Baixe o app para aproveitar ainda mais
Prévia do material em texto
LITERATURA Editora Exato 12 REALISMO/NATURALISMO 1. INTRODUÇÃO A poesia do final da década de 1860 já anunci- ava o fim do Romantismo; Castro Alves, Sousândra- de e Tobias Barreto faziam uma poesia romântica na forma e na expressão, mas os temas estavam voltados para uma realidade político-social. O mesmo se pode afirmar de algumas produções do romance românti- co, notadamente a de Manuel Antônio de Almeida, Franklin Távora e Visconde de Taunay. Era o pré- Realismo que se manifestava. Na década de 70, surge a chamada escola de Recife, com Tobias Barreto, Sílvio Romero e outros, aproximando-se das idéias européias ligadas ao Posi- tivismo, ao Evolucionismo e, principalmente, à filo- sofia alemã. São os ideais do Realismo que encontravam ressonância no conturbado momento histórico vivido pelo Brasil, sob o signo do abolicio- nismo, do ideal republicano e da crise da Monarquia. Em 1857, o mesmo ano em que no Brasil era publicado “O guarani”, de José de Alencar, na Fran- ça, é publicado “Madame Bovary”, de Gustave Flau- bert, considerado o primeiro romance realista da literatura universal. Em 1865, Claude Bernad publica “Introdução à Medicina Experimental”, com uma te- se sobre a hereditariedade. Em 1867, Émile Zola pu- blica “Therese Raquin”, inaugurando o romance naturalista. No Brasil, considera-se 1881 como o ano i- naugural do Realismo. De fato, esse foi um ano fértil para a literatura brasileira, com a publicação de dois romances fundamentais, que modificaram o curso de nossas letras: Aluísio Azevedo publica O Mulato, o primeiro romance naturalista do Brasil; Machado de Assis publica Memórias Póstumas de Brás Cubas, o primeiro romance realista de nossa literatura. Na divisão tradicional da história da literatura brasileira, o ano considerado data final do Realismo é 1893, com a publicação de Missal e Broquéis, ambos de Cruz e Sousa, obras inaugurais do Simbolismo. No entanto, é importante salientar que 1893 registra o início do Simbolismo, mas não o término do Realis- mo e suas manifestações na prosa, com os romances realistas e naturalistas, e na poesia, com o parnasia- nismo. Basta lembrar que D. Casmurro, de Machado de Assis, é de 1900; Esaú e Jacó, do mesmo autor, é de 1904. Olavo Bilac foi eleito “príncipe dos poetas” em 1907. A Academia Brasileira de Letras, templo do Realismo, é de 1897. Na realidade, nos últimos vinte anos do século XIX e nos primeiros vinte anos do século XX, temos três estéticas que se desenvol- vem paralelas: o Realismo/ Naturalismo/ Parnasia- nismo; o Simbolismo e o Pré-Modernismo, que só conhecem o golpe fatal em 1922, com a Semana de Arte Moderna. 2. MOMENTO HISTÓRICO O Realismo reflete as profundas transforma- ções econômicas, políticas, sociais e culturais da se- gunda metade do século XIX. A Revolução Industrial iniciada no século XVIII entra numa nova fase, ca- racterizada pela utilização do aço, do petróleo e da eletricidade; ao mesmo tempo, o avanço científico leva às novas descobertas nos campos da Física e da Química. O capitalismo se estrutura em moldes mo- dernos, com o surgimento de grandes complexos in- dustriais; por outro lado, a massa operária urbana avoluma-se, formando uma população marginalizada que não partilha dos benefícios gerados pelo progres- so industrial mas, pelo contrário, é explorada e sujeita a condições subumanas de trabalho. Esta nova sociedade serve de pano de fundo para uma nova interpretação da realidade, gerando teorias de variadas posturas ideológicas. Numa se- qüência cronológica, temos o Positivismo, de Augus- te Comte, preocupado com o real-sensível, o fato, defendendo o cientificismo no pensamento filosófico e a conciliação da “ordem e progresso” (a expressão, utilizada na bandeira republicana do Brasil, é de ins- piração comtiana); o Socialismo científico de Karl Marx e Friedrich Engels, a partir da publicação do Manifesto do Partido Comunista, em 1848, definindo o materialismo histórico (“o modo de produção da vida material condiciona o processo de vida social, político e intelectual em geral”- K. Marx) e a luta de classes; o Evolucionismo de Charles Darwin, a partir da publicação, em 1859, de “A origem das espécies”, livro em que ele expõe seus estudos sobre a evolução das espécies pelo processo de seleção natural, negan- do, portanto a origem divina defendida pelo Cristia- nismo. O Brasil também passa por mudanças radicais, tanto no campo econômico como no político-social, no período compreendido entre 1850 e 1900, embora com profundas diferenças materiais, se comparadas às da Europa. A campanha abolicionista intensifica- se a partir de 1850; a Guerra do Paraguai (1864/70) tem como conseqüência o pensamento republicano - o Partido Republicano foi fundado no ano em que es- sa guerra acabou; a Monarquia vive uma vertiginosa decadência. A Lei Áurea, de 1888, não resolveu o problema dos negros, mas criou uma nova realidade. O fim da mão-de-obra escrava e a sua substituição pela mão-de-obra assalariada, agora representada pe- las levas de imigrantes europeus que vinham traba- lhar na lavoura cafeeira, originou uma nova Editora Exato 13 economia voltada para o mercado externo, mas agora sem a estrutura colonialista. 3. CARACTERÍSTICAS DO REALISMO E DO NATURALISMO Antes das principais características, é impor- tante conhecer a diferença entre Realismo e Natura- lismo. A obra realista volta-se às relações sociais, ob- servando costumes, relacionamento familiar e amoro- so, corrupção das grandes instituições, como o Estado, a Igreja, a família, o casamento etc. O Naturalismo é também realista, só que re- presenta uma tendência mais voltada ao cientificis- mo, com aplicação das teorias científicas em voga na época, dando ênfase, nas personagens, ao instintivo e patológico, ou seja, considerando o homem em sua condição animal. Daí, a produção literária naturalista apresentar o chamado experimental ou romance de tese. São estas as características gerais: � Crítica ao homem e à sociedade; � Surgimento do romance social, psicológico e de tese; � Narração de fatos partindo da observação; � Presença da sexualidade nas obras; � Objetivismo: a linguagem deve ser clara e não conter dados subjetivos; � Ao contrário dos românticos, autor e obra procuram ser contemporâneos, isto é, não se pode partir da experimentação com algo distante de nós; � Racionalismo; � Linguagem simples e abundância de descri- ções para que o leitor possa ter a imagem o mais próxima possível; � Apresentação da realidade em preocupa- ções morais; � As personagens são, em geral, seres que encontramos no mundo real; aparece a lin- guagem de baixo calão, os vícios humanos etc. � Preferência por enredos que envolvam am- bientes sociais em desequilíbrio. Além dessas, a obra essencialmente naturalista apresenta as seguintes características: � Ânsia de explicar tudo cientificamente; � Determinismo com relação à atitude das personagens (nenhum tudo depende de sua vontade; pode haver imposição do meio, da hereditariedade física e psicológica etc.) � O homem e os outros elementos da nature- za são vistos como sujeitos às mesmas leis da evolução; � O homem é encarado como produto da ra- ça, do meio e do ambiente; � As personagens são semelhantes entre si, na medida em que apresentam desequilíbrios característicos de sua condição; � Preferência por ambientes em que predo- minem a miséria. Romance Realista: cultivado no Brasil por Machado de Assis, é uma narrativa mais preocupada com a análise psicológica, fazendo crítica à sociedade a partir do comportamento de determinados persona- gens. É interessante constatar que os cinco romances da fase realista de Machado apresentam nomes pró- prios em seus títulos - Brás Cubas; Quincas Borba; D. Casmurro; Esaú e Jacó; Aires -, revelando a clara preocupação com o indivíduo. Por outro lado, o ro- mance realista analisa a sociedade “por cima”, ou se- ja, seus personagenssão capitalistas, pertencem à classe dominante; mais uma vez nos voltamos para a obra de Machado e percebemos que Brás Cubas não produz, vive do capital, o mesmo acontecendo com Bentinho; já Quincas Borba era louco e mendigo até receber uma herança; o único dos personagens cen- trais de Machado que trabalhava era Rubião (profes- sor em Minas), mas recebe a herança de Quincas Borba, muda-se para o Rio e não trabalha mais, vi- vendo do capital. O romance realista é documental, retrato de uma época. Romance Naturalista: cultivado no Brasil por Aluísio Azevedo e Júlio Ribeiro; o caso de Raul Pompéia é muito particular, pois seu romance “O A- teneu” ora apresenta características naturalistas, ora realistas, ora impressionistas. A narrativa naturalista é marcada pela forte análise social a partir de grupos humanos marginalizados, valorizando o coletivo. In- teressa também notar que os títulos dos romances na- turalistas apresentam a mesma preocupação: O mulato, O cortiço, Casa de pensão, O ateneu. Há in- clusive, sobre o romance O Cortiço, a tese de que o principal personagem não é João Romão, nem Berto- leza, nem Rita Baiana, nem Pombinha, mas sim o próprio cortiço ou, como afirma Antônio Cândido, “o romance é o nascimento, vida, paixão e morte de um cortiço”. Por outro lado, o naturalismo apresenta ro- mances experimentais; a influência de Darwin se faz sentir na máxima naturalista segundo a qual o homem é um animal. Portanto, antes de usar a razão, deixa-se levar pelos instintos naturais, não podendo ser repri- mido em suas manifestações instintivas, como o se- xo, pela moral da classe dominante. A constante repressão leva às taras patológicas, tão ao gosto natu- ralista, em conseqüência, esses romances são mais ousados e erroneamente tachados por alguns de por- nográficos, apresentando descrições minuciosas de atos sexuais, tocando, inclusive, em temas então pro- ibidos, como o homossexualismo: tanto o masculino, Editora Exato 14 como em “O Ateneu”, quanto o feminino em “O cor- tiço”. 4. MACHADO DE ASSIS Estás sempre aí, bruxo alusivo e zombeteiro, que resolves em mim tantos enigmas.” Joaquim Maria Machado de Assis nasceu a 21 junho de 1839 no Morro do Livramento, Rio de Ja- neiro. Seu pai era brasileiro, mulato e pintor de pare- des; sua mãe era portuguesa da ilha de Açores e lavadeira. Freqüentou por pouco tempo uma escola pública, onde aprendeu as primeiras letras; aos 16 anos já freqüentava a tipografia de Paula Brito, onde se publicava a revista Marmota Fluminense, em cujo número de 21 de janeiro de 1855 sai o poema “Ela”: era a estréia de Machado de Assis nas letras. No ano seguinte, começa a trabalhar como aprendiz de tipó- grafo, depois revisor, ao mesmo tempo em que cola- bora com artigos em vários jornais da época. Em 12 de novembro de 1869, casa-se com Carolina Xavier de Novais, portuguesa de boa cultura, irmã do poeta Faustino Xavier de Novais, amigo de Machado. Em 1873, é nomeado primeiro oficial da Se- cretaria de Estado do Ministério da Agricultura, Co- mércio e Obras Públicas. Como servidor público, teve uma carreira meteórica que lhe deu tranqüilidade financeira; já em 1892 era Diretor-Geral do Ministé- rio da Viação. Em 1897, Machado é eleito presidente da recém-fundada Academia Brasileira de Letras (também chamada “Casa de Machado de Assis”), concretizando o velho sonho de reunir a elite dos es- critores da época em um fechado clube literário. Após a morte de sua esposa, o romancista ra- ramente saía; sua saúde, extremamente abalada pela epilepsia, por problemas nervosos e por uma gaguez progressiva, contribuía para o seu isolamento. Morre em 1908, a 29 de setembro, em sua confortável casa do Cosme Velho. Costuma-se dividir a obra de Machado de As- sis em duas fases distintas: a primeira fase apresenta o autor ainda preso a alguns princípios da escola ro- mântica, sendo, por isso, chamada de fase romântica ou de amadurecimento; a segunda apresenta o autor completamente definido dentro das idéias realistas, sendo, portanto, chamada de fase realista ou de matu- ridade. Machado foi romancista, contista e poeta, a- lém de deixar algumas peças de teatro e inúmeras críticas, crônicas e correspondências. 5. MACHADO DE ASSIS ... E UMA LEVE I- RONIA Machado de Assis foi um ótimo crítico literá- rio, principalmente de sua própria obra. Portanto, na- da melhor do que o próprio autor para nos dar algumas idéias sobre a evolução de seus romances e contos, da fase romântica para a fase realista: Advertência da Nova Edição “Este foi o meu primeiro romance, escrito aí vão muitos anos. Dado em nova edição, não lhe alte- rei a composição nem o estilo, apenas troco dois ou três vocábulos, e faço tais ou quais correções de orto- grafia. Como outros que vieram depois, e alguns con- tos e novelas de então, pertence à primeira fase da minha vida literária.” (ASSIS, Machado de. Ressurreição. São Paulo, Edigraf, s.d. p. 09) Ou então esta advertência para uma das reedi- ções de Helena: Advertência “Esta nova edição de Helena sai com várias emendas de linguagem e outras, que não alteram a feição do livro. Ele é o mesmo da data em que com- pus e imprimi, diverso do que o tempo me foi depois, correspondendo, assim, ao capítulo da história do meu espírito, naquele ano de 1876. Não me culpeis pelo que lhe achardes roma- nesco. Dos que então fiz, este me era particularmente prezado. Agora mesmo, que há tanto me fui a outras e diferentes páginas, ouço um eco remoto ao reter es- tas, eco de mocidade e fé ingênua. E claro que, em nenhum caso, lhes tiraria a feição passada: cada obra pertence ao seu tempo”. (ASSIS, Machado de.) Observa-se, portanto, que o próprio autor nos dá a dimensão exata das fases de sua obra, assumindo uma posição paternal ao comentar e se desculpar das obras da primeira fase, nostalgicamente relembradas como uma época de fé ingênua, ingenuidade esta perdida ao trilhar novos caminhos: “me fui a outras e diferentes páginas”, ou seja, páginas realistas. No entanto, apesar de romanescos, os roman- ces e contos dessa época já indicavam algumas carac- terísticas que mais tarde se consolidariam na obra de Machado: o amor contrariado, o casamento por inte- resse, uma ligeira preocupação psicológica e uma le- ve ironia. Machado de Assis – Primeira Fase Na fase romântica, suas poesias prendem-se aos padrões de autores românticos ou mesmo de al- guns árcades. São poemas sem grande preocupação formal, embora se perceba sempre uma linguagem bem cuidada; a temática é amorosa ou nacionalista, principalmente em seu livro “Americanas”, onde é mais perceptível a influência de Gonçalves Dias. Nessa primeira fase, Machado produziu três livros de poesias e, na fase realista, apenas um volume. Nos úl- timos 20 anos de sua vida, quando é mais intensa a produção da prosa realista, ele não mais escreve po- emas. Editora Exato 15 Machado de Assis - Segunda Fase Na segunda fase, Machado é um perfeito par- nasiano, fazendo sonetos metrificados, rimados, nu- ma linguagem apuradíssima, revelando uma profunda preocupação formal; exalta o conceito da “arte pela arte” e tematicamente assume uma postura filosófica e pessimista, lembrando a poesia de Raimundo Cor- reia e Olavo Bilac. Seus sonetos mais famosos são “Círculo Vicioso”, “Soneto de Natal” e “A Carolina”. É neste item que Machado de Assis realmente nos interessa, pois à prosa realista pertencem as ver- dadeiras obras-primas do romancista e contista. A análise psicológica dos personagens, o egoísmo, o pessimismo, o negativismo, a linguagem correta, clássica, as frases curtas, a técnica dos capítulos cur- tos e da conversa com o leitor são as principais carac- terísticas dos textos realistas, ao lado de uma análise da sociedade e da crítica aos valores românticos. “Memórias Póstumas de Brás Cubas”, além de ser o primeiro romance realista de nossa literatura, é uma obra inovadora, revolucionária, comuma série de posições que distinguiriam as obras-primas ma- chadianas. O livro é revolucionário a partir da sua própria estrutura: são memórias, mas póstumas! Ou seja, o narrador rememora sua vida após a morte, ge- rando, desta forma, um defunto-autor - a narração é feita em 1ª pessoa. Qual o objetivo de Machado ao criar um narrador que já está morto? Ora, para narrar sua vida com total isenção, Brás Cubas teria que estar totalmente desvinculado de qualquer relação com a sociedade, com a própria vida. A morte favorece um total descomprometimento, uma total sinceridade. Brás Cubas, ao iniciar a narração, já está morto, en- terrado e ... comido pelos vermes. Observe a dedica- tória do livro: “Ao verme que primeiro roeu as frias carnes do meu cadáver dedico com saudosa lembrança estas memórias póstumas.” Com o verbo no passado: roeu. O que significa que Brás Cubas não é mais nada, não existe, não deve satisfações a ninguém, é livre, soberano absoluto para pintar a vida, pintar as pessoas, pintar-se: “... não sei se lhe meti algumas rabugens de pessimismo. Pode ser. Obra de finado. Escrevi-a com a pena da galhofa e a tinta da melancolia, e não é di- fícil antever o que poderá sair desse conúbio.” Os contos da fase realista seguem, em linhas gerais, as mesmas diretrizes dos romances, guardadas as diferenças de um gênero para outro. Sempre há a preocupação psicológica, a fronteira entre a loucura e a lucidez, a ironia social e política. Um apólogo Era uma vez uma agulha, que disse a um nove- lo de linha: Por que está você com esse ar, toda cheia de si, toda enrolada, para fingir que vale alguma coisa neste mundo? Deixe-me, senhora. Que a deixe? Que a deixe, por quê? Porque lhe digo que está com um ar insuportável? Repito que sim, e falarei sempre que me der na cabeça. Que cabeça. A senhora não é alfinete, é a- gulha. Agulha não tem cabeça. Que lhe importa o meu ar? Cada qual tem o ar que Deus lhe deu. Impor- te-se com a sua vida, e deixe a dos outros. Mas você é orgulhosa. Decerto que sou. Mas por quê? É boa! Porque coso. Então os vestidos e en- feites de nossa ama, quem é que os cose, senão eu? Você? Esta agora é melhor. Você é que os cose? Você ignora que quem os cose sou eu, e muito eu? Você fura o pano, nada mais; eu é que coso, prendo um pedaço ao outro, dou feição aos babados... Sim, mas que vale isso? Eu é que furo o pa- no, vou adiante, puxando por você, que vem atrás, obedecendo ao que eu faço e mando... Também os batedores vão adiante do impe- rador. Você imperador? Não digo isso. Mas a verdade é que você faz um papel subalterno, indo adiante; vai só mos- trando o caminho, vai fazendo o trabalho obscuro e ínfimo. Eu é que prendo, ligo, ajunto... Estavam nisto, quando a costureira chegou à casa da baronesa. Não sei se disse que isto se passava em casa de uma baronesa, que tinha a modista ao pé de si, para não andar atrás dela. Chegou a costureira, pegou o pano, pegou da agulha, pegou da linha, enfi- ou a linha na agulha, e entrou a coser. Uma e outra iam andando orgulhosas, pelo pano adiante, que era a melhor das sedas, entre os dedos da costureira, ágeis como os galgos de Diana - para dar a isto uma cor poética. E dizia a agulha: Então, senhora linha, ainda teima no que dizia há pouco? Não repara que esta distinta costurei- ra só se importa comigo: eu é que vou aqui entre os dedos dela, unidinha a eles, furando abaixo e acima... A linha não respondia nada; ia andando. Bura- co aberto pela agulha era logo enchido por ela silen- ciosa e ativa, como quem sabe o que faz, e não está para ouvir palavras loucas. A agulha, vendo que ela não lhe dava resposta, calou-se também, e foi andan- do. E era tudo silêncio na saleta de costura; não se ouvia mais que o plic-plic-plic-plic da agulha no pa- no. Caindo o sol, a costureira dobrou a costura, para Editora Exato 16 o dia seguinte; continuou ainda nesse e no outro, até que no quarto acabou a obra, e ficou esperando o bai- le. Veio a noite do baile, e a baronesa vestiu-se. A costureira que a ajudou a vestir-se, levava a agulha espetada no corpinho, para dar algum ponto necessá- rio. E enquanto compunha o vestido da bela dama, e puxava a um lado ou outro, arregaçava daqui ou dali, alisando, abotoando, acolchetando. A linha, para mo- far da agulha, perguntou-lhe: Ora agora, diga-me, quem é que vai dançar com ministros e diplomatas, enquanto você volta para a caixinha da costureira, antes de ir para o balaio das mucamas? Vamos, diga lá. Parece que a agulha não disse nada; mas um alfinete, de cabeça grande e não menor experiência, murmurou à pobre agulha: Anda, aprende, tola. Cansas-te em abrir caminho para ela e ela é que vai gozar da vida, en- quanto aí ficas na caixinha da costura. Faze como eu, que não abro caminho para ninguém. Onde me espe- tam, fico. Contei esta história a um professor de melan- colia que me disse, abanando a cabeça: Também eu tenho servido de agulha a muita linha ordinária! (ASSIS, Machado de - Contos. Rio de Janeiro, Agir, 1963) A propósito do texto a) Quantas personagens aparecem no conto? Quantas falam? b) Você diria que este conto de Machado de Assis se aproxima da fábula? c) A quem você daria razão: à agulha ou à linha? Por quê? d) Beto Guedes e Ronaldo Bastos compuseram a música “O sal da terra”; leia atentamente o fragmento abaixo e compare-o ao conto de Machado de Assis. “Vamos precisar de todo mundo um mais um é sempre mais que dois Para melhor juntar as nossas forças É só repartir melhor o pão Recriar o paraíso agora Para merecer quem vem depois.” 6. AUTORES E OBRAS a) Raul Pompéia - Como escritor, Raul Pom- péia pertence a um grupo de homens de letras que se notabilizaram em nossa literatura, graças a um único livro. O valor literário da obra “O Ateneu” superou todas as outras publicações do autor. “O Ateneu” é um livro de memórias, denomi- nado por Raul Pompéia como “Crônica de Sauda- des”. Foi publicado em 1888, em folhetim, em “A gazeta de notícias”. Raul Pompéia em “O Ateneu” optou por um personagem narrador - Sérgio - que liberta sua cons- ciência, produzindo uma espécie de romance autobi- ográfico em que se confundem realidade e ficção. O autor estudou em um colégio interno - o Colégio Abí- lio - cujo diretor apresentava uma figura autoritária e monarquista; o personagem narrador, no romance, recorda seus tempos de aluno no Colégio Ateneu, cu- jo diretor também apresentava uma figura autoritária e monarquista. O diretor do Ateneu, professor Aris- tarco A. de Ramos era odiado pelos alunos. Ele trata- va os alunos de acordo com o seu nível social e econômico. A obra “O Ateneu” apresenta aspectos realistas e naturalistas; realistas, quando o narrador enfatiza o evolucionismo ou darwinismo nas relações entre alu- nos e diretor/alunos e, também, quando apresenta nas atitudes do diretor Aristarco a hipocrisia nas relações sociais burguesas. Os aspectos naturalistas impõem- se no determinismo (representado pela influência do meio e das circunstâncias) e no evolucionismo (a luta pela “sobrevivência” dentro do Ateneu, onde preva- lecia a “lei do mais forte”). Alguns historiadores da literatura não enqua- dram a obra nem no Realismo nem no Naturalismo, por esta fugir à exatidão descritiva e à frieza destes dois estilos. Estes historiadores julgam a obra “O A- teneu” como sendo impressionista, uma vez que re- flete a impressão que a realidade despertou no artista. Na literatura, o impressionismo caracteriza-se: � pelo registro de impressão de coisas e fatos provocados no espírito e na lembrança da personagem; � por importar mais as emoções e impressões que a ação; � pela memória do narrador, que reporta tudo ao leitor; � o narrador é onisciente e conhece o interior das personagens. � pela subjetividade da narrativa e os porme- nores importarem mais que a descrição do todo. b) AluísioTancredo Gonçalves de Azevedo (1857 - 1913) - por ser dos poucos escritores que vi- viam de suas publicações, alterna romances românti- cos, os quais denominava “comerciais”, de consumo, com os naturalistas da nova tendência, pelos quais deve ser reconhecido. Seguindo Émile Zola e Eça de Queirós, o autor escreve “romances de tese”, com clara conotação so- cial. Percebe-se a preocupação com as classes margi- nalizadas, a crítica ao conservadorismo, ao clero, à classe dominante e a defesa declarada do ideal repu- blicano. Na postura materialista, positivista, há a va- lorização dos instintos naturais na comparação dos personagens a animais. Para o autor, a degradação da classe social marginalizada dá-se pela pressão social e pelo determinismo, teoria considerada válida. Editora Exato 17 Para alguns críticos, o defeito de sua obra natu- ralista reside no fato de as personagens reduzirem-se a meras caricaturas, meros tipos, esquemas sem vida interior; ao mesmo tempo, sua grande virtude está no poder de retratar grupos humanos. Bons objetos de estudo são seus romances naturalistas: O mulato, um marco inicial desse estilo, Casa de pensão e O corti- ço. Entre seus romances românticos, que seguem a receita folhetinesca, estão: Uma lágrima de mulher, sua estréia, Memórias de um condenado, Filomena Borges, A mortalha de Alzira e outras. c) Inglês de Sousa (1853 - 1918), inicialmente voltado para o romance romântico regionalista, torna evidente sua filiação ao naturalismo com sua obra O missionário, em que retoma a polêmica a respeito do celibato clerical como se influenciada pelas teorias determinista e positivista. d) Adolfo Caminha (1867 - 1897) tem na obra O bom crioulo sua ênfase naturalista em que baseia o enredo no homossexualismo entre marinheiros. Em A normalista e Tentação revela a sociedade corrompida e amoral. e) Domingos Olímpio (1850 – 1906) pertence ao “ciclo das secas”. Em sua obra Luzia-Homem, há uma seqüência de cenas naturalistas da seca nordesti- na. Retrata a penúria dos retirantes, a rudeza do am- biente semi-árido e a secura dos homens. ESTUDO DIRIGIDO 1 Texto A “E uma sala em quadro, toda ela de uma alvura deslumbrante, que realça o azul celeste do tapete de rico recamado de estrelas e a bela cor de ouro das cortinas e do estofo dos móveis. A um lado, duas es- tatuetas de bronze dourado representando o amor e a castidade sustentam uma cúpula oval de forma ligei- ra, donde se desdobram até o pavimento bambolins de cassa finíssima. Doutro lado, há uma lareira, não de fogo, que o dispensa nosso ameno clima flumi- nense, ainda na maior força do inverno. Essa chaminé de mármore cor-de-rosa é meramente pretexto para o cantinho de conversação” (José de Alencar, Senhora). Texto B “O quarto respirava todo um ar triste de des- mazelo e boêmia. Fazia má impressão estar ali: o vômito de Amâncio secava-se no chão, azedando o ambiente; a louça que servira ao último jantar, ainda coberta de gordura coalhada, aparecia dentro de uma lata abominável, cheia de contusões e roída de ferru- gem. Uma banquinha, encostada à parede, dizia com seu frio aspecto desarranjado que alguém estivera aí a trabalhar durante a noite, até que se extinguira a vela, cujas últimas gotas de estearina se derramavam me- lancolicamente pelas bordas de um frasco de xarope Larose, que lhe fizera as vezes de castiçal”. (Aluísio de Azevedo, Casa de Pensão) Responda: a) Os textos A e B, extraídos de romances de esti- los de épocas (ou escolas literárias) diferentes, teriam algum ponto em comum? Justifique a resposta. ______________________________________ ______________________________________ ______________________________________ _____________________________________ b) A que estilo de época pertence o texto A? Cite uma característica desse estilo que se compro- ve pelo texto. ______________________________________ ______________________________________ ______________________________________ ______________________________________ c) O texto B pertence a um romance realista ou naturalista? Justifique sua resposta. ______________________________________ ______________________________________ ______________________________________ ______________________________________ 2 Olhos de Ressaca Enfim, chegou a hora da encomendação e da partida. Sancha quis despedir-se do marido, e o de- sespero daquele lance consternou a todos. Muitos homens choravam também, as mulheres todas. Só Capitu, amparando a viúva, parecia vencer-se a si mesma. Consolava a outra, queria arrancá-la dali. A confusão era geral. No meio dela, Capitu olhou al- guns instantes para o cadáver tão fixa, tão apaixona- damente fixa, que não admira lhe saltassem algumas lágrimas poucas e caladas... As minhas cessaram logo. Fiquei a ver as dela: Capitu enxugou-as depressa, olhando a furto para a gente que estava na sala. Redobrou de carícias para a amiga, e quis levá-la; mas o cadáver parece que a re- tinha também. Momento houve em que os olhos de Capitu fitaram o defunto, quais os da viúva, sem pranto nem palavras desta, mas grandes e abertos, com a vaga do mar lá fora, como se quisesse tragar também o nadador da manhã. Dom Casmurro. São Paulo, Moderna. a) Que atitude de Capitu chamou a atenção de Bentinho, fazendo que ele passasse a observá- la mais atentamente? Editora Exato 18 ______________________________________ ______________________________________ ______________________________________ ______________________________________ b) Por que pareceu a Bentinho que o cadáver de Escobar exercia grande atração sobre Capitu? ______________________________________ ______________________________________ ______________________________________ ______________________________________ c) Ao falar do choro de Capitu, Bentinho se refe- re a “algumas lágrimas poucas e caladas...” Que sentido tem o adjetivo caladas nessa pas- sagem? O que insinua Bentinho com ele? ______________________________________ ______________________________________ ______________________________________ ______________________________________ d) José Dias tinha dito, certa vez, que Capitu ti- nha “olhos de cigana oblíqua e dissimulada”. Esse comentário encontra justificativa no com- portamento de Capitu na cena do velório? Por quê? ______________________________________ ______________________________________ ______________________________________ ______________________________________ e) Em que passagem do texto se justifica o título “Olhos de Ressaca”? E o que insinua Bentinho com essa comparação? ______________________________________ ______________________________________ ______________________________________ ______________________________________ EXERCÍCIOS 1 Todas as características enunciadas a seguir per- tencem à obra de ficção de Machado de Assis, exceto: a) Preocupação em analisar o mundo interior das personagens. b) Sondagem dos motivos secretos do comporta- mento humano. c) Visão pessimista e desencantada do relaciona- mento humano. d) Análise do comportamento humano sempre à luz das teorias deterministas. 2 (UNEB-BA) Considere os seguintes fragmentos: I. Combinam-se personagens e interesses com o exclusivo objetivo do casamento: é assim que a ideologia burguesa acaba por condicionar as conveniências de classe, mal disfarçadas pelo idealismo com base em virtudes abstratas, as- sumido pelo escritor. II. Estruturalmente, a forma do romance busca re- novação: a intriga cede lugar à análise psicoló- gica ou social, com vistas ao conhecimento das causas profundas do comportamento seja do in- divíduo, seja da classe a que pertence. III. Empresta-se um verniz medieval às façanhas de nossos nativos, como se a civilização pré- cabralina constituísse nossa gloriosa Idade Mé- dia. As afirmações a) I e II referem-se à prosa realista, e III, à ro- mântica. b) I refere-se àprosa romântica, e II e III, à rea- lista. c) I e III referem-se à prosa romântica, e II, à rea- lista. d) I refere-se à prosa realista, e II e III, à românti- ca. e) I e III referem-se à prosa realista, e II, à ro- mântica. 3 Das afirmações abaixo, assinale a única que pode ser considerada correta quanto ao Realismo. a) Apesar das intenções criticas, acabou fazendo a apologia da família burguesa e do catolicismo. b) Desenvolveu uma literatura voltada principal- mente para os problemas rurais, denunciando o abandono e a pobreza do interior do Brasil. c) Criou o romance regionalista, exaltando a vida no interior do país e valorizando as raízes na- cionais. d) Procurou analisar com objetividade e senso crítico os problemas sociais e humanos. Editora Exato 19 4 Com relação ao Naturalismo, é válido afirmar que: a) Acentua a influência do meio ambiente para ressaltar que o ser humano é capaz de superá-la e criar seu próprio modo de vida. b) Destaca bastante o papel do meio social e dos caracteres hereditários na explicação do com- portamento humano. c) É oposto ao Realismo, pois julga que a literatu- ra não deve se preocupar com problemas soci- ais. d) Demonstra grande preocupação em analisar o ser humano do ponto de vista estritamente psi- cológico, isolando-o do meio social. 5 (UFMS-MS) A propósito do Naturalismo, julgue os itens: 1111 O ser é retratado como produto do meio. 2222 O escritor evita julgar ações e personagens de um ponto de vista ético e moral, pois seu intui- to é expor e analisar cientificamente a realida- de. 3333 É um tipo de Realismo que tenta explicar ro- manticamente a conduta e o modo de ser dos personagens. 4444 No Brasil, o romance naturalista exalta o ho- mem meta físico, em oposição ao homem ani- mal, cujas ações e intenções o escritor condena. 5555 Tem como características, entre outras, o de- terminismo biológico, a tematização do pato- lógico e a aplicação do método experimental. 6 (F.M.Santa Casa-SP) A ficção realista de Ma- chado de Assis, no século XIX: a) Inaugura a literatura regionalista de problemá- tica existencial. b) Continua uma literatura de caráter cientificista iniciada no Naturalismo. c) Antecipa o romance moderno de linha intros- pectiva. d) Cria uma literatura que retrata os conflitos das camadas populares. e) Incorpora a temática da oposição entre meio urbano e meio rural. 7 (F.C. CHAGAS) Assinale a alternativa em que estão indicados os textos que analisam correta- mente alguns aspectos do romance realista. I - As personagens independem do julgamento do narrador, reagindo cada uma de acordo com a sua própria vontade e temperamento. II - A linguagem é poeticamente elaborada nos di- álogos, mas procura alcançar um tom coloqui- al, com traços de oralidade, nas partes narrativas e descritivas. III - Observa-se o predomínio da razão e da ob- servação sobre o sentimento e a imaginação. a) I, II, III. b) I e II . c) I e III. d) II. 8 Use (R) se a característica for realista; (P) se for parnasiana; (N) se for naturalista e (F) se for de outra Escola: ( ) Preocupação científica. ( ) Perfeição da forma. ( ) Exploração de temas exóticos. ( ) Predomínio do sujeito e sentimentalismo. ( ) Determinismo (materialista). ( ) Pastoralismo e bucolismo. ( ) Tentativa de alcançar a impassibilidade. ( ) Culto do contraste 9 Numere a primeira coluna de acordo com a se- gunda, considerando obra e autor: ( ) O mulato ( ) O Missionário ( ) O bom crioulo ( ) Helena ( ) A carne ( ) O cortiço ( ) O ateneu ( ) A normalista ( ) Quincas Borba 1. Machado de Assis 2. Raul Pompéia 3. Aluízio Azevedo 4. Adolfo Caminha 5. Inglês de Sousa 6. Júlio Ribeiro GABARITO Estudo Dirigido 1 a) Sim. Ambos procuram retratar ambientes (no caso, opostos). b) Romantismo. A linguagem desenhada, o ambi- ente rico. c) Naturalista. A preferência por ambientes po- bres. 2 a) O modo como Capitu olhava o corpo de Esco- bar, “tão apaixonadamente fixa’”. b) Porque parecia que ela não conseguia afastar- se do cadáver. c) Caladas pode referir-se à intenção de Capitu de esconder os sentimentos, não permitindo que os outros soubessem o que existia dentro dela. Com isso, o narrador insinua que Capitu pare- cia estar tentando esconder alguma coisa que gostaria de poder dizer abertamente. Editora Exato 20 d) Sim. Porque Capitu disfarça suas emoções; mas desta vez, para Bentinho, pelo menos, ela não conseguiu ser tão dissimulada como cos- tumava ser. A emoção era forte demais e ela se compromete com suas lágrimas tão sentidas, fazendo que o marido começasse a suspeitar de sua fidelidade. e) “Momento houve (...) nadador da manhã”. Ele insinua que Escobar também fora atraído, tra- gado pelos olhos de Capitu. Exercícios 1 D 2 C 3 D 4 B 5 C, C, E, E, C 6 C 7 C 8 N, P, P, F, R, F, P, F 9 3/5/4/1/6/3/2/4/1
Compartilhar