. (1994). O uso de um objeto e o relacionamento através de
identificações. In D. Winnicott (1994/1989a), Explorações psicanalíticas.
Porto Alegre: Artes Médicas. (Trabalho original publicado em
1969i[1968])
Winnicott, D. W. (1997). Introdução primária à realidade externa: os
estágios iniciais. In D. Winnicott (1997/1996a). Pensando sobre crianças.
Porto Alegre: Artes Médicas. (Trabalho original publicado em
1996o[1948])
Winnicott, D. W. (1997). Pensando sobre crianças. Porto Alegre: Artes
Médicas. (Trabalho original publicado em 1996a. Tíulo original: Thinking
About Children)
Winnicott, D. W. (2000). A agressão e sua relação com o desenvolvimento
emocional. In D. Winnicott (2000/1958a), Textos selecionados: da
pediatria à psicanálise. Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original
publicado em 1958b[1950])
Winnicott, D. W. (2000). A posição depressiva no desenvolvimento
emocional normal. In D. Winnicott (2000/1958a), Textos selecionados: da
pediatria à psicanálise. Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original
publicado em 1955c[1954])
Winnicott, D. W. (2000). Textos selecionados: da pediatria à psicanálise.
Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1958a. Título
original: Collected Papers: Through Paediatrics to Psychoanalysis)
1. Este texto, originalmente publicado na revista Natureza humana, vol. 2, n. 1, 2000, foi corrigido e
revisado para a presente edição.
2 . Em Natureza humana, numa nota de rodapé acrescentada em 1970, ele afirma que a razão que o
impediude publicar antes esse livro foi não ter dada por resolvida a questão das raízes da
agressividade (Winnicott, 1988/1990, p. 99).
3 . Na obra winnicottiana, a expressão “raízes da agressividade” deve ser tomada literalmente já que,
muitas vezes, uma capacidade para a agressividade real não chega jamais a desenvolver-se no
indivíduo.
4 . É essa concepção eminentemente winnicottiana acerca do papel do ambiente, tanto para o sucesso
quanto para o fracasso no que se refere à estruturação da personalidade do indivíduo, que fornece
os fundamentos para se pensar em uma política de prevenção em saúde psíquica.
5 . Em seu livro O bebê e a coordenação motora (1994), as especialistas em psicomotricidade M. M.
Béziers e Y. Hunsinger afirmam que o feto está se formando “em movimento” e, embora os
primeiros movimentos sejam ainda reflexos, observa-se que eles não são desordenados ou
parasitas. Ao contrário, pertencem a um sistema complexo e “se propagam através de músculos
definidos, que se encadeiam para descrever um movimento preciso. Esse movimento produz uma
sensação muscular e articular, e imprime tensões à pele que fazem parte do conjunto da sensação.
A reunião de todas as sensações provocadas pelo movimento reflexo constitui a estrutura
fundamental do movimento; é o que chamamos de ‘coordenação motora ou psicomotora’” (p. 10).
A coordenação vai dando ao corpo a forma e o sentido que servirão de modelo para todo o
desenvolvimento subsequente da criança. Confirmando, a partir de sua especialidade, muitas das
concepções de Winnicott, as autoras detalham os cuidados físicos relativos à necessidade do bebê
de ser bem “seguro” pela mãe e de estar “enrolado” em suas mãos. Agradeço à Maria Emília
Mendonça por ter me mostrado a pertinência desse trabalho.
6 . Béziers e Hunsinger enfatizam, por exemplo, que o tônus muscular do bebê, e sua coordenação,
são favorecidos quando, ao mamar, ao ser trocado ou, simplesmente, quando está no colo da mãe,
seus pés estão apoiados em alguma coisa e, pelo movimento, fazem pressão contra o braço da
poltrona, a mesa ou as mãos da mãe.
7 . As especialistas citadas na nota anterior lembram ao leitor que a vida, para o bebê, é movimento, e
que, desde o início, é preciso ter o cuidado de “evitar qualquer entrave à expressão de seu
movimento” (Béziers & Hunsinger, 1994, p. 32).
8 . Cf. Winnicott, 1958b[1950]/1978, p. 299.
9 . Winnicott diz que “tudo aquilo que provém do verdadeiro si-mesmo é sentido como real (e
posteriormente como bom), seja qual for a sua natureza, não importa o quão agressiva; e tudo
aquilo que acontece ao indivíduo enquanto reação à intrusão ambiental é sentido como irreal,
inútil (e posteriormente ruim), mesmo que seja sensualmente satisfatório” (Winnicott,
1958b[1950]/2000, p. 389).
10 . Em Natureza Humana, Winnicott afirma que é muito fácil nos enganarmos a respeito de um
bebê que responde bem a uma hábil amamentação e deixamos de ver que um bebê “que mama de
modo inteiramente passivo nunca poderá criar o mundo e, portanto, não será capaz de construir
relacionamentos externos, nem terá futuro como indivíduo” (Winnicott, 1988/1990, p. 128).
11. O termo concern, utilizado por Winnicott, para a conquista que as crianças bem cuidadas
adquirem, num certo momento do amadurecimento, da capacidade de sentir culpa e
responsabilidade pelo impulso amoroso excitado, é de difícil tradução. Em algumas traduções
para o português da obra de Winnicott, usou-se o termo “preocupação”, mas este não cobre
inteiramente as acepções do concern. Optei então pelo neologismo “concernimento”, derivado do
verbo concernir, embora o significado de “concernir” – “dizer respeito a, ter relação com, referir-
se a, tanger a”, segundo o Aurélio e o Houaiss – também não corresponda plenamente ao sentido
de “concern”, de preocupação dirigida ao outro que o concern encerra. Tomado, contudo, como
um neologismo que serve exclusivamente para designar o conceito winnicottiano, e pela
similaridade com o termo inglês, espera-se que o termo “concernimento” vá, pela familiaridade
do uso, adquirindo o sentido que tem no original.
12. Há casos, diz Winnicott, em que “o bebê é posto fora de combate iludido pela própria mamada; a
tensão instintual desaparece e ele fica ao mesmo tempo satisfeito e ludibriado. Nada mais fácil do
que imaginar a mamada terminando em satisfação e sono. Frequentemente, é aflição que se segue
a este estar fora de combate, especialmente se a satisfação física rouba-lhe o apetite muito
rapidamente. O bebê fica então com: a agressividade não descarregada, pois o erotismo muscular
ou impulso primitivo (motilidade) não foi suficientemente utilizado durante a mamada; ou com
um senso de ‘fiasco’ (‘flop’), pois uma fonte de fruição da vida foi embora repentinamente e o
bebê não sabe que ela irá voltar” (Winnicott, 1955c[1954]/2000, p. 362).
13. Cf. Winnicott, 1972c[1968-1969]/1994, p. 150.
14. Sobre essa questão, cf. Winnicott, 1965r[1963]/1988, sobretudo p. 82.
15. O fato de a mãe precisar oferecer cuidados especiais ao bebê deve-se a que, antes, ela falhou na
adaptação às necessidades dele. Winnicott assinala que “a terapia da mãe pode curar, mas isso não
é amor materno”. Ou seja, esse tipo de indulgência materna refere-se a uma condição especial e
não é aceitável como descrição dos cuidados maternos ordinários. “O amor materno é
frequentemente considerado em termos dessa indulgência que é, de fato, uma terapia a respeito de
uma omissão do amor materno. Se a mãe realiza essa terapia como uma formação reativa
resultante de seus próprios complexos, então o que ela faz chama-se mimar. Na medida em que é
capaz de realizá-la porque vê a necessidade de satisfazer as reclamações da criança e de ceder à
voracidade compulsiva (avidez) desta, então é uma terapia, geralmente bem-sucedida”
(Winnicott, 1958c[1956]/1987, p. 134).
16. Relatando a sua análise com Ella Sharpe, anterior à que fez com Winnicott, Margaret Little conta
que, sempre que falava de um dos seus pais, a analista considerava tratar-se de fantasia e
“qualquer referência às realidades era interpretada como uma busca de refúgio” contra a análise
das fantasias edípicas reprimidas (Little, 1990, pp. 34 e 36).
17. A existência dessa raiva não instintual, mas relacionada à perda do ser, veio-me como uma
evidência na prática clínica. Guiada por esse fenômeno, fui procurar, em Winnicott, alguma
apreciação que lhe desse base. Como em outros casos, achei afirmações de extremo interesse que
estavam esparsas em sua obra. O que apresento é o resultado dessa pesquisa.
18. A expressão “seio bom” não é winnicottiana. Ele a usa nesse texto em que discute o conceito
kleiniano de inveja do seio bom, para facilitar o entendimento da diferença acerca da questão da
inveja. Em vários outros artigos, como em “O uso de um objeto e o relacionamento através de
identificações”, por exemplo, ele diz que “essa linguagem relativa ao seio é puro jargão”
(1969i[1968]/1994, p. 129). Em outro texto, numa nota de rodapé, Winnicott afirma que o termo
“seio” deve referir-se a toda a técnica da maternagem (1953c[1951]/1975, p. 26, nota 1). Na
citação acima, “ter um seio bom” significa, em termos winnicottianos, que o bebê vai se
apropriando dos cuidados maternos, tornando-os parte do si-mesmo que caminha em direção à
unidade.
19. Winnicott usa o termo “projeção” não no sentido metapsicológico, mas no sentido descritivo e
dinâmico, e quer, com ele, significar a “criação” que foi acrescida de elementos da experiência.
Cf. Winnicott, 1960c/1988, p. 46, nota de rodapé 12.
20. Esse fenômeno é diferente daquele em que, no início, um padrão de invasões submeteram e
aniquilaram o indivíduo e este, defensivamente organizado para impedir o retorno da invasão,
passa a não aceitar nada que venha do mundo externo. No caso que agora examinamos, houve, no
início, cuidado suficientemente bom e a mãe falha no período de desadaptação. O que se poderia
chamar inveja relaciona-se a uma desadaptação brusca ou a um ambiente que se comporta de
maneira tantalizadora, ou seja,deu mostras de existir, mas nunca está disponível quando
necessário.
21. Com as devidas diferenças, este fenômeno pertence não apenas à doença, mas pode ser observado
nos estados comuns de adultos saudáveis uma vez que, quando alguém volta a si após um período
de concentração, ele costuma estar sensível e não suporta uma requisição demasiada do mundo
externo.
22. Para um maior desenvolvimento da questão referente ao uso de um objeto, veja o artigo, neste
mesmo livro, “Winnicott em Nova Iorque: um exemplo da incomunicabilidade entre paradigmas”,
pp. 125-150.
23. Cf. Winnicott, 1989vv[1963]/1994, p. 370. Para essas afirmações, Winnicott baseou-se também
no livro de Fordham sobre a obra de Jung. Cf. Fordham, 1962, Conferência n.119.
24. Winnicott é incisivo na afirmação das precondições para alguém ver-se envolvido com as
questões pertinentes ao estágio do concernimento. Para que a conquista que caracteriza esse
estágio seja alcançada, diz ele, é necessário que os estágios anteriores tenham sido ultrapassados
com sucesso na vida real ou na análise e que o indivíduo tenha se estabelecido como uma pessoa
total e se relacione como pessoa total com pessoas totais (cf. Winnicott, 1955c[1954]/2000, p.
357).
25. Cf. Winnicott, 1969d[1965]/1987, p. 222.
26. No artigo de Winnicott “Ausência e presença de um sentimento de culpa ilustrada com dois
pacientes”, há uma passagem que mostra claramente a diferença entre a destrutividade que faz
parte do impulso primitivo amoroso e aquela que é reativa às interrupções da linha de ser. O autor
está ilustrando a questão da falha do analista e fala de uma paciente que frequentemente tenta
destruí-lo, estando essa destruição na linha do amor primitivo que inclui ideias de comer e
incorporar o que ela valoriza no analista. A questão fundamental, para essa paciente, era alcançar
um autêntico sentimento de culpa. Num momento em que isso estava sendo tentado, Winnicott
cometeu uma falha e desviou a paciente da sua questão, de modo que, diz ele, “agora ela queria
matar-me, mas não como parte de seu impulso primitivo de amor senão como reação por eu ter
quebrado seu processo de crescimento” (Winnicott, 1989b/1994, p. 130).
27. Nesse ponto, apesar da diferença de perspectiva teórica, H. Searles coincide com Winnicott ao
desenvolver a tese segundo a qual toda pessoa humana traz em si a necessidade de ser terapêutica.
No seu artigo “O esforço de tornar o outro louco”, Searles destaca como um dos elementos na
etiologia da esquizofrenia o fato de a família do paciente recusar a tentativa da criança de ajudar,
de colaborar. Cf. Searles, 1959/1965.
5 
Winnicott em Nova Iorque: um exemplo da
incomunicabilidade entre paradigmas1
1. Aspectos gerais do debate
Em 12 de novembro de 1968, a Sociedade Psicanalítica de Nova Iorque
(NYPS) promoveu um encontro científico no qual Winnicott fez uma
palestra intitulada “O uso de um objeto” (“The Use of an Object”), seguida
de um debate com quatro analistas. Sua contribuição não foi bem recebida e
quase não houve tempo para ele responder às arguições. Há alguns anos, eu
soube que uma Ata desse encontro achava-se nos arquivos da NYPS. Por
algum tempo, tentei, sem sucesso, conseguir uma cópia. Por fim, devido ao
empenho do Dr. Miguel Antonio de Mello Silva, a quem também devemos
a tradução e a obtenção da autorização para a sua publicação, a Ata está
agora disponível em português e publicada na Revista Natureza humana,
vol. 7, n. 1, 2005, pp. 237-249.2
A concepção contida no artigo “O uso de um objeto”, lido no encontro
de Nova Iorque, é um ponto culminante do pensamento teórico de
Winnicott, em especial no que diz respeito ao relacionamento objetal e às
raízes da agressividade. Publicado inicialmente em 1969, no International
Journal of Psychoanalysis, sob o título “The Use of an Object and Relating
Through Identifications” (“O uso de um objeto e relacionamento por
identificações”), voltou a ser editado, em versão ligeiramente modificada,
como o capítulo 6 de Playing and Reality, em 1971. Posteriormente, foi
reeditado no livro Psychoanalytical Explorations, de 1989, no capítulo
intitulado “On ‘The Use of an Object’” (“Sobre ‘O uso de um objeto’”) que
contém, além do artigo central (parte I), outras seis partes cujo conteúdo
está de algum modo relacionado à mesma temática. A parte II apresenta um
trecho de uma carta de Winnicott a um colega na qual relata ter tido um
sonho cuja temática está relacionada ao conceito de uso de um objeto. As
partes III e IV contêm apontamentos esparsos feitos por Winnicott sobre o
mesmo assunto, sendo que, na parte IV, Winnicott propõe uma reflexão,
escrita em fevereiro de 1968, sobre o uso da palavra “uso”. Na parte V,
encontra-se a ilustração clínica oferecida aos debatedores por ocasião do
evento de Nova Iorque. Na parte VI, estão os comentários escritos por
Winnicott, em dezembro de 1968, à luz das críticas que lhe foram feitas no
debate que se seguiu à apresentação e, em especial, conforme assinalaram
os organizadores do livro Psychoanalytical Explorations, como resposta à
objeção feita por um dos debatedores, segundo o qual Winnicott teria
negligenciado “a importância do componente libidinal das pulsões
instintuais no tocante à sobrevivência do objeto”. Numa última parte, a VII,
datada de janeiro de 1969, Winnicott coteja a sua teoria do uso de um objeto
com a concepção freudiana das origens da agressividade em Moisés e o
monoteísmo.
Por ocasião do evento em Nova Iorque – parece que logo após a palestra
–, Winnicott adoeceu gravemente e teve que ser hospitalizado. Especulou-se
que ele teria adoecido em virtude da prolongada tensão a que esteve
exposto durante a difícil e até mesmo hostil recepção à sua palestra.
Contudo, em sua biografia de Winnicott, Robert Rodman relata que os já
conhecidos problemas coronários do psicanalista inglês haviam voltado a
afligi-lo, desde agosto desse mesmo ano, e que, além de seu já delicado
estado de saúde, ele pegou nessa ocasião a gripe asiá tica, o que complicou
todo o quadro, o qual pode ainda ter sido agravado pelo esforço exigido
para a apresentação e debate do texto. Em virtude da precária condição
geral da saúde de Winnicott, os médicos aconselharam que a viagem de
retorno a Londres fosse retardada, tendo ele permanecido algum tempo em
Nova Iorque.
Nessa época, a Sociedade de Psicanálise de Nova Iorque era um centro
de psicanálise internacionalmente reconhecido como a sede, nos EUA, da
Psicologia do Ego, desenvolvida por Hartmann, Kris e Loewenstein no
interior do paradigma freudiano. A NYPS era também vista como rígida,
doutrinária e pouco aberta a contribuições não ortodoxas. O convite a
Winnicott havia sido feito como parte do movimento da sociedade de abrir-
se para o novo. Ao convidá-lo, pensavam estarem se abrindo para um
analista kleiniano,3 o que mostra o quanto os psicanalistas nova-iorquinos
estavam fora de contato com o que se passava em Londres.
A ata da reunião da NYPS dá-nos uma ideia clara dos termos em que a
palestra de Winnicott foi recebida e debatida. Bastante fidedigna, como se
pode comprovar pela comparação com o texto do artigo de Winnicott
posteriormente publicado, ela é um documento precioso para quem estuda a
história da psicanálise e a contribuição winnicottia na, não apenas por
explicitar os tipos de questão e de argumento levantados pelos debatedores
– argumentos não muito diferentes dos que ainda hoje encontramos –, como
também por fornecer uma ilustração da tese de Thomas S. Kuhn sobre a
dificuldade de interlocução entre os adeptos de paradigmas diferentes de
uma mesma disciplina e sobre o modo como estes se tornam refratários ao
questionamento de seus compromissos teóricos de base.
De fato, o conceito de uso de um objeto proposto por Winnicott na
palestra em Nova Iorque pertence a um campo semântico radicalmente
novo, difícil de ser apreendido dentro do horizonte teórico em que o
pensamento psicanalítico tradicional se desenvolveu. Em primeiro lugar,
por tratar-se de uma questão inédita, a saber, a maneira como se iniciaa
relação com a realidade externa, cujo encaminhamento teórico é
apresentado por Winnicott numa perspectiva igualmente original.
Diferentemente do pensamento psicanalítico tradicional, Winnicott sustenta
que a capacidade de relacionamento com a realidade externa é uma
conquista que não pode ser suposta como dada. Além disso, essa conquista
é pensada sobre o fundo da concepção winnicottiana de tendência ao
amadurecimento, processo durante o qual acontece a constituição paulatina
de diferentes sentidos de realidade – a realidade do mundo subjetivo, a do
espaço intermediário que se inicia com os fenômenos transicionais e a do
mundo externo –, concepção que é uma das inovações teóricas mais
ousadas de Winnicott, pela qual ele se distancia do monismo ontológico da
teoria tradicional – que trabalha com um único sentido de realidade –,
exigindo, a fim de ser devidamente apreciada, um horizonte filosófico
igualmente não ortodoxo.4 Em segundo lugar, a teoria winnicottiana do uso
de um objeto contém uma exigência inovadora: a de se levar em conta, na
teoria e na clínica psicanalíticas, os fenômenos humanos que escapam da
órbita do instintual (pulsional, dir-se-ia na teoria tradicional), em especial,
os que dizem respeito às raízes da destrutividade. Em terceiro lugar, o
conceito de uso de um objeto requereria, para ser efetivamente
compreendido, que alguns outros conceitos especificamente winnicottianos,
como o de objeto subjetivo, tivessem sido entendidos; esse não foi o caso
dos interlocutores de Winnicott, que confundiram, por exemplo, “objeto
subjetivo” com “objeto interno” – conceitos diferentes, referidos a
conquistas que pertencem a diferentes etapas do amadurecimento.
Acrescente-se que o diálogo deve ter sido dificultado pelo fato de os
analistas nova-iorquinos estarem esperando um kleiniano, sendo que a
teorização winnicottiana sobre o uso de um objeto, que inclui a concepção
de uma destrutividade de raiz não instintual e desvinculada do ódio, talvez
seja o que há de mais distante possível, na psicanálise, do paradigma ao
qual o pensamento de Klein estava filiado.
Por tudo isso, a falta de compreensão das teses expostas por Winnicott
não surpreende. Pela Ata, percebe-se que, mais do que um debate, o que
houve foi uma espécie de julgamento público de Winnicott, enquanto
analista inovador, com base nos compromissos teóricos característicos da
matriz disciplinar da psicanálise freudiana. Ao invés de produzir uma
discussão de ideias, a palestra de Winnicott serviu apenas de ocasião para a
reafirmação de teses tradicionais. O debate teve um teor defensivo, tendo
sido deixado um tempo exíguo para que o palestrante respondesse às
críticas. Na verdade, não houve debate: mais do que não entender, é
provável que os analistas americanos estivessem pouco dispostos a ouvir –
no sentido geral e até mesmo especificamente psicanalítico desse termo – o
que Winnicott lhes trazia de novo.
2. O teor central do artigo
No que se segue, farei uma exposição dos pontos centrais do artigo “O
uso de um objeto e relacionamento através de identificações”, baseado,
conforme vimos, no texto da palestra de Winnicott em Nova Iorque.5
Destacarei ainda algumas dificuldades conceituais e terminológicas do
texto, que podem ter contribuído adicionalmente para a falta de
compreensão dos interlocutores nova-iorquinos. O colapso quase total de
comunicação que ocorreu no debate não se deveu apenas a essas
dificuldades. Alguns esclarecimentos podem, contudo, ajudar a evitar que
elas continuem a obstruir a recepção presente e futura desta original e
profunda contribuição de Winnicott para a teoria e para a clínica
psicanalíticas.
Logo no início do artigo, Winnicott assinala que o conceito central ali
formulado, o de uso de um objeto, é um dos mais difíceis de sua já
complexa teoria do amadurecimento pessoal e que se refere à conquista
que, segundo ele, é talvez “a coisa mais difícil do desenvolvimento
humano, ou, o mais cansativo de todos os primitivos fracassos que nos
chegam para posterior reparo” (1969i[1968]/1994, p. 174).
O artigo descreve o modo como se dá a passagem, na linha do
amadurecimento, do sentido mais básico de realidade, o do mundo
subjetivo, no qual o bebê habita até então, para um outro sentido de
realidade, o de realidade externa, compartilhada. Mais precisamente,
Winnicott focaliza a diferença entre o modo inicial de relacionamento com
objetos ainda subjetivos – pertencentes ao mundo subjetivo – e os modos
posteriores e mais avançados de relacionamento com objetos já externos
(percepção, fantasia, amor, ódio, identificações cruzadas etc.), que estão na
realidade objetivamente percebida. O primeiro e mais primitivo modo de ter
algo como objeto foi denominado, por Winnicott, “relacionamento com um
objeto” (object-relating) e diz respeito ao objeto subjetivamente percebido.
Essa denominação acarreta dificuldades terminológicas e de tradução que
serão examinadas a seguir. Para designar o segundo e posterior modo de
relacionamento, Winnicott utilizou a expressão “uso de um objeto”, a qual
se refere ao relacionamento com objetos objetivamente percebidos.
O que, em suma, Winnicott quer salientar é que a passagem de um para
outro modo de relacionamento objetal não é automático; trata-se de uma
conquista que, como todas as outras do amadurecimento, precisa, para
realizar-se, do favorecimento ambiental. Essa conquista acontece mediante
a criação, pelo indivíduo, de um novo sentido de realidade, o da realidade
externa, compartilhada. O início da conquista ocorre numa etapa do
amadurecimento em que, após ter feito já algumas experiências com os
fenômenos transicionais, o bebê, impulsionado pela própria tendência ao
amadurecimento, arrisca introduzir uma alteração, de natureza agressiva, na
relação com o objeto até então subjetivo. O objeto subjetivo é, na verdade,
do ponto de vista do observador, a mãe real; se esta reagir bem à alteração,
uma nova modalidade de relacionamento objetal – a capacidade de
relacionar-se com objetos externos – irá se acrescentar, como uma
conquista, às possibilidades do indivíduo. Ou seja, também para chegar a
relacionar-se com objetos externos, enquanto externos, o favorecimento do
ambiente é essencial para que a conquista se efetive. Caso isso não ocorra, a
conquista pode fracassar, o que significa que não se pode, em todos os
casos, supô-la como dada.
Marco importante do processo de amadurecimento, essa dupla conquista
– a de um novo sentido de realidade, a realidade externa, e a de um novo
modo de relacionamento com objetos, que Winnicott denomina de uso de
um objeto – é decisiva para a constituição do indivíduo como entidade
unitária, sendo a base para todos os relacionamentos futuros com os objetos
não-eu, separados e externos ao si-mesmo. Constitui, além disso, o
fundamento da saúde psíquica, uma vez que, para o autor, só há saúde se o
indivíduo alcança a realidade externa (os objetos externos), sem perder
contato com a sua realidade subjetiva (os objetos subjetivos).
Durante toda a fase que é anterior à conquista que ora examinamos, o
bebê viveu num mundo subjetivo e relacionou-se com objetos subjetivos,
incluída aí a fase em que surgem os fenômenos transicionais.6 O que
acontece na passagem que leva de um para outro tipo de relacionamento? O
arriscado movimento de expulsar o objeto (subjetivo) para fora do âmbito
de onipotência, conferindo a ele, criativamente, caso o objeto sobreviva, o
caráter de externo. O objeto que está, nesse momento, em vias de ser
expulso, é o objeto subjetivo.7 Em outras palavras: até ser expulsa do
mundo subjetivo do bebê, o que ocorre nesta etapa do amadurecimento, a
mãe – que é e sempre foi externa do ponto de vista do observador – era
objeto subjetivo do bebê. Ela se manteve como objeto subjetivo, por todo
esse tempo, por ser suficientemente boa, o que significa que ela evitou
impor a sua externalidade ao bebê, levando em conta a imaturidade deste
para se relacionar com objetos com esse sentido de realidade. Agora, é o
bebê que, expulsando a mãepara fora do âmbito de onipotência, confere a
ela o caráter de externa; se ela sobreviver (não mudar de atitude, não
retaliar), ele poderá começar a usá-la, como se usa um objeto que é externo
ao si-mesmo. A conquista da capacidade de uso do objeto implica, portanto,
uma transfiguração do objeto, até então subjetivo para o bebê, em algo que
aparece agora em sua externalidade. O objeto pode então passar a ser usado.
O que acontece no uso é que esse uso não depende mais, apenas, da
onipotência do indivíduo e, por isso, este precisa levar em conta as
propriedades efetivas do objeto ele mesmo, ou seja, respeitar o princípio de
realidade, expressão que, nesse contexto, recebe um sentido
especificamente winnicottiano.
Como ocorre propriamente a expulsão da mãe, pelo bebê, para fora do
mundo subjetivo? A partir de outros textos, e à guisa de esclarecer a
peculiar destrutividade do uso de um objeto, pode-se dizer o seguinte: o
bebê que, a essa altura, tem por volta de 10, 11 ou 12 meses, e está bem
mais forte e vigoroso do que alguns meses atrás, manifesta uma certa
mudança de atitude: sem estar irritado, raivoso ou zangado, mas de uma
maneira, que se poderia dizer, provocativa, ele começa a desgastar o seio, a
dar mordidas, a chutar, ou então, a apresentar má vontade, relutância,
displicência ou indiferença. Em geral, após a agressão, o bebê observa a
reação da mãe, como que experimentando a solidez do terreno em que pisa.
Essa nova atitude do bebê pode afetar a mãe, em especial se ela estiver
deprimida ou não estiver preparada; pode fazê-la sentir-se pessoalmente
ofendida ou maltratada ou desconsiderada, e pode provocar nela uma reação
retaliatória. Segundo Winnicott, é essencial que a mãe sobreviva a esse
período, o que significa que, mesmo recusando e impedindo a agressão, ela
não altera a sua atitude básica com o bebê, e, em especial, que ela não
revida, não retalia.
A operação de expulsão do objeto é chamada, por Winnicott, de
destruição do objeto. O termo destruição, esclarece o autor, é necessário por
duas razões. Em primeiro lugar, devido ao impulso real do bebê de destruir
(sem raiva), que em geral é efetivado por ocasião da relação excitada com o
objeto ainda subjetivo, mas, sobretudo, devido à possibilidade de o
ambiente (mãe) não sobreviver à destruição. Se o ambiente sobreviver, a
destruição transforma-se, para o bebê, na experiência da possibilidade de
destruir (agredir), ou seja, na integração da destrutividade como um
aspecto da sua potência, o objeto sendo agora visto como seguro para ser
usado excitadamente. Esse desenvolvimento abre todo um mundo novo,
toda uma nova gama de possibilidades de relação com a realidade externa,
compartilhada, e com os objetos que a povoam. Na formulação de
Winnicott: se o objeto continuar lá, o mundo (externo) terá início;8 se, pelo
contrário, o ambiente não sobreviver, se ocorrer a sua “destruição” (o objeto
sucumbe e retalia), o bebê perde o apoio, o seu impulso de uso excitado fica
perigoso, e, desse modo, a nova fase de relacionamento objetal não tem
início. Ele terá que permanecer num mundo puramente imaginativo, num
mundo que é um feixe de projeções, sem o enriquecimento que provém da
experiência com a realidade externa.9
Na conquista da capacidade de usar objetos está, portanto, envolvida
uma destrutividade “sem raiva”, que não tem, ela mesma, base instintual –
embora se apoie na destrutividade do impulso amoroso primitivo e se
efetive nos momentos de excitação instintual. Essa destrutividade, que é
impulsionada pela tendência ao amadurecimento e à integração em uma
unidade, está a serviço da separação entre o eu e o não-eu.10 Se, no contexto
teórico aberto pelo conceito de uso do objeto, a destrutividade for entendida
como sendo de natureza instintual, todo o sentido do artigo se perde. O
conceito de “uso de um objeto” representa o ponto culminante de uma linha
central da pesquisa revolucionária desse autor – a que tem por objetivo
reescrever a teoria psicanalítica da agressividade a partir de raízes não
“instintuais”. Diz o autor: “Não se chegará a parte alguma em nosso estudo
da agressão se, em nosso modo de entender a natureza humana, tivermos a
agressão como irrevogavelmente vinculada ao ciúme, à inveja, à raiva pela
frustração, ao funcionamento dos instintos que chamamos de sádicos”
(1989n[1970]/1994, p. 221). Embora todos esses elementos devam ser
levados em conta se tivermos em mente uma teoria geral da agressividade,
o fato é que, no que se refere às raízes da agressividade humana, faz-se
necessário examinar uma raiz não constitucional e não instintual da
agressividade, pois, segundo Winnicott, a agressividade está sempre ligada
“ao estabelecimento da distinção entre o que é eu e o que é não-eu”
(1964d/1987, p. 98; os itálicos são meus). Ou seja, existe uma agressividade
de raiz maturacional a serviço do processo de separação entre o eu e o não-
eu, o que significa dizer: a serviço da constituição da identidade do
indivíduo humano. É essa agressividade que está presente no estágio em
que o indivíduo passa do relacionamento com o objeto para o uso do objeto,
juntamente com a destrutividade que é interna ao impulso amoroso
primitivo.
Está aqui formulada uma grande modificação teórica: enquanto, na teoria
tradicional, a raiva e a destruição são atribuídas à frustração diante do
princípio de realidade ou então à pulsão de morte, em Winnicott existe uma
destruição que não decorre do encontro com a realidade externa nem é de
origem interna, mas que, impulsionada pela própria tendência ao
amadurecimento, estabelece um novo modo de relacionamento com o
ambiente e os objetos, desempenhando um papel essencial na criação da
realidade externa.
Convém agora explicar melhor os conceitos envolvidos nesse breve
resumo. O objetivo é duplo: de um lado, enfatizar algumas sutilezas
conceituais da concepção winnicottiana de “o uso de um objeto” e, de
outro, tentar esclarecer algumas dificuldades conceituais e terminológicas
do artigo de Winnicott, orientada, neste último caso, em especial, pelas
objeções dos interlocutores no debate de Nova Iorque.
Em primeiro lugar, no artigo em questão, Winnicott usa a expressão
relating to an object, relacionamento com um objeto11 (ou ainda, object-
relating, relacionamento com objeto ou relacionamento objetal12),
exclusivamente para se referir ao relacionamento com objetos ainda
subjetivos (não separados do indivíduo), que vigora na etapa mais primitiva
do amadurecimento. Como, na teoria tradicional, o relacionamento com o
objeto subjetivo nunca chegou a ser considerado, jamais houve o emprego
da expressão nesse sentido; a expressão “relacionamento com um objeto” é
utilizada para falar de relações com objetos em geral, considerados
separados do indivíduo; tudo isso criou sérias dificuldades de compreensão
por parte dos debatedores de Winnicott. Um complicador adicional, nesse
ponto, consistiu em que o próprio Winnicott costuma, em outros textos, usar
o termo object-relating no sentido amplo, abrangendo todos os modos de
relacionamento objetal. Acrescente-se ainda que, quando aplicada ao que
acontece entre o bebê e o seu objeto subjetivo, a expressão é problemática,
pois o contato inicial com o objeto não pode, a rigor, ser chamado de
relacionamento, uma vez que ainda não há dois elementos “em relação”,
mas apenas o dois-em-um da unidade mãe/bebê. Winnicott sabe dessa
dificuldade, chegando a afirmar, em outro texto, ser axiomático para ele
“que não há relacionamento com um objeto subjetivo” (1989n[1970]/1994,
p. 221), referindo-se, naturalmente, ao relacionamento de dois elementos
separados. No artigo aqui comentado, contudo, Winnicott está exatamente
interessado em descrever a natureza peculiar do “relacionamento” entre
mãe e bebê, antes de estes se separarem como indivíduos, e o modo como
ocorre a passagem para o outro tipo mais adiantado, de relacionamento, o
do uso do objeto.13
Note-se que em nenhum dos casos – tanto no “relacionamento com um
objeto” quanto no “uso de um objeto” – trata-se de uma merarelação
formal ou mental, mas de uma capacidade de relacionar-se cuja natureza
precisa ser determinada em cada caso. Além disso, a expressão “um
objeto”, que ocorre nas duas fórmulas (relacionamento com um objeto e uso
de um objeto), fala de um algo que é assim ou assado (subjetivo ou
externo), de modo que as expressões em questão podem ser parafraseadas
por fórmulas abertas: “relacionar-se com...” e “usar o...”, as reticências
designando o lugar a ser preenchido pelo nome ou por uma descrição de
algo.14 A terminologia de Winnicott, no presente contexto, é construída
segundo a mesma gramática que é observada em seus textos sobre a crença
que é construída a partir da confiabilidade ambiental, expressa pela fórmula
“crença em...”, as reticências indicando o lugar da descrição de uma
pluralidade de coisas nas quais se crê (mãe, pai, Deus, família, professores,
amigos etc.).15
Resta ainda destacar dois pontos conceituais que foram quase
unanimemente considerados incompreensíveis e mesmo inaceitáveis pelos
analistas debatedores. Ambos dizem respeito ao modo como Winnicott
caracterizou o relacionamento com um objeto, ou seja, o relacionamento
inicial do bebê com a mãe, antes de estes se separarem como indivíduos.
Vejamos o primeiro. Sabemos, já por outros textos do autor, que o bebê cria
a mãe e, também, se identifica com ela. No artigo, após salientar que há um
momento dos estágios iniciais em que ocorrem certas alterações no eu (si-
mesmo), que permitem que o objeto se torne significativo (Winnicott está se
referindo à relação do bebê com seu primeiro objeto de eleição, o objeto
transicional), ele afirma que “mecanismos de projeção e identificações
estiveram operando e o sujeito está esvaziado a ponto de algo do sujeito ser
encontrado no objeto, embora enriquecido pelo sentimento”
(1969i[1968]/1994, p. 172). A objeção levantada por alguns dos
debatedores consiste em dizer que, se já há mecanismos de projeção, então
já existe a relação com a realidade externa, o que torna desnecessária a
teorização sobre o uso do objeto como passagem de um mundo subjetivo
“solitário” (ainda que se trate da unidade primitiva indiferenciada mãe-
bebê) para o mundo compartilhado. Tudo leva a crer, portanto, que o termo
“projeção” foi entendido, pelos debatedores, no sentido habitual com que é
usado na literatura psicanalítica. No artigo, contudo, assim como em
algumas outras passagens de sua obra em que está se referindo aos estágios
iniciais, Winnicott usa o termo “projeção”, não no sentido técnico,
psicanalítico, do mecanismo mental, cujo oposto é a introjeção, mas num
sentido próprio e peculiar, o de criação – do objeto ou do ambiente, a partir
da necessidade e do impulso. É nesse mesmo sentido que, num texto escrito
na década de 1960, Winnicott afirma que o bebê, na etapa inicial da vida, só
pode receber o que vem do mundo externo, se essas coisas puderem ser
recebidas na área de “onipotência do lactente e sentidas como projeções”
(1960c/1983, p. 46), isto é, como criações dele.16 Por que razão Winnicott
usa o termo projeção, nesse sentido não usual? Para distinguir a criação
primária, que estabelece o primeiro contato entre o bebê e a mãe, e que não
é projetiva, das criações que vêm a seguir, já enriquecidas pela experiência
e, portanto, já projetivas. Explicando melhor: a criatividade originária,
presente desde o início como uma capacidade própria do indivíduo humano,
começa a valer-se das experiências e torna-se projeção, isto é, criação de
objetos a partir da necessidade e do impulso, acrescidas de qualidades do
próprio objeto que, contudo, foram experienciadas pelo indivíduo como
sendo dele mesmo. É nesse contexto que Winnicott afirma que o indivíduo,
ao se relacionar com o objeto, vive num mundo que é um “feixe de
projeções”, ou seja, num mundo que, com seus objetos, é o resultado da
criação que o bebê faz a partir da necessidade e do impulso, tese igualmente
inaceitável para os seus interlocutores.17
Voltando à frase polêmica, Winnicott diz que, durante o relacionamento
com um objeto, estiveram operando, além dos mecanismos de projeção,
também as identificações. Isto é, além da criação primária, o que
caracteriza a relação de dois-em-um do bebê com sua mãe é a experiência
de identificação primária com o objeto (mãe), pela qual, durante a
experiência excitada da amamentação, o bebê torna-se o objeto, fazendo,
desse modo, as primeiras experiências de uma identidade primária própria.
Ser o objeto, pela identificação primária, é a forma mais simples e primitiva
de relacionamento com um objeto e constitui a base para todas as
experiências futuras de identificação, que irão possibilitar os
relacionamentos e a comunicação através de identificações cruzadas, as
quais pressupõem a capacidade de usar objetos e já incluem, nessa altura, os
mecanismos de projeção e introjeção da psicanálise tradicional.18
Se a conquista do uso do objeto fracassa, o indivíduo fica aprisionado na
identificação primária e na comunicação com objetos subjetivos, que é,
segundo Winnicott, “um beco sem saída”. Ele não chega ao mundo
compartilhado. Foi para salientar esse aspecto do amadurecimento que
Winnicott, ao publicar o artigo baseado na palestra, alterou o título para “O
uso de um objeto e o relacionamento através de identificações”. A diferença
entre relacionamento com um objeto e uso de um objeto, sendo essa
passagem a base para as futuras formas mais avançadas de relacionamento,
torna-se mais clara se for comparada com a distinção entre ser e fazer,
introduzida por Winnicott num artigo de 1966, intitulado “Os elementos
feminino puro e masculino puro cindidos”. Enquanto o “elemento feminino
puro” relaciona-se a essa experiência de ser, o “elemento masculino puro”
relaciona-se com o fazer. Percebendo estar teorizando sobre conflitos
essenciais, não configurados como tais na clínica até então, escreve
Winnicott:
No extremo, descobri que estava examinando um conflito essencial dos seres humanos, que
deve acontecer numa época muito primitiva: o que existe entre ser o objeto, que também tem a
propriedade de ser, e, em contraste com isso, uma confrontação com o objeto que implica
atividade e relação de objeto baseada em instinto ou moção. Isto resultou ser uma nova
formulação do que antes tentei descrever como objeto subjetivo e objeto objetivamente
percebido. (1972c[1968-69]/1994, p. 149)
Correlacionando os dois textos, pode-se dizer que a distinção entre “ser”
e “fazer”, do texto de 1966, é aproximadamente a mesma que a distinção
entre “relação com o objeto” e “uso do objeto”, do texto de 1968, com uma
diferença significativa: a capacidade de usar objetos (correlata ao fazer) é,
na linha maturacional, pré-requisito para esse fazer. Com respeito ao
relacionamento primitivo, ou seja, à experiência de ser, Winnicott diz: “Não
consigo ver impulso instintual nisso” (1971va[1966]/1994, p. 140). Trata-
se, aqui, portanto, da linha identitária do amadurecimento, distinta da linha
instintual (Loparic, 2005).
3. Implicações para a clínica
Ao assinalar a diferença maturacional entre o relacionamento com um
objeto e o uso de um objeto, Winnicott chama a atenção para implicações
importantes – eu diria, cruciais – para a clínica psicanalítica. Se a conquista
da capacidade de usar objetos e, a partir daí, de relacionar-se com a
realidade externa, pode fracassar devido a falhas ambientais, então o
analista deve levar em conta o fato de existirem pessoas que não fizeram
essa conquista, o que significa que elas não estão capacitadas a estabelecer
uma relação com o analista como objeto externo em termos de uma neurose
de transferência. Um dos objetivos de Winnicott, nesse artigo, é
precisamente mostrar as graves implicações, para a clínica psicanalítica, de
o analista não considerar essa possibilidade e continuar a agir, e a
interpretar, como se o paciente, ao invés de imaturo, nesse sentido
específico, estivesse resistindo, por infantilismo e/ou apego ao princípio de
prazer, a aceitar o princípio de realidade. Uma vez atento para a
possibilidadede o indivíduo não ter realizado a conquista da capacidade de
usar objetos, o analista terá, como objetivo inicial, conduzir o paciente pelas
etapas primitivas que se fizerem necessárias, até que este se torne capaz de
usá-lo, a ele, analista, nesse sentido da externalidade. É apenas após essa
conquista que o analista poderá ser percebido, pelo paciente, como tendo
uma existência independente, como alguém que ali está devido às suas
propriedades, e não às projeções do paciente, podendo então estabelecer-se,
na situação de análise, o que pode ser chamado, de pleno direito, de relação
de transferência. É somente depois de esta conquista ter se estabelecido que
o analista poderá ser, real e verdadeiramente, amado e/ou odiado.
Pode-se dizer que uma grande parte da teoria de Winnicott dedica-se a
explicitar as razões pelas quais o trabalho analítico com psicóticos –
indivíduos que, em sua concepção, específica para o ponto que ora
examinamos, são aqueles que não se tornaram capacitados a usar um objeto
– requer modificações na técnica clássica e uma delas consiste no fato de
que, para esses pacientes, o manejo é mais importante do que a
interpretação. Existem casos em que a interpretação é desaconselhável,
podendo ser altamente prejudicial, por não reconhecer a situação de
imaturidade do paciente, constituindo-se em apelo para uma compreensão
intelectual que apenas aprofunda dissociações e não promove a integração.
Para que a prática interpretativa, no sentido tradicional, seja aconselhável e
analiticamente benéfica, ela precisa estar “relacionada à capacidade que o
paciente tem de situar o analista fora da área dos fenômenos subjetivos”
(1969i[1968]/1994, p. 172). Se o paciente acha-se ainda “isolado”, ou seja,
se ele não fez a passagem do relacionamento com objetos (subjetivos) para
o uso do objeto, a análise estará fadada a ser, em verdade, uma espécie de
autoanálise, com o paciente falando com um objeto que é parte do si-
mesmo, um “feixe de projeções”. Nesses casos, antes de empreender o
trabalho interpretativo, o analista deverá fornecer ao paciente um setting
regular e confiável, algo que não se constrói com interpretações, e, no
interior do qual, a existência contínua de um meio ambiente facilitador e
confiável faça a parte silenciosa do trabalho analítico, permitindo,
tacitamente, caso se faça necessário, que aconteça um período de regressão
à dependência, com a adaptação quase absoluta que esta implica.
Não foi por acaso que Winnicott, logo no começo do artigo, menciona os
riscos contidos na análise de fronteiriços. Nesses casos, o paciente, que
cresceu intelectualmente, mas cujo processo de amadurecimento pessoal foi
interrompido numa etapa primitiva, exibe uma falsa personalidade, cuja
problemática, aparentemente neurótica, esconde um cerne psicótico. O
paciente encontra-se, na verdade, aprisionado num limbo entre o mundo
subjetivo, que não pode mais ser o seu único lugar de habitação – sendo a
comunicação exclusiva com objetos subjetivos um monólogo –, e o mundo
externo compartilhado, que não foi verdadeiramente alcançado, mas cujas
regras e exigências de performance são rigorosamente aprendidas e até
mimetizadas. Winnicott alerta que, em tais casos,
o psicanalista pode ser conivente, durante anos, com a necessidade do paciente de ser
psiconeurótico (em oposição a louco) e de ser tratado como tal. A análise vai bem [pois o
paciente, que padece pela ausência de agressividade é, em geral, extremamente colaborativo no
que se refere à tarefa interpretativa do analista] e todos manifestam satisfação. O único
inconveniente está em que a análise jamais termina. Pode ser concluída e o paciente pode
mesmo mobilizar um falso eu (si-mesmo) psiconeurótico, para finalizar o tratamento e expressar
gratidão. De fato, porém, ele sabe que não houve alteração no estado (psicótico) subjacente e
que analista e paciente tiveram êxito em conluiar-se para provocar um fracasso. Mesmo esse
fracasso pode ser valioso se analista e paciente o reconhecerem. (1969i[1968]/1994, p. 172)
O paciente que não destruiu objetos do mundo subjetivo e não criou o
mundo da realidade compartilhada, por ter falhado na conquista da
capacidade de usar objetos, não é uma pessoa inteira, não atingiu o grau de
maturidade que permite que os fatos de sua vida se tornem acontecimentos,
experiências pessoais, incluídas aí as fantasias e os conflitos inerentes à
vida instintual, em meio às relações interpessoais, com pessoas inteiras. Ele
pode até ter notícia dessas coisas, pode até saber muito, intelectualmente,
sobre elas, por via do autoexame ou através da literatura psicanalítica, mas,
a rigor, ele não tem experiência efetiva e pessoal delas. O que é feito ou
vivido, não é feito ou vivido em primeira, mas em terceira pessoa; é vivido
como uma prótese. Por isso, mais do que interpretações, no sentido
tradicional, o que esse tipo de paciente necessita são cuidados específicos
para que a conquista não realizada no momento original, devido a não
sobrevivência do objeto (a mãe podia estar deprimida, talvez tenha se
sentido pessoalmente ofendida com a agressão do bebê, ou com a sua
indiferença, que é o outro modo que ele tem de agredir), possa agora, sob
condições satisfatórias, vir a realizar-se. Para tanto, é preciso que o analista
compreenda teoricamente, em termos da teoria do amadurecimento, o que
está se passando e permita, como já assinalado, a ocorrência de uma
regressão à dependência, com a necessidade primitiva do paciente sendo
atendida e respeitada, e não interpretada como infantilismo.
Haverá, então, toda uma etapa em que o analista só existirá, para o
paciente, como objeto subjetivo. Se for dada a este a oportunidade de fazer,
pela primeira vez na vida, certas experiências primitivas que só podem
acontecer num ambiente confiável, o paciente retomará o amadurecimento.
Caso tenha êxito nessa tarefa, o analista deverá ficar preparado para o
momento em que, na análise, comecem a acontecer, por parte do paciente,
tentativas de destruição, não como parte de alguma forma de resistência,
nem motivadas por raiva ou ódio – o que representaria um grau de
amadurecimento que ele ainda não alcançou –, mas como sinal de retomada
do amadurecimento. O que ele necessita, sem ter nenhuma consciência
disso, é chegar à raiz da agressividade pessoal, a “integrar o seu potencial
de destruição”, o que não pôde acontecer, no momento original, devido ao
temor de o objeto não sobreviver ou por este, de fato, não ter sobrevivido. O
paciente precisa destruir o analista como objeto subjetivo; ele precisa, nas
palavras de Winnicott, fazer a experiência de “destrutividade máxima”, o
que só ocorre se o analista estiver não protegido, ou seja, não defendido
atrás de sua posição, de interpretações ou de desculpas. Se o analista, no
momento da agressão, sem raiva, do paciente, esquivar-se do soco, ou seja,
interpretar a agressividade na linha das projeções, no sentido tradicional –
da resistência, por exemplo, ou da transferência negativa –, ele estará
voltando para o cômodo lugar “feixe de projeções” do paciente.19 Diante do
ataque do paciente que, repentinamente, torna-se insatisfeito, descuidado,
indiferente, abusado, intolerante, “o analista”, adverte Winnicott,
preferiria interpretar, mas isso pode prejudicar o processo e, para o paciente, poderia assemelhar-
se a uma espécie de autodefesa, com o analista desviando o ataque do paciente. Nesse caso, é
melhor esperar que a fase passe e, então, examinar com o paciente o que aconteceu.
(1969i[1968]/1994, p. 175)
O problema é que a experiência de destrutividade máxima é necessária,
pois, sem ela,
o sujeito jamais coloca o analista para fora e, portanto, não pode mais do que experimentar uma
espécie de autoanálise, usando o analista como projeção de uma parte do eu (si-mesmo). Em
termos de alimentação, então, o paciente pode alimentar-se unicamente do eu (si-mesmo), e não
pode usar o seio para nutrir-se. O paciente pode inclusive ter prazer na experiência analítica,
mas, fundamentalmente, não sofreráqualquer mudança. (1969i[1968]/1994, p. 175)
O analista que estiver orientado para ver, nesse tipo de material clínico, a
manifestação da necessidade maturacional do paciente estará mais
capacitado a expor-se à destruição (isto é, ser o analista não defendido) e a
suportar a tensão que é própria do momento sem muito perigo de sucumbir,
isto é, de não sobreviver. As mudanças positivas que ocorrem nessa fase da
análise são profundas e essenciais, mas, assinala Winnicott, “elas não
dependem do trabalho interpretativo, e sim da sobrevivência do analista,
aos ataques do paciente” (1969i[1968]/1994, p. 175). Sobrevivência, aqui,
vale repetir, “envolve e inclui a ideia da ausência de uma mudança de
qualidade para a retaliação” (1969i[1968]/1994, p. 175).
Não é tarefa fácil para nenhum analista, sobretudo não para os que
partilham dos fundamentos tradicionais, compreender integralmente, e em
todas as suas implicações, o conceito de Winnicott sobre o uso do objeto.
Um analista formado no paradigma tradicional é ensinado a considerar o
material clínico como sendo relativo à vida interna (mental), deixando de
lado, como um sinal de resistência, toda a referência à realidade externa
(incluída aí a própria atitude e os procedimentos efetivos do analista). O
verdadeiro objeto de interpretação é a vida psíquica interna e os
mecanismos de projeção e introjeção, postos de manifesto na relação
transferencial. A posição de Winnicott é radicalmente distinta: para que a
interpretação tenha o efeito que é preconizado na teoria, para que a análise
não esteja condenada a perpetuar-se como uma autoanálise, é preciso que o
paciente seja capaz de usar o analista (isto é, de tratar o analista como
externo), e que o analista tolere ser usado e interpelado como tal.
Winnicott elucidou essas distinções comparando a relação entre os
analisandos e os seus analistas com a relação entre os bebês a as suas mães.
Podemos estar vendo dois bebês mamando em suas mães e podemos ver
que há diferenças:
Um deles está se alimentando do si-mesmo, uma vez que o seio e o bebê ainda não se
tornaram (para o bebê) fenômenos separados. O outro está se alimentando de uma fonte
diferente-de-mim, ou um objeto a que se pode dar um tratamento descuidado, e sem efeitos para
o bebê, a menos que o objeto retalie. As mães, tal como os psicanalistas, podem ser boas ou não
suficientemente boas; algumas podem, e outras não podem, fazer o bebê passar do relacionar-se
para o uso. (1969i[1968]/1994, p. 173)
4. O debate
Mais do que discordância ou mesmo recusa das ideias propostas por
Winnicott na sua palestra, o debate revelou que os interlocutores
entenderam muito pouco do que lhes foi dito; suas principais dificuldades
diziam respeito ao desconhecimento dos pressupostos teóricos que
fornecem base para os novos conceitos apresentados e, também, à
linguagem usada pelo psicanalista inglês. Formados na matriz disciplinar da
psicanálise tradicional, era difícil compreender a mudança concei tual e de
linguagem, operada por Winnicott em virtude de sua experiência clínica e
da nova matriz disciplinar que ele foi criando à medida que essa experiência
foi sendo teorizada.
Edith Jacobson deixou claro, logo de início, que não podia aceitar a
discussão nos termos propostos por Winnicott. Ela diz, o que é bastante
compreensível a partir do seu lugar e de toda a tradição, não entender a
utilização que o analista inglês fez da expressão “relacionamento com um
objeto”, como a denominação genérica de um tipo de relacionamento
primitivo e imaturo, em que o objeto ainda não foi separado como externo
ao si-mesmo. Além de discordar enfaticamente dessa caracterização do
relacionamento com um objeto, ela sustentou que isso, caso se apresentasse
num paciente, corresponderia a uma modalidade patológica de
relacionamento. Uma tal pessoa, diz Jacobson, “seria incapaz de relacionar-
se com um objeto em nível objetal libidinal avançado ou até mesmo de se
identificar normalmente”. Se tivesse tido a oportunidade de falar, Winnicott
poderia ter respondido à Dr. Jacobson que ela tem toda a razão, caso,
justamente, o indivíduo não amadureça na direção do uso, pois, diria ele
ainda, na fase do amadurecimento pessoal caracterizada pela expressão
“relacionamento com um objeto”, as relações objetais não são libidinais
(instintuais), a identificação é ainda primária e não cruzada (“normal”) e o
teste de realidade dos objetos de percepção só pode começar depois da
constituição, pelo indivíduo, do mundo externo da realidade compartilhada.
Poderia ainda acrescentar que essas teses, estranhas à teoria psicanalítica
tradicional do desenvolvimento sexual e individual, só fazem sentido se
consideradas à luz da teoria do amadurecimento.
Edith Jacobson diz ainda não ter conseguido “entender” o sentido dado
por Winnicott a “ataque destrutivo” e “sobrevivência”, além de considerar
“extremista” a afirmação de que “o objeto está sendo sempre destruído”.
Mais uma vez, a dificuldade resulta ou de simples incompreensão ou do
conflito entre paradigmas, ou seja, entre concepções e modos de falar sobre
os fenômenos clínicos. Por último, por negligenciar, ou, mais
provavelmente, por desconhecer a distinção que Winnicott faz dos vários
tipos de destrutividade, a Dr. Jacobson conclui dizendo que, com essa
conceituação [do uso do objeto], Winnicott passou por alto “as pessoas
psicóticas que são extremamente destrutivas e cujos terapeutas, capazes de
paciência, sobrevivem aos seus impulsos destrutivos, sem os resultados
positivos que ele descreve”. Limitar-me-ei a problematizar essa afirmação.
A que estará se referindo a Dr. Jacobson quando fala da destrutividade e dos
impulsos destrutivos de psicóticos, em situação de análise? E se essa
destrutividade que ela menciona estiver referida, não à fase do uso do
objeto, mas, por exemplo, à sensibilidade e à raiva que está relacionada a
um padrão de invasões ambientais, que sistematicamente interrompeu a
continuidade de ser, logo no início da vida? Mais: se ela diz não ter
entendido o sentido winnicottiano de “sobrevivência”, qual foi o sentido
dado por ela a esse termo, no exemplo? O que se deve entender por “ser
capaz de paciência”? E se a paciência vier, por exemplo, acompanhada de
tédio, indiferença ou desdém?
Assim como Jacobson, Samuel Ritvo começa o debate objetando contra
o uso que Winnicott faz da expressão “relacionamento objetal”, assinalando
que, com ela, Winnicott refere-se à ideia de um sujeito isolado, sem
interação com o ambiente externo, o que, segundo a teoria tradicional, é
justamente o contrário. Ele corrige ainda a teoria winnicottiana do que seria
a fase de uso de objeto com a tese de que a aceitação do objeto fora do si-
mesmo repousa sobre a capacidade funcional do ego de tolerar o atraso ou a
ausência de gratificação assim como a rea ção de ansiedade correspondente.
Uma eventual resposta de Winnicott poderia ser formulada da seguinte
maneira: em primeiro lugar, além da possível objeção sobre o uso da
expressão, a razão pela qual o sujeito do “relacionamento com um objeto”
precisa ser descrito como isolado consiste em que, no estágio primitivo ao
qual essa expressão se refere, o indivíduo humano, na condição de bebê,
desconhece inteiramente a existência de um ambiente que está sustentando
a continuidade de ser e fornecendo os cuidados necessários; ou seja, o ser
isolado do início tem a ver com a imaturidade e não indica patologia. Em
segundo lugar: esse ser isolado primitivo não implica, ainda, processos de
projeção e introjeção tomados no sentido tradicional como intrapsíquicos ou
mesmo mentais, pois, segundo a teoria winnicottiana do amadurecimento, a
imaturidade do momento ainda não permite que se fale de um “interior”, ou
de uma realidade psíquica interna, nem tampouco de mecanismos mentais
em funcionamento. Nas fases iniciais, o bebê humano vive num mundo
subjetivo, que é inteiramente pessoal sem, por isso, ser interno; para poder
executar atos mentais de modo não perturbado, o indivíduo humano precisa
previamente estabelecer os fundamentosda sua existência psicossomática,
conquista que não pode prescindir do relacionamento com um objeto
facilitador subjetivo, isto é, não externo do ponto de vista do bebê. A
segunda objeção de Ritvo também repete a intervenção de Jacobson: ele diz
não “entender a afirmação de que a aceitação do objeto fora do controle
onipotente do sujeito signifique a destruição do objeto”, sugerindo que a
compreensão dessa tese de Winnicott poderia ser facilitada pela tese
tradicional de que a formação de relações objetais permanentes está baseada
na capacidade de tolerar frustração.
Bernard Fine alongou-se na sua intervenção e parece ter sido, como
observa Rodman, o principal responsável por não ter sobrado tempo para
que Winnicott pudesse responder às críticas que lhe foram feitas. Após
lembrar a afinidade de Winnicott com paradoxos, em especial o seu
trabalho sobre objetos transicionais, Fine repetiu Jacobson e Ritvo,
afirmando ser “pouco clara e de modo algum provada” a ideia do
palestrante de que, na passagem entre o relacionamento e o uso, o sujeito
tivesse que destruir o objeto. Assinalou também a ausência de “qualquer
referência à importância dos componentes libidinais no tocante à
sobrevivência do objeto”. Fine concordou que o analista precisa ser visto
como externo ao si-mesmo pelo paciente, mas, diz ele, “a sobrevivência do
analista20 depende de mais fatores do que aqueles citados pelo Dr.
Winnicott”. Ao descrever a passagem entre a “apreensão subjetiva” e a
“concepção externa e realista do objeto”, Winnicott teria desprezado os
fatores libidinais e egoicos, devidamente explicitados pelos representantes
da psicologia do ego, que “enfatizaram, de formas diferentes, o papel do
amadurecimento do ego no desenvolvimento da predominância do prazer
em distintos funcionamentos”. Fine admite que a ideia winnicottiana de
destruição do objeto, por ocasião da separação deste, é uma grande
modificação da teoria tradicional, mas não está bem fundamentada.
Fine acrescenta duas outras observações críticas. Na primeira, ele diz ser
inadequado empregar o termo “uso” para “designar um específico processo
psicanalítico científico”. De fato, o procedimento metodológico de
Winnicott de transformar expressões descritivas da linguagem comum em
termos técnicos só poderia causar estranheza à comunidade analítica
tradicional dominada pelo modo de teorização especulativo, herdado da
metapsicologia. A segunda observação de Fine consiste na reafirmação da
tese tradicional de que a distinção nítida entre o relacionamento e o uso não
se justifica e que toda a problemática da fase do uso de um objeto, trazida
por Winnicott, poderia ser tratada como uma subfase do desenvolvimento
contínuo dos relacionamentos objetais entendidos à maneira tradicional. De
fato, na metapsicologia, a ideia de uma relação com o objeto já inclui a de
separação.
Otto Sperling, o último dos quatro interlocutores, mudou o registro do
debate e tentou mostrar a fraqueza clínica da posição de Winnicott. Para
tanto, ele apresentou uma vinheta que, segundo ele, poderia ser entendida
como ilustração da teoria winnicottiana do uso de um objeto. O caso trazido
é o de um homem casado, que, há muitos anos, manifestava pouco interesse
sexual pela esposa. Certa vez, tendo esta retornado da cidade com atraso
inusitado, ele a “destruiu” pela raiva e acusações. Dormiram separados essa
noite, mas, na manhã seguinte, ele fez “uso dela em um coito”. Sperling
sugeriu que esse caso seguia a sequência dos desenvolvimentos
maturacionais descrita por Winnicott e parecia, portanto, admitir uma
“explicação” em termos winnicottianos. Terminou afirmando que, no caso
apresentado, mais elucidativa do que a de Winnicott é a interpretação sexual
do tipo tradicional, de que o homem agia sob influência de fantasias sexuais
inconscientes.
Não sei o que Winnicott diria dessa aplicação “selvagem” da sua teo ria.
Mas ele certamente poderia indicar que uma das maiores novidades de sua
teoria do uso do objeto é a concepção de uma destruição sem raiva, a
serviço da separação, maturacionalmente necessária, entre o eu e o não-eu,
embora apoiada no impulso instintual. Segundo o relato, não é esse o tipo
de destruição que ocorre no exemplo do Dr. Sperling. A raiva e as
acusações do tipo que parece ser exemplificado pelo caso não constituem,
mas, ao contrário, pressupõem – tal como a ocorrência de afetos negativos
no setting analítico – que o indivíduo tenha feito originalmente a
experiência da destruição do objeto.
Como já foi mencionado, os debatedores deixaram, casual ou talvez
intencionalmente, um tempo exíguo para Winnicott responder às arguições.
Nesse pouco tempo, escreve o redator da Ata, ele respondeu aos
debatedores de maneira “encantadora e espirituosa”. Talvez fosse mais
exato dizer que Winnicott usou, na breve finalização do debate que lhe
coube, o seu conhecido humor e uma certa ironia, motivados, certamente,
pelo reconhecimento do colapso total de comunicação que havia
acontecido.
O debate nova-iorquino sobre o artigo “O uso de um objeto”, contido na
Ata redigida por David Milrod, ilustrou aspectos sociais e comunicacionais
do conflito entre o paradigma sexual da psicanálise tradicional, organizado
em torno de conceitos da teoria freudiana da sexualidade e da
metapsicologia, e o paradigma maturacional de Winnicott, centrado na sua
teoria do amadurecimento e numa ontologia de tipo fenomenológico, avessa
à especulação metapsicológica. Mas o principal ensinamento que dele se
tira é que uma compreensão adequada das ideias inovadoras de um grande
autor exige o conhecimento, senão da totalidade, ao menos das linhas gerais
da sua obra. Winnicott cometeu um grave engano ao tentar expor uma das
suas ideias centrais, a do uso de um objeto, a um público disposto apenas a
reduzir o novo ao já sabido.
Referências
Dias, E. O. (2003). A teoria do amadurecimento de D. W. Winnicott. Rio de
Janeiro: Imago.
Fairbairn, W. R. (1952). Psychoanalytic Studies of the Personality. London:
Routledge & Kegan Paul.
Laplanche, J. & Pontalis, J.-B. (1967). Vocabulaire de la psychanalyse.
Paris: Presses Universitaires de France.
Loparic, Z. (1996). Winnicott e o pensamento pós-metafísico. Psicologia
USP, 8(2), 39-61.
Loparic, Z. (2005). Elementos da teoria winnicottiana da sexualidade.
Natureza humana, 7(2), 311-358.
Rodman, F. R (2003). Winnicott, life and work. Cambridge MA: Da Capo
Lifelong (Perseus Lawrence Book).
Winnicott, D. W. (1983). O ambiente e os processos de maturação. Porto
Alegre: Artes Médicas. (Trabalho original publicado em 1965b. Título
original: The Maturational Processes and The Facilitating Environment)
Winnicott, D. W. (1983). Comunicação e falta de comunicação levando ao
estudo de certos opostos. In D. Winnicott (1983/1965b), O ambiente e os
processos de maturação. Porto Alegre: Artes Médicas. (Trabalho original
publicado em 1965j[1963])
Winnicott, D. W. (1983). Teoria do relacionamento paterno-infantil. In D.
Winnicott (1983/1965b), O ambiente e os processos de maturação. Porto
Alegre: Artes Médicas. (Trabalho original publicado em 1960c)
Winnicott, D. W. (1987). Privação e delinquência. São Paulo: Martins
Fontes. (Trabalho original publicado em 1984a. Título original:
Deprivation and Delinquency)
Winnicott, D. W. (1987). Raízes da agressão, parte de Agressão e suas
raízes. In D. Winnicott (1987/1984a), Privação e delinquência. São Paulo:
Martins Fontes. (Trabalho original publicado em 1964d)
Winnicott, D. W. (1989). O lugar da monarquia. In D. Winnicott
(1989/1986b), Tudo começa em casa. São Paulo: Martins Fontes.
(Trabalho original publicado em 1986j[1970])
Winnicott, D. W. (1989). Tudo começa em casa. São Paulo: Martins Fontes.
(Trabalho original publicado em 1986b. Título original: Home is Where
We Start From)
Winnicott, D. W. (1989). O valor da depressão. In D. Winnicott
(1989/1986b), Tudo começa em casa. São Paulo: Martins Fontes.
(Trabalho original publicado em 1964e[1963])
Winnicott, D. W. (1989). Vivendo de modo criativo. In D. Winnicott
(1989/1986b), Tudocomeça em casa. São Paulo: Martins Fontes.
(Trabalho original publicado em 1986h[1970])
Winnicott, D. W. (1990). Natureza humana. Rio de Janeiro: Imago.
(Trabalho original publicado em 1988. Título original: Human Nature)
Winnicott, D. W. (1994). Os elementos masculinos e femininos cindidos
encontrados em homens e mulheres. In D. Winnicott (1994/1989a),
Explorações psicanalíticas. Porto Alegre: Artes Médicas. (Trabalho
original publicado em 1971va[1966])
Winnicott, D. W. (1994). Explorações psicanalíticas. Porto Alegre: Artes
Médicas. (Trabalho original publicado em 1989a. Título original:
Psychoanalytic Explorations )
Winnicott, D. W. (1994). Individuação. In D. Winnicott (1994/1989a),
Explorações psicanalíticas. Porto Alegre: Artes Médicas (Trabalho
original publicado em 1989n[1970])
Winnicott, D. W. (1994). Resenha de Psychoanalytic Studies of the
Personality (W. R. D. Fairbairn). In D. Winnicott (1994/1989a),
Explorações psicanalíticas. Porto Alegre: Artes Médicas. (Trabalho
original publicado em 1953i)
Winnicott, D. W. (1994). Resposta a comentários, parte 3 do capítulo 28. In
D. Winnicott (1994/1989a), Explorações psicanalíticas. Porto Alegre:
Artes Médicas. (Trabalho original publicado em 1972c[1968-69])
Winnicott, D. W. (1994). O uso de um objeto e o relacionamento através de
identificações. In D. Winnicott (1994/1989a), Explorações psicanalíticas.
Porto Alegre: Artes Médicas. (Trabalho original publicado em
1969i[1968])
1. Este texto, originalmente publicado em Natureza humana, vol. 7, n. 1, 2005, foi corrigido e
revisado para a presente edição.
2 . Miguel A. de Mello Silva contou, nessa diligência, com a ajuda de um amigo americano, William
B. Culpeper, que se dispôs a obter a autorização de publicar a Ata, junto à NYPS. Fica aqui
registrado o nosso agradecimento ao Sr. Culpeper. A insistência deste com respeito à autorização
foi recebida com surpresa pela responsável pelo acervo da NYPS, pois, segundo ela, tratava-se de
uma cautela inútil, uma vez que, dizendo respeito a um documento muito antigo que, nesses anos
todos, não fora jamais requisitado, ela havia decidido jogá-lo fora, assim que fizesse uma limpeza
dos arquivos. Nós tínhamos chegado um pouco antes da destruição.
3 . Veja Rodman, 2003, p. 323.
4 . Loparic (1996) mostrou que a doutrina heideggeriana dos múltiplos sentidos do ser, apresentada
em Ser e tempo, pode ser usada para elucidar esse elemento central do paradigma winnicottiano.
5 . Uma outra apresentação do mesmo tema, a partir da teoria do amadurecimento, encontra-se em
Dias, 2003, capítulo 4, item 3.
6 . Não devemos esquecer que o estabelecimento da transicionalidade depende de a mãe (subjetiva)
continuar a dar sustentação ao mundo subjetivo até este ser destruído pelo bebê: é este que cria a
externalidade do mundo.
7 . Apesar de no momento em que tem início a conquista do uso de um objeto o bebê estar já vivendo
a fase da transicionalidade, e se relacionando com objetos transicionais, o objeto (mãe) continua a
ser subjetivo.
8 . Num artigo escrito em 1970, intitulado “O lugar da monarquia”, Winnicott utiliza o conceito de
uso de um objeto para refletir sobre o lugar que a instituição da monarquia ocupa na Grã-
Bretanha. A ideia central proposta no artigo – referida, segundo o autor, ao “aspecto mais
fundamental da relação objetal” – é mostrar que a importância da monarquia, para a Inglaterra e
para os ingleses, deve-se à sua sobrevivência. Diz Winnicott: “A sobrevivência da coisa (aqui, da
monarquia) torna-a valiosa e capacita pessoas de todos os tipos e idades a perceberem que a
vontade de destruir não tem nada a ver com raiva – tem a ver com amor primitivo, e com a
destruição que ocorre na fantasia inconsciente, ou no sonho pessoal que pertence ao dormir. É na
realidade psíquica pessoal que a coisa é destruída. Na vida desperta, a sobrevivência do objeto
traz um senso de alívio e um novo senso de confiança. Agora fica claro que é devido às suas
próprias propriedades que as coisas podem sobreviver, apesar de nossos sonhos, apesar do pano
de fundo de destruição em nossa fantasia inconsciente. O mundo começa a existir, agora, por si
próprio; torna-se um lugar onde viver; não um lugar para temer ou ao qual devamos nos submeter,
ou no qual ficamos perdidos; também não um lugar onde lidar apenas com os sonhos ou com a
indulgência à fantasia” (1986j[1970]/1989, p. 208).
9 . A expressão “feixe de projeções” foi usada por Winnicott, no artigo, para descrever o modo de
relacionamento primitivo com o ambiente (“relacionamento com um objeto”), e tem um sentido
bem próprio, o de criação. Não se trata, portanto, aqui, do mecanismo mental que, juntamente
com a introjeção, opera o intercâmbio entre a realidade interna e a externa, segundo a teoria
tradicional.
10 . Ver-se-á, pelo debate, que a destrutividade que é característica do uso do objeto não pode ser
entendida, pelos interlocutores, no sentido explicitado por Winnicott.
11. A expressão relating to an object, equivalente inglês da freudiana Objekt beziehung, tem sido
habitualmente traduzida por “relação de objeto”. Já usei essa tradução, de forma inercial, em
outras ocasiões. Ocorreu-me, contudo, que ela fere o regime do substantivo “relação”, que pede a
preposição “com”. Os argumentos que justificariam esse mesmo tipo de distorção da linguagem,
em francês, apresentados por Laplanche & Pontalis (1967) em seu Vocabulário de psicanálise,
não convencem. Além disso, o termo “relação” não preserva a conotação da capacidade de
relacionar-se que está contida no termo relating e na nossa tradução do mesmo por
“relacionamento”. O mesmo se aplica à expressão object-relating.
12. Sobre a tradução, ver a nota anterior.
13. Mais adiante serão indicadas as características peculiares desse “relacionamento” inicial.
14. Isso dito, por motivo de comodidade, usarei ocasionalmente as expressões “relacionamento com
o objeto” e “uso do objeto”.
15. Cf. Winnicott, 1965b/1983, cap. 8. Essa sucinta análise da linguagem de Winnicott mostra que,
para ele, o relacionamento objetal é, desde o início, um relacionamento não apenas com esse ou
aquele algo, mas sempre, também, com um domínio de entes, sendo esse domínio caracterizado
pelo fato de ser um mundo, ou seja, um ambiente, com espaço e tempo, para o indivíduo. Esse
mesmo fato é expresso de maneira paradigmática pelo duplo sentido inicial da palavra “mãe”,
quando aplicada à experiência nas fases primitivas do amadurecimento humano. Essa palavra
designa tanto a mãe-ambiente como a mãe-objeto, os bebês humanos não podendo separar esses
dois significados. Uma interpretação ontológica possível da estrutura dessa bifurcação consiste
em dizer, com Heidegger, que o bebê humano está destinado a ser, caso tudo corra bem, um ser-
no-mundo, com-outros e junto-das-coisas-intramundanas. Agradeço a Zeljko Loparic os preciosos
apontamentos desta nota e do parágrafo ao qual ela pertence.
16. Em seguida a esta última frase, o autor assinala estar “usando aqui o termo ‘projeções’ em um
sentido descritivo e dinâmico e não no seu sentido metapsicológico completo” (1960c/1983, p.
46, nota 12).
17. Note-se que a concepção tradicional segundo a qual a relação de um indivíduo com o meio tem
início mediante os mecanismos mentais de introjeção e projeção implica a negação da
criatividade originária, uma vez que, baseada no modelo de incorporação e excreção, só é
projetado o que foi anteriormente introjetado. Isso seria inaceitável para Winnicott, sobretudo
tratando-se das etapas iniciais. Na resenha do livro Psychoanalytic Studies of the Personality
(1952), de R. Fairbairn, Winnicott afirma que este, em sua teoria, não concede lugar para a
criatividade primária. Fairbairn, diz Winnicott, até poderia contrapor-se a essa crítica, dizendo
que, nesse livro, encontra-se a afirmação de que “(uma casa) é um objeto que é buscado, mesmo
que, para ser encontrada, tenha que primeiramente ser feita” (Fairbairn, 1952, p. 141). Contudo,
assinala Winnicott, “em parte alguma, ele [Fairbairn] enuncia a maneirapela qual o bebê faz o
primeiro objeto (teórico)”. E continua: “Em sua teoria, a criatividade psíquica primária não
constitui uma propriedade humana; uma série infinita de introjeções e projeções formam a
experiência psíquica do bebê. A teoria de Fairbairn se alinha, aqui, com a que nos foi dada por
Melanie Klein, que também não permite que seja prestado tributo à ideia de criatividade psíquica
primária” (Winnicott, 1953i/1994, p. 320).
18. No artigo “Vivendo de modo criativo”, Winnicott diz que, por mecanismos de projeção e
introjeção, ele entende a capacidade de alguém “identificar-se com os outros e de identificar os
outros consigo próprio” (1986h[1970]/1989, p. 37).
19. Assinalo que o sentido de “projeções”, aqui, é tomado no sentido tradicional, porque Winnicott,
ao referir-se aos estágios iniciais, usa, muitas vezes, o termo projeção para designar a criação,
pelo bebê, do objeto ou do mundo. Pode-se encontrar um exemplo do uso do termo, no sentido de
criação, em um texto de 1960, quando ele diz que o bebê só pode receber o que vem do mundo
externo, se essas coisas estiverem incluídas “na onipotência do lactente e sentidas como
projeções”. Neste ponto, Winnicott acresce a seguinte nota de rodapé: “Estou usando aqui o termo
‘projeções’ em um sentido descritivo e dinâmico e não no seu sentido metapsicológico completo”
(1960c/1983, p. 46, nota 12).
20. O texto diz “sobrevivência do analisando”, o que me parece ser um erro de digitação, embora
possa também ter sido um ato falho. Não se sabe, igualmente, se o erro foi do arguidor ou de
David Milrod, que escreveu a Ata.
6 
Da sobrevivência do analista1
Uma das características do novo paradigma que Winnicott instaura no
domínio da psicanálise é um retorno ao simples, uma atenção às coisas
simples e naturais da vida, um aprendizado para poder ver aquilo que é
fundamentalmente humano e está diante de nós, mas que ficou obscurecido,
camada sobre camada, por especulações abstratas. Martin Heidegger, um
dos grandes pensadores do século XX, diz: “O simples não nos impressiona
mais em sua simplicidade, porque o modo de pensar científico habitual
destruiu a capacidade de se surpreender com o óbvio, e justamente com
isso” (Heidegger, 1987, p. 133).
O tema da sobrevivência pertence a esse domínio. Como é próprio de
Winnicott, a palavra sobrevivência é tirada da linguagem comum, na qual
ela é usada, frequentemente, para falar de coisas tais como: sobrevivência
na selva, luta pela sobrevivência, quero viver e não apenas sobreviver etc.
Mas não é nesses sentidos que Winnicott usa o termo e, para entendê-lo, é
preciso partir de algumas das concepções em que se baseia a sua teoria do
amadurecimento. Certamente, deve causar estranheza, ao leigo, a ideia de
que um aspecto essencial da tarefa da mãe, do lar e do analista, ao cuidar de
uma criança ou de um paciente, consista em sobreviver.
1. Uma questão de base
O que pretendo aqui examinar sobre o conceito de sobrevivência está
orientado por uma outra questão, que me chega, em supervisões, ou
conversas informais, tanto de colegas analistas, quanto de professores,
pediatras, enfermeiras, assistentes sociais ou fisioterapeutas, que, às vezes,
compartilham comigo as suas inquietações acerca de um paciente ou de um
aluno – seja ele uma criança, um adolescente ou adulto –, para entendê-lo
melhor, ajudá-lo mais. A questão vem quase sempre a propósito de um
período em que, a despeito do trabalho que está sendo desenvolvido, parece
que nada está acontecendo; ela pode ser assim desdobrada: será que estou
ajudando o paciente? Será que não estou deixando escapar algo de
essencial? Será que não estou empacada em algum lugar? Correlato ao
pedido de supervisão é aquele pedido da mãe para que a avó ponha a mão
na testa do bebê, certificando-se se ele está ou não com febre, e o que fazer
com isso. É a esses profissionais que dedico este artigo.
Pois bem, qualquer que seja o problema que tenhamos à nossa frente,
nosso modelo é a mãe suficientemente boa, a quem compete ajustar-se às
necessidades crescentes e sempre variáveis de seu filho, ou de seu paciente,
adaptando-se e respondendo à dependência, assim como à crescente
independência, destes, incluído, aqui, o fato de a importância da mãe ou do
terapeuta tornar-se cada vez menor, ou mudar drasticamente de qualidade, à
medida que o amadurecimento avança. Ora, apesar de Winnicott ter sempre
afirmado que as mães não devem dar ouvidos aos palpites das vizinhas, que
seu saber não vem dos livros, nem de palestras, mas está baseado em sua
capacidade de identificação com seus bebês, ele também diz que as mães
precisam de sustentação para elas mesmas, uma vez que, muitas vezes, seu
desamparo se equipara ao do bebê. Além disso, elas precisam ser
reasseguradas naquilo que fazem bem.
O que vou dizer, a propósito do nosso ofício de cuidadores, não adiantará
para nada, porque a necessidade ou a dúvida é sempre a do momento e a
ajuda vale para o instante em que as coisas acontecem. De qualquer modo,
tentarei traçar algumas linhas de fundo que podem voltar à memória em
alguma ocasião oportuna.
Antes de mais nada, deve-se lembrar que, ao descrever os cuidados
suficientemente bons da mãe dedicada comum, Winnicott afasta qualquer
idealização da figura materna ou paterna e, consequentemente, do analista.
Nem os pais são anjos altruístas, nem o mundo que rodeia o bebê é o
paraíso. As crianças, ou pacientes, não tiram proveito algum da perfeição
mecânica. O que o bebê necessita é de confiabilidade e de comunicação
humana verdadeira, e não de técnicas de cuidar. Se fosse possível escolher
os pais, confessa Winnicott, ele preferiria mil vezes ter uma mãe capaz de
ter dúvidas sobre a sua conduta, e de pensar que algumas coisas andam mal
em virtude de algo que ela fez ou não fez, do que uma que estivesse sempre
segura do que é bom para o bebê, e com a tendência “de explicar tudo por
algo externo”, sem assumir responsabilidade por nada (1993d[1961]/1993,
p. 119). Esta seria a mãe defendida, assim como existe o analista defendido.
O traço central do ambiente facilitador é ele ser confiável. A
confiabilidade é um atributo dos humanos, que erram, e não das máquinas.
Confiabilidade não significa ser imune ao erro; ao contrário, exatamente
porque falível, a pessoa humana pode ser confiável. O fato é que mães e
analistas permanentemente falham em sua adaptação às necessidades do
bebê ou do paciente. O problema não é esse; ele consiste bem mais no
reconhecimento e na atitude do ambiente com relação à falha. Por outro
lado, o que se exige é presença verdadeira, interesse genuíno e atenção
plena. Um bebê, sobretudo durante a fase de dependência absoluta, não
pode se beneficiar de nada menos do que de uma pessoa total, que está
inteiramente ali, mesmo que só por alguns momentos, a cada dia. Isso é
mais importante do que qualquer coisa que se diga ou que se deixe de dizer.
Estou convencida de que os bebês vêm ao mundo munidos de um
mecanismo de controle de qualidade da presença e da comunicação; eles
captam, sem nenhuma consciência disso, qualquer vestígio de falsidade,
desânimo ou desistência. E o mesmo ocorre com pacientes regredidos à
dependência.
É bom que se diga, ainda, que não há nenhuma mística ou poder
extranatural na capacidade de exercer os cuidados satisfatórios que levam
uma outra pessoa à transformação e ao amadurecimento: o que existe é
apenas uma disponibilidade verdadeira e humana, acrescida da capacidade
de aprender com o bebê ou paciente, além de muito estudo sobre o
amadurecimento pessoal.
2. A tarefa terapêutica
Numa palestra para a David Wills Lecture, uma Associação de
Assistentes Sociais para crianças desajustadas, proferida em outubro de
1970, um pouco antes de morrer (em janeiro de 1971), Winnicott começa
dizendo que há um tipo de crescimento que é “para baixo” (growing
downwards), e que, se ele tiver ainda bastante tempo de vida, espera tornar-
se pequeno o suficiente para passar sem esforço pelo estreito buraco da
morte. Ocorre que o crescimento para baixo, ou “paramenor” (to grow
smaller), como ele também diz, começa já em vida e significa a capacidade
crescente de depurar o que é essencial, embora se trate, muitas vezes, de
algo tremendamente simples, mas sem o qual todo o resto fica sem sentido.
Winnicott diz à plateia:
Não é preciso ir muito longe para encontrar um terapeuta cheio de empáfia: sou eu mesmo.
Na década de trinta, estava aprendendo a ser psicanalista e sentia que, com um pouco mais de
treinamento, de habilidade e de sorte, poderia mover montanhas se fizesse a interpretação certa
na hora certa. [...] Quando meu insight adquiriu profundidade, descobri, [num segundo passo
para menor], que, tal como meus colegas, eu podia fazer mudanças significativas no material dos
pacientes [...]; podia dar maior esperança, conseguindo, portanto, maior adesão para uma
cooperação inconsciente. Na verdade, era tudo muito bonito, e eu fazia planos de passar o resto
de minha vida profissional exercendo a psicoterapia. A certa altura, eu chegava a dizer que só
poderia haver terapia na base de 50 minutos, cinco vezes por semana, durante tantos anos
quantos fossem necessários, por um psicanalista bem treinado. (1984g[1970]/1987, p. 225)
Ele continua dizendo que, embora tenha feito essas palavras parecerem
uma bobagem, sua intenção era apenas a de mostrar que esse tipo de atitude
é uma espécie de começo; mais cedo ou mais tarde, tem início o processo
de crescer para menor, e isso é doloroso até nos habituarmos.
No meu caso, acho que comecei a crescer para menor, na época de meu primeiro contato
com David Wills. David não se permitiria orgulhar-se de seu trabalho, na antiga instituição de
assistência social de Bicester. Contudo, era uma obra notável, e eu me orgulho por ele.
(1984g[1970]/1987, p. 226)
Winnicott relata, então, como era excitante estar envolvido na vida desse
alojamento, cuja função, durante a Segunda Grande Guerra, era receber
garotos problemáticos, que haviam sido evacuados de seus lares, quando
estes existiam. Um som costumeiro ao lugar era o seguinte: um carro
aproximava-se em alta velocidade e parava; alguém abria a porta da frente e
esta voltava a fechar-se com estrondo; seguia-se um ruído do motor do
carro, que arrancava como se estivesse fugindo do diabo em pessoa.
Constatava-se, então, que outro garoto havia sido deixado na porta da
frente, na maioria das vezes sem um telefonema prévio: “e um novo
problema havia sido jogado no prato de David Wills” (1984g[1970]/1987,
p. 226). No começo, em suas visitas semanais ao alojamento, Winnicott via
um menino ou dois e fazia, com cada um deles, uma entrevista pessoal.
Algumas vezes, David e seus auxiliares ouviam-no contar a história da
entrevista, na qual ele havia feito “estupendas interpretações baseadas em
profundo insight” (1984g[1970]/1987, p. 226), relacionando-as com o
material que os meninos apresentavam de um só fôlego, ansiosos por obter
ajuda pessoal. Contudo, ele podia sentir que suas “pequenas tentativas de
semeadura caíam em solo de pedra” (1984g[1970]/1987, p. 226). Bem
depressa Winnicott percebeu que
a terapia estava sendo feita, na instituição, pelas paredes e pelo telhado; pela estufa de vidro que
fornecia um alvo magnífico para pedras e tijolos, pelas banheiras absurdamente grandes, para as
quais era necessária uma quantidade imensa de carvão, tão precioso em tempo de guerra, se se
quisesse ter água quente suficiente para cobrir o umbigo de quem quisesse tomar banho. A
terapia estava sendo realizada pelo cozinheiro, pela regularidade com que as refeições chegavam
à mesa, pelas colchas quentes e coloridas das camas. (1984g[1970]/1987, p. 226)
e, sobretudo, “pelos esforços de David para manter a ordem apesar da
escassez de pessoal”, e para manter o alento “a despeito do constante senso
de inutilidade daquilo tudo, porque a palavra sucesso estava reservada para
algum outro lugar, que não para a Bicester Poor Law Institution”
(1984g[1970]/1987, p. 226). É claro que os meninos fugiam, roubavam das
casas da vizinhança e não paravam de quebrar vidros.
Tentando observar mais de perto o que se passava, Winnicott descobriu
que
David estava fazendo coisas importantes, baseadas em certos princípios que ainda estamos
tentando formular e relacionar com a estrutura teórica. Pode ser que estejamos falando sobre
uma espécie de amor, e sobre isso falarei mais adiante. Temos de examinar as coisas que
ocorrem naturalmente no contexto do alojamento, para podermos fazer essas coisas
deliberadamente, adaptando o que fazemos de maneira econômica às necessidades especiais de
cada criança, ou para podermos enfrentar as situações especiais à medida que surgem.
(1984g[1970]/1987, p. 227)
Uma das coisas que David Wills promovia era uma sessão semanal em
que todos os meninos se reuniam e tinham completa liberdade para falar.
Naturalmente, o comportamento deles era altamente irregular e, muitas
vezes, exasperante, conta Winnicott. Andavam de um lado para o outro,
resmungavam o tempo todo, queixavam-se de tudo e, se solicitados a opinar
sobre um delinquente, seus vereditos eram quase sempre severos e mesmo
cruéis. Como havia, contudo, uma atmosfera de tolerância, que David
permitia e sustentava, coisas muito importantes eram expressas pelas
crianças; podia-se discernir como cada indivíduo “tentava estabelecer uma
identidade, sem que realmente o conseguisse, exceto, talvez, através da
violência” (1984g[1970]/1987, p. 228). Percebia-se que cada um deles
estava clamando, aos gritos, por ajuda pessoal, o que não era possível nesse
tipo de trabalho.
O modo mais fácil de conseguir ajuda era a provocação e a violência, mas existia essa outra
alternativa, diferente ao extremo, por meio da qual eles podiam ir guardando as coisas para dizê-
las [e serem escutados], às cinco horas de todas as quintas-feiras. (1984g[1970]/1987, p. 228)
Esse trabalho institucional foi de extrema importância na trajetória
analítica de Winnicott, porque o fez entender que “existe algo em
psicoterapia que não se descreve em termos de interpretação certa no
momento certo” (1984g[1970]/1987, p. 227). Sem dúvida, é necessário ter
na bagagem conhecimento suficiente acerca de toda a investigação do
inconsciente empreendida por Freud, mas, mesmo nos casos que implicam
o desenvolvimento pleno da neurose de transferência, é preciso que haja, no
paciente, “algo que pode ser descrito como uma certa crença nas pessoas e
na disponibilidade de cuidados e de ajuda” (1984g[1970]/1987, p. 227).
Mesmo num caso adequado para a psicanálise clássica, o principal é o fornecimento das
condições para que esse tipo de trabalho possa ser feito, e para que a cooperação inconsciente do
paciente em apresentar o material possa ser obtida. Em outras palavras, é o desenvolvimento da
confiança [...] que constitui o requisito prévio para a eficácia de uma interpretação clássica e
correta. (1984g[1970]/1987, p. 229)
3. O valor da sobrevivência
O conceito de sobrevivência, como um traço essencial do cuidado
materno e terapêutico, está baseado nas constatações simples e essenciais
feitas por Winnicott em sua experiência clínica, institucional e particular.
Sobreviver é uma atitude silenciosa e quase inaparente; perceber o seu valor
permite reassegurar as mães para aquilo que fazem bem; permite
reassegurar educadores, enfermeiras, pediatras, fisioterapeutas e analistas
para que saibam do bem que fazem, quando o fazem. Aproveitamos hoje do
esforço teórico e clínico a que Winnicott se propôs nos anos 1940: o de
formular os princípios em que as coisas simples e essenciais estão baseadas
e, relacionando-as com a estrutura teórica, podermos fazer essas coisas com
conhecimento de causa, adaptando-as às necessidades especiais de cada
criança e de cada paciente, e enfrentando as situações especiais à medida
que surgem.
Um desses princípios consiste na capacidade de sobreviver. Numa carta
de 1966, a Donald Meltzer, Winnicott faz uma afirmação que serve de
epígrafe para este trabalho, por ser uma espécie de definição para uma das
faces da tarefa de sobrevivência, atribuídaa pais e analistas. Ele diz: “É
verdade que as pessoas passam a vida sustentando o poste em que estão
apoiadas, mas, em certo ponto da fase inicial, tem de existir um poste que se
mantenha por conta própria, do contrário, não há incorporação da
confiança” (1987b/1990, p. 86).
No que compete àquele que cuida, sobreviver significa manter-se por
conta própria, dar continuidade ao que se inicia; é fazer perdurar,
preservando incólumes a qualidade da relação e a do ambiente; é,
sobretudo, não sucumbir às turbulências próprias do estar vivo e do
amadurecimento – inclusive as que incluem destruição – de quem está
sendo cuidado, ou seja, é permanecer consistentemente a mesma pessoa,
com a mesma atitude, sem retaliação; significa não desanimar, não desistir
da tarefa, não se vitimar, não se tornar sentimental; manter, a despeito de
seus próprios estados de ânimo, os cuidados com o bebê, ou com o
paciente, orientados pelas necessidades deles e não por suas próprias
necessidades.
Sobrevivência não quer dizer permissividade, aceitação de tudo. O amor
materno não é indulgente. A capacidade de sobreviver não está baseada em
sentimentalismo, que é nefasto, porque se constitui na negação do ódio e da
destrutividade contidos na natureza humana. A mãe tem inúmeras boas
razões para odiar o seu bebê – e é importante que tenha consciência disso –,
assim como, certamente, David Wills deve ter odiado aqueles moleques que
punham abaixo todo o seu esforço de construção. Mas, uma das coisas mais
notáveis na mãe comum, assinala Winnicott, é, precisamente, “a sua
capacidade de se deixar ferir pelo bebê e de odiá-lo, sem se vingar na
criança” (1949f[1947]/2000, p. 2).
Por que a sobrevivência tem tanto valor? Porque está vinculada à
precariedade da existência. Uma das coisas que o autor aprendeu, em sua
experiência com bebês e com pacientes que necessitaram regredir à
dependência, é que a necessidade fundamental do ser humano consiste em
chegar a existir e em continuar a existir. Não só é necessário chegar ao
começo, de modo a dar-se o engate na vida, como o indivíduo tem de
manter-se vivo pela vida afora: “É um esforço constante chegar ao ponto
inicial e aí se manter” (1965j[1963]/1983, p. 174). Não importa o grau de
maturidade que tenham alcançado, os seres humanos têm de ser, e
continuar sendo; isso significa preservar vivos a criatividade e o sentido da
vida, até que a morte, como derradeira marca da saúde, cobre o seu tributo,
finalizando, de modo natural, no melhor dos casos, o tempo que nos foi
emprestado. A vida, diz Winnicott, é difícil em si mesma, a tarefa de
amadurecer jamais se completa, todas as conquistas são precárias. Pode-se
sempre perder o fio que nos liga ao que temos de mais verdadeiro e “o
sentimento de que a vida é real e rica de significações pode desaparecer”
(1971g/1975, p. 101). Heidegger corrobora: “O ser humano é
essencialmente necessitado de ajuda, por estar sempre em perigo de se
perder, de não conseguir dar conta de si mesmo” (Heidegger, 1987, p. 202).
Por terem conseguido sedimentar os fundamentos da existência, as
pessoas sadias, e mesmo as neuróticas, esqueceram que esse existir foi uma
conquista; por isso, podem ocupar-se das dificuldades relativas à vida e às
ansiedades instintuais, que pertencem às relações interpessoais. Os
psicóticos, contudo, não realizaram essa conquista; caso não encontrem
alguma situação favorável que lhes permita resgatar os fios perdidos de sua
identidade, sua vida está fadada a constituir-se numa busca de si mesmos.
Por tudo isso, o que está contido nas palavras dependência,
confiabilidade e sobrevivência é valioso e necessário. Diz respeito a
necessidades vitais de todo ser humano, que muitas vezes enfraquece na
luta para continuar existindo, preservando a sua natureza essencial. Isso
vale para o bebê, para a mãe, para o paciente, e vale também para o analista.
4. A sobrevivência da mãe
Não me alongarei, aqui, na descrição das inúmeras faces que a
sobrevivência materna toma ao longo do amadurecimento da criança.
Mencionarei, apenas, alguns momentos das etapas iniciais, em que a
sobrevivência da mãe é essencial para que o bebê faça, da tarefa em que
está envolvido, uma conquista.
Já no início da amamentação, a mãe começa sobrevivendo ao impulso
voraz primitivo; isto significa que ela não se assusta nem reage, com
moralismo, porque não vê nesse impulso o que seria uma natureza cruel do
bebê, mas, sim, um sinal da vitalidade deste. Mas ela também sobrevive,
isto é, não se aflige nem se sente pessoalmente atingida e magoada, se ele
recusa seu leite, ou mesmo se, mais tarde, suspeita de sua boa comida,
porque sabe que comer só pode ser uma experiência real quando parte do
não comer, do mesmo modo que a comunicação nasce do silêncio e que a
existência só pode ter início a partir da não existência.
Cabe também à mãe sobreviver – enfrentar sem medo e sem indulgência
– à ira do bebê, que é provocada pelo desmame e pela desadaptação na fase
de dependência relativa. Nas palavras de Edna Vilete, a mãe deve poder
“reconhecer e suportar o ódio da criança, bem como aceitar tornar-se a mãe
ruim, durante certo tempo. Aceitar significa sobreviver como a mãe forte,
que é capaz de cuidar sem ter mais os recursos de onipotência com que era
até então investida pela criança” (Vilete, 2000, p. 158). Se, nesse momento,
a mãe está deprimida, ela não tem como fazer frente à tarefa de desmamar o
bebê; este sente a fragilidade da mãe e perde a oportunidade de explorar a
sua agressividade nascente. Em breve, será o bebê que estará cuidando da
mãe e, num certo sentido, sobrevivendo a ela. Logo no início de sua prática
pediátrica, Winnicott descobriu que a preocupação de grande parte das
mães, que vinham consultá-lo sobre a saúde de suas crianças, devia-se a
elas estarem deprimidas. Certa vez, na clínica ambulatorial, um menino
chegou para Winnicott e disse: “Doutor, minha mãe está se queixando de
uma dor na minha barriga”.
Um pouco mais tarde, por volta dos 10 ou 11 meses, o bebê apresentará
um impulso real de destruição. Nessa fase, ele está fisicamente mais forte e,
sem estar faminto nem raivoso, começa a chutar a mãe ou a morder
efetivamente o seio; ou esmera-se em desgastá-lo, a recusá-lo, ou,
simplesmente, deixa de necessitar dele, observando a reação materna. Esse
impulso destrutivo precisa ser experimentado, pois constitui uma tarefa
crucial do amadurecimento: é esse impulso que leva o lactente a expulsar a
mãe, como objeto subjetivo, para fora de seu controle onipotente, porque,
agora, ele necessitará que ela subsista de forma independente. Caso o objeto
sobreviva, o impulso se transforma na capacidade de destruir objetos na
fantasia inconsciente.
A mãe pode perceber facilmente o que se passa com o bebê, nesse estágio em que ela está
sendo destruída por ele, se tiver conhecimento da situação e souber proteger-se sem se valer de
retaliação e vingança. Em outras palavras, ela tem uma função a cumprir sempre que o bebê
morder, arranhar, puxar seus cabelos e chutar, e esta função é sobreviver. O bebê se encarregará
do resto. Se ela sobreviver, o bebê encontrará um novo significado para a palavra amor, e uma
nova coisa surgirá em sua vida: a fantasia. É como se o bebê pudesse agora dizer à mãe: “Eu a
amo por você ter sobrevivido à minha tentativa de destruí-la. Em meus sonhos e em minha
fantasia, eu a destruo sempre que penso em você, pois a amo”. É isto que torna a mãe objetiva,
que a coloca num mundo que não é parte do bebê, e a torna útil. (1969b[1968]/1988, p. 26)
Algum tempo depois, quando a elaboração da tarefa relativa ao estágio
do concernimento atinge o ponto culminante, por volta dos dois anos e
meio, o bebê começa a assumir a responsabilidade pela sua impulsividade
instintual e necessita, para poder sustentar a culpa por algum tempo, da
ajuda de uma mãe pessoal e viva, que sobreviva e permaneça sustentando a
situação durante o tempo necessário para esse processo. Ao mesmo tempo
em que a mãe-objeto continua sobrevivendo aos episódios guiados pelo
instinto,cabe à mãe-ambiente uma função especial: a de continuar sendo
ela mesma, permanecendo presente para receber o gesto espontâneo dele e
para ser agradada.
Ainda mais tarde, na fase em que a situação triangular se estabelece
como uma realidade, os pais deverão sobreviver ao conflito de lealdades da
criança, fornecendo um lar que pareça indestrutível. Se há suporte familiar
confiável, se alguém sobrevive, mantendo a calma, a criança começa a
acreditar que a passagem do tempo traz o alívio para praticamente tudo, por
mais intolerável que pareça.
Na adolescência, por tratar-se de uma segunda chance da vida para a
conquista ou arremate de conquistas primitivas, a tarefa de sobrevivência
dos pais torna-se especialmente importante: os adolescentes não apenas têm
que lidar com a impulsividade instintual – aguçada pelas modificações
fisiológicas que aparecem na puberdade, e, portanto, com uma nova e
desconhecida corporeidade –, como veem-se assolados por angústias
primitivas relativas à identidade pessoal. Não há remédio, os pais terão de
sobreviver ao isolamento, à busca implacável do que é real, à moralidade
ferrenha contra tudo o que é falso; terão, ainda, no melhor dos casos, de
sobreviver à luta que os adolescentes empreendem contra a segurança. Por
que contra a segurança? Porque, quando a segurança inicial foi garantida
pelo ambiente, e houve incorporação da crença na existência de algo não
apenas bom, mas também durável e no qual se pode confiar, as crianças
começam a apreciar a liberdade. Segue-se daí uma longa batalha contra a
segurança, ou seja, a favor da livre expressão e da ação impulsiva. Os pais
que estão interessados na evolução de seus filhos como pessoas veem esse
desafio com bons olhos. Embora continuem a manter, com firmeza, a
estrutura familiar e a disciplina, permanecendo, por vezes, no
desconfortável papel de guardiões da segurança e da paz, eles sabem, entre
si, que devem esperar por indisciplina, rebeldia e até revolução. “Tendo
encontrado as fechaduras e ferrolhos solidamente trancados, [os jovens]
tratam de destrancá-los e de escancará-los; eles libertam-se
impetuosamente. E, vez após vez, eles se libertam. Ou, então, enroscam-se
na cama, tocam discos de blue jazz e sentem-se inúteis”
(1965vg[1960]/1993, p. 106).
Para que possam sobreviver a tudo isso, os pais deverão lembrar-se que a
rebelião pertence à liberdade, caso tenham criado os filhos de tal modo que
estes só aceitem existir a partir de si próprios. Há pais que poderiam dizer:
semeamos um bebê e colhemos uma bomba. Pois é, dirá Winnicott: “Os
pais não podem fazer muita coisa; o melhor que têm a fazer é sobreviver,
sobreviver intactos, sem mudar de cor, sem negar qualquer princípio
importante” (1969a[1968]/1989, p. 124).
5. A sobrevivência do analista
A relação terapêutica é uma forma especializada de cuidar de uma outra
pessoa que tem a mesma natureza que eu. Seja qual for o problema que
aflige o paciente, estamos ambos no mesmo barco, lançados, sem
fundamento, na incumbência de ser e de continuar sendo. Winnicott diz
que, quando estamos diante de um homem, uma mulher ou uma criança, as
hierarquias caem e descobrimos que estamos reduzidos a dois seres
humanos do mesmo nível. “Não faz diferença se sou médico, enfermeiro,
assistente social, psicanalista ou padre. O que importa é a relação
interpessoal, em seus ricos e complexos matizes humanos”
(1986f[1970]/1989, p. 89). Desse ponto, há apenas um passo para a
pergunta: qual das duas pessoas está doente? “Às vezes”, diz Winnicott, “é
uma questão de convenção” (1986f[1970]/1989, p. 90).
Se, a despeito de nossa própria e humana precariedade, assumimos o
lugar de quem cuida, somos chamados a sobreviver e dar prosseguimento à
tarefa que assumimos. A partir daí, precisamos estar disponíveis para o
cuidado e sermos confiáveis num nível que dificilmente pode ser mantido
em nossa vida privada. Se nos pomos como cuidadores, precisamos deixar
o outro ser como é e como pode ser, seja o que for que isso represente, e
acompanhá-lo enquanto perdure essa possibilidade, por estreita que seja,
sobrevivendo aos estados que lhe são inerentes. Sabemos que, muitas vezes,
para recuperar a saúde, o indivíduo necessita adoecer, por precisar de um
descanso da tarefa de viver ou, talvez, porque estar doente é, num dado
momento, mais real do que uma saúde empostada e falsamente mantida. A
doença, nesses casos, é a única condição satisfatória, por ser a única
verdadeira.
Por tudo isso, a mais básica das faces da sobrevivência, tanto da mãe
como do analista, em função da tarefa que lhe compete, é a de, ele mesmo,
“manter-se vivo e respirando”. No que se refere à mãe, Winnicott diz: “Ela
existe, continua a existir, vive, cheira, respira, seu coração bate. Ela está lá
para ser sentida de todas as maneiras possíveis” (1948b/2000, p. 237). Em
outro texto, ele aconselha as mães:
Se vocês estão com sono, e, principalmente, se estiverem deprimidas, colocam o bebê no
berço, pois sabem que o estado de sonolência em que se encontram não é suficientemente vital
para manter ativa a ideia que o bebê tem de um espaço circundante. (1957m[1950]/1988, p. 17)
Nesse ponto, a vantagem é do analista sobre a mãe: a sessão analítica é
limitada, e isso deve possibilitar ao terapeuta manter-se “vivo e respirando”,
a despeito de seu estado pessoal de ânimo. O mais importante, assinala o
autor,
é o fato de o analista não estar deprimido, de modo a permitir que o paciente encontre a si
mesmo, por não necessitar que ele seja bom ou esteja arrumado ou seja obediente, e por não
precisar nem mesmo ensinar ao paciente seja lá o que for. O paciente pode avançar em seu
próprio ritmo [...] sendo-lhe dado tempo e algo como um lugar seguro. (1958p[1948]/2000, p.
159)
“Manter-se vivo e respirando” significa também sobreviver ao desânimo,
seja o nosso próprio, pessoal, seja aquele relativo à tarefa que temos pela
frente. Talvez tenha sido isso o essencial da terapêutica de David Wills. Ele
sobreviveu, a despeito do permanente sentido de inutilidade do
empreendimento, e manteve o alojamento funcionando, com regularidade,
fornecendo, ainda, a oportunidade previsível de comunicação.
Provavelmente, um dos maiores desafios para a capacidade de sobreviver
do analista seja a situação do paciente que precisa regredir à dependência.
Aqui, deixar ser pode significar deixar não-ser, ou seja, dar sustentação e
sobreviver a longos períodos de tempo em que o indivíduo, exatamente em
função da confiabilidade que oferecemos, permite-se abandonar a
incumbência de existir – entregando-se a estados de amorfia, de
desorganização – e permite-se chegar ao nada que está no centro. Aqui, a
sobrevivência do analista é decisiva: não se pode jamais esquecer o quanto
é arriscado, para o paciente, abandonar a desesperança, que o protegia da
decepção, e expor-se à dependência, e a um novo início de esperança. O
risco “não é somente que o analista possa morrer, como também que ele se
torne subitamente incapaz de acreditar na realidade e intensidade da
ansiedade primitiva do paciente, do medo da desintegração ou de
aniquilamento ou da queda contínua para sempre” (1965vd[1963]/1983, p.
216; os itálicos são meus).
O paciente que regride à dependência acha-se compelido a chegar à
“loucura original”, à agonia impensável, que nele habita sem ter sido
experimentada. Ele precisa reviver o colapso, visto que este não chegou a
ser experimentado no momento original, pelo fato de que o paciente era um
bebê e ainda não estava lá, como um eu, para experimentá-lo. O colapso
não pode pertencer ao passado, não pode ser deixado para trás, a não ser
que seja experimentado, pela primeira vez, no presente. O paciente
encontra-se, assim, num delicado equilíbrio entre a necessidade de
enlouquecer e o medo da loucura. Se, devido à confiabilidade do setting, o
paciente consegue regredir à dependência, pode ocorrer, durante a sessão,
de ele enlouquecer cada vez mais, chegando a desenvolver o que Winnicott
chama de “transferência delirante”:2 através dela, ele acusa o analista,ou
alguém que o represente lá fora, de persegui-lo, de desejar que ele
permaneça dependente, de sobrecarregá-lo, de vigiá-lo etc. O que o paciente
necessita, nesse preciso instante, é de um analista que entenda o que está se
passando, de modo a poder sobreviver à tremenda tensão desses momentos,
acolhendo a necessidade do paciente e permitindo que a experiência deste
seja explorada até o fim. E o que está se passando é o seguinte: para poder
atualizar e experimentar a falha originária, o paciente usa as falhas do
analista de modo a poder vivê-la, agora, com a ajuda e reconhecimento do
analista, como uma falha do ambiente. Se essas condições lhe forem
fornecidas, ele poderá, pela primeira vez, sentir raiva e zangar-se com o
analista (ambiente), ao invés de ser aniquilado.
Num caso desse tipo, se a situação for abordada com uma atitude ativada
por uma urgência psiquiátrica de tirar o paciente do delírio – de curá-lo, por
assim dizer –, a finalidade do colapso perde-se por completo já que, ao
enlouquecer, o paciente está perseguindo uma finalidade positiva e “seu
colapso não é tanto uma doença, senão um primeiro passo em direção à
saúde” (1965vd[1963]/1983, p. 99).
Exige considerável experiência e coragem saber onde se está e perceber o valor que tem,
para o paciente, chegar cada vez mais perto da loucura. Se o analista, por medo, ignorância ou
pelo inconveniente de ter em suas mãos uma pessoa tão enferma, não for capaz de entender o
que está se passando, ele desperdiçará o que está acontecendo e não poderá curar o paciente.
(1989vk[1965]/1994, p. 101)
Para que todo o processo de revivência do trauma possa ocorrer, é
necessário que o analista esteja desprotegido. Isto quer dizer que ele não
deve tentar justificar a falha, evitando a raiva que deverá necessariamente
recair sobre ele. Se o analista se defende, o paciente perde a chance de
zangar-se com a falha originária, justamente no momento em que a raiva
tornou-se possível pela primeira vez. Sobreviver, aqui, significa que ele
banca as consequências de estar no lugar de quem fere, pois o analista fere,
justamente, porque, dada a confiabilidade oferecida, fez renascer a
esperança. É somente pela utilização de seus próprios erros que o analista
poderá fazer a parte mais importante do trabalho, aquela que libertará o
paciente da dependência:
Aprendemos que é previsível que aumente a sensibilidade do paciente e começamos a nos
perguntar se o que nos motiva é a bondade ou a crueldade. Comprovamos que nossas inevitáveis
falhas, específicas e limitadas, frequentemente provocadas pelo paciente, dão a ele a
oportunidade de sentir raiva de nós e de expressá-la. (1968c[1967]/1994, p. 155)
Se a tendência inata ao amadurecimento for libertada dos nós que a
obstaculizavam, o paciente voltará a amadurecer e logo começará a
apresentar as turbulências que são pertinentes ao estar vivo. Temos de saber
reconhecer quando suas possibilidades se alteram, e temos de deixar ser o
paciente, com todas as suas novas necessidades e exigências, às quais
também o analista terá de sobreviver e corresponder. Será, igualmente,
preciso deixar aberto o caminho de retorno a uma regressão que ainda se
faça necessária.
6. O que permite ao analista sobreviver?
Uma das condições que possibilitam à mãe e ao analista realizarem a sua
tarefa de sobrevivência é a crença no processo de amadurecimento. Essa
crença está, certamente, incluída no crescimento para menor. “Para que
algum trabalho possa ser feito, é preciso que haja no analista uma crença na
natureza humana e nos processos de desenvolvimento, e isto é rapidamente
percebido pelo paciente” (1955d[1954]/2000, p. 390). Ao crescer para
menor, o analista começa a ter claro que, tal como disse Winnicott, existe
algo em psicoterapia que não pode ser descrito em termos de interpretação
certa no momento certo. Ele estará atento para reconhecer os casos em que
será necessário deixar de lado o sofisticado saber que presidiu a sua
formação, abdicando da esperteza, do brilhantismo ou da rapidez com que
ele é capaz de apreender, e devolver, para o paciente, os sofisticados nexos
do inconsciente reprimido; limitar-se-á a acompanhá-lo, real e
pessoalmente, ciente de que não há nada a fazer, a não ser facilitar um
processo de amadurecimento que pertence ao paciente.
O que fazemos numa terapia bem-sucedida, diz o autor, é desatar os nós
que paralisavam o processo, de modo que a poderosa tendência inata ao
amadurecimento siga o seu curso. O ambiente “não faz o bebê crescer nem
determina o sentido do crescimento” (1963c/1983, p. 201). Frequentemente
se pensa que fazemos os nossos filhos e lhes ensinamos tudo, mas
exatamente o oposto é verdadeiro, pois “não podemos nem mesmo ensiná-
los a andar, embora a sua tendência inata para andar em certa idade precise
de nós como figuras de apoio” (1987b/1990, p. 162). É de muita ajuda para
os pais, e para nós, analistas, sabermos que não há nada a fazer para que o
bebê se converta em criança, para que a criança cresça, para que a criança
em crescimento seja boa ou asseada, que cresça generosa e que a generosa
criança saiba sempre fazer as coisas certas nos momentos certos: “Ninguém
tem de fazer uma criança ser faminta, irada, feliz, triste, afetuosa, boa ou
travessa: as coisas acontecem, e isso é tudo” (1993b[1969]/1993, p. 125).
No entanto, há muitas coisas que podem ser feitas indiretamente; e uma
delas é que “a mãe, muitas vezes, impede a esquizofrenia por meio de um
bom manejo comum” (1987b/1990, p. 40).
Qualquer trabalho em que estejamos envolvidos como cuidadores pode
ser descrito como “uma espécie de amor, mas, com frequência, tem de
parecer mais um ato de ódio, e a palavra-chave não é tratamento ou cura,
mas sobrevivência. Se vocês sobreviverem, a criança terá oportunidade de
crescer e vir a ser algo parecido com a pessoa que deveria ter sido, se um
infausto colapso ambiental não tivesse acarretado o desastre”
(1984g[1970]/1987, p. 232; os itálicos são meus).
Referências
Heidegger, M. (1987). Zollikonner Seminare (GA 9). Frankfurt/M:
Klostermann.
Vilete, E. P. (2000). Sobre “O homem morto que caminha”. Natureza
humana, 2(1), 149-164.
Winnicott, D. W. (1975). O brincar e a realidade. Rio de Janeiro: Imago.
(Trabalho original publicado em 1971a. Título original: Playing and
Reality)
Winnicott, D. W. (1975). A criatividade e suas origens. In D. Winnicott
(1975/1971a), O brincar e a realidade. Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho
original publicado em 1971g)
Winnicott, D. W. (1983). O ambiente e os processos de maturação. Porto
Alegre: Artes Médicas. (Trabalho original publicado em 1965b. Título
original: The Maturational Processes and the Facilitating Environment)
Winnicott, D. W. (1983). Comunicação e falta de comunicação levando ao
estudo de certos opostos. In D. Winnicott (1983/1965b), O ambiente e os
processos de maturação. Porto Alegre: Artes Médicas. (Trabalho original
publicado em 1965j[1963])
Winnicott, D. W. (1983). Distúrbios psiquiátricos e processos de maturação
infantil. In D. Winnicott (1983/1965b), O ambiente e os processos de
maturação. Porto Alegre: Artes Médicas. (Trabalho original publicado em
1965vd[1963])
Winnicott, D. W. (1983). Os doentes mentais na prática clínica. In D.
Winnicott (1983/1965b), O ambiente e os processos de maturação. Porto
Alegre: Artes Médicas. (Trabalho original publicado em 1963c)
Winnicott, D. W. (1987). Assistência residencial como terapia. In D.
Winnicott (1987/1984a), Privação e delinquência. São Paulo: Martins
Fontes. (Trabalho original publicado em 1984g[1970])
Winnicott, D. W. (1987). Privação e delinquência. São Paulo: Martins
Fontes. (Trabalho original publicado em 1984a. Título original:
Deprivation and Delinquency)
Winnicott, D. W. (1988). A amamentação como forma de comunicação. In
D. Winnicott (1988/1987a), Os bebês e suas mães. São Paulo: Martins
Fontes. (Trabalho original publicado em 1969b[1968])
Winnicott, D. W. (1988). Os bebês e suas mães. São Paulo: Martins Fontes.
(Trabalho original publicado em 1987a. Título original:Babies and Their
Mothers)
Winnicott, D. W. (1988). Saber e aprender. In D. Winnicott (1988/1987a),
Os bebês e suas mães. São Paulo: Martins Fontes. (Trabalho original
publicado em 1957m[1950])
Winnicott, D. W. (1989). A cura. In D. Winnicott (1989/1986b), Tudo
começa em casa. São Paulo: Martins Fontes. (Trabalho original publicado
em 1986f[1970])
Winnicott, D. W. (1989). Morte e assassinato no processo do adolescente. In
D. Winnicott (1989/1986b), Tudo começa em casa. São Paulo: Martins
Fontes. (Trabalho original publicado em 1969a[1968])
Winnicott, D. W. (1989). Tudo começa em casa. São Paulo: Martins Fontes.
(Trabalho original publicado em 1986b. Título original: Home is Where
We Start From)
Winnicott, D. W. (1990). O gesto espontâneo. São Paulo: Martins Fontes.
(Trabalho original publicado em 1987b. Título original: Selected Letters
of D. W. Winnicott)
Winnicott, D. W. (1990). Natureza humana. Rio de Janeiro: Imago.
(Trabalho original publicado em 1988. Título original: Human Nature)
Winnicott, D. W. (1993). Conversando com os pais. São Paulo: Martins
Fontes. (Trabalho original publicado em 1993a. Título original: Talking to
Parents)
Winnicott, D. W. (1993). A construção da confiança. In D. Winnicott
(1993/1993a), Conversando com os pais. São Paulo: Martins Fontes.
(Trabalho original publicado em 1993b[1969])
Winnicott, D. W. (1993). Segurança. In D. Winnicott (1993/1993a),
Conversando com os pais. São Paulo: Martins Fontes. (Trabalho original
publicado em 1965vg[1960])
Winnicott, D. W. (1993). Sentimento de culpa. In D. Winnicott
(1993/1993a), Conversando com os pais. São Paulo: Martins Fontes.
(Trabalho original publicado em 1993d[1961])
Winnicott, D. W. (1994). O conceito de regressão clínica comparado com o
de organização defensiva. In D. Winnicott (1994/1989a), Explorações
psicanalíticas. Porto Alegre: Artes Médicas. (Trabalho original publicado
em 1968c[1967])
Winnicott, D. W. (1994). O conceito de trauma em relação ao
desenvolvimento do indivíduo dentro da família. In D. Winnicott
(1994/1989a), Explorações psicanalíticas. Porto Alegre: Artes Médicas.
(Trabalho original publicado em 1989d[1965])
Winnicott, D. W. (1994). D. W. W. sobre D. W. W. In D. Winnicott
(1994/1989a), Explorações psicanalíticas. Porto Alegre: Artes Médicas.
(Trabalho original publicado em 1989f[1967])
Winnicott, D. W. (1994). Explorações psicanalíticas. Porto Alegre: Artes
Médicas. (Trabalho original publicado em 1989a. Título original:
Psychoanalytic Explorations)
Winnicott, D. W. (1994). A psicologia da loucura: uma contribuição da
psicanálise. In D. Winnicott (1994/1989a), Explorações psicanalíticas.
Porto Alegre: Artes Médicas. (Trabalho original publicado em
1989vk[1965])
Winnicott, D. W. (1997). Pensando sobre crianças. Porto Alegre: Artes
Médicas. (Trabalho original publicado em 1996a. Título original:
Thinking about Children)
Winnicott, D. W. (2000). Aspectos clínicos e metapsicológicos da regressão
dentro do setting psicanalítico. In D. Winnicott (2000/1958a), Textos
selecionados: da pediatria à psicanálise. Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho
original publicado em 1955d[1954])
Winnicott, D. W. (2000). O ódio na contratransferência. In D. Winnicott
(2000/1958a), Textos selecionados: da pediatria à psicanálise. Rio de
Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1949f[1947])
Winnicott, D. W. (2000). Pediatria e psiquiatria. In D. Winnicott
(2000/1958a), Textos selecionados: da pediatria à psicanálise. Rio de
Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1948b)
Winnicott, D. W. (2000). A reparação relativa à defesa organizada da mãe
contra a depressão. In D. Winnicott (2000/1958a), Textos selecionados: da
pediatria à psicanálise. Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original
publicado em 1958p[1948])
Winnicott, D. W. (2000). Textos selecionados: da pediatria à psicanálise.
Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1958a. Título
original: Collected Papers: Through Paediatrics to Psychoanalysis)
1. Este texto, originalmente publicado na revista Natureza humana, vol. 4, n. 2, 2002, foi corrigido e
revisado para a presente edição.
2 . Para maiores esclarecimentos sobre esse conceito, cf. Winnicott, 1989vk[1965]/1994, p. 98;
1989d[1965]/1994, pp. 105 a 107, e 1989f[1967]/ 1994, p. 442.
7 
Incorporação e introjeção em Winnicott1
1. Introdução
Tratarei, neste estudo, dos conceitos de incorporação e de introjeção na
obra de Winnicott, e, em particular, da distinção entre eles formulada pelo
autor.2 Essa distinção é uma das derivações de outra, mais ampla, entre
psique e mente, uma das mais férteis contribuições de seu pensamento ao
estudo da natureza humana e à mudança paradigmática operada por sua
teoria do amadurecimento. Meu propósito não é tanto me embrenhar na
análise desses conceitos, mas abrir o campo concei tual de modo a me
permitir explicitar a importante noção de incorporação na psicanálise
winnicottiana e expor, além do conceito mais comum de introjeção, como
mecanismo mental, a introjeção mágica, que é uma formação defensiva cuja
consideração pode auxiliar na compreensão e no manejo de certas formas
de transferência.
Talvez seja útil retomar brevemente os conceitos básicos – em especial a
distinção entre psique e mente, formulada por Winnicott – sobre os quais a
presente questão ganha relevo. Ao se considerar o indivíduo total, afirma o
autor, deve-se levar em conta não o corpo e a mente, como tradicionalmente
se estabeleceu pela herança cartesiana, mas o soma e a psique. No resumo
do artigo “A mente e sua relação com o psique-soma”, diz Winnicott:
É lógico contrapor soma e psique e, portanto, contrapor o desenvolvimento emocional ao
desenvolvimento corporal de um indivíduo. Não é lógico, porém, opor o mental ao físico, pois
não são da mesma ordem. Os fenômenos mentais são complicações de importância variável na
continuidade de ser do psique-soma, em termos do que adicionam ao si-mesmo individual.
(1954a[1949]/2000, p. 346)
Como se vê, Winnicott resguarda a dualidade psicossomática, pois
distingue o funcionamento psíquico do funcionamento somático,
acentuando ainda o sentido e o valor do hífen que separa as duas palavras
da expressão (psycho-somatic), mas convém ressaltar que psique e soma
são, pela sua própria natureza e pela tendência ao amadurecimento,
intimamente interligados, com tendência a operar conjuntamente numa
existência que é psicossomática.
O soma é o corpo vivo, que é um aspecto do “estar vivo” do indivíduo,
ao qual são inerentes a respiração, a temperatura, a motilidade e,
igualmente, a vitalidade dos tecidos. Sendo físico, certamente, o corpo vivo
não deve ser entendido de uma perspectiva meramente orgânica, fisiológica
ou anatômica, pois se trata do corpo de alguém que respira, tem fome,
busca algo, mama, chora, se assusta, ou seja, um corpo que, além de vivo, é
pessoal. A psique, diz o autor, é tudo o que não é o soma. A mais primitiva
função da psique, que tem início já na vida intrauterina e que perdura pelo
resto da vida a despeito das aquisições que venham a ser feitas, é a
“elaboração imaginativa das partes, sentimentos e funções somáticas, isto é,
do estar fisicamente vivo (phisical aliveness)” (1958a/2000, p. 333). O
funcionamento psíquico inicial é, portanto, relativo ao soma, pois, seja o
que for que esteja sendo experienciado pelo bebê, tudo é experienciado no
corpo ou através dele e está sendo personalizado pela elaboração
imaginativa. Esta, diz o autor, “é uma forma rudimentar do que mais tarde
chamaremos de imaginação” (1993h[1956]/1993, p. 21).3 Não se trata,
ainda, da fantasia do corpo que virá depois, pois esta é eminentemente
representacional e depende de um funcionamento mental que ainda não foi
ativado nesse momento inicial. A elaboração imaginativa é, bem mais, o
que dá sentido ao que seria, de uma perspectiva puramente organicista, uma
mera sensação. Do ponto de vista da experiência humana, contudo, há
sempre um sentido, mesmo que altamente incipiente, tal como estar
protegido ou não, sentir-se ou não seguro, deixar-seir ou ser interrompido,
sentir urgência, sentir-se solto no vazio, ter algo entrando, ter contato ou
não etc.4 Em Winnicott, o corpo é, sobretudo, um campo de experiências
psicossomáticas pessoais e não um campo simbólico. No artigo “O ‘animal
humano’”, Loparic (2000) assinala que o ponto central para o entendimento
do conceito de elaboração imaginativa é essa “dação de sentido”, que é
anterior às operações mentais de representação, verbalização e
simbolização, operações para as quais o bebê é ainda muito imaturo.
Referindo-se ao fato de que uma das mais importantes integrações do ser
humano em desenvolvimento é “um arranjo operacional satisfatório entre a
psique e o soma”, Winnicott acrescenta: “Isso começa anteriormente à
época em que é necessário adicionar os conceitos de intelecto e
verbalização” (1971d[1970]/1994, p. 209).5
Onde é que fica a mente nisso tudo? Diz o autor: “A parceira do soma na
valsa da vida não é a mente” (1969f[1968]/1997, p. 221). Esta, esclarece
Winnicott em Natureza humana, “constitui uma ordem à parte e deve ser
considerada como um modo especializado do funcionamento do psique-
soma” (1988/1990, p. 29). Quando os cuidados ambientais são satisfatórios
e favorecem a integração psicossomática, a mente tem início naturalmente
num momento um pouco mais avançado do amadurecimento inicial, mais
precisamente na passagem da dependência absoluta para a relativa; nesse
caso, ela não constitui uma entidade em si mesma,6 mas é um
desdobramento do psique-soma, um modo específico de este funcionar, um
“ornamento”, dirá Winnicott, da crescente coesão psicossomática.
A psique é, portanto, mais ampla e mais primitiva do que a mente;
enquanto o funcionamento mental é especializado, inicialmente nas funções
intelectuais de catalogação, classificação e cotejamento (cf.
1989s[1965]/1994), expandindo-se, após o alcance da identidade unitária,
aos mecanismos mentais de projeção e introjeção, a psique independe de
início da perceptividade e é fundamentalmente imaginativa e criativa. Se,
em virtude da insegurança ambiental, o funcionamento mental é
precocemente ativado, isso provoca um estado de alerta no bebê, que o
impede de repousar, com a ativação de um sistema defensivo caracterizado
por uma hipermentalização. Esse funcionamento mental prematuro e
exacerbado é negativo, diz Winnicott, “pois deriva de um estágio
demasiadamente precoce na história do indivíduo, sendo, portanto,
patologicamente desvinculado do corpo e de suas funções, bem como dos
sentimentos, impulsos e sensações do ego total” (1958f[1949]/2000, p.
267). Desse estado de coisas decorre, em geral, uma incapacidade para a
experiência, pois esta, para ocorrer como tal, requer a participação conjunta
de psique e soma. São esses os casos em que pode se instalar no indivíduo
um recurso onipresente a representações, que proliferam e substituem a vida
e a experiência.
É sobre o fundo dessas concepções que volto, agora, ao assunto central
deste estudo. Ressalto, inicialmente, que o tema relativo à incorporação e à
introjeção é pouco visado, em geral, e não chegou a ser totalmente
desenvolvido por Winnicott, ao menos não explicitamente.7 Descobri,
contudo, em especial no que se refere à incorporação, que este conceito é
quase onipresente na obra do autor, pois, trata, em nível molecular, da
maneira pela qual, na saúde, o indivíduo inicialmente dependente assimila –
através da elaboração imaginativa das partes, sentimentos e funções do
corpo vivo – os vários aspectos do si-mesmo psicossomático ou, ainda, as
qualidades incipientes de organização psicossomática, que surgem das
experiências de facilitação ambiental, resultando em crescente organização
psicossomática, o que o torna cada vez mais autônomo e capaz de cuidar de
si mesmo. Em outras palavras, a incorporação refere-se às maneiras pelas
quais, devido à experiência repetida dos cuidados ambientais, o indivíduo
se apropria de modos de se cuidar, de alcançar e usar objetos, de relacionar-
se com a realidade externa e buscar nela o que necessita, a ponto de poder,
com o tempo, dispensar o ambiente facilitador real.8
Enquanto, para a psicanálise tradicional, que é uma teoria da mente, o
intercâmbio entre o sujeito e a realidade externa é pensado, desde o início,
em termos da percepção, que é produzida pelo sistema perceptivo do
aparelho psíquico e dos mecanismos mentais de introjeção e projeção –
sendo o psiquismo concebido como uma dinâmica de representações –, para
Winnicott, a ideia de mecanismos mentais operando desde o início da vida é
incompatível com sua formulação de todo um período do amadurecimento
inicial dos seres humanos “que precede a objetividade e a perceptividade”
(1969a/1975, p. 203) – que é pré-representacional, pré-verbal e pré-
simbólico –, e mais, é incompatível com o conceito de criatividade
primária.9
Como é, então, que o pequeno indivíduo humano se apropria do que lhe
é fornecido pelo ambiente e do que, propriamente, ele se apropria? É com
relação a toda essa etapa primitiva, anterior à separação entre o eu e o não-
eu e ao advento pleno do funcionamento mental, que Winnicott introduz a
ideia de incorporação (num sentido totalmente novo com relação ao que
havia sido usado na literatura tradicional, e naturalmente, relativo às suas
novas concepções); esse processo, que tem início já ao tempo da
dependência absoluta, não exige nenhum trabalho mental e prossegue ao
longo da vida, enquanto há saúde e o corpo permanece sendo a morada da
psique. A introjeção, por sua vez (assim como a sua polaridade, a projeção),
sendo um mecanismo mental, só começa a operar num momento posterior,
quando a diferença entre o que é do eu e o que é do não-eu ficar mais
estabelecida. O interesse dessa distinção é assinalado por Winnicott, por
exemplo, num trecho em que discorre sobre o amadurecer da criança:
Vemos o interessante processo de absorção, na criança, dos elementos do cuidado, aqueles
que poderiam ser chamados de elementos do “ego auxiliar”. A relação entre essa absorção do
meio [aqui existe incorporação] e o processo de introjeção com o qual já estamos familiarizados
gera grande interesse. (1965h[1959-1964]/1988, p. 116)
A distinção entre incorporação e introjeção, e o que isso pode significar,
em termos de amadurecimento, não estava clara no pensamento do autor
desde o início de sua obra e foi sendo elaborada aos poucos, o que quer
dizer que, tendo eu utilizado textos de diferentes épocas, foi preciso, muitas
vezes, sobretudo com relação aos textos mais iniciais, entender o que
Winnicott dizia à luz de textos posteriores. Além disso, também no que se
refere à incorporação e à introjeção, dá-se o mesmo fenômeno que em
outros casos, a saber, ele usa termos já consagrados para expressar ideias
radicalmente novas, o que naturalmente dificulta o entendimento da
novidade conceitual que ele propõe. Tentei, então, explicitar numa nova
linguagem – e, naturalmente, à luz da totalidade de seu pensamento –, o que
está contido na distinção entre incorporação e introjeção.
Devo ainda mencionar que o exame desses conceitos leva a um campo
conceitual relativo ao dentro e fora – em particular, ao mundo interno e
objeto interno, e ao caráter representacional que eles encerram –, ao qual
seria necessário dar maior precisão, levando em conta a obra completa, mas
que não poderá ser considerado no âmbito deste estudo. Pode-se apenas
adiantar que, tendo aderido a essa terminologia consagradamente kleiniana
nos trabalhos mais antigos, Winnicott tentou, em especial nos artigos em
que essa questão se torna aguda, corrigir essa imprecisão falando de
realidade psíquica pessoal, ao invés de realidade interna.10 Um exemplo
encontra-se em “O conceito de indivíduo saudável”, quando, ao enunciar as
três vidas que as pessoas saudáveis experienciam, Winnicott diz que a
segunda delas é “a vida da realidade psíquica pessoal (às vezes chamada de
interna)” (1971f[1967]/1989, p. 28). Para esclarecer um pouco mais o ponto
em questão, menciono ainda um trecho da carta de Winnicott a M. Klein, de1957, em que, comentando um trabalho de Hanna Segal, ele escreve (o que
é, certamente, um recado para a própria Klein):
Aliás, acho que a Dra. Segal, de momento, não foi capaz de dar uma boa explicação para o
uso que faz da palavra interno, pois se você devora a mãe, você não tem a mãe dentro de si. Se
houvesse tido mais tempo, provavelmente ela teria feito uma distinção entre incorporação e
introjeção mágica, que era o que ela tinha em mente, acho eu. (1987b/1990, p. 100; os itálicos
são meus)
O tema leva, portanto, naturalmente, a um debate com a psicanálise
tradicional, e em especial com Melanie Klein, e isso será explicitado em
alguns pontos do texto. Leva, ainda – e que é, afinal, o que mais interessa a
este estudo –, a um exame de aspectos da relação terapêutica pelos quais ela
é capaz, ou não, de promover crescimento genuíno.
2. Rápida retrospectiva da literatura tradicional acerca dos
conceitos
Os termos incorporação, introjeção (e projeção), assim como o de
interiorização e o de internalização, encontram-se em toda a literatura
psicanalítica tradicional – Freud, Klein, Ferenczi. Embora Freud, ao
considerar os termos, explicite a diferença entre incorporação e introjeção,
ele, assim como os autores cujas obras são desenvolvimentos da psicanálise
freudiana, usam os dois termos, no mais das vezes, como sinônimos. Ele
também não discrimina entre introjeção e interiorização. O conceito de
identificação, que se aproxima do de introjeção, ganhou outros significados
e teria que ser considerado à parte, o que não será feito no presente estudo.
2.1 Incorporação, introjeção e interiorização em Freud
Freud usou o conceito de incorporação, em 1915, para designar o
processo pelo qual o sujeito, de modo mais ou menos fantasmático, introduz
e conserva um objeto no interior de seu corpo. Incorporar, para Freud, é um
alvo pulsional, em especial no que se refere à atividade bucal e à ingestão
de alimentos; não se limita, contudo, à oralidade: há incorporação pela pele,
pela respiração, pela visão e pela audição; há incorporação anal uma vez
que a cavidade retal é equivalente à boca, e também incorporação genital,
pela retenção do pênis, por exemplo. Seja como for, é o interior do corpo
que é visado, com três finalidades: 1) dar-se prazer pela introdução de um
objeto em si; 2) destruir o objeto; 3) assimilar as qualidades do objeto. É
por esta última finalidade que a incorporação se torna a matriz, o protótipo
corporal, da introjeção e da identificação.11
Foi também em 1915 que Freud adotou o conceito de introjeção, após
este ter sido introduzido, na psicanálise, por Ferenczi, no texto “Introjeção e
transferência”, de 1909. Ferenczi usa o termo, basicamente, para fazer
contraponto ao conceito de projeção, referindo-se, com ele, ao modo pelo
qual o indivíduo alarga o círculo de seus interesses para fazer aí caberem os
afetos livremente flutuantes. Ferenczi esclarece que,
enquanto o paranoico projeta para o exterior as emoções que se tornaram penosas, o neurótico
procura incluir em sua esfera de interesses a maior parte possível do mundo exterior, fazendo
dele objeto de fantasmas conscientes e inconscientes. [...] O neurótico está perpetuamente em
busca de objetos de identificação, de transferência; isto significa que ele atrai tudo o que pode
em sua esfera de interesses, ele os “introjeta”. (Ferenczi, 1909/1968, p. 100)
No decorrer do ensaio de Ferenczi, a acepção do termo tornou-se tão
vaga que acabou por confundir-se com o de projeção.
Ao assimilar o conceito, Freud o contrapõe nitidamente ao de projeção.
Isso fica explicitado mais claramente em “Pulsões e seus destinos” (1915)
quando, ao considerar a gênese da oposição sujeito (ego)/objeto (mundo
exterior), Freud mostra que ela é correlativa à oposição prazer/desprazer.
Diz Freud, nesse texto, que o “ego-prazer-purificado” constitui-se por uma
introjeção de tudo o que é fonte de prazer e por uma projeção para fora de
tudo o que é ocasião de desprazer. Em “A negação” (1925), assinala que,
expressa na linguagem das pulsões mais antigas, orais, a oposição
introjeção/projeção significa: quero comer aquilo ou quero cuspir aquilo.
Traduzida numa expressão mais geral: “quero introduzir isto em mim ou
excluir isto de mim” (Freud, 1925/1989, p. 254). Ou seja, “o ego-originário
quer introjetar em si tudo o que é bom e rejeitar tudo o que é mau” (Freud,
1925/1989, p. 254).
Em seu Vocabulaire de Psychanalyse, Laplanche e Pontalis afirmam que,
na psicanálise, sendo o limite corporal o protótipo da separação entre
interior e exterior, o processo de incorporação refere-se explicitamente a
esse invólucro corporal. Já o termo “introjeção” é mais lato: não é apenas o
interior do corpo que está em causa, mas também o interior do aparelho
psíquico, de uma instância etc. É assim que se fala de introjeção no ego, no
ideal de ego etc. (cf. Laplanche & Pontalis, 1967, p. 209).
Quanto ao termo interiorização, que é usado com frequência por Freud,
pode ter duas acepções: 1) sinônimo de introjeção e 2) ter um uso mais
específico, a saber, a interiorização de um conflito, de uma interdição. É,
sobretudo, neste último sentido que ele é usado por Freud: a relação de
autoridade entre pai e filho é interiorizada – ou introjetada –, por exemplo,
na relação do superego com o ego. Laplanche e Pontalis elucidam: “Quando
do declínio do Édipo, podemos dizer que o indivíduo introjeta a imago
paterna e interioriza o conflito de autoridade com o pai” (Laplanche &
Pontalis, 1967, p. 206).
Adiantando um pouco a perspectiva de Winnicott, cito aqui uma
passagem em que ele usa o conceito de introjeção, à sua maneira, para
apresentar como entende a formulação freudiana relativa à formação do
superego. Diz ele:
Na simplificação do complexo de Édipo, o menino introjetava o pai, respeitado e temido, e,
por isso, levava com ele forças de controle baseadas no que a criança percebia e sentia em seu
pai. Esta figura paterna introjetada era altamente subjetiva e colorida pela experiência da criança
com figuras paternas outras além do pai verdadeiro e também por padrões culturais da família.
(A palavra introjeção simplesmente significava uma aceitação mental e emocional, e este termo
evitava as implicações mais funcionais da palavra incorporação). (1958o[1956]/1988, p. 22)12
Aqui já se nota que 1) Winnicott diferencia claramente entre
incorporação e introjeção e 2) a introjeção é um mecanismo mental que
opera num momento em que já há percepção do objeto (no caso, o pai) e de
características do objeto.
2.2 Incorporação, introjeção e interiorização em Melanie
Klein
Pelo fato de entender que as relações iniciais já se dão com objetos
externos, Melanie Klein postula a ideia de que a introjeção e seu
contraponto, a projeção, estão presentes desde o início da vida e é
exatamente esse um dos principais pontos de divergência de Winnicott com
a psicanalista húngara. Num texto escrito em 1962, sobre a contribuição de
Klein, ele diz: “Ela aprofundou-se mais e mais nos mecanismos mentais de
seus pacientes e aplicou então seus conceitos ao bebê em crescimento.
Acho que foi aí que cometeu alguns enganos, porque profundo, em
psicologia, nem sempre quer dizer primitivo” (Winnicott,
1965va[1962]/1988, p. 161).
No pensamento de Klein, a noção de incorporação foi açambarcada pela
de introjeção. Se a incorporação, em Freud, ainda apontava para o interior
de um corpo substancial, Klein eliminou o corpo concreto e o considera tão
somente em termos de mecanismos mentais e de fantasia. No Dicionário do
pensamento kleiniano, consta que a incorporação, na obra da autora, refere-
se
à fantasia da absorção corporal de um objeto, que é subsequentemente sentido como fisicamente
presente dentro do corpo, ocupando espaço e sendo ativo lá. É a experiência que o sujeito tem de
um mecanismo de defesa que é objetivamente descrito como introjeção. (Hinshelwood, 1992, p.
357)
A noção de introjeção foi introduzida pela psicanalista por volta de 1926
e, ao fazê-lo, ela pôs ênfase não tanto no mecanismo, mas sim no resultado,

Mais conteúdos dessa disciplina