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Elsa Oliveira Dias Sobre a confiabilidade e outros estudos © by DWW editorial para a edição em língua portuguesa 1ª edição digital: 2011 ISBN: 978-85-62487-09-5 (on line) Diretores: Elsa Oliveira Dias (elsadias@uol.com.br) Zeljko Loparic (loparicz@uol.com.br) Conselho editorial: Ariadne Moraes (ariadne.moraes@uol.com.br) Caroline Vasconcelos Ribeiro (carolinevasconcelos@hotmail.com) Conceição A. Serralha (serralhac@hotmail.com) Eder Soares Santos (edersan@hotmail.com) Oswaldo Giacoia Junior (ogiacoia@hotmail.com) Róbson Ramos dos Reis (robsonramosdosreis@gmail.com) Roseana Moraes Garcia (roseanagarcia@uol.com.br) Vera Laurentiis (veralaurentiis@terra.com.br) Coordenação editorial: Meire Cristina Gomes (meire@sbpw.com.br) Diagramação digital: Microart Com. Editoração Eletrônica Ltda (http://www.microart.com.br). Capa: Sandra Rosa Revisão final: Meire Cristina Gomes (meire@sbpw.com.br) Texto em conformidade com o novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa Ficha catalográfica elaborada pela Bibliotecária Eliana Marciela Marquetis – CRB-8 nº 3573 Dias, Elsa Oliveira. Sobre a confiabilidade e outros estudos [recurso eletrônico] / Elsa Oliveira Dias. – São Paulo : DWW Editorial, 2011. v.: digital. ISBN 978-85-62487-09-5 (on line) 1. Winnicott, D. W. (Donald Woods), 1896-1971. 2. Psicanálise. 3. Psicologia clínica. I. Título. 21. CDD 150.195 157.9 Índice para catálogo sistemático Psicanálise 150.195 Psicologia clínica 157.9 mailto:elsadias@uol.com.br mailto:loparicz@uol.com.br mailto:ariadne.moraes@uol.com.br mailto:carolinevasconcelos@hotmail.com mailto:serralhac@hotmail.com mailto:edersan@hotmail.com mailto:ogiacoia@hotmail.com mailto:robsonramosdosreis@gmail.com mailto:roseanagarcia@uol.com.br mailto:veralaurentiis@terra.com.br mailto:meire@sbpw.com.br http://www.microart.com.br/ mailto:meire@sbpw.com.br DWW editorial Rua João Ramalho, 146 – Perdizes CEP 05008-000 – São Paulo – SP Tel.: (11) 3676-0635 E-mail: dwweditorial@sociedadewinnicott.com.br http://www.dwweditorial.com.br mailto:dwweditorial@sociedadewinnicott.com.br http://www.dwweditorial.com.br/ Para Zeljko Sumário Prefácio 1. Sobre a confiabilidade: decorrências para a prática clínica 1. Introdução 2. A clínica winnicottiana e a teoria do amadurecimento 3. As necessidades da dependência absoluta 4. A constituição do si-mesmo e a confiabilidade ambiental 5. Ilustração clínica 6. Algumas implicações clínicas da questão da confiabilidade Referências 2. O “brinquedo divino”: a ilusão em Winnicott 1. Introdução 2. Os sentidos de realidade e o sentimento de real (feeling of real) 3. A área de ilusão de onipotência 4. A cisão essencial Referências 3. A regressão à dependência e o uso terapêutico da falha do analista 1. Introdução 2. O estado de não-integração e a psicose 3. Duas tarefas analíticas: suporte para a não-integração e aproveitamento da falha do analista na regressão à dependência Referências 4. Winnicott: agressividade e teoria do amadurecimento 1. Introdução 2. Pressupostos básicos da concepção winnicottiana sobre a agressividade 3. Raízes da agressividade 3.1 A agressividade no período de dependência absoluta 3.1.1 A motilidade 3.1.2 A raiz instintual: o bebê incompadecido 3.1.3 A reação às invasões ambientais 4. Desenvolvimento da agressividade na fase de desadaptação 4.1 A destrutividade no anger: a criação da externalidade e o uso do objeto 5. A conquista da capacidade para o concernimento Referências 5. Winnicott em Nova Iorque: um exemplo da incomunicabilidade entre paradigmas 1. Aspectos gerais do debate 2. O teor central do artigo 3. Implicações para a clínica 4. O debate Referências 6. Da sobrevivência do analista 1. Uma questão de base 2. A tarefa terapêutica 3. O valor da sobrevivência 4. A sobrevivência da mãe 5. A sobrevivência do analista 6. O que permite ao analista sobreviver? Referências 7. Incorporação e introjeção em Winnicott 1. Introdução 2. Rápida retrospectiva da literatura tradicional acerca dos conceitos 2.1 Incorporação, introjeção e interiorização em Freud 2.2 Incorporação, introjeção e interiorização em Melanie Klein 3. A incorporação (ou internalização) e introjeção em Winnicott 3.1 A incorporação 3.2 A introjeção 3.3 A incorporação, a introjeção e a introjeção mágica Referências 8. A interpretação na clínica winnicottiana 1. Introdução 2. Pressupostos teóricos para o uso ou não uso da interpretação na clínica winnicottiana do amadurecimento 3. A interpretação na clínica winnicottiana do amadurecimento 3.1 A interpretação nos casos de neurose e depressão reativa 3.2 Alguns aspectos gerais a serem observados 3.3 A interpretação nos casos de psicose 4. Redescrição da tarefa interpretativa 5. Alguns cuidados e/ou cautelas com a tarefa interpretativa 6. Considerações finais Referências 9. Ferenczi: o affaire, o caso clínico e o analista precursor de Winnicott 1. Introdução 2. O affaire Ferenczi 3. Convergências entre Ferenczi e Winnicott: críticas à psicanálise tradicional 4. Pontos não coincidentes: algumas inovações teóricas e técnicas de Ferenczi 4.1 A confusão de línguas: o trauma e a identificação com o agressor 4.2 A análise mútua 5. O caso Ferenczi 6. Conclusões Referências 10. Unabomber: a violência do impotente 1. Introdução 2. O Manifesto “Freedom Club: o futuro da sociedade tecnológica” 3. A recepção ao Manifesto 4. A edição francesa 5. O que vale o Manifesto de um terrorista ou o que a loucura tem a nos dizer? 6. Quem é Theodore Kaczynski? 7. Minha hipótese diagnóstica 8. Explicitação das categorias diagnósticas envolvidas Referências Prefácio O atual lançamento de Elsa Oliveira Dias reúne dez artigos que possuem em comum um profundo estudo da teoria e da prática psicanalítica de D. W. Winnicott. Abrangem um período de 18 anos de pesquisa dedicados à busca de uma apreensão da teoria winnicottiana em toda a sua complexidade, bem como de suas aplicações clínicas. Nos trabalhos aqui reunidos, fica evidenciada a procura incansável da autora pela compreensão, aprofundamento e descrição minuciosa dos conceitos, além da organização dos resultados obtidos na realização dessa tarefa. Quando nos interessamos por estudar Winnicott, deparamo-nos com várias dificuldades; uma delas é o uso que o autor faz da terminologia da psicanálise clássica com um significado todo particular. Além disso, embora seja absolutamente coerente com suas formulações teóricas, Winnicott não apresenta as suas ideias de modo linear. É só pela análise de toda sua obra, uma das mais extensas da história da psicanálise, que podemos estabelecer as conexões necessárias e preencher as eventuais lacunas do conjunto do seu pensamento. Elsa faz precisamente isso: ela caminha por todos os textos de Winnicott em busca da riqueza que neles se encontra e, por vezes, se esconde. Seus achados impressionam pela consistência e clareza com as quais, reunindo fragmentos esparsos por toda a obra, expõe conceitos fundamentais do pensamento winnicottiano e reconstitui as partes mais importantes da mesma. A fluência da autora, seu humor vivo, sua concisão e precisão nas descrições teóricas e clínicas emprestam vivacidade adicional aos conceitos expostos, tornando a leitura agradável, e a compreensão teórica mais disponível. A riqueza e a meticulosidade dos artigos não nos permitem salientar algum deles em especial. Todos fazem parte de uma sinfonia, cada qual trazendo uma contribuição específica e enriquecedora, seja no sentido de propiciar um aprofundamento na compreensão da teoria do amadurecimento pessoal, seja no esforço de ilustrar, por meio de casos clínicos, diferentes elementos dessa teoria, entre eles o de natureza humana conforme concebido por Winnicott. O primeiro artigo, “Sobre a confiabilidade: decorrências para a prática clínica”, trata do modo como a confiabilidade ambiental (mãe suficientemente boa) participa da constituição da identidade e dos sentidos de realidade e do mundo. A partir dessa base teórica, o trabalho tece esclarecimentos sobre os processos deadoecimento – principalmente relacionados aos distúrbios psicóticos – e os processos terapêuticos adequados, uma vez que, como mostrou Winnicott, a técnica clássica é inaplicável no tratamento da esquizofrenia e quadros afins. No ambiente terapêutico, é a confiabilidade do analista e da situação analítica o que vai permitir a regressão à dependência. O artigo desenvolve de maneira clara e minuciosa as etapas que o paciente vive com o analista até que a confiabilidade permita a ele recorrer à regressão para retomada do processo de amadurecimento, interrompido pelo colapso causado pelo ambiente original. Com uma ilustração clínica, a autora mostra a aplicabilidade das teorias que estão expostas na parte teórica. É um enriquecimento imprescindível ao texto. No artigo seguinte, “O ‘brinquedo divino’: a ilusão em Winnicott”, é estudada a “cisão essencial” comum a todo ser humano como a área de “solidão essencial” e também as cisões patológicas e suas origens, evoluções e exacerbações: as patologias que têm a “tarefa de evitar o imprevisível”. A autora indica ramificações da saúde e da doença nesse setor, sem deixar de esclarecer a importância da experiência artística. Elsa aproveita esse tema para mostrar de modo bem esclarecedor qual a função da análise e do analista com pacientes fronteiriços e esquizoides, a qual difere muito da função de cuidar de neuróticos. Nesse artigo, podemos colher fundamentos importantíssimos para nosso trabalho cotidiano. A tarefa analítica também é discutida em “A regressão à dependência e o uso terapêutico da falha do analista”. Foi este o primeiro artigo que a autora escreveu e apresentou sobre Winnicott, em 1993, no II Encontro Latino- Americano sobre o pensamento de D. W. Winnicott, cujo tema geral era os aspectos técnicos da obra winnicottiana. O trabalho, extremamente agradável de ser lido, além de ter conteúdo de peso, versa sobre dois casos clínicos de Winnicott: o paciente cuja análise é descrita no livro Holding e interpretação e o caso “A busca do self”, relatado no quarto capítulo de O brincar e a realidade. Encontra-se aqui uma exposição precisa, sintética e muito viva das vicissitudes do bebê rumo à integração, com o bebê dependendo do ambiente facilitador “que reconhece, aceita, reúne e dá suporte a esse estado de não-integração, sem apressar-lhe o andamento”. A autora apresenta o problema que se coloca para o analista diante de pacientes que não contaram com esse ambiente facilitador e que, portanto, necessitam, na análise, regredir à dependência, o que é um sinal de esperança. Fica muito bem esclarecido pelo artigo que a necessidade desses pacientes não é a de recordar, mas viver certas experiências pela primeira vez. No artigo “Winnicott: agressividade e teoria do amadurecimento”, a autora estuda as diferenças fundamentais das conceituações de Winnicott em relação às de Freud e Klein, no que diz respeito ao conceito de agressividade. Ela salienta as contribuições de Winnicott nas quais “a agressividade e a destrutividade humanas estão intrinsecamente relacionadas à questão da constituição do sentido da realidade externa”. O artigo, além de profundo e extenso, é sintético, no sentido de nos facilitar a união de importantes ideias de Winnicott. São desenvolvidas ideias essenciais, ligando motilidade, agressão, invasões e agressividade, verdadeiro e falso self, criação da realidade, culpa, responsabilidade e perseguição, o incompadecimento e outros aspectos característicos do processo de amadurecimento. Os temas vão sendo expostos e pesquisados meticulosamente: uso do objeto, capacidade de se preocupar, o amor incompadecido do bebê, responsabilidade pela destrutividade, tendências à reparação, sustentação da culpa. A possibilidade de poder contar com a presença do pai nesses momentos críticos é também ricamente discutida em suas variantes. No quinto artigo, “Winnicott em Nova Iorque: um exemplo da incomunicabilidade entre paradigmas”, a autora apresenta um comentário crítico sobre o debate ocorrido na Sociedade Psicanalítica de Nova Iorque, por ocasião da apresentação do trabalho de Winnicott “O uso de um objeto”. Para isso, Elsa se utiliza da tese de Thomas Kuhn sobre a “dificuldade de interlocução entre adeptos de paradigmas diferentes da mesma disciplina”. De modo muito didático, ela expõe a contribuição original de Winnicott e os pontos em que suas inovações colidiram com o establishment, bem como as confusões conceituais que os comentadores fizeram sobre o trabalho apresentado. Ela nos fornece uma visão das possíveis dificuldades que as inovações de Winnicott causaram nos comentadores e tece importantes considerações a respeito das incompreensões e oposições sofridas por Winnicott em Nova Iorque. O sexto artigo: “Da sobrevivência do analista” é extremamente rico e tem algumas observações lapidares da autora, que nos apresenta o modo de compreender o significado de sobrevivência em Winnicott, principalmente relacionada às incertezas de quem cuida e, particularmente, da mãe, que tem que se adaptar às “necessidades variáveis de seu filho”. As falhas são inevitáveis e precisam ser reconhecidas. Não somente nos coloca diante da grande diversidade e das dificuldades próprias a cada situação em que a sobrevivência do analista é imprescindível, mas também nos ajuda, ao mostrar as principais diretrizes para um trabalho clínico bem-sucedido. No artigo “Incorporação e introjeção em Winnicott”, a autora explicita, à luz da teoria do amadurecimento e da distinção entre psique-soma e mente, o significado desses conceitos e sua utilidade na compreensão das patologias primitivas, deixando claras as diferenças com a teoria psicanalítica tradicional. A autora passa em revista os conceitos em Freud, Klein e Ferenczi, comparando-os meticulosamente em seus significados particulares e chama a atenção para o fato de que a diferença entre os dois termos não estava clara nos textos iniciais de Winnicott, pois “ele usava termos mais consagrados para expressar ideias radicalmente novas”. O trabalho é uma investigação profunda, completa e coerente das funções de elaboração imaginativa e do surgimento da mente como um desdobramento do psique-soma. Em vários de seus artigos, a autora deixa claro que “a interpretação não é mais, em Winnicott, o método por excelência que define a prática analítica”. Particularmente no trabalho “A interpretação na clínica winnicottiana”, ela se dedica à tarefa de elucidar o conceito; tarefa essa que a própria autora reconhece difícil, uma vez que Winnicott não usou o termo interpretação com as qualificações da interpretação padrão. Esse tema é ricamente discutido e a autora nos mostra a importância do diagnóstico, principalmente quanto ao uso de interpretações ou de manejo adequados. As variações clínicas são trazidas e elucidadas. Tudo enriquecido, como sempre, com exemplos clínicos muito esclarecedores. Elsa parte de uma função genérica da interpretação, qualificando-a como uma “comunicação” em nível verbal com “outro ser humano”, que está baseada em outra “silenciosa e profunda”, a da “confiabilidade”. Ela se baseia, além disso, na convicção do analista segundo a qual nem tudo é dizível; e de que existe em cada ser humano uma solidão essencial, que é sagrada e deve ser preservada. Nesse importante trabalho, a autora mostra sua capacidade de esclarecer assuntos tão importantes, além de sua generosidade com o leitor, fazendo tudo isso com dedicação e profundidade, procurando reunir os fragmentos desse tema que se espalham por toda a obra de Winnicott. Em “Ferenczi: o affaire, o caso clínico e o analista precursor de Winnicott”, a autora nos traz suas pesquisas em relação aos dois autores que ousaram enfrentar o establishment da psicanálise, mostrando que, embora ambos tenham coincidido em muitos pontos, na crítica à psicanálise tradicional, eles, entretanto, encaminharam suas teorias e técnicas em direções diferentes. O artigo é um exercício minucioso que enriquece o pensamento psicanalítico. Na história da psicanálise, Ferenczi procurouinovar devido à sua inclinação a cuidar de casos que não seriam, naquela época, susceptíveis de serem analisados; o mesmo sucedeu com Winnicott. O trabalho de Elsa vai além dessas semelhanças; ela aprofunda o tema, tratando também dos pontos não coincidentes entre os dois autores, principalmente em relação aos modelos teóricos de ambos, bem como ao encaminhamento técnico decorrente. Nas conclusões, a autora mostra as semelhanças e diferenças entre Ferenczi e Winnicott, tornando bem evidente que a “revolução winnicottiana”, com sua teoria do amadurecimento, foi muito mais enriquecedora e efetiva do que a de seu predecessor, abrindo possibilidades de trabalho até então inexistentes. Finalmente, em seu último artigo, a autora utiliza a psicopatologia winnicottiana para tentar entender melhor Ted Kaczynski, o Unabomber, um homem que praticou atos terroristas durante 18 anos até sua captura. A história do caso, muito ampla e interessante, é apresentada no artigo “Unabomber: a violência do impotente”. Os dados todos são minuciosamente avaliados pela autora, em termos de sua história de vida, desde a sua infância primitiva, principalmente no que se refere ao episódio de sua hospitalização aos nove meses de idade e às condições extremamente desfavoráveis em que foi afastado de sua mãe. A partir desses dados, a autora se propõe a fazer um exercício diagnóstico, usando a teoria do amadurecimento de Winnicott, de modo a entender o que levou Ted a se transformar no Unabomber. Um exemplo é a conexão que a autora estabelece entre a revolta de Unabomber contra a tecnologia alienante e a violência que ele sofreu, ainda bebê, relacionada a ter sido “impedido de ser” e à falta de proteção para poder “viver como um si-mesmo” e “não se sentir aprisionado e sob ameaça de aniquilamento”. O texto é profundamente enriquecido pelas ligações que a autora vai acrescentando através das alternativas muito prováveis que permitem o exercício do pensar em termos winnicottianos, fazendo, do “caso Unabomber”, um mergulho em fatos do amadurecimento que podem influir em toda uma vida. Como podemos ver, o atual lançamento da autora abarca, nesses dez artigos, uma ampla gama temática e conceitual, de fundamental importância para o conhecimento e exercício prático das formulações winnicottianas. Como pesquisadora, a autora já nos tinha dado demonstração de sua disponibilidade, clareza e generosidade em seu livro anterior A teoria do amadurecimento de D. W. Winnicott. Este novo livro de Elsa é um guia indispensável para todos os que estudam a teoria e a prática winnicottianas. Orestes Forlenza Neto 1 Sobre a confiabilidade: decorrências para a prática clínica1 1. Introdução Confiabilidade é uma dessas palavras que falam por si. Na compreensão comum, dizemos de uma pessoa que ela é confiável quando sabemos que é possível contar com ela; quando acreditamos que fará o que prometeu ou que não fará mau uso do que lhe dissemos num momento de intimidade; ou de quem, capaz de reconhecer que alguém se encontra indefeso, não abusa nem se aproveita de um estado de fragilidade, distração ou incapacidade do outro. Na teoria winnicottiana, o significado geral da palavra confiabilidade vai na mesma direção. É preciso, contudo, examinar o sentido específico do termo no interior do processo de amadurecimento e com relação à tarefa terapêutica. Em Winnicott, mais do que uma qualidade desejável em qualquer relação humana, a confiabilidade é a característica central do ambiente facilitador, materno e terapêutico, e está intimamente ligada à dependência, cujo protótipo é, por excelência, o estado de dependência absoluta do bebê com relação à mãe nos estágios iniciais da vida. O ponto que quero examinar, neste estudo, é a função essencial da confiabilidade durante esse período inicial. Nesse momento, a confiabilidade ambiental está diretamente implicada na constituição da identidade e dos sentidos de realidade, do si- mesmo e do mundo. É só através da experiência repetida da confiabilidade ambiental que começam a ser constituídos os fundamentos do sentido de ser, de ser real e de poder habitar num mundo real. Toda essa questão tem implicações clínicas importantes, sobretudo no que se refere ao tratamento de pacientes que usam a situação analítica para regredir à dependência, em busca de experiências primitivas de ser. Sabemos, pela teoria do amadurecimento pessoal do indivíduo, que o estabelecimento mais consistente do si-mesmo, como um eu integrado, só se dá no estágio em que, se pudesse falar, o bebê diria EU SOU. Mas muitas conquistas se fazem necessárias até o bebê chegar aí. Em cada uma dessas etapas, a confiabilidade do ambiente é fundamental e ganha diferentes relevos.2 Vou limitar-me aqui ao início do processo, ao estágio da primeira mamada teórica, em que estão sendo constituídas as bases desse processo e, a propósito desse ponto, apresentarei uma ilustração clínica. 2. A clínica winnicottiana e a teoria do amadurecimento A clínica winnicottiana está baseada numa teoria dos distúrbios psíquicos que tem, como fundamento, a teoria do processo de amadurecimento pessoal do indivíduo. Descrevendo as tarefas e conquistas que caracterizam os vários estágios do amadurecimento saudável, sobretudo em suas etapas iniciais, essa teoria norteia o estudioso ou analista na compreensão da natureza do distúrbio com que se depara e na finalidade eminentemente clínica de fornecer os cuidados concernentes às necessidades específicas, e sempre variáveis, do paciente, no decorrer do processo terapêutico. É explícita a conexão essencial que Winnicott traça entre a teoria dos distúrbios psíquicos e a teoria do amadurecimento: “Precisamos chegar a uma teoria do amadurecimento normal para podermos ser capazes de compreender as doenças e as várias imaturidades, uma vez que não nos damos por satisfeitos a menos que possamos preveni-las e curá-las” (Winnicott, 1965vc/1983, p. 65). Segundo essa teoria, todo ser humano é dotado de uma tendência inata ao amadurecimento e à integração numa unidade. Mas, embora inata, a tendência não vai de si, como se bastasse a mera passagem do tempo. Trata- se de uma tendência e não de uma determinação. Para que a tendência venha a realizar-se, o bebê depende fundamentalmente da presença de um ambiente facilitador que forneça cuidados suficientemente bons. Isso é tanto mais verdadeiro quanto mais primitivo o estágio que consideramos. Uma das principais contribuições de Winnicott ao estudo da natureza humana e de suas formas de adoecer é sua minuciosa descrição dos estágios iniciais do amadurecimento, nos quais estão sendo constituídas as bases da personalidade e da saúde psíquica. As tarefas e conquistas do bebê, nesse momento inicial, não são de natureza instintual, mas se referem à possibilidade de tornar-se real e existir. Se o ambiente falha na sua função de facilitador no campo dessas conquistas fundamentais, há risco de psicose, uma vez que, não sendo ainda um eu, o bebê não tem como defender-se da falha ambiental sem ser aniquilado. A falha ambiental, ocorrida mais tarde, já não impede a estruturação do indivíduo e acarreta outro tipo de distúrbio.3 Desse modo, a natureza do distúrbio que aflige o indivíduo está relacionada com o estágio do amadurecimento em que este teve origem, e, portanto, com o ponto de imaturidade ou maturidade relativa em que o indivíduo se encontrava, e a natureza da tarefa com a qual estava envolvido, por ocasião do fracasso ambiental. Os bebês que, no início, não recebem cuidados suficientemente bons, “não conseguem se realizar nem mesmo como bebês. Os genes não são suficientes” (Winnicott, 1968d/1988, p. 84). Isso significa que o processo de alcançar a vida pode falhar. Estar vivo e tornar-se real pode jamais vir a acontecer. Há bebês que, embora fisicamente saudáveis, morrem porque não encontram, desde o começo, uma base para ser, para continuarem vivos, sendo. Há outros que não necessariamente morrem: eles “são persuadidos a alimentar-se e a viver, ainda que a base para esse viver sejadébil ou mesmo ausente” (1988/1990, p. 127). Nesses casos, o indivíduo cresce e, apesar de biologicamente vivo e até saudável, não alcança viver ou sentir-se vivo; permanece imaturo num sentido básico, fundamental. Essa é a questão dos psicóticos e é por isso que Winnicott afirma que suas dificuldades e problemas “não fazem parte da vida, mas sim da luta para alcançar a vida” (1988/1990, p. 100). A paciente com que vou ilustrar este artigo, e cujas dificuldades apresentam claramente aspectos esquizofrênicos, disse-me: “Ando por aí sem saber de mim. Jamais tenho certeza da direção que tomo. Sempre me espanto quando ouço as pessoas dizerem, com toda a segurança, ‘estou indo a tal lugar’. Nunca me senti real, sinto que fui indo, empurrada, pela vida, mas vejo agora que nada, jamais, fez qualquer sentido”.4 Uma das questões de maior relevância para a clínica winnicottiana consiste em que, numa análise com qualquer tipo de paciente, à medida que o trabalho prossegue e a confiabilidade se estabelece, a possibilidade de uma psicose, ou elementos psicóticos, aparecer nunca pode ser excluída, em princípio. Para aqueles analistas que dizem não ter nenhum interesse em casos de psicose, Winnicott oferece a sua experiência como resposta: “Deve partir-se da base de que minha experiência é a de um psicanalista que, quer lhe agrade ou não, vê-se envolvido no tratamento de pacientes fronteiriços e daqueles que talvez imprevistamente tornam-se esquizoides durante o tratamento” (1989vq/1994, p. 151). Segundo Winnicott, a teoria concebida originalmente para a compreensão das neuroses é insuficiente para dar conta da compreensão e do tratamento das patologias psicóticas ou dos episódios de natureza psicótica que surgem no tratamento analítico. Ele é incisivo ao afirmar que “a técnica psicanalítica clássica é inaplicável no tratamento da esquizofrenia” (1964h/1994, p. 372). Numa neurose pura, se é que tal formação pode ainda ser suposta, a estrutura da personalidade está intacta e o indivíduo adoece ao lidar com as dificuldades inerentes à instintua lidade no quadro das relações interpessoais. Na psicose, no entanto, o amadurecimento foi paralisado num certo momento dos estágios iniciais, em função de falhas ambientais traumáticas. A despeito de esses indivíduos se apresentarem, e de serem, muitas vezes, pessoas capazes de lidar com as exigências da realidade externa, podendo ser altamente competentes em suas profissões, chegando inclusive a ter sucesso, suas experiências iniciais foram tão deficientes ou distorcidas que o analista terá que ser a primeira pessoa na vida do paciente a fornecer certas coisas que são simples e essenciais, e que só podem ser oferecidas pelo que se chama ambiente suficientemente bom. Essas pessoas precisam que lhes seja fornecida a oportunidade de viverem experiências primitivas, com o ambiente desta vez atendendo com sucesso, ao invés de fracassar, às necessidades específicas do momento. No caso das patologias psicóticas, se se quer chegar ao problema efetivo do paciente, a regressão à dependência é necessária. Essa afirmação está baseada numa necessidade do paciente e não da teoria, ou do que seria uma “técnica” winnicottiana. O que dá suporte à afirmação da necessidade do paciente de regredir à dependência é o fato de ele achar-se compelido a chegar à “loucura original”, que nele habita sem ter sido experienciada. A loucura original foi o fragmento de segundo em que, quando bebê, ele perdeu momentaneamente o ser em função de uma reação à falha ambiental. Sofreu uma agonia impensável e, imediatamente após, houve uma organização de defesas. A defesa operou uma cisão, isolando o “núcleo” espontâneo e sagrado do si-mesmo para que ele nunca mais voltasse a ser ferido. Ao invés de prosseguir integrando os vários aspectos do ser, em contato com as experiências da vida, o si-mesmo verdadeiro torna-se inacessível, enquanto a outra parte − a falsa identidade, com a qual o indivíduo apresenta-se ao mundo − fica aprisionada na tarefa de manter a defesa armada e impedir a repetição da experiência traumática. Na clínica, o que aparece como doença é esse sistema defensivo, organizado contra o colapso já ocorrido. Tudo o que o indivíduo faz ou “escolhe” é orientado, sem que ele o saiba, na direção de evitar qualquer contato com a área de perigo letal. Tornado invulnerável o núcleo verdadeiro do si-mesmo, fica isolada a possibilidade de traumatismo, mas, ao mesmo tempo, a pessoa também perde o contato com suas necessidades mais básicas e passa a prescindir daquilo de que todo ser humano precisa, uma relação baseada na confiabilidade e uma comunicação pessoal e verdadeira. Qualquer proximidade, contudo, traz consigo a ameaça de invasão e aniquilação do si-mesmo e, desse modo, ele fica incólume a qualquer ajuda. A vida toda torna-se um esquema defensivo, nada é real, nenhum encontro tem consistência, não há mais nenhuma espontaneidade e não há, portanto, lugar para acontecimentos que possam ser vividos como experiências pessoais, restando apenas o sentimento de que tudo é fútil ou falso, inclusive o si-mesmo. A vida é vivida como uma permanente cilada do imprevisível da qual é preciso, sem cessar, se precaver. Atrás de todas as defesas, há uma permanente ameaça de confusão, de um colapso da falsa integração. 3. As necessidades da dependência absoluta É a extrema imaturidade do bebê que torna graves as falhas ambientais que estão na base das patologias psicóticas. De fato, no mais primitivo dos estágios iniciais, o da primeira mamada teórica, o bebê é uma mera continuidade de ser e sua única expectativa é continuar a ser. Ele está não- integrado, não tem nenhum sentido de tempo ou de espaço e, portanto, nenhum sentido de realidade, nem do si-mesmo, nem do mundo. Ele só pode viver nesse estado em função de sua dependência absoluta da mãe e sem nenhuma consciência, seja de sua própria situação, seja das condições que lhe permitem viver nesse estado. Embora a palavra dependência aponte imediatamente para a existência do outro, o outro não é, nesse momento inicial, nenhum objeto, no sentido clássico do termo, uma vez que o bebê não está suficientemente amadurecido para ter ou perceber objetos. A mãe não é um objeto externo, nem interno, porque o sentido da externalidade, assim como o de mundo interno, ainda não foi constituído. Do ponto de vista do bebê, diz Winnicott, “não há, nesse estágio tão primitivo, nenhum fator externo; a mãe é parte da criança” (1965n/1983, p. 59). E, no entanto, o bebê é imediatamente afetado pelo tipo de cuidados que recebe. Ou seja, os cuidados maternos participam intrinsecamente da constituição paulatina do si-mesmo do bebê. Pela própria tendência inata ao amadurecimento, ou seja, à integração, a necessidade do bebê é chegar a existir e alcançar o sentimento de ser real e habitar num mundo real. Para dar início a essas conquistas, ele se vê envolvido com três tarefas: 1) a temporalização e a espacialização, que deve dar-se inicialmente num tempo e num espaço subjetivos; 2) o alojamento da psique no corpo; 3) o início da relação objetal que culminará, mais tarde, com a criação e o reconhecimento da existência de objetos externos. À medida que essas tarefas estão sendo realizadas, uma outra conquista está se processando: a constituição do si-mesmo enquanto identidade. Todas essas tarefas são interdependentes, portanto, uma não pode ocorrer sem a outra, mas é possível dizer que a mais básica é a da temporalização e espacialização do bebê: não há sentido de realidade − nem corpo, nem mundo, nem si-mesmo − fora de um espaço e de um tempo; não há indivíduo, se não houver uma memória de si, aquilo que mantém a identidade em meio às transformações; não há encontro de objetos se não houver um mundo onde os objetos possam ser encontrados e se não houver um si-mesmo que possa encontrá-los. A essas tarefas do bebê, correspondem cuidados maternos específicos: à integração no espaço e no tempo corresponde o segurar (holding); o alojamento da psique no corpo é facilitado pelomanuseio (handling), que é um aspecto especializado do segurar relativo aos cuidados físicos; à relação objetal pertence, por parte da mãe, a apresentação de objetos (object- presenting). Ao mesmo tempo em que a mãe facilita, de forma especializada, cada uma das tarefas do bebê, o conjunto dos cuidados maternos constitui o ambiente total. Melhor dizendo, o modo de ser desses cuidados totais configura um mundo para o bebê. A característica central do primeiro mundo onde o bebê habita é a de ser confiável. A confiabilidade materna não reside em nenhum fazer específico, mas no “como”, no modo como ela faz e providencia as coisas que são necessárias ao bebê. Mais do que qualquer fazer, são os modos de ser da mãe que estão em questão. O principal traço da confiabilidade reside no fato de a mãe cuidar para que o bebê tenha preservada a sua continuidade de ser e, para tanto, ela o introduz e mantém na área de ilusão de onipotência. Isso significa que lhe é permitido habitar, durante o tempo necessário, num mundo subjetivo no qual ele exerce um controle mágico, onipotente, ou seja, as experiências acontecem no momento exato da necessidade do bebê e correspondem ao seu gesto espontâneo; o seio aparece quando a fome ou a precisão de encontrar algo aponta e desaparece quando a tensão cessa. Nesse mundo, nenhuma amostra da realidade externa se intromete, porque a mãe evita qualquer irrupção imprevisível, e incompreensível para ele, da realidade (externa para o observador) que o bebê ainda não pode abarcar na sua experiência. Se ela insiste, por exemplo, em excitá-lo quando ele já se retirou para descanso; se, ao invés de corresponder ao gesto do bebê, ela impõe a ele seu próprio gesto, a existência de algo fora de seu âmbito de onipotência aparece antes que o lactente esteja preparado para tal realidade. Isso se constitui em intrusão. No mundo subjetivo, tudo o que chega ao bebê, o seio, um manuseio, um ruído, deve ter, para ele, o caráter de objeto subjetivo. Esses objetos são de tal natureza que não aparecem como destacados do si-mesmo do bebê e, portanto, não o surpreendem, não causam sobressaltos, chegam no momento exato e são do tamanho exato da sua capacidade para assimilá-los como parte dele. Sua forma de presença é tal que não denuncia a sua existência externa e, desse modo, não o obriga a reagir e não interrompe a sua continuidade de ser. O bebê não tem maturidade suficiente para suspeitar da existência de algo fora de seu controle.5 Saliento, aqui, a distinção que Winnicott faz entre mundo e objetos. Uma coisa é o mundo onde o bebê habita; outra, são os objetos que podem ser encontrados no interior desse mundo. A essa distinção correspondem as duas formas do cuidado materno: a mãe-objeto e a mãe-ambiente.6 A mãe- objeto é aquela que é alvo do amor excitado do bebê. O cuidado materno aqui reside no modo como os objetos são apresentados ao bebê e a confiabilidade consiste na mãe apresentar o seio de tal maneira que permita ao bebê ter a experiência de criar o objeto que, na verdade, já estava lá para ser encontrado. Ao criar o seio, o bebê faz uma pequena experiência de integração momentânea que é sentida como real. O encontro “realiza” a necessidade não apenas no sentido da satisfação, mas no de tornar real a própria necessidade, o impulso, o gesto espontâneo e o algo que encontra, pois, para o si-mesmo imaturo de um bebê muito pequeno, o que ele sente como real é essa expressão de si-mesmo (cf. 1993h[1956]/1993, p. 25). Essa integração momentânea, durante os estados excitados, será descrita por Winnicott, em seus escritos mais tardios, como as primeiras experiências de identidade: o bebê é o seio que encontra. Depois da experiência de integração, o bebê como que se desmancha e volta ao estado relaxado da não-integração. Mas, além de ser o objeto a ser encontrado, a mãe é o contexto, o mundo onde um encontro pode acontecer. O mundo do bebê é feito da totalidade dos cuidados maternos, incluídos aí os cuidados específicos relativos às três tarefas. A palavra-chave, aqui, é confiabilidade e esta significa, nesse primeiro momento, previsibilidade. A mãe-ambiente cuida para que o mundo do bebê, e ela mesma, se mantenham consistentes, regulares, monótonos, em uma palavra, previsíveis. Ela cuida para que não haja alterações na atmosfera do ambiente, e para que o manejo não seja brusco nem apressado; é ela, também, que preserva imperturbado o isolamento do bebê quando este se retira para descansar. Ela permanece lá, sustentando a situação no tempo, aguardando que ele retome uma busca qualquer. Quando o bebê desperta e faz um gesto de comunicação, lá está ela apresentando um fragmento de mundo ou um manejo que confirmam, para ele, que o mundo continua presente e vivo. É a repetição monótona e regular dessa experiência que vai criando no bebê a capacidade de confiar. Ele começa a ter um “conhecimento” do ambiente, que não é mental, mas baseado na familiaridade. Sendo-lhe assegurado a cada vez a existência de algo que espera, o bebê torna-se gradualmente capaz de reconhecer coisas e predizer acontecimentos. A manutenção do mundo do bebê é essencial. Primeiro, porque tanto a experiência excitada do encontro com o objeto quanto o retorno à não- integração só são possíveis sobre o fundo de um mundo subjetivo, que pode ser repetidamente reencontrado, pois está assegurado pela confiabilidade materna. O bebê só pode retirar-se para descansar porque começa a confiar, pela repetição da experiência, que o mundo continua vivo e permanece lá assim que ele precisar. Além disso, para que o gesto espontâneo seja sentido como real, é preciso que parta de um estado de repouso. O retorno à não-integração é a condição necessária para que, o que quer que se dê nos estados excitados, seja sentido como real e favoreça a integração num si- mesmo sentido como real. Se o que se estabelece é uma impossibilidade de descanso, o gesto já estará alienado na base. Vejamos um detalhe da confiabilidade ambiental. Winnicott diz que, no momento inicial, o bebê está elaborando a capacidade de manter as pessoas vivas em sua realidade psíquica, no mundo subjetivo. Dada a sua extrema imaturidade, ele ainda não tem, por exemplo, o sentido do que é “presença”. Não da presença deste ou daquele objeto, mas da presença enquanto tal. O bebê não sabe da existência permanente da mãe − e do mundo e das coisas que o rodeiam −, mas sente os seus efeitos e, vagarosamente criando uma memória dessa experiência, conta com isso, estabelecendo uma crença na permanência do mundo e dos objetos. Tudo isso só pode se dar na área de ilusão de onipotência e, para que a crença na realidade e na consistência da presença se instaure, é indispensável que ela seja anterior à consciência da existência externa de objetos e do mundo. A crença na realidade é condição de possibilidade para a posterior constatação intelectual da existência da realidade externa. Mas essa constatação jamais substitui a crença básica. No entanto, há ambientes que deixam o bebê entregue a seus próprios recursos e, nesses casos, ele não pode construir a necessária crença na consistência da presença e no fato de o mundo ser encontrável. A criança pode manter viva por algum tempo a imagem da presença, mas se a ausência da mãe exceder o que a criança é capaz de sustentar, então essa imagem se esvanece e começa a morrer. A sensação é de aniquilamento, de loucura. O apagamento da memória da presença é um dos traumas específicos que aparece na etiologia das patologias psicóticas. Trata-se de uma agonia impensável. O que impede essa agonia − no caso, a de perder todo o sentido de real − é o fato de a mãe assegurar a permanência do mundo e tecer permanentemente a presença, apresentando continuamente o mundo ao bebê, em pequenas porções, no momento do gesto espontâneo. Winnicott relata o caso de uma paciente que só podia manter viva a imagem do analista se fosse atendida três vezes por semana. Duas vezes ainda era aceitável, mas uma vez por semana não era suficiente. A imagem esmaecia. “É tãogrande a sua dor de ver todos os sentimentos e todo o significado se esvaindo que ela me diz que não vale a pena, que é melhor morrer” (1968b/1989, p. 115). Do mesmo modo, a paciente que ilustrará este estudo se perguntava se valia a pena todo aquele esforço da análise. Dizia que, assim que saía da sala, tudo se desmanchava. Não ficava nada. Era imediatamente arrastada para fora de si, para o mundo. Não conseguia mais se lembrar de mim, não conseguia refazer o rosto, a figura. Tudo lhe parecia longínquo, irreal, como se não existisse. 4. A constituição do si-mesmo e a confiabilidade ambiental A questão que agora se põe é o modo como a confiabilidade ambiental auxilia na constituição da realidade do si-mesmo, ou seja, passa a pertencer ao indivíduo como uma característica do si-mesmo. Esse ponto é claramente elucidado por Winnicott num texto sobre a comunicação pré- verbal entre mãe e bebê. Ele diz: A capacidade que a mãe tem de ir ao encontro das necessidades em constante processo de mutação e amadurecimento deste bebê permite que sua trajetória de vida seja relativamente contínua; permite-lhe, também, vivenciar situações de não-integração ou relaxadas, a partir da confiança (confidence) que deposita na realidade do fato de o segurarem bem, juntamente com fases reiteradas de integração [nos momentos de excitação e encontro do objeto] que faz parte da tendência inata ao crescimento. O bebê passa, então, com muita facilidade da integração ao conforto descontraído da não-integração e o acúmulo dessas experiên cias torna-se um padrão e forma a base para as expectativas do bebê. Ele passa a acreditar [believe] na confiabilidade [reliability] dos processos internos que levam à integração em uma unidade. (1968d/1988, p. 86) Para a questão em pauta, o ponto principal é o seguinte: o bebê passa a acreditar na confiabilidade dos processos internos que levam à integração em uma unidade. Através da confiabilidade ambiental, fazendo inúmeras vezes o percurso que vai da não-integração à integração, e vice-versa, estabelece-se a confiança na vigência da sua própria tendência à integração. O bebê passa a acreditar que a integração voltará a seu tempo e não precisa preocupar-se com isso. A natureza faz seu próprio trabalho. Note-se: o bebê depende inteiramente da confiabilidade da mãe, mas não sabe disso: nem da existência do ambiente e muito menos do sucesso dos cuidados adaptativos. Para um bebê bem cuidado, não é a mãe que funciona bem, que é confiável, senão é o vigor de sua tendência à integração que fica acima de qualquer suspeita.7 Winnicott continua: “À medida que o amadurecimento prossegue e o bebê adquire um interior e um exterior, a confiabilidade do meio ambiente passa então a ser uma crença, uma introjeção baseada na experiência de confiabilidade (humana, e não mecanicamente perfeita)” (1968d/1988, p. 87). O senso do real − do si-mesmo e do mundo − está diretamente ligado à confiabilidade e ao estabelecimento de uma crença; uma crença que não é nisto ou naquilo, mas em que algo é encontrável, permanece, tem vida própria, não precisa ser produzido. Winnicott mostra como a crença em... é uma base inaparente que, no entanto, dá sustentação às possibilidades humanas e está presente no mais corriqueiro cotidiano. O real encontrado através dessa crença é uma espécie de fundamento que, no entanto, não tem fundamento concreto em si mesmo. É um real que se apoia numa ilusão. Essa crença básica só pode chegar a pertencer naturalmente ao indivíduo quando atos silenciosos de confiabilidade humana estabelecem uma comunicação muito antes que a fala signifique algo. Através dos cuidados, a mãe mostra ao bebê que é confiável, não por ser uma máquina, mas por saber, a cada momento, o que ele necessita. O bebê, diz Winnicott, “não ouve ou registra a comunicação, mas apenas os efeitos da confiabilidade” (1968d/1988, p. 87). A confiabilidade materna é um traço inaparente e essencial que se faz sentir em todos os cuidados e os reúne em um mundo para o bebê, sem jamais falar de si mesma: é silenciosa. E, para Winnicott, ou bem a comunicação é silenciosa e a confiabilidade está garantida, ou bem é traumática, produzindo a experiência de uma angústia impensável ou primitiva (cf. 1970b/1994, p. 201). A confiabilidade se assenta na comunicação silenciosa, em primeiro lugar, porque os cuidados maternos não são propriamente deliberados, mas provêm “de um nível mais fundo, e não necessariamente daquela parte da mente onde há palavras para tudo” (1968f[1967]/1988, p. 53). Em cada caso, diz Winnicott, a questão consiste em alguém encontrar alguém em nível profundo, e para isto não há palavras. Além disso, se a mãe tem a necessidade de demonstrar e garantir o reconhecimento do bebê quanto à sua própria confiabilidade, esta falhará exatamente aí: ela estará apelando para uma compreensão para a qual o bebê não tem nenhuma maturidade e não terá confiança suficiente no processo de amadurecimento em curso do bebê.8 Não temos nada a dizer ao nosso paciente para que ele compreenda a nós e às nossas razões. Temos apenas que possibilitar a ele viver a experiência. Se o ambiente falha em prover o bebê de confiança na realidade de si- mesmo e do mundo, o indivíduo não alcança a capacidade de acreditar em.., de confiar. O resultado é uma desconfiança básica, uma inconsistência que torna tudo irreal. O indivíduo não pode entregar-se aos acontecimentos da vida e fica todo o tempo tomando conta do ambiente, à espreita de alguma invasão ou tomando conta do frágil si-mesmo, sempre passível de ser perdido, aniquilado. É exatamente a propósito desse ponto que gostaria de apresentar um fragmento clínico. 5. Ilustração clínica Esta ilustração clínica visa a mostrar de que modo a ausência da crença básica impede a constituição do sentido de realidade do si-mesmo e do mundo. Visa também a refletir acerca do papel do analista nesses casos. No fundo, trata-se de dar conteúdo à afirmação de Winnicott de que, em certos casos, só nos cabe esperar e esperar e esperar. Para dar a dimensão da confiabilidade que é necessária ao trabalho terapêutico, Winnicott afirma que, no trabalho analítico, cuidamos de ser confiáveis num sentido que só podemos sustentar no espaço estrito de nosso trabalho profissional. A paciente a que vou me referir jamais havia alcançado saúde psíquica suficiente para padecer das vicissitudes referentes às relações interpessoais. Suas dificuldades eram de tipo psicótico, mais precisamente na linha das esquizofrenias. Apresentava problemas com a constituição da sua identidade e evidências claras de que carregava consigo a memória latente de agonias impensáveis. Toda a sua vida fora orientada no sentido de evitar a repetição do colapso. Em S., podia-se observar o efeito devastador do fato de um bebê não ter sido introduzido ou mantido por tempo suficiente na área de ilusão de onipotência e não ter tido preservado o mundo subjetivo. Ela cresceu sem qualquer capacidade para a ilusão, para a crença de que a realidade é encontrável e de que é possível uma comunicação humana e verdadeira. Ou essa capacidade era tão frágil que facilmente se quebrava no menor contato com uma realidade externa que se impusesse como tal. S., uma mulher jovem, bonita e bem-vestida, veio me procurar dizendo que há muito tempo pensava fazer uma terapia, mas nunca tomara a iniciativa e que, agora, estava ali em função de um encontro casual com uma amiga que falara de mim. Contou algo sobre a amiga e, em meio a outras observações genéricas, como uma informação a mais, disse que sua mãe acabara de falecer. A terapia seria útil, pois havia problemas práticos a serem resolvidos e ela se sentia desorientada. Era a mais velha dos três irmãos, e apenas ela havia se disposto a cuidar da mãe em seus últimos meses. Não sabia dizer o que sentia. Tivera pena da mãe e gostaria de ter- lhe podido aliviar mais os sofrimentos, mas não podia dizer que estava arrasada. Na verdade, surpreendia-se, às vezes, dizendo a si mesma que perdera a mãe e que isso era grave. Masa situa ção toda ficava envolta em um sentimento de estranheza. “O que ela devia sentir?”, perguntava-se. S. falava de modo pausado, sem nenhuma entonação na voz, como que recitando um monólogo. Notava-se que estava exaurida e talvez fosse esse o único sinal de alguma realidade nela. De resto, era uma presença que se desfazia; ela estava lá e não estava; o olhar, vago, era atravessado por uma espécie de desalento. Lembro-me de que, quando saiu, nas duas primeiras vezes, tive a estranha impressão de não saber sobre o que havíamos falado. Mostrava-se passiva e desorientada com relação à vida e às pessoas. Nunca havia tido relações estáveis que a marcassem, nem campo específico de interesse ou profissão. Tinha apenas duas amigas antigas, do tempo de colégio, algumas amizades ocasionais e dedicava-se, também ocasionalmente, a atividades artesanais. Durante algumas semanas, medindo as palavras, S. trouxe questões relacionadas à partilha dos bens, ao seu receio de não fazer o mais acertado, às dúvidas sobre o que fazer com as coisas da mãe e o descaso do pai e dos irmãos. Não confiava em ninguém a esse respeito e não sabia por onde começar. Ficava claro que, ao mesmo tempo em que queria, ou sabia que devia, tomar posse do que lhe era de direito, tinha a tendência a desfazer-se de tudo o que viera da sua mãe. Acompanhei-a com atenção e permaneci no âmbito que ela abrira. A situação toda e sua evidente imaturidade exigiam manejo: ponderamos juntas desde minúcias – havia objetos a serem divididos, alguns preciosos, outros que lembravam a infância – até imóveis dos quais ela nem sabia da existência. Dei algumas orientações precisas: instei-a, por exemplo, a que tivesse a ajuda especializada de um advogado. Disse-lhe também que seus bens deviam ser postos a salvo e guardados para quando ela soubesse como usá-los, de modo a que lhe favorecessem a vida. Mas, por ora, era preciso começar a viver. Assinalei que ela estava apenas começando a análise e que era preciso tempo para que as coisas clareassem; ela parecia saber muito pouco ainda sobre si mesma, sobre o que queria, e qualquer decisão sobre o que fazer com a herança seria prematura. Embora fizesse aqui e ali algumas observações como essa, não aludi ao que me parecia o seu estado de total desorientação na vida nem ao fato, óbvio pra mim, de que estava aprisionada numa armação defensiva, vivendo através de uma identidade artificialmente construída. Pareceu-me necessário que ela se sentisse acompanhada, no nível em que lhe era possível, antes de eu tentar uma comunicação com algo dela mesma que ainda não estava disponível. Houve, então, um feriado mais longo. Quando retomamos o trabalho, não fez nenhuma alusão ao intervalo e, para minha surpresa, começou a narrar exatamente as mesmas coisas que me dissera nas primeiras sessões, como se nunca tivesse estado ali. Fui completando seu relato, mencionando nomes, mostrando-lhe que guardara, sim, o que dissera. Espantava-se de eu saber essas coisas. Apontei-lhe então, simplesmente, como uma constatação, e não como se se tratasse de uma desconsideração, o fato de ela haver como que anulado os nossos encontros. Isso talvez mostrasse, disse-lhe, que era muito difícil para ela, provavelmente em função do que já vivera e sofrera, acreditar que alguém pudesse mantê-la viva dentro de si, guardando as suas coisas, assim como também lhe era difícil manter algo vivo dentro de si. Olhou-me com profunda estranheza. Disse-lhe que, apesar de se dispor a segurar tudo, inclusive a si mesma, ela necessitava, mais do que podia imaginar, sentir-se acompanhada e protegida. Havia apagado o que tínhamos vivido pois já não valia; e não valia porque, depois de ter tido uma pequena amostra de ser vista e ouvida, vira-se de novo, repentinamente, sozinha e desamparada, como tantas outras vezes em sua vida. E agora precisava, como sempre, começar novamente, sem nenhuma história. S. ficou calada muito tempo, olhando para mim sem me ver. Depois, lentamente e em voz muito baixa, como quem toca em algo intocável, disse que sim, que fora sempre assim, que não aguentava mais, que nunca pudera contar com ninguém, que só contava consigo mesma, mas nem isso era possível, porque não sabia quem era nem o que queria. Só se sentia viva enquanto fazia algo prático e concreto. Todo o resto, dizia ela, era uma “imensa escuridão” e um permanente “sentimento de irrealidade”. Nada fazia sentido e ela passou toda a vida como uma sonâmbula. Tentava sempre “desaparecer”, tornar-se invisível, evaporar. Fazia o que lhe mandavam, exatamente para não aparecer, e, quando a situação tornava-se insuportável, escondia-se no quarto, fingindo dormir. No entanto, havia um sobressalto impossível de apaziguar e ela tinha que permanecer horas a fio muito quieta para conseguir aplacar o tumulto interno que a assolava. Nas sessões subsequentes, continuou a falar-me com um fio de voz, quase inaudível. Sem me dar conta, comecei, também eu, a falar-lhe em voz muito baixa e isso perdurou durante algum tempo ao longo da análise. (Anos mais tarde, nós duas chegamos a rir do fato de que nossa sessão era quase toda sussurrada, como se estivéssemos no quarto de um bebê.) Disse que a sua única lembrança consistente era a de sentir medo. Lembrava-se dos pesadelos recorrentes da meninice, do medo dos vãos escuros da sua casa da infância. Essa casa, agora ela percebia, retroativamente, parecia um cenário: havia sido toda montada por decoradores, sem nenhuma pessoalidade e era muito escura, pois as pesadas cortinas dificultavam a entrada da luz. Era essa a atmosfera de que sua mãe gostava. No último ano do colegial, teve uma crise de pânico que durou alguns meses e ela não sabe como sobreviveu. Seu único pensamento era como evitar ver-se assolada pelo medo agudo que a atravessava e a deixava paralisada. Naquela época, não teve coragem de falar a ninguém sobre isso, mas colava nas amigas e fazia tudo para não voltar cedo para sua casa. Contou que sua mãe fora uma pessoa muito inteligente, mas muito perturbada; era uma mulher caótica, disruptiva e violenta. Se se irritasse durante uma refeição, podia lançar a faca a esmo sobre quem quer que fosse. Casara-se porque a vida estava tediosa e pelo fato de que o rapaz, bem colocado, resolveria a situação de insolvência financeira da família. Era inteiramente desorganizada; não tinha horário para coisa alguma, comia ou dormia nas horas mais extravagantes. Tinha alguns momentos bons, em que ria muito e parecia uma menina. Nessas horas, podia ser afetuosa, mas, no geral, andava pela casa, absorta, como uma sombra, e não entrava em contato com nada em torno dela. Era impossível saber o que pensava ou sentia. Às vezes, passava tardes inteiras em seu quarto, olhando para o teto e arrancando fios do cabelo. Não suportava ruídos e, às vezes, quando S. brincava com sua irmã, ela descia intempestivamente do quarto aos gritos, xingando-as e mandando-as calar. Se estava presente, durante as refeições, envenenava tudo com sua ironia e amargor. O pai era um homem de negócios que ganhou muito dinheiro com transações escusas. Fazia piada de tudo e jamais conversou com os filhos sobre o que interessasse a estes. Nunca falou aos filhos sobre a mãe; ria, sem graça, das cenas de violência da mulher e se retirava deixando-os à mercê da tempestade. Esse pai tinha, no entanto, algo de meigo e materno, e S. teve sempre muita pena dele. Num momento bem mais adiantado da análise e de seu amadurecimento, acabou por sentir muita raiva dele por não a ter ajudado a entender as impossibilidades da mãe e não a ter protegido das suas irrupções. Durante aproximadamente os primeiros seis meses, na primeira sessão após o fim de semana, S. voltava formal, distante, e falava comigo como se tivesse acabado de me conhecer. Após algum tempo, eu lhe dizia: “Percebo que a cada vez que nos afastamos você teme chegar aqui e não me encontrar tal como me conhece. Desse modo, primeiro investiga o território”. Ela sorria e assentia com a cabeça. Às vezes, eu não comentava nada; apenascontinuava a falar com ela em voz muito baixa. Depois de uns dez minutos, ela relaxava e voltava ao que já tínhamos. Em alguns desses momentos formais, ela trazia perguntas sobre mim: se eu tinha filhos, em qual escola havia estudado, se gostava do meu trabalho etc. Respondia às suas indagações de forma direta e breve. Certa vez acrescentei: “Acho que você está tentando saber se sou capaz de vê-la e compreender o seu sofrimento. Quer ter alguns dados para ver se consegue aumentar a confiança. Posso perfeitamente lhe dar essas informações, mas a confiança de que você necessita não pode ser produzida por dados; é totalmente pessoal e crescerá ou não. Não há nada que possamos fazer nesse sentido, a não ser criar as condições para que ela venha a acontecer”. S. compreendeu e sorriu. Qualquer outra coisa seria uma falsa solução e, além disso, um apelo à sua mente já por demais saturada. No que S. ia relatando, mostrava-se a extrema fragilidade do eu, que não chegou a constituir-se como realidade integrada e autônoma. Sua vida era uma perpétua defesa contra agonias impensáveis, uma das quais era vir a perder todo o sentido do real. Não tendo sido provida da ilusão básica, não tinha onde se apoiar no que se refere à vigência de suas experiências ou à permanência de suas possibilidades. De fato, tudo nela se desmanchava e estava sempre em sobressalto pela possibilidade de desfazer-se, de tornar-se irreal, sem consistência. Surpreendia-se, muitas vezes, por exemplo, com o fato de as pessoas a verem e reconhecerem. Certo dia, precisava voltar a uma loja para trocar uma peça que ela comprara no dia anterior. Foi tomada de grande sobressalto e hesitou muito. Temia que o dono simplesmente não a visse ou então que ele, mesmo vendo-a, não a reconhecesse e achasse absurdo o seu pedido. Lembrei-me da cliente de Winnicott cuja vida era um permanente esforço para estabelecer-se como uma identidade e que disse a ele: “Não seria horrível se a criança olhasse para o espelho e não visse nada?” (1967c/1975, p. 160).9 O sentimento de não ter presença visível aparecia também no consultório: à vezes, ela ficava em pé, na sala de espera, com medo que eu não reparasse nela. Contou-me também sobre algo que denominou de timidez: numa situação social qualquer, e mesmo conversando com alguém, ficava imediatamente sem recursos, aquém do outro, não tinha nada a dizer, via-se inadequada, malvestida, desengonçada, exposta. Fomos percebendo que a mera presença do outro a arrastava para fora e a dominava. Ela era tragada por esse olhar externo e já não sabia de si. Precisava isolar-se para resgatar algo do sentimento de si mesma. Estava sempre lutando também, sem consciência disso, com o temor de perder todo o senso de orientação. Algumas vezes, ao sair de casa ou do consultório, tinha o sentimento de que jamais conseguiria voltar, nunca mais acharia de novo o caminho, tantas ruas a distinguir, tantas casas, como se todas as referências se apagassem. Sentia-se muitas vezes esgotada, como alguém que tenta manter algo escrito sobre a areia. Foi percebendo que não tinha propriamente uma história. Apenas alguns flashes aqui e ali, quase tudo coisas que lhe foram contadas, mas das quais não tinha memória da experiência. Pegava, às vezes, fotos da infância e adolescência, e ia tentando montar de novo a sequência, ordenando acontecimentos, primeiro isto, depois aquilo, mas sempre se perdia pelo caminho. Falava também do sentimento de pobreza que a acompanhava. Objetivamente, fora educada em bons colégios, vestia-se com o que havia de melhor e frequentara clubes e lugares caros. Mesmo na época, comprava, às vezes, uma roupa de grife, mas, assim que a vestia, a roupa perdia toda a graça, ficava “caipira”. Foi mais ou menos nessa ocasião que trouxe um sonho impressionante: ela estava deitada e dava-se de mamar em seu próprio peito. Nesse dia, falou de sua indigência. Eu lhe disse que entendia, pois a pobreza, numa criança, era não ser vista e cuidada pela mãe, pela família, e que nenhuma riqueza concreta podia suprir essa falta. Ela chorou muito, pela primeira vez. Num dado momento, era claro que uma regressão à dependência começava a se estabelecer. Ela já não empinava o corpo, como no início, e começou a andar com muito cuidado, como se temesse desfazer-se. Ao entrar para a sessão, olhava nos meus olhos, profundamente, com grande inquietação. Perscrutava se eu continuava ali, se podia recebê-la, se a reconhecia. Precisava sobretudo saber, nos meus olhos, quem era ela em mim. Passou também a reparar minuciosamente no ambiente e a apontar quando algo estava diferente ou “fora do lugar”. Queixava-se que havia muito a dizer e não ia dar tempo, que os intervalos entre as sessões eram muito longos e, em especial, que, no fim de semana, eu lhe parecia longínqua e irreal, como um sonho que se esvai. Nesses momentos, perdia o contato consigo mesma; qualquer coisa a fazer era fútil e sem sentido, e sua casa parecia-lhe inteiramente vazia. Tínhamos duas sessões na semana e eu lhe propus mais uma. S. se assustou com o estado de dependência que começava a instalar-se. Precisava imensamente disso, estava compelida a entregar-se para vivê-lo, mas o medo era brutal. Vivera toda a vida sustentando a si mesma e era terrível, agora, abandonar, mesmo que parcialmente, a organização defensiva na qual se apoiava. Sua desconfiança, que ela tentava manter em níveis de sensatez, envolvia a questão crucial de saber, e mais do que saber, de acreditar, se havia alguma coisa real na vida, se existia alguém, consistente, real e confiável, capaz de dar sustentação ao que desse e viesse. Essa descrença na possibilidade de uma comunicação verdadeira e persistente, e em que alguém pudesse acompanhá-la ao lugar do temor e sofrimento básicos, tornaram-se sobretudo agudas em relação a mim, uma vez que eu era, agora, ao mesmo tempo, o lugar da proteção possível e o lugar de maior ameaça. Se, pela primeira vez em sua vida, como em geral ocorre com esses pacientes, ela tivesse cuidados suficientemente bons ou mesmo se a minha adaptação às suas necessidades fosse apenas melhor do que a que recebeu no início, de qualquer modo uma falha minha no âmbito da confiabilidade seria pior do que as falhas originais, uma vez que permiti o retorno da esperança (cf. 1989b/1994, p. 129). O que S. temia, mais que tudo, era que o trauma inicial se repetisse; ou seja, que, de novo, ela esperasse por uma comunicação que não viria. Temia sentir-se outra vez um estorvo tendo que, de novo, ser um nada; que eu, repentinamente, não reconhecesse a intensidade de seu sofrimento, ou não pudesse tolerá-lo. Escondida e temendo em alto grau não ser encontrada, S. precisava que alguém, capaz de uma comunicação silenciosa e altamente confiável, testemunhasse a existência de um verdadeiro si-mesmo escondido. O perigo, de um lado, era que eu atravessasse seu muro artificial de proteção e tentasse entrar em comunicação com um eu que, como diz Winnicott, ainda não estava lá para ser encontrado. De outro, era que seu muro artificial de proteção fosse tratado como real. Isso só faria crescer seu sentimento de futilidade e desespero. Eu, ciente da extrema precariedade de um si-mesmo que nem sequer havia nascido, empenhei-me muito para que nada de imprevisível a atingisse. Cuidei de estar sempre a mesma, o que não era difícil, pois ela me punha nesse lugar: seu modo de presença era tal que me solicitava naturalmente para o cuidado. Atentei ainda para que nada na sala fosse alterado. Mudar um horário nem pensar e, obviamente, nenhum atraso. S. lutou muito contra a regressão e o advento de qualquer esperança. De fato, como já mencionado, a situação de dependência é arriscada e dolorosa para o paciente; traz uma sensação de precariedade que é inerente ao depender, embora não sejam essas as características normais do amadurecimento original. O risco, diz Winnicott, não é somente que o analista possa morrer como também que ele se torne subitamente incapaz de acreditar na realidade e intensidade da angústiaprimitiva do paciente, do medo de desintegração ou de aniquilamento ou de queda contínua para sempre. (1965vd/1983, p. 216) Uma regressão a estados infantis na situação clínica, esclarece ele, só adquire caráter terapêutico se os intensos sofrimentos associados à dependência puderem ser suportados. É preciso, portanto, ter em mente, diz Winnicott, que “as toscas habilidades do psicoterapeuta, se o compararmos com a mãe real, faz com que seja inconcebível − mesmo na terapia mais cuidadosamente controlada − uma regressão à dependência vivida com prazer” (1988/1990, p. 179). À medida que uma maior confiança foi substituindo o estado de alerta, a dependência foi se instalando. Eu fui me tornando, para S., objeto subjetivo. Era apenas na relação comigo, não destacada como pessoa separada, mas confundida com o ambiente, que ela podia fazer a experiência da realidade da presença e não se sentir arrastada pela minha presença externa, que só exigiria alerta e submissão. A partir desse lugar, era às vezes possível comunicar-me com o bebê assustado que ela trazia, para a análise, quando podia. Essa possibilidade nunca era total, uma vez que sua desconfiança a fazia lembrar-se de minha presença concreta e a impelia, imediatamente, a prevenir invasões. Mais ou menos nessa ocasião, começaram a aparecer dois tipos de sonhos recorrentes, que eram, a meu ver, a elaboração, tornada agora possível, de situações primitivas traumáticas. Em uns, ela estava andando e, repentinamente, o chão acabava. “Não era um buraco”, disse, “era o chão mesmo que acabava e não havia mais nada, apenas névoa”. Em outros sonhos, ela estava perdida e se esgueirava por beiradas estreitas e íngremes ou então por caminhos labirínticos, escuros e úmidos; alguns a levavam a cavernas pré-históricas ou lugares inóspitos, e ela tinha que atravessar rios, sempre em busca da sua casa, que não encontrava ou, às vezes, de sua cama que havia sumido. Pensei inicialmente tratar-se de sonhos de nascimento, numa espécie de elaboração do que teria sido um parto difícil ou demorado; contudo, não conseguimos nenhum dado sobre seu nascimento e, além disso, o sentimento que prevalecia nos sonhos não era aperto, angústia ou claustrofobia, mas, apontando para agonias impensáveis, o perigo sempre eminente de cair, de despencar. A regressão foi seguindo seu próprio curso e, quando atingiu um cume, teve que ser vivida no que tinha de mais primitivo. Uma angústia persecutória começou a manifestar-se com toda a intensidade. Paradoxalmente, é apenas numa situação de confiabilidade ambiental, sentida como tal pelo paciente, que ele pode viver a desconfiança e a persecutoriedade de forma cabal. Ele precisa chegar à “loucura original” e precisa estar seguro de que o analista saberá entender e sobreviverá à sua “transferência delirante”.10 S. deitava-se no divã e, a partir de um certo momento do processo, qualquer movimento meu na poltrona, ou uma respiração mais funda, fazia com que ela se virasse para ver o que tinha acontecido. “O que foi, está cansada? Já se encheu? Quer que eu vá embora?” Às vezes, ficava em silêncio e, depois de algum tempo, assustava-se e dizia: “O que você está resmungando?”. Eu tentava falar o menos possível, fazer intervenções breves, tomando cuidado com o tom da voz, porque qualquer modulação diferente a assustava. Mesmo assim, o que quer que eu dissesse tornava-se uma perseguição e era prontamente recusada. Também não podia ficar em silêncio, pois ela imaginava que eu havia me ausentado, chegando um dia a acusar-me de eu haver saído da sala enquanto ela falava. Houve um momento em que o estado de alerta e sobressalto foi tal que se sentou bruscamente no divã e olhou-me fixamente até que a sessão terminasse. Sentia que eu podia machucá-la a qualquer momento e precisava verificar se eu continuava lá, se era a mesma, se havia qualquer vestígio de mudança em meus olhos. Convidei-a para sentar-se, de vez, na poltrona, e prosseguimos assim durante o resto da análise.11 Tudo isso se amainou com o tempo, mas era difícil para ela abandonar a desesperança, pela qual se protegia da decepção, e dispor-se à proximidade. Numa certa ocasião, houve um silêncio prolongado. De repente, ela pôs-se a falar e o que dizia não fazia nenhum sentido. Deixei-a falar e, quando silenciou novamente, perguntei-lhe o que é que quisera me dizer. Ela baixou o rosto e disse: “Não era nada mesmo. Falei qualquer coisa porque havia muita intimidade no silêncio. Falei para afastar você, para pôr uma distância entre nós”. Numa outra vez, repetiu-se o mesmo fenômeno do começo da análise: ela mencionou uma amiga pelo nome e acrescentou, como que para me esclarecer: “aquela que eu conheci de criança, com quem estive esta semana, aquela...”. Ocorre que ela havia falado dessa amiga durante toda a sessão anterior, mas não podia alimentar a ideia de que eu ainda me lembrasse. Disse-lhe, novamente, que era temeroso, para ela, abrigar a esperança de que eu guardasse o que ela me contara e se garantia contra a decepção antecipando todas as informações, exatamente como fizera logo no início da terapia. O problema é que, assim, ela ficava sem saber que era possível, sim, que eu guardasse suas coisas e as conservasse comigo. O medo talvez fosse exatamente esse: constatar que eu guardava e que podia haver esperança. Nesse dia, ela chorou muito sentida, dizendo que há muito tempo reparava que eu me recordava até de sonhos dos quais ela mesma já havia se esquecido e que tinha muito medo, muito, de acreditar nisso. Certo dia, trouxe um sonho: ela andava por uma rua e viu uma menina bem pretinha, sozinha num canto, toda suja de barro e doce misturados, quase indistinguível no meio de cacarecos e lixo. Passou e pensou: que nojo. Depois parou, lembrou que essa era a expressão preferida de sua mãe, voltou e pegou a menina com toda a energia e disse: o que ela precisa é de um bom banho, de alguém que cuide dela e a deixe ser uma menina. Riu e disse: “Agora sei do que preciso: de alguém que cuide de mim e me ponha para viver”. E, então, rindo, disse, numa fala já modulada pela análise: “Bem, eu já sei como você diria: que eu preciso de alguém que me veja através de toda a minha inexistência e que continue me vendo mesmo quando eu mesma me perco de mim. E que, quando eu olho, está ali do mesmo jeito, sem se transformar”. Sem saber, ela me dava, tal como Winnicott, o roteiro central de meu lugar de analista: O vislumbre do bebê e da criança vendo o eu (si-mesmo) no rosto da mãe e, posteriormente, num espelho, proporcionam um modo de olhar a análise e a tarefa terapêutica. Psicoterapia não é fazer interpretações argutas e apropriadas; em geral, trata-se de devolver ao paciente, a longo prazo, aquilo que o paciente traz. É um derivado complexo do rosto que reflete o que há para ser visto. Essa é a forma pela qual me apraz pensar em meu trabalho, tendo em mente que, se eu o fizer suficientemente bem, o paciente descobrirá seu próprio si-mesmo e será capaz de existir e sentir-se real. (1967c/1975, p. 161) Um dia, passados bem uns quatro anos de análise, disse-me: “Eu ainda, às vezes, perco tudo. Nos fins de semana, o tempo se alarga, torna-se infinito e tudo fica irreal. Falando com você volto a mim. Mas nem sempre consigo. Imediatamente uma dúvida atravessa tudo e já não sei nada nem o que estou fazendo aqui. Se algo me tumultua, como no outro dia em que falei com meu pai, penso que nem adianta vir. Fica apenas o tumulto e não consigo nenhuma comunicação”. Respondi: “Sim, posso entender. Mas, vindo, uma outra coisa importante acontece. Você fica sabendo que, mesmo que não consiga contato, as condições para o contato estão asseguradas, seu lugar está aqui, guardado, quer você possa usá-lo ou não”.12 S. necessitou, sim, de modo absoluto, que eu a acompanhasse por todos os avanços e regressões de um processo de amadurecimento reiniciado, sem me assustar ou me sentir pessoalmente atingida pela sua “loucura”, sobrevivendo e cuidando de mim mesma e do setting de modo a deixar-lhe livres e protegidosos caminhos de constituição de si mesma de que necessitava. Era essencial que eu entendesse o que estava se passando, e permitisse que o amadurecimento tivesse seu curso, de modo a não apressar o processo com uma “urgência psiquiátrica” de curá-la (cf. 1989vk[1965]/1994, p. 99), tendo sempre em mente que sua “loucura” não era tanto a enfermidade, mas o primeiro passo na direção da saúde. O fato de eu acompanhá-la de perto em seus estados de ânimo, de não interpretar cada coisa, o que seria falar sobre ela, mas não com ela, de sobreviver ao seu desânimo e à desconfiança foi da maior importância. Ela precisava de alguém que a deixasse acontecer como pessoa; que permanecesse ali com a mesma atitude quando a loucura, primeiro, e a raiva, depois, tomassem conta da cena. Mas, simultaneamente, uma outra coisa essencial, silenciosa, estava ocorrendo e sendo constituída, e isto diz respeito à mãe-ambiente: a crença num mundo previsível, sempre passível de ser reencontrado. Depois de muito caminho andado e num momento em que S., mais integrada num eu, vivia agora um outro tipo de persecutoriedade − ou seja, sofria com os perigos que acompanham a integração num eu −, cometi uma falha de modo que, durante algum tempo, tivemos que retornar a padrões antigos de dependência. Ela havia conhecido um rapaz por quem, pela primeira vez na vida, se interessou vivamente, tecendo inclusive projetos de futuro, e que parecia gostar muito dela. Vários dados induziam a se pensar que ele era bastante estável emocionalmente; a relação ia indo bem e tudo levava a que pudesse haver um compromisso mais sério. Num dado momento, ele precisou viajar a serviço, para fora do país, por uns dez dias, e convidou-a. Ela mostrou-se entusiasmada e, inadvertidamente, também eu, entusiasmada com a possibilidade que se abria, manifestei aprovação. A viagem aconteceu e foi boa em muitos sentidos. Ela, no entanto, sentiu-se muito pequena e despreparada, perdendo o contato consigo mesma. Voltou desfeita, magoada primeiro e furiosa em seguida por eu tê-la deixado ir, sobrestimando a sua capacidade maturacional. “Você queria livrar-se de mim; estava louca para livrar-se de mim”, dizia ela. É difícil para o analista, depois de ter se aplicado muito num caso, cometer um erro que causa sofrimento ao paciente e põe várias conquistas a perder. Mesmo sabendo que, sobretudo em pacientes com esse tipo de problemática, são exatamente as falhas do analista os momentos de maior valia terapêutica, ainda assim se pensa que o erro talvez pudesse ter sido evitado. Tive algum consolo quando li, numa carta de Winnicott, que ele reconhecia ter a tendência a “comportar-se mal” nesse estágio em que a dependência se torna relativa. “É tão grande o alívio que sobrevém”, diz ele, “quando não é mais preciso ser tão artificialmente adaptativo, bem para além do que se faria na vida particular, que começo a morder a isca que o paciente oferece e me vejo falando de assuntos gerais e agindo como se o paciente houvesse repentinamente ficado bom” (1987b/1990, p. 158). Não me defendi em nenhum momento e disse-lhe que, de fato, eu devia ter percebido que ela ainda era muito pequena para sair assim pelo mundo. Disse-lhe também que eu entendia que estivesse tão furiosa comigo, pois esse abandono que tinha sentido a remetia a todos os abandonos que foram vividos ao longo da vida, mas que só agora, estando eu ali para escutar, ela podia queixar-se e ter muita raiva de todos eles. 6. Algumas implicações clínicas da questão da confiabilidade Como o protótipo do analista, na clínica winnicottiana, é a mãe suficientemente boa, será útil examinarmos o que a faz confiável. A confiabilidade materna, nos estágios de dependência absoluta, está relacionada a dois atributos conjugados da mãe: 1) a sua capacidade de, identificando-se com o bebê ou a criança, adaptar-se de modo absoluto às suas necessidades e 2) a capacidade de permanecer adulta e poder devotar- se ao bebê. A confiabilidade da mãe depende de que essas duas capacidades operem juntas.13 A capacidade da mãe de identificar-se com o bebê deve-se ao estado natural regredido de “preocupação materna primária”, que lhe permite saber, a cada momento, o que o bebê necessita. Essa capacidade não tem nada a ver com inteligência nem advém de algum conhecimento obtido em cursos ou livros: vem da sua saúde ou relativa saúde emocional, de sua própria experiência de ter sido um bebê, de ter sido cuidada de algum modo, de estar viva e ter imaginação. Se a mãe é do tipo que teme a regressão e não é capaz de pôr-se no lugar do bebê, ela tenderá a cuidar dele por via de conhecimentos intelectualmente adquiridos. Ela poderá prover o bebê de algumas coisas básicas, mas não entrará em comunicação com ele e não saberá o que de fato ele necessita num dado momento. Ela cuidará de seu bebê “como se cuida de bebês” e essa generalização tornará seu cuidado impessoal. Esse é tipicamente o caso da mãe que faz, mas não é. Ora, o mesmo vale para o analista. Sendo humano, ele já sentiu na pele o que é desamparo e o que é ser cuidado; é, sobretudo, a sua sensibilidade pessoal que o guia na compreensão das necessidades do paciente. O analista, contudo, não tem o benefício natural da preocupação materna primária além de não ter, como a mãe, vinte e quatro horas por dia para estar e conhecer o bebê. Pela sua tarefa, pelas condições especiais e especializadas que pode oferecer, talvez consiga fazer melhor do que fez a própria mãe do paciente, mas é preciso alguma humildade para saber, com Winnicott, que as habilidades do analista são toscas se comparadas com as da mãe suficientemente boa. Além disso, embora seja o paciente quem constantemente ensina o analista, que é capaz de aprender, sobre suas próprias necessidades, este, assinala Winnicott, “deveria conhecer teoricamente os aspectos referentes aos traços mais profundos e centrais da personalidade, pois, do contrário, não poderá reconhecer as novas exigências impostas à sua compreensão e técnica, e fazer-lhes frente” (1971va[1966]/1994, p. 134). Ademais, quando lidamos com pacientes que regridem à dependência e estes, em busca da cura, enlouquecem cada vez mais, é preciso alguma compreensão do que está se passando para poder suportar as tensões que são pertinentes a essa tarefa. Por tudo isso, em seu trabalho especializado, o analista deve poder contar com a orientação que lhe vem da teoria do amadurecimento pessoal. Mas, seguindo a crítica que Winnicott faz ao uso da interpretação na psicanálise tradicional, a teoria não deve ser um instrumento que se interpõe entre o analista e o paciente; ela não existe para ser aplicada, mas tão somente para iluminar o fenômeno e ajudar a vê-lo. É exemplar o modo como Winnicott descreve a participação da teoria em seu trabalho clínico: “A única companhia que tenho, ao explorar o território desconhecido de um novo caso, é a teoria que levo comigo e que se tem tornado parte de mim e em relação à qual sequer tenho que pensar de maneira deliberada” (1971b/1984, p. 6; os itálicos são meus). Além de pôr-se na pele do bebê, é preciso também que a mãe permaneça adulta para poder cuidar dele de forma confiável. O bebê precisa de uma mãe capaz de acreditar que ele é um processo de amadurecimento em curso e que, portanto, não é ela, nem o seu controle da situação, que darão vida a ele. Sua importância limita-se à função de facilitadora de um processo de amadurecimento que pertence ao bebê. A mãe é mera parteira da natureza humana. Seu cuidado é confiável na medida em que, usando toda a sua pessoalidade para cuidar do bebê, não põe a sua pessoa, enquanto subjetividade, no centro da cena. Pela capacidade de ultrapassar suas próprias necessidades, os cuidados maternos são orientados pelas necessidades do bebê e não pelas necessidades da mãe, mesmo que se trate da necessidade de ser boa, ou muito boa. Muitas vezes, o cuidado que a mãe fornece excede a necessidade do bebê e este se vê compelido a ter aquelas necessidades que a mãe quer suprir. Quem cuida de quem? − essa é aquestão. Se a mãe é confiável, ela: 1) previne fatos imprevisíveis: cuida para que o ambiente permaneça regular, monótono, consistente, previsível enfim, permanecendo consistentemente ela mesma, segurando a situação no tempo, diante das inúmeras variações do bebê. 2) Abdica, portanto, de ser criativa quando isto interfere na regularidade dos cuidados e contenta-se em ser monótona e repetitiva deixando que o bebê exerça a criatividade. É claro que é preciso um bocado de criatividade cotidiana para proteger o bebê do imprevisível, mas essa criatividade deve ser exercida nos “bastidores” e não deve, de modo algum, sobrepor-se ou antecipar-se à do bebê. 3) Lida com este como o ser humano que ele já é, mas tendo sempre em mente que ele ainda não é um eu. O bebê não sabe nada acerca da existência da mãe, do mundo ou dele mesmo e, no entanto, é imediatamente afetado por qualquer variação do ambiente. 4) Jamais deixa de ter presente a extrema imaturidade do bebê e seu estado de dependência absoluta; de modo que não requisita do bebê mais do que ele pode dar em termos de amadurecimento; não apela, por exemplo, para sua compreensão em termos mentais. Ao contrário, ela o vê sempre como um ser que está permanentemente à beira de sofrer uma agonia impensável. 5) Sabe que o bebê não tem nenhuma consciência da existência do ambiente e muito menos do sucesso da adaptação da mãe, de modo que ela não tem nenhuma expectativa quanto ao reconhecimento do trabalho que ele dá. 6) Não apressa o processo do bebê e não impede o retorno a estágios já ultrapassados quando essa é a sua necessidade. É muito difícil, sobretudo em pacientes adultos, mantermos firme a ideia de que há, ali, um bebê a ser cuidado. É verdade que o paciente só é capaz de regredir à dependência porque alguma estrutura de eu permite-lhe tolerar a regressão. Há, sem dúvida, uma parte um pouco mais desenvolvida junto à parte doente de sua personalidade. Mas, adverte Winnicott, a porção enferma é tão enferma quanto possível e é com a parte enferma que o analista trata. O analista não pode, de modo algum, descuidar da adaptação às necessidades pelo fato de saber que o paciente tem uma parte mais sadia. Quando digo a S. que não há nada a fazer em termos de aumentar a confiança a não ser criar as condições para que a confiança brote, estou dizendo a mim mesma que a única coisa a ser feita é, silenciosamente, dia após dia, estar lá, no horário previsto, “viva e respirando”, com aproximadamente a mesma disponibilidade, ou seja, sem que nenhuma mudança no ambiente ou em meu estado de ânimo a surpreenda, obrigando- a a reagir. Não basta exercer bem a função de mãe-objeto e tentar acompanhá-la em suas idas e vindas. O que de principal tento propiciar é aquilo que silenciosamente permanece e se mantém: um mundo, um lugar confiável e seguro onde o bebê possa crescer. Creio que é a essa questão que Winnicott se refere quando diz que, em certos casos, só nos resta esperar, esperar e esperar. Naturalmente, há uma qualidade nessa espera e uma delas é não tentar “curar” o paciente. Se for esse o intuito do analista, o paciente saberá imediatamente que tememos o seu estado e não o seguramos do modo como ele está. O inadmis sível, em termos da confiabilidade, é não trair o pacto silencioso da dependência: permitimos ao paciente que ele mostre a sua imaturidade e, de repente, flagramos a dependência ao modo de uma infantilidade a ser superada. Ou, no momento em que o bebê do paciente aparece para mostrar a dor e o medo, falamos com o adulto que ali está a nossa frente, apontando para dados da realidade. O nome disso, para o paciente, é traição. Mesmo que o analista cuide para que a confiabilidade ambiental não falhe, ele falhará, sim, pelo mero fato de sua humanidade. A confiabilidade é humana e não mecanicamente perfeita. A perfeição pertence ao domínio das máquinas. Confiabilidade não significa ser imune ao erro; ao contrário, exatamente porque falível, a pessoa humana pode então ser confiável. O fato é que mães e analistas permanentemente falham em sua adaptação às necessidades do bebê ou paciente. O problema não é esse. O problema consiste no reconhecimento e atitude do ambiente diante da falha. Na verdade, o bebê ou paciente precisa de nossos erros (desde que, naturalmente, não sejam erros grosseiros que envolvam decepções insuperáveis). Por que nossos erros podem ser úteis no contexto de análise? Em primeiro lugar porque, quando as falhas são ocasionais e não chegam a constituir um padrão e a mãe ou analista estão genuinamente preocupados com o indivíduo, elas são corrigidas e, nesse caso, a par do trauma relativo, algo de muito importante acontece. As falhas às quais se dá uma solução imediata acabam sendo comunicadas e é desse modo que o bebê ou paciente acaba tomando conhecimento do sucesso da adaptação. Segundo Winnicott, a primeira organização do si-mesmo é silenciosa e “deriva da experiência de ameaças de aniquilação que não chegam a se cumprir, e das quais, repetidamente, o bebê se recupera” (1958n/2000, pp. 403-404). A essa formulação (cf. 1993h[1956]/1993) vem juntar-se um outro argumento, mais tardio, relativo à teoria das psicoses e das agonias impensáveis que habitam o indivíduo. As agonias impensáveis não podem pertencer ao passado a menos que possam ser experienciadas pela primeira vez no presente. Essa é a razão que fundamenta a necessidade de regressão à dependência, de um retorno a um momento anterior ao colapso ou, como diz Winnicott, anterior à perda da esperança. A necessidade específica do paciente é que, desta vez, a falha aconteça − e ela sempre acontece −, mas possa agora ser experienciada, pela primeira vez, e percebida, com a ajuda do analista, como falha do ambiente. Isso só pode acontecer em condições especiais como as de um setting analítico no qual, em virtude de se ter construído um alto grau de confiabilidade, o paciente se permite, com o suporte do analista, a loucura que só é permitida aos bebês.14 Podem se passar anos até que o paciente se aproprie da confiabilidade ambiental como sendo um traço do si-mesmo; até que se instaure, nele, o sentimento de previsibilidade; até que ele se torne seguro da realidade e da consistência do si-mesmo, ao mesmo tempo em que se torna capaz de confiar na existência e permanência do mundo. Às vezes, a espera produz alguns resultados: – “Saio daqui mais forte, mas, depois, é como uma criança que vai longe, não vê mais a mãe e precisa voltar para saber quem é e onde está. Esse processo é muito lento e as dúvidas voltam sempre. Mas eu agora, às vezes, quando sinto tudo mais real, falo com você, no meu quarto. Fico ensaiando de ligar pra você e te dizer umas verdades, dizer que não venho mais, que não preciso de você, que você está velha, ultrapassada e é boba. Faço isso na imaginação, como um treino. Depois, passa a raiva e eu acho graça. É como criança. Não pensei que seria capaz de contar isso a você. Às vezes, chego a pensar que vai ter um dia em que vou ficar muito brava mesmo e sou capaz de te xingar na cara.” – “Sim, eu sei. Quando você crescer mais um pouquinho, ficará cada vez mais exigente e brava comigo. E reclamará das coisas que não tem. Mas creio que é assim mesmo, é desse modo que uma criança comunica à mãe o que lhe faz falta. Mas isso depende, naturalmente, de a criança acreditar que a mãe a escutará, que não ficará exasperada e não a humilhará por isso.” – “Sim, tudo depende da crença e eu sei que ainda não tenho crença. No domingo, eu estava completamente desorientada e fiquei um tempo no meu quarto, sentada e dizia: Aquela tonta pensa que me engana. Se soubesse de fato o que eu passo, não me largaria aqui, deste jeito. (ri) Exatamente como a criança que espera a mãe.” – “Claro, exatamente como criança. Você pode, agora, se queixar de um modo que nunca pôde antes, quando era de fato uma criança. Você nunca pôde dizer a sua mãe o quanto precisava dela.” – “Ah, não, ela não escutaria e, se escutasse, não suportaria. Ela nunca nos viu. Tinha uma amargura que tomavaconta de tudo e nós, os filhos, éramos um peso a mais em sua vida.” – “Para não ser um peso, um estorvo, para escapar do horror de não ser vista, você fez tudo para não existir, para tornar-se um nada, algo inconsistente que mal aparece. Tentou ainda fazer-se autossuficiente para nunca mais precisar de alguém. Como não havia esperança nenhuma de que a escutassem, você perdeu muito cedo contato com sua necessidade. É como se não precisasse de nada.” – “É, mas agora pode ser que eu precise cada vez mais. Pode ser que eu fique cada vez mais exigente.” Referências15 Dias, E. O. (1997). A regressão à dependência e o uso terapêutico da falha do analista. In J. Outeiral & S. Abadi (Orgs.), Donald Winnicott na América Latina. Rio de Janeiro: Revinter. Pessanha, J. G. (1999). Sabedoria do nunca. São Paulo: Ateliê Editorial. Winnicott, D. W. (1975). O brincar e a realidade. Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1971a. Título original: Playing and Reality) Winnicott, D. W. (1975). O papel de espelho da mãe e da família no desenvolvimento infantil. In D. Winnicott (1975/1971a), O brincar e a realidade. Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1967c) Winnicott, D. W. (1983). 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A experiência mãe-bebê de mutualidade. In D. Winnicott (1994/1989a), Explorações psicanalíticas. Porto Alegre: Artes Médicas. (Trabalho original publicado em 1970b) Winnicott, D. W. (1994). Explorações psicanalíticas. Porto Alegre: Artes Médicas. (Trabalho original publicado em 1989a. Título original: Psychoanalytic Explorations) Winnicott, D. W. (1994). O pensar e a formação de símbolos. In D. Winnicott (1994/1989a), Explorações psicanalíticas. Porto Alegre: Artes Médicas. (Trabalho original publicado em 1989vq) Winnicott, D. W. (1994). A psicologia da loucura: uma contribuição da psicanálise. In D. Winnicott (1994/1989a), Explorações psicanalíticas. Porto Alegre: Artes Médicas. (Trabalho original publicado em 1989vk[1965]) Winnicott, D. W. (1994). Resenha de Memories, Dreams, Reflections (C. J. Jung). In D. Winnicott (1994/1989a), Explorações psicanalíticas. Porto Alegre: Artes Médicas. (Trabalho original publicado em 1964h) Winnicott, D. W. (2000). Formas clínicas da transferência. In D. Winnicott (2000/1958a), Textos selecionados: da pediatria à psicanálise. Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1956a) Winnicott, D. W. (2000). A mente e sua relação com o psique-soma. In D. Winnicott (2000/1958a), Textos selecionados: da pediatria à psicanálise. Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1954a[1949] Winnicott, D. W. (2000). Preocupação materna primária. In D. Winnicott (2000/1958a), Textos selecionados: da pediatria à psicanálise. Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1958n) Winnicott, D. W. (2000). Textos selecionados: da pediatria à psicanálise (Davy Bogomoletz, trad.). Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1958a. Título original: Collected Papers: Through Paediatrics to Psychoanalysis) 1. Este texto, originalmente publicado na revista Natureza humana, vol. 1, n. 2, 1999, foi corrigido e revisado para a presente edição. 2 . No estágio em que o bebê passa da dependência absoluta para a dependência relativa da mãe, por exemplo, a questão da confiabilidade ambiental torna-se crucial. Caberá à mãe falhar ao bebê sem, no entanto, falhar na confiabilidade. Esse tema, da maior importância, não será tratado neste artigo. 3 . Isso não significa que, mesmo tendo tido um bom começo, o indivíduo, mais tarde, sendo exposto a uma situação traumática, para além da sua capacidade de suportá-la naquele momento, não possa desenvolver uma psicose. De qualquer modo, esta será diferente das psicoses que se desenvolvem nos momentos iniciais da vida, anteriores à integração num eu unitário. Uma coisa é não ter alcançado uma conquista do amadurecimento. Outra coisa é perdê-la. 4 . Circunscrevendo a realidade ao princípio de realidade, oposto ao princípio do prazer, a psicanálise tradicional não chegou a considerar a necessidade que todo indivíduo tem de sentir-se real (feeling of real)e de alcançar o sentido de realidade (sense of real). Em Winnicott, o primeiro sentido de realidade é o do mundo subjetivo; é apenas quando este pode ser experimentado, no início da vida, que o sentido da externalidade do mundo compartilhado pode, mais tarde, fornecer ao indivíduo o senso de ser real. Sentir-se real implica ser capaz de relacionar-se com o mundo objetivamente percebido sem perder a criatividade originária. Desse modo, mesmo o sentido da realidade objetivamente percebida difere, em parte, do que se chama, na psicanálise freudiana, de princípio de realidade. Em várias passagens de sua obra, Winnicott assinala essa crucial diferença. Num texto escrito em1961, ele diz que, enquanto o sentido do real depende de a espontaneidade e a criatividade originária serem preservadas na área de ilusão de onipotência, o princípio de realidade é o “arqui-inimigo da espontaneidade, criatividade e do sentido de Real” (1984i[1961]/1987, p. 241). 5 . Parece-me plausível pensar que, quando M. Klein fala de objetos maus e persecutórios, e Bion refere-se aos objetos bizarros, eles estão se referindo ao fenômeno que corresponde, em Winnicott, à irrupção de uma amostra da realidade externa para cujo sentido o bebê ainda não está preparado. Na teoria winnicottiana, o que traumatiza o bebê não é algo que possa ser valorado como bom ou mau no sentido configurado por Klein, por exemplo. Uma amamentação instintualmente satisfatória pode violar e traumatizar o bebê, se for realizada de forma impessoal ou se for extemporânea à sua necessidade. Manifestações primitivas de persecutoriedade, por precoces que sejam, não podem ser simplesmente debitadas na conta de uma destrutividade inata, relativa à pulsão de morte, ou à lei de talião, sem levar em conta o comportamento do ambiente; elas podem ocorrer se o mundo e os objetos não foram apresentados ao bebê de modo a que este pudesse criá-los, invadindo o seu mundo antes de ele estar preparado para abarcar o sentido de externalidade. 6 . Haver “duas” mães não se deve a que a mãe tenha sido cindida pela destrutividade do bebê. O que ocorre é que ela ainda não foi, nos primeiros estágios, integrada numa só. 7 . Um bebê que não sente segurança ambiental toma para si, por via de um funcionamento mental precocemente ativado, os encargos que são da natureza e da mãe. Cf. Winnicott 1954a[1949]/2000. Num texto de 1958, Winnicott diz que, embora muitas vezes, a falta de tensão possa produzir ansiedade, “a integração da personalidade no sentido do tempo permite esperar pelo retorno natural da tensão do id” (1958g/1983, p. 33). 8 . Contando a sua experiência terapêutica com um garoto de 15 anos (que havia perdido o pai aos 11 anos e reagia tardiamente à perda), Winnicott diz que, na primeira entrevista, muito trabalho significativo foi realizado através do jogo de rabiscos. Depois de duas horas, afirma Winnicott, “nós dois já tínhamos bastante. Provavelmente, ambos sabíamos que muito ficava por fazer, mas nenhum disse nada ao outro. Isto teve o efeito de Patrick adquirir confiança em mim [...]” (1965f/1994, p. 271; os itálicos são meus). Ou seja, se a comunicação havia sido realizada, não era preciso desmerecê-la, garantindo tudo em palavras. 9 . O mesmo acontece com o personagem Z, do conto “Deslocamento” de Juliano Pessanha. Perambulando, informe, num aquém da existência, ele diz , num certo momento, que “sua esperança era a de atingir uma tal realidade que não apenas um pedestre se desviasse do seu corpo na agitação de uma calçada mas que alguém o sentisse mesmo quando ele estivesse parado dentro de alguma sala” (Pessanha, 1999, p. 25). 10 . SegundoWinnicott, foi Margaret Little, analista da Sociedade Britânica de Psicanálise e sua paciente, quem lhe sugeriu essa expressão. Ele a usa para nomear o modo pelo qual o paciente organiza a situação na relação analítica de maneira a chegar, ao menos de modo aproximado, à “loucura original”. Cf. Winnicott, 1989vk[1965]/1994, p. 98 e 1989d[1965]/1994, p. 106. 11. Se há confiabilidade, os pacientes insistem até que o analista compreenda a sua necessidade. Levei tempo para entender que era essencial para S. olhar-me diretamente nos olhos, ver-se e ser vista por mim. Depois disso, sobretudo com pacientes que necessitam regredir à dependência, nunca mais usei o divã, pois me dei conta que, além da necessidade de se verem em nós e de serem vistos, se sou capaz, pela confiabilidade, de tornar-me objeto subjetivo para os pacientes, eles não precisam deitar-se no divã para experimentar a área de ilusão de onipotência. Em geral, são pessoas mais amadurecidas que gostam do divã; elas querem deitar-se com a finalidade de relaxar e de se perderem melhor em suas fantasias. 12. No extremo de um caso fronteiriço, diz Winnicott, “tudo se reduz, no final, ao que tentei descrever como a sobrevivência do analista; só que podem se passar anos até que o paciente se torne confiante o suficiente quanto à transferência para ser capaz de correr o risco de um relacionamento, no qual o analista está absolutamente desprotegido” (1987b/1990, p.157). Em outro texto, ele esclarece o que ocorre quanto o analista é defendido: “Se ele [analista] se defende, o paciente perde a chance de zangar-se com uma falha passada justamente no momento em que a raiva tornou-se possível pela primeira vez” (1956a/2000, p. 397). 13. Se estivéssemos examinando também os estágios em que a dependência se torna relativa, teríamos que falar da capacidade da mãe em separar-se gradual mente do bebê à medida que esta for a exigência da tendência maturacional. 14. Para maiores detalhes sobre a questão da falha do analista, cf. Dias, E. O. 1997 “A regressão à dependência e o uso terapêutico da falha do analista”, reeditado neste livro, pp. 69-87. 15 . A citação das obras de Winnicott neste e nos demais artigos deste livro, inclu sive as que se encontram no corpo do texto, segue a bibliografia compilada pelo Prof. Dr. Knud Hjulmand, do Departamento de Psicologia da Universidade de Copenhagen, cujo critério é o ano da primeira publicação do artigo ou do livro do autor. No corpo do texto, após a menção do ano de publicação, no original, cito a página em que citação pode ser encontrada nas edições brasileiras. A bibliografia feita pelo Prof. Dr. Hjulmand foi reproduzida em Natureza humana – Revista de Filosofia e Psicanálise, vol. 1, n. 2, 1999. Consta, também, no seguinte endereço da Internet: www.winnicottnaturezahumana.com.br. Sempre que possível, comparei as traduções brasileiras com os originais e, quando necessário, procedi a correções que, entretanto, não foram explicitamente indicadas. 2 O “brinquedo divino”: a ilusão em Winnicott1 “O tédio... é talvez, no fundo, a insatisfação da alma íntima por não lhe termos dado uma crença, a desolação da criança triste que intimamente somos, por não lhe termos comprado o brinquedo divino. (...) O tédio é uma falta de mitologia. A quem não tem crenças, até a dúvida é impossível, até o cepticismo não tem forças para desconfiar. Sim: o tédio é isso: a perda, pela alma, da sua capacidade de se iludir, a falta, no pensamento, da escada inexistente por onde se sobe, sólido, à verdade.” Bernardo Soares, Livro do desassossego “Essa ilusão (...) pode ser a base essencial de toda a verdadeira objetividade (...), a base não apenas da percepção interna, mas também de toda a percepção verdadeira do meio ambiente.” D. W. Winnicott 1. Introdução Há um conceito de ilusão em Winnicott que, longe de ter o sentido de erro, engano ou desfiguramento da realidade – tal como em toda a tradição ocidental, incluída aí a psicanálise freudiana que a toma sob o signo do infantilismo –, é um elemento positivo, essencial na constituição do indivíduo, e fundamento da capacidade de estabelecer relações significativas com a realidade externa. Trata-se da “ilusão de onipotência”, que caracteriza a fase de dependência absoluta de um bebê bem cuidado: quando a mãe responde de maneira adaptativa ao gesto espontâneo – em que o bebê busca algo em algum lugar –,ele sente como se o seio e o leite fossem o resultado de seu próprio gesto e faz a experiência de criar aquilo que encontra. A mãe sabe que aquilo que o bebê criou, de acordo com a necessidade, foi na verdade encontrado, mas ela tem o compromisso de jamais lhe perguntar se ele encontrou ou criou o objeto. O paradoxo é inerente, diz Winnicott; não está aí para ser resolvido, mas para ser sustentado e suportado. É, portanto, por sua adaptação absoluta às necessidades do bebê que a mãe realiza o que talvez seja a sua mais importante tarefa: a de introduzir o bebê na ilusão de que é ele o criador o mundo de que necessita. Pela experiência contínua da confiabilidade ambiental, que protege a continuidade de ser da criança e preserva o mundo subjetivo em que ela habita, a ilusão de onipotência do início perde gradualmente o teor onipotente, característico da fase de dependência absoluta, e se transforma, aos poucos, numa crença. Referindo-se, por exemplo, à etapa em que o bebê alcança uma identidade unitária, Winnicott afirma que “o bebê adquire um interior e um exterior; a confiabilidade do meio ambiente passa então a ser uma crença, uma introjeção baseada na experiência de confiabilidade (humana e não mecanicamente perfeita)” (1968d/1988, p. 86). De que crença se trata? Não de uma crença nisto ou naquilo, mas na capacidade de acreditar em... “Eu me apego a essa frase feia”, diz Winnicott, “incompleta, acreditar em...” (1963d/1988, p. 89). A frase, naturalmente, tende a ser completada com o tempo, mas o processo de completá-la é secundário, pois o que importa, e do que todo o resto depende, é daquilo que está na base, a simples capacidade de acreditar em... Bem mais tarde, esse bebê, que recebeu as condições necessárias para começar a existir como pessoa real, crescerá e saberá “quão precário era tudo!” (1988/1990, p. 179). O atendimento de bebês e suas mães, e o estudo – mediante observação e cuidado, no setting analítico – das várias formas de impossibilidade de viver dos psicóticos, mostraram a Winnicott que é através dessa crença fundamental que o homem comum e saudável se sente real, habita num mundo real e pode relacionar-se com a realidade externa, sem perda do sentido pessoal da existência. Se a dificuldade, nas psicoses, é o contato com a realidade, isto se deve não a uma denegação ou rompimento com uma certa porção intolerável da realidade – o que seria dar por suposto que a realidade enquanto tal teria sido encontrada, e depois amputada pela censura –, mas exatamente à falta da experiência de ilusão de onipotência. É esta que fornece as bases para a capacidade de relacionar-se com a realidade objetivamente percebida, sem ser por ela aniquilado. Deparamo-nos, aqui, com a ideia – insólita eu diria, ao menos no que se refere à psicanálise tradicional –, de que, para Winnicott, não é a presença, mas exatamente a ausência de capacidade para a ilusão o que, em última análise, está na base das patologias psicóticas. 2. Os sentidos de realidade e o sentimento de real (feeling of real) Qualquer consideração sobre o conceito de ilusão remete ao conceito de realidade nele implicado. Uma análise dessa temática exigiria um tratamento filosófico que, em rigor, escapa à minha competência e à alçada deste artigo. Pode-se dizer, contudo, que a questão da realidade concerne a todos os seres humanos, estando nela envolvidos, de maneira crucial, os bebês e os psicóticos e, num outro sentido, nem sempre tão crucial, também os filósofos. No que se refere à teoria winnicottiana: a) há não apenas um, mas vários sentidos de realidade; na saúde, esses vários sentidos vão sendo constituídos no decorrer do processo de amadurecimento, tendo na base, como condição sine qua non, o sentido subjetivo da realidade; b) o que rege a existência do ser humano, tanto no início da vida como no decorrer dela, não é o princípio de prazer, mas a necessidade de ser, de continuar a ser, de sentir-se real e de poder habitar num mundo real. Segundo Winnicott, o sense of real e o feeling of real não advêm do que Freud chamou de princípio de realidade, entendida esta no sentido da realidade que é representável, perceptível, visualizável, dizível. Ao contrário, o chamado “princípio de realidade”, que, na redefinição de Winnicott, “é o fato da existência do mundo, independentemente de o bebê tê-lo criado ou não (1986h[1970]/1989, p. 32), é, para este autor, “o arquiinimigo da espontaneidade, da criatividade e do sentido de real” (1984i/1987, p. 241). Sentir-se real, sentir que o mundo é real e poder transitar entre um e outro dos sentidos de realidade – a realidade do mundo subjetivo, a terceira área da experiência (transicionalidade) e a realidade do mundo objetivamente percebido – são possibilidades que derivam do fato de o indivíduo ter iniciado a vida fazendo a experiência do primeiro e fundamental sentido de realidade: a do mundo subjetivamente concebido, através da ilusão de onipotência. Um homem de 40 anos, que não teve constituída a capacidade para a ilusão básica, e cuja total desconfiança corrói qualquer realidade, disse-me: “Fui socializado antes de me tornar uma pessoa. Sei muito bem o que se espera de mim e cumpro meus deveres com exatidão, mas nada, jamais, fez qualquer sentido. Não sei por que vivo ou continuo vivendo”. Este homem não tem problemas com o princípio de realidade, mas padece da falta do sentimento de real. Existem pessoas, assinala Winnicott, para quem “a possibilidade de serem chamados de doidos, de alucinados, faz com que se aferrem à sanidade; agarram-se a uma objetividade que se poderia denominar realidade compartilhada (...)” (1986h[1970]/1989, p. 41). Agarram-se a ela devido à permanente ameaça de não saberem de si, de se sentirem irreais; não tendo nenhuma relação direta consigo mesmos, colam-se às regras e aos padrões da realidade externa como um roteiro ou script para a vida, um parâmetro do que são ou do que fazem. Mas, no sentido humano, “objetividade é um termo relativo, porque aquilo que é objetivamente percebido é, por definição, subjetivamente concebido” (1971g/1975, p. 96). Não há nem pode haver objetividade absoluta no que se refere às questões humanas. Como a capacidade para a percepção da realidade objetiva, enquanto externa e separada do eu, está fundada no senso e no sentimento de real fornecidos pela morada no mundo subjetivo do início, toda objetividade é, ao mesmo tempo, subjetividade. Se assim não fosse, cairíamos numa espécie de fisicalismo inteiramente desprovido de sentido, além de inóspito, presos a uma perceptividade inteiramente objetivada e, nesse sentido, paradoxalmente irreal, como é o caso, por exemplo, da moça esquizofrênica, Renée, tratada por M. Sechehaye. No relato de seu sentimento de irrealidade, Renée descrevia o modo como via uma amiga: “Eu a via tal qual era e, apesar disso, já não era ela” (Sechehaye, 1988, p. 122). Ou seja, no nível objetivo, Renée reconhecia a amiga, mas, ao mesmo tempo, esta tornara-se estranha. A percepção, como capacidade mental, permanece intacta, mas tudo fica permeado por uma total estranheza; não se perde a objetividade, mas a familiaridade, a intimidade, o sentido. Ilustrando ainda o fato de que é apenas dentro de um mundo, como um todo de significações, que as pessoas e as coisas remetem umas às outras e adquirem sentido humano, Renée diz em outro trecho do seu relato: “Os objetos e pessoas, com seus gestos e seus ruídos, tornavam-se artificiais, separados uns dos outros, sem vida, irreais” (Sechehaye, 1988, p. 133). Esse é o motivo pelo qual Winnicott afirma, como se pode ver na epígrafe a este trabalho, que a ilusão inicial é a base essencial para toda a verdadeira objetividade, o que aqui significa: para a objetividade humana. No início da vida, o bebê não tem nenhum sentido de real constituído e começa a viver num mundo subjetivamente real. Com o tempo, pela própria tendência ao amadurecimento, ele irá constituir um outro sentido de realidade, o da externalidade, mas isto só será possível sobre a base da realidade domundo subjetivo: De início, o relacionamento é com um objeto subjetivo e é uma longa jornada daqui até o desenvolvimento e estabelecimento da capacidade de se relacionar com um objeto que é percebido objetivamente e que tem a possibilidade de ter uma existência separada, uma existência exterior ao controle onipotente do indivíduo. (1963c/1988, p. 202) Nenhuma objetividade, por concreta que seja, é capaz de fornecer ao indivíduo uma crença na realidade das coisas e do si-mesmo que tenha a mesma qualidade e consistência daquela que deriva das experiências na área de ilusão de onipotência e que é instaurada anteriormente à aquisição da consciência da existência externa de objetos e do mundo. A crença na realidade é condição de possibilidade para a posterior constatação intelectual da existência da realidade externa. Mas essa constatação jamais substitui a crença básica. Aplicando Winnicott às palavras do poeta que estão transcritas na epígrafe deste estudo, pode-se dizer que é a experiência de ilusão de onipotência, no início da vida, que provê o indivíduo, “da escada inexistente por onde se sobe, sólido, à verdade”. 3. A área de ilusão de onipotência A questão da ilusão básica é frequentemente associada às experiências da transicionalidade, tema pelo qual Winnicott tornou-se conhecido. Não resta dúvida que essas experiências pertencem à área de ilusão e que os fenômenos transicionais – o brincar, o simbolizar e as atividades culturais – derivam dessa área de ilusão básica; no decorrer do amadurecimento, eles constituirão a chamada “terceira área de experiência”, que, aliás, quando há saúde, é o lugar em que habitualmente vivemos, para poder descansar da eterna tarefa de separar o que é objetivo do que é subjetivamente concebido. Contudo, da perspectiva da totalidade da obra winnicottiana, deve-se assinalar que não apenas as experiências de ilusão de onipotência começam muito antes de os fenômenos da transicionalidade começarem a acontecer e de a capacidade para simbolizar e brincar se estabelecerem como capacidades do indivíduo, como são condição de possibilidade destas. Winnicott explicita esse ponto quando, descrevendo as conquistas iniciais, alude “aos passos iniciais do bebê nas relações objetais que levam à capacidade de adotar objetos simbólicos e à existência de uma área entre o bebê e as pessoas, na qual o brincar é significativo” (1996c[1966]/1997, p. 192; os itálicos são meus). Já no início da vida, sobretudo durante os estados excitados da amamentação, cabe à mãe suficientemente boa a tarefa de introduzir e manter o bebê, durante o tempo adequado, num mundo subjetivo em que este faz a experiência da ilusão de onipotência.2 Essa ilusão é necessária, diz o autor, pois “toda criança precisa tornar-se capaz de criar o mundo (a técnica adaptativa da mãe faz com que isso seja sentido como um fato); caso contrário, o mundo não terá significado” (1984b/1987, p. 116). A mãe é capaz dessa “técnica” em virtude de sua capacidade de regredir até o estado primitivo do bebê e de identificar-se com ele. Isso se dá, sobretudo, devido ao seu estado natural de “preocupação materna primária”, relacionado à gravidez. Os cuidados maternos que mantêm o bebê na área da ilusão de onipotência estão direcionados, sobretudo, no sentido de evitar que o bebê seja surpreendido com um sentido de realidade para o qual ainda não está preparado. A mãe protege o bebê da irrupção de qualquer amostra da realidade externa, incompreensível para ele, e impossível de ser abarcada no âmbito de sua onipotência. Devido a sua extrema imaturidade, o bebê só pode fazer experiências, sentidas como reais, no único sentido de realidade para o qual está preparado: a realidade do que é subjetivo. No mundo subjetivo, tudo o que chega ao bebê deve ter o caráter de objeto subjetivo, ou seja, como resposta ao seu movimento, ele encontra o objeto de tal modo que tem o sentimento de ter criado o que precisa, no momento em que precisa. O objeto chega ao bebê no momento exato em que a necessidade aponta e é do tamanho exato da sua possibilidade de receber e assimilar como parte dele, naquele preciso instante. Em suma, os objetos subjetivos são de tal natureza que o bebê não é afrontado com algo que ele não pode abarcar na experiência: eles não surpreendem, não causam sobressaltos, isto é, não são extemporâneos no sentido de imprevisíveis. Sua forma de presença é tal que não denuncia o caráter externo de sua existência e, desse modo, eles não extrapolam o âmbito da experiência subjetiva do bebê. Por tudo isso, o objeto subjetivo é confiável e, nesse sentido, real. É também esse o sentido da “onipotência” na expressão ilusão de onipotência. Como se vê, o bebê faz, no mundo subjetivo, a experiência de um controle total sobre os objetos. Do ponto de vista dele (que nem existe ainda como um eu, para poder ter um ponto de vista), trata-se de um mundo mágico, onde as exigências do mundo objetivo ainda não fizeram a sua inscrição. O seio aparece quando a fome aponta, e desaparece quando a tensão cessa. Mas, note-se: o fato de o mundo subjetivo ser mágico não quer dizer que ele é regido pelo princípio do prazer; ilusão de onipotência não significa a satisfação dos desejos do bebê, mesmo porque este não tem ainda maturidade suficiente para algo tão sofisticado quanto desejos, que são mais próprios de um eu já integrado. O mundo subjetivo é mágico porque a mãe, por identificar-se com seu bebê, adapta-se ao tempo e à capacidade dele, reconhece as suas necessidades e responde a elas, de um modo que só é possível para um ser humano vivo, que entra em contato íntimo com sua criança e que se comunica com ela num nível pré-verbal, pré-representacional e pré-simbólico. O que está em pauta, nesse momento inicial, na relação mãe-bebê, não é o prazer, mas a qualidade da presença e da comunicação que possibilita experiências reais. Quando as condições de apoio de ego são satisfatórias, diz Winnicott, “os impulsos instintivos, quer satisfeitos ou frustrados, tornam-se experiências do indivíduo” (1965vd/1988, p. 217). Protegido no mundo subjetivo, o bebê faz inúmeras experiências na área de ilusão de onipotência e são essas experiências que possibilitam a integração gradual das várias “dissociações”, inerentes ao estado não- integrado. Mais: permitem “curar” a cisão básica, da qual falarei adiante, própria à natureza humana, que não pode ser extinguida, mas para a qual podem, gradualmente, ser construídas as pontes que ligam o mundo subjetivamente concebido ao mundo objetivamente percebido. A seu tempo, o bebê terá que aceitar o fato da existência externa do mundo, sobre o qual ele não terá controle, e esse processo de desilusão é fundamental. Segundo Winnicott, é inteiramente errado pensar que a aquisição do sentido de realidade, pela criança, depende da insistência da mãe quanto à natureza externa e objetiva das coisas do mundo externo. Somente após uma bem instalada capacidade para a ilusão, é possível esperar que, aos poucos, a criança seja capaz de aceitar a existência independente do mundo externo e de assimilar as desilusões: “A adaptação ao princípio de realidade deriva espontaneamente da experiência de onipotência dentro da área que faz parte do relacionamento com objetos subjetivos” (1965j/1988, p. 164). Numa carta a Meltzer, de 1966, Winnicott escreve: “É verdade que as pessoas passam a vida sustentando o poste onde estão apoiadas, mas, em certo ponto da fase inicial, tem de existir um poste que se mantenha por conta própria, do contrário, não há introjeção de confiança” (1987b/1990, p. 137). Há uma tendência bastante geral a se pensar que, na teoria winni cottiana, tal como no senso comum, a desilusão é um processo de quebra da ilusão, mas isso não é correto. Segundo o autor, o que o bebê deixa para trás ao amadurecer não é a ilusão básica, que permanece, mas a ilusão de onipotência. Com o tempo, surgirá, na criança, a compreensão intelectual de que a existência do mundo é anterior e independente dela, de que o mundo sempre esteve lá e continuarálá após a sua morte. Contudo, o sentimento de que o mundo foi criado pessoalmente, e pode continuar a ser criado, não desaparece. Ao defrontar-se com o fato da separação, da externalidade e da falta de controle sobre o mundo compartilhado, o indivíduo retém a capacidade para a ilusão, exercendo naturalmente a criatividade que “é a manutenção, através da vida, de algo que pertence à experiência infantil: a capacidade de criar o mundo” (1986h[1970]/1989, p. 32). Uma linda passagem de Pontalis, em seu livro autobiográfico, ilustra, além de muitos outros pontos, o modo como um adulto, que foi introduzido na ilusão de onipotência, crê na realidade em que vive: Ao me levantar, aprecio o chuveiro que, pela graça da água, restitui-me a pele e me extrai vivamente dos limbos da noite; depois, o café tomado no balcão − “Forte?” “Sim, bem forte, obrigado Pierre”; depois o cumprimento à pequena Choupette e à sra Gisou quando pego minha correspondência na rua Sebastien-Bottin. O acidente, nesses começos de meus dias, seria que eles me faltassem, esses hábitos inocentes. Sei que quando tiver esquecido as centenas de manuscritos lidos, os livros editados, os rostos dos autores encontrados, são eles que ficarão. De que evidência, de que confiança serão eles portadores para que, uma vez adquirida a certeza de que eles comparecerão ao encontro, eu vá com um passo mais vivo e tranquilo, tendo, ancorada em mim, a ilusão de saber aonde vou? Pressinto que, privado desses pequenos sinais de vida considerados insignificantes, erraria como uma alma privada de um lugar onde habitar... (Pontalis, 1986, p. 130) O paradoxo contido na ilusão de onipotência consiste em que aquilo que o bebê cria é, na verdade, encontrado por ele e já estava lá antes de ele tê-lo criado. Mas, além disso, aquilo que o bebê cria não é exatamente aquilo que a mãe forneceu, do mesmo modo que jamais encontramos na realidade externa aquilo que concebemos no mundo subjetivo. Esse problema jamais terá solução. É inerente à natureza humana e, ao longo da vida, teremos sempre que nos haver com ele. Através do estudo das psicoses, Winnicott chegou a um fundo do humano que era inaparente nas neuroses ou na saúde. Esse fundo revela que o problema do contato com a realidade jamais se extingue ou chega a ser superado. 4. A cisão essencial O lugar da ilusão no processo de amadurecimento pode ser compreendido através de um aspecto central da concepção winnicottiana de ser humano: a de o homem ser cindido já na raiz. Essa cisão, inerente à natureza humana, não é resultado de um conflito pulsional e não é patológica em si mesma. Numa passagem do livro de Winnicott, Natureza humana, encontra-se a seguinte afirmação: “A cisão é um estado essencial em todo ser humano, mas não é necessário que ele se torne significativo...” (1988/1990, p. 158). Trata-se, portanto, de uma cisão básica, que está na raiz mesma da existência humana e que permanece como fundamento imutável, inultrapassável, constituinte da própria essência do humano: ao mesmo tempo em que existe uma solidão essencial, um fundo intocável, eternamente imune a qualquer comunicação com a realidade externa ou a qualquer objetivação pelas categorias da realidade externa, uma outra parte do indivíduo é lançada na luz do mundo, para que seja possível nele habitar, para que a vida, que inclui viver na proximidade das coisas e com-o-outro, possa se instaurar e acontecer. As várias formas de cisão patológica, assim como as dissociações normais – as do estado de não-integração do início e as que dele derivam –, estarão sempre sendo configuradas, a partir da cisão essencial, na forma de duas vertentes que vão em direções opostas. Enquanto uma metade do split vai na direção de simplesmente ser, da solidão, da quietude, do verdadeiro si-mesmo, a outra metade vai na direção da realidade externa, da busca de objeto, dos estados excitados, do fazer, do falso si-mesmo. Essa forma de partição encontra seu fundamento na própria concepção winnicottiana de natureza humana. Mas essa cisão, dirá Winnicott, só se torna significativa – ou seja, patológica, algo que precisa sempre ser levado em conta –, quando a falha ambiental, da qual decorre a interrupção do processo de amadurecimento, “exacerba ao invés de curar a cisão na pessoa do bebê” (1988/1990, p. 128). Isso leva a que, na saúde, quando o processo de integração segue o seu curso, a cisão é, aos poucos, absorvida e “curada”. Vejamos a citação completa: “A cisão é um estado essencial em todo ser humano, mas não é necessário que ele se torne significativo se a camada protetora de ilusão tornou-se possível através do cuidado materno” (os itálicos são meus). O que é, portanto, que “cura” ou que permite que a cisão essencial seja aos poucos absorvida? É o prosseguimento do processo de amadurecimento tendo na base, e mantida, a ilusão de criar o mundo, a capacidade de acreditar em..., a despeito de o processo de desilusão seguir o seu curso. Mas, se o ambiente fracassa em fornecer cuidados confiáveis, o bebê é sistematicamente confrontado com algo para o qual não está preparado e tem interrompida a sua continuidade de ser. Nesse caso, a ilusão básica não se estabelece como experiência; ao contrário, a cisão se exacerba: enquanto o si-mesmo verdadeiro, que é a sede da espontaneidade, se retrai e se isola, um si-mesmo falso, artificialmente construído, fica encarregado de lidar com a realidade externa e com a ameaça de invasão que advém dela. Desse modo, o falso si-mesmo protege o verdadeiro, para que este nunca mais volte a ser ferido. O indivíduo que, de qualquer modo, continua a crescer física e intelectualmente, embora não como existência psicossomática, nunca se sente preparado para coisa alguma, na medida em que, operada a cisão, ele tem que seguir adiante desprovido da ilusão básica, ou seja, sem que seu si-mesmo esteja disponível para a experiência. Esse é o caso do bebê que “desistiu”, perdeu a esperança na possibilidade de comunicação. Para aqueles que não puderam desenvolver a capacidade de acreditar em..., a vida toda, com seu movimento, sua desordem essencial, sua imprevisibilidade básica, torna-se uma espécie de cilada potencial da qual é preciso precaver-se. Viver torna-se uma tarefa permanente de evitar o imprevisível. É isso que Winnicott quer significar quando diz que “a falha exacerba ao invés de curar a cisão na pessoa do bebê”. Nos casos favoráveis, a par da compreensão intelectual de que o mundo existe por conta própria (e, de modo algum, tal qual o concebo), permanece na pessoa o sentimento de que o mundo foi pessoalmente criado por ela, e que continua a ser possível achar ou recriar o nicho em que se possa levar uma existência pessoal. O que propicia esse sentimento é a “camada protetora de ilusão”; é ela que permite ao indivíduo manter-se criativo e preservar o sentimento da criação pessoal do mundo. Isso ocorre com os bebês que tiveram a sorte de contar com uma mãe, cuja adaptação ativa à necessidade foi suficientemente boa. Isto os capacita a terem a ilusão de realmente encontrarem aquilo que eles criaram. Finalmente, depois que a capacidade para o relacionamento foi estabelecida, estes bebês podem dar o próximo passo rumo ao reconhecimento da solidão essencial do ser humano. Mais cedo ou mais tarde, um desses bebês crescerá e dirá: “Eu sei que não há nenhum contato direto entre a realidade externa e eu mesmo, há apenas uma ilusão de contato, um fenômeno intermediário que funciona muito bem quando não estou muito cansado. A mim não importa nem um pouco se aí existe ou não um problema filosófico”. (1988/1990, p. 135; os itálicos são meus) Por outro lado, continua Winnicott, existem os bebês que tiveram experiências menos afortunadas e estes veem-se realmente aflitos pela ideia de que não há nenhum contato direto com a realidade externa. Pesa sobre eles, o tempo todo, uma ameaça de perda da capacidade de se relacionar. Para eles, o problema filosófico torna-se e permanece sendo vital, uma questão de vida ou morte, de comer ou passar fome,de alcançar o amor ou perpetuar o isolamento. (1988/1990, p. 135) O estudo e tratamento das pessoas que padecem de distúrbios psicóticos nos ensinam acerca dos pré-requisitos para a relação com a realidade externa. A questão central, nos psicóticos, é a constituição do si-mesmo unitário e o contato com a realidade externa. No início, esse contato não existe, nem pode existir, dada a extrema imaturidade do bebê, e Winnicott dedica-se a descrever, através das minúcias dos estágios iniciais do amadurecimento, como o contato é favorecido pelo ambiente facilitador e gradualmente estabelecido. Chegamos agora a um resultado surpreendente: esse contato, como realidade efetiva, não existe. É fruto da ilusão propiciada, no início, pela mãe. Vistos em sua pura objetividade, a realidade externa e seus objetos não fazem nenhum sentido, estão irremediavelmente separados do mundo subjetivo. A única ponte possível é aquela em que, através da ilusão, eles possam ser criados e continuem a ser reinventados pelo indivíduo. Como diz Winnicott, toda criança precisa tornar-se capaz de criar o mundo; caso contrário, o mundo não terá significado. Criar é “trazer à existência”. De onde? Da não-existência: “É apenas da não-existência que a existência pode começar” (1974/1994, p. 76) De um lado, o nada originário e a solidão essencial; de outro, a tendência inata à integração e à relação com a realidade externa. Essa cisão pode ser absorvida, isto é, pode tornar-se não significativa, mas não pode jamais ser extinguida ou curada. Ela permanecerá sempre, irremissível: pertence intrinsecamente à natureza humana. Esse tema permeia todo o pensamento de Winnicott. Já em 1948, ele dizia que, enquanto há vida, cada um de nós sente que a questão do contato cru com a realidade é vital e lidamos com ela de acordo com a maneira pela qual a realidade nos foi introduzida no início. Mas, a menos que estejam muito cansadas ou doentes, as pessoas, em geral, não sabem que existe um problema de relacionamento com a realidade. E pergunta: Não é em geral através da criação artística e da experiência artística que mantemos as necessárias pontes entre o subjetivo e o objetivo? É por esta razão, acrescento eu, que valorizamos tão intensamente a solitária batalha do criador em qualquer campo da arte. Para todos nós, assim como para ele mesmo, o artista está sempre vencendo brilhantes batalhas em uma guerra que, na verdade, não tem fim possível. O fim consistiria em descobrir algo que não é verdade, ou seja, que o que o mundo oferece é igual ao que o indivíduo cria. (1948b/2000, p. 251) Há pessoas que, devido a uma experiência inicial extremamente deficitária, não chegaram nem ao menos a habitar num mundo subjetivo ao qual retornar para descanso e no qual se reabasteceriam de experiências do si-mesmo verdadeiro. Nesses casos, uma descrença profunda esgarça qualquer realidade. Esse estado de coisas transparece, de forma brutal, no início da obra Ferdydurke, do autor polonês Gombrowicz: Naquela terça, despertei nesse momento sem alma e sem graça em que a noite se acaba e a aurora não pode ainda nascer. Acordado em sobressalto, quis pegar um táxi para a estação, parecia-me que eu devia partir, mas, no último minuto, compreendi com dor que não havia na estação nenhum trem para mim, que nenhuma hora havia soado. Permaneci deitado numa claridade turva, meu corpo tinha um medo insuportável e oprimia meu espírito, e meu espírito oprimia meu corpo e cada uma das minhas fibras se contraíam ao pensamento de que nada passaria, de que nada mudaria, nada jamais aconteceria e que, qualquer que fosse o projeto, não sairia nada de nada. Era o medo do nada, o pânico diante do vazio, a inquietude diante da inexistência, o recuo diante da irrealidade... (Gombrowiz, 1973, p. 5) Existem, entretanto, pessoas para as quais, provavelmente, as experiências iniciais do mundo subjetivo foram intensamente reais, mas o ambiente talvez tenha falhado em promover o processo de desilusão, mantendo ao mesmo tempo intacta a criatividade originária, ou seja, o sentimento de poder criar o mundo. Para essas pessoas, nenhuma rea lidade, por concreta ou palpável que seja, fornece um sentimento de realidade comparável ao que ele é capaz de provar no contato com o mundo subjetivo. Winnicott assinala que talvez seja esse o significado das experiências de isolamento ou de reclusão mística, as quais põem o indivíduo “em posição de se comunicar secretamente com fenômenos e objetos subjetivos, a perda de contato com o mundo da realidade compartilhada sendo contrabalançada por um ganho em termos de se sentir real” (1965j/1988, p. 169). Numa carta ao poeta brasileiro Ronald de Carvalho, escreve Fernando Pessoa: A má sensibilidade dói-me. Por certo que outrora nos encontramos e, entre a sombra de alamedas, dissemos um ao outro em segredo o nosso comum horror à Realidade. Lembra-se? Nós éramos crianças. Tinham-nos tirado os brinquedos, porque nós teimávamos que os soldados de chumbo e os barcos de latão tinham uma realidade mais precisa e esplêndida que os soldados-gente e os barcos que são úteis ao mundo. Nós andamos animados longas horas pela quinta. Como nos tinham tirado as coisas onde púnhamos os nossos sonhos, pusemo-nos a falar delas para as ficarmos tendo outra vez. E assim tornaram a nós, em sua plena e esplêndida realidade – que paga de seda para os nossos sacrifícios –, os soldados de chumbo e os barcos de latão; e através de nossas almas continuaram sendo, para que nós brincássemos com eles. (Pessoa, 1999, p. 151) Winnicott diz que, entre as pessoas cuja dificuldade central é o relacionamento com a realidade, é possível vislumbrar dois grupos: as pessoas esquizoides e as extrovertidas (entenda-se, os fronteiriços cuja defesa central é o falso si-mesmo patológico); ambas sofrem da impossibilidade de viver e carregam uma profunda insatisfação consigo mesmas. “Esses dois grupos de pessoas”, diz o autor, procuram-nos em busca de psicoterapia, no primeiro caso, para evitar o desperdício de suas vidas irrevogavelmente fora de contato com os fatos da vida e, no segundo caso, porque se sentem alheias ao sonho. Têm a sensação de que algo está errado, de que existe uma dissociação em suas personalidades e precisam de auxílio no sentido de alcançar um status unitário ou um estado de integração espaço-temporal, onde existe um eu (si-mesmo), que contém tudo, ao invés de elementos dissociados colocados em compartimentos, ou dispersos e abandonados. (1971g/1975, p. 98) Foi exatamente em função desses casos que Winnicott procedeu a uma revisão crucial da tarefa terapêutica. Instruído, pelo cuidado clínico de psicóticos fronteiriços, sobre as necessidades primitivas que, na verdade, fazem parte de cada ser humano, Winnicott redefiniu o papel do analista: este deverá privilegiar uma outra função do que aquela para a qual a análise foi originalmente concebida, a saber, a interpretação de conflitos inconscientes. Há alguns indivíduos, como foi mencionado anteriormente, sobre os quais pesa o tempo todo uma ameaça de perda da capacidade de se relacionar ou de perda do sentido de real. Para eles, o setting analítico terá que oferecer, pela primeira vez em suas vidas, experiências simples, mas essenciais, que só podem ocorrer num ambiente que se caracteriza pela confiabilidade e que não foram possíveis no ambiente original; 3 nem eles mesmos sabem bem sobre sua necessidade, pois, na desesperança de serem atendidos, a necessidade foi abafada, retida e, muitas vezes, camuflada em autossuficiência. São esses os casos em que a experiência de ilusão de onipotência foi inexistente ou precária. A capacidade de confiar, de acreditar em... foi minada na raiz, feneceu antes de ter sido estabelecida. A própria análise está envolvida nessa descrença quanto à possibilidade de uma comunicação verdadeira. O paciente psicótico tornou-se desesperançado e, num certo sentido, ele luta contra a esperança, pois esta é a vizinha mais próxima da decepção; na verdade, sem dar por isso, ele organiza toda a sua vidaem torno de evitar a repetição da agonia impensável que está na raiz de tudo. A responsabilidade que nos cabe como analistas, nesses casos, consiste em saber se podemos dar sustentação a toda uma fase de dependência absoluta, em que essas pessoas possam viver, por um tempo indeterminado, num mundo subjetivo, ou seja, na área de ilusão de onipotência, protegidas da irrupção de qualquer amostra da realidade externa. Teremos que ser objetos subjetivos, para o paciente, e suportar o fato de não existirmos para ele, como pessoas separadas, sabendo, ao mesmo tempo, que nossas atitudes os afetam imediatamente. A confiabilidade ambiental inclui darmos continuidade ao processo terapêutico, às vezes a despeito da instabilidade que o paciente traz devido à desesperança; inclui, ainda, sermos consistentemente nós mesmos, o que significa que, mais do que de inteligência ou esperteza, o que o paciente precisa é de interesse genuíno e autenticidade. Tanto o bebê como o paciente nessas condições necessitam de um “seio” que é e não de um “seio” que faz. Mas, a par da identificação com o paciente e da espontaneidade, que não pode ser infantil, guardamos um lugar adulto que nos permite, a despeito de nossas vicissitudes particulares, continuar a cuidar do paciente, vivos e respirando. Temos sempre em mente que tudo o que de mais importante acontece, nessa etapa, se dá no pré-verbal. Andamos com o paciente por onde ele anda, mas o que importa é que estamos lá, na hora marcada, sem imprevisto, esperando que a repetição regular da experiência vá tecendo vagarosamente, nele, o sentido da presença. É sobre esses casos que Winnicott afirma que o analista tem, muitas vezes, que esperar, esperar e esperar, e foi a propósito desses casos que ele pôde elaborar a ideia de que o manejo do setting e, às vezes, da situação global do paciente, é mais importante do que a interpretação: “A psicanálise”, diz Winnicott, “não se resume a interpretar o inconsciente reprimido; é, antes, o fornecimento de um contexto profissional para a confiança, no qual esse trabalho possa ocorrer” (1986f[1970]/1989, p. 89). Pode levar longo tempo até que o paciente, vagarosamente, incorpore a estabilidade oferecida e passe a confiar na consistência e confiabilidade da situação analítica, incluído o comportamento do analista. Algumas vezes, diz Winnicott, o analista precisa esperar um tempo muito longo; e, no caso que é mal escolhido para a psicanálise clássica, é provável que a consistência do analista seja o fator mais importante (ou mais importante do que as interpretações), porque o paciente não experimentou tal consistência no cuidado materno na infância e, se tiver de utilizar essa consistência, terá que encontrá-la pela primeira vez no comportamento do analista. (1960c/1988, p. 39) Referências Dias, E. O. (1999). Sobre a confiabilidade: decorrências para a prática clínica. Natureza humana, 1(2), 283-322. Pessoa, F. (1986). Livro do desassossego (de Bernardo Soares). In F. Pessoa, Obra poética e em prosa (3 Vols). Porto Alegre: Lello & Irmão. (Trabalho original publicado em 1930) Pessoa, F. (1999). Correspondência (1905-1922). Lisboa: Assírio & Alvim. Gombrowiz, W. (1973). Ferdydurke. Paris: Christian Bourgois. Pontalis, J-B. (1986). O amor dos começos. Rio de Janeiro: Globo. Sechehaye, M. A. (1988). 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Este artigo, corrigido e atualizado para a presente edição, foi publicado originalmente com o título “A ilusão originária”, na Coleção Memória da Psicanálise, n. 5 − Winnicott, 2ª edição revista e atualizada (Revista Viver: Mente & Cérebro, Duetto Editorial, 2009), pp. 40-51. 2 . A palavra onipotência, usada para esse estágio primitivo, descreve um traço essencial da dependência e significa que o bebê não sabe nada acerca da existência de si mesmo ou do mundo externo. Não se deve confundir esse significado específico da experiência de onipotência na área da ilusão, característico do mundo subjetivo, com o sentimento de onipotência, relativo a um poder que desconhece limites e que justamente “pertence à desesperança em relação à dependência”. Cf. Winnicott, 1971h/1975, p. 50. 3 . Para um exame mais apurado da questão da confiabilidade no ambiente inicial e no setting analítico, ver Dias, 1999, reproduzido neste livro nas pp. 15-49. 3 A regressão à dependência e o uso terapêutico da falha do analista1 Em memória de Amazonas Alves Lima 1. Introdução Um dos aspectos técnicos mais fecundos do pensamento de Winnicott consiste no uso do que chamaremos com ele a “falha” do analista; está referido, sobretudo, às fases de regressão à dependência, no tratamento de pacientes fronteiriços. Extremamente provocante, esse ponto requer explicitação teórica complexa, especialmente acerca de dois conceitos intimamente imbricados entre si e centrais na sua obra: 1) o caráter específico do adoecer psicótico (que gerou uma nova classificação das patologias), seja qual for a organização patológica em que ele se manifeste e 2) a qualidade peculiar do desenvolvimento emocional, durante o período de não-integração, em especial no que se refere aos pacientes que regridem à dependência. Para a compreensão do primeiro conceito acima mencionado, é importante atentar para o modo como Winnicott configura a “natureza” da diferença entre neurose e psicose. Diz ele: Afora o estudo de pessoas sadias, é talvez apenas na psiconeurose e na depressão reativa que é possível se aproximar da doença verdadeiramente interna, a doença que faz parte do intolerável conflito que é inerente à vida e ao viver de pessoas inteiras (whole persons). (1965h[1959]/1983, p. 124) “Verdadeiramente interna” refere-se a um território já constituído (embora jamais estável a ponto de não poder voltar a ser perdido) de onde se pode perceber o não-eu e até desejá-lo, ou invejá-lo ou querer destruí-lo. As neuroses, organizadas em solo pulsional, representam um estágio sofisticado do desenvolvimento.2 Chegar à fase edípica com a possibilidade de padecer dos afetos e suas sintomatologias defensivas, em meio a relações interpessoais, significa ter alçado a uma vida emocional na linha da saúde, da possível e precária saúde humana. Esse é o território que tem sido tradicionalmente o campo de pesquisas e de interesse analítico: toda a imensa gama de conflitos e formações fantasmáticas geradas na eterna luta do amor e do ódio, “conflito que é inerente à vida e ao viver das pessoas inteiras”( 1965h[1959]/1983, p. 124). Mas, se as categorias analíticas clássicas, por se basearem nas neuroses, dão por suposto o território (pulsões, objetos, desejos), ou seja, a integração (mesmo que precária) num si-mesmo unitário, o que interessa a Winnicott, atento à vacuidade borderline, é o que acontece antes, ou melhor, o que não acontece, a ponto de impedir que a integração seja levada a termo. São os buracos desse não acontecido que, de forma patológica, subjazem, muitas vezes, à organização neurótica que funciona, então, como cobertura defensiva de um vazio radical. Segundo Winnicott, esse é o caso das psicoses fronteiriças. É o caso dos dois pacientes cuja análise ora destacamos. Foi a experiência analítica com pacientes borderline que lhe possibilitou aproximar-se do caráter propriamente psicótico das psicoses; ele afirma ter encontrado aí “a oportunidade de observar os delicados fenômenos que apontam para a compreensão dos estados verdadeiramente esquizofrênicos” (1969i[1968]/1994, p.121). Tratando-se de fronteiriços, sabemos que Winnicott não irá supor a existência (integração) de um si-mesmo unitário, que ficou a meio caminho, e, portanto, não tentará encontrar o paciente que ainda não está lá para ser encontrado. Ele também não esperará deparar-se com o sofrimento típico dos conflitos pulsionais, pertinentes aos afetos. O fronteiriço ficou aquém do que se possa chamar vida psíquica. Esses pacientes, e é essa a característica da patologia fronteiriça, vivem no modo de uma não existência.3 Aquele, cuja análise é relatada no livro Holding e interpretação, o chamado caso B, vive num fantasiar (fantasying; cf. Winnicott, 1971h/1975) que evita e substitui a realidade interna; usa a mente, hipertrofiada e dissociada da experiência, âmbito que ele desconhece. A outra (1971r/1975, p. 83) transita entre flashes esparsos e citações de poetas; vida feita de pedaços amorfos, desconectados e sem sentido. Ambos protegem-se de uma ameaça, vaga para eles, mas que, sabemos, é a de vínculos reais, a ameaça de existir.4 Submetem-se, então, às expectativas do ambiente externo para garantir a sobrevivência da casca, a partir da qual eles se apresentam a si mesmos e aos outros. Seguindo Winnicott, é possível supor, a propósito de ambos, que, na etapa mais precoce, antes de alcançar o lugar (a reunião, o si-mesmo) desde onde poderiam sentir-se afetados (afetos), concernidos, tornaram-se puramente reativos, controlando o perigo das invasões e dos sobressaltos. Prematuramente atentos, a mente substituindo o papel do ambiente protetor, eles não fizeram a experiência de deixar-se estar, de residir, e perderam a aventura de viver. Ao invés de concêntricos, tornaram-se excêntricos. Não acharam o caminho do brincar. 2. O estado de não-integração e a psicose A tese que dá suporte a essa fenomenologia consiste em que, para Winnicott, as psicoses estão referidas a um momento de não-integração, anterior à reunião num si-mesmo, a uma fase de dependência absoluta onde ocorreram falhas de adaptação no âmago da unidade bebê-mãe. A gravidade dessas falhas está relacionada ao fato de que, nesse momento, em que o bebê ainda “não existe” e só “existe” na unidade com a mãe, estão sendo gestados os fundamentos, as condições de possibilidade de ingresso na vida, vida que será, então, atravessada de conflitos pulsionais.5 A afirmação de que o bebê “não existe” não é retórica nem simbólica. Para Winnicott, o existir não é dado e não coincide com o nascimento biológico. Na não-integração, o bebê não tem eu nem não-eu; não há intencionalidade, objetos ou interesses. Trata-se, portanto, de um momento pré-objetal, pré-pulsional e pré-simbólico. Quando tudo corre bem, antes de se deparar com objetos, nomeá-los e valorá-los, ele irá se encontrar e habitar, num “meio”, numa “ambiência” espacial e temporal, dotada de uma “certa atmosfera”. Nesse momento, o que o bebê tem, sim, são possibilidades virtuais (bebê possível) que requerem ser atualizadas, “realizadas”, isto é, ganharem configuração e expressão (bebê real): só assim ele poderá chegar, como diz Heidegger, a ser-no-mundo, isto é, a existir nas estruturas fundamentais de tempo e espaço, lançado na ordem mundana como ser situado e datado. Notemos: abrir-se para o mundo e abrir-se para si mesmo são um único e mesmo acontecimento. Para tanto, o bebê precisa fazer, com a ajuda da mãe, a experiência de habitar (presença, permanência, proteção contra invasões, regularidade etc.) de modo a vir a ter o sentimento de “estar em casa”: num lugar − mundo e si-mesmo − a partir do qual acolher e deixar-se afetar pelos acontecimentos, um lugar onde reunir e guardar as coisas que encontra, na duração de um tempo contínuo (continuidade, previsibilidade,monotonia etc.) em que uma existência se desdobra em passado, presente e futuro.6 Existir (ex-sistere), portanto, só se inicia quando o bebê, chegando à integração, que implica o reconhecimento da existência separada do não-eu e correlativamente do eu, alcança o sentimento de ser real e de habitar num mundo real. Mas muita coisa tem que acontecer para o bebê chegar aí. “A integração é uma conquista”, diz Winnicott. Antes disso, pode-se falar em não existência. Trata-se, portanto, de um momento delicadíssimo que requer cuidados específicos. Para fazer essa primeiríssima experiência de habitar e levar a termo a tendência virtual à integração, esse momento deve poder ser vivido, nas condições mesmas de imaturidade que lhe são inerentes e no relaxamento próprio de quem se sente bem-sustentado. Isto só é possível na presença de um ambiente facilitador que reconhece, aceita, reúne e dá suporte a esse estado de não-integração, sem apressar-lhe o andamento. O processo deve seguir o seu próprio curso, tendo garantida e protegida a “continuidade de ser”. “A base para o estabelecimento do ego é um suficiente ‘continuar a ser’ que não foi interrompido por reações à invasão” (1958n[1956]/2000, p. 403).7 Cabe à mãe “suficientemente boa” propiciar ao bebê os cuidados de sustentação, de presença contínua e previsível e de proteção contra invasões. Na saúde, isso se dá porque, identificada com o bebê, a mãe é capaz de uma adaptação sensível, ativa e completa às suas necessidades. Em seguida, ela provê uma desadaptação gradual, na qual pequenas falhas ocorrem na medida mesma da capacidade maturacional crescente do bebê, o que significa que essas falhas pertencem à pauta da adaptação. Mas há, aqui, um ponto a ser destacado, que revela a profundidade do pensamento de Winnicott: a adaptação completa não visa precipuamente à satisfação instintiva.8 Algo mais básico e estrutural está acontecendo. A adaptação completa propicia um encontro e esse encontro é fundamental: é a matriz dos encontros possíveis, o paradigma existencial dos vínculos de que o existir se constitui. Observemos que o bebê mesmo não se encontra com a mãe uma vez que, nesse momento, a mãe não existe e nem o bebê existe. Mas o encontrar está se dando no completar o gesto do bebê e no atender à sua necessidade “no ponto” (mãe suficientemente boa). Sem que o bebê dê por isso, está se criando o sentimento de que o não-eu é encontrável, pode ser-lhe concernente e fazer sentido. Aí estão sendo plantadas as raízes da mutualidade e da possibilidade de comunicação, sem perda da solidão essencial. Mas pode haver desencontro. Pode ser que a mãe não seja capaz de sintonizar, desde o íntimo, a necessidade existencial do bebê. Talvez ela não consiga criar o “entre”, a bolha de intimidade e proteção onde se gesta, na ilusão da onipotência, o sentimento de que é possível encontrar e significar o mundo que vai servir-lhe de morada. Ela talvez não possa suportar a amorfia da não-integração que a relembra do seu próprio desamparo escondido e recoberto pelas tarefas adultas. E, assim, não há encontro. Essa mãe, mais zelosa do seu papel de mãe do que de seu bebê, pode enfiar-lhe alimento e mundo goela abaixo. Se pudesse abrir o “entre” e ensaiar a possibilidade do encontro, ela saberia que o bebê necessita ser introduzido no mundo bem devagarinho, na sua medida e ritmo, e ter a oportunidade de criar o mundo que encontra: habitar no paradoxo.9 Precisa de cuidados referidos a ele, e não ao gênero bebê. Necessita que ela suporte e dê sustentação para os avanços e para os recuos. Recuar significa que o bebê, às vezes, sente necessidade de morrer um pouquinho e deixar-se estar num lugar ao qual a mãe não tem acesso: “No centro de cada pessoa há um elemento não comunicável e isto é sagrado e merece ser preservado” (1965j[1963]/1983, p. 170). Pela ilusão da onipotência, o bebê é introduzido, imperceptivelmente, no âmbito aberto do mundo. É-lhe permitido um tempo em que ele está desincumbido da tarefa de separar eu do não-eu, protegido da consciência prematura da externalidade do mundo. Sem isso, o que se dá é invasão e desencontro. A invasão quebra a continuidade de ser: algo extravasa da possibilidade do bebê ou simplesmente não acontece. O bebê faz o gesto que lhe vem do impulso (drive) momentâneo e não acha nada, nada lhe vem ao encontro. Ou tudo lhe é dado em demasia, para fora de sua real precisão. Aprende, então, a ter aquelas necessidades que dão à mãe a sensação de estar viva e atuante. Nesses casos, é o bebê que se encarrega de manter a mãe “viva”. Se isso se torna o padrão de conduta ambiental, pode haver recuo dramático como no autismo ou recuo defensivo com formação de couraça externa de submissão, que simula vínculos, como nos fronteiriços. Inúmeros são os matizes de falhas dessa relação primeira que constrangem o bebê a pôr-se alerta antes do tempo, desviado de si, interrompido na sua continuidade de ser e ocupado no controle do ambiente, precocemente exposto à exterioridade do mundo e à tarefa de existir. Há, portanto, aqueles que não chegam a nascer e permanecem num tempo anterior ao tempo do mundo. Um tempo em que o homem “privado do dom de residir, habita na eternidade de um presente vazio e sem movimento, onde não há mais acontecimentos”.10 Nessa situação, diz Winnicott, “estão todos os pacientes cuja análise deve lidar com os estágios primitivos do desenvolvimento emocional, antes e até o estabelecimento da personalidade como entidade e antes da aquisição do status de unidade espaço-tempo” (1955d]1954]/2000, p. 375). A falha em fornecer a matriz dos vínculos e do habitar pode fazer um buraco no tecido da continuidade de ser e o bebê cai fora do caminho que o levaria à integração. Ele não cai no mundo; cai fora.11 Extraviado do viver, exilado de si mesmo e do mundo, permanentemente estrangeiro, o indivíduo não sabe habitar. Perambula num deserto sem referências, sem familiaridade possível: nada lhe diz respeito. Nem ao menos pode saber o que houve, ou não houve, porque, não nascido, ele não estava lá para que algo acontecesse. A falha que o habita, como um vazio sem forma, está, surpreendentemente, fora do psiquismo.12 Diz Winnicott: Os psicóticos são portadores de distúrbios derivados de um estágio ainda mais precoce e básico. Suas dificuldades e problemas são especialmente aflitivos. Por não serem inerentes, não fazem parte da vida, e sim da luta para alcançar a vida. O tratamento bem-sucedido de um psicótico permite que o paciente comece a viver e comece a experimentar as dificuldades inerentes à vida. (1988/1990, p. 100) Para alguns, o entanto, residir no mundo, acreditando na sua realidade, e deixar-se ser, tornou-se demasiadamente longínquo. Assim com o paciente de Holding e interpretação. Ele era capaz, às vezes, de deixar-se cuidar por Winnicott e entregar-se à dependência. Mas isso rapidamente se desvanecia. Para ele, que só podia viver na rota do script ambiental, o estado de não orientação e amorfia da não-integração eram terroríficos. Seu principal recurso defensivo era o retraimento no sono. No excelente prefácio ao livro, diz Masud Khan: Desde o início, Winnicott tinha consciência de que toda forma de falar e relatar do paciente encerrava uma reação terapêutica negativa. O paciente dá seu próprio diagnóstico: “Nunca me tornei humano. Perdi essa experiência”(p. 107) e, “resumindo, meu problema é como encontrar uma luta que nunca houve” (p. 185). Winnicott não se deixou intimidar. Muito menos tentou a cura. (Khan, 1991, p. 16) Não tentar a cura é a sabedoria clínica de Winnicott. Talvez exatamente aí residisse a falha original e insuperável: uma mãe que impelia o filho a manter-se vivo, sempre, a qualquer preço. Mas, isso não significa que Winnicott não usasse os recursos de que dispunha. Ele estende, disponível, o chão sobre o qual um nascimento pudesse, porventura, vir a acontecer, ou para, ao menos, manter o paciente vivendo na estreita abertura que lhe era possível. Winnicott fornece holding para que o paciente dele faça usoquando e como possa. Com relação ao fornecimento de holding, no setting analítico, há um detalhe que merece exame: holding é quase sempre entendido no sentido da continuidade de cuidados, aquilo que dá suporte, sustentação. Mas há as falhas, porque sempre há falhas. Winnicott notou, contudo, que pacientes regredidos aproveitavam exatamente as falhas para avanços no processo de maturação. Essas falhas repetiam, sim, a invasão inicial. Mas agora, revividas e configuradas na relação analítica, podiam propriamente acontecer e passar a fazer parte do psiquismo. 3. Duas tarefas analíticas: suporte para a não-integração e aproveitamento da falha do analista na regressão à dependência Em virtude do acima exposto, e tratando-se de pacientes fronteiriços em regressão à dependência, temos uma questão para a função da análise: não há como retraçar ou ressignificar uma história que não se deu, nem como analisar a qualidade libidinal de vínculos que não existem a não ser como arremedos de vínculos, externos, artificiais, capas produzidas para encobrir um campo interno vazio. Dessa perspectiva, a relação analítica terá que privilegiar uma outra função do que aquela para a qual foi originalmente concebida (a interpretação de conflitos pulsionais). O analista terá que estar atento uma vez que o fundo de estranhamento e vacuidade está recoberto por uma organização psiconeurótica ou um distúrbio psicossomático. Em tais casos, o psicanalista pode ser conivente, durante anos, com a necessidade do paciente de ser psiconeurótico (em oposição a louco) e de ser tratado como tal. A análise vai bem e todos manifestam satisfação. O único inconveniente está em que a análise jamais termina. Pode ser concluída e o paciente pode mesmo mobilizar um falso eu (si-mesmo) psiconeurótico para finalizar o tratamento e expressar gratidão. De fato, porém, ele sabe que não houve alteração no estado (psicótico) subjacente e que analista e paciente tiveram êxito em conluiar-se para provocar um fracasso. (1969i[1968]/1994, p. 122) Com pacientes borderline, portanto, se se quer chegar ao fundo, a regressão é necessária (cf. 1960a/1983, p. 149). E não é verdade que os clinicamente regredidos sejam os mais doentes. Talvez seja mais difícil a tarefa de lidar com pacientes psicóticos em estado de fuga para a sanidade (cf. 1955d[1954]/2000, p. 385), como era o caso do paciente anteriormente mencionado. Contudo, em geral, se o analista fornece as condições requeridas, o paciente fronteiriço “atravessa gradativamente as barreiras que denominei técnica do analista e atitude profissional e força um relacionamento direto de tipo primitivo chegando até o limite da fusão” (1960a/1983, p. 150). A regressão à dependência representa a esperança do indivíduo psicótico de que certos aspectos do ambiente, que falharam originalmente, possam ser revividos, com o ambiente desta vez tendo êxito ao invés de falhar na sua função de favorecer a tendência herdada do indivíduo de se desenvolver e amadurecer. (1965h[1959]/1983, p. 117) Mas, o que é que o paciente busca repetir, reviver, recordar? Não é possível resgatar algo que ainda não aconteceu e “essa coisa do passado ainda não aconteceu porque o paciente não estava ali para que acontecesse” (1974/1994, p. 74). A falha, o colapso, deu-se fora do psiquismo, num “sem lugar”, “sem tempo”, “sem forma” e não pode pertencer ao passado a menos que possa ser experienciada pela primeira vez no presente. “Para entender isto é preciso pensar, não em um trauma, mas em que nada aconteceu quando algo deveria ter acontecido” (1974/1994, p. 75). É esta a razão de o que se deu no período de não-integração não ter como ser resgatado ao modo de uma lembrança esquecida ou desfigurada nas dobras do inconsciente, nas formas clássicas da transferência. Nessas situações de regressão, quase tudo o que está ocorrendo de importante se dá no pré-verbal e há aí um desafio para o analista: ele precisa saber tudo o que se refere a interpretações relativas ao material apresentado, mas deve ser capaz de se conter para não ser desviado para essa função, que seria inapropriada, porque a necessidade principal é a de apoio simples ao ego, ou de holding. Esse holding, como a tarefa da mãe no cuidado do bebê, reconhece tacitamente a tendência do paciente a se desintegrar, a cessar de existir, a cair para sempre. (1965vd[1963]/1983, p. 217) De extrema importância, a tarefa analítica é, por via da manutenção cuidadosa da continuidade previsível e regular do setting, criar as condições para que uma falha do analista seja sentida como tal, como falha do ambiente. Note-se que “falha”, aqui, deve ser entendida estritamente com relação à necessidade do paciente que se permite estar não-integrado, dependente e fundido com o analista: qualquer movimento deste para fora da órbita de onipotência do indivíduo poderá ser sentido como falha. E será essa a ocasião para aquela falha, sofrida, mas não experimentada no período de não-integração, ganhar um contexto, uma configuração, uma história, acontecer enfim, e, reconhecida, tornar-se uma experiência do indivíduo. A esse respeito, relata Winnicott referindo-se a uma paciente: Ela “sempre sentiu espanto (awful), mas durante um quarto de hora sentiu espanto a respeito de algo” (1989d[1965]/1994, p. 104). Para Winnicott, quando as falhas do analista são eventuais e não têm um padrão fixo próprio, o paciente terá sensibilidade maior para aquele tipo de falha que corresponde ao padrão segundo o qual o próprio ambiente do paciente falhou a este, numa etapa significativa (cf. 1989b[1966]/1994, p. 129). Mas, para que o paciente ouse aproximar-se do vazio amorfo que o habita sem lugar próprio, há que se tecer, antes, a casa: uma base muito firme de confiabilidade feita dos cuidados básicos de permanência, regularidade, simplicidade, monotonia, isto é, estabelecer a ilusão da onipotência sobre cujo chão, bem-assentado, a falha, a desilusão configurada, possa ser experimentada, sofrida e suportada. Bem amparado, o paciente pode começar a ter sentimentos e não apenas estar mergulhado em sensações; já pode sentir falta de algo, e não, apenas, o vazio de tudo; já pode sofrer frustração e ódio e não mais aniquilamento. Diz Winnicott, referindo-se a outra paciente: “Minha tarefa consistia, em primeiro lugar, em cooperar com seu processo de idealização a meu respeito e depois compartilhar o peso da responsabilidade pela quebra dessa idealização, na raiz de seu ódio” (1989d[1965]/1994, pp. 104-105). Nas condições altamente especializadas do setting analítico, e após estabelecida firmemente a confiabilidade, a falha pode acontecer e dar cidadania ao ódio. “Na recuperação da situação original de fracasso, quando a situação congelada de fracasso descongela, o indivíduo pode, pela primeira vez, sentir-se frustrado e desenvolver defesas mais complexas, assim como experimentar fúria ou ira, exatamente contra o fracasso” (1987b/1990, 54). E ainda: essas falhas produzem raiva, o que é valioso, porque essa raiva traz o passado para o presente. No momento da falha (ou falha relativa) inicial, a organização egoica do bebê não estava suficientemente preparada para uma coisa tão complexa como a de sentir raiva acerca de uma questão concreta. (1970b[1969]/1994, p. 199) É apenas na regressão à dependência que a necessidade do paciente de experienciar o vazio, o não acontecido, a decepção, pode emergir e ter lugar. É só dentro do suporte do analista que a falha terá essa função e essa importância. Winnicott relata como seria, se fosse verbal, a demanda de um paciente que se vê prestes a entrar em regressão à dependência: Já é hora de você se decidir: ou vai até o final ou se retira. Não me importa que me diga agora que não está em condições de fazê-lo, mas se continua avançando, eu lhe entregarei algo que é muito meu e me tornarei perigosamente dependente de você e seus erros terão uma enorme importância. (1989m[1964]/1994, p. 78) O destaque a essa questão não nos deve levar a pensar que, no trato do fronteiriço, Winnicott aconselha,ao analista, programar falhas. Tanto na adaptação como na desadaptação, no erro ou no acerto, qualquer mecanicismo malogra na tarefa de introduzir o bebê ou paciente no mundo humano. Do mesmo modo que a mãe “suficientemente boa”, o analista falhará espontaneamente pelo simples fato de ser humano e de as necessidades do paciente, assim como as do bebê, serem, por assim dizer, “inumanas”. Trata-se de estar atento e usar analiticamente a situação. Uma das ocasiões mais frequentes de falha refere-se a tempo: em virtude do próprio cansaço decorrente do caráter absorvente da adaptação completa e sentindo-se chamados por outros interesses, mãe ou analista superestimam os progressos do bebê ou do paciente e antecipam possibilidades ainda não estabelecidas. O paciente sente-se sobrecarregado, não visto e, de novo, seu “ali estar” se constitui num peso do qual ele mesmo e quem o cuida quer se livrar. O recuo é inevitável. Temos muita sorte quando o paciente pode avançar do retraimento para a regressão e entregar-se, em dependência, aos nossos cuidados (cf. 1955e[1954]/2000, p. 347). Na regressão à dependência, pisamos num terreno extremamente frágil: há grandes riscos envolvidos, mas eles têm que ser corridos. “Nos casos graves, tudo o que importa e é real, pessoal, original e criativo, permanece oculto e não manifesta qualquer sinal de existência. Nesse caso extremo, o indivíduo não se importaria de viver ou morrer” (1971g/1975, p. 99). Silêncios, retraimentos e, sobretudo, aquilo que Freud denominou resistência terapêutica negativa são, em geral, entendidos como resistência à própria relação e/ou a um conteúdo pulsional indesejável. Freud surpreendeu-se ao dar-se conta de que o paciente lutava contra a cura, e só então pode configurar o mecanismo de resistência. Se levarmos isto até o final, veremos que a resistência pode estar sediada numa recusa ainda mais básica, e sem conteúdo, recusa a qualquer possibilidade de ser, de existir. “Não me faça querer ser”, dizia uma paciente de Winnicott, citando o poeta Hopkins. Um pouco antes, na sessão, ela dissera: “Tenho às vezes a sensação de que nasci... Se não tivesse acontecido! Isso me vem; não é como a depressão”. Winnicott diz: “Se você tivesse podido não existir de modo algum teria sido bom”. Ela: “Mas o que é tão horrível é a existência negada! Nunca houve uma época em que eu pensasse: que coisa boa ter nascido! Tenho sempre presente que teria sido melhor se eu não tivesse nascido, mas quem sabe? Poderia ser, não sei. É uma questão: quando não se nasce nada existe também, ou há uma almazinha esperando para aparecer num corpo?” (1971r/1975, p. 89). É somente com a permissão e o suporte para não ser que o existir pode começar a ser possível. “É apenas da não existência que a existência pode começar”, afirma Winnicott (1974/1994, p. 76). Tal como na aceitação e suporte da mãe ao estado não-integrado do bebê. Talvez, a falha maior do analista, nesses casos, seja uma incapacidade de suportar (e até de atinar com) a negatividade que desfaz toda realidade e uma impaciência para introduzir o paciente na existência, na positividade da vida onde as coisas acontecem. A confiabilidade do setting pode ajudar o paciente a querer ser, mas ele precisa confiar em que pode recuar e, de vez em quando, deixar de existir; ele necessita saber que o analista suporta esse retorno à não existência, ao estado não-integrado, amorfo, da completa dependência: O sentimento do eu (si-mesmo) surge na base de um estado não-integrado que, contudo, por definição, não é observado e recordado pelo indivíduo e que se perde, a menos que seja observado e espelhado de volta por alguém em quem se confia, que justifica a confiança e atende à dependência. (1971r/1975, p. 88) Referências Khan, M. (1991). Introdução . In D. Winnicott (1991/1986a), Holding e interpretação. São Paulo: Martins Fontes. Khan, M. (2000). Prefácio. In D. Winnicott (2000/1958a), Textos selecionados: da pediatria à psicanálise (trad. Davy Bogomoletz, trad.). Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1978) Loparic, Z. (1990). Heidegger réu: um ensaio sobre a periculosidade da filosofia. 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Título original: Collected Papers: Through Paediatrics to Psychoanalysis) 1. O presente artigo foi apresentado no II Encontro Latino-Americano sobre o pensamento de D. W. Winnicott: aspectos técnicos de sua obra (outubro de 1993, Montevideo) e publicado originalmente em espanhol em Enfoques teórico-tecnicos sobre D. W. Winnicott, tomo I (coletânea dos trabalhos apresentados no encontro mencionado), pela editora da Fundación Winnicott de Montevideo (1993). Posteriormente, foi publicado em português, pela primeira vez, em Percurso Revista de psicanálise, n. 13, 1994, pp. 71-78. Para a presente edição, foram feitas algumas correções vernaculares e acrescentadas algumas notas de atualização conceitual, com a bibliografia correspondente. 2 . Nota acrescentada em 2011: Hoje eu diria “As neuroses, organizadas em solo instintual...”, e essa mesma ressalva vale para a maior parte dos termos “pulsão” e “pulsional” que se encontrarem adiante, embora alguns, como quando uso “conflito pulsional”, devessem ser substituídos por “conflitos derivados da vida instintual”. Percebo hoje que usei algumas vezes o termo “pulsional” para referir-me ao que Winnicott chama de “profundo”, relativo ao inconsciente reprimido, distinguindo este do que é “primitivo”. Esse é o caso quando digo, no início do item 2, tratar-se de um momento pré-objetal, pré-pulsional e pré-simbólico; hoje, eu substituiria “pré-pulsional” por “pré-representacional”. Há outras passagens, ainda, em que “pulsional” poderia ser substituído por “inconsciente”, como é o caso da expressão “conteúdo pulsional indesejável” quase ao final do artigo. Como se vê, já neste artigo, o termo “pulsão”, consagrado na psicanálise tradicional, adquiriu uma abrangência que dilui distinções categoriais importantes. O fato é que, na ocasião em que escrevi o artigo, eu não havia ainda me dado conta que a “pulsão”, sendo um conceito especulativo pertencente à metapsicologia freudiana, era inteiramente estranho ao tipo de teorização e à linguagem correspondente praticadas por Winnicott em seu estudo da natureza humana. A isso se acresceu o fato de que a tradução disponível de Da pediatria à psicanálise era a de Jane Russo, editada pela Francisco Alves; nela, não só o termo “instinct” ou “instinctual”, mas também o termo “drive”(impulso), usados por Winnicott, foram traduzidos por “pulsão” ou “pulsional”. 3 . Nas neuroses, a vida já começou e o indivíduo está enraizado num mundo de cuja realidade não duvida, apanhado pela trama consistente da positividade do viver: o cheio (positivo) dos acontecimentos, reminiscências, fantasias, feridas, traumas; a cena aberta onde o enredo do existir pode se desenrolar, tempo pessoal estendido − passado, presente, futuro − às vezes distorcido, encavalado, mas horizonte no qual o indivíduo tece a sua história. Nas psicoses fronteiriças, no entanto, não há cena: uma ausência peculiar, um vazio afetivo atravessa toda presença. Daí a estranheza e perplexidade que invade o analista ou interlocutor eventual. O indivíduo não apresenta traços abertamente patológicos e seus relatos, pertinentes, exibem contatos aparentemente bem-estabelecidos ou coloridos por conflitos neuróticos triviais. Perpassa-os, contudo, uma inconsistência básica, como se nada pudesse ser propriamente real. Os vínculos, frouxos, externos, duram o tempo da presença real, concreta e só esta existe. Parece que os vínculos, atuados, mas não vividos, não têm onde se referir, onde se demorar internamente, nem como, costurando-se uns aos outros, entretecerem enredos. O mundo está fora, como um filme que não lhe diz respeito, e não há ponte possível a não ser pela observância das regras e submissão aos roteiros e expectativas prescritos. O que parece faltar-lhes é a matéria-prima mesmo do viver: a possibilidade de deixarem-se afetar (afetos) pelos outros e pelos acontecimentos, e de aí vincular-se. A quebra é anterior ao estabelecimento de vínculos; é relativa à própria possibilidade de formá-los. É uma quebra na ordem do ser. “Tudo o que conseguifoi aquilo que não consegui”, dizia uma paciente de Winnicott. Este comenta: “Temos aqui uma tentativa desesperada de transformar a negativa numa última defesa contra o fim de tudo. O negativo é o único positivo” (1953c[1951]/1975, p. 42). 4 . Nota acrescentada em 2011: Seguindo Winnicott, eu não usaria hoje o termo “vínculos” (links) para referir-me a relações, primitivas ou não, entre pes soas. Para relacionamentos pessoais, Winnicott usa os termos “relationship”, “relations” e mesmo “bonds”; o termo “link” é usado apenas para o caso de ligações entre setores, categorias ou objetos, por exemplo, no título do artigo “A link between paediatrics and child psychology: clinical observation” (1969f[1968]/1997). 5 . É a inconfigurabilidade das pulsões, nesse momento, em que ainda não há eu nem não-eu, que leva Winnicott a afirmar que “não há id antes do ego” (1965n[1962]/1983, p. 55). 6 . A prioridade dessa necessidade fica clara quando se atenta para aquela que é, em geral, mencionada, por Winnicott, como a primeira das três conquistas que perfazem o processo de integração (e também denominada de integração, tal como o processo global, o que sugere que é a mais básica): trata-se da reunião (integração num si-mesmo) das possibilidades de ser do bebê (aí entram os impulsos eróticos e agressivos) numa unidade espaço-tempo. Diz Winnicott: “A tendência principal no processo maturativo está contida nos vários significados da palavra integração. A integração no tempo se acrescenta ao que poderia ser denominado integração no espaço” (1965n[1962]/1983, p. 58). 7 . Isto vale para o bebê e vale também para o paciente fronteiriço que, quando tudo corre bem, e são oferecidas as condições altamente especializadas do holding analítico, alcançará regredir à dependência. 8 . A dependência absoluta não pode, portanto, ser pensada de modo trivial (a desvalia do bebê para a sobrevivência), tampouco referida a uma suposta “produção” do bebê, pelo ambiente, o bebê, de si, tábula rasa. Também não se trata de dependência afetiva, no sentido tradicional, uma vez que, nesse momento, ainda não há afetos. Trata-se de uma dependência estrutural, ontológica. Como, em Winnicott, não há como se contar com uma constituição que, autônoma e intrapsiquicamente vá de si, inscrita na ordem da natureza, tudo só se dá no encontro. Repetindo, isso não significa que o ambiente faz o bebê, mas, sim, que o bebê depende inteiramente da mãe para chegar a ser aquilo que já é enquanto possibilidade. As possibilidades virtuais são do bebê, mas precisam ser atualizadas e isso só acontece no encontro com o mundo do qual a mãe é a primeira representante. Isto é, ou a mãe, na medida e no ritmo do bebê, tem êxito na tarefa de introduzi-lo no espaço e no tempo do mundo, na presença das coisas, cuidando de protegê-lo das invasões e precocidades, ou o bebê fica, por assim dizer, desacontecido. Ao invés de nascer, encrua. É no vazio do não acontecido que o fronteiriço orbita, sem tempo e sem lugar. 9 . Esse é um dos pontos mais fascinantes da obra de Winnicott e que o vincula ao pensamento pós- metafísico. Se, para a psicanálise clássica, é preciso desfazer-se das ilusões para chegar à realidade, em Winnicott é apenas através da ilusão que a relação com a realidade externa, via realidade compartilhada, é possível (cf. Pontalis, 1971/1977). Fora do lugar da ilusão, isto é, se o novo indivíduo é exposto prematuramente à consciência da externalidade do mundo, o não-eu pode ficar definitivamente inóspito, eternamente estrangeiro, e incriável porque já pronto na sua absoluta e crua exterioridade. Seria como cair na pura fisicalidade, iluminação sem sombras, mecânica e desprovida de significado: o “sistema”, a “irrealidade” da esquizofrênica de Sechehaye (1988). 10 . Pessanha, 1992, p. 82. Recomendo vivamente ao leitor interessado na questão da não existência, desse “aquém do princípio do prazer”, o artigo de Pessanha acerca da temporalidade e negatividade em Freud e Heidegger. Faz parte de um projeto de reflexão, iniciado por Zeljko Loparic, que visa a pensar as categorias da psicopatologia freudiana à luz da ontologia heideggeriana exposta em Ser e tempo (1927). Nota acrescentada em 2011: cf., por exemplo, entre outros, Loparic, 1995, 1998, 1999 e 2001. 11. Essa é a agonia impensável de “cair para sempre”: cair fora da casa do mundo, exilado do lugar onde se pode habitar na presença e na familiaridade das coisas, na repetição cotidiana e asseguradora dos hábitos, e na tradição, entre proximidades e distâncias, concernido e atingido pelos acontecimentos, lugar onde se vai urdindo o destino em histórias, vida que pode ser contada, sentida e projetada. Apátrida, o exilado da vida diria como o semi-heterônimo de Fernando Pessoa, Bernardo Soares: “Sou os arredores de uma vila que não há, o comentador prolixo a um livro que se não escreveu. Não sou ninguém, ninguém. Não sei sentir, não sei pensar, não sei querer. Sou uma figura de romance por escrever, passando aérea, e desfeita sem ter sido, entre os sonhos de quem me não soube completar” (Pessoa, 1986, p. 667). 12. No belíssimo artigo que prefacia a tradução francesa, feita por ele mesmo, de O brincar e a realidade, descreve Pontalis, pelo negativo, o paradoxo central da falha não experienciada: algo “teve lugar sem encontrar seu lugar psíquico; não está depositado em parte alguma. Não é um traumatismo enterrado na memória, qualquer que seja a profundidade com que se o postule. Não é, igualmente, o reprimido no sentido de um traço que estaria inscrito num sistema relativamente autônomo do aparelho psíquico. Falar mesmo de clivagem, com aquilo que a noção implica de um elemento interno irredutível seria, a meu ver, errôneo” (Pontalis, 1975/1977, p. 196). 4 Winnicott: agressividade e teoria do amadurecimento1 1. Introdução Winnicott dedicou muito de seu esforço teórico para a elucidação da agressividade e destrutividade inerentes à natureza humana. A questão atravessa toda a sua obra e constitui um dos melhores exemplos de mudança paradigmática com relação à psicanálise tradicional. Uma formulação mais acabada da questão só veio a ocorrer, segundo ele mesmo, em um de seus últimos e mais importantes artigos: “O uso de um objeto e o relacionamento através de identificações”, de novembro de 1969.2 Ao longo da obra, e já no seu primeiro artigo sobre o tema, “A agressão e suas raízes”, escrito em 1939, a concepção de Winnicott diverge das teorias freudiana e kleiniana. Com relação a Freud, o ponto de discordância central reside no fato de este localizar as raízes da agressividade na reação às inevitáveis frustrações, no contato com o princípio de realidade. Para Winnicott, contudo, a agressividade, que é relativa à frustração, pressupõe um alto grau de amadurecimento impossível de ser concebido nos momentos iniciais. Ele diz: Que exista raiva provocada pela frustração durante essa fase é inteiramente óbvio, mas, em nossa teoria dos sentimentos e estágios mais primitivos, temos que estar preparados para a agressão que precede a integração do ego, integração que torna possível a raiva pela frustração instintual e faz com que a experiência erótica seja uma experiência. (1955c[1954]/2000, p. 302) Com relação à teoria kleiniana, os motivos são bem conhecidos: nela, a agressividade humana, que se expressa como inveja, ódio ou sadismo, é sempre uma manifestação da pulsão de morte, ou pulsão destrutiva, e esta é um elemento constitucional do indivíduo, variando de intensidade. Para Winnicott, a agressividade que alguns bebês manifestam, desde o início, nunca é uma questão exclusiva da emergência de instintos agressivos primitivos e “nenhuma teoria válida sobre a agressividade poderá ser construída sobre premissa tão falsa” (1957d[1939]/1987, p. 90). Com relação a ambas, uma outra objeção: as duas teorias deixam de considerar a importância do ambiente nos estágios iniciais, ou seja, a dependência do bebê e o fato de que este reage ao tipo de cuidados que recebe. Pretendo, neste estudo, examinar alguns doselementos conceituais que Winnicott nos oferece para a compreensão dos vários fenômenos de agressividade e destacar aspectos da originalidade da sua concepção. Vou me restringir, basicamente, aos estágios iniciais, nos quais se mostram as raízes da agressividade.3 2. Pressupostos básicos da concepção winnicottiana sobre a agressividade 1) A agressividade é inerente à natureza humana e, portanto, inata, mas não no sentido constitucional, biológico ou psíquico, senão no sentido de pertencer ao estar vivo e à defesa natural da posição relativa ao EU SOU. 2) A agressividade, que é natural aos seres humanos, não tem uma única raiz nem significado unívoco. Ao contrário, tem várias naturezas e diferentes formas de manifestação e a consideração do tema remete a um estudo de suas raízes. 3) Embora inerente, a agressividade só se desenvolverá, e se tornará parte do indivíduo, se lhe for dada a oportunidade de experienciá-la de acordo com a sua necessidade e emergência no processo de amadurecimento. Para Winnicott, é a atitude do ambiente com relação à agressividade do bebê que influencia de maneira determinante o modo como este irá lidar com a tendência agressiva que faz parte da sua natureza humana.4 No início de um de seus mais famosos artigos, “A agressão e sua relação com o desenvolvimento emocional”, ele começa dizendo: “A ideia central por trás deste estudo da agressividade é a de que, se a sociedade encontra-se em perigo, não é por causa da agressividade do homem, mas em consequência da repressão da agressividade pessoal nos indivíduos” (1958b[1950]/2000, p. 288; os itálicos são meus). 4) Se o ambiente fornece cuidados satisfatórios e se mostra capaz de reconhecer, aceitar e integrar essa manifestação do humano, a fonte de agressividade − que, no início, é motilidade e parte do apetite − torna-se integrada à personalidade total do indivíduo e será elemento central em sua capacidade de relacionar-se com outros, de defender seu território, de brincar e de trabalhar. Se não for integrada, a agressividade terá que ser escondida (timidez, autocontrole) ou cindida, ou ainda poderá redundar em comportamento antissocial, violência ou compulsão à destruição. 5) Isso nos remete ao pressuposto winnicottiano segundo o qual qualquer potencialidade do indivíduo só se torna dele se for experienciada. Não há, em Winnicott, uma instância abstrata (e substancial) que predetermina os modos de ser do homem. 6) Em termos da fenomenologia, é preciso atentar para o fato de que a fraqueza, o retraimento e a omissão são tão agressivos quanto a manifestação aberta de agressividade. Ser roubado é tão agressivo quanto roubar. Suicídio é fundamentalmente igual a assassinato (cf. 1958b[1950]/2000, p. 288). 7) No que diz respeito às raízes da agressividade e, portanto, aos estágios iniciais, os afetos ainda não estão envolvidos. A agressividade, nesse momento, nada tem a ver com amor ou ódio. Amar e odiar são conquistas do amadurecimento que têm pré-requisitos. Se o indivíduo não se constituir como um EU, se ele não puder proceder à criação da externalidade pela destruição sem raiva, no anger, dos objetos subjetivos e não puder usar objetos que são independentes e externos ao si-mesmo, ele não poderá usar esses objetos para o amor, na genitalidade, por exemplo, nem poderá odiá- los. O ódio, diz Winnicott, é uma conquista da civilização. 8) Precisamos de dois termos que auxiliem na distinção de tendências de diferentes naturezas e estes serão: agressividade e destrutividade. Pode haver destrutividade sem agressão e pode haver agressão sem destrutividade. 9) Em vez de ser manifestação de forças ou afetos operando intra‐ psiquicamente, a agressividade e a destrutividade, na obra de Winnicott, estão relacionadas à questão da constituição da realidade externa. Num texto de 1964, lê-se: “a agressão está sempre ligada ao estabelecimento de uma distinção entre o que é eu e o que é não-eu” (Winnicott, 1964d/1987, p. 98). É essa a questão que acaba por resolver-se, em 1968, no artigo “O uso do objeto”. A resolução implicou a formulação de um tipo de destrutividade, sem raiva, não instintual, que, envolvendo um impulso de destruição efetiva – destruição do objeto subjetivo –, se transforma, caso o objeto externo (que é subjetivo para o bebê) sobreviva, em capacidade para a destruição potencial, isto é, destruição na fantasia inconsciente. É através dessa destruição que o indivíduo cria a externalidade do mundo e chega à capacidade de usar objetos. Sem essa conquista, pode ocorrer de o indivíduo jamais chegar à realidade do amor e do ódio referido a outra pessoa, nem chegar à destrutividade inerente à sua natureza e que é a única base verdadeira para a capacidade de amar e de construir, também pertencente à natureza humana. 3. Raízes da agressividade Se examinarmos as raízes da agressividade, temos que levar em conta: 1) a raiz instintual da destrutividade, que é inerente ao impulso amoroso primitivo; 2) a motilidade (erotismo muscular) como manifestação do estar- vivo; 3) a reação à falha ambiental, que interrompe a linha do ser e traumatiza; e, 4) num momento posterior, dentro ainda dos chamados estágios iniciais, a destrutividade no anger, que leva à criação da externalidade e ao uso do objeto como uma entidade por seu próprio direito. 3.1 A agressividade no período de dependência absoluta No início, o bebê ainda não está reunido num si-mesmo unitário, vive num mundo subjetivo onde não há objetos externos ao si-mesmo e a psique ainda não se alojou no corpo. Nos estados excitados, surgem impulsos (drives), que têm caráter de urgências, e todos eles decorrem de o bebê estar vivo. Dois tipos de impulsos devem ser diferenciados: o que tem origem na tensão instintual e o que deriva da motilidade, da necessidade de movimentar-se, exercitar a vivacidade, que está presente nos músculos e tecidos, e de topar com objetos. O primeiro, naturalmente, necessita da motilidade para manifestar-se. A motilidade se expressa desde antes do nascimento na movimentação, algumas vezes intensa e vigorosa, do bebê dentro do útero.5 Depois de nascer, ao movimentar-se, a criança dá de encontro com alguma coisa e, com isso, o meio ambiente é constantemente descoberto e redescoberto. Descobrir o ambiente, nesse momento inicial, não significa que o bebê se dá conta da existência de objetos externos, mas que começa a haver, pela repetição do contato, um crescente “conhecimento”, que não é mental, mas baseado na familiaridade, derivada da experiência repetida, de atributos como permanência, consistência, durabilidade etc. Tudo isso é anterior à consciência da existência de um mundo externo e de objetos externos. A tensão instintual gera no bebê um estado de urgência que pede por alívio imediato. Ele ainda não sabe nada sobre a necessidade que o aflige ou o que buscar para aplacá-la, de modo que sua expectativa é vaga e poderia ser formulada como “o bebê busca algo em algum lugar”. A necessidade é imperiosa e quando a mãe põe o seio em posição de ser encontrado, ele se atira impulsivamente a ele. Quando a mãe suficientemente boa atende prontamente à necessidade, ela não o faz apenas para evitar a frustração, mas para preservá-lo de uma interrupção da continuidade de ser. Tanto a movimentação intensa quanto o impulso imperioso de aferrar-se ao seio e mamar podem parecer, à mãe inexperiente e ao observador, uma demonstração de agressividade. De fato, dependendo da vitalidade do bebê, pode acontecer de a atividade da gengiva ser tão vigorosa que machuque o seio. Para Winnicott, no entanto, não se pode ainda falar de agressividade nos estágios iniciais, pois esse termo só faz sentido quando a ação é movida por um propósito e o bebê ainda não está de posse de razões ou intencionalidade. Não se pode afirmar que o bebê esteja tentando ferir, “porque ele ainda não está suficientemente amadurecido para que a agressividade já possa significar alguma coisa” (1969b[1968]/1988, p. 26). Há muita confusão sobre esse ponto, diz Winnicott, derivada do fato de seusar o termo agressão para esse momento inicial quando o que se quer dizer é espontaneidade. É a vitalidade e a impulsividade do bebê que se manifestam no comer e devorar, e na necessidade que ele tem de mexer-se, topar com objetos e agarrá-los. 3.1.1 A motilidade Em condições normais, grande parte da motilidade é despendida nas experiências instintivas e, quando há saúde, cada bebê deve gastar o máximo possível de motilidade primitiva nessas experiências. No entanto, haverá sempre um excedente que tem a sua especificidade e precisa ser experienciado enquanto tal. Para tanto, a motilidade precisa encontrar oposição, isto é, “precisa de algo contra o qual fazer força, caso contrário, permanecerá não experimentada, constituindo-se em uma ameaça ao bem- estar” (1958b[1950]/2000, p. 298). A oposição é necessária para dar realidade ao impulso e, segundo Winnicott, o que se chama “potencial agressivo” de um bebê depende da quantidade de oposição até então encontrada. No contato com o objeto que resiste e se opõe, o bebê transforma gradualmente a sua vitalidade em capacidade para a agressão. “Os impulsos agressivos [leia-se espontâneos] não proporcionam nenhuma experiência satisfatória a não ser que encontrem oposição” (1955c[1954]/2000, p. 301).6 Ressaltando o que constitui a necessidade efetiva do bebê, ao mesmo tempo em que reafirma um traço central de sua teoria, Winnicott diz que “é esta impulsividade e a agressividade que dela deriva que levam o bebê a necessitar de um objeto externo, e não apenas de um objeto que o satisfaça” (1955c[1954]/2000, p. 304). A questão, aqui, é o fornecimento da quantidade adequada de oposição, porque um excesso de oposição inibe o impulso e impede que a motilidade se fusione à experiência instintual.7 Se há saúde, a motilidade se funde à tensão instintual, favorecendo a elaboração imaginativa das funções corpóreas e, consequentemente, a tarefa de alojamento da psique no corpo é facilitada. O sentido de real, diz o autor em 1950, se origina especialmente das raízes motoras (e sensoriais correspondentes) e quando, nas experiências instintuais, há uma fraca infusão do elemento motor, estas não fortalecem o sentido de realidade ou de existir. Disso decorre que, muitas vezes, as experiências instintuais passem a ser evitadas precisamente porque levam a pessoa a uma sensação de não existir.8 Note-se que esta questão vai na mesma direção daquela apontada por Winnicott quando diz, referindo-se à criatividade e à apresentação de objetos, que os impulsos criativos se apagam se não forem continuamente confrontados com amostras do mundo que a mãe lhe apresenta (1958j/1980, p. 23). Além disso − e este é um ponto central −, quando o movimento parte do bebê, o contato com o meio ambiente é uma experiência do indivíduo. Mas, se é o meio que repetidamente tem a iniciativa, ao invés de uma série de experiências individuais, o que ocorre é uma série de reações a invasões; a impulsividade pessoal fica inibida e a motilidade é experimentada apenas como uma reação à invasão. Nesse caso, há doença, diz Winnicott. Em maior ou menor grau, o indivíduo passa a necessitar da oposição, não para dar realidade ao seu gesto, mas como fonte do movimento, ou seja, o indivíduo só é capaz de abrir caminho até a importante fonte da motilidade quando algo se lhe opõe. Winnicott descreve três padrões: 1) o meio ambiente é constantemente descoberto pela motilidade e o contato é uma experiência do indivíduo. Aqui, a impulsividade é pessoal, a motilidade opera junto com a tensão instintiva e uma experiência pessoal acontece.9 2) É o meio ambiente que invade o bebê e o que seria uma série de experiências individuais é substituído por uma série de reações às invasões. Nesse caso, o bebê se retira para o isolamento e o descanso, a única coisa que permite a existência individual. 3) No caso extremo, a invasão é de tal ordem que não há nem mesmo um lugar de descanso para a experiência individual. O indivíduo passa então a se desenvolver como uma extensão da casca e não do cerne, como uma extensão do meio ambiente invasor. Nesse caso, já está ocorrendo o início de um falso si-mesmo patológico. O primeiro padrão é o que podemos chamar de saudável. Ele é estabelecido pela totalidade dos cuidados maternos que favorecem os processos de amadurecimento. Nos dois últimos casos, o impulso só é experimentado como reação à invasão e, se assim for, o eu não será estabelecido, uma vez que, na ausência da impulsividade pessoal, as experiências primitivas de integração num si-mesmo, durante a experiência instintiva, não ocorrem. “O bebê vive, porque foi seduzido para a experiência erótica; mas ao lado da vida erótica, que jamais é sentida como real, há uma vida puramente reativa e agressiva, dependente da experiência de oposição” (1958b[1950]/2000, p. 303).10 Quando a agressividade é puramente reativa, ela não chega nem mesmo a organizar-se para a destruição, uma vez que não tem qualquer raiz no impulso pessoal, mas tem valor para o indivíduo, porque produz momentaneamente um sentido de realidade e relação, embora só aconteça por ocasião da oposição ativa e, mais tarde, pela perseguição. Disto segue que o potencial agressivo massivo, apresentado por alguns bebês, faz parte da reação às invasões e é ativado pela perseguição. Nesse caso, o bebê, e, mais tarde, o adulto, dá boas-vindas à perseguição e se sente real ao reagir a ela. Mas isso, diz o autor, representa um modo falso de desenvolvimento e o bebê passa a necessitar de uma perseguição contínua. Deve-se notar que a persecutoriedade aqui é relativa às invasões ambientais, mas nem toda ansiedade persecutória se restringe a esse tipo, como veremos. Desse modo, segundo Winnicott, a quantidade do potencial agressivo não depende de fatores biológicos, mas sim do acaso das invasões ambientais que interrompem a continuidade de ser; estas são traumáticas e se devem, frequentemente, ao estado emocional da mãe ou às suas anormalidades psiquiátricas (cf. 1955c[1954]/2000, p. 304). Um padrão de personalidade que pode se tornar característico é o retraimento (agressividade passiva). Nos casos favoráveis, como já foi dito, é a motilidade que se funde à tensão instintual, e esse é o caso do primeiro padrão descrito anteriormente. Quando a fusão, mesmo parcial como sempre é, não ocorre, como no caso do segundo e terceiro padrão, ou o impulso é inibido ou pode ocorrer uma falsa fusão, por exemplo, através da erotização dos elementos motores. Ou seja, na falta do impulso pessoal, o indivíduo “toma carona” na tensão instintual e, através dela, imprime força à motilidade. Se cresce com esse padrão, ele terá a tendência de produzir relações, em geral através do interjogo com outro indivíduo, de modo a achar um caminho para a agressividade, fazendo fundir o componente erótico com a agressão, que não é muito mais do que pura motilidade. Nessa falsa fusão, o indivíduo só se sente real quando é destrutivo e cruel, encontrando-se aí uma das raízes da tendência sádica compulsiva, tendência que esconde, na verdade, o masoquismo, uma vez que o indivíduo precisa permanentemente de um perseguidor. É possível, portanto, que a ansiedade persecutória de um indivíduo tenha uma longa história. Esta pode ter se iniciado com a inibição do impulso pessoal e uma falsa fusão do instinto com a motilidade. Pela ausência do impulso pessoal, o indivíduo terá dificuldade ou será incapaz, no estágio do uso do objeto, de proceder à destrutividade que cria a externalidade e, portanto, de realizar a tarefa de discriminar o eu do não-eu. Sem essa conquista, não há os requisitos básicos para alcançar a capacidade de sentir culpa e responsabilidade pela destrutividade contida no impulso de amor primitivo, no estágio do concernimento.11 A destrutividade (do impulso amoroso primitivo), que deveria ser pessoal, terá que ser projetada para fora como não pertencente ao eu, voltando-se contra o indivíduo. 3.1.2 A raiz instintual: o bebê incompadecido A rigor, quando se refere aos estágios iniciais, Winnicott nãofala em instintos, mas em tensão instintual. Ele reserva o termo instinto para o momento do amadurecimento em que a vida instintual puder ser integrada como uma experiência do eu e isso só se dará no estágio do concernimento, após a conquista do estatuto de unidade do EU SOU, quando o bebê for capaz, por ser um eu, de sentir-se concernido e responsável pelos resultados de seu amor excitado. No texto de 1939, referindo-se à “agressividade” dos bebês logo no início da vida, Winnicott a chama de “voracidade teórica”, “amor-apetite- primário”, e dirá que ela é, originalmente, parte do apetite e se expressa no comer, devorar. Como já foi mencionado, trata-se de uma impulsividade que pode parecer cruel, dolorosa, perigosa, mas só o é por acaso (by chance). “Talvez a palavra voracidade”, diz o autor, “expresse melhor do que qualquer outra a ideia da fusão original de amor e agressão[...]”. Esse impulso faz parte da busca de alívio instintual. “O objetivo do bebê é a satisfação, a paz do corpo e do espírito” (1957d[1939]/1987, p. 92). Em 1950, reafirmando que a destruição presente no impulso amoroso primitivo “é apenas incidental à satisfação instintual”, Winnicott acrescenta um elemento conceitual fundamental que persistirá até o fim de sua obra: ele postula que, durante os estágios iniciais, o bebê, desconhecendo a existência tanto do si-mesmo quanto do ambiente, não tem nenhum tipo de preocupação com respeito aos resultados de seu amor excitado. O bebê é um si-mesmo primitivo incompadecido (primitive ruthless self). “É conveniente dizer”, afirma ele, “que os impulsos do amor primitivo (id) têm uma qualidade destrutiva apesar de o objetivo do bebê não ser a destruição, já que o impulso é experimentado na era de pré-compadecimento” (1958b[1950]/2000, p. 296). Há um longo caminho a percorrer até que o bebê se torne capaz de relacionar-se como uma pessoa total com a mãe total, podendo, então, sentir-se concernido e preocupado com os efeitos de seus próprios pensamentos e ações sobre ela. Esse é um dos pontos que permite uma clara distinção entre a concepção winnicottiana do amadurecimento pessoal e a teoria do desenvolvimento das funções sexuais. Como, para Winnicott, o que amadurece é o indivíduo na direção da integração e não a libido em termos de fases relacionadas a zonas erógenas, não se trata de as manifestações ditas “agressivas” − o comer, o devorar, o morder − serem formas sucessivas do desenvolvimento sexual, cuja progressão é determinada intrapsiquicamente segundo o modelo biológico. Não se trata de a zona oral ser inicialmente erótica e depois sádica ou destrutiva. É o bebê que, amadurecendo, torna-se mais potente e integrado no corpo e precisa, cada vez mais, experimentar sua força e haver-se com sua crescente capacidade de reconhecer acontecimentos e objetos. Como, durante todos os estágios iniciais, é incompadecido, ele continua a manifestar sem preo cupação, e cada vez com mais força e ousadia, os sinais da sua necessidade nos momentos de excitação. O exercício do impulso instintual incompadecido é altamente satisfatório para o bebê; a maneira como é recebido pela mãe interfere de forma crucial em como a agressividade será ou não integrada à personalidade total participando, assim, do amadurecimento do indivíduo. A mãe pode apavorar-se ou adotar uma atitude moralista, ou ser, talvez, do tipo que se ressente do ataque do bebê como mais um dos ataques que a vida lhe reservou. No texto de 1939, Winnicott traz o relato de uma mãe sua conhecida: Quando me trouxeram o bebê, ele investiu contra meu seio de um modo selvagem, dilacerando meus mamilos com as gengivas e, em pouco tempo, o sangue escorria. Senti-me dilacerada e aterrorizada. Levei muito tempo para me recuperar do ódio que surgiu em mim contra a pequena fera e acho que essa é uma das principais razões por que o bebê nunca desenvolveu uma verdadeira confiança quanto ao bom alimento. (1957d[1939]/1987, p. 91) Pode ocorrer de uma mãe, que aceita muito bem um bebê nos estados tranquilos, assustar-se e reagir a ele nos estados excitados deste. Às vezes, há na reação da mãe uma espécie de desaprovação ao “estar vivo”. Também uma patologia materna, como a depressão, por exemplo, pode traumatizar o bebê de forma especializada. Cheio de vitalidade, ele avança para o seio e é amortecido pelo contato de um objeto sem vida. Além disso, existem mães que resistem à regressão que caracteriza o estado de “preocupação materna primária” e sentem a amamentação como uma invasão ou uma violência. Para livrar-se logo da tarefa, elas alimentam o bebê de modo a aplacar o impulso, a neutralizá-lo. O leite funciona como um narcótico. O bebê, que estava pronto para um rendez-vous e um ataque canibalístico, é nocauteado. Esse mesmo resultado pode ocorrer no caso de mães que seduzem o bebê pela alimentação, e elas o fazem quando se deixam guiar, nos seus cuidados, pela suposição de que o bebê é primariamente regido pelo princípio do prazer e o que interessa é a satisfação instintual.12 Há também o caso em que a mãe, apavorada com a dor, recua, e o bebê, que é vigoroso e está faminto, se aferra ainda mais ao seio para segurá-lo, detê-lo. Winnicott assinala também, em um de seus textos mais tardios, que um dos maiores bloqueios à vida instintual é gerado quando a situação “bebê é o objeto” se altera violentamente para “bebê confronta o objeto e é confrontado por este”, o que implica passar repentinamente para uma posição de angústia de alto grau e um súbito dar-se conta da imaturidade e da dependência.13 Em todos esses casos, só resta ao bebê: 1) esconder seus impulsos, uma vez que o ambiente não tolera a “agressão” (leia-se a espontaneidade, a vivacidade); 2) inibir os impulsos instintuais e desenvolver um autocontrole; 3) cindir os impulsos instintuais, ou seja, o impulso ficará dissociado, não integrado, desconhecido, cindido, ou 4) desenvolver a tendência antissocial. Vejamos este último ponto: se, ao invés de voracidade, aparece avidez, que já não é vitalidade, mas sofreguidão compulsiva, é preciso supor que a criança está sofrendo algum grau de deprivação (deprivation), e isso se manifesta pela busca compulsiva de um cuidado especial, um cuidado que poderíamos chamar de uma “terapia” para essa deprivação através do meio ambiente. Winnicott diz: “O impulso de amor primitivo não é a mesma coisa que avidez implacável. No processo de amadurecimento do bebê, o impulso instintual voraz e a avidez estão separados pela adaptação materna” (1958c[1956]/1987, p. 134). O fator de reconhecimento da diferença entre voracidade e avidez é o valor do incômodo que a criança causa na mãe. “Qualquer exagero do valor de incômodo de um bebê pode indicar a existência de um certo grau de privação e tendência antissocial, o que, de qualquer modo, é sinal de esperança da criança e de potencialidade de recuperação” (1958c[1956]/1987, p. 133). Nos fenômenos da deprivação, o que ocorreu é que uma boa experiência inicial foi perdida. Essa privação, mesmo que referida à amamentação, está relacionada às necessidades do ego e não às necessidades instintuais e, por isso, ela não se deve às frustrações.14 Se a amamentação é feita de modo impessoal, se o que falta é intimidade, comunicação e mutualidade, então as experiências instintuais tornam-se enfadonhas e “deve ser um grande alívio chorar de raiva e frustração o que, de qualquer modo, é real e necessariamente envolve a personalidade toda” (1969b[1968]/1988, p. 24). A frustração não entra em conta nos fenômenos de privação, porque alguma frustração sempre há, já que a mãe necessariamente falha em satisfazer as exigências instintuais. E por que ela necessariamente falha? Porque, caso a satisfação instintual “fosse completa e sem obstáculos, deixaria insatisfeito aquilo que, no bebê, deriva da raiz da motilidade” (1958b[1950]/2000, p. 297). A mãe pode, contudo, ser completamente bem-sucedida em satisfazer as necessidades do ego. A avidez, que pode se manifestar como inibição de apetite, sujeira (defecar e urinar) ou destrutividadeexcessiva, é parte da compulsão do bebê para buscar uma cura por parte da mãe que causou a privação. Essa avidez é antissocial; é a precursora do furto e pode ser atendida e curada através de um período especial de adaptação terapêutica da mãe, facilmente confundida com excesso de mimo. Se a mãe puder reconhecer a avidez do bebê sem assustar-se, e estiver disposta a satisfazer a necessidade que lhe é assim comunicada, a compulsão desaparece na grande maioria dos casos. A mãe, geralmente, é capaz de atender às reclamações compulsivas do bebê e, assim, realizar uma terapia bem-sucedida do complexo de privação que está próximo do seu ponto de origem. Ela se aproxima de uma cura porque torna o ódio do bebê capaz de expressar-se embora ela, a terapeuta, seja de fato a mãe deprivadora. (1958c[1956]/1987, p. 134)15 3.1.3 A reação às invasões ambientais Uma terceira raiz da agressividade está relacionada com as interrupções da continuidade de ser. Ela só pode ser entendida a partir da chave winnicottiana, levando em conta as necessidades de ser do bebê e a sua situação de dependência inicialmente absoluta e depois relativa. Esse fenômeno não chegou a ser enfocado pela teoria psicanalítica tradicional porque, nesta, a situação de dependência do bebê não foi considerada. Isso não surpreende, uma vez que um dos postulados centrais dessa teoria estabelece que a realidade não deve entrar na consideração do distúrbio que atinge o indivíduo, mas apenas a fantasia que encerra o conflito intrapsíquico inconsciente.16 Ora, o bebê depende inteiramente da mãe para dar sustentação à sua continuidade de ser. Se o bebê padece, repetidas vezes, de uma quebra na linha do ser em função de falhas ambientais, instala-se uma espécie de sobressalto, um estado de alerta contra um perigo ou horror (awful) vago, mas permanente. Há aí uma raiva embutida, mas esse sentimento não pode ser configurado e sentido como tal, devido à imaturidade do bebê, no momento do desastre, que inclui sua total inconsciência quanto à existência de um ambiente contra o qual insurgir-se.17 Quando o indivíduo, mais tarde, busca ajuda terapêutica e encontra confiabilidade, a raiva pode começar a manifestar-se, sobretudo por ocasião de uma falha do analista que atualiza e dá configuração à falha original. A questão relativa às invasões ambientais e à raiva não experienciada foi sendo aos poucos formulada com mais precisão na evolução do pensamento de Winnicott. Por exemplo, no artigo “Objetos transicionais e fenômenos transicionais”, revisado para a edição de 1971, de O brincar e a realidade, Winnicott diz que há um momento, no início, em que o bebê está elaborando a capacidade de manter as pessoas vivas em sua realidade psíquica, no mundo subjetivo, e necessita da presença da mãe para que a memória da presença enquanto tal não se esvaia: Antes que certo limite seja atingido, a mãe ainda está viva: depois de transposto esse limite, ela morreu. Entrementes, há um precioso momento de raiva, rapidamente perdida, ou nunca experimentada talvez, mas sempre potencial e trazendo consigo o medo da violência. (1953c[1951]/1975, p. 39; os itálicos são meus) Note-se que a raiva desaparece não em função de uma censura superegoica a um pensamento ou desejo insuportáveis, mas em virtude de o bebê, não sendo ainda um eu, não ter como abranger o trauma no âmbito de sua experiência. O blackout é registrado, de algum modo, mas não pode ser experienciado enquanto tal. Dito isso, é fácil entender por que Winnicott não pode aceitar a teo ria freudiana da agressividade. Essa teoria revela-se falsa porque deixa de lado duas fontes vitalmente importantes da agressão: aquela inerente aos impulsos do amor primitivo (no estágio anterior ao concernimento, independente das reações à frustração) e aquela pertencente à interrupção da continuidade de ser pela intrusão que obriga a reagir. (1988/1990, p. 155) 4. Desenvolvimento da agressividade na fase de desadaptação É na fase em que a dependência do bebê se torna relativa que a questão da agressividade começa a tornar-se crucial. Os componentes agressivos passam a ter sentido para o indivíduo, o comer se estabelece como parte da relação com o objeto e as necessidades do bebê incluem, agora, a oportunidade de ele relacionar-se com os objetos através da agressão (1989m[1964]/1994, p. 81). De fato, com o tempo, o bebê passa a ter o impulso de morder, de agarrar e bater com objetos duros, de produzir barulho, de espernear vigorosamente. Trata-se do início de algo muito importante, que diz respeito à motilidade cada vez mais forte e desenvolta, ao exercício do impulso incompadecido e à utilização de objetos desprotegidos. Muito rapidamente, no entanto, dado o crescente amadurecimento e o início da elaboração da capacidade de sentir-se concernido, “o bebê passa a proteger o seio e, na verdade, é muito raro que mordam o seio com o objetivo de ferir, mesmo quando já possuem dentes” (1969b[1968]/1988, p. 26). Também pela adoção e posse do objeto transicional, o bebê vai gradualmente abandonando o controle mágico, onipotente, do mundo subjetivo e assumindo o controle via manipulação, o que envolve o prazer do exercício muscular e o da coordenação. Os objetos transicionais devem ser duráveis, diz Winnicott às mães, porque, a par do intenso amor que o bebê lhes devota, eles são também tratados com brutalidade. Dando continuidade à linha do amadurecimento, a mãe, se é saudável, começa a cansar-se das exigências da adaptação absoluta e a falhar de forma gradual, e na medida da crescente capacidade maturacional do bebê. E é exatamente esta a sua tarefa: desadaptar-se gradualmente e desiludir o bebê no que se refere à ilusão de onipotência. Se ela não falhar, então estará falhando com o bebê de forma traumática, isto é, impedindo o seu amadurecimento. Do processo de desilusão faz parte o desmame, como um dos seus aspectos mais significativos. São várias, portanto, as ocasiões que se oferecem de o bebê zangar-se, e é da maior importância que ele possa encolerizar-se com frequência numa idade em que não precisa sentir remorso. “Quando o bebê está muito zangado, os pedaços se reúnem na raiva e com certeza os fragmentos se agrupam”, afirma Winnicott (1996o[1948]/1997, p.47). O autor assinala que, mesmo na idade adulta, poder “gritar, vociferar, urrar ou protestar iradamente” é uma das coisas mais importantes para conectar psique e corpo (1989vm[1969]/1994, p. 92). Essa raiva não se refere à mãe, que ainda não existe como pessoa separada, mas é um protesto saudável contra o desconforto de, por exemplo, sentir-se tolhido em seus movimentos. Há mães, no entanto, que embora tenham sido particularmente satisfatórias no período de adaptação absoluta, fracassam na tarefa de falhar ao bebê. Os bebês cujas mães não são capazes de levar a cabo essa tarefa, suportando as consequências do processo, veem-se em apuros. Se a mãe se aferra à adaptação absoluta, desconsiderando a crescente capacidade maturacional do bebê, pode ocorrer um ódio reativo, que não é ainda o ódio que comumente se contrapõe ao amor. Isto nos leva à compreensão winnicottiana do fenômeno teorizado por M. Klein como inveja do seio bom, fenômeno reconhecido por Winnicott, em seu trabalho clínico, quando o paciente tenta destruir exatamente a boa capacidade que o analista tem de analisá-lo. Vejamos como Winnicott compreende o fenômeno: no mundo subjetivo do início, o bebê faz a experiência de ser o seio. Dependendo da confiança que adquiriu em ser capaz de criar aquilo de que necessita, as características da experiência de ser são incorporadas como atributos do si-mesmo, de modo que o bebê passa a “ter um seio bom”.18 Este pode então ser projetado e coincidir com o seio oferecido pela mãe, mas, para tanto, a mãe suficientemente boa precisa acolher a projeção de tal maneira que a experiência do bebê com o seio bom seja uma relação com uma projeção de seu si-mesmo.19 Com o tempo, o bebê de “ter um seio” passa a “usar o seio”, o que significa que o seio não é apenas uma projeção,mas, além disso, está disponível para ele, sendo externo ao si-mesmo. Essa conquista − realizada durante o período de desadaptação gradual que consideraremos a seguir − implica, entre outras coisas, que a mãe, ao invés de continuar a adivinhar a necessidade do bebê, permite que este se manifeste através de sua peculiar comunicação. Se a mãe persiste na adaptação absoluta, se ela insiste na sua função de provedora para além da necessidade do bebê, se a consciência da dependência vem antes de o bebê estar preparado, este se vê diante de duas alternativas: ou regredir para satisfazer a necessidade da mãe de continuar a provê-lo ou então rejeitar completamente a mãe, mesmo a mãe que é aparentemente boa. Temos aqui a situação paradoxal de um seio bom perseguidor, algo que deve ser destruído. Nesse caso, a agressão dirigida contra o seio bom é reativa e não deve ser confundida com a agressão inerente ao impulso amoroso primitivo. Se o indivíduo se vê apanhado nessa situação, pode começar a se organizar uma defesa baseada numa forte necessidade de ser autônomo e não precisar de ninguém. “Quando a mãe renuncia a malgrado ou com excessiva lentidão a seu papel de amamentadora, surge no bebê o ódio e a necessidade de liberar-se” (1989xf[1962]/1994, p. 343). Mas isso, diz Winnicott, não é inveja do seio bom a que se refere M. Klein; não se trata do elemento constitucional de caráter destrutivo, que pertence interna e exclusivamente ao indivíduo. O que há é uma raiva, não experienciada enquanto tal, de ser detido no amadurecimento e de ter que ceder o papel de amamentação à mãe, ou seja, de a mãe ou o seio serem necessários. O que se poderia chamar de inveja, para Winnicott, “é a intolerância para com a necessidade de um representante externo daquilo que foi originalmente sentido como fazendo parte do si-mesmo” (1989xf[1962]/1994, p. 343).20 O “ódio ao objeto bom”, de Klein, só pode ser entendido se o comportamento do objeto for levado em conta. Se o ambiente é invasivo e falha, no sentido de persistir em padrões de adaptação dos quais o bebê já não necessita, pode ocorrer uma introversão: o bebê se recolhe e passa a viver no mundo subjetivo. A recuperação de uma introversão patológica envolve um retorno para fora, para um mundo que a criança vê cheio de perseguidores e, “neste ponto de seu restabelecimento a criança torna-se geralmente agressiva” (1958b[1950]/2000, p. 293). Se esse momento não for bem manejado, a criança desliza de volta para a introversão.21 4.1 A destrutividade no anger: a criação da externalidade e o uso do objeto22 Como vimos anteriormente, a questão da agressividade, no pensamento de Winnicott, esteve sempre ligada à constituição da realidade externa. Em 1969, ele dá por resolvida a questão ao configurar um tipo de destrutividade, não instintual e sem raiva, ainda dentro dos estágios iniciais, que envolve não uma destruição efetiva, mas uma destruição potencial, que se dá na fantasia inconsciente. O que foi dito anteriormente sobre a passagem de “ter o seio” para “usar o seio” já faz parte da conquista que leva o bebê da relação com objetos subjetivos para a relação com objetos objetivamente percebidos, os quais, tendo existência própria, enriquecem a existência pessoal do indivíduo e podem ser usados. Por estar amadurecendo e adquirindo, portanto, outros sentidos de realidade, o bebê não pode continuar a viver num mundo que é feito apenas de suas projeções; desse modo, a comunicação com objetos subjetivos, que foi extremamente necessária e sentida como real, torna-se, ao longo do tempo, um “beco sem saída”. Desse modo, há um momento do amadurecimento normal em que o bebê destrói o objeto, que, nessa ocasião, é subjetivo, não para se livrar de algo mau dentro dele (ainda não há dentro e a questão não é bom ou mau), mas para, expulsando o objeto para fora do seu controle onipotente e experienciando a sobrevivência do mesmo, poder reconhecê-lo como uma coisa em si, externa e separada do seu eu, como algo que vive por sua própria conta. Se o objeto tem que ser usado, “deve necessariamente ser real, no sentido de fazer parte da realidade compartilhada, e não um feixe de projeções” (1969i[1968]/1994, p. 173). É desse modo que o bebê cria a externalidade do mundo como um novo e necessário sentido do real e pode, a partir de então, usar objetos. É de interesse notar que é o bebê quem, expulsando o objeto para fora do âmbito da onipotência, concede a ele o seu caráter de externo. Essa operação de expulsão do objeto como não mais pertencendo ao mundo subjetivo é chamada por Winnicott de destruição do objeto. Se, na teoria freudiana, é o princípio de realidade que envolve o indivíduo em raiva e destruição reativa, a tese de Winnicott é a de que há uma destruição, anterior a qualquer entrada do princípio de realidade, que desempenha um papel na criação da realidade, com o bebê colocando o objeto fora do si- mesmo. O objeto que é destruído pelo bebê é o objeto subjetivo, ou seja, o material de projeção (criação). Mas – e este é o ponto importante – a experiência de destruição depende de o objeto sobreviver à destruição, o que significa, nesse contexto, não retaliar, não mudar de atitude, não sucumbir. A palavra “destruição” é necessária não em função do impulso do bebê a destruir, “mas devido à suscetibilidade do objeto a não sobreviver, o que também significa mudança de qualidade, de atitude” (1969i[1968]/1994, p. 176). Se o objeto sobrevive à destruição, o padrão de desenvolvimento da agressividade pessoal da criança prossegue e, um pouco mais tarde, servirá de pano de fundo para uma contínua fantasia (inconsciente) de destruição ou provocação. O objeto pode então ser usado. Numa passagem famosa, Winnicott ilustra o que diria o bebê para o objeto: “Eu te destruí”, e o objeto está ali recebendo a comunicação. Daí por diante, o sujeito diz: “Eu te destruí. Eu te amo. Tua sobrevivência à destruição que te fiz sofrer confere valor à tua existência, para mim. Enquanto estou te amando, estou permanentemente te destruindo na fantasia (inconsciente)” (1969i[1968]/1994, p. 174). É apenas nesse momento, portanto, que, segundo Winnicott, começa a fantasia para o indivíduo. A partir daqui, o objeto subjetivo é permanentemente destruído, na fantasia. Observe-se que o amor, no sentido específico desse contexto, só surge após a destruição na fantasia inconsciente. Winnicott também fala em amor primitivo referindo-se aos estados excitados do bebê, carregados de tensão instintual. Mas é toda uma outra coisa o amor ao objeto que sobrevive à destruição: trata-se agora do sentimento de um eu, dirigido para um outro, como pessoa inteira e separada. Ou seja, também o amor é constituído no interior do processo de amadurecimento. Disto se conclui que tanto a realidade objetiva quanto o amor dependem de haver sempre a destruição. “O objeto está sempre sendo destruído”, diz o autor. Essa destruição torna- se o pano de fundo inconsciente para o amor a um objeto real, isto é, para um objeto situado fora da área do controle onipotente do sujeito. Por exemplo, sem a destruição que cria a externalidade, a sexualidade genital não seria possível, se a entendermos não na chave do desenvolvimento das funções sexuais, mas tendo como pré-requisito a conquista do estatuto do eu, separado do não-eu, ambos como pessoas totais (whole persons). Ora, a reação ambiental é, para o indivíduo, a realidade do que deve ser seu próprio impulso provocador, destrutivo ou agressivo. Um bebê, cuja mãe está deprimida, ou outro, a cuja destrutividade a mãe reagiu ou retaliou, “jamais pode experienciar a raiz pessoal da agressão ou da fantasia destrutiva ou fazê-la sua ou ser movido por ela e, por conseguinte, jamais poderá convertê-la na fantasia inconsciente de destruição do objeto libidinizado” (1989xa[1969]/1994, p. 190). Em 1970, Winnicott afirma que “muito da violência do mundo refere-se à tentativa de alcançar a destruição que em si mesma não é destrutiva” (1986j[1970]/1989, p. 208). Para ilustrar esse ponto, Winnicott refere-seao relato que Jung faz de sua primeira infância, no livro autobiográfico, resenhado por Winnicott em 1963. Tudo leva a crer, sustenta Winnicott, que Jung não teve nenhum contato com sua destrutividade básica. Aos quatro anos, um quadro de esquizofrenia infantil já havia se instalado e um sistema defensivo organizou-se para manter a cisão da personalidade em termos de falso e verdadeiro si-mesmo, contra o perigo de uma desintegração do eu. Winnicott aponta para um fator externo precoce que foi a depressão da mãe, compensada, no entanto, pela conduta maternal do pai. Suas brincadeiras de menino consistiam na construção de um edifício seguida sempre por um terremoto que destruía o edifício. “O que não podemos encontrar no material que Jung fornece”, diz Winnicott, “é a destruição imaginativa, seguida por um sentimento de culpa e, depois, pela construção” (1989vv[1963]/1994, p. 370; os itálicos são meus). Ou seja, Jung não se descreve brincando construtivamente em relação com haver destruído (na fantasia inconsciente). De fato, é muito difícil para uma criança chegar precisamente a essa destrutividade se ele é cuidado por uma mãe clinicamente deprimida.23 Esse é motivo pelo qual, diz Winnicott, Jung passou toda a vida buscando um lugar para guardar sua realidade psíquica interna, por mais que esta fosse em verdade uma tarefa impossível. Aos quatro anos, adotou a complexa teoria do subterrâneo do sonho... Baixou ao subterrâneo e encontrou a vida subjetiva. Ao mesmo tempo, tornou-se uma pessoa retraída, o que o fez pensar, erroneamente, tratar-se de uma depressão clínica. (1964h/1994, p. 369) À luz da teoria do amadurecimento, o problema, em Jung, não envolvia uma depressão clínica, uma vez que esta se relaciona à luta, no mundo interno, entre o bom e o mau, e à dificuldade em assumir a responsabilidade para com os aspectos destrutivos da vida instintual, tarefa característica do estágio do concernimento.24 Jung, contudo, já não havia podido alcançar a conquista precedente. Sua questão era, portanto, mais básica: o ponto de origem das dificuldades era a sua incapacidade para a destrutividade que cria a externalidade e, correlatamente, constitui o si-mesmo como um eu separado do não-eu. A capacidade para essa destruição depende da segurança de que o objeto sobreviverá. Jung não podia destruir a mãe na fantasia, expulsá-la de seu controle onipotente para constituí-la como pessoa separada, na exterioridade, porque esta não tinha condições nem de vida, quanto mais de sobrevivência. A conquista da capacidade de usar o objeto é, segundo Winnicott, a mais difícil e árdua do amadurecimento. Na clínica, quando um paciente se debate com essa dificuldade específica, pode ocorrer um fenômeno cuja compreensão requer a seguinte explicitação: no início do processo, o bebê, ou paciente, estava vivendo num mundo subjetivo e o objeto é, por assim dizer, idealizado, perfeito. Como, para chegar ao uso, é preciso destruir o objeto, se as condições não são favoráveis, é possível que o indivíduo recue e proteja o objeto da destruição. De que modo? Ele o fará denegrindo o objeto, sujando-o, aviltando-o, atribuindo-lhe algum tipo de maldade uma vez que “só o objeto perfeito é digno de ser destruído”. 25 Segundo Winnicott, o problema prático, diante da destrutividade, consiste em distinguir entre dois significados: 1) trata-se da destruição do analista como objeto subjetivo, destruição que exatamente cria a externalidade, a qual, quando o indivíduo é saudável, passa a acontecer na realidade psíquica pessoal do indivíduo, em sua vida onírica e em suas atividades lúdicas ou 2) trata-se de deterioração do objeto bom para torná-lo “menos bom” e, por isso, menos sujeito à destruição? Neste último caso, o que ocorre é uma falsa agressividade baseada no temor ou numa recusa a avançar no amadurecimento. 5. A conquista da capacidade para o concernimento Até aqui, falou-se da agressividade que não pode ser entendida como tal, porque, parte intrínseca do impulso amoroso primitivo, é manifestação da espontaneidade e da vitalidade do bebê, e da agressividade que é reação ao cuidado insatisfatório, seja pela falha ambiental em adaptar-se, no início da vida, de forma absoluta, seja pelo fracasso em falhar ao bebê, na passagem para a dependência relativa. Falou-se também da destrutividade que cria a externalidade do mundo e permite o uso do objeto. É apenas no estágio do concernimento que aparece a agressividade propriamente dita, integrada como parte da personalidade, de caráter instintual, relativa à destrutividade que está presente na natureza humana. Essa destrutividade não é outra que a da impulsividade instintual do amor primitivo.26 Mas, até então, o bebê era incompadecido, não sabendo de si mesmo nem do mundo; agora, tendo alcançado o estatuto de um eu unitário, separado do não-eu, ele começa a integrar a instintualidade, e a destrutividade que lhe é inerente, como fazendo parte do eu. Tem início o reconhecimento de que o eu dos estados tranquilos e o dos estados excitados é o mesmo, e mais, que a mãe que o cuida e a que ele ataca nos estados excitados são uma e mesma pessoa. O bebê passa, então, a sentir-se concernido e responsável pelos resultados de seu amor excitado tanto na mãe como em si mesmo. E, diz Winnicott, se é relativamente fácil chegar à destrutividade que existe em cada um de nós, quando ela está ligada à raiva perante a frustração ou ao ódio em relação a algo que desaprovamos, ou quando é uma reação diante do medo, é quase intolerável para os seres humanos em geral assumir plenamente a responsabilidade pela destrutividade que é pessoal e inerente a uma relação com um objeto sentido como bom; em outras palavras, que está relacionada ao amor. Essa conquista só será possível por meio de um desenvolvimento gradual associado às experiências de reparação e restituição (cf. 1984c[1960]/1989, p. 64). Assim que a criança começa a dar-se conta do dano que é provocado pelo seu amor excitado e começa a preocupar-se e a sentir culpa, sua tendência é fazer a reparação do dano ou, como diz Winnicott, a remendar “os buracos” que causou no corpo “cheio de riquezas” da mãe (1955c[1954]/2000, p. 363). Para que essa conquista se estabeleça como capacidade integrada à personalidade, a criança precisa sustentar a culpa por algum tempo e isso só é possível com a ajuda de uma mãe pessoal e viva, que sobrevive e permanece sustentando a situação durante o tempo necessário para esse processo. Após o ataque voraz, a mãe permanece lá, disponível, até o gesto reparador. Se ela continua a sustentar essa situação dia após dia, o bebê tem tempo de organizar as numerosas consequências imaginativas da experiência instintiva e de resgatar algo que seja sentido como “bom”, que apoia, que não machuca, que é aceitável e, com isto, reparar imaginativamente o dano causado à mãe. Essa sequência machucar-e-curar repete-se inúmeras vezes e, gradualmente, o bebê passa a acreditar no esforço construtivo, a suportar a culpa e, assim, a tornar-se livre para o amor instintivo. É a isso que Winnicott chama de círculo benigno e, se este se estabelece, a criança torna-se capaz de descobrir sua destrutividade e seu próprio ímpeto pessoal de dar, construir e reparar (cf. 1958b[1950]/2000, p. 291). Caso contrário, a vida instintiva será inibida e reaparecerá a dissociação entre os estados tranquilos e os estados excitados; o descanso torna-se impossível e fica perdida a capacidade de brincar, alhear-se, concentrar-se. Toda criança tem necessidade premente de contribuir e restaurar. É tarefa da mãe suficientemente boa permanecer ali, disponível para reconhecer e receber o gesto restaurador. A capacidade de reparação de um bebê é muito limitada e ele depende de que alguém reconheça a sua “dádiva simbólica”. É desesperador, para a criança, dar-se conta do dano e não haver ninguém que aceite a oferenda ou reconheça o esforço feito para reparar (cf. 1958b[1950]/2000, p. 291). Nesse caso, a transformação do não compadecimento em compadecimento e culpa se desfaze a agressão reaparece. Já no início, a oportunidade de contribuir pode ser experienciada, pela criança, quando a sua mera presença ilumina o rosto da mãe. Mais tarde, precisa continuar a contribuir e também a restaurar, e ela o faz participando das providências relativas às necessidades da família, constatando ser isso uma necessidade para a felicidade da mãe ou para o andamento do lar.27 É como encontrar seu próprio nicho, diz Winnicott. Se a criança não encontra o nicho onde existir como ela mesma, ela perde a capacidade de encontrar e pode crescer precisando destruir o que se tornou desértico e sem sentido. A criança participa fazendo de conta que cuida do bebê, arruma a cama ou faz doces, mas essa participação só é satisfatória se esse faz de conta for levado a sério por alguém. “Se alguém zomba, tudo se converte em pura mímica e a criança experimenta uma sensação de impotência e inutilidade físicas. Então, poderá ocorrer uma explosão de franca destrutividade e agressão” (1964d/1987, p.101). O estágio do concernimento tem uma longa duração. Pode-se encontrar sinais de preocupação e culpa antes do primeiro ano de vida, e o processo atinge o auge aproximadamente aos dois anos e meio, embora jamais se estabeleça de forma consistente antes dos cinco. Naturalmente, as dificuldades do início são diferentes das que aparecem no final do estágio. Uma dessas diferenças é relativa ao fato de, em algum momento a partir da segunda metade da elaboração da capacidade para o concernimento, o pai entrar em cena como pai, isto é, como terceiro, sendo a sua presença de extrema importância. Até então, ele era apenas um duplicador da função materna, mas, mesmo como tal, assinala Winnicott, algo dele foi acrescentado, algo duro, implacável, intransigente, e que foi vivenciado pelo bebê como um aspecto da mãe. À medida que a criança já é capaz de aceitar a existência separada e externa da mãe, esse elemento paterno se diferencia junto com a pessoa do pai e este passa a ser significativo como homem, transformando-se “num ser humano, alguém que pode ser temido, odiado, amado, respeitado” (1986d[1966]/1989, p. 104). A criança começa a contar com o pai para proteger a mãe de seus próprios ataques a ela, nos momentos do amor excitado. Desse modo, a presença de um pai forte, interventor, ajuda a criança a liberar-se para a vida instintiva e lhe permite correr o risco de movimentar-se, de agir e de excitar-se, porque o pai está por perto, preparado para remendar estragos ou para impedir, com sua força, que eles aconteçam (1969i[1968]/1994, p. 184). Ele torna-se o apoio necessário para a busca de satisfação instintual sem muito perigo. Se o ambiente não puder fornecer esse tipo de proteção, devido à ausência do pai ou por uma depressão da mãe, a criança tornar-se-á inibida e perderá a capacidade para o amor excitado. Terá que adotar, precocemente, um autocontrole dos impulsos antes de estar em condições de fazê-lo sobre a base de uma força paterna que é, gradualmente, incorporada como sua. Nesses casos, há inibição da espontaneidade e do impulso, e um permanente temor de que algum aspecto da destrutividade fuja ao controle. O resultado pode ser uma depressão, intercalada às vezes com episódios de violência. Se, na clínica, a dificuldade que o paciente apresenta está relacionada com a luta entre o bom e o mau, a construção e a destruição inerentes à natureza humana, característica desse estágio do amadurecimento, estaremos lidando com a depressão reativa ou alguma variante dos estados depressivos. Mas isso só é verdadeiro se houve sucesso nas conquistas anteriores e o analista pode enganar-se a respeito desse tipo de problemática se não estiver atento ao amadurecimento como um todo. Há, por exemplo, um tipo de criança, e mesmo de adulto, que se apresenta encantadora, atraente e viva, e que, na situação analítica, está permanentemente divertindo ou presenteando o analista, mas que em casa está sempre irritada e sujeita à instabilidade de humor. O que Winnicott constatou é que, muitas vezes, ela não suporta mais conti nuar a sustentar a depressão da mãe. Esta, por sua vez, tem que suportar o ódio da criança relacionado ao sentimento de ter perdido a própria identidade. Na análise, a criança está sempre fazendo reparações, mas não se trata de reparações de sua própria agressividade pessoal senão das tendências destrutivas da mãe, ocultas na depressão. Essas crianças, diz Winnicott, são como as danaides da mitologia grega; estão condenadas a transportar seus baldes perfurados e nunca chegam à sua própria destrutividade (cf. 1989e[1969]/1994, p.193). Nesses casos, na clínica, é preciso chegar ao sentimento pessoal de culpa dessas crianças com o que, talvez, seja possível aliviá-las e liberá-las para o uso do jogo, do trabalho construtivo ou da atividade criativa que estarão sempre ligados, nos casos favoráveis, com a agressividade, o ódio, a destruição e a ambivalência pessoal. Winnicott relata que uma paciente iniciou a análise com as seguintes palavras: “Quero que me ajude a encontrar minha própria maldade”. Ele comenta que, tendo vivido desde o começo em um ambiente terrível, essa mulher precisou de anos de cuidado analítico para alcançar o ponto de conhecer sua maldade, “o que teria achado em si mesma se tivesse tido um ambiente bom” (1989b/1994, p. 131). Ainda com respeito à necessidade básica que as pessoas têm de encontrar sua própria realidade, um aspecto importante a ser notado, no trabalho clínico, consiste no fato de que alguns pacientes provocam o ódio do analista porque necessitam vivenciar um ódio real e chegar ao estado de se sentirem perseguidos, usando, cuidadosamente, a observação correta do ódio do analista ou de suas falhas para ter onde apoiar a ideia delirante (cf. 1989e[1969]/1994, p. 194). Se as ideias e atos reparadores têm êxito, a criança torna-se cada vez mais audaciosa e isso leva ao enriquecimento da experiência instintiva e da realidade psíquica da criança, onde está se desenrolando uma tremenda disputa entre o bom e o mau. Se observarmos a diferença entre a criança ousada e a tímida, veremos que a primeira tem a tendência a obter o alívio que vem da manifestação aberta de agressão e hostilidade, ficando feliz por descobrir que a agressão manifesta é limitada e consumível. Para a tímida, a agressividade precisa ser posta em algum lugar que não no eu, mas aí a maldade se volta contra ela e surge a expectativa de perseguição. Essa persecutoriedade, note-se, é de outra natureza da que advém das invasões ambientais. Tudo gira em torno da palavra “integração”. Quando há fracasso da integração, precisamos encontrar fora de nós as coisas que desaprovamos. O preço é a perda da destrutividade que, na verdade, nos pertence. Sem a destrutividade, não há amor verdadeiro. Da tolerância com os impulsos destrutivos resulta uma coisa nova: a capacidade de desfrutar das ideias (mesmo que sejam ideias destrutivas) e das excitações corporais que lhe são correspondentes. “Tal desenvolvimento dá espaço para a experiência de preocupação que é, em última análise, a base de tudo aquilo que for construtivo” (1984c[1960]/1989, p. 68). Se uma pessoa está integrada, ela assume responsabilidade por todos os sentimentos e ideias que pertencem ao “estar vivo”. A criança pode, por exemplo, sonhar e, nos sonhos, haverá destruição e assassinato, e essa atividade onírica, que inclui algum grau de excitação corpórea, é uma experiência concreta e não apenas um exercício intelectual. Ela poderá brincar de modo a experimentar, com base na aceitação dos símbolos, tudo o que se encontra em sua íntima realidade psíquica pessoal, tanto a destrutividade como o amor. Em condições favoráveis, um impulso construtivo está relacionado com a aceitação pessoal, por parte da criança, da responsabilidade pelo aspecto destrutivo de sua natureza. “Uma coisa pode ser dita a respeito da pessoa saudável: ela não precisa ficar usando o tempo todo a técnica da projeção para lidar com seus impulsos e pensamentos destrutivos” (1984c[1960]/1989,p. 64). Teórica e clinicamente, há uma grande diferença entre a proposta winnicottiana e a da análise tradicional no que se refere à conquista da capacidade para o concernimento e à tarefa do analista. À luz da teoria tradicional, um paciente só chegará a uma atitude construtiva se puder tornar-se consciente de sua destrutividade. Desse modo, se um paciente presenteia ou faz alguma coisa boa para o analista tradicional, este tenderá a pensar na destruição inconsciente por trás da construção e deverá apontar- lhe o mecanismo. Para Winnicott, contudo, são as experiências construtivas que capacitam o indivíduo a experimentar a sua destrutividade. É através da reparação que a pessoa constrói uma força pessoal que possibilita a tolerância para com a destrutividade pertencente à sua natureza. Diante de uma interpretação, como a do exemplo mencionado, pode ocorrer de o paciente interromper a reparação, tornada falsa e sem valor. Se interrompermos ou impedirmos a reparação, a pessoa torna-se incapaz de assumir a responsabilidade por seus impulsos destrutivos e o resultado clínico será a depressão ou então uma busca de alívio através da descoberta da destrutividade em outro lugar, via mecanismo de projeção (1984c[1960]/1989, p. 68). Não se trata, como querem alguns intérpretes de Winnicott, de ele, em sua teoria, negar ou negligenciar a destrutividade; ao contrário. Contudo, diferentemente da teoria tradicional, sobretudo a de M. Klein, Winnicott entende que, para o paciente aproximar-se de sua destrutividade, ele precisa antes, como uma plataforma, da oportunidade para contribuir, relacionada à vida comum, ou seja, a oportunidade para a atividade criativa, para o jogo imaginativo, o trabalho construtivo etc. Outras vezes, para escapar da depressão e ocultar o fato simples do triunfo do mal sobre o bem, do ódio sobre o amor, da agressão sobre a capacidade de preservação etc., encontramo-nos clinicamente com a confusão, estabelecida como defesa organizada contra a depressão. O indivíduo mantém inconsciente e ativamente um certo grau de confusão e, sobre ela, procedimentos obsessivos que visam, e jamais conseguem, a pôr ordem na confusão (cf. 1989j[1956]/1994, p. 26). Na análise, é importante o paciente saber que a confusão é uma defesa organizada, mas a situação só se altera com a análise do sadismo oral, isto é, da agressividade que está contida no amor primitivo. Quando isso é possível, diminui a desesperança que a confusão esconde. Haveria ainda muito a dizer, o que não é possível no espaço deste artigo, sobre a agressividade que se desenvolve no estágio edípico, com a criança tendo que continuar a administrar a luta, em seu mundo interno, entre os aspectos destrutivos e construtivos, em meio às relações interpessoais e aos formidáveis problemas da triangulação familiar em que entram o conflito de lealdades, todo o jogo de identificações com as figuras paternas, a rivalidade com o genitor do mesmo sexo e, ainda, o fato embaraçoso de que a genitalidade, alcançada no plano da fantasia, não encontra a potência correspondente no plano do desempenho efetivo. Nesse estágio, a criança é, por assim dizer, apanhada pelos instintos e pelo amor, que é violento, e rapidamente se aproxima do ódio. A criança, diz Winnicott, por ter sido um bebê, já conhece o amor e a agressão, assim como a ambivalência e o medo de que aquilo que é amado seja destruído. “Agora, finalmente, na relação triangular, o ódio pode aparecer livremente, pois o que é odiado é uma pessoa que pode se defender, e que, na verdade, já é amada” (1988/1990, p. 72). A agressividade que se manifesta nesse estágio não é de natureza fundamentalmente diversa da que foi tratada no estágio do concernimento. Primeiro, há a destrutividade inerente à natureza humana, acrescida naturalmente dos afetos que estão agora na linha de frente; em segundo lugar, há aquela agressividade que explode se a criança, ao invés de poder cuidar da primeira, vê sua luta deslocada para um cenário de insegurança, derivado, por exemplo, dos conflitos entre os pais ou da desagregação familiar. Haveria também muito a dizer sobre a agressividade que é própria à adolescência, quando há um retorno natural a dificuldades básicas e angústias primitivas. Tal como o bebê, o adolescente empreende a luta para sentir-se real, para não trair o si-mesmo com falsas soluções ao mesmo tempo em que enfrenta o fato terrível de que já não é uma criança pequena e sua capacidade de destruição efetiva é real. Se na fantasia do amadurecimento primitivo estiver contida a morte, então, na adolescência, estará contido o assassinato. Mesmo que o crescimento se dê sem maiores crises, crescer significa ocupar o lugar do genitor. E realmente o é. Na fantasia inconsciente, crescer é, inerentemente, um ato agressivo. E a criança agora já não é pequena. [...] Se a criança tem que se tornar adulta, essa transformação será feita sobre o cadáver de um adulto. (1969a/1989, p. 196) É apenas a passagem do tempo e a experiência do viver que tornam possível a um indivíduo, já rapaz ou moça, aceitar gradativamente a responsabilidade por tudo o que ocorre no mundo de sua fantasia pessoal além de toda a tensão que está associada à identidade de gênero e à escolha sexual do objeto. Quando o começo foi bom e as bases são sólidas e verdadeiras, porque pessoais, ainda assim haverá turbulência, mas, se o ambiente continua a fornecer as condições favoráveis, as chances de a espontaneidade básica sobreviver e o indivíduo continuar a amadurecer são grandes. Se, no entanto, não houve um bom começo e o ambiente volta a fracassar na tarefa de dar sustentação aos novos (velhos) desafios, a ameaça de colapso torna-se sempre iminente. Por isso, há um forte risco de, na adolescência, a agressividade tornar-se manifesta sob forma suicida; alternativamente, ela aparece sob a forma de busca de perseguição, que constitui uma tentativa de escapar da loucura de um sistema persecutório delirante. “Onde a perseguição é deliberadamente esperada, há o risco de que ela seja provocada numa tentativa de fugir à loucura ou ao delírio” (1969a/1989, p. 200). Isso dito, é preciso salientar que, dada a importância que Winnicott concede ao fator ambiental, pode-se erroneamente pensar que, se pais e mães criarem bem os seus bebês, haverá menos problemas. Longe disso, diz Winnicott: Se você fizer tudo o que pode para promover o crescimento pessoal de seus filhos, vai ter de ser capaz de lidar com resultados incríveis. Se seus filhos acabarem se encontrando, não vão se contentar senão em se encontrar em sua totalidade, e isso vai incluir a agressão e os elementos destrutivos em si próprios, assim como os elementos que podem ser rotulados como amor. Vai ser uma longa luta que vocês terão que enfrentar. [...] É claro que meninos e meninas podem dar um jeito de atravessar essa fase, por meio de uma série de acordos com os pais, sem necessariamente manifestar rebelião em casa. No entanto, é prudente lembrar que a rebelião pertence à liberdade que vocês deram aos seus filhos, quando os criaram de modo a que eles existissem por si próprios. Poder-se-ia dizer, em alguns momentos: “Você semeou um bebê e colheu uma bomba”. [...] Os pais não podem fazer muita coisa; o melhor que têm a fazer é sobreviver, sobreviver intactos, sem mudar de cor, sem negar qualquer princípio importante. (1969a/1989, p. 124) Referências Béziers, M. M. & Hunsinger, Y. (1994). O bebê e a coordenação motora. 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Primórdios de uma formulação de uma apreciação e crítica do enunciado kleiniano da inveja, parte II do cap. 53 Melanie Klein: sobre o seu conceito de inveja. In D. Winnicott (1994/1989a), Explorações psicanalíticas. Porto Alegre: Artes Médicas. (Trabalho original publicado em 1989xf[1962]) Winnicott, D. W. (1994). Resenha de Memories, Dreams, Reflections de C. G. Jung. In D. Winnicott (1994/1989a). Explorações psicanalíticas. Porto Alegre: Artes Médicas. (Trabalho original publicado em 1964h) Winnicott, D. W. (1994). Resposta a comentários parte III do cap. 28 Sobre os elementos masculino e feminino cindidos. In D. Winnicott (1994/1989a). Explorações psicanalíticas. Porto Alegre: Artes Médicas. (Trabalho original publicado em 1972c[1968-69]) Winnicott, D. W. (1994). Um sonho de D. W. W. relacionado a uma resenha de um livro de Jung, parte II do cap. 34 Sobre o uso de um objeto. In D. Winnicott (1994/1989a), Explorações psicanalíticas. Porto Alegre: Artes Médicas. (Trabalho original publicado em 1989vv[1963]) Winnicott, D. W. (1994). O uso de um objeto no contexto de Moisés e a religião monoteísta, parte VII do cap. 34 Sobre “o uso de um objeto”. In D. Winnicott (1994/1989a), Explorações psicanalíticas. Porto Alegre: Artes Médicas. (Trabalho original publicado em 1989xa[1969]) Winnicott, D. W. (1994). O uso de um objeto e o relacionamento através de identificações. In D. Winnicott (1994/1989a), Explorações psicanalíticas. Porto Alegre: Artes Médicas. (Trabalho original publicado em 1969i[1968]) Winnicott, D. W. (1997). Introdução primária à realidade externa: os estágios iniciais. In D. Winnicott (1997/1996a). Pensando sobre crianças. Porto Alegre: Artes Médicas. (Trabalho original publicado em 1996o[1948]) Winnicott, D. W. (1997). Pensando sobre crianças. Porto Alegre: Artes Médicas. (Trabalho original publicado em 1996a. Tíulo original: Thinking About Children) Winnicott, D. W. (2000). A agressão e sua relação com o desenvolvimento emocional. In D. Winnicott (2000/1958a), Textos selecionados: da pediatria à psicanálise. Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1958b[1950]) Winnicott, D. W. (2000). A posição depressiva no desenvolvimento emocional normal. In D. Winnicott (2000/1958a), Textos selecionados: da pediatria à psicanálise. Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1955c[1954]) Winnicott, D. W. (2000). Textos selecionados: da pediatria à psicanálise. Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1958a. Título original: Collected Papers: Through Paediatrics to Psychoanalysis) 1. Este texto, originalmente publicado na revista Natureza humana, vol. 2, n. 1, 2000, foi corrigido e revisado para a presente edição. 2 . Em Natureza humana, numa nota de rodapé acrescentada em 1970, ele afirma que a razão que o impediude publicar antes esse livro foi não ter dada por resolvida a questão das raízes da agressividade (Winnicott, 1988/1990, p. 99). 3 . Na obra winnicottiana, a expressão “raízes da agressividade” deve ser tomada literalmente já que, muitas vezes, uma capacidade para a agressividade real não chega jamais a desenvolver-se no indivíduo. 4 . É essa concepção eminentemente winnicottiana acerca do papel do ambiente, tanto para o sucesso quanto para o fracasso no que se refere à estruturação da personalidade do indivíduo, que fornece os fundamentos para se pensar em uma política de prevenção em saúde psíquica. 5 . Em seu livro O bebê e a coordenação motora (1994), as especialistas em psicomotricidade M. M. Béziers e Y. Hunsinger afirmam que o feto está se formando “em movimento” e, embora os primeiros movimentos sejam ainda reflexos, observa-se que eles não são desordenados ou parasitas. Ao contrário, pertencem a um sistema complexo e “se propagam através de músculos definidos, que se encadeiam para descrever um movimento preciso. Esse movimento produz uma sensação muscular e articular, e imprime tensões à pele que fazem parte do conjunto da sensação. A reunião de todas as sensações provocadas pelo movimento reflexo constitui a estrutura fundamental do movimento; é o que chamamos de ‘coordenação motora ou psicomotora’” (p. 10). A coordenação vai dando ao corpo a forma e o sentido que servirão de modelo para todo o desenvolvimento subsequente da criança. Confirmando, a partir de sua especialidade, muitas das concepções de Winnicott, as autoras detalham os cuidados físicos relativos à necessidade do bebê de ser bem “seguro” pela mãe e de estar “enrolado” em suas mãos. Agradeço à Maria Emília Mendonça por ter me mostrado a pertinência desse trabalho. 6 . Béziers e Hunsinger enfatizam, por exemplo, que o tônus muscular do bebê, e sua coordenação, são favorecidos quando, ao mamar, ao ser trocado ou, simplesmente, quando está no colo da mãe, seus pés estão apoiados em alguma coisa e, pelo movimento, fazem pressão contra o braço da poltrona, a mesa ou as mãos da mãe. 7 . As especialistas citadas na nota anterior lembram ao leitor que a vida, para o bebê, é movimento, e que, desde o início, é preciso ter o cuidado de “evitar qualquer entrave à expressão de seu movimento” (Béziers & Hunsinger, 1994, p. 32). 8 . Cf. Winnicott, 1958b[1950]/1978, p. 299. 9 . Winnicott diz que “tudo aquilo que provém do verdadeiro si-mesmo é sentido como real (e posteriormente como bom), seja qual for a sua natureza, não importa o quão agressiva; e tudo aquilo que acontece ao indivíduo enquanto reação à intrusão ambiental é sentido como irreal, inútil (e posteriormente ruim), mesmo que seja sensualmente satisfatório” (Winnicott, 1958b[1950]/2000, p. 389). 10 . Em Natureza Humana, Winnicott afirma que é muito fácil nos enganarmos a respeito de um bebê que responde bem a uma hábil amamentação e deixamos de ver que um bebê “que mama de modo inteiramente passivo nunca poderá criar o mundo e, portanto, não será capaz de construir relacionamentos externos, nem terá futuro como indivíduo” (Winnicott, 1988/1990, p. 128). 11. O termo concern, utilizado por Winnicott, para a conquista que as crianças bem cuidadas adquirem, num certo momento do amadurecimento, da capacidade de sentir culpa e responsabilidade pelo impulso amoroso excitado, é de difícil tradução. Em algumas traduções para o português da obra de Winnicott, usou-se o termo “preocupação”, mas este não cobre inteiramente as acepções do concern. Optei então pelo neologismo “concernimento”, derivado do verbo concernir, embora o significado de “concernir” – “dizer respeito a, ter relação com, referir- se a, tanger a”, segundo o Aurélio e o Houaiss – também não corresponda plenamente ao sentido de “concern”, de preocupação dirigida ao outro que o concern encerra. Tomado, contudo, como um neologismo que serve exclusivamente para designar o conceito winnicottiano, e pela similaridade com o termo inglês, espera-se que o termo “concernimento” vá, pela familiaridade do uso, adquirindo o sentido que tem no original. 12. Há casos, diz Winnicott, em que “o bebê é posto fora de combate iludido pela própria mamada; a tensão instintual desaparece e ele fica ao mesmo tempo satisfeito e ludibriado. Nada mais fácil do que imaginar a mamada terminando em satisfação e sono. Frequentemente, é aflição que se segue a este estar fora de combate, especialmente se a satisfação física rouba-lhe o apetite muito rapidamente. O bebê fica então com: a agressividade não descarregada, pois o erotismo muscular ou impulso primitivo (motilidade) não foi suficientemente utilizado durante a mamada; ou com um senso de ‘fiasco’ (‘flop’), pois uma fonte de fruição da vida foi embora repentinamente e o bebê não sabe que ela irá voltar” (Winnicott, 1955c[1954]/2000, p. 362). 13. Cf. Winnicott, 1972c[1968-1969]/1994, p. 150. 14. Sobre essa questão, cf. Winnicott, 1965r[1963]/1988, sobretudo p. 82. 15. O fato de a mãe precisar oferecer cuidados especiais ao bebê deve-se a que, antes, ela falhou na adaptação às necessidades dele. Winnicott assinala que “a terapia da mãe pode curar, mas isso não é amor materno”. Ou seja, esse tipo de indulgência materna refere-se a uma condição especial e não é aceitável como descrição dos cuidados maternos ordinários. “O amor materno é frequentemente considerado em termos dessa indulgência que é, de fato, uma terapia a respeito de uma omissão do amor materno. Se a mãe realiza essa terapia como uma formação reativa resultante de seus próprios complexos, então o que ela faz chama-se mimar. Na medida em que é capaz de realizá-la porque vê a necessidade de satisfazer as reclamações da criança e de ceder à voracidade compulsiva (avidez) desta, então é uma terapia, geralmente bem-sucedida” (Winnicott, 1958c[1956]/1987, p. 134). 16. Relatando a sua análise com Ella Sharpe, anterior à que fez com Winnicott, Margaret Little conta que, sempre que falava de um dos seus pais, a analista considerava tratar-se de fantasia e “qualquer referência às realidades era interpretada como uma busca de refúgio” contra a análise das fantasias edípicas reprimidas (Little, 1990, pp. 34 e 36). 17. A existência dessa raiva não instintual, mas relacionada à perda do ser, veio-me como uma evidência na prática clínica. Guiada por esse fenômeno, fui procurar, em Winnicott, alguma apreciação que lhe desse base. Como em outros casos, achei afirmações de extremo interesse que estavam esparsas em sua obra. O que apresento é o resultado dessa pesquisa. 18. A expressão “seio bom” não é winnicottiana. Ele a usa nesse texto em que discute o conceito kleiniano de inveja do seio bom, para facilitar o entendimento da diferença acerca da questão da inveja. Em vários outros artigos, como em “O uso de um objeto e o relacionamento através de identificações”, por exemplo, ele diz que “essa linguagem relativa ao seio é puro jargão” (1969i[1968]/1994, p. 129). Em outro texto, numa nota de rodapé, Winnicott afirma que o termo “seio” deve referir-se a toda a técnica da maternagem (1953c[1951]/1975, p. 26, nota 1). Na citação acima, “ter um seio bom” significa, em termos winnicottianos, que o bebê vai se apropriando dos cuidados maternos, tornando-os parte do si-mesmo que caminha em direção à unidade. 19. Winnicott usa o termo “projeção” não no sentido metapsicológico, mas no sentido descritivo e dinâmico, e quer, com ele, significar a “criação” que foi acrescida de elementos da experiência. Cf. Winnicott, 1960c/1988, p. 46, nota de rodapé 12. 20. Esse fenômeno é diferente daquele em que, no início, um padrão de invasões submeteram e aniquilaram o indivíduo e este, defensivamente organizado para impedir o retorno da invasão, passa a não aceitar nada que venha do mundo externo. No caso que agora examinamos, houve, no início, cuidado suficientemente bom e a mãe falha no período de desadaptação. O que se poderia chamar inveja relaciona-se a uma desadaptação brusca ou a um ambiente que se comporta de maneira tantalizadora, ou seja,deu mostras de existir, mas nunca está disponível quando necessário. 21. Com as devidas diferenças, este fenômeno pertence não apenas à doença, mas pode ser observado nos estados comuns de adultos saudáveis uma vez que, quando alguém volta a si após um período de concentração, ele costuma estar sensível e não suporta uma requisição demasiada do mundo externo. 22. Para um maior desenvolvimento da questão referente ao uso de um objeto, veja o artigo, neste mesmo livro, “Winnicott em Nova Iorque: um exemplo da incomunicabilidade entre paradigmas”, pp. 125-150. 23. Cf. Winnicott, 1989vv[1963]/1994, p. 370. Para essas afirmações, Winnicott baseou-se também no livro de Fordham sobre a obra de Jung. Cf. Fordham, 1962, Conferência n.119. 24. Winnicott é incisivo na afirmação das precondições para alguém ver-se envolvido com as questões pertinentes ao estágio do concernimento. Para que a conquista que caracteriza esse estágio seja alcançada, diz ele, é necessário que os estágios anteriores tenham sido ultrapassados com sucesso na vida real ou na análise e que o indivíduo tenha se estabelecido como uma pessoa total e se relacione como pessoa total com pessoas totais (cf. Winnicott, 1955c[1954]/2000, p. 357). 25. Cf. Winnicott, 1969d[1965]/1987, p. 222. 26. No artigo de Winnicott “Ausência e presença de um sentimento de culpa ilustrada com dois pacientes”, há uma passagem que mostra claramente a diferença entre a destrutividade que faz parte do impulso primitivo amoroso e aquela que é reativa às interrupções da linha de ser. O autor está ilustrando a questão da falha do analista e fala de uma paciente que frequentemente tenta destruí-lo, estando essa destruição na linha do amor primitivo que inclui ideias de comer e incorporar o que ela valoriza no analista. A questão fundamental, para essa paciente, era alcançar um autêntico sentimento de culpa. Num momento em que isso estava sendo tentado, Winnicott cometeu uma falha e desviou a paciente da sua questão, de modo que, diz ele, “agora ela queria matar-me, mas não como parte de seu impulso primitivo de amor senão como reação por eu ter quebrado seu processo de crescimento” (Winnicott, 1989b/1994, p. 130). 27. Nesse ponto, apesar da diferença de perspectiva teórica, H. Searles coincide com Winnicott ao desenvolver a tese segundo a qual toda pessoa humana traz em si a necessidade de ser terapêutica. No seu artigo “O esforço de tornar o outro louco”, Searles destaca como um dos elementos na etiologia da esquizofrenia o fato de a família do paciente recusar a tentativa da criança de ajudar, de colaborar. Cf. Searles, 1959/1965. 5 Winnicott em Nova Iorque: um exemplo da incomunicabilidade entre paradigmas1 1. Aspectos gerais do debate Em 12 de novembro de 1968, a Sociedade Psicanalítica de Nova Iorque (NYPS) promoveu um encontro científico no qual Winnicott fez uma palestra intitulada “O uso de um objeto” (“The Use of an Object”), seguida de um debate com quatro analistas. Sua contribuição não foi bem recebida e quase não houve tempo para ele responder às arguições. Há alguns anos, eu soube que uma Ata desse encontro achava-se nos arquivos da NYPS. Por algum tempo, tentei, sem sucesso, conseguir uma cópia. Por fim, devido ao empenho do Dr. Miguel Antonio de Mello Silva, a quem também devemos a tradução e a obtenção da autorização para a sua publicação, a Ata está agora disponível em português e publicada na Revista Natureza humana, vol. 7, n. 1, 2005, pp. 237-249.2 A concepção contida no artigo “O uso de um objeto”, lido no encontro de Nova Iorque, é um ponto culminante do pensamento teórico de Winnicott, em especial no que diz respeito ao relacionamento objetal e às raízes da agressividade. Publicado inicialmente em 1969, no International Journal of Psychoanalysis, sob o título “The Use of an Object and Relating Through Identifications” (“O uso de um objeto e relacionamento por identificações”), voltou a ser editado, em versão ligeiramente modificada, como o capítulo 6 de Playing and Reality, em 1971. Posteriormente, foi reeditado no livro Psychoanalytical Explorations, de 1989, no capítulo intitulado “On ‘The Use of an Object’” (“Sobre ‘O uso de um objeto’”) que contém, além do artigo central (parte I), outras seis partes cujo conteúdo está de algum modo relacionado à mesma temática. A parte II apresenta um trecho de uma carta de Winnicott a um colega na qual relata ter tido um sonho cuja temática está relacionada ao conceito de uso de um objeto. As partes III e IV contêm apontamentos esparsos feitos por Winnicott sobre o mesmo assunto, sendo que, na parte IV, Winnicott propõe uma reflexão, escrita em fevereiro de 1968, sobre o uso da palavra “uso”. Na parte V, encontra-se a ilustração clínica oferecida aos debatedores por ocasião do evento de Nova Iorque. Na parte VI, estão os comentários escritos por Winnicott, em dezembro de 1968, à luz das críticas que lhe foram feitas no debate que se seguiu à apresentação e, em especial, conforme assinalaram os organizadores do livro Psychoanalytical Explorations, como resposta à objeção feita por um dos debatedores, segundo o qual Winnicott teria negligenciado “a importância do componente libidinal das pulsões instintuais no tocante à sobrevivência do objeto”. Numa última parte, a VII, datada de janeiro de 1969, Winnicott coteja a sua teoria do uso de um objeto com a concepção freudiana das origens da agressividade em Moisés e o monoteísmo. Por ocasião do evento em Nova Iorque – parece que logo após a palestra –, Winnicott adoeceu gravemente e teve que ser hospitalizado. Especulou-se que ele teria adoecido em virtude da prolongada tensão a que esteve exposto durante a difícil e até mesmo hostil recepção à sua palestra. Contudo, em sua biografia de Winnicott, Robert Rodman relata que os já conhecidos problemas coronários do psicanalista inglês haviam voltado a afligi-lo, desde agosto desse mesmo ano, e que, além de seu já delicado estado de saúde, ele pegou nessa ocasião a gripe asiá tica, o que complicou todo o quadro, o qual pode ainda ter sido agravado pelo esforço exigido para a apresentação e debate do texto. Em virtude da precária condição geral da saúde de Winnicott, os médicos aconselharam que a viagem de retorno a Londres fosse retardada, tendo ele permanecido algum tempo em Nova Iorque. Nessa época, a Sociedade de Psicanálise de Nova Iorque era um centro de psicanálise internacionalmente reconhecido como a sede, nos EUA, da Psicologia do Ego, desenvolvida por Hartmann, Kris e Loewenstein no interior do paradigma freudiano. A NYPS era também vista como rígida, doutrinária e pouco aberta a contribuições não ortodoxas. O convite a Winnicott havia sido feito como parte do movimento da sociedade de abrir- se para o novo. Ao convidá-lo, pensavam estarem se abrindo para um analista kleiniano,3 o que mostra o quanto os psicanalistas nova-iorquinos estavam fora de contato com o que se passava em Londres. A ata da reunião da NYPS dá-nos uma ideia clara dos termos em que a palestra de Winnicott foi recebida e debatida. Bastante fidedigna, como se pode comprovar pela comparação com o texto do artigo de Winnicott posteriormente publicado, ela é um documento precioso para quem estuda a história da psicanálise e a contribuição winnicottia na, não apenas por explicitar os tipos de questão e de argumento levantados pelos debatedores – argumentos não muito diferentes dos que ainda hoje encontramos –, como também por fornecer uma ilustração da tese de Thomas S. Kuhn sobre a dificuldade de interlocução entre os adeptos de paradigmas diferentes de uma mesma disciplina e sobre o modo como estes se tornam refratários ao questionamento de seus compromissos teóricos de base. De fato, o conceito de uso de um objeto proposto por Winnicott na palestra em Nova Iorque pertence a um campo semântico radicalmente novo, difícil de ser apreendido dentro do horizonte teórico em que o pensamento psicanalítico tradicional se desenvolveu. Em primeiro lugar, por tratar-se de uma questão inédita, a saber, a maneira como se iniciaa relação com a realidade externa, cujo encaminhamento teórico é apresentado por Winnicott numa perspectiva igualmente original. Diferentemente do pensamento psicanalítico tradicional, Winnicott sustenta que a capacidade de relacionamento com a realidade externa é uma conquista que não pode ser suposta como dada. Além disso, essa conquista é pensada sobre o fundo da concepção winnicottiana de tendência ao amadurecimento, processo durante o qual acontece a constituição paulatina de diferentes sentidos de realidade – a realidade do mundo subjetivo, a do espaço intermediário que se inicia com os fenômenos transicionais e a do mundo externo –, concepção que é uma das inovações teóricas mais ousadas de Winnicott, pela qual ele se distancia do monismo ontológico da teoria tradicional – que trabalha com um único sentido de realidade –, exigindo, a fim de ser devidamente apreciada, um horizonte filosófico igualmente não ortodoxo.4 Em segundo lugar, a teoria winnicottiana do uso de um objeto contém uma exigência inovadora: a de se levar em conta, na teoria e na clínica psicanalíticas, os fenômenos humanos que escapam da órbita do instintual (pulsional, dir-se-ia na teoria tradicional), em especial, os que dizem respeito às raízes da destrutividade. Em terceiro lugar, o conceito de uso de um objeto requereria, para ser efetivamente compreendido, que alguns outros conceitos especificamente winnicottianos, como o de objeto subjetivo, tivessem sido entendidos; esse não foi o caso dos interlocutores de Winnicott, que confundiram, por exemplo, “objeto subjetivo” com “objeto interno” – conceitos diferentes, referidos a conquistas que pertencem a diferentes etapas do amadurecimento. Acrescente-se que o diálogo deve ter sido dificultado pelo fato de os analistas nova-iorquinos estarem esperando um kleiniano, sendo que a teorização winnicottiana sobre o uso de um objeto, que inclui a concepção de uma destrutividade de raiz não instintual e desvinculada do ódio, talvez seja o que há de mais distante possível, na psicanálise, do paradigma ao qual o pensamento de Klein estava filiado. Por tudo isso, a falta de compreensão das teses expostas por Winnicott não surpreende. Pela Ata, percebe-se que, mais do que um debate, o que houve foi uma espécie de julgamento público de Winnicott, enquanto analista inovador, com base nos compromissos teóricos característicos da matriz disciplinar da psicanálise freudiana. Ao invés de produzir uma discussão de ideias, a palestra de Winnicott serviu apenas de ocasião para a reafirmação de teses tradicionais. O debate teve um teor defensivo, tendo sido deixado um tempo exíguo para que o palestrante respondesse às críticas. Na verdade, não houve debate: mais do que não entender, é provável que os analistas americanos estivessem pouco dispostos a ouvir – no sentido geral e até mesmo especificamente psicanalítico desse termo – o que Winnicott lhes trazia de novo. 2. O teor central do artigo No que se segue, farei uma exposição dos pontos centrais do artigo “O uso de um objeto e relacionamento através de identificações”, baseado, conforme vimos, no texto da palestra de Winnicott em Nova Iorque.5 Destacarei ainda algumas dificuldades conceituais e terminológicas do texto, que podem ter contribuído adicionalmente para a falta de compreensão dos interlocutores nova-iorquinos. O colapso quase total de comunicação que ocorreu no debate não se deveu apenas a essas dificuldades. Alguns esclarecimentos podem, contudo, ajudar a evitar que elas continuem a obstruir a recepção presente e futura desta original e profunda contribuição de Winnicott para a teoria e para a clínica psicanalíticas. Logo no início do artigo, Winnicott assinala que o conceito central ali formulado, o de uso de um objeto, é um dos mais difíceis de sua já complexa teoria do amadurecimento pessoal e que se refere à conquista que, segundo ele, é talvez “a coisa mais difícil do desenvolvimento humano, ou, o mais cansativo de todos os primitivos fracassos que nos chegam para posterior reparo” (1969i[1968]/1994, p. 174). O artigo descreve o modo como se dá a passagem, na linha do amadurecimento, do sentido mais básico de realidade, o do mundo subjetivo, no qual o bebê habita até então, para um outro sentido de realidade, o de realidade externa, compartilhada. Mais precisamente, Winnicott focaliza a diferença entre o modo inicial de relacionamento com objetos ainda subjetivos – pertencentes ao mundo subjetivo – e os modos posteriores e mais avançados de relacionamento com objetos já externos (percepção, fantasia, amor, ódio, identificações cruzadas etc.), que estão na realidade objetivamente percebida. O primeiro e mais primitivo modo de ter algo como objeto foi denominado, por Winnicott, “relacionamento com um objeto” (object-relating) e diz respeito ao objeto subjetivamente percebido. Essa denominação acarreta dificuldades terminológicas e de tradução que serão examinadas a seguir. Para designar o segundo e posterior modo de relacionamento, Winnicott utilizou a expressão “uso de um objeto”, a qual se refere ao relacionamento com objetos objetivamente percebidos. O que, em suma, Winnicott quer salientar é que a passagem de um para outro modo de relacionamento objetal não é automático; trata-se de uma conquista que, como todas as outras do amadurecimento, precisa, para realizar-se, do favorecimento ambiental. Essa conquista acontece mediante a criação, pelo indivíduo, de um novo sentido de realidade, o da realidade externa, compartilhada. O início da conquista ocorre numa etapa do amadurecimento em que, após ter feito já algumas experiências com os fenômenos transicionais, o bebê, impulsionado pela própria tendência ao amadurecimento, arrisca introduzir uma alteração, de natureza agressiva, na relação com o objeto até então subjetivo. O objeto subjetivo é, na verdade, do ponto de vista do observador, a mãe real; se esta reagir bem à alteração, uma nova modalidade de relacionamento objetal – a capacidade de relacionar-se com objetos externos – irá se acrescentar, como uma conquista, às possibilidades do indivíduo. Ou seja, também para chegar a relacionar-se com objetos externos, enquanto externos, o favorecimento do ambiente é essencial para que a conquista se efetive. Caso isso não ocorra, a conquista pode fracassar, o que significa que não se pode, em todos os casos, supô-la como dada. Marco importante do processo de amadurecimento, essa dupla conquista – a de um novo sentido de realidade, a realidade externa, e a de um novo modo de relacionamento com objetos, que Winnicott denomina de uso de um objeto – é decisiva para a constituição do indivíduo como entidade unitária, sendo a base para todos os relacionamentos futuros com os objetos não-eu, separados e externos ao si-mesmo. Constitui, além disso, o fundamento da saúde psíquica, uma vez que, para o autor, só há saúde se o indivíduo alcança a realidade externa (os objetos externos), sem perder contato com a sua realidade subjetiva (os objetos subjetivos). Durante toda a fase que é anterior à conquista que ora examinamos, o bebê viveu num mundo subjetivo e relacionou-se com objetos subjetivos, incluída aí a fase em que surgem os fenômenos transicionais.6 O que acontece na passagem que leva de um para outro tipo de relacionamento? O arriscado movimento de expulsar o objeto (subjetivo) para fora do âmbito de onipotência, conferindo a ele, criativamente, caso o objeto sobreviva, o caráter de externo. O objeto que está, nesse momento, em vias de ser expulso, é o objeto subjetivo.7 Em outras palavras: até ser expulsa do mundo subjetivo do bebê, o que ocorre nesta etapa do amadurecimento, a mãe – que é e sempre foi externa do ponto de vista do observador – era objeto subjetivo do bebê. Ela se manteve como objeto subjetivo, por todo esse tempo, por ser suficientemente boa, o que significa que ela evitou impor a sua externalidade ao bebê, levando em conta a imaturidade deste para se relacionar com objetos com esse sentido de realidade. Agora, é o bebê que, expulsando a mãepara fora do âmbito de onipotência, confere a ela o caráter de externa; se ela sobreviver (não mudar de atitude, não retaliar), ele poderá começar a usá-la, como se usa um objeto que é externo ao si-mesmo. A conquista da capacidade de uso do objeto implica, portanto, uma transfiguração do objeto, até então subjetivo para o bebê, em algo que aparece agora em sua externalidade. O objeto pode então passar a ser usado. O que acontece no uso é que esse uso não depende mais, apenas, da onipotência do indivíduo e, por isso, este precisa levar em conta as propriedades efetivas do objeto ele mesmo, ou seja, respeitar o princípio de realidade, expressão que, nesse contexto, recebe um sentido especificamente winnicottiano. Como ocorre propriamente a expulsão da mãe, pelo bebê, para fora do mundo subjetivo? A partir de outros textos, e à guisa de esclarecer a peculiar destrutividade do uso de um objeto, pode-se dizer o seguinte: o bebê que, a essa altura, tem por volta de 10, 11 ou 12 meses, e está bem mais forte e vigoroso do que alguns meses atrás, manifesta uma certa mudança de atitude: sem estar irritado, raivoso ou zangado, mas de uma maneira, que se poderia dizer, provocativa, ele começa a desgastar o seio, a dar mordidas, a chutar, ou então, a apresentar má vontade, relutância, displicência ou indiferença. Em geral, após a agressão, o bebê observa a reação da mãe, como que experimentando a solidez do terreno em que pisa. Essa nova atitude do bebê pode afetar a mãe, em especial se ela estiver deprimida ou não estiver preparada; pode fazê-la sentir-se pessoalmente ofendida ou maltratada ou desconsiderada, e pode provocar nela uma reação retaliatória. Segundo Winnicott, é essencial que a mãe sobreviva a esse período, o que significa que, mesmo recusando e impedindo a agressão, ela não altera a sua atitude básica com o bebê, e, em especial, que ela não revida, não retalia. A operação de expulsão do objeto é chamada, por Winnicott, de destruição do objeto. O termo destruição, esclarece o autor, é necessário por duas razões. Em primeiro lugar, devido ao impulso real do bebê de destruir (sem raiva), que em geral é efetivado por ocasião da relação excitada com o objeto ainda subjetivo, mas, sobretudo, devido à possibilidade de o ambiente (mãe) não sobreviver à destruição. Se o ambiente sobreviver, a destruição transforma-se, para o bebê, na experiência da possibilidade de destruir (agredir), ou seja, na integração da destrutividade como um aspecto da sua potência, o objeto sendo agora visto como seguro para ser usado excitadamente. Esse desenvolvimento abre todo um mundo novo, toda uma nova gama de possibilidades de relação com a realidade externa, compartilhada, e com os objetos que a povoam. Na formulação de Winnicott: se o objeto continuar lá, o mundo (externo) terá início;8 se, pelo contrário, o ambiente não sobreviver, se ocorrer a sua “destruição” (o objeto sucumbe e retalia), o bebê perde o apoio, o seu impulso de uso excitado fica perigoso, e, desse modo, a nova fase de relacionamento objetal não tem início. Ele terá que permanecer num mundo puramente imaginativo, num mundo que é um feixe de projeções, sem o enriquecimento que provém da experiência com a realidade externa.9 Na conquista da capacidade de usar objetos está, portanto, envolvida uma destrutividade “sem raiva”, que não tem, ela mesma, base instintual – embora se apoie na destrutividade do impulso amoroso primitivo e se efetive nos momentos de excitação instintual. Essa destrutividade, que é impulsionada pela tendência ao amadurecimento e à integração em uma unidade, está a serviço da separação entre o eu e o não-eu.10 Se, no contexto teórico aberto pelo conceito de uso do objeto, a destrutividade for entendida como sendo de natureza instintual, todo o sentido do artigo se perde. O conceito de “uso de um objeto” representa o ponto culminante de uma linha central da pesquisa revolucionária desse autor – a que tem por objetivo reescrever a teoria psicanalítica da agressividade a partir de raízes não “instintuais”. Diz o autor: “Não se chegará a parte alguma em nosso estudo da agressão se, em nosso modo de entender a natureza humana, tivermos a agressão como irrevogavelmente vinculada ao ciúme, à inveja, à raiva pela frustração, ao funcionamento dos instintos que chamamos de sádicos” (1989n[1970]/1994, p. 221). Embora todos esses elementos devam ser levados em conta se tivermos em mente uma teoria geral da agressividade, o fato é que, no que se refere às raízes da agressividade humana, faz-se necessário examinar uma raiz não constitucional e não instintual da agressividade, pois, segundo Winnicott, a agressividade está sempre ligada “ao estabelecimento da distinção entre o que é eu e o que é não-eu” (1964d/1987, p. 98; os itálicos são meus). Ou seja, existe uma agressividade de raiz maturacional a serviço do processo de separação entre o eu e o não- eu, o que significa dizer: a serviço da constituição da identidade do indivíduo humano. É essa agressividade que está presente no estágio em que o indivíduo passa do relacionamento com o objeto para o uso do objeto, juntamente com a destrutividade que é interna ao impulso amoroso primitivo. Está aqui formulada uma grande modificação teórica: enquanto, na teoria tradicional, a raiva e a destruição são atribuídas à frustração diante do princípio de realidade ou então à pulsão de morte, em Winnicott existe uma destruição que não decorre do encontro com a realidade externa nem é de origem interna, mas que, impulsionada pela própria tendência ao amadurecimento, estabelece um novo modo de relacionamento com o ambiente e os objetos, desempenhando um papel essencial na criação da realidade externa. Convém agora explicar melhor os conceitos envolvidos nesse breve resumo. O objetivo é duplo: de um lado, enfatizar algumas sutilezas conceituais da concepção winnicottiana de “o uso de um objeto” e, de outro, tentar esclarecer algumas dificuldades conceituais e terminológicas do artigo de Winnicott, orientada, neste último caso, em especial, pelas objeções dos interlocutores no debate de Nova Iorque. Em primeiro lugar, no artigo em questão, Winnicott usa a expressão relating to an object, relacionamento com um objeto11 (ou ainda, object- relating, relacionamento com objeto ou relacionamento objetal12), exclusivamente para se referir ao relacionamento com objetos ainda subjetivos (não separados do indivíduo), que vigora na etapa mais primitiva do amadurecimento. Como, na teoria tradicional, o relacionamento com o objeto subjetivo nunca chegou a ser considerado, jamais houve o emprego da expressão nesse sentido; a expressão “relacionamento com um objeto” é utilizada para falar de relações com objetos em geral, considerados separados do indivíduo; tudo isso criou sérias dificuldades de compreensão por parte dos debatedores de Winnicott. Um complicador adicional, nesse ponto, consistiu em que o próprio Winnicott costuma, em outros textos, usar o termo object-relating no sentido amplo, abrangendo todos os modos de relacionamento objetal. Acrescente-se ainda que, quando aplicada ao que acontece entre o bebê e o seu objeto subjetivo, a expressão é problemática, pois o contato inicial com o objeto não pode, a rigor, ser chamado de relacionamento, uma vez que ainda não há dois elementos “em relação”, mas apenas o dois-em-um da unidade mãe/bebê. Winnicott sabe dessa dificuldade, chegando a afirmar, em outro texto, ser axiomático para ele “que não há relacionamento com um objeto subjetivo” (1989n[1970]/1994, p. 221), referindo-se, naturalmente, ao relacionamento de dois elementos separados. No artigo aqui comentado, contudo, Winnicott está exatamente interessado em descrever a natureza peculiar do “relacionamento” entre mãe e bebê, antes de estes se separarem como indivíduos, e o modo como ocorre a passagem para o outro tipo mais adiantado, de relacionamento, o do uso do objeto.13 Note-se que em nenhum dos casos – tanto no “relacionamento com um objeto” quanto no “uso de um objeto” – trata-se de uma merarelação formal ou mental, mas de uma capacidade de relacionar-se cuja natureza precisa ser determinada em cada caso. Além disso, a expressão “um objeto”, que ocorre nas duas fórmulas (relacionamento com um objeto e uso de um objeto), fala de um algo que é assim ou assado (subjetivo ou externo), de modo que as expressões em questão podem ser parafraseadas por fórmulas abertas: “relacionar-se com...” e “usar o...”, as reticências designando o lugar a ser preenchido pelo nome ou por uma descrição de algo.14 A terminologia de Winnicott, no presente contexto, é construída segundo a mesma gramática que é observada em seus textos sobre a crença que é construída a partir da confiabilidade ambiental, expressa pela fórmula “crença em...”, as reticências indicando o lugar da descrição de uma pluralidade de coisas nas quais se crê (mãe, pai, Deus, família, professores, amigos etc.).15 Resta ainda destacar dois pontos conceituais que foram quase unanimemente considerados incompreensíveis e mesmo inaceitáveis pelos analistas debatedores. Ambos dizem respeito ao modo como Winnicott caracterizou o relacionamento com um objeto, ou seja, o relacionamento inicial do bebê com a mãe, antes de estes se separarem como indivíduos. Vejamos o primeiro. Sabemos, já por outros textos do autor, que o bebê cria a mãe e, também, se identifica com ela. No artigo, após salientar que há um momento dos estágios iniciais em que ocorrem certas alterações no eu (si- mesmo), que permitem que o objeto se torne significativo (Winnicott está se referindo à relação do bebê com seu primeiro objeto de eleição, o objeto transicional), ele afirma que “mecanismos de projeção e identificações estiveram operando e o sujeito está esvaziado a ponto de algo do sujeito ser encontrado no objeto, embora enriquecido pelo sentimento” (1969i[1968]/1994, p. 172). A objeção levantada por alguns dos debatedores consiste em dizer que, se já há mecanismos de projeção, então já existe a relação com a realidade externa, o que torna desnecessária a teorização sobre o uso do objeto como passagem de um mundo subjetivo “solitário” (ainda que se trate da unidade primitiva indiferenciada mãe- bebê) para o mundo compartilhado. Tudo leva a crer, portanto, que o termo “projeção” foi entendido, pelos debatedores, no sentido habitual com que é usado na literatura psicanalítica. No artigo, contudo, assim como em algumas outras passagens de sua obra em que está se referindo aos estágios iniciais, Winnicott usa o termo “projeção”, não no sentido técnico, psicanalítico, do mecanismo mental, cujo oposto é a introjeção, mas num sentido próprio e peculiar, o de criação – do objeto ou do ambiente, a partir da necessidade e do impulso. É nesse mesmo sentido que, num texto escrito na década de 1960, Winnicott afirma que o bebê, na etapa inicial da vida, só pode receber o que vem do mundo externo, se essas coisas puderem ser recebidas na área de “onipotência do lactente e sentidas como projeções” (1960c/1983, p. 46), isto é, como criações dele.16 Por que razão Winnicott usa o termo projeção, nesse sentido não usual? Para distinguir a criação primária, que estabelece o primeiro contato entre o bebê e a mãe, e que não é projetiva, das criações que vêm a seguir, já enriquecidas pela experiência e, portanto, já projetivas. Explicando melhor: a criatividade originária, presente desde o início como uma capacidade própria do indivíduo humano, começa a valer-se das experiências e torna-se projeção, isto é, criação de objetos a partir da necessidade e do impulso, acrescidas de qualidades do próprio objeto que, contudo, foram experienciadas pelo indivíduo como sendo dele mesmo. É nesse contexto que Winnicott afirma que o indivíduo, ao se relacionar com o objeto, vive num mundo que é um “feixe de projeções”, ou seja, num mundo que, com seus objetos, é o resultado da criação que o bebê faz a partir da necessidade e do impulso, tese igualmente inaceitável para os seus interlocutores.17 Voltando à frase polêmica, Winnicott diz que, durante o relacionamento com um objeto, estiveram operando, além dos mecanismos de projeção, também as identificações. Isto é, além da criação primária, o que caracteriza a relação de dois-em-um do bebê com sua mãe é a experiência de identificação primária com o objeto (mãe), pela qual, durante a experiência excitada da amamentação, o bebê torna-se o objeto, fazendo, desse modo, as primeiras experiências de uma identidade primária própria. Ser o objeto, pela identificação primária, é a forma mais simples e primitiva de relacionamento com um objeto e constitui a base para todas as experiências futuras de identificação, que irão possibilitar os relacionamentos e a comunicação através de identificações cruzadas, as quais pressupõem a capacidade de usar objetos e já incluem, nessa altura, os mecanismos de projeção e introjeção da psicanálise tradicional.18 Se a conquista do uso do objeto fracassa, o indivíduo fica aprisionado na identificação primária e na comunicação com objetos subjetivos, que é, segundo Winnicott, “um beco sem saída”. Ele não chega ao mundo compartilhado. Foi para salientar esse aspecto do amadurecimento que Winnicott, ao publicar o artigo baseado na palestra, alterou o título para “O uso de um objeto e o relacionamento através de identificações”. A diferença entre relacionamento com um objeto e uso de um objeto, sendo essa passagem a base para as futuras formas mais avançadas de relacionamento, torna-se mais clara se for comparada com a distinção entre ser e fazer, introduzida por Winnicott num artigo de 1966, intitulado “Os elementos feminino puro e masculino puro cindidos”. Enquanto o “elemento feminino puro” relaciona-se a essa experiência de ser, o “elemento masculino puro” relaciona-se com o fazer. Percebendo estar teorizando sobre conflitos essenciais, não configurados como tais na clínica até então, escreve Winnicott: No extremo, descobri que estava examinando um conflito essencial dos seres humanos, que deve acontecer numa época muito primitiva: o que existe entre ser o objeto, que também tem a propriedade de ser, e, em contraste com isso, uma confrontação com o objeto que implica atividade e relação de objeto baseada em instinto ou moção. Isto resultou ser uma nova formulação do que antes tentei descrever como objeto subjetivo e objeto objetivamente percebido. (1972c[1968-69]/1994, p. 149) Correlacionando os dois textos, pode-se dizer que a distinção entre “ser” e “fazer”, do texto de 1966, é aproximadamente a mesma que a distinção entre “relação com o objeto” e “uso do objeto”, do texto de 1968, com uma diferença significativa: a capacidade de usar objetos (correlata ao fazer) é, na linha maturacional, pré-requisito para esse fazer. Com respeito ao relacionamento primitivo, ou seja, à experiência de ser, Winnicott diz: “Não consigo ver impulso instintual nisso” (1971va[1966]/1994, p. 140). Trata- se, aqui, portanto, da linha identitária do amadurecimento, distinta da linha instintual (Loparic, 2005). 3. Implicações para a clínica Ao assinalar a diferença maturacional entre o relacionamento com um objeto e o uso de um objeto, Winnicott chama a atenção para implicações importantes – eu diria, cruciais – para a clínica psicanalítica. Se a conquista da capacidade de usar objetos e, a partir daí, de relacionar-se com a realidade externa, pode fracassar devido a falhas ambientais, então o analista deve levar em conta o fato de existirem pessoas que não fizeram essa conquista, o que significa que elas não estão capacitadas a estabelecer uma relação com o analista como objeto externo em termos de uma neurose de transferência. Um dos objetivos de Winnicott, nesse artigo, é precisamente mostrar as graves implicações, para a clínica psicanalítica, de o analista não considerar essa possibilidade e continuar a agir, e a interpretar, como se o paciente, ao invés de imaturo, nesse sentido específico, estivesse resistindo, por infantilismo e/ou apego ao princípio de prazer, a aceitar o princípio de realidade. Uma vez atento para a possibilidadede o indivíduo não ter realizado a conquista da capacidade de usar objetos, o analista terá, como objetivo inicial, conduzir o paciente pelas etapas primitivas que se fizerem necessárias, até que este se torne capaz de usá-lo, a ele, analista, nesse sentido da externalidade. É apenas após essa conquista que o analista poderá ser percebido, pelo paciente, como tendo uma existência independente, como alguém que ali está devido às suas propriedades, e não às projeções do paciente, podendo então estabelecer-se, na situação de análise, o que pode ser chamado, de pleno direito, de relação de transferência. É somente depois de esta conquista ter se estabelecido que o analista poderá ser, real e verdadeiramente, amado e/ou odiado. Pode-se dizer que uma grande parte da teoria de Winnicott dedica-se a explicitar as razões pelas quais o trabalho analítico com psicóticos – indivíduos que, em sua concepção, específica para o ponto que ora examinamos, são aqueles que não se tornaram capacitados a usar um objeto – requer modificações na técnica clássica e uma delas consiste no fato de que, para esses pacientes, o manejo é mais importante do que a interpretação. Existem casos em que a interpretação é desaconselhável, podendo ser altamente prejudicial, por não reconhecer a situação de imaturidade do paciente, constituindo-se em apelo para uma compreensão intelectual que apenas aprofunda dissociações e não promove a integração. Para que a prática interpretativa, no sentido tradicional, seja aconselhável e analiticamente benéfica, ela precisa estar “relacionada à capacidade que o paciente tem de situar o analista fora da área dos fenômenos subjetivos” (1969i[1968]/1994, p. 172). Se o paciente acha-se ainda “isolado”, ou seja, se ele não fez a passagem do relacionamento com objetos (subjetivos) para o uso do objeto, a análise estará fadada a ser, em verdade, uma espécie de autoanálise, com o paciente falando com um objeto que é parte do si- mesmo, um “feixe de projeções”. Nesses casos, antes de empreender o trabalho interpretativo, o analista deverá fornecer ao paciente um setting regular e confiável, algo que não se constrói com interpretações, e, no interior do qual, a existência contínua de um meio ambiente facilitador e confiável faça a parte silenciosa do trabalho analítico, permitindo, tacitamente, caso se faça necessário, que aconteça um período de regressão à dependência, com a adaptação quase absoluta que esta implica. Não foi por acaso que Winnicott, logo no começo do artigo, menciona os riscos contidos na análise de fronteiriços. Nesses casos, o paciente, que cresceu intelectualmente, mas cujo processo de amadurecimento pessoal foi interrompido numa etapa primitiva, exibe uma falsa personalidade, cuja problemática, aparentemente neurótica, esconde um cerne psicótico. O paciente encontra-se, na verdade, aprisionado num limbo entre o mundo subjetivo, que não pode mais ser o seu único lugar de habitação – sendo a comunicação exclusiva com objetos subjetivos um monólogo –, e o mundo externo compartilhado, que não foi verdadeiramente alcançado, mas cujas regras e exigências de performance são rigorosamente aprendidas e até mimetizadas. Winnicott alerta que, em tais casos, o psicanalista pode ser conivente, durante anos, com a necessidade do paciente de ser psiconeurótico (em oposição a louco) e de ser tratado como tal. A análise vai bem [pois o paciente, que padece pela ausência de agressividade é, em geral, extremamente colaborativo no que se refere à tarefa interpretativa do analista] e todos manifestam satisfação. O único inconveniente está em que a análise jamais termina. Pode ser concluída e o paciente pode mesmo mobilizar um falso eu (si-mesmo) psiconeurótico, para finalizar o tratamento e expressar gratidão. De fato, porém, ele sabe que não houve alteração no estado (psicótico) subjacente e que analista e paciente tiveram êxito em conluiar-se para provocar um fracasso. Mesmo esse fracasso pode ser valioso se analista e paciente o reconhecerem. (1969i[1968]/1994, p. 172) O paciente que não destruiu objetos do mundo subjetivo e não criou o mundo da realidade compartilhada, por ter falhado na conquista da capacidade de usar objetos, não é uma pessoa inteira, não atingiu o grau de maturidade que permite que os fatos de sua vida se tornem acontecimentos, experiências pessoais, incluídas aí as fantasias e os conflitos inerentes à vida instintual, em meio às relações interpessoais, com pessoas inteiras. Ele pode até ter notícia dessas coisas, pode até saber muito, intelectualmente, sobre elas, por via do autoexame ou através da literatura psicanalítica, mas, a rigor, ele não tem experiência efetiva e pessoal delas. O que é feito ou vivido, não é feito ou vivido em primeira, mas em terceira pessoa; é vivido como uma prótese. Por isso, mais do que interpretações, no sentido tradicional, o que esse tipo de paciente necessita são cuidados específicos para que a conquista não realizada no momento original, devido a não sobrevivência do objeto (a mãe podia estar deprimida, talvez tenha se sentido pessoalmente ofendida com a agressão do bebê, ou com a sua indiferença, que é o outro modo que ele tem de agredir), possa agora, sob condições satisfatórias, vir a realizar-se. Para tanto, é preciso que o analista compreenda teoricamente, em termos da teoria do amadurecimento, o que está se passando e permita, como já assinalado, a ocorrência de uma regressão à dependência, com a necessidade primitiva do paciente sendo atendida e respeitada, e não interpretada como infantilismo. Haverá, então, toda uma etapa em que o analista só existirá, para o paciente, como objeto subjetivo. Se for dada a este a oportunidade de fazer, pela primeira vez na vida, certas experiências primitivas que só podem acontecer num ambiente confiável, o paciente retomará o amadurecimento. Caso tenha êxito nessa tarefa, o analista deverá ficar preparado para o momento em que, na análise, comecem a acontecer, por parte do paciente, tentativas de destruição, não como parte de alguma forma de resistência, nem motivadas por raiva ou ódio – o que representaria um grau de amadurecimento que ele ainda não alcançou –, mas como sinal de retomada do amadurecimento. O que ele necessita, sem ter nenhuma consciência disso, é chegar à raiz da agressividade pessoal, a “integrar o seu potencial de destruição”, o que não pôde acontecer, no momento original, devido ao temor de o objeto não sobreviver ou por este, de fato, não ter sobrevivido. O paciente precisa destruir o analista como objeto subjetivo; ele precisa, nas palavras de Winnicott, fazer a experiência de “destrutividade máxima”, o que só ocorre se o analista estiver não protegido, ou seja, não defendido atrás de sua posição, de interpretações ou de desculpas. Se o analista, no momento da agressão, sem raiva, do paciente, esquivar-se do soco, ou seja, interpretar a agressividade na linha das projeções, no sentido tradicional – da resistência, por exemplo, ou da transferência negativa –, ele estará voltando para o cômodo lugar “feixe de projeções” do paciente.19 Diante do ataque do paciente que, repentinamente, torna-se insatisfeito, descuidado, indiferente, abusado, intolerante, “o analista”, adverte Winnicott, preferiria interpretar, mas isso pode prejudicar o processo e, para o paciente, poderia assemelhar- se a uma espécie de autodefesa, com o analista desviando o ataque do paciente. Nesse caso, é melhor esperar que a fase passe e, então, examinar com o paciente o que aconteceu. (1969i[1968]/1994, p. 175) O problema é que a experiência de destrutividade máxima é necessária, pois, sem ela, o sujeito jamais coloca o analista para fora e, portanto, não pode mais do que experimentar uma espécie de autoanálise, usando o analista como projeção de uma parte do eu (si-mesmo). Em termos de alimentação, então, o paciente pode alimentar-se unicamente do eu (si-mesmo), e não pode usar o seio para nutrir-se. O paciente pode inclusive ter prazer na experiência analítica, mas, fundamentalmente, não sofreráqualquer mudança. (1969i[1968]/1994, p. 175) O analista que estiver orientado para ver, nesse tipo de material clínico, a manifestação da necessidade maturacional do paciente estará mais capacitado a expor-se à destruição (isto é, ser o analista não defendido) e a suportar a tensão que é própria do momento sem muito perigo de sucumbir, isto é, de não sobreviver. As mudanças positivas que ocorrem nessa fase da análise são profundas e essenciais, mas, assinala Winnicott, “elas não dependem do trabalho interpretativo, e sim da sobrevivência do analista, aos ataques do paciente” (1969i[1968]/1994, p. 175). Sobrevivência, aqui, vale repetir, “envolve e inclui a ideia da ausência de uma mudança de qualidade para a retaliação” (1969i[1968]/1994, p. 175). Não é tarefa fácil para nenhum analista, sobretudo não para os que partilham dos fundamentos tradicionais, compreender integralmente, e em todas as suas implicações, o conceito de Winnicott sobre o uso do objeto. Um analista formado no paradigma tradicional é ensinado a considerar o material clínico como sendo relativo à vida interna (mental), deixando de lado, como um sinal de resistência, toda a referência à realidade externa (incluída aí a própria atitude e os procedimentos efetivos do analista). O verdadeiro objeto de interpretação é a vida psíquica interna e os mecanismos de projeção e introjeção, postos de manifesto na relação transferencial. A posição de Winnicott é radicalmente distinta: para que a interpretação tenha o efeito que é preconizado na teoria, para que a análise não esteja condenada a perpetuar-se como uma autoanálise, é preciso que o paciente seja capaz de usar o analista (isto é, de tratar o analista como externo), e que o analista tolere ser usado e interpelado como tal. Winnicott elucidou essas distinções comparando a relação entre os analisandos e os seus analistas com a relação entre os bebês a as suas mães. Podemos estar vendo dois bebês mamando em suas mães e podemos ver que há diferenças: Um deles está se alimentando do si-mesmo, uma vez que o seio e o bebê ainda não se tornaram (para o bebê) fenômenos separados. O outro está se alimentando de uma fonte diferente-de-mim, ou um objeto a que se pode dar um tratamento descuidado, e sem efeitos para o bebê, a menos que o objeto retalie. As mães, tal como os psicanalistas, podem ser boas ou não suficientemente boas; algumas podem, e outras não podem, fazer o bebê passar do relacionar-se para o uso. (1969i[1968]/1994, p. 173) 4. O debate Mais do que discordância ou mesmo recusa das ideias propostas por Winnicott na sua palestra, o debate revelou que os interlocutores entenderam muito pouco do que lhes foi dito; suas principais dificuldades diziam respeito ao desconhecimento dos pressupostos teóricos que fornecem base para os novos conceitos apresentados e, também, à linguagem usada pelo psicanalista inglês. Formados na matriz disciplinar da psicanálise tradicional, era difícil compreender a mudança concei tual e de linguagem, operada por Winnicott em virtude de sua experiência clínica e da nova matriz disciplinar que ele foi criando à medida que essa experiência foi sendo teorizada. Edith Jacobson deixou claro, logo de início, que não podia aceitar a discussão nos termos propostos por Winnicott. Ela diz, o que é bastante compreensível a partir do seu lugar e de toda a tradição, não entender a utilização que o analista inglês fez da expressão “relacionamento com um objeto”, como a denominação genérica de um tipo de relacionamento primitivo e imaturo, em que o objeto ainda não foi separado como externo ao si-mesmo. Além de discordar enfaticamente dessa caracterização do relacionamento com um objeto, ela sustentou que isso, caso se apresentasse num paciente, corresponderia a uma modalidade patológica de relacionamento. Uma tal pessoa, diz Jacobson, “seria incapaz de relacionar- se com um objeto em nível objetal libidinal avançado ou até mesmo de se identificar normalmente”. Se tivesse tido a oportunidade de falar, Winnicott poderia ter respondido à Dr. Jacobson que ela tem toda a razão, caso, justamente, o indivíduo não amadureça na direção do uso, pois, diria ele ainda, na fase do amadurecimento pessoal caracterizada pela expressão “relacionamento com um objeto”, as relações objetais não são libidinais (instintuais), a identificação é ainda primária e não cruzada (“normal”) e o teste de realidade dos objetos de percepção só pode começar depois da constituição, pelo indivíduo, do mundo externo da realidade compartilhada. Poderia ainda acrescentar que essas teses, estranhas à teoria psicanalítica tradicional do desenvolvimento sexual e individual, só fazem sentido se consideradas à luz da teoria do amadurecimento. Edith Jacobson diz ainda não ter conseguido “entender” o sentido dado por Winnicott a “ataque destrutivo” e “sobrevivência”, além de considerar “extremista” a afirmação de que “o objeto está sendo sempre destruído”. Mais uma vez, a dificuldade resulta ou de simples incompreensão ou do conflito entre paradigmas, ou seja, entre concepções e modos de falar sobre os fenômenos clínicos. Por último, por negligenciar, ou, mais provavelmente, por desconhecer a distinção que Winnicott faz dos vários tipos de destrutividade, a Dr. Jacobson conclui dizendo que, com essa conceituação [do uso do objeto], Winnicott passou por alto “as pessoas psicóticas que são extremamente destrutivas e cujos terapeutas, capazes de paciência, sobrevivem aos seus impulsos destrutivos, sem os resultados positivos que ele descreve”. Limitar-me-ei a problematizar essa afirmação. A que estará se referindo a Dr. Jacobson quando fala da destrutividade e dos impulsos destrutivos de psicóticos, em situação de análise? E se essa destrutividade que ela menciona estiver referida, não à fase do uso do objeto, mas, por exemplo, à sensibilidade e à raiva que está relacionada a um padrão de invasões ambientais, que sistematicamente interrompeu a continuidade de ser, logo no início da vida? Mais: se ela diz não ter entendido o sentido winnicottiano de “sobrevivência”, qual foi o sentido dado por ela a esse termo, no exemplo? O que se deve entender por “ser capaz de paciência”? E se a paciência vier, por exemplo, acompanhada de tédio, indiferença ou desdém? Assim como Jacobson, Samuel Ritvo começa o debate objetando contra o uso que Winnicott faz da expressão “relacionamento objetal”, assinalando que, com ela, Winnicott refere-se à ideia de um sujeito isolado, sem interação com o ambiente externo, o que, segundo a teoria tradicional, é justamente o contrário. Ele corrige ainda a teoria winnicottiana do que seria a fase de uso de objeto com a tese de que a aceitação do objeto fora do si- mesmo repousa sobre a capacidade funcional do ego de tolerar o atraso ou a ausência de gratificação assim como a rea ção de ansiedade correspondente. Uma eventual resposta de Winnicott poderia ser formulada da seguinte maneira: em primeiro lugar, além da possível objeção sobre o uso da expressão, a razão pela qual o sujeito do “relacionamento com um objeto” precisa ser descrito como isolado consiste em que, no estágio primitivo ao qual essa expressão se refere, o indivíduo humano, na condição de bebê, desconhece inteiramente a existência de um ambiente que está sustentando a continuidade de ser e fornecendo os cuidados necessários; ou seja, o ser isolado do início tem a ver com a imaturidade e não indica patologia. Em segundo lugar: esse ser isolado primitivo não implica, ainda, processos de projeção e introjeção tomados no sentido tradicional como intrapsíquicos ou mesmo mentais, pois, segundo a teoria winnicottiana do amadurecimento, a imaturidade do momento ainda não permite que se fale de um “interior”, ou de uma realidade psíquica interna, nem tampouco de mecanismos mentais em funcionamento. Nas fases iniciais, o bebê humano vive num mundo subjetivo, que é inteiramente pessoal sem, por isso, ser interno; para poder executar atos mentais de modo não perturbado, o indivíduo humano precisa previamente estabelecer os fundamentosda sua existência psicossomática, conquista que não pode prescindir do relacionamento com um objeto facilitador subjetivo, isto é, não externo do ponto de vista do bebê. A segunda objeção de Ritvo também repete a intervenção de Jacobson: ele diz não “entender a afirmação de que a aceitação do objeto fora do controle onipotente do sujeito signifique a destruição do objeto”, sugerindo que a compreensão dessa tese de Winnicott poderia ser facilitada pela tese tradicional de que a formação de relações objetais permanentes está baseada na capacidade de tolerar frustração. Bernard Fine alongou-se na sua intervenção e parece ter sido, como observa Rodman, o principal responsável por não ter sobrado tempo para que Winnicott pudesse responder às críticas que lhe foram feitas. Após lembrar a afinidade de Winnicott com paradoxos, em especial o seu trabalho sobre objetos transicionais, Fine repetiu Jacobson e Ritvo, afirmando ser “pouco clara e de modo algum provada” a ideia do palestrante de que, na passagem entre o relacionamento e o uso, o sujeito tivesse que destruir o objeto. Assinalou também a ausência de “qualquer referência à importância dos componentes libidinais no tocante à sobrevivência do objeto”. Fine concordou que o analista precisa ser visto como externo ao si-mesmo pelo paciente, mas, diz ele, “a sobrevivência do analista20 depende de mais fatores do que aqueles citados pelo Dr. Winnicott”. Ao descrever a passagem entre a “apreensão subjetiva” e a “concepção externa e realista do objeto”, Winnicott teria desprezado os fatores libidinais e egoicos, devidamente explicitados pelos representantes da psicologia do ego, que “enfatizaram, de formas diferentes, o papel do amadurecimento do ego no desenvolvimento da predominância do prazer em distintos funcionamentos”. Fine admite que a ideia winnicottiana de destruição do objeto, por ocasião da separação deste, é uma grande modificação da teoria tradicional, mas não está bem fundamentada. Fine acrescenta duas outras observações críticas. Na primeira, ele diz ser inadequado empregar o termo “uso” para “designar um específico processo psicanalítico científico”. De fato, o procedimento metodológico de Winnicott de transformar expressões descritivas da linguagem comum em termos técnicos só poderia causar estranheza à comunidade analítica tradicional dominada pelo modo de teorização especulativo, herdado da metapsicologia. A segunda observação de Fine consiste na reafirmação da tese tradicional de que a distinção nítida entre o relacionamento e o uso não se justifica e que toda a problemática da fase do uso de um objeto, trazida por Winnicott, poderia ser tratada como uma subfase do desenvolvimento contínuo dos relacionamentos objetais entendidos à maneira tradicional. De fato, na metapsicologia, a ideia de uma relação com o objeto já inclui a de separação. Otto Sperling, o último dos quatro interlocutores, mudou o registro do debate e tentou mostrar a fraqueza clínica da posição de Winnicott. Para tanto, ele apresentou uma vinheta que, segundo ele, poderia ser entendida como ilustração da teoria winnicottiana do uso de um objeto. O caso trazido é o de um homem casado, que, há muitos anos, manifestava pouco interesse sexual pela esposa. Certa vez, tendo esta retornado da cidade com atraso inusitado, ele a “destruiu” pela raiva e acusações. Dormiram separados essa noite, mas, na manhã seguinte, ele fez “uso dela em um coito”. Sperling sugeriu que esse caso seguia a sequência dos desenvolvimentos maturacionais descrita por Winnicott e parecia, portanto, admitir uma “explicação” em termos winnicottianos. Terminou afirmando que, no caso apresentado, mais elucidativa do que a de Winnicott é a interpretação sexual do tipo tradicional, de que o homem agia sob influência de fantasias sexuais inconscientes. Não sei o que Winnicott diria dessa aplicação “selvagem” da sua teo ria. Mas ele certamente poderia indicar que uma das maiores novidades de sua teoria do uso do objeto é a concepção de uma destruição sem raiva, a serviço da separação, maturacionalmente necessária, entre o eu e o não-eu, embora apoiada no impulso instintual. Segundo o relato, não é esse o tipo de destruição que ocorre no exemplo do Dr. Sperling. A raiva e as acusações do tipo que parece ser exemplificado pelo caso não constituem, mas, ao contrário, pressupõem – tal como a ocorrência de afetos negativos no setting analítico – que o indivíduo tenha feito originalmente a experiência da destruição do objeto. Como já foi mencionado, os debatedores deixaram, casual ou talvez intencionalmente, um tempo exíguo para Winnicott responder às arguições. Nesse pouco tempo, escreve o redator da Ata, ele respondeu aos debatedores de maneira “encantadora e espirituosa”. Talvez fosse mais exato dizer que Winnicott usou, na breve finalização do debate que lhe coube, o seu conhecido humor e uma certa ironia, motivados, certamente, pelo reconhecimento do colapso total de comunicação que havia acontecido. O debate nova-iorquino sobre o artigo “O uso de um objeto”, contido na Ata redigida por David Milrod, ilustrou aspectos sociais e comunicacionais do conflito entre o paradigma sexual da psicanálise tradicional, organizado em torno de conceitos da teoria freudiana da sexualidade e da metapsicologia, e o paradigma maturacional de Winnicott, centrado na sua teoria do amadurecimento e numa ontologia de tipo fenomenológico, avessa à especulação metapsicológica. Mas o principal ensinamento que dele se tira é que uma compreensão adequada das ideias inovadoras de um grande autor exige o conhecimento, senão da totalidade, ao menos das linhas gerais da sua obra. Winnicott cometeu um grave engano ao tentar expor uma das suas ideias centrais, a do uso de um objeto, a um público disposto apenas a reduzir o novo ao já sabido. Referências Dias, E. O. (2003). A teoria do amadurecimento de D. W. Winnicott. Rio de Janeiro: Imago. Fairbairn, W. R. (1952). Psychoanalytic Studies of the Personality. London: Routledge & Kegan Paul. Laplanche, J. & Pontalis, J.-B. (1967). Vocabulaire de la psychanalyse. Paris: Presses Universitaires de France. Loparic, Z. (1996). Winnicott e o pensamento pós-metafísico. Psicologia USP, 8(2), 39-61. Loparic, Z. (2005). Elementos da teoria winnicottiana da sexualidade. Natureza humana, 7(2), 311-358. Rodman, F. R (2003). Winnicott, life and work. Cambridge MA: Da Capo Lifelong (Perseus Lawrence Book). Winnicott, D. W. (1983). O ambiente e os processos de maturação. Porto Alegre: Artes Médicas. (Trabalho original publicado em 1965b. Título original: The Maturational Processes and The Facilitating Environment) Winnicott, D. 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Este texto, originalmente publicado em Natureza humana, vol. 7, n. 1, 2005, foi corrigido e revisado para a presente edição. 2 . Miguel A. de Mello Silva contou, nessa diligência, com a ajuda de um amigo americano, William B. Culpeper, que se dispôs a obter a autorização de publicar a Ata, junto à NYPS. Fica aqui registrado o nosso agradecimento ao Sr. Culpeper. A insistência deste com respeito à autorização foi recebida com surpresa pela responsável pelo acervo da NYPS, pois, segundo ela, tratava-se de uma cautela inútil, uma vez que, dizendo respeito a um documento muito antigo que, nesses anos todos, não fora jamais requisitado, ela havia decidido jogá-lo fora, assim que fizesse uma limpeza dos arquivos. Nós tínhamos chegado um pouco antes da destruição. 3 . Veja Rodman, 2003, p. 323. 4 . Loparic (1996) mostrou que a doutrina heideggeriana dos múltiplos sentidos do ser, apresentada em Ser e tempo, pode ser usada para elucidar esse elemento central do paradigma winnicottiano. 5 . Uma outra apresentação do mesmo tema, a partir da teoria do amadurecimento, encontra-se em Dias, 2003, capítulo 4, item 3. 6 . Não devemos esquecer que o estabelecimento da transicionalidade depende de a mãe (subjetiva) continuar a dar sustentação ao mundo subjetivo até este ser destruído pelo bebê: é este que cria a externalidade do mundo. 7 . Apesar de no momento em que tem início a conquista do uso de um objeto o bebê estar já vivendo a fase da transicionalidade, e se relacionando com objetos transicionais, o objeto (mãe) continua a ser subjetivo. 8 . Num artigo escrito em 1970, intitulado “O lugar da monarquia”, Winnicott utiliza o conceito de uso de um objeto para refletir sobre o lugar que a instituição da monarquia ocupa na Grã- Bretanha. A ideia central proposta no artigo – referida, segundo o autor, ao “aspecto mais fundamental da relação objetal” – é mostrar que a importância da monarquia, para a Inglaterra e para os ingleses, deve-se à sua sobrevivência. Diz Winnicott: “A sobrevivência da coisa (aqui, da monarquia) torna-a valiosa e capacita pessoas de todos os tipos e idades a perceberem que a vontade de destruir não tem nada a ver com raiva – tem a ver com amor primitivo, e com a destruição que ocorre na fantasia inconsciente, ou no sonho pessoal que pertence ao dormir. É na realidade psíquica pessoal que a coisa é destruída. Na vida desperta, a sobrevivência do objeto traz um senso de alívio e um novo senso de confiança. Agora fica claro que é devido às suas próprias propriedades que as coisas podem sobreviver, apesar de nossos sonhos, apesar do pano de fundo de destruição em nossa fantasia inconsciente. O mundo começa a existir, agora, por si próprio; torna-se um lugar onde viver; não um lugar para temer ou ao qual devamos nos submeter, ou no qual ficamos perdidos; também não um lugar onde lidar apenas com os sonhos ou com a indulgência à fantasia” (1986j[1970]/1989, p. 208). 9 . A expressão “feixe de projeções” foi usada por Winnicott, no artigo, para descrever o modo de relacionamento primitivo com o ambiente (“relacionamento com um objeto”), e tem um sentido bem próprio, o de criação. Não se trata, portanto, aqui, do mecanismo mental que, juntamente com a introjeção, opera o intercâmbio entre a realidade interna e a externa, segundo a teoria tradicional. 10 . Ver-se-á, pelo debate, que a destrutividade que é característica do uso do objeto não pode ser entendida, pelos interlocutores, no sentido explicitado por Winnicott. 11. A expressão relating to an object, equivalente inglês da freudiana Objekt beziehung, tem sido habitualmente traduzida por “relação de objeto”. Já usei essa tradução, de forma inercial, em outras ocasiões. Ocorreu-me, contudo, que ela fere o regime do substantivo “relação”, que pede a preposição “com”. Os argumentos que justificariam esse mesmo tipo de distorção da linguagem, em francês, apresentados por Laplanche & Pontalis (1967) em seu Vocabulário de psicanálise, não convencem. Além disso, o termo “relação” não preserva a conotação da capacidade de relacionar-se que está contida no termo relating e na nossa tradução do mesmo por “relacionamento”. O mesmo se aplica à expressão object-relating. 12. Sobre a tradução, ver a nota anterior. 13. Mais adiante serão indicadas as características peculiares desse “relacionamento” inicial. 14. Isso dito, por motivo de comodidade, usarei ocasionalmente as expressões “relacionamento com o objeto” e “uso do objeto”. 15. Cf. Winnicott, 1965b/1983, cap. 8. Essa sucinta análise da linguagem de Winnicott mostra que, para ele, o relacionamento objetal é, desde o início, um relacionamento não apenas com esse ou aquele algo, mas sempre, também, com um domínio de entes, sendo esse domínio caracterizado pelo fato de ser um mundo, ou seja, um ambiente, com espaço e tempo, para o indivíduo. Esse mesmo fato é expresso de maneira paradigmática pelo duplo sentido inicial da palavra “mãe”, quando aplicada à experiência nas fases primitivas do amadurecimento humano. Essa palavra designa tanto a mãe-ambiente como a mãe-objeto, os bebês humanos não podendo separar esses dois significados. Uma interpretação ontológica possível da estrutura dessa bifurcação consiste em dizer, com Heidegger, que o bebê humano está destinado a ser, caso tudo corra bem, um ser- no-mundo, com-outros e junto-das-coisas-intramundanas. Agradeço a Zeljko Loparic os preciosos apontamentos desta nota e do parágrafo ao qual ela pertence. 16. Em seguida a esta última frase, o autor assinala estar “usando aqui o termo ‘projeções’ em um sentido descritivo e dinâmico e não no seu sentido metapsicológico completo” (1960c/1983, p. 46, nota 12). 17. Note-se que a concepção tradicional segundo a qual a relação de um indivíduo com o meio tem início mediante os mecanismos mentais de introjeção e projeção implica a negação da criatividade originária, uma vez que, baseada no modelo de incorporação e excreção, só é projetado o que foi anteriormente introjetado. Isso seria inaceitável para Winnicott, sobretudo tratando-se das etapas iniciais. Na resenha do livro Psychoanalytic Studies of the Personality (1952), de R. Fairbairn, Winnicott afirma que este, em sua teoria, não concede lugar para a criatividade primária. Fairbairn, diz Winnicott, até poderia contrapor-se a essa crítica, dizendo que, nesse livro, encontra-se a afirmação de que “(uma casa) é um objeto que é buscado, mesmo que, para ser encontrada, tenha que primeiramente ser feita” (Fairbairn, 1952, p. 141). Contudo, assinala Winnicott, “em parte alguma, ele [Fairbairn] enuncia a maneirapela qual o bebê faz o primeiro objeto (teórico)”. E continua: “Em sua teoria, a criatividade psíquica primária não constitui uma propriedade humana; uma série infinita de introjeções e projeções formam a experiência psíquica do bebê. A teoria de Fairbairn se alinha, aqui, com a que nos foi dada por Melanie Klein, que também não permite que seja prestado tributo à ideia de criatividade psíquica primária” (Winnicott, 1953i/1994, p. 320). 18. No artigo “Vivendo de modo criativo”, Winnicott diz que, por mecanismos de projeção e introjeção, ele entende a capacidade de alguém “identificar-se com os outros e de identificar os outros consigo próprio” (1986h[1970]/1989, p. 37). 19. Assinalo que o sentido de “projeções”, aqui, é tomado no sentido tradicional, porque Winnicott, ao referir-se aos estágios iniciais, usa, muitas vezes, o termo projeção para designar a criação, pelo bebê, do objeto ou do mundo. Pode-se encontrar um exemplo do uso do termo, no sentido de criação, em um texto de 1960, quando ele diz que o bebê só pode receber o que vem do mundo externo, se essas coisas estiverem incluídas “na onipotência do lactente e sentidas como projeções”. Neste ponto, Winnicott acresce a seguinte nota de rodapé: “Estou usando aqui o termo ‘projeções’ em um sentido descritivo e dinâmico e não no seu sentido metapsicológico completo” (1960c/1983, p. 46, nota 12). 20. O texto diz “sobrevivência do analisando”, o que me parece ser um erro de digitação, embora possa também ter sido um ato falho. Não se sabe, igualmente, se o erro foi do arguidor ou de David Milrod, que escreveu a Ata. 6 Da sobrevivência do analista1 Uma das características do novo paradigma que Winnicott instaura no domínio da psicanálise é um retorno ao simples, uma atenção às coisas simples e naturais da vida, um aprendizado para poder ver aquilo que é fundamentalmente humano e está diante de nós, mas que ficou obscurecido, camada sobre camada, por especulações abstratas. Martin Heidegger, um dos grandes pensadores do século XX, diz: “O simples não nos impressiona mais em sua simplicidade, porque o modo de pensar científico habitual destruiu a capacidade de se surpreender com o óbvio, e justamente com isso” (Heidegger, 1987, p. 133). O tema da sobrevivência pertence a esse domínio. Como é próprio de Winnicott, a palavra sobrevivência é tirada da linguagem comum, na qual ela é usada, frequentemente, para falar de coisas tais como: sobrevivência na selva, luta pela sobrevivência, quero viver e não apenas sobreviver etc. Mas não é nesses sentidos que Winnicott usa o termo e, para entendê-lo, é preciso partir de algumas das concepções em que se baseia a sua teoria do amadurecimento. Certamente, deve causar estranheza, ao leigo, a ideia de que um aspecto essencial da tarefa da mãe, do lar e do analista, ao cuidar de uma criança ou de um paciente, consista em sobreviver. 1. Uma questão de base O que pretendo aqui examinar sobre o conceito de sobrevivência está orientado por uma outra questão, que me chega, em supervisões, ou conversas informais, tanto de colegas analistas, quanto de professores, pediatras, enfermeiras, assistentes sociais ou fisioterapeutas, que, às vezes, compartilham comigo as suas inquietações acerca de um paciente ou de um aluno – seja ele uma criança, um adolescente ou adulto –, para entendê-lo melhor, ajudá-lo mais. A questão vem quase sempre a propósito de um período em que, a despeito do trabalho que está sendo desenvolvido, parece que nada está acontecendo; ela pode ser assim desdobrada: será que estou ajudando o paciente? Será que não estou deixando escapar algo de essencial? Será que não estou empacada em algum lugar? Correlato ao pedido de supervisão é aquele pedido da mãe para que a avó ponha a mão na testa do bebê, certificando-se se ele está ou não com febre, e o que fazer com isso. É a esses profissionais que dedico este artigo. Pois bem, qualquer que seja o problema que tenhamos à nossa frente, nosso modelo é a mãe suficientemente boa, a quem compete ajustar-se às necessidades crescentes e sempre variáveis de seu filho, ou de seu paciente, adaptando-se e respondendo à dependência, assim como à crescente independência, destes, incluído, aqui, o fato de a importância da mãe ou do terapeuta tornar-se cada vez menor, ou mudar drasticamente de qualidade, à medida que o amadurecimento avança. Ora, apesar de Winnicott ter sempre afirmado que as mães não devem dar ouvidos aos palpites das vizinhas, que seu saber não vem dos livros, nem de palestras, mas está baseado em sua capacidade de identificação com seus bebês, ele também diz que as mães precisam de sustentação para elas mesmas, uma vez que, muitas vezes, seu desamparo se equipara ao do bebê. Além disso, elas precisam ser reasseguradas naquilo que fazem bem. O que vou dizer, a propósito do nosso ofício de cuidadores, não adiantará para nada, porque a necessidade ou a dúvida é sempre a do momento e a ajuda vale para o instante em que as coisas acontecem. De qualquer modo, tentarei traçar algumas linhas de fundo que podem voltar à memória em alguma ocasião oportuna. Antes de mais nada, deve-se lembrar que, ao descrever os cuidados suficientemente bons da mãe dedicada comum, Winnicott afasta qualquer idealização da figura materna ou paterna e, consequentemente, do analista. Nem os pais são anjos altruístas, nem o mundo que rodeia o bebê é o paraíso. As crianças, ou pacientes, não tiram proveito algum da perfeição mecânica. O que o bebê necessita é de confiabilidade e de comunicação humana verdadeira, e não de técnicas de cuidar. Se fosse possível escolher os pais, confessa Winnicott, ele preferiria mil vezes ter uma mãe capaz de ter dúvidas sobre a sua conduta, e de pensar que algumas coisas andam mal em virtude de algo que ela fez ou não fez, do que uma que estivesse sempre segura do que é bom para o bebê, e com a tendência “de explicar tudo por algo externo”, sem assumir responsabilidade por nada (1993d[1961]/1993, p. 119). Esta seria a mãe defendida, assim como existe o analista defendido. O traço central do ambiente facilitador é ele ser confiável. A confiabilidade é um atributo dos humanos, que erram, e não das máquinas. Confiabilidade não significa ser imune ao erro; ao contrário, exatamente porque falível, a pessoa humana pode ser confiável. O fato é que mães e analistas permanentemente falham em sua adaptação às necessidades do bebê ou do paciente. O problema não é esse; ele consiste bem mais no reconhecimento e na atitude do ambiente com relação à falha. Por outro lado, o que se exige é presença verdadeira, interesse genuíno e atenção plena. Um bebê, sobretudo durante a fase de dependência absoluta, não pode se beneficiar de nada menos do que de uma pessoa total, que está inteiramente ali, mesmo que só por alguns momentos, a cada dia. Isso é mais importante do que qualquer coisa que se diga ou que se deixe de dizer. Estou convencida de que os bebês vêm ao mundo munidos de um mecanismo de controle de qualidade da presença e da comunicação; eles captam, sem nenhuma consciência disso, qualquer vestígio de falsidade, desânimo ou desistência. E o mesmo ocorre com pacientes regredidos à dependência. É bom que se diga, ainda, que não há nenhuma mística ou poder extranatural na capacidade de exercer os cuidados satisfatórios que levam uma outra pessoa à transformação e ao amadurecimento: o que existe é apenas uma disponibilidade verdadeira e humana, acrescida da capacidade de aprender com o bebê ou paciente, além de muito estudo sobre o amadurecimento pessoal. 2. A tarefa terapêutica Numa palestra para a David Wills Lecture, uma Associação de Assistentes Sociais para crianças desajustadas, proferida em outubro de 1970, um pouco antes de morrer (em janeiro de 1971), Winnicott começa dizendo que há um tipo de crescimento que é “para baixo” (growing downwards), e que, se ele tiver ainda bastante tempo de vida, espera tornar- se pequeno o suficiente para passar sem esforço pelo estreito buraco da morte. Ocorre que o crescimento para baixo, ou “paramenor” (to grow smaller), como ele também diz, começa já em vida e significa a capacidade crescente de depurar o que é essencial, embora se trate, muitas vezes, de algo tremendamente simples, mas sem o qual todo o resto fica sem sentido. Winnicott diz à plateia: Não é preciso ir muito longe para encontrar um terapeuta cheio de empáfia: sou eu mesmo. Na década de trinta, estava aprendendo a ser psicanalista e sentia que, com um pouco mais de treinamento, de habilidade e de sorte, poderia mover montanhas se fizesse a interpretação certa na hora certa. [...] Quando meu insight adquiriu profundidade, descobri, [num segundo passo para menor], que, tal como meus colegas, eu podia fazer mudanças significativas no material dos pacientes [...]; podia dar maior esperança, conseguindo, portanto, maior adesão para uma cooperação inconsciente. Na verdade, era tudo muito bonito, e eu fazia planos de passar o resto de minha vida profissional exercendo a psicoterapia. A certa altura, eu chegava a dizer que só poderia haver terapia na base de 50 minutos, cinco vezes por semana, durante tantos anos quantos fossem necessários, por um psicanalista bem treinado. (1984g[1970]/1987, p. 225) Ele continua dizendo que, embora tenha feito essas palavras parecerem uma bobagem, sua intenção era apenas a de mostrar que esse tipo de atitude é uma espécie de começo; mais cedo ou mais tarde, tem início o processo de crescer para menor, e isso é doloroso até nos habituarmos. No meu caso, acho que comecei a crescer para menor, na época de meu primeiro contato com David Wills. David não se permitiria orgulhar-se de seu trabalho, na antiga instituição de assistência social de Bicester. Contudo, era uma obra notável, e eu me orgulho por ele. (1984g[1970]/1987, p. 226) Winnicott relata, então, como era excitante estar envolvido na vida desse alojamento, cuja função, durante a Segunda Grande Guerra, era receber garotos problemáticos, que haviam sido evacuados de seus lares, quando estes existiam. Um som costumeiro ao lugar era o seguinte: um carro aproximava-se em alta velocidade e parava; alguém abria a porta da frente e esta voltava a fechar-se com estrondo; seguia-se um ruído do motor do carro, que arrancava como se estivesse fugindo do diabo em pessoa. Constatava-se, então, que outro garoto havia sido deixado na porta da frente, na maioria das vezes sem um telefonema prévio: “e um novo problema havia sido jogado no prato de David Wills” (1984g[1970]/1987, p. 226). No começo, em suas visitas semanais ao alojamento, Winnicott via um menino ou dois e fazia, com cada um deles, uma entrevista pessoal. Algumas vezes, David e seus auxiliares ouviam-no contar a história da entrevista, na qual ele havia feito “estupendas interpretações baseadas em profundo insight” (1984g[1970]/1987, p. 226), relacionando-as com o material que os meninos apresentavam de um só fôlego, ansiosos por obter ajuda pessoal. Contudo, ele podia sentir que suas “pequenas tentativas de semeadura caíam em solo de pedra” (1984g[1970]/1987, p. 226). Bem depressa Winnicott percebeu que a terapia estava sendo feita, na instituição, pelas paredes e pelo telhado; pela estufa de vidro que fornecia um alvo magnífico para pedras e tijolos, pelas banheiras absurdamente grandes, para as quais era necessária uma quantidade imensa de carvão, tão precioso em tempo de guerra, se se quisesse ter água quente suficiente para cobrir o umbigo de quem quisesse tomar banho. A terapia estava sendo realizada pelo cozinheiro, pela regularidade com que as refeições chegavam à mesa, pelas colchas quentes e coloridas das camas. (1984g[1970]/1987, p. 226) e, sobretudo, “pelos esforços de David para manter a ordem apesar da escassez de pessoal”, e para manter o alento “a despeito do constante senso de inutilidade daquilo tudo, porque a palavra sucesso estava reservada para algum outro lugar, que não para a Bicester Poor Law Institution” (1984g[1970]/1987, p. 226). É claro que os meninos fugiam, roubavam das casas da vizinhança e não paravam de quebrar vidros. Tentando observar mais de perto o que se passava, Winnicott descobriu que David estava fazendo coisas importantes, baseadas em certos princípios que ainda estamos tentando formular e relacionar com a estrutura teórica. Pode ser que estejamos falando sobre uma espécie de amor, e sobre isso falarei mais adiante. Temos de examinar as coisas que ocorrem naturalmente no contexto do alojamento, para podermos fazer essas coisas deliberadamente, adaptando o que fazemos de maneira econômica às necessidades especiais de cada criança, ou para podermos enfrentar as situações especiais à medida que surgem. (1984g[1970]/1987, p. 227) Uma das coisas que David Wills promovia era uma sessão semanal em que todos os meninos se reuniam e tinham completa liberdade para falar. Naturalmente, o comportamento deles era altamente irregular e, muitas vezes, exasperante, conta Winnicott. Andavam de um lado para o outro, resmungavam o tempo todo, queixavam-se de tudo e, se solicitados a opinar sobre um delinquente, seus vereditos eram quase sempre severos e mesmo cruéis. Como havia, contudo, uma atmosfera de tolerância, que David permitia e sustentava, coisas muito importantes eram expressas pelas crianças; podia-se discernir como cada indivíduo “tentava estabelecer uma identidade, sem que realmente o conseguisse, exceto, talvez, através da violência” (1984g[1970]/1987, p. 228). Percebia-se que cada um deles estava clamando, aos gritos, por ajuda pessoal, o que não era possível nesse tipo de trabalho. O modo mais fácil de conseguir ajuda era a provocação e a violência, mas existia essa outra alternativa, diferente ao extremo, por meio da qual eles podiam ir guardando as coisas para dizê- las [e serem escutados], às cinco horas de todas as quintas-feiras. (1984g[1970]/1987, p. 228) Esse trabalho institucional foi de extrema importância na trajetória analítica de Winnicott, porque o fez entender que “existe algo em psicoterapia que não se descreve em termos de interpretação certa no momento certo” (1984g[1970]/1987, p. 227). Sem dúvida, é necessário ter na bagagem conhecimento suficiente acerca de toda a investigação do inconsciente empreendida por Freud, mas, mesmo nos casos que implicam o desenvolvimento pleno da neurose de transferência, é preciso que haja, no paciente, “algo que pode ser descrito como uma certa crença nas pessoas e na disponibilidade de cuidados e de ajuda” (1984g[1970]/1987, p. 227). Mesmo num caso adequado para a psicanálise clássica, o principal é o fornecimento das condições para que esse tipo de trabalho possa ser feito, e para que a cooperação inconsciente do paciente em apresentar o material possa ser obtida. Em outras palavras, é o desenvolvimento da confiança [...] que constitui o requisito prévio para a eficácia de uma interpretação clássica e correta. (1984g[1970]/1987, p. 229) 3. O valor da sobrevivência O conceito de sobrevivência, como um traço essencial do cuidado materno e terapêutico, está baseado nas constatações simples e essenciais feitas por Winnicott em sua experiência clínica, institucional e particular. Sobreviver é uma atitude silenciosa e quase inaparente; perceber o seu valor permite reassegurar as mães para aquilo que fazem bem; permite reassegurar educadores, enfermeiras, pediatras, fisioterapeutas e analistas para que saibam do bem que fazem, quando o fazem. Aproveitamos hoje do esforço teórico e clínico a que Winnicott se propôs nos anos 1940: o de formular os princípios em que as coisas simples e essenciais estão baseadas e, relacionando-as com a estrutura teórica, podermos fazer essas coisas com conhecimento de causa, adaptando-as às necessidades especiais de cada criança e de cada paciente, e enfrentando as situações especiais à medida que surgem. Um desses princípios consiste na capacidade de sobreviver. Numa carta de 1966, a Donald Meltzer, Winnicott faz uma afirmação que serve de epígrafe para este trabalho, por ser uma espécie de definição para uma das faces da tarefa de sobrevivência, atribuídaa pais e analistas. Ele diz: “É verdade que as pessoas passam a vida sustentando o poste em que estão apoiadas, mas, em certo ponto da fase inicial, tem de existir um poste que se mantenha por conta própria, do contrário, não há incorporação da confiança” (1987b/1990, p. 86). No que compete àquele que cuida, sobreviver significa manter-se por conta própria, dar continuidade ao que se inicia; é fazer perdurar, preservando incólumes a qualidade da relação e a do ambiente; é, sobretudo, não sucumbir às turbulências próprias do estar vivo e do amadurecimento – inclusive as que incluem destruição – de quem está sendo cuidado, ou seja, é permanecer consistentemente a mesma pessoa, com a mesma atitude, sem retaliação; significa não desanimar, não desistir da tarefa, não se vitimar, não se tornar sentimental; manter, a despeito de seus próprios estados de ânimo, os cuidados com o bebê, ou com o paciente, orientados pelas necessidades deles e não por suas próprias necessidades. Sobrevivência não quer dizer permissividade, aceitação de tudo. O amor materno não é indulgente. A capacidade de sobreviver não está baseada em sentimentalismo, que é nefasto, porque se constitui na negação do ódio e da destrutividade contidos na natureza humana. A mãe tem inúmeras boas razões para odiar o seu bebê – e é importante que tenha consciência disso –, assim como, certamente, David Wills deve ter odiado aqueles moleques que punham abaixo todo o seu esforço de construção. Mas, uma das coisas mais notáveis na mãe comum, assinala Winnicott, é, precisamente, “a sua capacidade de se deixar ferir pelo bebê e de odiá-lo, sem se vingar na criança” (1949f[1947]/2000, p. 2). Por que a sobrevivência tem tanto valor? Porque está vinculada à precariedade da existência. Uma das coisas que o autor aprendeu, em sua experiência com bebês e com pacientes que necessitaram regredir à dependência, é que a necessidade fundamental do ser humano consiste em chegar a existir e em continuar a existir. Não só é necessário chegar ao começo, de modo a dar-se o engate na vida, como o indivíduo tem de manter-se vivo pela vida afora: “É um esforço constante chegar ao ponto inicial e aí se manter” (1965j[1963]/1983, p. 174). Não importa o grau de maturidade que tenham alcançado, os seres humanos têm de ser, e continuar sendo; isso significa preservar vivos a criatividade e o sentido da vida, até que a morte, como derradeira marca da saúde, cobre o seu tributo, finalizando, de modo natural, no melhor dos casos, o tempo que nos foi emprestado. A vida, diz Winnicott, é difícil em si mesma, a tarefa de amadurecer jamais se completa, todas as conquistas são precárias. Pode-se sempre perder o fio que nos liga ao que temos de mais verdadeiro e “o sentimento de que a vida é real e rica de significações pode desaparecer” (1971g/1975, p. 101). Heidegger corrobora: “O ser humano é essencialmente necessitado de ajuda, por estar sempre em perigo de se perder, de não conseguir dar conta de si mesmo” (Heidegger, 1987, p. 202). Por terem conseguido sedimentar os fundamentos da existência, as pessoas sadias, e mesmo as neuróticas, esqueceram que esse existir foi uma conquista; por isso, podem ocupar-se das dificuldades relativas à vida e às ansiedades instintuais, que pertencem às relações interpessoais. Os psicóticos, contudo, não realizaram essa conquista; caso não encontrem alguma situação favorável que lhes permita resgatar os fios perdidos de sua identidade, sua vida está fadada a constituir-se numa busca de si mesmos. Por tudo isso, o que está contido nas palavras dependência, confiabilidade e sobrevivência é valioso e necessário. Diz respeito a necessidades vitais de todo ser humano, que muitas vezes enfraquece na luta para continuar existindo, preservando a sua natureza essencial. Isso vale para o bebê, para a mãe, para o paciente, e vale também para o analista. 4. A sobrevivência da mãe Não me alongarei, aqui, na descrição das inúmeras faces que a sobrevivência materna toma ao longo do amadurecimento da criança. Mencionarei, apenas, alguns momentos das etapas iniciais, em que a sobrevivência da mãe é essencial para que o bebê faça, da tarefa em que está envolvido, uma conquista. Já no início da amamentação, a mãe começa sobrevivendo ao impulso voraz primitivo; isto significa que ela não se assusta nem reage, com moralismo, porque não vê nesse impulso o que seria uma natureza cruel do bebê, mas, sim, um sinal da vitalidade deste. Mas ela também sobrevive, isto é, não se aflige nem se sente pessoalmente atingida e magoada, se ele recusa seu leite, ou mesmo se, mais tarde, suspeita de sua boa comida, porque sabe que comer só pode ser uma experiência real quando parte do não comer, do mesmo modo que a comunicação nasce do silêncio e que a existência só pode ter início a partir da não existência. Cabe também à mãe sobreviver – enfrentar sem medo e sem indulgência – à ira do bebê, que é provocada pelo desmame e pela desadaptação na fase de dependência relativa. Nas palavras de Edna Vilete, a mãe deve poder “reconhecer e suportar o ódio da criança, bem como aceitar tornar-se a mãe ruim, durante certo tempo. Aceitar significa sobreviver como a mãe forte, que é capaz de cuidar sem ter mais os recursos de onipotência com que era até então investida pela criança” (Vilete, 2000, p. 158). Se, nesse momento, a mãe está deprimida, ela não tem como fazer frente à tarefa de desmamar o bebê; este sente a fragilidade da mãe e perde a oportunidade de explorar a sua agressividade nascente. Em breve, será o bebê que estará cuidando da mãe e, num certo sentido, sobrevivendo a ela. Logo no início de sua prática pediátrica, Winnicott descobriu que a preocupação de grande parte das mães, que vinham consultá-lo sobre a saúde de suas crianças, devia-se a elas estarem deprimidas. Certa vez, na clínica ambulatorial, um menino chegou para Winnicott e disse: “Doutor, minha mãe está se queixando de uma dor na minha barriga”. Um pouco mais tarde, por volta dos 10 ou 11 meses, o bebê apresentará um impulso real de destruição. Nessa fase, ele está fisicamente mais forte e, sem estar faminto nem raivoso, começa a chutar a mãe ou a morder efetivamente o seio; ou esmera-se em desgastá-lo, a recusá-lo, ou, simplesmente, deixa de necessitar dele, observando a reação materna. Esse impulso destrutivo precisa ser experimentado, pois constitui uma tarefa crucial do amadurecimento: é esse impulso que leva o lactente a expulsar a mãe, como objeto subjetivo, para fora de seu controle onipotente, porque, agora, ele necessitará que ela subsista de forma independente. Caso o objeto sobreviva, o impulso se transforma na capacidade de destruir objetos na fantasia inconsciente. A mãe pode perceber facilmente o que se passa com o bebê, nesse estágio em que ela está sendo destruída por ele, se tiver conhecimento da situação e souber proteger-se sem se valer de retaliação e vingança. Em outras palavras, ela tem uma função a cumprir sempre que o bebê morder, arranhar, puxar seus cabelos e chutar, e esta função é sobreviver. O bebê se encarregará do resto. Se ela sobreviver, o bebê encontrará um novo significado para a palavra amor, e uma nova coisa surgirá em sua vida: a fantasia. É como se o bebê pudesse agora dizer à mãe: “Eu a amo por você ter sobrevivido à minha tentativa de destruí-la. Em meus sonhos e em minha fantasia, eu a destruo sempre que penso em você, pois a amo”. É isto que torna a mãe objetiva, que a coloca num mundo que não é parte do bebê, e a torna útil. (1969b[1968]/1988, p. 26) Algum tempo depois, quando a elaboração da tarefa relativa ao estágio do concernimento atinge o ponto culminante, por volta dos dois anos e meio, o bebê começa a assumir a responsabilidade pela sua impulsividade instintual e necessita, para poder sustentar a culpa por algum tempo, da ajuda de uma mãe pessoal e viva, que sobreviva e permaneça sustentando a situação durante o tempo necessário para esse processo. Ao mesmo tempo em que a mãe-objeto continua sobrevivendo aos episódios guiados pelo instinto,cabe à mãe-ambiente uma função especial: a de continuar sendo ela mesma, permanecendo presente para receber o gesto espontâneo dele e para ser agradada. Ainda mais tarde, na fase em que a situação triangular se estabelece como uma realidade, os pais deverão sobreviver ao conflito de lealdades da criança, fornecendo um lar que pareça indestrutível. Se há suporte familiar confiável, se alguém sobrevive, mantendo a calma, a criança começa a acreditar que a passagem do tempo traz o alívio para praticamente tudo, por mais intolerável que pareça. Na adolescência, por tratar-se de uma segunda chance da vida para a conquista ou arremate de conquistas primitivas, a tarefa de sobrevivência dos pais torna-se especialmente importante: os adolescentes não apenas têm que lidar com a impulsividade instintual – aguçada pelas modificações fisiológicas que aparecem na puberdade, e, portanto, com uma nova e desconhecida corporeidade –, como veem-se assolados por angústias primitivas relativas à identidade pessoal. Não há remédio, os pais terão de sobreviver ao isolamento, à busca implacável do que é real, à moralidade ferrenha contra tudo o que é falso; terão, ainda, no melhor dos casos, de sobreviver à luta que os adolescentes empreendem contra a segurança. Por que contra a segurança? Porque, quando a segurança inicial foi garantida pelo ambiente, e houve incorporação da crença na existência de algo não apenas bom, mas também durável e no qual se pode confiar, as crianças começam a apreciar a liberdade. Segue-se daí uma longa batalha contra a segurança, ou seja, a favor da livre expressão e da ação impulsiva. Os pais que estão interessados na evolução de seus filhos como pessoas veem esse desafio com bons olhos. Embora continuem a manter, com firmeza, a estrutura familiar e a disciplina, permanecendo, por vezes, no desconfortável papel de guardiões da segurança e da paz, eles sabem, entre si, que devem esperar por indisciplina, rebeldia e até revolução. “Tendo encontrado as fechaduras e ferrolhos solidamente trancados, [os jovens] tratam de destrancá-los e de escancará-los; eles libertam-se impetuosamente. E, vez após vez, eles se libertam. Ou, então, enroscam-se na cama, tocam discos de blue jazz e sentem-se inúteis” (1965vg[1960]/1993, p. 106). Para que possam sobreviver a tudo isso, os pais deverão lembrar-se que a rebelião pertence à liberdade, caso tenham criado os filhos de tal modo que estes só aceitem existir a partir de si próprios. Há pais que poderiam dizer: semeamos um bebê e colhemos uma bomba. Pois é, dirá Winnicott: “Os pais não podem fazer muita coisa; o melhor que têm a fazer é sobreviver, sobreviver intactos, sem mudar de cor, sem negar qualquer princípio importante” (1969a[1968]/1989, p. 124). 5. A sobrevivência do analista A relação terapêutica é uma forma especializada de cuidar de uma outra pessoa que tem a mesma natureza que eu. Seja qual for o problema que aflige o paciente, estamos ambos no mesmo barco, lançados, sem fundamento, na incumbência de ser e de continuar sendo. Winnicott diz que, quando estamos diante de um homem, uma mulher ou uma criança, as hierarquias caem e descobrimos que estamos reduzidos a dois seres humanos do mesmo nível. “Não faz diferença se sou médico, enfermeiro, assistente social, psicanalista ou padre. O que importa é a relação interpessoal, em seus ricos e complexos matizes humanos” (1986f[1970]/1989, p. 89). Desse ponto, há apenas um passo para a pergunta: qual das duas pessoas está doente? “Às vezes”, diz Winnicott, “é uma questão de convenção” (1986f[1970]/1989, p. 90). Se, a despeito de nossa própria e humana precariedade, assumimos o lugar de quem cuida, somos chamados a sobreviver e dar prosseguimento à tarefa que assumimos. A partir daí, precisamos estar disponíveis para o cuidado e sermos confiáveis num nível que dificilmente pode ser mantido em nossa vida privada. Se nos pomos como cuidadores, precisamos deixar o outro ser como é e como pode ser, seja o que for que isso represente, e acompanhá-lo enquanto perdure essa possibilidade, por estreita que seja, sobrevivendo aos estados que lhe são inerentes. Sabemos que, muitas vezes, para recuperar a saúde, o indivíduo necessita adoecer, por precisar de um descanso da tarefa de viver ou, talvez, porque estar doente é, num dado momento, mais real do que uma saúde empostada e falsamente mantida. A doença, nesses casos, é a única condição satisfatória, por ser a única verdadeira. Por tudo isso, a mais básica das faces da sobrevivência, tanto da mãe como do analista, em função da tarefa que lhe compete, é a de, ele mesmo, “manter-se vivo e respirando”. No que se refere à mãe, Winnicott diz: “Ela existe, continua a existir, vive, cheira, respira, seu coração bate. Ela está lá para ser sentida de todas as maneiras possíveis” (1948b/2000, p. 237). Em outro texto, ele aconselha as mães: Se vocês estão com sono, e, principalmente, se estiverem deprimidas, colocam o bebê no berço, pois sabem que o estado de sonolência em que se encontram não é suficientemente vital para manter ativa a ideia que o bebê tem de um espaço circundante. (1957m[1950]/1988, p. 17) Nesse ponto, a vantagem é do analista sobre a mãe: a sessão analítica é limitada, e isso deve possibilitar ao terapeuta manter-se “vivo e respirando”, a despeito de seu estado pessoal de ânimo. O mais importante, assinala o autor, é o fato de o analista não estar deprimido, de modo a permitir que o paciente encontre a si mesmo, por não necessitar que ele seja bom ou esteja arrumado ou seja obediente, e por não precisar nem mesmo ensinar ao paciente seja lá o que for. O paciente pode avançar em seu próprio ritmo [...] sendo-lhe dado tempo e algo como um lugar seguro. (1958p[1948]/2000, p. 159) “Manter-se vivo e respirando” significa também sobreviver ao desânimo, seja o nosso próprio, pessoal, seja aquele relativo à tarefa que temos pela frente. Talvez tenha sido isso o essencial da terapêutica de David Wills. Ele sobreviveu, a despeito do permanente sentido de inutilidade do empreendimento, e manteve o alojamento funcionando, com regularidade, fornecendo, ainda, a oportunidade previsível de comunicação. Provavelmente, um dos maiores desafios para a capacidade de sobreviver do analista seja a situação do paciente que precisa regredir à dependência. Aqui, deixar ser pode significar deixar não-ser, ou seja, dar sustentação e sobreviver a longos períodos de tempo em que o indivíduo, exatamente em função da confiabilidade que oferecemos, permite-se abandonar a incumbência de existir – entregando-se a estados de amorfia, de desorganização – e permite-se chegar ao nada que está no centro. Aqui, a sobrevivência do analista é decisiva: não se pode jamais esquecer o quanto é arriscado, para o paciente, abandonar a desesperança, que o protegia da decepção, e expor-se à dependência, e a um novo início de esperança. O risco “não é somente que o analista possa morrer, como também que ele se torne subitamente incapaz de acreditar na realidade e intensidade da ansiedade primitiva do paciente, do medo da desintegração ou de aniquilamento ou da queda contínua para sempre” (1965vd[1963]/1983, p. 216; os itálicos são meus). O paciente que regride à dependência acha-se compelido a chegar à “loucura original”, à agonia impensável, que nele habita sem ter sido experimentada. Ele precisa reviver o colapso, visto que este não chegou a ser experimentado no momento original, pelo fato de que o paciente era um bebê e ainda não estava lá, como um eu, para experimentá-lo. O colapso não pode pertencer ao passado, não pode ser deixado para trás, a não ser que seja experimentado, pela primeira vez, no presente. O paciente encontra-se, assim, num delicado equilíbrio entre a necessidade de enlouquecer e o medo da loucura. Se, devido à confiabilidade do setting, o paciente consegue regredir à dependência, pode ocorrer, durante a sessão, de ele enlouquecer cada vez mais, chegando a desenvolver o que Winnicott chama de “transferência delirante”:2 através dela, ele acusa o analista,ou alguém que o represente lá fora, de persegui-lo, de desejar que ele permaneça dependente, de sobrecarregá-lo, de vigiá-lo etc. O que o paciente necessita, nesse preciso instante, é de um analista que entenda o que está se passando, de modo a poder sobreviver à tremenda tensão desses momentos, acolhendo a necessidade do paciente e permitindo que a experiência deste seja explorada até o fim. E o que está se passando é o seguinte: para poder atualizar e experimentar a falha originária, o paciente usa as falhas do analista de modo a poder vivê-la, agora, com a ajuda e reconhecimento do analista, como uma falha do ambiente. Se essas condições lhe forem fornecidas, ele poderá, pela primeira vez, sentir raiva e zangar-se com o analista (ambiente), ao invés de ser aniquilado. Num caso desse tipo, se a situação for abordada com uma atitude ativada por uma urgência psiquiátrica de tirar o paciente do delírio – de curá-lo, por assim dizer –, a finalidade do colapso perde-se por completo já que, ao enlouquecer, o paciente está perseguindo uma finalidade positiva e “seu colapso não é tanto uma doença, senão um primeiro passo em direção à saúde” (1965vd[1963]/1983, p. 99). Exige considerável experiência e coragem saber onde se está e perceber o valor que tem, para o paciente, chegar cada vez mais perto da loucura. Se o analista, por medo, ignorância ou pelo inconveniente de ter em suas mãos uma pessoa tão enferma, não for capaz de entender o que está se passando, ele desperdiçará o que está acontecendo e não poderá curar o paciente. (1989vk[1965]/1994, p. 101) Para que todo o processo de revivência do trauma possa ocorrer, é necessário que o analista esteja desprotegido. Isto quer dizer que ele não deve tentar justificar a falha, evitando a raiva que deverá necessariamente recair sobre ele. Se o analista se defende, o paciente perde a chance de zangar-se com a falha originária, justamente no momento em que a raiva tornou-se possível pela primeira vez. Sobreviver, aqui, significa que ele banca as consequências de estar no lugar de quem fere, pois o analista fere, justamente, porque, dada a confiabilidade oferecida, fez renascer a esperança. É somente pela utilização de seus próprios erros que o analista poderá fazer a parte mais importante do trabalho, aquela que libertará o paciente da dependência: Aprendemos que é previsível que aumente a sensibilidade do paciente e começamos a nos perguntar se o que nos motiva é a bondade ou a crueldade. Comprovamos que nossas inevitáveis falhas, específicas e limitadas, frequentemente provocadas pelo paciente, dão a ele a oportunidade de sentir raiva de nós e de expressá-la. (1968c[1967]/1994, p. 155) Se a tendência inata ao amadurecimento for libertada dos nós que a obstaculizavam, o paciente voltará a amadurecer e logo começará a apresentar as turbulências que são pertinentes ao estar vivo. Temos de saber reconhecer quando suas possibilidades se alteram, e temos de deixar ser o paciente, com todas as suas novas necessidades e exigências, às quais também o analista terá de sobreviver e corresponder. Será, igualmente, preciso deixar aberto o caminho de retorno a uma regressão que ainda se faça necessária. 6. O que permite ao analista sobreviver? Uma das condições que possibilitam à mãe e ao analista realizarem a sua tarefa de sobrevivência é a crença no processo de amadurecimento. Essa crença está, certamente, incluída no crescimento para menor. “Para que algum trabalho possa ser feito, é preciso que haja no analista uma crença na natureza humana e nos processos de desenvolvimento, e isto é rapidamente percebido pelo paciente” (1955d[1954]/2000, p. 390). Ao crescer para menor, o analista começa a ter claro que, tal como disse Winnicott, existe algo em psicoterapia que não pode ser descrito em termos de interpretação certa no momento certo. Ele estará atento para reconhecer os casos em que será necessário deixar de lado o sofisticado saber que presidiu a sua formação, abdicando da esperteza, do brilhantismo ou da rapidez com que ele é capaz de apreender, e devolver, para o paciente, os sofisticados nexos do inconsciente reprimido; limitar-se-á a acompanhá-lo, real e pessoalmente, ciente de que não há nada a fazer, a não ser facilitar um processo de amadurecimento que pertence ao paciente. O que fazemos numa terapia bem-sucedida, diz o autor, é desatar os nós que paralisavam o processo, de modo que a poderosa tendência inata ao amadurecimento siga o seu curso. O ambiente “não faz o bebê crescer nem determina o sentido do crescimento” (1963c/1983, p. 201). Frequentemente se pensa que fazemos os nossos filhos e lhes ensinamos tudo, mas exatamente o oposto é verdadeiro, pois “não podemos nem mesmo ensiná- los a andar, embora a sua tendência inata para andar em certa idade precise de nós como figuras de apoio” (1987b/1990, p. 162). É de muita ajuda para os pais, e para nós, analistas, sabermos que não há nada a fazer para que o bebê se converta em criança, para que a criança cresça, para que a criança em crescimento seja boa ou asseada, que cresça generosa e que a generosa criança saiba sempre fazer as coisas certas nos momentos certos: “Ninguém tem de fazer uma criança ser faminta, irada, feliz, triste, afetuosa, boa ou travessa: as coisas acontecem, e isso é tudo” (1993b[1969]/1993, p. 125). No entanto, há muitas coisas que podem ser feitas indiretamente; e uma delas é que “a mãe, muitas vezes, impede a esquizofrenia por meio de um bom manejo comum” (1987b/1990, p. 40). Qualquer trabalho em que estejamos envolvidos como cuidadores pode ser descrito como “uma espécie de amor, mas, com frequência, tem de parecer mais um ato de ódio, e a palavra-chave não é tratamento ou cura, mas sobrevivência. Se vocês sobreviverem, a criança terá oportunidade de crescer e vir a ser algo parecido com a pessoa que deveria ter sido, se um infausto colapso ambiental não tivesse acarretado o desastre” (1984g[1970]/1987, p. 232; os itálicos são meus). Referências Heidegger, M. (1987). Zollikonner Seminare (GA 9). Frankfurt/M: Klostermann. Vilete, E. P. (2000). Sobre “O homem morto que caminha”. Natureza humana, 2(1), 149-164. Winnicott, D. W. (1975). O brincar e a realidade. Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1971a. Título original: Playing and Reality) Winnicott, D. W. (1975). A criatividade e suas origens. In D. Winnicott (1975/1971a), O brincar e a realidade. Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1971g) Winnicott, D. W. (1983). 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Introdução Tratarei, neste estudo, dos conceitos de incorporação e de introjeção na obra de Winnicott, e, em particular, da distinção entre eles formulada pelo autor.2 Essa distinção é uma das derivações de outra, mais ampla, entre psique e mente, uma das mais férteis contribuições de seu pensamento ao estudo da natureza humana e à mudança paradigmática operada por sua teoria do amadurecimento. Meu propósito não é tanto me embrenhar na análise desses conceitos, mas abrir o campo concei tual de modo a me permitir explicitar a importante noção de incorporação na psicanálise winnicottiana e expor, além do conceito mais comum de introjeção, como mecanismo mental, a introjeção mágica, que é uma formação defensiva cuja consideração pode auxiliar na compreensão e no manejo de certas formas de transferência. Talvez seja útil retomar brevemente os conceitos básicos – em especial a distinção entre psique e mente, formulada por Winnicott – sobre os quais a presente questão ganha relevo. Ao se considerar o indivíduo total, afirma o autor, deve-se levar em conta não o corpo e a mente, como tradicionalmente se estabeleceu pela herança cartesiana, mas o soma e a psique. No resumo do artigo “A mente e sua relação com o psique-soma”, diz Winnicott: É lógico contrapor soma e psique e, portanto, contrapor o desenvolvimento emocional ao desenvolvimento corporal de um indivíduo. Não é lógico, porém, opor o mental ao físico, pois não são da mesma ordem. Os fenômenos mentais são complicações de importância variável na continuidade de ser do psique-soma, em termos do que adicionam ao si-mesmo individual. (1954a[1949]/2000, p. 346) Como se vê, Winnicott resguarda a dualidade psicossomática, pois distingue o funcionamento psíquico do funcionamento somático, acentuando ainda o sentido e o valor do hífen que separa as duas palavras da expressão (psycho-somatic), mas convém ressaltar que psique e soma são, pela sua própria natureza e pela tendência ao amadurecimento, intimamente interligados, com tendência a operar conjuntamente numa existência que é psicossomática. O soma é o corpo vivo, que é um aspecto do “estar vivo” do indivíduo, ao qual são inerentes a respiração, a temperatura, a motilidade e, igualmente, a vitalidade dos tecidos. Sendo físico, certamente, o corpo vivo não deve ser entendido de uma perspectiva meramente orgânica, fisiológica ou anatômica, pois se trata do corpo de alguém que respira, tem fome, busca algo, mama, chora, se assusta, ou seja, um corpo que, além de vivo, é pessoal. A psique, diz o autor, é tudo o que não é o soma. A mais primitiva função da psique, que tem início já na vida intrauterina e que perdura pelo resto da vida a despeito das aquisições que venham a ser feitas, é a “elaboração imaginativa das partes, sentimentos e funções somáticas, isto é, do estar fisicamente vivo (phisical aliveness)” (1958a/2000, p. 333). O funcionamento psíquico inicial é, portanto, relativo ao soma, pois, seja o que for que esteja sendo experienciado pelo bebê, tudo é experienciado no corpo ou através dele e está sendo personalizado pela elaboração imaginativa. Esta, diz o autor, “é uma forma rudimentar do que mais tarde chamaremos de imaginação” (1993h[1956]/1993, p. 21).3 Não se trata, ainda, da fantasia do corpo que virá depois, pois esta é eminentemente representacional e depende de um funcionamento mental que ainda não foi ativado nesse momento inicial. A elaboração imaginativa é, bem mais, o que dá sentido ao que seria, de uma perspectiva puramente organicista, uma mera sensação. Do ponto de vista da experiência humana, contudo, há sempre um sentido, mesmo que altamente incipiente, tal como estar protegido ou não, sentir-se ou não seguro, deixar-seir ou ser interrompido, sentir urgência, sentir-se solto no vazio, ter algo entrando, ter contato ou não etc.4 Em Winnicott, o corpo é, sobretudo, um campo de experiências psicossomáticas pessoais e não um campo simbólico. No artigo “O ‘animal humano’”, Loparic (2000) assinala que o ponto central para o entendimento do conceito de elaboração imaginativa é essa “dação de sentido”, que é anterior às operações mentais de representação, verbalização e simbolização, operações para as quais o bebê é ainda muito imaturo. Referindo-se ao fato de que uma das mais importantes integrações do ser humano em desenvolvimento é “um arranjo operacional satisfatório entre a psique e o soma”, Winnicott acrescenta: “Isso começa anteriormente à época em que é necessário adicionar os conceitos de intelecto e verbalização” (1971d[1970]/1994, p. 209).5 Onde é que fica a mente nisso tudo? Diz o autor: “A parceira do soma na valsa da vida não é a mente” (1969f[1968]/1997, p. 221). Esta, esclarece Winnicott em Natureza humana, “constitui uma ordem à parte e deve ser considerada como um modo especializado do funcionamento do psique- soma” (1988/1990, p. 29). Quando os cuidados ambientais são satisfatórios e favorecem a integração psicossomática, a mente tem início naturalmente num momento um pouco mais avançado do amadurecimento inicial, mais precisamente na passagem da dependência absoluta para a relativa; nesse caso, ela não constitui uma entidade em si mesma,6 mas é um desdobramento do psique-soma, um modo específico de este funcionar, um “ornamento”, dirá Winnicott, da crescente coesão psicossomática. A psique é, portanto, mais ampla e mais primitiva do que a mente; enquanto o funcionamento mental é especializado, inicialmente nas funções intelectuais de catalogação, classificação e cotejamento (cf. 1989s[1965]/1994), expandindo-se, após o alcance da identidade unitária, aos mecanismos mentais de projeção e introjeção, a psique independe de início da perceptividade e é fundamentalmente imaginativa e criativa. Se, em virtude da insegurança ambiental, o funcionamento mental é precocemente ativado, isso provoca um estado de alerta no bebê, que o impede de repousar, com a ativação de um sistema defensivo caracterizado por uma hipermentalização. Esse funcionamento mental prematuro e exacerbado é negativo, diz Winnicott, “pois deriva de um estágio demasiadamente precoce na história do indivíduo, sendo, portanto, patologicamente desvinculado do corpo e de suas funções, bem como dos sentimentos, impulsos e sensações do ego total” (1958f[1949]/2000, p. 267). Desse estado de coisas decorre, em geral, uma incapacidade para a experiência, pois esta, para ocorrer como tal, requer a participação conjunta de psique e soma. São esses os casos em que pode se instalar no indivíduo um recurso onipresente a representações, que proliferam e substituem a vida e a experiência. É sobre o fundo dessas concepções que volto, agora, ao assunto central deste estudo. Ressalto, inicialmente, que o tema relativo à incorporação e à introjeção é pouco visado, em geral, e não chegou a ser totalmente desenvolvido por Winnicott, ao menos não explicitamente.7 Descobri, contudo, em especial no que se refere à incorporação, que este conceito é quase onipresente na obra do autor, pois, trata, em nível molecular, da maneira pela qual, na saúde, o indivíduo inicialmente dependente assimila – através da elaboração imaginativa das partes, sentimentos e funções do corpo vivo – os vários aspectos do si-mesmo psicossomático ou, ainda, as qualidades incipientes de organização psicossomática, que surgem das experiências de facilitação ambiental, resultando em crescente organização psicossomática, o que o torna cada vez mais autônomo e capaz de cuidar de si mesmo. Em outras palavras, a incorporação refere-se às maneiras pelas quais, devido à experiência repetida dos cuidados ambientais, o indivíduo se apropria de modos de se cuidar, de alcançar e usar objetos, de relacionar- se com a realidade externa e buscar nela o que necessita, a ponto de poder, com o tempo, dispensar o ambiente facilitador real.8 Enquanto, para a psicanálise tradicional, que é uma teoria da mente, o intercâmbio entre o sujeito e a realidade externa é pensado, desde o início, em termos da percepção, que é produzida pelo sistema perceptivo do aparelho psíquico e dos mecanismos mentais de introjeção e projeção – sendo o psiquismo concebido como uma dinâmica de representações –, para Winnicott, a ideia de mecanismos mentais operando desde o início da vida é incompatível com sua formulação de todo um período do amadurecimento inicial dos seres humanos “que precede a objetividade e a perceptividade” (1969a/1975, p. 203) – que é pré-representacional, pré-verbal e pré- simbólico –, e mais, é incompatível com o conceito de criatividade primária.9 Como é, então, que o pequeno indivíduo humano se apropria do que lhe é fornecido pelo ambiente e do que, propriamente, ele se apropria? É com relação a toda essa etapa primitiva, anterior à separação entre o eu e o não- eu e ao advento pleno do funcionamento mental, que Winnicott introduz a ideia de incorporação (num sentido totalmente novo com relação ao que havia sido usado na literatura tradicional, e naturalmente, relativo às suas novas concepções); esse processo, que tem início já ao tempo da dependência absoluta, não exige nenhum trabalho mental e prossegue ao longo da vida, enquanto há saúde e o corpo permanece sendo a morada da psique. A introjeção, por sua vez (assim como a sua polaridade, a projeção), sendo um mecanismo mental, só começa a operar num momento posterior, quando a diferença entre o que é do eu e o que é do não-eu ficar mais estabelecida. O interesse dessa distinção é assinalado por Winnicott, por exemplo, num trecho em que discorre sobre o amadurecer da criança: Vemos o interessante processo de absorção, na criança, dos elementos do cuidado, aqueles que poderiam ser chamados de elementos do “ego auxiliar”. A relação entre essa absorção do meio [aqui existe incorporação] e o processo de introjeção com o qual já estamos familiarizados gera grande interesse. (1965h[1959-1964]/1988, p. 116) A distinção entre incorporação e introjeção, e o que isso pode significar, em termos de amadurecimento, não estava clara no pensamento do autor desde o início de sua obra e foi sendo elaborada aos poucos, o que quer dizer que, tendo eu utilizado textos de diferentes épocas, foi preciso, muitas vezes, sobretudo com relação aos textos mais iniciais, entender o que Winnicott dizia à luz de textos posteriores. Além disso, também no que se refere à incorporação e à introjeção, dá-se o mesmo fenômeno que em outros casos, a saber, ele usa termos já consagrados para expressar ideias radicalmente novas, o que naturalmente dificulta o entendimento da novidade conceitual que ele propõe. Tentei, então, explicitar numa nova linguagem – e, naturalmente, à luz da totalidade de seu pensamento –, o que está contido na distinção entre incorporação e introjeção. Devo ainda mencionar que o exame desses conceitos leva a um campo conceitual relativo ao dentro e fora – em particular, ao mundo interno e objeto interno, e ao caráter representacional que eles encerram –, ao qual seria necessário dar maior precisão, levando em conta a obra completa, mas que não poderá ser considerado no âmbito deste estudo. Pode-se apenas adiantar que, tendo aderido a essa terminologia consagradamente kleiniana nos trabalhos mais antigos, Winnicott tentou, em especial nos artigos em que essa questão se torna aguda, corrigir essa imprecisão falando de realidade psíquica pessoal, ao invés de realidade interna.10 Um exemplo encontra-se em “O conceito de indivíduo saudável”, quando, ao enunciar as três vidas que as pessoas saudáveis experienciam, Winnicott diz que a segunda delas é “a vida da realidade psíquica pessoal (às vezes chamada de interna)” (1971f[1967]/1989, p. 28). Para esclarecer um pouco mais o ponto em questão, menciono ainda um trecho da carta de Winnicott a M. Klein, de1957, em que, comentando um trabalho de Hanna Segal, ele escreve (o que é, certamente, um recado para a própria Klein): Aliás, acho que a Dra. Segal, de momento, não foi capaz de dar uma boa explicação para o uso que faz da palavra interno, pois se você devora a mãe, você não tem a mãe dentro de si. Se houvesse tido mais tempo, provavelmente ela teria feito uma distinção entre incorporação e introjeção mágica, que era o que ela tinha em mente, acho eu. (1987b/1990, p. 100; os itálicos são meus) O tema leva, portanto, naturalmente, a um debate com a psicanálise tradicional, e em especial com Melanie Klein, e isso será explicitado em alguns pontos do texto. Leva, ainda – e que é, afinal, o que mais interessa a este estudo –, a um exame de aspectos da relação terapêutica pelos quais ela é capaz, ou não, de promover crescimento genuíno. 2. Rápida retrospectiva da literatura tradicional acerca dos conceitos Os termos incorporação, introjeção (e projeção), assim como o de interiorização e o de internalização, encontram-se em toda a literatura psicanalítica tradicional – Freud, Klein, Ferenczi. Embora Freud, ao considerar os termos, explicite a diferença entre incorporação e introjeção, ele, assim como os autores cujas obras são desenvolvimentos da psicanálise freudiana, usam os dois termos, no mais das vezes, como sinônimos. Ele também não discrimina entre introjeção e interiorização. O conceito de identificação, que se aproxima do de introjeção, ganhou outros significados e teria que ser considerado à parte, o que não será feito no presente estudo. 2.1 Incorporação, introjeção e interiorização em Freud Freud usou o conceito de incorporação, em 1915, para designar o processo pelo qual o sujeito, de modo mais ou menos fantasmático, introduz e conserva um objeto no interior de seu corpo. Incorporar, para Freud, é um alvo pulsional, em especial no que se refere à atividade bucal e à ingestão de alimentos; não se limita, contudo, à oralidade: há incorporação pela pele, pela respiração, pela visão e pela audição; há incorporação anal uma vez que a cavidade retal é equivalente à boca, e também incorporação genital, pela retenção do pênis, por exemplo. Seja como for, é o interior do corpo que é visado, com três finalidades: 1) dar-se prazer pela introdução de um objeto em si; 2) destruir o objeto; 3) assimilar as qualidades do objeto. É por esta última finalidade que a incorporação se torna a matriz, o protótipo corporal, da introjeção e da identificação.11 Foi também em 1915 que Freud adotou o conceito de introjeção, após este ter sido introduzido, na psicanálise, por Ferenczi, no texto “Introjeção e transferência”, de 1909. Ferenczi usa o termo, basicamente, para fazer contraponto ao conceito de projeção, referindo-se, com ele, ao modo pelo qual o indivíduo alarga o círculo de seus interesses para fazer aí caberem os afetos livremente flutuantes. Ferenczi esclarece que, enquanto o paranoico projeta para o exterior as emoções que se tornaram penosas, o neurótico procura incluir em sua esfera de interesses a maior parte possível do mundo exterior, fazendo dele objeto de fantasmas conscientes e inconscientes. [...] O neurótico está perpetuamente em busca de objetos de identificação, de transferência; isto significa que ele atrai tudo o que pode em sua esfera de interesses, ele os “introjeta”. (Ferenczi, 1909/1968, p. 100) No decorrer do ensaio de Ferenczi, a acepção do termo tornou-se tão vaga que acabou por confundir-se com o de projeção. Ao assimilar o conceito, Freud o contrapõe nitidamente ao de projeção. Isso fica explicitado mais claramente em “Pulsões e seus destinos” (1915) quando, ao considerar a gênese da oposição sujeito (ego)/objeto (mundo exterior), Freud mostra que ela é correlativa à oposição prazer/desprazer. Diz Freud, nesse texto, que o “ego-prazer-purificado” constitui-se por uma introjeção de tudo o que é fonte de prazer e por uma projeção para fora de tudo o que é ocasião de desprazer. Em “A negação” (1925), assinala que, expressa na linguagem das pulsões mais antigas, orais, a oposição introjeção/projeção significa: quero comer aquilo ou quero cuspir aquilo. Traduzida numa expressão mais geral: “quero introduzir isto em mim ou excluir isto de mim” (Freud, 1925/1989, p. 254). Ou seja, “o ego-originário quer introjetar em si tudo o que é bom e rejeitar tudo o que é mau” (Freud, 1925/1989, p. 254). Em seu Vocabulaire de Psychanalyse, Laplanche e Pontalis afirmam que, na psicanálise, sendo o limite corporal o protótipo da separação entre interior e exterior, o processo de incorporação refere-se explicitamente a esse invólucro corporal. Já o termo “introjeção” é mais lato: não é apenas o interior do corpo que está em causa, mas também o interior do aparelho psíquico, de uma instância etc. É assim que se fala de introjeção no ego, no ideal de ego etc. (cf. Laplanche & Pontalis, 1967, p. 209). Quanto ao termo interiorização, que é usado com frequência por Freud, pode ter duas acepções: 1) sinônimo de introjeção e 2) ter um uso mais específico, a saber, a interiorização de um conflito, de uma interdição. É, sobretudo, neste último sentido que ele é usado por Freud: a relação de autoridade entre pai e filho é interiorizada – ou introjetada –, por exemplo, na relação do superego com o ego. Laplanche e Pontalis elucidam: “Quando do declínio do Édipo, podemos dizer que o indivíduo introjeta a imago paterna e interioriza o conflito de autoridade com o pai” (Laplanche & Pontalis, 1967, p. 206). Adiantando um pouco a perspectiva de Winnicott, cito aqui uma passagem em que ele usa o conceito de introjeção, à sua maneira, para apresentar como entende a formulação freudiana relativa à formação do superego. Diz ele: Na simplificação do complexo de Édipo, o menino introjetava o pai, respeitado e temido, e, por isso, levava com ele forças de controle baseadas no que a criança percebia e sentia em seu pai. Esta figura paterna introjetada era altamente subjetiva e colorida pela experiência da criança com figuras paternas outras além do pai verdadeiro e também por padrões culturais da família. (A palavra introjeção simplesmente significava uma aceitação mental e emocional, e este termo evitava as implicações mais funcionais da palavra incorporação). (1958o[1956]/1988, p. 22)12 Aqui já se nota que 1) Winnicott diferencia claramente entre incorporação e introjeção e 2) a introjeção é um mecanismo mental que opera num momento em que já há percepção do objeto (no caso, o pai) e de características do objeto. 2.2 Incorporação, introjeção e interiorização em Melanie Klein Pelo fato de entender que as relações iniciais já se dão com objetos externos, Melanie Klein postula a ideia de que a introjeção e seu contraponto, a projeção, estão presentes desde o início da vida e é exatamente esse um dos principais pontos de divergência de Winnicott com a psicanalista húngara. Num texto escrito em 1962, sobre a contribuição de Klein, ele diz: “Ela aprofundou-se mais e mais nos mecanismos mentais de seus pacientes e aplicou então seus conceitos ao bebê em crescimento. Acho que foi aí que cometeu alguns enganos, porque profundo, em psicologia, nem sempre quer dizer primitivo” (Winnicott, 1965va[1962]/1988, p. 161). No pensamento de Klein, a noção de incorporação foi açambarcada pela de introjeção. Se a incorporação, em Freud, ainda apontava para o interior de um corpo substancial, Klein eliminou o corpo concreto e o considera tão somente em termos de mecanismos mentais e de fantasia. No Dicionário do pensamento kleiniano, consta que a incorporação, na obra da autora, refere- se à fantasia da absorção corporal de um objeto, que é subsequentemente sentido como fisicamente presente dentro do corpo, ocupando espaço e sendo ativo lá. É a experiência que o sujeito tem de um mecanismo de defesa que é objetivamente descrito como introjeção. (Hinshelwood, 1992, p. 357) A noção de introjeção foi introduzida pela psicanalista por volta de 1926 e, ao fazê-lo, ela pôs ênfase não tanto no mecanismo, mas sim no resultado,