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1ª edição
Economia do desejo
A farsa da tese neoliberal
Eduardo Moreira
M837e
20-63994
Copyright © Eduardo Moreira, 2020
CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO
SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ
Moreira, Eduardo
Economia do desejo [recurso eletrônico]: a farsa da tese neoliberal / Eduardo Moreira;
[texto de orelha Betto]; [prefácio Luiz Gonzaga Belluzzo]. – 1. ed. – Rio de Janeiro:
Civilização brasileira, 2020.
recurso digital
Formato: ePub
Requisitos do sistema: Adobe Digital Editions
Modo de acesso: World Wide Web
ISBN 9788520014158 (recurso eletrônico)
1. Economia. 2. Consumo (Economia) – Aspectos sociais. 3. Capitalismo. 4.
Neoliberalismo. 5. Livros eletrônicos. I. Betto. II. Belluzzo, Luiz Gonzaga. III. Título.
CDD: 330.122
CDU: 330.142.1
Leandra Felix da Cruz Candido – Bibliotecária – CRB-7/6135
Todos os direitos reservados. Proibida a reprodução, o armazenamento ou a transmissão de partes deste
livro, através de quaisquer meios, sem prévia autorização por escrito.
Texto revisado segundo o novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa.
Direitos desta edição adquiridos pela
EDITORA CIVILIZAÇÃO BRASILEIRA
Um selo da
EDITORA JOSÉ OLYMPIO LTDA.
Rua Argentina, 171 – Rio de Janeiro, RJ – 20921-380 – Tel.: (21) 2585-2000.
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Produzido no Brasil
2020
SUMÁRIO
Prefácio
Introdução
1. A lógica capitalista
2. A economia do desejo
3. O Estado e a economia da necessidade
4. A economia do ódio
5. Conclusão — paz e guerra
Dedico este livro a Juliana, Francisco, Catarina e Maria Eduarda, onde busco
força e serenidade para seguir adiante.
PREFÁCIO
Luiz Gonzaga Belluzzo
Abrigado nas trincheiras domésticas para escapar da mortal artilharia do
Coronavírus, recebi um gentil telefonema de Eduardo. Sempre descontraído
em seu sotaque carioca que me desperta agradáveis lembranças dos anos de
Colégio Santo Inácio, Eduardo sugeriu que eu assumisse o encargo de escrever
o prefácio de seu novo livro.
O título Economia do desejo suscitou a esperança de encontrar uma
narrativa que escapa aos espartilhos que aprisionam a “razão econômica” nos
calabouços de teorias ignorantes da complexidade da ação humana na
sociedade dos indivíduos. Foi, de fato, o que encontrei.
O espartilho é a fábula do indivíduo racional e maximizador da utilidade.
Nas versões eruditas ou nas traduções vulgares, a hipótese da racionalidade
individual é um pressuposto metafísico da ideologia dominante, necessária para
apoiar a “construção” do mercado como um servomecanismo capaz de
conciliar os planos individuais e egoístas dos agentes.
Para esse paradigma, a sociedade onde se desenvolve a ação econômica é
constituída mediante a agregação dos indivíduos, articulados entre si por nexos
externos e não necessários, tais como os que atavam Robinson Crusoé a Sexta-
Feira.
Ainda no alvorecer do século XVIII, A fábula das abelhas , de Bernard de
Mandeville, buscou a sociedade ideal trafegando na faixa da moral
individualista, racionalista e utilitarista. Vícios privados, virtudes públicas.
Mandeville conta a história de uma colmeia próspera e progressista, ambiente
em que prevaleciam os vícios egoístas de todos as habitantes, incluído o roubo
do produto alheio. Esse comportamento foi interceptado, em certo momento,
pela nostalgia da moral cristã, a nostalgia da virtude. As abelhas resolveram
retroceder, voltar à prática da virtude. A prosperidade se converteu na
decadência.
Voltaire acolheu ironicamente as peregrinações de Leibniz e Mandeville.
No Cândido, ou O otimismo , o ilustre iluminista encarregou o professor
Pangloss de justificar as múltiplas formas do mal: “Tudo isso era indispensável
[...]; infortúnios particulares fazem o bem geral.” Isso permitiu que Cândido
formulasse uma definição da filosofia de Pangloss: é preciso dizer que está tudo
bem quando as coisas andam mal.
Já no primeiro capítulo do livro, Eduardo oferece aos leitores a narrativa de
um episódio revelador das insidiosas práticas pseudocientíficas que abarrotam o
mundo contemporâneo. Ao ministrar uma aula na Casa do Saber, foi
interpelado por um cavalheiro de fino trato a respeito das críticas do
palestrante ao neoliberalismo. O gentil cavalheiro manifestou sua discordância
de forma cortês. Seu argumento foi ilustrado com o sucesso inequívoco das
economias da Holanda, Dinamarca, Suécia, Noruega, Finlândia, Canadá.
Nos debates corriqueiros com amigos e colegas neoliberais, Eduardo era
frequentemente contraditado com a exibição do ranking dos países mais bem-
sucedidos. Esse ranking era construído a partir de um índice elaborado pela
Heritage Foundation, conhecida e reconhecida por sua filiação aos princípios
do liberalismo econômico. Cito Eduardo: “O índice mais utilizado para definir
o grau de ‘liberdade econômica’ de um país e embasar as teses neoliberais leva
este mesmo nome: Index of Economic Freedom . Um índice elaborado e
calculado por uma fundação americana chamada Heritage, que na primeira
página de seu site define sua missão como ‘formular e promover políticas
públicas conservadoras baseadas nos princípios do livre mercado, Estado
mínimo, liberdades individuais, valores tradicionais estadunidenses e
fortalecimento da defesa estadunidense’.”
Surpreso com a afirmação peremptória do cavalheiro elegante, Eduardo
empenhou-se em examinar de forma mais acurada a construção do índice de
liberdade econômica e descobriu que nos bastidores da precisão estatística
abrigava-se uma fraude conceitual.
“Percebe-se, ao final da análise, que o índice funciona como uma ‘conta de
chegada’, criada para atribuir aos países mais ricos e desenvolvidos o rótulo de
‘livres’ ou ‘majoritariamente livres’ economicamente, e gerar uma relação
enviesada e equivocada nas pessoas de relação de causa e efeito, num típico
exemplo da falácia cum hoc ergo propter hoc (se ambos acontecem juntos, um
causa o outro).”
Ao ler as considerações mencionadas, a respeito da construção do índice,
recorri à psicanalista francesa Élisabeth Roudinesco, autora, entre outras obras,
de uma imperdível biografia de Sigmund Freud.
Exímia em percorrer os caminhos perigosos da filosofia e da psicanálise,
Roudinesco ausculta, na aurora do século XXI, rumores cochichados nos
bastidores da sociedade contemporânea. Descobre que a sociabilidade
competitiva de nossos tempos entrega razão a Mandeville.
Diz Roudinesco que estamos sempre nos indagando o que preferimos: as
figuras mais puras, as maiores, as mais medíocres, as mais charlatãs, as mais
criminosas? Classificar, ranquear, calcular, medir, colocar um preço,
homogeneizar: esse é o nada absoluto das investigações contemporâneas,
impondo-se sem limites em nome de uma modernidade falsa que solapa todas
as formas de inteligência, como a crítica fundamentada na análise da
complexidade das coisas e das pessoas.
Roudinesco desvela os desencantos da sexualidade pós-moderna. “Nunca a
sexualidade foi tão desenfreada, e nunca a ciência avançou tanto na exploração
do corpo e do cérebro. No entanto, nunca o sofrimento psicológico foi tão
intenso: solidão, uso de drogas que alteram a mente, tédio, fadiga, dieta,
obesidade, medicalização de cada segundo da existência. A liberdade do eu, tão
necessária, e conquistada à custa de tanta luta durante o século XX, parece ter
se transformado em uma demanda por contenção puritana.”
Quanto ao sofrimento social, diz Roudinesco, é cada vez mais difícil de
suportar, porque parece estar constantemente em ascensão, num contexto de
desemprego juvenil e trágicos fechamentos de fábricas. O sexo não é
experimentado como o companheiro do desejo, mas como um desempenho,
uma ginástica, como a higiene para os órgãos, o que só pode levar à confusão
afetiva. “Qual é o tamanho ideal da vagina, o comprimento correto do pênis?
Com que frequência? Quantos parceirosem uma vida, em uma semana, em
um único dia, minuto a minuto?” O avanço exasperado da “quantidade”
encolhe o espaço de fruição da experiência amorosa. Não por acaso, estamos
assistindo a um aumento nas queixas de todos os tipos.
Ainda no primeiro capítulo, Eduardo recorre a Facebook, Google e demais
gigantes da Internet para nos proporcionar uma análise excelente a respeito do
processo de concorrência no capitalismo de todos os tempos. No capitalismo
de ontem, hoje e sempre, a concorrência é o caminho mais curto para o
monopólio.
Ele escreve: “Mesmo nos países tidos como praticantes de políticas
neoliberais, o ‘livre mercado’ passa longe de existir. E isso é decorrência de dois
motivos. O primeiro, o fato de que todo mercado sem regulação alguma tende
no longo prazo ao monopólio ou ao oligopólio. O segundo vem da ideia de
que, ao concentrar poder econômico, concentra-se também poder político, e é
esse poder político que é utilizado para fazer do Estado um agente protetor das
barreiras que impedem a competição tão defendida pelos discursos dos mesmos
grupos que se beneficiam da sua falta.”
O processo de concorrência é, ao mesmo tempo, um processo que envolve
a alteração do tamanho da firma, a diversificação da estrutura produtiva e a
existência de formas financeiras aptas a “descongelar” o capital já empregado e
mobilizá-lo na direção de novos empreendimentos. Em outras palavras, o
crucial na concorrência generalizada é a maior ou menor capacidade que as
diversas unidades de capital apresentam para superar barreiras à sua expansão.
Aqui, peço licença para a reprodução de um trecho do meu livro O capital
e suas metamorfoses . Lá eu dizia que a modalidade de organização da empresa
capitalista que torna possível a fusão de interesses entre os gestores capital-
dinheiro e os administradores do capital produtivo é a sociedade anônima, cujo
caráter “coletivista” se sobrepõe aos capitais dispersos e, ao mesmo tempo,
reforça sua rivalidade.
Essa forma desenvolvida de existência do capital dá origem ao monopólio,
às formas mais escandalosas de controle político e à submissão do Estado aos
ditames da finança. O desenvolvimento do capital financeiro depende da
constituição dos mercados secundários de negociação dos títulos de dívida e
ações que “regulam” a transferência da propriedade entre os capitalistas. Isso
supõe o desenvolvimento dos mercados financeiros e de capitais incumbidos da
avaliação dos títulos de dívida e dos direitos de propriedade sobre a riqueza e a
renda.
Esse “sistema” garante a reprodução do regime de apropriação privada da
riqueza e, ao mesmo tempo, ameaça continuamente de aniquilação os
proprietários individuais que não conseguem acompanhar a corrida imposta
pelas “normas” técnicas, econômicas, políticas e financeiras que caracterizam o
processo de concorrência. Os direitos de propriedade são também direitos à
expropriação.
O coração do livro bate mais acelerado quando Eduardo trata das relações
entre utilidade, desejo, dinheiro e ódio.
Começo com o dinheiro. Georg Simmel, em seu livro A filosofia do dinheiro
, mostra que o sujeito atacado pelo amor “doentio” ao dinheiro não é uma
aberração moral, mas o representante autêntico do indivíduo criado pela
sociedade argentária. As qualidades dos bens e o gozo de suas utilidades
tornam-se absolutamente indiferentes para ele. Suas preferências, seus
sentimentos e desejos são totalmente absorvidos pelo impulso de acumular
riqueza monetária.
É curioso observar como a sociedade argentária, ao transformar
violentamente os indivíduos e sua subjetividade em simples coágulos
monetários, pretenda ao mesmo tempo colocar barreiras, ensinando-lhes as
virtudes da moderação, da frugalidade, da solidariedade. Então, como
podemos falar de sentimentos como honradez, dignidade, autorrespeito, numa
sociedade em que todos os critérios de sucesso ou insucesso são determinados
pela quantidade de riqueza monetária que cada um consegue acumular?
Volto a Roudinesco. Ela registra o descompasso entre as promessas e as
realizações da sociedade competitiva utilitarista. Quanto mais se promete aos
indivíduos felicidade e segurança, mais a infelicidade persiste, mais as vítimas
das promessas não cumpridas se revoltam contra “aqueles que os traíram”.
Parece impossível não detectar, nessa curiosa psicologização da existência que
tomou conta da sociedade e que está contribuindo para o surgimento da
despolitização e do ódio à política, a expressão mais insidiosa do que Michel
Foucault e Gilles Deleuze chamaram de pequeno fascismo cotidiano, íntimo,
desejado, admitido e celebrado pelo próprio indivíduo, que é seu protagonista
e sua vítima. Um pouco de fascismo, que naturalmente não tem nada a ver
com os grandes sistemas fascistas, uma vez que desliza dentro de cada
indivíduo sem que ele perceba, sem nunca pôr em causa os princípios
sacrossantos dos direitos do homem, do humanismo, da democracia.
As normas sociais da concorrência utilitarista que guiam o sujeito pós-
moderno levam à morte o indivíduo iluminista de Adam Smith, aquele
consciente de sua liberdade e empenhado na preservação de sua autonomia. Ele
foi substituído por um indivíduo depressivo em seus insucessos e frustrações,
sempre preocupado em retirar de si, com doses maciças de Prozac, a essência de
todo o conflito.
Diante das misérias da vida e de uma vida de misérias, as vítimas dos
deuses mundanos buscam refúgio no Incompreensível. No livro As ruínas do
neoliberalismo , Wendy Brown ultrapassa as banalidades dos diagnósticos que
gritam, em debandada, “Polarização!!! Populismo!!!”. Brown vai mais fundo: os
valores e instituições ocidentais — progresso, iluminismo e democracia liberal
— batem em retirada diante da ofensiva das milícias que reúnem, no mesmo
pelotão, mercenários e buchas de canhão na defesa do liberalismo econômico,
do moralismo, do autoritarismo, do nacionalismo, do ódio ao Estado, do
conservadorismo cristão e do racismo. Essa turba combina o discurso moralista
com a conduta amoral, brutalizada e incivilizada.
INTRODUÇÃO
“Agora, finalmente, estamos nos colocando seriamente a perguntar se de fato é
necessário existir as chamadas ‘classes baixas’ na sociedade: ou seja, se é preciso
existir um grande número de pessoas condenadas desde seu nascimento a um
trabalho duro, para prover a outros os requisitos de uma vida refinada e
privilegiada; enquanto eles próprios são proibidos, por sua pobreza, de ter
qualquer fatia dessa vida.
A esperança de que a pobreza e a ignorância possam ser gradualmente
extintas tem, na verdade, bastante fundamento no progresso contínuo da classe
trabalhadora ao longo do último século. As novas tecnologias os têm aliviado
da maior parte dos trabalhos exaustivos e degradantes. Os salários têm crescido.
A educação tem melhorado e se tornado disponível a um maior número de
pessoas; os sistemas de transporte e de comunicação têm permitido que
negócios em diferentes partes do país possam se comunicar facilmente uns com
os outros e desenvolver metodologias e políticas amplas e transparentes; ao
mesmo tempo, a crescente demanda por tarefas intelectuais exige tantos
trabalhadores, que esses agora superam os que são totalmente despreparados.
Uma boa parte dos que fazem trabalhos braçais deixou de fazer parte das
‘classes baixas’, no sentido original em que o termo usualmente é utilizado; e
alguns deles já levam hoje uma vida mais refinada e nobre do que a maioria dos
membros das ‘classes altas’ tinham há um século.
Esse progresso tem feito mais do que qualquer outra coisa para trazer
atenção ao questionamento de se é realmente impossível que todos possam
começar a vida no mundo com uma chance justa de ter uma vida com cultura,
livre das dores da pobreza e das influências nocivas dos trabalhos braçais; e essa
questão tem sido chave pelo aumento da responsabilidade de nossa era.” 1
O texto acima poderia ter sido escrito por qualquer um dos renomados
economistas neoliberaisdos dias de hoje. Vários desses argumentos são, com
muita frequência, repetidos incansavelmente por muitos daqueles que
defendem o modelo capitalista — que prepondera na maior parte do mundo
— para rebater as críticas que recaem sobre um sistema que acumula tanta
riqueza nas mãos de poucos e tão pouca riqueza oferece para ser distribuída
pela maioria. “Uma pessoa pobre vive hoje com mais qualidade e por mais
tempo do que um rei costumava viver na Idade Média”, dizem uns. “A extrema
pobreza tem sido brutalmente diminuída ao longo das últimas décadas, graças
ao avanço do capitalismo”, dizem outros. E assim, alimentados pela esperança
de que “as coisas têm melhorado” nas últimas décadas, e renovando a confiança
no sistema que os condenou a uma vida cheia de restrições e sofrimento,
muitos seguem defendendo seus cruéis algozes e fortalecendo um sistema que
ganha cada vez mais força e deixa um rastro de destruição cada vez maior.
O fato curioso a respeito do texto inicial deste capítulo, porém, não é o
modo como resume bem os argumentos utilizados por boa parte dos
economistas liberais para defender o modelo capitalista vigente no mundo. O
intrigante é o fato desse texto ter sido escrito por um economista no final do
século XIX, há quase 150 anos. É um trecho do livro Principle of Economics
(Princípio da Economia), de Alfred Marshall, um dos maiores economistas de
sua época e ainda um pensador extremamente influente, graças à capacidade
que seus trabalhos têm de organizar e integrar os conceitos de demanda, oferta,
utilidade marginal e custos de produção.
Infelizmente, existe uma enorme distância entre o discurso esperançoso dos
economistas neoliberais e a realidade vivida pela maior parte da população
mundial. Apesar de, realmente, ter havido uma diminuição relevante do
número de pessoas que vivem na extrema pobreza (as que recebem menos de
US$ 1,90 por dia) ao longo das últimas décadas — fato celebrado também por
instituições como o Fundo Monetário Internacional, Banco Mundial e outros
notórios defensores das políticas de livre mercado e Estado mínimo —, a
parcela da população mundial que vive em situação de pobreza (a que recebe
menos de US$ 5,50 por dia) é ainda assustadora, 2
 
pois representa quase 50%
da população mundial, ou quase 4 bilhões de pessoas.
Mesmo os avanços registrados no caso da diminuição das taxas de extrema
pobreza não deveriam ser comemorados ou associados ao “sucesso” do modelo
capitalista. E são vários os motivos que levam a essa conclusão. Primeiro
porque aconteceram em um ritmo absolutamente desproporcional ao aumento
da produção da riqueza mundial (e em muitos casos sem correlação com ele).
Um simples cálculo pode demonstrar que o mundo não suportaria a geração de
riqueza necessária para, com o modelo capitalista de distribuição de riqueza,
acabar com a pobreza. Basta observar que da década de 1960 à década de 2010
a quantidade de riqueza gerada no mundo (PIB Global), já descontada a
inflação do período, multiplicou-se por mais de 8 vezes (800%). Se, mesmo
multiplicando a quantidade de riqueza gerada no mundo por tantas vezes (o
que levou a vários recursos naturais darem sinais claros de esgotamento), temos
ainda metade da população vivendo em situação de pobreza, como imaginar
um mundo capaz de oferecer os recursos naturais necessários para tirar toda a
população dessa situação?
PIB Global (Produto Mundial Bruto) 1960-2017
Fonte: https://www.worldometers.info/gdp/
Fonte: www.researchgate.net/figure/Global-poverty-pyramid-Prahalad-2009_fig3_325704218
Pirâmide global de riqueza
Uma visão geral da distribuição de renda (US$)
Fonte: www.statista.com/chart/11857/the-global-pyramid-of-wealth/
Em segundo lugar, é importante destacar que boa parte das pessoas que
têm saído da situação de extrema pobreza ao longo das últimas décadas é de
chineses; são de um país com um modelo econômico diferente do defendido
pelos economistas neoliberais, que creditam ao sucesso do capitalismo a
diminuição dessas estatísticas. Aliás, quando observamos os indicadores
relativos ao ganho de qualidade de vida utilizados pelos defensores do regime
neoliberal, encontramos também pouca correlação com o sucesso do
capitalismo. Percebam que da década de 1960, logo após a revolução cubana,
até 2016, a expectativa de vida dos moradores da ilha do Caribe subiu de
63/83 anos para 79/74 anos. Enquanto isso, a expectativa de vida nos Estados
Unidos, que em 1960 era de 69/77 anos, quase 6 anos a mais do que a dos
cubanos, em 2016 era de 78/69 anos, inferior à de seus “vizinhos comunistas”.
Por fim, devemos voltar novamente ao texto inicial deste capítulo e nos
perguntar qual deve ser o objetivo de uma sociedade justa e solidária. Elevar a
parcela pobre da população a um nível logo acima da linha que define
estatisticamente “pobreza” e deixá-los vivendo ainda em condições de escassez e
sofrimento, ou realmente permitir que “todos possam começar a vida no
mundo com uma chance justa de ter uma vida com cultura, livre das dores da
pobreza e das influências nocivas dos trabalhos braçais”, como sonhava Alfred
Marshall?
Notas
1. A. Marshall, Principles of Economics (Palgrave Classics in Economics) , Kindle Edition, Londres, Palgrave
Macmillan UK, 2013. p. 9. Tradução livre do autor.
2. www.worldbank.org/en/topic/poverty/overview
1. A LÓGICA CAPITALISTA
A lógica defendida pelo sistema capitalista é sedutora e, no papel,
aparentemente inquestionável. O sistema deveria funcionar, pelo menos em
tese, gerando e distribuindo riqueza entre todos seus participantes da maneira
mais rápida e meritocrática possível. É tão bem estruturada e simples que, em
poucas linhas, qualquer um pode entendê-la.
Funciona assim: o objetivo final de toda empresa e pessoa em suas
atividades comerciais é o lucro. O lucro, por sua vez, é definido pela diferença
entre o preço pago pelos insumos necessários para a confecção de um produto
(ou elaboração de um serviço) e o preço pelo qual ele é oferecido e vendido no
mercado. Já esse preço pelo qual o produto é vendido no mercado varia em
função, principalmente, do quanto as pessoas estão dispostas a pagar por aquilo
que o produto pode lhes oferecer. Na teoria econômica, chama-se isto de
utilidade marginal . Ou seja, qual é a utilidade adicional que uma pessoa passa
a ter ao adquirir aquilo que está sendo oferecido. Quanto maior essa utilidade,
maior será sua disposição para trocar uma fatia mais gorda de sua riqueza pelo
objeto. Em outras palavras, maior será o preço que aceitará pagar.
Ao estimular o lucro, o sistema fará com que as empresas foquem suas
atividades nos produtos e serviços que oferecem maior utilidade para as pessoas
e que, portanto, podem ser vendidos pelos maiores preços. Isso fará com que,
ao concentrar seus esforços em atender a essa utilidade buscada pelos
compradores, o mercado concentre também seus esforços em atividades que
são úteis para a vida das pessoas (e em tese a melhoram). Ao oferecer um lucro
cada vez maior para aqueles que se dedicam a ofertar, com a própria empresa,
esses produtos e serviços, essas atividades irão atrair uma competição de novos
interessados em participar desses grandes lucros. E é essa competição que fará
com que a demanda pelos insumos, entre eles a mão de obra utilizada para
confeccionar esses produtos, também cresça. Com maior demanda, o preço
desses insumos crescerá, consumindo parte do lucro que antes ficava
concentrado nos donos das empresas e o distribuindo para toda a cadeia. Esse
“transbordamento” do lucro que inicialmente concentra-se no dono do capital,
mas que depois, ao longo do tempo e por meio da competição pelas atividades
de maior lucro, é distribuído por toda a cadeia, é o que a teoria econômica
chama de trickle-down economics . E é através desse mecanismo que o
capitalismo consegue maximizar a utilidade oferecida com seus bens e serviços
à sociedade e ao mesmo tempo distribuir riquezas de maneira justae
meritocrática (de acordo com os méritos de cada um ao longo do processo). É
inegável que é uma bela e bem-construída história.
Para que isso aconteça, defendem aqueles que acreditam no modelo, é
preciso que a competição aconteça da maneira mais livre possível. E é essa
competição livre, sem interferências, que permite que a “mágica” aconteça e os
recursos sejam distribuídos de maneira ótima e justa. Como numa daquelas
experiências que alguns de nós fizemos no colégio, em que uma série de tubos
verticais tem pequenos vasos intercomunicantes em sua base. Enchemos então
os tubos com quantidades de água diferentes e abrimos esses pequenos vasos
que os ligam. A água então flui daqueles que tem mais para os que tem menos,
fazendo com que a distribuição fique igual entre todos. Quanto menos livre for
a comunicação entre os vasos (menos aberta estiver a passagem), mais
demorado será o processo para se chegar até a condição final de igualdade.
Apesar de não defender que todos os “tubos” da sociedade tenham a mesma
quantidade de água ao final do processo, o discurso capitalista diz que
indivíduos que se “esforcem” de maneira igual e tenham a mesma
“competência” chegarão ao final do processo com a mesma quantidade de água
em seus tubos, a tão anunciada meritocracia .
A preocupação deve ser então a de garantir que o mercado tenha as
condições de existir da maneira mais “livre” possível e com a menor
(idealmente sem nenhuma) interferência nos processos de negociação e
formação de preços. Isso, na prática, significa um ambiente com menos leis
protegendo os trabalhadores, menos gastos sociais, menos impostos, menos
subsídios a qualquer atividade e, principalmente, menos estrutura de Estado.
Dele, o Estado, deve sobrar somente o mínimo. Daí a expressão “Estado
mínimo” defendida pelos defensores dessa tese. E o “mínimo” que sobra deve
ser somente o suficiente para garantir as condições para que o “livre mercado”
exista, ou seja, para que exista um Estado que garanta os direitos à propriedade
e tenha o monopólio do uso da força para impedir qualquer tentativa de
sabotar o funcionamento do sistema.
O sistema capitalista, portanto, baseia-se na afirmação, quase dogmática, de
que só o livre mercado é capaz de gerar riqueza, distribuí-la de forma justa e
maximizar a utilidade das pessoas.
Por que será então que isso não acontece, e o mundo ainda sofre com a
pobreza e a degradação da condição humana? Será porque, como defendem os
economistas neoliberais, temos de fazer o mercado ainda mais livre do que é
hoje? Diminuir a carga tributária, acabar com as leis do trabalho, reduzir o
tamanho dos Estados e incentivar ainda mais o lucro? Ou será que existe algo
além?
A verdade é existem dois fatores-chave que, curiosamente, parecem passar
despercebidos para boa parte dos economistas e desmontam essa lógica
neoliberal, que promete um mundo melhor, baseado na incessante busca pelo
lucro.
O primeiro deles é o fato de que o livre mercado, da forma como é descrito
pela teoria, em um dado momento acaba se sabotando no mundo real. E o
segundo está relacionado à definição de “utilidade”, variável que se promete
maximizar com o modelo. Sobre o primeiro assunto, discorrerei nos parágrafos
a seguir. Sobre o segundo, é o tema principal desta obra.
O fato de que um mercado mais livre gera uma sociedade mais rica e justa
é tido como uma verdade absoluta pelos defensores da tese neoliberal. O
curioso, porém, é notar a carência de evidências que demonstrem esse fato,
quando observamos a realidade dos diversos países do mundo e os modelos
econômicos que adotam. Talvez, em relação a serem os mais ricos, ou seja, os
que mais produzem riquezas por habitante — o que é medido pelo valor de seu
Produto Interno Bruto (PIB)/ per capita —, haja sim alguma correlação, apesar
de não tão clara como alardeiam. Mas, certamente, não há correlação alguma
entre aqueles que são os mais justos, ou os que têm melhor qualidade de vida
de seus habitantes, e a adoção de políticas neoliberais.
O índice mais utilizado para definir o grau de “liberdade econômica” de
um país e embasar as teses neoliberais leva este mesmo nome: Index of
Economic Freedom . Um índice elaborado e calculado por uma fundação
americana chamada Heritage, que, na primeira página de seu site, define sua
missão como “formular e promover políticas públicas conservadoras baseadas
nos princípios do livre mercado, Estado mínimo, liberdades individuais,
valores tradicionais estadunidenses e fortalecimento da defesa estadunidense”. 3
Navegando um pouco mais no site, encontra-se a descrição dos membros da
direção e do conselho de administração (board of trustees) da instituição com
uma foto em que aparecem dezenove pessoas, das quais quinze são homens
brancos, quatro são mulheres e somente uma pessoa é negra (o tal livre
mercado parece não estar funcionando na própria instituição que o defende
com tanto afinco, oferecendo oportunidade a todos de maneira igual).
Acessando o nome dos integrantes para analisar seu currículo, nota-se que são
todos ex-executivos de grandes grupos empresariais ou de grupos políticos
conservadores e ultraconservadores estadunidenses.
Mas voltemos ao índice em si, divulgado pela fundação Heritage, o Index of
Economic Freedom . Sempre ouvi em minhas discussões com colegas defensores
das teses neoliberais o argumento de que os países pior ranqueados no índice
eram em sua maioria países muito pobres, a maior parte deles africanos, o que
seria uma demonstração clara e inequívoca de que quanto menor a liberdade
econômica de um país, menor a prosperidade experimentada por seu povo. O
mesmo índice também é utilizado insistentemente para justificar a urgência de
reformas no Brasil que tornem nossa economia mais “livre”, permitindo assim
que alcancemos a prosperidade como nação. Somos um dos últimos colocados
na lista, ocupando em 2019 a posição 150 entre os 180 países ranqueados. 4
O curioso é notar que eu nunca havia parado para compreender como era
calculado o tal índice de liberdade econômica. Eu simplesmente ouvia os
argumentos dos colegas e, ao atribuir ao índice um significado sinônimo de
liberdade econômica, imaginava que tinham certa razão em seus comentários.
Afinal de contas a relação apresentada era direta e inequívoca.
Mas como será que essa fundação fazia para quantificar um conceito
qualitativo como liberdade econômica? Essa era a pergunta que eu deveria ter
feito desde o começo, mas que nunca havia me vindo à cabeça. Até o dia em
que fui realizar uma palestra na Casa do Saber, em São Paulo, e fui questionado
de uma maneira nova, por um dos participantes, sobre o tal índice.
Era um senhor, na casa de seus 50 anos, vestindo roupas sociais, e com uma
postura firme, mas serena, quase profissional. Levantou a mão sinalizando que
tinha uma dúvida sobre o que eu tinha falado e, ao receber a palavra, começou:
“Olá, Eduardo, como vai? Eu percebo que a maior parte dos que lhe assistem
hoje compartilham de suas ideias e visões de mundo. Eu, porém, não
compartilho. Talvez seja o único nesta sala.” Houve certa surpresa nos
presentes, mas nenhum constrangimento, dada a educação e o cuidado com os
quais o senhor colocava suas palavras. Ele continuou: “Eu sou um adepto do
liberalismo econômico. E os países que você citou em sua palestra como sendo
os países que mais distribuem renda e que têm melhores indicadores de
qualidade de vida adotam todos políticas liberais na economia. Holanda,
Dinamarca, Suécia, Noruega, Finlândia, Canadá... Todos têm um grau de
liberdade econômica muito grande, o que pode ser visto pela posição que
ocupam no ranking de liberdade econômica. É por isso que eu sou contra a
interferência do Estado na economia, sou a favor de uma legislação trabalhista
menos rigorosa e também a favor de uma menor carga tributária pesando sobre
a população.” E me passou de volta a palavra.
Uau! E agora, o que dizer? Eu havia estudado a economia de quase todosesses países, a maior parte deles, sociais-democracias, e jamais achei que um dia
iria ouvir que eram exemplos do sucesso da tese neoliberal. Era óbvio para mim
que não eram. Em quase todos os citados eu sabia que o Estado exercia um
papel fundamental na oferta de serviços públicos, redistribuição de riqueza e
proteção dos trabalhadores. Mas eis que o ranking, sinônimo de liberdade
econômica, os trazia bem colocados! A prova de que eram neoliberais! Havia
algo de errado no reino da Dinamarca... Literalmente.
Resolvi chegar em casa e estudar o índice na internet. Algo tão simples (e
certamente tão fácil hoje em dia, dada a facilidade de acesso às informações),
que me surpreende que eu nunca houvesse feito. E, ao descobrir como era
calculado o índice, tive uma enorme surpresa. O índice era absolutamente
enganoso em relação à correlação entre o quão “neoliberais” eram as economias
dos países e o lugar que ocupavam no ranking. Uma farsa! Mas uma farsa tão
bem elaborada e propagandeada que, ao que parece, nunca nenhum de meus
colegas havia feito aquilo que eu decidira fazer: pesquisado sobre como o índice
era calculado. Simplesmente o tinham como uma medida do grau que um país
adotava da tese do Estado mínimo e do livre mercado.
O índice é calculado de uma maneira incrivelmente simplória. Elegem-se
doze temas para avaliar o grau de liberdade econômica de um país, divididos
em quatro categorias: Estado de Direito, Tamanho do Governo, Eficiência
Regulatória e Abertura dos Mercados. Faz-se, então, uma média simples, sem
qualquer definição de pesos, com os resultados dos doze temas. Curiosamente,
vários dos temas parecem ter muito pouco a ver com o conceito de liberdade
econômica que imaginamos. Ou pelo menos não com o peso que daríamos.
Por exemplo, o tema Integridade do Governo ( Government Integrity , uma
medida da percepção da corrupção no país), tem o mesmo peso do tema
Liberdade do Comércio ( Trade Freedom ). Vários dos temas têm conceitos
qualitativos, difíceis de se mensurar, e acabam por gerar relações de
proporcionalidade absolutamente absurdas. Percebe-se, ao final da análise, que
o índice funciona como uma “conta de chegada”, criada para atribuir aos países
mais ricos e desenvolvidos o rótulo de “livres” ou “majoritariamente livres”
economicamente, e gerar uma relação enviesada e equivocada nas pessoas de
relação de causa e efeito, num típico exemplo da falácia cum hoc ergo propter
hoc (se ambos acontecem juntos, um causa o outro).
Países como a Dinamarca, Suécia e Noruega, que lideram os rankings que
medem a qualidade de vida da população (como por exemplo o Índice de
Desenvolvimento Humano, IDH), são todos “majoritariamente livres” no
ranking de liberdade econômica. Ao acessar, porém, a memória de cálculo de
suas notas, podemos observar que têm uma combinação de notas altas em itens
como Integridade do Governo, Saúde Fiscal e Eficiência do Judiciário, e notas
baixas (às vezes muito baixas) em Gastos Governamentais, Liberdade das Leis
Trabalhistas e Carga Tributária. Ou seja, esses países — indicados levianamente
por muitos como exemplo do sucesso das políticas neoliberais —, praticam,
nos temas-chave — foco das reformas propostas como solução dos problemas
de países como o Brasil — o contrário do receituário neoliberal, a saber,
relevantes gastos sociais, alta carga tributária (concentrada nos indivíduos mais
ricos da população) e legislação trabalhista rigorosa, defendendo os direitos dos
que não têm acesso ao capital.
Por outro lado, se o Brasil passasse a ter uma nota boa no quesito
Integridade do Governo e passasse a ter um resultado fiscal melhor (passando
por exemplo de déficit para superávit primário), mesmo sem alterar em nada a
burocracia existente para as empresas no país, sem alterar os impostos
cobrados, sem mexer nas regras de importação e sem melhorar seu sistema legal
de proteção à propriedade, ou seja, sem alterar na prática nada relativo àquilo
que é tido como um ambiente de liberdade econômica, subiria mais de
cinquenta posições no ranking...
Mesmo nos países tidos como praticantes de políticas neoliberais, o livre
mercado passa longe de existir. E isso é decorrência de dois motivos. O
primeiro, o fato de que todo mercado sem regulação alguma tende no longo
prazo ao monopólio ou oligopólio. O segundo vem do fato de que, ao
concentrar poder econômico, concentra-se também poder político, e é esse
poder político que é utilizado para fazer do Estado um agente protetor das
barreiras que impedem a competição tão defendida pelos discursos dos mesmos
grupos que se beneficiam da falta dela.
Analisemos o primeiro motivo, o dos mercados não regulados tenderem no
longo prazo ao monopólio, ou, usando linguagem econômica, à consolidação.
Vejamos um exemplo incrivelmente didático ocorrido ao longo das últimas
décadas: as empresas pontocom. A internet, que tem suas raízes em tecnologias
desenvolvidas pelo sistema de defesa americano nas décadas de 1960 e 1970,
transformou-se rapidamente, a partir da segunda metade da década de 1990,
em uma plataforma de negócios que desafiava as fronteiras do mundo físico.
Criou-se, rapidamente, um ambiente de negócios muito pouco regulado e com
pouquíssimas barreiras de entrada, o sonho da tese neoliberal. Nesse ambiente,
jovens universitários em suas garagens podiam competir em pé de igualdade
com as maiores empresas do mundo, criando um ambiente competitivo
meritocrático e quase utópico.
O resultado, depois de poucas décadas, foi um território dominado quase
que totalmente por monopólios. Com uma taxa de mortalidade e consolidação
sem precedentes na história, se as empresas que se lançaram na “livre
competição” da internet fossem pessoas numa guerra, não haveria cemitérios
suficientes para enterrá-las. Facebook tornou-se um monopólio, Google,
Instagram, Linkedin, Amazon, WhatsApp, Twitter e tantos outros também.
Todas as outras que tentaram competir morreram ou foram absorvidas,
fazendo com que o grau de dependência do mercado a essas empresas que se
transformaram em monopólios explodisse ao longo dos anos. Isso permitiu que
o preço dos serviços oferecidos por elas pudesse ser aumentado também
exponencialmente, quebrando várias empresas e capturando boa parte da
lucratividade das que resistiram. E fazendo de alguns jovens de 20 ou 30 anos
algumas das pessoas mais ricas do mundo, acumulando dezenas e dezenas de
bilhões de dólares.
Mas como esse processo de consolidação acontece? Um simples exemplo
pode explicar ao leitor e à leitora. Imagine que existam duas empresas que
realizam uma mesma atividade, por exemplo, a venda de roupas esportivas.
Imagine ainda que essas duas empresas tiveram ao longo do último ano um
mesmo resultado, R$ 1 milhão de lucro. Agora imagine que as duas empresas
têm também algumas características distintas. A primeira vinha de um lucro de
somente R$ 200 mil no ano anterior, quando foi inaugurada, e a segunda vem
há vários anos tendo um lucro parecido. A primeira desenvolveu uma marca
que caiu no gosto da parcela jovem da população, grande usuária de artigos
esportivos, sendo inclusive usada por vários atletas de ponta, formadores de
opinião. A segunda é uma marca antiga, já com menos apelo nos formadores
de opinião. A primeira tem sistemas de gerenciamento de estoque modernos e
é mais eficiente do que a segunda. Tudo isso vai fazer com que a primeira seja
percebida pelo mercado como tendo um valor maior do que a segunda. Na
linguagem de mercado, dizemos que a primeira empresa tem um “múltiplo”
maior do que a segunda. Isso porque o valor dela será um múltiplo maior do
seu resultado do que o da segunda. Digamos que a primeira tenha um múltiplo
de 10 e a segunda um múltiplo de 5. Isso fará a primeira ter um valor de
mercado de R$ 10 milhões enquanto a segunda terá um valor de mercado de
R$ 5 milhões.
Imagine então que o dono da primeira empresa tem uma ideia genial. Ele
liga para o dono da segunda empresa e perguntase ele não quer juntar as duas
operações. Assim, a segunda empresa poderá utilizar os sistemas de
gerenciamento da primeira e poderá reformular e modernizar sua marca com a
equipe de marketing da primeira, aumentando assim seu crescimento. A
primeira, com a união das duas, poderá ampliar sua capacidade produtiva e
acabar com um de seus competidores. Mas o melhor ainda está por vir. Ao
absorver a segunda empresa, a primeira passa a consolidar os dois resultados, e
o seu múltiplo passa a valer para a operação conjunta. Se antes as duas
empresas somadas valiam R$ 15 milhões, agora, juntas, terão um lucro de R$ 2
milhões com um múltiplo de 10, ou seja, um valor de R$ 20 milhões. Esse
ganho imediato, de R$ 5 milhões, resultante da consolidação das empresas é
dividido entre os dois donos e todos saem ganhando. A história parece linda
dentro da lógica capitalista. E por algum tempo pode até ser.
O fato de o mercado ter perdido um competidor e ficado concentrado na
primeira empresa é, a princípio, visto pelos defensores da tese neoliberal até
com bons olhos. Afinal, ao consolidar as empresas debaixo daquela que tem
maior eficiência operacional, maior crescimento, melhor reputação e melhores
práticas, o que se está fazendo, na verdade, defendem eles, é concentrar os
recursos disponíveis onde eles são mais bem utilizados, gerando ganho para
todos.
O tempo então decorre, e a consolidação das empresas faz com que os
empregados da nova empresa consolidada tenham menos lugares para
trabalhar. Passam a ser, então, mais dependentes das condições de emprego
oferecidas pelo dono da empresa. Os consumidores têm agora menos poder de
barganha (e, portanto, menor influência sobre os preços), dado que possuem
menos opções para comparar, na hora de comprar. Com uma estrutura de
ativos maior e com um maior resultado, a nova empresa passa a ter acesso a
crédito mais farto e barato, e passa a comprar de seus fornecedores quantidades
maiores, conseguindo melhores preços na negociação e criando uma
importante barreira de entrada a eventuais novos competidores que tentem
participar do mercado. Mas o pior efeito, e aquele que mais trará resultados
contrários aos apregoados pela teoria do livre mercado, será o resultante
daquilo que passa a ser acumulado junto com o lucro resultante da nova
operação pela nova empresa. Estamos falando do poder, principalmente
político, que passará também a estar acumulado nessa nova empresa.
É exatamente esse poder político, fruto do poder econômico acumulado e
da capacidade de influenciar os mercados de trabalho, de insumos e de
consumo, que essa empresa usará para manipular o Estado, controlando as
decisões políticas que serão tomadas a partir daquele momento e
transformando-o no seu maior aliado, para impedir que o livre mercado exista
e barreiras de entrada ainda mais fortes sejam criadas para novos potenciais
competidores. Estão formados o monopólio e o pior cenário possível para
trabalhadores, consumidores e empresas menores. E o melhor possível para a
lucratividade da empresa que largou na frente das demais no processo de
consolidação. Todos os ganhos iniciais vão sendo perdidos ao longo do tempo,
e o resultado final é um desastre.
Este é, talvez, o principal problema decorrente do acúmulo extremo de
riqueza dentro do modelo capitalista. Não é somente, como pensam muitos, o
fato de algumas dezenas de ricos terem mais riquezas do que algumas centenas
de milhões de pobres. Isso, claro, não é algo saudável para o sistema, pelo fato
de a riqueza existente a ser distribuída ser de natureza finita, como descrito em
meu livro Desigualdade & caminhos para uma sociedade mais justa . Lá,
demonstro como a abundância excessiva de poucos necessariamente significa a
escassez de muitos. O pior problema da concentração extrema de riqueza é o
fato de que, junto com essa riqueza, é também acumulado poder. E é esse
poder que toma posse do Estado, destruindo completamente a
representatividade do poder público e a possibilidade de uma sociedade que
distribua oportunidades de maneira justa.
Engana-se quem pensa que a reforma da Previdência a ser aprovada em um
país extremamente desigual será a melhor para a maior parcela da população.
Que os impostos existentes no país serão aqueles que melhor distribuírem a
riqueza e as oportunidades entre seus habitantes. Que as leis e punições
aprovadas pelos legisladores limitarão de maneira equivalente diferentes grupos
econômicos e classes sociais. A verdade é que as decisões de governo num país
onde a riqueza é muito concentrada passam a ser sempre aquelas que mais
beneficiarem aqueles já privilegiados por concentrarem a maior parte da
riqueza daquele grupo.
Vejamos um exemplo incrivelmente didático, o do poder político do
agronegócio no Brasil. Segundo dados do Censo Agropecuário de 2017,
realizado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), o número
de estabelecimentos (propriedades) no campo com mais de 1 mil hectares era
de 51.203, cerca de 1% do número total. Se considerarmos a população de
proprietários desses latifúndios sendo igual ao número de estabelecimentos (é,
na verdade, menor, dado que a mesma pessoa pode ter mais de um
estabelecimento), estamos falando de um número que representa 0,02% da
população brasileira. Num parlamento com 513 deputados federais divididos
proporcionalmente entre os interesses da população, esses proprietários de
latifúndios deveriam ter no máximo um representante. Seus trabalhadores,
alguns. E os pequenos e médios agricultores, também alguns. A realidade,
porém, passa longe disso, fazendo com que a chamada Bancada do
Agronegócio tenha mais de duzentos deputados representando o interesse dos
grandes produtores, 5
 
enquanto os pequenos agricultores não tenham quase
representante algum no Congresso Nacional para defender seus interesses. As
condições de competição, já desiguais, ficam ainda mais prejudicadas pelas leis,
incentivos e subsídios aprovados por esses deputados, favorecendo sempre os
grandes agricultores, em detrimento dos pequenos. E o discurso político de
todos, inclusive o desses grandes latifundiários, segue sendo o de que o
problema do Brasil é a pouca liberdade econômica e a falta de competição
entre as empresas.
Notas
3. www.heritage.org/about-heritage/mission
4. https://www.heritage.org/index/ranking
5. especiais.estadao.com.br/canal-agro/agrocenarios/agronegocio-tem-a-bancada-mais-bem-organizada/
2. A ECONOMIA DO DESEJO
Existe uma simpática anedota na qual um menino pergunta ao outro:
“Você já percebeu que todas as vezes que procuramos alguma coisa
encontramos no último lugar em que fomos procurar?”
“É verdade. Comigo sempre acontece isso mesmo”, responde o amigo.
“Sabe o porquê?”, insiste o primeiro
“Não tenho ideia.”
“Porque depois que você encontra não precisa mais procurar, bobo!”
Sempre fiquei intrigado com a explicação oferecida pelos defensores do
capitalismo, mais especificamente das políticas neoliberais. Por um simples,
mas forte, motivo: elas fazem sentido! São de uma coerência sedutora e de uma
lógica matemática quase inconteste. Como vimos no capítulo anterior, o
estímulo ao lucro deveria fazer as empresas oferecerem serviços e produtos que
proporcionassem maior lucratividade. Essa maior lucratividade viria, em boa
parte, da capacidade de vendê-los por preços altos para os compradores. Esses
preços altos seriam função da utilidade que ofereceriam para as pessoas que os
adquirissem. E, assim, todo o sistema ficaria voltado para oferecer, distribuindo
seus recursos e capacidade em ordem de prioridade, aquilo que fosse mais útil
para as pessoas. A competição para participar dos mercados mais lucrativos
aumentaria a demanda pelos insumos desse mercado (como mão de obra e
matéria-prima), elevando assim os seus preços, consumindo parte dos lucros
dos donos das empresas e distribuindo a riqueza gerada pelo sistema.
Nessa lógica realmente fica difícil encontrar umerro. E tudo estaria bem se
não fosse por um pequeno detalhe: o resultado dá errado! É intrigante ver uma
máquina toda montada para produzir hambúrgueres, com todas as peças
conhecidas, a engrenagem bem encaixada, e ao olhar o resultado na esteira final
ver sair... salsicha! O resultado final nos diz que alguma coisa está errada! Mas o
que?
Afinal, um sistema que promete maximizar a utilidade das pessoas não
poderia gerar um mundo com tanta pobreza, sofrimento e individualismo. No
que diz respeito à capacidade demonstrada de geração de riqueza do modelo,
pode-se até argumentar que existe, sim, uma história de sucesso. Apesar dos
economistas neoliberais serem enfáticos em dizer que o mundo ainda está
longe do modelo ideal defendido por eles, é inquestionável que é nessa direção
que o capitalismo tem caminhado. Cada vez menos riqueza acumulada pelo
Estado e mais nas mãos da iniciativa privada, 6
 
maior comércio entre os países,
bancos centrais com maior autonomia, cargas tributárias menores e uma
competição cada vez maior e menos regulada entre as empresas. A direção é
inequívoca. E é possível, talvez até muito provável, que esses fatores expliquem
boa parte do crescimento exponencial na capacidade de geração de riqueza no
mundo. Como já foi mencionado, da década de 1960 até a década de 2010, o
mundo multiplicou sua capacidade de gerar riqueza mais de oito vezes em
termos reais. Em apenas duas gerações, uma mudança brutal no tamanho do
bolo a ser distribuído.
Mas é esse mesmo bolo que segue não alimentando boa parte da população
mundial, deixando metade dos quase 8 bilhões de habitantes do planeta na
condição de pobreza. Por que será que a segunda parte da promessa, a de
maximizar a utilidade das pessoas, não está sendo cumprida? O que não estaria
funcionando na equação? Essa passou a ser minha busca. Até que um dia...
encontrei! No último lugar que resolvi procurar.
Na verdade, a solução foi fruto de dois fatores. E o primeiro deles um tanto
quanto inusitado.
Já faz três anos que minha vida deu uma enorme guinada. Uma cirurgia
malsucedida me fez flertar com a morte e conhecer os limites da dor. Fiquei
internado algumas semanas no hospital e alguns acontecimentos durante essa
semana me fizeram repensar minha vida e enxergar o sistema capitalista de uma
forma como nunca havia enxergado antes. A história de como o processo
aconteceu está em meu livro O que os donos do poder não querem que você saiba
, não faria sentido repeti-la aqui. O que não está naquele livro, nem no
seguinte, Desigualdade & caminhos para uma sociedade mais justa , é o que eu
atravessei em minha vida pessoal depois de tomar essa decisão de mergulhar
nos estudos sobre a desigualdade, convivendo com os mais pobres e oferecendo
a eles minha voz na luta por um sistema mais justo e humano.
Foram anos difíceis. Não são fáceis ainda, acho que nunca serão. Mas já
foram muito mais difíceis do que são hoje. A primeira fase foi talvez a mais
difícil. Aquela onde foi preciso atravessar o vale da solidão e incompreensão das
pessoas próximas. Sim, porque tomar a decisão de lutar junto aos que sofriam
com os efeitos da pobreza e da desigualdade automaticamente me colocava
como adversário daqueles que se beneficiavam dela. Esses, todo o meu ciclo de
amizades até então. E aí, o que aconteceu no começo da caminhada foi que
perdi os amigos e amigas que tinha, e demorei um tempo até fazer os novos. E
exatamente nesse período, o de maior solidão, que vieram os maiores ataques.
Na verdade contra-ataques, reconheço, dado que quem estava atacando o
sistema com discursos e livros era eu. A diferença, porém, entre os ataques e os
contra-ataques era a forma. Enquanto eu atacava os donos do poder com
firmeza, mas dentro das regras, eu era atacado de volta com um número
absolutamente assustador de ameaças incrivelmente agressivas. Para se ter ideia,
houve um episódio quando em somente um dia recebi mais de 1.500 ameaças.
Algumas delas ameaçando a minha vida, explicitamente.
Minha família, o único porto seguro que eu ainda tinha, sentiu o golpe.
Não foram poucos os dias em que eu chegava em casa e minha esposa, Juliana,
estava chorando no quarto com medo de que algo me acontecesse. Meu filho
mais velho, com 8 anos à época, já usava a internet e assistia naturalmente a
alguns de meus vídeos. Como lia os comentários aos vídeos, passou a ter uma
enorme dificuldade de dormir e medo de que alguém entrasse em nossa casa e
nos fizesse algum mal. E eu, além dos ataques, sentia o peso de ter sido o
responsável, talvez mesmo culpado, por ter trazido esse desequilíbrio e medo
para dentro de casa.
Resolvi então diversificar meus estudos. As leituras, que antes eram todas
sobre o tema da desigualdade econômica, passaram a ser divididas entre os
textos econômicos e os textos espirituais. Eu me inscrevi num curso de
formação e aprofundamento em meditação e ioga e convidei minha esposa a
fazê-lo comigo. Tudo numa tentativa de fortalecer o espírito para a jornada que
havia escolhido e enfrentar as dificuldades que haviam surgido (e que eu
imaginava que seguiriam surgindo).
Ao longo dos meses seguintes fui me interessando cada vez mais pelos
textos religiosos. Comecei meus estudos pelos livros sagrados das grandes
religiões. Li o Antigo e o Novo Testamento da Bíblia Sagrada. Depois o
Alcorão. O Mahabharata, um dos grandes épicos do hinduísmo, e,
separadamente a Bhagavad Gita (a Canção do Senhor), seu trecho mais
famoso. Os Yogas Sutras de Patanjali. E, então, entrei no estudo dos trabalhos e
biografias dos mais famosos santos, figuras religiosas, teólogos e filósofos de
nossa era. Santo Agostinho, Santo Tomás de Aquino, São Francisco de Assis,
São João Crisóstomo, Santa Teresa D’Ávila, San Juan de la Cruz, Santo Inácio
de Loyola, Santo Antônio de Pádua, Søren Kierkegaard, omas More,
Ashoka... Foram dezenas de livros, lidos compulsivamente durante as viagens
de avião e as noites em que passava fora de casa. E apesar de terem sido escritos
em épocas diferentes, alguns deles separados por milhares de anos, todos
traziam uma mensagem em comum. A de que o caminho do crescimento
espiritual é o caminho da humildade e do desapego. Uma vida cada vez mais
limitada às verdadeiras necessidades e cada vez menos dependente (e
identificada) com os desejos. E foi durante uma dessas leituras, logo após ter
lido o trecho de um outro livro que discorria sobre os conceitos de utilidade
marginal, que me veio o estalo!
E se eu estivesse fazendo durante esse tempo todo a pergunta errada? Este,
aliás, um alerta de Voltaire: as perguntas são mais importantes do que as
respostas. Aconteceu então o segundo fator que me fez chegar à solução do
problema que não me abandonava, sobre onde estava o erro da tese neoliberal
do capitalismo. E a solução para o problema foi ver que não havia erro na
lógica defendida. Ela estava absolutamente correta. E funcionando, melhor do
que todos poderiam imaginar. O mundo realmente estava, cada vez mais,
maximizando a utilidade disponível para seus habitantes. A questão era, o que
queria dizer essa tal “utilidade”? Esse, o lampejo! A pergunta correta!
Alfred Marshall, um dos pais da teoria moderna de oferta, demanda e
utilidade marginal, já dera a dica em seu livro citado nesta obra, Principle of
Economics , de 1890. Diz o autor no texto original: “ Utility is taken to be
correlative to Desire or Want. It has been already argued that desires cannot be
measured directly, but only indirectly by the outward phenomena to which they give
rise: and that in those cases with which economics is chiefly concerned the measure
is found in the price which a person is willing to pay for the fulfillment or
satisfaction of his desire. ” Ou, em tradução livre: “A Utilidade é tida como
relacionada ao desejo ou necessidade . Já foi argumentado que desejos não
podem ser medidos diretamente, mas somente indiretamente pelo fenômeno
externo a que eles dão origem: esse com oqual a economia está principalmente
preocupada em medir e é encontrado no preço que uma pessoa está disposta a
pagar para preencher ou satisfazer seu desejo.”
Era isso! Era tudo uma questão de nomes. Era óbvio e estava na minha
frente esse tempo todo! O que é maximizado no sistema capitalista não é
“utilidade”, esse conceito abstrato, difícil de ser definido, mas relacionado
sempre a algo positivo. Aliás, essa correlação justifica o uso do termo e sua
capacidade de convencimento de que, quanto maior a utilidade, melhor para
todos, chancelando assim toda a lógica do sistema. O que é maximizado no
sistema capitalista é o desejo! Não a necessidade! E existe um motivo claro para
que assim seja. Tão claro que vem há milhares de anos sendo repetido por
todos aqueles que se aventuraram na caminhada espiritual. Mas que parece ter
passado despercebido por Marshall, dado que em seu texto comete um deslize
enorme bem no final do parágrafo, quando diz “para preencher ou satisfazer
seu desejo”. Isso porque, por definição, desejos não podem ser satisfeitos.
Necessidades podem. E como o preço será sempre função da vontade de ter
mais de alguma coisa para poder adquirir a tal “utilidade marginal”, uma
economia que incentiva lucros focará exclusivamente em desejos, esse pote sem
fundo, impossível de ser preenchido, ao passo que, se focasse nas necessidades,
jamais maximizaria seus lucros.
São vários os trechos e passagens dos livros religiosos que nos falam sobre
essa natureza dos desejos. Como a passagem da Bhagavad Gita, em que
Krishna diz ao guerreiro Arjuna: “Aquele que não se perturba com o incessante
fluxo dos desejos — que entram como os rios no oceano, o qual está sempre
sendo enchido mas sempre permanece calmo — pode alcançar a paz, e não o
homem que se esforça para satisfazer tais desejos. Aquele que abandonou todos
os desejos para o prazer dos sentidos, que vive livre de desejos, que abandonou
todo o sentimento de propriedade e não tem falso ego — só ele pode conseguir
a verdadeira paz.” O texto deixa claro: quem é movido pelo desejo não
encontrará jamais a paz. Não terá nunca o suficiente. Viverá uma vida inteira
se esforçando para satisfazer tais desejos que são como os rios entrando no
oceano, nunca cessam, e jamais são capazes de enchê-lo.
Há também este interessante trecho do Alcorão Sagrado sobre o tema: “Ao
contrário, quem tiver temido o comparecimento ante o seu Senhor e coibiu a
alma dos desejos terá o Paraíso por morada.” 7
 
Sem a capacidade de coibir a
alma dos desejos, impossível encontrar a morada da paz. Em outras palavras, o
caminho do desejo não tem chegada, destino, é infinito e sempre incompleto.
Temos então um novo problema, que é o de encontrar a linha que separa
estes dois conceitos, desejo e necessidade. Essa tarefa não é tão simples como
parece. Isso porque há o argumento de que os desejos surgem de uma prévia
necessidade humana.
O sexo, por exemplo, deveria ser considerado como necessidade ou desejo?
Certamente até certo ponto uma necessidade, dado que sem ele não seria
possível ao homem perpetuar-se como espécie. Mas, claramente, a partir de
certo ponto, um puro desejo, já livre de qualquer necessidade, dado que existe
toda uma indústria focada somente no aspecto de prazer do sexo. Alguns
diriam que o prazer, porém, é também uma necessidade, e é um argumento a
ser levado em consideração. Daí a dificuldade de traçar essa linha de
argumentação.
Dada minha formação em engenharia, tenho a tendência de levar as
situações aos seus limites, para buscar uma visão mais clara sobre elas. Levando
ao limite, fica fácil compreender os conceitos de desejo e necessidade, e
também os efeitos de cada um dos dois que têm orientado a economia.
Imagine o mundo inteiro, por exemplo, vivendo uma vida de renúncia aos
desejos, como foi a vida de São Francisco de Assis. Ou como a de vários
ascetas, que já passaram pelo mundo se abstendo dos desejos. Certamente não
experimentaríamos guerra alguma. Os recursos naturais seriam utilizados num
ritmo centenas de vezes menor do que hoje. O ar estaria mais limpo. E, muitos
dirão, a vida seria mais chata. Mas, acalmem-se, o exercício de levar uma
variável ao limite não busca defender um cenário, mas somente entender a
função e a sensibilidade das variáveis numa equação.
Imaginemos agora um mundo inteiro formado de indivíduos como
Donald Trump, talvez um dos ícones no mundo daquilo que resolvi batizar
neste livro como economia do desejo . Provavelmente não duraríamos muito.
Explodiríamos em guerras, nos destruiríamos através de uma louca competição
e acabaríamos com os recursos naturais do mundo para fazer mansões, iates,
carros luxuosos e festas em uma questão de meses. Fica claro, ao utilizar esses
dois exemplos extremos, o que é uma economia da necessidade e uma
economia do desejo.
Um outro texto religioso que traz uma boa visão sobre os conceitos de
necessidade e desejo é a Bíblia Sagrada. Já em seu primeiro livro, o de Gênesis,
É
lemos a história de Adão e sua companheira, Eva, no jardim do Éden. Ambos
viviam uma vida de paz e fartura. Tinham comida à vontade: “O Senhor Deus
fez nascer então do solo todo tipo de árvores agradáveis aos olhos e boas para
alimento” (Gênesis 2:9). Tinham riqueza em abundância: “O ouro daquela
terra é excelente; lá também existem o bdélio e a pedra de ônix” (Gênesis 2:12).
Tinham liberdade: “Coma livremente de qualquer árvore do jardim” (Gênesis
2:16). Tinham companhia: “Com a costela que havia tirado do homem, o
Senhor Deus fez uma mulher e a trouxe a ele” (Gênesis 2:22). E viviam em
harmonia com o meio ambiente e com todos os animais. Até que um dia surge
uma serpente, “o mais astuto de todos os animais” (Gênesis 3:1), a mãe do
capitalismo selvagem moderno (ironia minha), e desperta no homem e na
mulher algo novo. Algo que ia além de toda a necessidade que lhes era suprida
por tudo aquilo que Deus, pacientemente, durante seis dias de trabalho, havia
criado. O desejo! Disse a serpente sobre o fruto da árvore do conhecimento:
“no dia em que dele comerem, seus olhos se abrirão, e vocês serão como Deus,
conhecedores do bem e do mal” (Gênesis 3:5). Uau! Não era um desejo
qualquer que estava sendo gerado. Era o desejo de, literalmente, ser como
Deus! Não resistindo ao convite, Eva prova do fruto. E ali surge,
simbolicamente, a economia do desejo.
A Bíblia traz ainda diversas passagens que, assim como outros textos
sagrados, discorrem sobre a natureza insaciável do desejo e saciável (e,
portanto, capaz de trazer a paz de espírito) da necessidade. A mais clara de
todas, escrita por aquele tido pela tradição judaico-cristã como o mais sábio
homem que já pisou sobre a Terra, nos diz que “Quem ama o dinheiro jamais
terá o suficiente; quem ama as riquezas jamais ficará satisfeito com os seus
rendimentos” (Eclesiastes 5:10). Por fim, nos mostra que temos de fazer uma
escolha. São Mateus diz que não é possível ter um modelo que maximize
ambos, desejo e necessidade, um conceito que é também matemático. Afinal,
num sistema de equações com mais variáveis do que equações, em que se busca
maximizar uma variável, deve-se se escolher uma, e somente uma, variável a ser
maximizada. São Mateus escreve no capítulo 6, versículo 24 de seu Evangelho:
“Ninguém pode servir a dois senhores; pois odiará a um e amará o outro, ou se
dedicará a um e desprezará o outro. Vocês não podem servir a Deus e ao
Dinheiro.”
Escolhemos servir ao dinheiro (desejo), e não a Deus (necessidade). Esse,
um fato inequívoco. Mais do que isso, criamos um sistema econômico que a
todo instante alimenta esse desejo, fazendo com que não só ele siga existindo,
mas siga existindo cada vez maior. De modo que alguém que mantenha
determinado padrão de vida vá ao longo do tempo se sentindo mais pobre.
Porque a distância entre aquilo que ela tem e o que deseja não se mantém
constante, ela aumenta, dado que o que possui se mantém igual, mas a lista do
que falta não parade crescer. Daí, outro conceito milenar, este do budismo, diz
que o mais rico não é aquele que mais tem, e sim o que menos precisa. Ao
precisar cada vez de mais, ficamos cada vez mais pobres. E desejamos, assim,
cada vez mais.
Há ainda um motivo fundamental para que o desejo, e não a necessidade,
seja a base econômica do capitalismo. E esse motivo é o fato de o desejo
inspirar aquela que é assumidamente a mola mestra do sistema: a competição!
Caso fosse focado nas necessidades, o sistema rapidamente “encheria o pote”
das pessoas, como simbolicamente no exemplo do Jardim de Éden. Ao “encher
o pote”, eliminaria a necessidade do “adicional”. Ao diminuir (ou zerar) a
utilidade marginal das coisas, causaria um impacto enorme (zerando no limite)
o preço disposto a ser pago por elas. E afetaria assim a lucratividade dos
negócios. Percebam que estamos percorrendo a mesma espiral defendida pela
lógica do neoliberalismo, só que agora no sentido contrário. Sem a
possibilidade do lucro, sobraria somente como mola mestra a solidariedade.
Animais seguem vivendo um mundo parecido com esse baseado na
economia das necessidades. Em algumas regiões, as poucas onde o homem
ainda não chegou, vivem em total equilíbrio entre si e com a natureza que os
envolve. Talvez seja porque nenhum dos animais na história bíblica do Jardim
do Éden tenha comido a maçã e se entregado aos desejos como o homem.
Animais vivem uma vida em que o único objetivo é “preencher o pote” das
necessidades. Um mundo onde existe, sim, competição para atender as
necessidades, que, quando saciadas, permitem que eles possam fazer algo
imensamente estranho ao homem moderno: viver.
Notas
6. wir2018.wid.world/files/download/wir2018-full-report-english.pdf (p. 14)
7. Alcorão Sagrado (79:40-41).
3. O ESTADO E A ECONOMIA DA NECESSIDADE
Se levarmos em conta o papel simbólico, mitológico, da história de Adão e Eva
no Jardim do Éden (respeitando, claro, aqueles que a tem como verdade
histórica), ficará a questão: quando então a economia do desejo surge como o
modelo econômico dominante para o homem?
Jean-Jacques Rousseau oferece uma resposta em seu livro Discurso sobre a
origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens . O filósofo suíço
começa a segunda parte de seu discurso assim: “O primeiro que, ao cercar um
terreno, teve a audácia de dizer isto é meu e encontrou gente bastante simples
para acreditar nele foi o verdadeiro fundador da sociedade civil. Quantos
crimes, guerras e assassinatos, quantas misérias e horrores teria poupado ao
gênero humano aquele que, arrancando as estacas e cobrindo o fosso, tivesse
gritado a seus semelhantes: ‘Não escutem esse impostor! Estarão perdidos se
esquecerem que os frutos são de todos e a terra, de ninguém!’ Mas é muito
provável que as coisas já houvessem chegado então ao ponto de não poderem
mais durar como eram.”
A semelhança com a história do Jardim de Éden é enorme. Ao final da
primeira frase, se trocarmos o termo “sociedade civil” por “economia do desejo”
veremos que a origem da economia do desejo coincide com a da propriedade
privada. Ideia corroborada por John Locke, outro importante filósofo liberal
contemporâneo a Rousseau que, em seu Ensaio sobre o entendimento humano ,
escreve “não poderia haver injúria onde não há propriedade”.
Em meu livro Desigualdade & caminhos para uma sociedade mais justa ,
discorro sobre esse caminho que nos trouxe de uma sociedade solidária para
uma egoísta e individualista, baseada no poder que é diretamente relacionado
ao acúmulo de posses dos indivíduos.
Nesta obra, gostaria de voltar a abordar o papel do Estado e discorrer sobre
como ele pode se inserir num mundo onde prepondera a economia do desejo,
contrapondo-a e praticando a economia da necessidade.
Deveria ser quase pleonástico falar sobre o Estado praticar a economia da
necessidade. Isso porque o Estado nada mais é do que uma figura institucional,
jurídica e fictícia (criada pelo homem) para coordenar e representar um grupo.
Não existe um ser vivente chamado Estado, daqueles que podemos ver na rua
andando com uma camiseta amarela ou vermelha. O que existe é uma
organização, uma estrutura, que tem o poder de coordenar as decisões que
serão tomadas para fortalecer e proteger um grupo. Pelo menos, em tese,
deveria ser assim. E tudo indica que antes de existir a propriedade privada era.
Existe um petróglifo em Utah, Estados Unidos, datado de alguns milhares
de anos antes dos dias atuais, que sempre me comove. Foi batizado de “Circle
of Friends”. Nele, um grupo de membros da tribo é retratado em um círculo
perfeito. São indivíduos claramente diferentes, uns maiores que outros, com
características diferentes, mas todos ocupam exatamente a mesma posição em
relação ao círculo. Era assim que viviam nossos antepassados antes de surgir a
propriedade privada. Gosto muito de ver o Estado como sendo a invenção do
homem para substituir o círculo que ocupa o centro desse pictograma. Aquele
diante de qual todos têm a mesma importância, e que nos une e fortalece.
Na verdade, depois da invenção da propriedade privada, passou a ser
somente pelo Estado que continuamos a ter o sentido de grupo. Pense bem,
não faz sentido algum o conceito de “nosso território” hoje em dia, como
existia nos tempos do pictógrafo. Os tais “frutos [que] são de todos, e a terra,
de ninguém”, narrados por Rousseau, estão perdidos em algum lugar num
longínquo passado. Cada um hoje tem o seu território. E muitos nem isso têm.
Se ainda tem alguma dúvida sobre isso, entre num prédio e invada um
apartamento onde mora uma família e veja se será bem-vindo ou bem-vinda.
Pule a cerca de uma fazenda e colha alguns vegetais e frutas para se alimentar e
perceba a reação do dono da fazenda. Provavelmente não será nada amigável.
E o motivo é o fato de não existir mais nosso território, nossa religião (o
número de religiões do mundo é estimado em milhares 8
 
), nosso time de
futebol... Na prática não existe, praticamente, “nosso” nada. A não ser o nosso
Estado. É nele, e somente nele, que, nas sociedades democráticas, cada pessoa
tem direito, em tese, a exercer a mesma influência (com seu voto) e pode viver
sob as mesmas regras dos demais. Fora dele, o que existe é uma guerra. A
guerra inerente à economia do desejo.
Fora do Estado, os objetivos são somente dois, conquistar e se defender,
numa guerra que, longe de ser metafórica, é absolutamente real. omas
Hobbes, em seu clássico Leviatã , coloca o Estado como aquele que, através do
“contrato social” acordado pelo grupo, garante a paz entre as pessoas que vivem
sob suas regras. Mas sabemos que o Estado não garante a paz. Basta olhar ao
redor e notar as pessoas vivendo nas ruas, os assassinatos, as brigas, as fraudes, a
competição entre as empresas, os ataques verbais... O que existe é uma clara e
evidente guerra. Que é sim, regulada pelo Estado através das leis que constam
do “contrato social” descrito por Hobbes.
Nessa guerra, a maior de todas as armas é o dinheiro. É através dele que se
pode, entre outras coisas, estabelecer as leis que regulam a guerra. Como os que
ganham mais dinheiro podem definir quais serão as leis da guerra, de onde
tiram sua riqueza, entra-se em um círculo vicioso de busca por mais lucro, mais
poder e, pasmem, mais guerra.
Como pano de fundo, cumprindo o papel de alimentar a característica
mais típica e importante de uma guerra, a saber, a competição, está o desejo.
Aqueles que detêm o poder passam então a concentrar o uso de todos os seus
recursos em atividades que possam atiçar o desejo das pessoas, dando
falsamente a sensação de saciá-los e criando novos desejos no lugar em que
antes não havia, principalmente através da propaganda.
Como o lucro é diretamente função do desejo não saciado, atividades que
atendem as necessidades das pessoas passam a ter uma procura e atenção
infinitamente menor, por não terem a mesma lucratividade.
Percebam que 1 litro de água pura, talvez a maiornecessidade fisiológica do
ser humano para sobreviver, custa pouco mais de R$ 1. Enquanto isso, a
mesma quantidade (1 quilo) de cocaína, um produto criado exclusivamente
para atender a um dos maiores desejos que o homem é capaz de sentir, advindo
do vício pelas drogas, pode chegar ao inimaginável valor de US$ 500 mil em
alguns lugares do mundo. Com uma lucratividade em relação ao preço de
produção que pode chegar a mais de 30.000%. 9
 
Um valor literalmente
milhões de vezes maior para um produto que atende muito menos (ou nada) a
necessidades das pessoas, mas que, na equação capitalista que rebatiza desejo
como “utilidade”, faz com que se gere uma quantidade estratosférica de
“utilidade” adicional ao sistema.
Preço de compra no atacado (US$/kg) Preço de venda no varejo (US$/kg)
Bolívia 2.500,00
Colômbia 1.504,00
Equador 1.800,00
Paraguai 2.200,00
Peru 643,00
China 370.000,00
Arábia Saudita 507.000,00
Emirados
Árabes
476.000,00
Nova Zelândia 496.000,00
Fonte: https://dataunodc.un.org/drugs/prices-2017
É por isso que, mesmo proibido, o mercado de drogas ilegais é tão grande,
estimado em quase US$ 0,5 trilhão, 
10
 mesmo sendo combatido por todos os
países e governos. Curiosamente, um mercado de tamanho similar a esse, que
cria e estimula nas pessoas o desejo, o da propaganda, é estimado também em
pouco mais de US$ 0,5 trilhão por ano. 
11
 Um gerando desejos e o outro
prometendo saciá-los por alguns instantes.
A verdade é que o mercado de drogas não é combatido pelo mundo. Ele é,
a todo instante, incentivado pela economia do desejo. De fato, não existe
jamais, na prática, o conceito de proibição na economia do desejo. O que
existe é somente uma definição de quantos recursos serão necessários para
participar desse ou daquele mercado. Quanto mais proibido e lucrativo um
mercado, mais recursos serão destinados a ele e menos sobrarão para atender as
necessidades. É por isso que, enquanto a água limpa e potável que temos
disponível no mundo é cada vez mais escassa, a quantidade de drogas que
existe para consumo é cada vez mais farta.
Ainda como exemplo de como o mercado, dentro da lógica neoliberal,
maximiza a variável desejo , concentrando recursos nos negócios dessa natureza,
e não naqueles que contribuiriam para uma garantia de acesso para todos às
necessidades básicas, temos o fato de o homem mais rico do nosso país ser o
dono de uma empresa que fabrica cervejas. Quando perguntado o motivo de
ter se envolvido com esse mercado (dado que seu passado profissional é ligado
ao mercado de investimentos), ele disse que resolveu pesquisar em vários outros
países e notou que os homens mais ricos de todos eles eram donos de empresas
de cerveja. É a tal “utilidade” das equações neoliberais sendo maximizada
mundo afora.
Voltemos agora ao Estado. Além de definir as regras da guerra que os
homens travarão entre si na busca por poder e por satisfazer seus insaciáveis
desejos, o Estado tem outra função importante, que é a de realocar recursos.
Em termos de execução, ou seja, através de seu poder executivo, é só isso que
faz o Estado. Pensando bem, talvez “só” não seja um bom advérbio para esse
papel do Estado. Isso porque é exatamente esse papel que pode ser “tudo”
numa sociedade. É por meio dessa realocação de recursos que uma parcela do
sistema poderá viver verdadeiramente em paz. Então pessoas cuidam uma das
outras, se protegem e vivem na prática o sentido de grupo. É com parte dos
impostos que você paga ao Estado, por exemplo, que uma criança que você
nunca viu nem verá na vida será educada. É através de uma taxa que você paga
ao Estado que um senhor de idade que mora a milhares de quilômetros poderá
ser poupado da dor, sem jamais ter a possibilidade de lhe agradecer.
Simplesmente porque vocês fazem parte de um mesmo grupo! E é exatamente
exercendo adequadamente esse papel de realocador de riquezas que o Estado
pode, se bem organizado, cumprir o papel de mantenedor da economia da
necessidade.
O papel do Estado como realocador reside em escolher de quem irá tirar
riquezas, para quem irá entregar e qual legado deixará como resultado. E, em
cada um desses passos, existe a possibilidade de promover a economia da
necessidade, ou de abdicar a ela, e de frear ou estimular a economia do desejo.
Vejamos um exemplo bem simples.
Imaginemos que um Estado resolva recolher compulsoriamente R$ 1
bilhão das pessoas que vivem sob sua tutela, através de impostos (que tem esse
nome exatamente por não serem uma opção, serem uma imposição). Começa
aí o processo de escolha: atender as necessidades ou estimular o desejo das
pessoas? Isso porque o Estado pode, por exemplo, tirar essa riqueza das pessoas
que têm riqueza acumulada em quantidade muito acima daquilo que teriam a
necessidade de ter (ricos) e redistribuí-la àqueles que estão com as necessidades
mais básicas não atendidas (pobres), ou pode, mesmo parecendo cruel e
desumano, tirar daqueles que sequer têm essas necessidades atendidas, para
entregar essas riquezas manchadas com sangue e sofrimento aos que não farão
qualquer uso dela, senão acumular ainda mais poder e saciar
momentaneamente ainda mais desejos supérfluos. Poderia também tirar dos
ricos e entregar de volta para os ricos, ou tirar dos pobres e entregar de volta
para os pobres, mas como esses casos não resultariam em mudança significativa
alguma na condição geral do grupo, vamos nos ater às duas primeiras
possibilidades.
Esse processo de redistribuição feito pelo Estado pode, porém, ser mais do
que simplesmente tirar riquezas de uns para dar a outros. Ele pode também
resultar em um legado. Sigamos ainda no exemplo que acabamos de ver.
Podemos imaginar que esse R$ 1 bilhão seja recolhido ao longo do ano,
cobrando-se impostos de um milhão de pobres, cabendo a cada um o
pagamento de R$ 1 mil, para ser distribuído a mil ricos, recebendo cada um
deles a quantia de R$ 1 milhão. Ou podemos imaginar uma segunda opção
diametralmente oposta, em que mil ricos pagam, ao longo do ano, R$ 1
milhão cada um em impostos, que serão redistribuídos para um milhão de
pobres, que receberão cada um a quantia de R$ 1 mil. Esses R$ 1 mil podem
ser recebidos como um depósito em conta no banco, em troca de nada, como
por exemplo acontece em programas sociais de transferência de renda. Terão
certamente um efeito prático de permitir que essas pessoas possam adquirir
produtos e serviços que atendam parte (ou o todo) de suas necessidades e
aliviem, assim, uma boa parcela de seu sofrimento. Como a parcela tirada dos
mais ricos não afetará sua capacidade de adquirir aquilo que atende as suas
necessidades básicas e ao mesmo tempo atenderá a necessidade básica dos mais
pobres, o sistema como um todo ganhou em necessidade atendida (ou, em
“utilidade”, no sentido que muitos imaginam ter a palavra na equação
neoliberal). O curioso é notar que, em termos de percentual de desejos
atendidos, nada muda no sistema, dado que por causa de sua natureza infinita,
ilimitada, qualquer numerador que coloquemos sobre ele dará um resultado
nulo de saciedade no longo prazo.
Existe ainda uma outra possibilidade. Em vez de simplesmente dar esse
dinheiro aos mais pobres, distribuindo R$ 1 mil para cada um em troca de
nada, eles são contratados para construir escolas, hospitais, cuidar de doentes,
transmitir conhecimento e atender a outras necessidades básicas do grupo. Veja
que esses R$ 1 mil continuarão chegando ao mesmo grupo de pessoas,
permitindo que elas possam usá-los para adquirir aquilo que lhes falta em
termos de necessidades básicas. Mas nesse caso fica um legado que também
ajuda a suprir necessidades das quais o grupo carece. O processo ganha
eficiência e mais pessoas são poupadas do sofrimento e podem seguir sua
jornada com as necessidades atendidas.
Tudo isso parece óbvio e incrivelmente simples. Mas não é. As pessoas
tendem a imaginar o Estado realmente como um ser vivente. E, ao
personificarem o Estado, atribuem a ele característicasimpossíveis,
simplesmente por ser somente uma figura fictícia. O Estado não pode ser
“perdulário” como dizem uns. Não pode ser “corrupto” como dizem outros.
Nem mesmo estar “enriquecendo” ou “empobrecendo” como alardeiam as
notícias. Quem se corrompe, enriquece ou empobrece são as pessoas. E são elas
que deveriam ser cobradas ou julgadas por fortalecerem ou enfraquecerem o
grupo. Mas, ao darem vida ao ente “Estado”, escondem-se atrás deles e
transferem a culpa para um ser que não existe.
Costumo usar como exemplo um caso polêmico que aconteceu no Brasil
não muito tempo atrás, para explicar como funciona o papel redistribuidor de
renda do Estado e como as pessoas costumam lhe atribuir características que
não são dele. Em abril de 2019, o Supremo Tribunal Federal brasileiro abriu
uma licitação para a compra de refeições institucionais que incluíam lagosta e
bons vinhos. O valor da compra superava R$ 1 milhão. O fato, em meio a uma
das maiores crises econômicas do país, que vivia à época números recordes de
desemprego e estatísticas de pobreza extrema voltando a crescer, ganhou as
páginas de jornais e sites e causou enorme revolta.
É óbvio que não concordo com homens públicos, aqueles mesmos que
deveriam representar e cuidar do grupo, entregando-se a luxos (desejos) como
esses enquanto a maior parte da população não tem sequer suas necessidades
básicas atendidas. Mas gosto de usar esse exemplo para mostrar para as pessoas
que o valor de mais de R$ 1 milhão, não foi “gasto” pelo Estado. Ele
simplesmente foi redistribuído para as empresas que forneceram os alimentos e
bebidas requisitados pela licitação, e o legado que ficou foram almoços
luxuosos para os ministros da suprema corte. Suponhamos que as lagostas
tivessem sido compradas de cooperativas de pescadores que vivem em situação
de miséria no nordeste do país. A tal compra criticada por todos como um
“desperdício” do Estado, teria na verdade se revertido em necessidades básicas
de pessoas pobres e cumprido um papel melhor para a sociedade, por exemplo,
do que o pagamento de juros da dívida pública, que não deixa legado algum e
vai majoritariamente para as pessoas mais ricas (as detentoras da dívida
pública). O ponto desse exemplo é observar que o dinheiro nunca some nem
aparece, ele simplesmente flui. Provavelmente as lagostas foram compradas de
alguma grande empresa que explora pescadores pagando péssimos salários e
deixando todo o lucro na mão de um ou poucos donos, ou seja, não houve
sequer o processo redistributivo teorizado no exemplo; mas ele ajuda a olhar de
outra maneira para os chamados “gastos” do Estado.
É exatamente esse o estudo que precisaria ser feito, mas nunca foi. Saber
onde, no final da linha, o dinheiro que é gasto pelo Estado está parando e qual
legado está deixando (essa última parte, mais conhecida). Só assim poderíamos
ver o verdadeiro papel que o Estado está fazendo de redistribuir ou concentrar
riquezas.
Percebam que quando você passa a enxergar o governo como um
realocador de riquezas entre membros do grupo que ele representa e entender
que as “realizações” do governo são o legado dessa realocação de riquezas, todo
o processo fica mais claro e simples de entender. É muito diferente daquilo que
é mostrado pela mídia e compreendido pelo cidadão comum.
Por exemplo, quando um governo diz que gastou R$ 100 milhões com
saúde ou R$ 10 bilhões com programas de educação, para construir escolas e
creches, ele na verdade não “gastou” dinheiro nenhum com uma criança,
estudante ou doente. Nenhum deles recebeu um cheque e foi para casa mais
rico. Todo o dinheiro gasto foi parar nas mãos de médicos, enfermeiras, donos
e empregados de laboratórios e empresas farmacêuticas, trabalhadores e
empresários de construtoras e empresas ligadas à construção civil e por aí vai.
O que ficou para as crianças e doentes foi o legado! E esse legado é o
tratamento que receberam, os remédios que tomaram, a escola que foi
construída e as aulas que receberam. Um bom governo acerta nas duas fases
desse processo, distribuindo renda de maneira justa ao contratar os serviços que
podem atender às carências básicas da população e entregando um legado que
também possa contribuir com essas necessidades. Vejam que o efeito pode ser
nenhum (quando não há redistribuição alguma de renda), simples (quando
redistribui a renda sem deixar legado) ou máximo (quando distribui renda e
gera o maior legado possível para a população mais pobre)!
Infelizmente os governantes têm dificuldade de entender que as ações e os
investimentos do governo são um enorme instrumento de redistribuição de
renda. Talvez porque seja muito mais fácil propagandear o legado de um
governo do que o seu “gasto”, este visto pela população, a mesma que
personifica o Estado, como desperdício de dinheiro, recursos que somem em
algum ralo rumo ao desconhecido.
Uma medida prática, e que teria um impacto gigantesco na capacidade do
governo atender com maior velocidade e eficiência as necessidades da
população pobre, seria criar regras para somente contratar empresas que
seguissem condições mínimas de redistribuição de renda. Por exemplo,
empresas em que os donos tivessem de distribuir um percentual grande de seus
lucros entre seus empregados, talvez 50% ou mais. Ou empresas em que a
diferença entre os maiores e menores salários não ultrapassassem um valor
determinado, por exemplo 30x. Empresas que tivessem políticas de
remuneração e de contratação auditadas e que garantissem diversidade e iguais
oportunidades para todos os grupos da sociedade. Imediatamente, contratando
somente as empresas que cumprissem esses pré-requisitos, centenas de bilhões
de reais “gastos” pelo governo, passariam a ser distribuídos de maneira muito
mais eficiente para maximizar o acesso às necessidades básicas de uma parcela
muito maior da população. E o legado continuaria existindo. A população mais
pobre ganharia dos dois lados.
O que acontece hoje, infelizmente, é que fica o legado, mas o dinheiro que
sai do Estado para contratar os serviços e comprar os produtos que serão
utilizados vai quase todo para os donos das empresas que os fornecem.
Construir uma escola pode fazer com que R$ 1 milhão vá parar nas mãos de
um dono de construtora e R$ 500 mil nas mãos de cinquenta funcionários, ou
pode fazer com que R$ 1 milhão vá parar nas mãos de cinquenta funcionários
e R$ 500 mil nas mãos de um dono. O legado é o mesmo, a escola. A
distribuição de renda e o impacto social, completamente diferente. É assim que
o Estado pode exercer a economia da necessidade, focando no legado e no
direcionamento (e distribuição final) de seus gastos.
Imediatamente, os adeptos a economia do desejo, aquela que acredita que o
lucro é a variável a ser maximizada na equação, dirão: “Mas isso vai diminuir o
interesse dos donos de construtora, diminuir a competição e aumentar o preço
das obras.” Veja que, mesmo que o preço da obra realmente aumente um
pouco (o que é possível que aconteça quando você impõe condições que
impedem a exploração da mão de obra e a superconcentração de renda nas
mãos dos donos do capital), não há problema algum nisso. Porque o dinheiro a
mais não está sendo gasto, está sendo distribuído de forma a atender a parcela
mais pobre da população e maximizando o seu acesso às necessidades básicas.
Em uma de minhas viagens para morar nas comunidades pobres do país,
pude presenciar um exemplo incrivelmente didático de como muitas vezes
contratar um serviço mais barato para o governo pode representar uma
economia numa planilha de Excel e um desastre em termo de condições de
vida para a população.
Era um quilombo no interior de país. Uma pequena comunidade, com
quase 400 anos de história de resistência, onde a principal atividade econômica
era o plantio de bananas. Durante vários anos consecutivos, na segunda metade
da década de 2000, a comunidade viveu uma melhora constante na condição
de vida de seus moradores. Tudo resultado denovos programas de governo que
haviam sido implementados para a aquisição e distribuição, em todo o país, de
alimentos da agricultura familiar e de pequenas comunidades que vivem dessa
atividade. Através dos programas, o governo garantia que compraria desses
pequenos agricultores uma quantidade definida de sua produção, a um preço
também definido. Os alimentos eram distribuídos para pessoas em situação de
miserabilidade, para merenda escolar, para hospitais e outros usos condizentes
com a lógica da economia da necessidade.
Como tinham previsibilidade sobre os recursos que receberiam ao longo do
ano, essas comunidades passaram a planejar seu desenvolvimento, construindo
por conta própria creches, escolas, postos de saúde e melhorando
gradativamente sua infraestrutura. Sabendo que poderiam contar com os
recursos das vendas garantidas pelo governo, as comunidades vizinhas passaram
a se reunir em feiras para trocas de sementes e passaram a fazer intercâmbio de
seus moradores com o de outros grupos para aprender as técnicas de produção
que mais deram certo. Passaram também a não precisar mais caçar animais
nem degradar o meio ambiente para dele extrair recursos para sua
sobrevivência.
Até que assumiram novos governantes, adeptos da tese neoliberal. Aqueles
que acreditam que a competição e o lucro são os maximizadores da utilidade de
um grupo. Os mesmos que olhavam para uma planilha e viam milhões de reais
sendo gastos com alimentos! Veja bem, com os alimentos não era gasto nada.
Nenhum pé de alface, cacho de banana ou folha de couve recebeu um real
sequer. Parece piada, mas não é, é assim mesmo que as pessoas imaginam os
gastos do Estado. Quem recebia o dinheiro todo “gasto” pelo Estado eram as
pessoas dessas pequenas comunidades, todas elas pobres e com carências em
suas necessidades básicas. E eis que os novos governantes tiveram uma ideia
“brilhante”. Para que garantir um preço de compra para esses agricultores, isso é
estúpido! , provavelmente pensaram. Podemos gastar muito menos em alimentos se
colocarmos esse pessoal para competir! Vamos passar a comprar esses alimentos por
um processo competitivo de licitação.
Pronto! Com essa ideia estúpida foram capazes de destruir tudo o que foi
construído ao longo de quase uma década. Imediatamente após a medida,
todas as comunidades vizinhas, que eram parceiras e amigas, passaram a ser
adversárias, disputando os mesmos contratos. As feiras de trocas de sementes
acabaram. Os intercâmbios entre os moradores também. Os fazendeiros da
região, com maior patrimônio, acesso a linhas de financiamento muito mais
baratas, mais terras (e consequente possibilidade de escalar a produção) e
maquinário mais avançado, passaram a ganhar os contratos. Os moradores das
pequenas comunidades passaram a deixar a comunidade — onde trabalhavam
e podiam estar próximos de seus filhos e da família — para trabalhar em
regimes muitas vezes de semiescravidão para esses fazendeiros. Em situação de
miséria, os moradores voltaram a ter de caçar os animais e a degradar o meio
ambiente para conseguir sobreviver. O caos voltou a reinar nas comunidades.
Mas as planilhas de Excel mostravam que milhões de reais haviam sido
economizados com os alimentos! Um desastre total, e um prejuízo incalculável
para a sociedade.
Esse exemplo real mostra perfeitamente a dificuldade de as pessoas de
verem os gastos do Estado como uma redistribuição de recursos. Provavelmente
os governos justificarão que conseguem agora comprar mais alface e couve com
as verbas públicas. Só não sabem que existem milhares de pessoas que agora
não podem mais comer alface e couve porque o dinheiro passou a ir todo parar
nas mãos de fazendeiros que já tinham todas as suas necessidades básicas
atendidas.
Outro fato conhecido, dito como real e utilizado como anedota pelos que
defendem o modelo neoliberal, fala sobre uma visita do economista Milton
Friedman na década de 1960 a um país asiático que estava vivendo um período
de enorme crescimento. Visitando uma obra pública do país com
representantes do governo, ficou surpreso ao notar que muitos trabalhadores
estavam usando pás para cavar, e a obra contava com pouquíssimos
equipamentos pesados, como tratores, que poderiam fazer o mesmo trabalho
com muito mais eficiência e rapidez. Resolveu então perguntar o motivo pelo
qual não utilizavam os equipamentos pesados para fazer a obra. A reposta foi
que daquela maneira eles geravam muito mais empregos. Friedman então os
provocou com ironia: “Deveriam então usar colheres para cavar, assim gerariam
muito mais empregos.” 12
Se realmente existiu, a piada do economista ganhador do Prêmio Nobel
mostra o completo desconhecimento do que acabamos de demonstrar com o
exemplo real do corte do programa de alimentos das comunidades ligadas à
agricultura no Brasil. Existe, por parte dos defensores da tese neoliberal, a
capacidade de olhar somente o legado e jamais a distribuição da renda gerada
pelo Estado.
O fato é que, se usassem somente tratores, eles construiriam estradas onde
ninguém poderia passar, por não ter dinheiro para comprar um carro ou uma
passagem de ônibus. O dinheiro iria parar todo nas mãos de poucas pessoas.
Por outro lado, é bom ressaltar, se usassem somente colheres, a estrada não
ficaria pronta nunca, e haveria distribuição de renda sem legado algum. As
pessoas poderiam comprar carros, mas não teriam onde andar com eles. O
ponto ideal está na pá! É com ela que o Estado pode promover a economia da
necessidade de forma mais eficiente. Cabe, porém, calcular o “tamanho da pá”.
Um que otimize a entrega de acesso às necessidades básicas para a maior parte
da população, que seja fruto da combinação dos fatores distribuição de renda e
legado resultante .
Notas
8. https://www.theregister.co.uk/2006/10/06/the_odd_body_religion/
9. https://dataunodc.un.org/drugs/prices-2017
10. https://www.talkingdrugs.org/report-global-illegal-drug-trade-valued-at-around-half-a-trillion-dollars
11. https://www.statista.com/statistics/236943/global-advertising-spending/
12. Martin Ford, Os robôs e o futuro do emprego , Rio de Janeiro, Best Business, 2019.
4. A ECONOMIA DO ÓDIO
Mesmo após ter tido o estalo sobre a economia do desejo e conseguido
compreender com clareza, pela primeira vez, os fluxos e as forças que movem
os recursos à disposição da sociedade no mundo capitalista, concentrando-os
quase totalmente nas mãos de poucos e fazendo com que a maior parte da
população não tenha acesso sequer às suas necessidades básicas, uma coisa
ainda me intrigava. O fato de a história recente ser cheia de exemplos de
grupos extremamente violentos que concentraram poder tendo sido não os que
defendiam o livre mercado, mas os que, ao contrário, defendiam um Estado
forte e que interviesse na economia. Grupos que conquistaram um enorme
apoio popular e sustentaram modelos econômicos cruéis que, assim como no
livre mercado, concentravam riqueza nas mãos de poucos e deixavam a maior
parte da população sem ter suas necessidades básicas atendidas. Como foi
possível que o fizessem sem ter como elemento-chave de seu modelo a
componente do desejo que tanto falamos ao longo dos capítulos anteriores?
E a resposta me veio numa peça de teatro. Estávamos eu e minha esposa
assistindo à peça O ovo de ouro , protagonizada pelo grande ator Sérgio
Mamberti. A peça conta a história de um dos sobreviventes do campo de
concentração de Auschwitz durante a Segunda Guerra Mundial. Ao longo das
cenas, meu estômago ia embrulhando ao ver a forma como eram tratados os
prisioneiros e prisioneiras daquele campo de concentração. Uma total ausência
de humanidade. Uma maldade que parece impossível de acreditar que um dia
tenha existido. O ódio na sua mais pura essência. Ódio que rapidamente pulou
da história que estava sendo contada no palco para dentro de mim e me tomou
por completo. E foi aí, no auge desse sentimento, que outro estalo me veio à
cabeça. “O ódio é também um desejo”,pensei. A economia do ódio é tão
somente uma manifestação, talvez a mais perigosa e cruel, da economia do
desejo.
Para compreender isso, precisamos entender que economia não é somente
o estudo do dinheiro em uma sociedade. É o estudo da gestão, coordenação e
direcionamento desta sociedade. A etimologia da palavra economia deriva do
grego oikonomía , oikos , “casa”, e nomein , “gerenciar”. É ela a ciência que trata
do gerenciamento do lar. Seja o lar nossa residência, um município, Estado,
país ou planeta. A economia do desejo é aquela em que a lógica que orienta
esse gerenciamento é a de maximizar a quantidade de desejo presente no
grupo, enquanto a economia da necessidade é aquela que orienta essa gestão
para atender ao máximo as necessidades das pessoas.
O ódio é sem dúvida uma das mais fortes expressões do desejo. Tão forte,
que é capaz de se colocar acima de todas as outras e unir personagens opostos
de um mesmo lado do campo de batalha. “Nada une tão fortemente como o
ódio” diria o escritor russo Anton Tchekhov. Pude experimentar o poder do
ódio como elemento de coesão quando saí do mercado financeiro e resolvi me
dedicar à tarefa de levar educação financeira para as pessoas, denunciando a
covardia que era feita pelos bancos e corretoras. Comecei a gravar vídeos e a
escrever textos que ensinavam às pessoas a forma de agir para escapar das
armadilhas e ciladas do mercado financeiro. Até que um dia fui chamado para
dar uma entrevista sobre o tema numa das rádios de maior audiência no país.
Nessa entrevista eu resolvi subir o tom. Trouxe dados, que nunca havia
mencionado em minhas entrevistas anteriores, a respeito da atuação covarde e
dos lucros gigantescos dos bancos e corretoras. Mostrei, por exemplo, que
somente os cinco maiores bancos do país recebiam de seus clientes, em taxas e
tarifas por ano, mais de R$ 100 bilhões. Um valor maior do que todo o
orçamento federal para a área de saúde naquele ano. Ou de todas as verbas
federais destinadas à educação.
À medida que fui exibindo os dados, fui me envolvendo com eles. E fui
falando com mais raiva. O rosto ficava cada vez mais vermelho, uma veia do
pescoço nitidamente saltava e o volume de minha voz foi ficando cada vez mais
alto. O entrevistador não conseguia sequer me interromper para fazer
colocações. Eu havia entrado naquilo que é chamado por alguns psicólogos de
“ flow ”. Só que naquela situação não era qualquer flow . Era um flow de ódio.
Assim que a entrevista foi divulgada eu selecionei os momentos de maior
ênfase de meu discurso e criei um vídeo curto, que continha o filé-mignon do
ódio destilado contra os bancos e corretoras naquela entrevista. O resultado foi
absolutamente inesperado. Rapidamente as pessoas começaram a se identificar
com aquele ódio aos bancos e corretoras. Num momento em que o
desemprego batia recorde no país, mais de 60 milhões de pessoas tinham o
nome sujo por não estar em dia com o pagamento de suas dívidas, a economia
não conseguia reagir, as pequenas empresas fechavam e mesmo assim os bancos
seguiam divulgando os maiores lucros de toda sua história; o solo era o mais
fértil possível para aquele discurso. Os compartilhamentos do vídeo
começaram a crescer exponencialmente. Logo eram centenas. Ainda antes do
final do dia, milhares, pela primeira vez em qualquer post que eu já tivesse
feito. Então candidatos à Presidência da República compartilharam o post.
Artistas famosos compartilharam. Intelectuais também o fizeram. Em menos
de uma semana os compartilhamentos tinham passado de dezenas de milhares.
Atingiram então centenas de milhares. E no final da onda haviam atingido um
número próximo (é difícil calcular o número final, dado que várias outras
versões foram criadas e compartilhadas também) de uma dezena de milhões de
compartilhamentos!
O curioso era ver que entre as pessoas que compartilharam estavam alguns
dos maiores representantes da extrema direita do país e outros que eram ícones
das forças progressistas. Todos tecendo comentários elogiosos sobre o conteúdo
do vídeo e dizendo que só tinham ouvido verdades. O ódio como elemento de
coesão da sociedade. Incrivelmente forte e impensavelmente perigoso.
Uma economia baseada no ódio jamais será capaz de concentrar recursos e
esforços para suprir as necessidades das pessoas. Isso porque o ódio, assim
como os outros desejos, tem uma capacidade infinita de absorver recursos sem
jamais ser resolvido. “Só os que, libertos dos ódios e paixões [...] se aproximam
da verdadeira paz”, ensina a Bhagavad Gita em seu quinto capítulo. E é por
isso, que a parcela da economia que fica fora do controle do Estado está fadada
a sempre flertar com a possibilidade da economia do ódio. Porque vive sempre
em estado de guerra. Todos com a sensação de que não têm o suficiente. Os
pobres carentes de necessidades assistidas. Os ricos carentes de desejos
atendidos e alimentando sua corrida a um destino inexistente, com o pouco
dinheiro dos pobres. Fazendo com que o sentimento de “falta” em relação ao
atendimento de necessidades e desejos do grupo seja cada vez maior,
independentemente da quantidade de riqueza disponível.
A economia do ódio, portanto, é parte da economia do desejo. E no
mundo das redes sociais ela tende a se tornar cada vez mais forte como força
motriz do sistema capitalista. Isso porque as redes sociais são o maior
estimulador de ódio e de competição já criado pelo ser humano em toda a sua
história. Nascida com a promessa de criar pontes, as redes sociais criaram
grupos hermeticamente fechados de pessoas que se isolam e odeiam cada vez
mais aqueles que não fazem parte do seu grupo.
A lógica parte de um princípio econômico. Quanto mais parecidas são as
pessoas que você consegue reunir num grupo, maior sua chance de vender com
assertividade algo para elas. A estratégia das redes sociais é confinar pessoas em
currais, cada vez menores, exatamente como é feito com o gado, para facilitar a
lida do fazendeiro.
O discurso é o de que estão reunindo pessoas que gostam de coisas
parecidas. E aí essas pessoas podem, com mais eficiência, receber notícias, ler
artigos e comprar produtos cuja preferência compartilham. Outra maneira de
ver, porém, é a de que as redes sociais reúnem pessoas que não gostam das
mesmas coisas. E é exatamente aí, como no caso do meu vídeo, em que reuni
milhões de pessoas que não se sentiam confortáveis com a exploração dos
bancos e corretoras e queriam dar voz à sua revolta, que reside o verdadeiro
poder das redes. Afinal de contas, elas vivem do engajamento de seus usuários,
e é sabido que repercutimos muito mais algo de que não gostamos do que algo
de que gostamos. O ódio se espalha muito mais rápido do que a solidariedade
nas redes sociais. Principalmente porque ele tem como alvo os que estão fora
dos currais, que são em número muito maior do que os que estão dentro dos
currais. Então, o que é positivo acaba sendo postado só para os amigos. E o que
é negativo é postado para o mundo.
Na verdade, a tendência de as redes sociais focarem seu conteúdo no ódio e
competição é somente uma versão mais moderna e sofisticada do que a
televisão já havia percebido. Elliot Aronson, um dos maiores psicólogos sociais
dos Estados Unidos, destaca em seu livro e Social Animal (O animal social)
como os canais de televisão tendem a focar sua programação em temas
relacionados à violência. “Os canais tendem a focar no comportamento
violento dos indivíduos — terroristas, assassinos, grevistas, arruaceiros, policiais
— porque essa ação torna muito mais excitante assistir à televisão do que
mostrar pessoas agindo de uma maneira pacífica e ordenada.” 13
 
Elliot Aronson
mostra ainda estudos que indicam que impressionantes 80% dos programas
jornalísticos locais transmitidos pela televisão americana são destinados a
crimes violentos. E a resposta para todo esse foco ficou evidente após os
atentados às Torres Gêmeas, em 11 de setembro. Nas duas semanas seguintesao ataque, o número de pessoas que sintonizou a televisão na rede de notícias
CNN aumentou 667%, e o jornal e New York Times vendeu 250 mil
exemplares a mais no dia 12 de setembro do que havia vendido no dia 10. A
violência gera desejo, o desejo gera lucro e o lucro canaliza o foco e a
distribuição de recursos.
Afinal, é necessário lembrar que o ódio tem a mesma natureza de todos os
outros desejos. É insaciável! Porém, nos é vendido pelo sistema que não.
Vendem a ideia de que, como o ódio é fruto da injustiça, basta “fazer justiça”
que seremos capazes de amainá-lo. “Fazer justiça” vira, então, mais um dos
produtos (um dos principais) da economia do desejo. E aí, sem perceber, esse
insaciável desejo transforma aqueles que odeiam naquilo que sempre odiaram.
As pessoas que odeiam assassinos, por exemplo, passam a defender que eles
sejam mortos. E o desejo se torna tão grande, que muitos acabam mesmo
sendo mortos. Só que todas as mortes juntas não são capazes de saciar o desejo
de matá-los. Pelo contrário, estimula o desejo de que mais deles morram. A
guerra então ganha força e vira uma bola de neve. Ódio, violência e morte.
Num ciclo em que uma infinidade de outros desejos é estimulada, a
competição segue a todo vapor, a desigualdade entre ricos e pobres só aumenta
e a carência do básico do sistema cresce exponencialmente.
Vivemos uma época em que muitos políticos têm percebido o terreno fértil
para praticar a economia do ódio e a têm utilizado para assumir o poder.
Aproveitando-se de um ambiente de sensacionalismo, medo e ódio gerado
pelos meios de comunicação (agora turbinados pelas redes sociais), esses grupos
percebem que é muito mais eficiente e fácil atacar grupos do que ideologias
políticas.
Edward L. Glaeser, em seu trabalho “e Political Economy of Hatred” (A
economia política do ódio), cita o exemplo do final do século XIX, quando
Alemanha, Rússia, Áustria e França, monarquias de direita que dependiam do
apoio da Igreja católica, batalhavam com grupos de esquerda, que variavam de
liberais a comunistas. Entre esses grupos, os judeus estavam quase sempre na
esquerda, e “de Stoecker a Hitler, os grupos de direita raramente tentavam
refutar as ideias do socialismo, preferindo citar o alto percentual de intelectuais
de origem judaica entre os defensores do socialismo como uma prova de sua
subversão [WEISS 1996].”
Aliás, essa é uma técnica muito utilizada pela economia do ódio (e pela do
desejo, de um modo geral). Escolhem-se exemplos vividos e reais para gerar nas
pessoas uma sensação que os fatos olhados friamente, através das estatísticas,
jamais dariam. Elliot Aronson, o psicólogo social, aborda também esse tema
em seu livro e Social Animal , a preponderância dos exemplos reais sobre os
casos estatísticos. Dessa maneira, basta pegar um crime bárbaro em uma cidade
de milhões de habitantes e veiculá-lo no principal canal de televisão do país
para gerar um medo generalizado em toda a população da cidade, algo que
resultará em mais vendas de equipamentos de segurança para as casas,
contratação de serviços de proteção, pressão para a liberação do porte de armas
e lucro para as empresas. Ou então veicular um caso de morte de um paciente
por um vírus novo, para provocar a procura por remédios e equipamentos de
prevenção da doença.
Pude, ao longo do ano de 2019 participar ativamente da discussão política
sobre a reforma da Previdência no Brasil. Foram muitas horas dedicadas aos
estudos da situação da seguridade social brasileira — dos números às leis, algo
que nunca havia parado para estudar — e outras tantas a palestras e debates
por todo o país. Entre esses debates, fiz várias participações em plenário no
Congresso Nacional, tanto na Câmara dos Deputados quanto no Senado
Federal.
Uma reforma que inicialmente foi apresentada com uma quantidade
enorme de crueldades. Algumas impensáveis, como reduzir o benefício
recebido por pessoas com mais de 65 anos de idade, em condição de
miserabilidade. Ou como aquelas que alteravam as regras de aposentadoria dos
trabalhadores rurais, parcela da população extremamente pobre, com
expectativa de vida muito menor do que a dos trabalhadores da cidade e com
vida laboral iniciada muito mais cedo e sem qualquer proteção. Ou ainda a que
retirava de mais de 10 milhões de trabalhadores pobres brasileiros o direito de
receber um abono salarial de cerca de R$ 100 a mais por mês trabalhado. E
muitas outras. Algumas delas foram derrubadas, certamente fruto da incansável
luta de todos que compreenderam o fato de que milhões de vidas de pessoas
pobres estavam em jogo na reforma. Mas a maior parte foi aprovada. Em parte,
porque todo o discurso do governo e da mídia é o de que a Previdência é um
“gasto” do governo. Um dinheiro que é desperdiçado, que some, como vimos
no capítulo anterior. Mas boa parte do sucesso do governo se deveu à
capacidade de gerar na população mais pobre um ódio enorme por um grupo
muito pequeno de pessoas que recebem aposentadorias grandes e injustas, entre
eles os políticos.
Os partidos que defendiam a reforma, assim como o governo, faziam peças
publicitárias que mostravam como a reforma da Previdência ia fazer com que
os deputados e senadores passassem a se aposentar com as mesmos regras que
qualquer outro brasileiro. E não falavam que estavam mudando as regras para
esses mesmos brasileiros. E que, nas novas regras, boa parte da população negra
e pobre do Brasil, a mais exposta ao trabalho informal e com menos expectativa
de vida, provavelmente jamais conseguiria se aposentar. Que nas novas regras as
pessoas que trabalhavam em condições de altíssimo risco provavelmente
também não conseguiriam mais se aposentar. Que os tais servidores públicos,
demonizados na reforma, não eram somente os juízes que ganhavam
aposentadorias milionárias, mas também enfermeiras e professoras que
ganhavam salários baixíssimos para atender a população mais pobre do Brasil.
Que os servidores da esfera federal já estavam sob as mesmas regras do resto
dos trabalhadores do país desde 2013 e que os estaduais e municipais não
estavam contemplados na reforma, ou seja, não seriam atingidos.
No final, mesmo tentando divulgar essas informações, elas já não surtiam
mais efeito algum. O ódio aos senadores, políticos e juízes e suas alardeadas
aposentadorias polpudas era tão grande que qualquer coisa justificava apoiar a
reforma para boa parte da população, mesmo entre os mais pobres. E mesmo
isso significando a possibilidade de perder a própria aposentadoria.
Enquanto isso os canais de televisão lucravam, vendendo propaganda para
o governo, para os bancos e para as corretoras — que controlavam assim a
narrativa oferecida pelos canais à população. Durante todo o processo, só
foram chamados para opinar nos principais programas de televisão e rádio
economistas favoráveis à reforma. Em todo o processo, não me lembro de
qualquer economista negro ter sido convidado a dar sua opinião. Num país
que tem mais da metade da sua população de negros.
Nota
13. Elliot Aronson, e Social Animal , Nova York, Worth Publishers, 2011.
5. CONCLUSÃO — PAZ E GUERRA
Provavelmente os tempos em que os frutos eram de todos e a terra, de ninguém
jamais voltarão. Depois de criada a propriedade privada, a verdadeira maçã da
árvore do bem e do mal, o ser humano embarcou em um caminho sem volta.
E, além de não ter volta, não tem também destino.
Seduzidos por uma montanha crescente de desejos, embarcamos numa
fábula que nos promete, exatamente como naquela bíblica, que um dia seremos
também Deus. Venceremos a fome, o cansaço, as doenças, a morte e a tristeza.
É nisso que acreditamos e em torno disso que gira toda uma economia. Tão
hipnotizados estamos por essa crença que somos incapazes de ver que, quanto
mais caminhamos nessa direção, mais longe parecemos estar de nosso destino.
Aquilo que nos sacia — as necessidades — é cada vez mais escasso, e aquilo
que nos enfeitiça e destrói — os desejos —,cada vez mais farto. Um morador
de Londres nos anos 1800 vivia em média 40 anos 14
 
e trabalhava em média 70
horas por semana. Nos dias atuais, a expectativa de vida dobrou e o número
médio de horas trabalhadas por semana veio à metade. E é exatamente neste
novo mundo, que parece ter alcançado importantes vitórias nessa épica batalha
entre o homem e Deus, que quase 300 milhões de pessoas sofrem de depressão.
Quase 1 milhão delas se suicidam todo ano. Viver mais anos claramente não
tem servido para aliviar necessidades, e sim para alimentar o sofrimento.
O capitalismo terá sempre, acredito eu, uma parcela do sistema vivendo em
paz e outra em guerra. A única escolha que resta é decidir o tamanho e a
influência, na vida das pessoas, de cada uma dessas parcelas. A guerra será
sempre capitaneada pela iniciativa privada. A paz, sempre uma possibilidade (e
não uma garantia), fruto da presença e participação do Estado na economia.
Sou capaz de afirmar, ciente da responsabilidade de uma afirmação como
esta, que é impossível haver um mundo de paz baseado na competição e no
lucro. Um mundo onde, por exemplo, o mercado das drogas não só continuará
existindo como seguirá sempre crescente e absorvendo mais e mais esforços e
recursos da sociedade. Num mundo que tem como principal objetivo o lucro,
em vez de combater as drogas, os que detêm o poder farão sempre o que estiver
ao seu alcance para participar do mercado. Não é à toa que a todo momento
surgem notícias que mostram o envolvimento de importantes políticos e
grandes empresários com o tráfico e a comercialização de drogas. E isso não
deveria ser surpresa alguma.
Se o principal objetivo estimulado é o lucro, uma das atividades mais
lucrativas que existem é aquela ligada ao tráfico e à comercialização de drogas;
um dos principais motivos para o desejo de drogas e seu alto valor é a proibição
legal. E se o fato de ter poder dá a possibilidade de transpor os obstáculos legais
existentes numa sociedade, quem você imaginaria que comandaria esse
mercado? A resposta é tão óbvia que não precisaria sequer ser dada: os ricos
capazes de manipular o poder e comandar as atividades mais lucrativas.
Para compreender essa lógica, usemos somente como hipótese teórica
(importante frisar, para que não digam depois que é uma sugestão) um cenário
em que o Estado passasse a produzir todas as drogas, em grandes quantidades,
e definisse um preço extremamente baixo por elas, acabando com a proibição.
O que aconteceria com toda a lucratividade do mercado no dia seguinte?
Desmoronaria! E, assim, todo ele deixaria de existir. É exatamente por isso que
a proibição é tão importante para alimentar o desejo dos usuários, maximizar o
preço do produto e garantir a enorme lucratividade dos poderosos envolvidos
nesse mercado.
Não acho que o Estado deveria ter como uma de suas atividades a
produção de entorpecentes em grande escala, é claro. Mas sei que a proibição,
da forma como existe hoje (em vez do controle e regulação, inclusive de
preços), é certamente o modelo econômico mais lucrativo para os que estão
envolvidos nesse mercado.
A iniciativa privada não deixará de existir. A guerra, portanto, será parte de
nossa vida para sempre. Cabe a nós então administrar essa guerra. E a
administração da guerra é função do Estado, como disse omas Hobbes em
outras palavras, quando se referia ao contrato social.
Infelizmente o que vemos, porém, é um Estado que estimula a guerra. Um
Estado com enorme comprometimento com a economia do desejo e seu
impulsionador, que joga lenha para alimentar a fogueira dessa guerra. É isso
que faz um Estado cuja função, como defendem os pensadores neoliberais, é
estimular a iniciativa privada. Sua função deveria ser a de regular e controlar a
iniciativa privada. Na verdade, e muitos me crucificarão por dizer isso, sua
função deveria ser também a de frear a iniciativa privada.
Isso porque a iniciativa privada não precisa jamais ser estimulada. Sua
natureza já é a de querer crescer sem limites. Se nada for feito pelo Estado, será
em rumo ao maior crescimento e competição possíveis que ela marchará. E é
exatamente direcionando, colocando limites e, quando necessário, freando, que
o Estado deve atuar.
E o Estado pode exercer essa função de duas maneiras. A primeira delas,
com um contrato social, um conjunto de leis, que cumpra essas funções. Algo
bem distinto do que vemos hoje em boa parte dos países capitalistas, incluindo
o Brasil, onde o Estado define leis para estimular a guerra e beneficiar aqueles
que mais lucram com a economia dos desejos. Um resultado previsível ao
observar que aqueles que foram eleitos para definir as regras dessa guerra são,
em boa parte (normalmente em maioria), financiados e ligados aos grandes
grupos econômicos. A importância de ter o comando dessas regras que
moldarão a guerra (controlando-a ou estimulando-a) é tão grande, que hoje os
grandes empresários passaram a financiar escolas de formação de políticos.
Uma fábrica de representantes que cumpram o papel desejado de estimular a
guerra que tanto lhes traz lucro.
A segunda maneira que o Estado tem para diminuir os efeitos da guerra é
estimular a paz. E isso não pode ser feito através das leis. As leis servem
somente para controlar a guerra. A paz só pode ser alcançada através da função
de redistribuidor de riquezas e gerador de legados que o Estado tem o dever de
cumprir. E é cumprindo essa função, 100% focado em suprir as necessidades
daqueles que não as tem atendidas, que pode dar sua maior contribuição para
uma sociedade mais justa, humana, forte e saudável. Costumo dizer que um
governo que tem como foco de suas políticas os ricos (estimulando a iniciativa
privada e a economia do desejo) acaba com uma nação. Um governo que tenta
governar para todos (estimulando a iniciativa privada, mas também com
alguma vocação social) governa para os ricos. E um governo que governa para
os pobres (permitindo a iniciativa privada, controlando seus impulsos e
focando suas atividades e políticas na economia da necessidade) governa para
todos.
Os exemplos no mundo são fartos. Países que têm o Estado cumprindo a
função de redistribuir riqueza dos indivíduos mais ricos para os mais pobres e
têm seus “gastos” focados em programas sociais, criados para atender as
necessidades da população, vivem uma guerra muito mais amena. Nesses
países, todos os efeitos da guerra são menores. Edward Glaeser, autor já citado
neste livro, nos mostra, em seu trabalho, como países que estimulam a
economia do ódio são mais corruptos e têm pior qualidade de governo.
A fórmula de governar para os pobres e permitir, de maneira controlada e
com limites, as atividades dos ricos, para maximizar a paz presente em uma
sociedade, não é nova. Podemos olhar todos os outros rankings que trazem
indicadores de “paz” de uma sociedade e verificar os países que as lideram. São
sempre aqueles que conseguem atender às necessidades básicas de seus
habitantes através de um processo impositivo (através de impostos que
redistribuem a riqueza, e não da competição) e que tem regras claras para a
iniciativa privada atuar. São os líderes nos rankings de educação, alfabetização,
saúde, saneamento, menor corrupção, menores índices de violência e qualquer
outro indicativo que traga informações sobre necessidades básicas atendidas e
convívio pacífico dos cidadãos. Não são os mais ricos ou os que têm maior
crescimento de seu PIB. Mas esses, os que focam na economia do desejo e no
crescimento máximo de sua economia, raramente ocupam os primeiros lugares
nesses rankings. Os Estados Unidos são um ótimo exemplo, já citado em meus
dois últimos livros. Apesar de gerar mais riqueza do que qualquer outro país no
mundo, apresenta péssimos indicadores de saúde, educação, corrupção e
violência, quando comparado, por exemplo, à maior parte dos países europeus.
Lá nos Estados Unidos, reina a economia do desejo. O Estado é um
fomentador de guerras, sejam elasentre as empresas de sua economia, sejam
elas contra outros países. Os recursos, apesar de absurdamente altos, são
consumidos pelo pote sem fundo dos desejos e faltam em quantidades
assustadoras para as necessidades de boa parte da população. Muitos se
assustam ao saber que os EUA são o país com maior taxa de pobreza entre
todos os 35 membros da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento
Econômico (OCDE). 15
 
No país da guerra, não é surpresa não haver paz.
Em uma de minhas recentes experiências convivendo em comunidades no
interior do país, tive uma das maiores lições de como a economia da
necessidade pode conviver com a economia do desejo de forma saudável e
estável. Foi numa cooperativa do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem
Terra (MST) no interior do estado do Paraná, onde funciona uma belíssima
operação de uma agroindústria de leite e derivados.
As pessoas que hoje integram a comunidade em nada lembram aquelas que
lá chegaram há pouco mais de dez anos. Eram muito pobres, sem qualquer
riqueza acumulada e com um destino incerto. O local, que hoje abriga uma
moderníssima planta industrial, capaz de processar em alguns dias volumes
próximos a 100 mil litros de leite, era também muito diferente. Um deserto
improdutivo. Tão desértico que, para fazer as primeiras construções, os
moradores precisavam colocar tábuas apoiadas em escadas, para que tivessem
sombra e pudessem trabalhar debaixo do sol. Onde não há arvores, não há
também sombra.
As primeiras casas eram frágeis cabanas de plástico e lona. Os que tinham
melhores condições compravam lonas pretas. Os mais pobres, plástico
transparente. Conheci uma moradora que me contou, com lágrimas nos olhos,
que precisava se trocar com uma toalha dentro de sua cabana, porque como
não tinha dinheiro para comprar uma lona preta, todos podiam ver através do
plástico. Essa mesma moradora mora hoje numa casa linda, com três quartos e
uma bela varanda de frente para um jardim florido. As árvores, agora, são
abundantes no terreno. Há uma escola, um posto de saúde e um centro de
recreação e lazer, todos funcionando de maneira a dar inveja a muitos
existentes nas grandes cidades do país. No centro do terreno, fica a
agroindústria onde o leite é processado. As instalações são de ponta. Dezenas
de pessoas se revezam em três turnos para trabalhar dentro das mais rígidas
condições de higiene e segurança. Os trabalhos são acompanhados por
especialistas da comunidade, mas também por consultores internacionais
contratados para tornar o processo cada vez mais eficiente. E o mais curioso
disso tudo é que o que moveu essa comunidade nunca foi o lucro.
Qual terá sido então a mágica, se não foi o lucro a mola mestra do
desenvolvimento dessa comunidade? Pelo contrário, muitas das atividades
efetuadas na comunidade dão prejuízo, como, por exemplo, ir buscar pequenas
quantidades de leite, que são compradas de outras comunidades do MST a
dezenas de quilômetros de distância, para processar na agroindústria. Como
podem, sem ter tido como foco a competição entre seus colaboradores e sem
ter como objetivo final vencer ou destruir as empresas concorrentes, ter
sobrevivido àquele que foi considerado o maior ciclo de crise da produção
láctea global ocorrido na década, 16
 
ocorrido logo depois de montada a
agroindústria? Enquanto os concorrentes que seguiam a cartilha neoliberal de
busca por lucros e “eficiência” quebravam, eles não paravam de crescer.
O segredo foi fazer exatamente o que descrevemos há pouco: não se
descuidar da economia da necessidade e impor limites para a economia do
desejo dentro do grupo. Desde o começo existia uma preocupação de que
todos dentro do grupo tivessem assistidas todas as suas necessidades básicas,
dentro das possibilidades da comunidade naquele estágio de desenvolvimento.
A todos foi oferecido um pedaço de terra do mesmo tamanho para desenvolver
suas atividades. Como alguns começaram a ter sucesso antes dos outros,
aqueles que conseguiam atender às suas necessidades antes dos outros
ajudavam os que ainda não tinham, com sementes, trabalho em sua roça,
empréstimos de suas máquinas e até com dinheiro. Em troca de nada. Na
verdade, em troca de morar num grupo mais forte, com menos guerra e mais
paz.
Hoje a comunidade passa longe de ser uma comunidade de ascetas
franciscanos morando isolados do resto do mundo, como imaginariam alguns
ser o resultado de uma comunidade que tem a economia da necessidade como
foco. Muitos moram em casas bonitas, têm carro novo na garagem, celular e
computador de ponta e participam ativamente da economia do desejo. Eles
também fazem parte da guerra. Aliás, é impossível isolar-se da guerra num
mundo que vive dela. Mas, dentro da comunidade, essa guerra tem limites.
Não seria permitido que um dos membros da comunidade morasse numa
mansão com piscinas, móveis luxuosos e carros importados e outros estivessem
morando ainda em cabanas de plástico, sem conseguir atender as suas
necessidades básicas. E quem garante isso é a estrutura, correspondente ao
“Estado”, criada dentro do grupo. É ela que garante que os recursos recolhidos
serão todos canalizados para as necessidades dos que ficaram para trás e
também que freia e impõe limites para aqueles que largaram na frente.
É lindo perceber ainda que toda a riqueza presente naquela comunidade
surgiu onde antes não havia nada senão um deserto verde. A comunidade
enriqueceu criando e distribuindo de maneira saudável sua riqueza. E, o mais
importante, enriqueceu sem empobrecer ninguém. Toda vez que observava um
dos moradores numa bela casa com um carro na garagem eu podia ter a certeza
de que ele havia trazido ao mundo muito mais riqueza do que aquela que tinha
acumulado. Isso porque tinha largado do zero, sem nada. E não recebera
incentivo ou ajuda de ninguém. Ao comprar tudo o que viera a possuir, tinha
usado para isso parte da riqueza que tinha gerado, entregando-a para aquele
que recebia seu dinheiro e lucrava com suas compras. Com isso, ia
enriquecendo com a riqueza que ia gerando, enriquecia os membros
necessitados da comunidade com o compartilhamento de parte dessa mesma
riqueza e enriquecia ainda outros que viviam fora da comunidade, ao fazer suas
compras. É por isso que, mesmo focando somente na economia da
necessidade, um Estado acaba alimentando também a economia do desejo,
gerando lucros para os grupos que exercem atividades comerciais com esse
objetivo. A única coisa que muda é que se maximiza (idealmente atendendo
integralmente) as necessidades, e não o lucro do sistema. Uma boa metáfora
seria imaginar que o sistema precisa regar uma planta. Pode-se escolher regar a
planta jogando água em suas folhas, canalizando seus recursos para os mais
ricos (economia do desejo). Pouca água será absorvida pela planta e ela ficará
fraca, provavelmente morrendo num futuro próximo. Ou pode-se jogar a água
na raiz, canalizando os recursos para os mais pobres (economia da necessidade).
A planta irá absorver toda a água, ficará forte e saudável, e um pedaço dessa
água seguirá chegando nas folhas (gerando lucro para as empresas).
Existe um conceito econômico que vem ganhando força na Europa,
chamado de Community Wealth Building . A tradução literal seria “Construção
de Riqueza na Comunidade”. A ideia é fazer com que a riqueza gerada pelos
mais pobres não escape e vá parar nas mãos dos mais ricos. Digo repetidamente
em minhas palestras que os mais pobres no Brasil não foram malsucedidos em
sua missão de gerar riqueza. Foram bem-sucedidos! A prova disso é que existe
muita riqueza. O problema é que a que eles produziram foi parar toda nas
mãos dos ricos. Esses sim os fracassados, que com as canetas que decidem o
futuro do país foram incapazes de criar uma comunidade saudável e em paz.
São João Crisóstomo, santo e doutor da Igreja católica, tinha discursos
poderosos sobre essa relação de transferência de riqueza dos miseráveis para os
ricos. Foi considerado um dos maiores oradoresde todos os tempos da Igreja e
era conhecido como o Boca de Ouro. Mesmo separado de nosso tempo por
mais de mil anos (viveu no século IV), seus discursos são ainda incrivelmente
atuais, principalmente os que falam sobre riqueza e pobreza. Em uma de suas
obras mais conhecidas, On Wealth and Poverty (Sobre riqueza e pobreza), o
santo reflete sobre uma das passagens bíblicas mais populares, a de Lázaro e do
homem rico. É um livro incrível, que merece a leitura nos dias de hoje. Num
trecho o santo é claro: “É certo que, caso não dê sua contribuição, você estará
roubando os pobres. Isso é dito para mostrar aos ricos que eles possuem coisas
que pertencem aos pobres, mesmo que as tenha recebido por herança.” Um
pouco adiante, deixa claro então um conceito repetido várias vezes neste livro,
relativo à economia da necessidade: “Se alguém gastar com ele mesmo mais do
que realmente precisa, pagará uma grande punição. Porque as coisas que ele
tem não são dele, mas sim de seus companheiros trabalhadores.” A economia
do desejo sujeita à economia da necessidade, essa é a mensagem de São João
Crisóstomo! Sem atender às necessidades, existe a impossibilidade moral de
buscar atender aos desejos.
No conceito de Community Wealth Building , a riqueza gerada numa
comunidade fica lá. Lembro-me de ter estado em uma outra comunidade do
MST, muito mais pobre, onde um dos moradores foi me mostrar sua plantação
de mandioca. Quando estávamos andando pela plantação, ele recebeu uma
chamada no celular. Percebi então que era um celular de última geração. Fiz
uma brincadeira então elogiando o celular do companheiro. Ele me disse que
havia comprado o aparelho financiando em várias prestações em um banco. Os
juros eram altíssimos. Eu olhei para a plantação de mandioca então e disse para
ele: “Está vendo as mandiocas todas plantadas, daqui onde estamos até aquele
ponto ali na frente?”, mostrando parte da plantação. “Sim”, respondeu ele.
“Pois bem”, disse, “essas todas você plantou para o dono do banco que vai
ganhar os juros do seu celular. Ele vai ganhar isso tudo sem fazer nada, com o
seu trabalho.” Ele na hora entendeu como a riqueza produzida lá escapava e ia
parar no bolso dos mais ricos a centenas de quilômetros de distância nas
grandes cidades. Se, em vez de pegar o dinheiro emprestado do banco para
comprar o celular, ele tivesse pegado com um vizinho seu que tivesse algum
dinheiro sobrando, as mandiocas ficariam dentro da comunidade. O mesmo
acontece com qualquer outro serviço de fora, contratado pela comunidade, que
pode ser substituído por um serviço feito por alguém da própria comunidade.
Quanto menos “furos” no pote por onde escorre a riqueza gerada na
comunidade, mais rápido ela conseguirá enchê-lo de riqueza. É semelhante ao
que pude observar na comunidade da agroindústria do leite.
Os cinco pilares que norteiam o conceito de Community Wealth Building
são:
Acesso a todos da comunidade às riquezas geradas pela comunidade.
Atendimento das necessidades básicas de todos (crédito, equipamentos
etc.), para que possam contribuir com o processo de geração de riqueza
do grupo.
Condições de emprego justas, e não aquelas que gerem maior lucro para
as empresas.
Impacto ambiental, social e condições de trabalho como o
direcionamento dos negócios.
Justiça social no uso e na divisão das terras e dos equipamentos.
Parece um mundo distante e utópico. Mas é muito próximo daquilo que vi
acontecendo e funcionando no Paraná, e que foi capaz de transformar em
muito pouco tempo, menos de uma geração, a vida de centenas de pessoas.
Pessoalmente, tenho total noção de que todo esse esforço por um mundo
que viva mais em paz e menos em guerra pode ser insuficiente para mudar
nossa triste realidade. A economia do desejo pode somente ser controlada.
Talvez freada. Jamais contida. Depois de comida a maçã do Jardim do Éden e
cercadas as terras dos jardins dos homens, o mundo parece ter sido condenado
para sempre. Textos como este: “Voltei-me para outras coisas e vi as opressões
que ocorrem debaixo do sol, e o resultado: as lágrimas dos oprimidos, sem que
ninguém os console, e a violência dos opressores, sem que ninguém se importe.
E felicitei antes os mortos, que já faleceram, do que os vivos, que ainda estão
em vida; e mais feliz do que ambos considerei aquele que ainda nem nasceu,
porque não viu as maldades que se fazem debaixo do sol”, poderiam bem ter
sido escritos há um mês por alguém visitando as regiões pobres de países como
a Índia ou o Brasil. Mas foram escritos há milhares de anos. Esse,
especificamente, é um trecho do quarto capítulo do livro Eclesiastes, do Antigo
Testamento. O mundo parece ter mudado muito pouco nesse tempo.
Respondendo a uma pergunta outro dia, em uma de minhas palestras, disse
que não acreditava que morreria num mundo melhor do que este em que vivo
hoje. Provavelmente será ainda mais cruel e injusto do que é. Com mais
desigualdade, sofrimento e dor. E me perguntaram então por que eu não
desistia. Contei a eles então a história do peregrino que todos os anos passava
por uma pequena cidade, famosa por seus governantes e empresários corruptos,
e via um homem em pé no banco da praça, discursando sobre aquelas
injustiças para quase ninguém. Numa dessas viagens, o peregrino não aguentou
a curiosidade e foi falar com o homem. Perguntou-lhe: “Eu passo aqui todos os
anos e vejo você discursando contra os corruptos e cruéis governantes da
cidade. Será que não percebeu que jamais irá mudá-los?” Eis que o homem
então lhe responde: “Eu sei disso. Mas no dia em que eu parar de falar é sinal
de que eles terão me mudado.” Abandonar a luta é deixar-se dominar pela
guerra. Não desistir é fazer a derrota impossível.
A vida é caminho, passagem, páscoa. Todas as religiões parecem concordar
nisso. Dela, levamos somente (se é que levamos algo) a transformação pessoal
que pudemos experimentar. É esse o motivo de jamais abandonar a luta.
Mesmo sabendo que, estando em uma guerra, e contra o lado que tem as
armas mais fortes, esta é uma opção pelo sofrimento. São João Crisóstomo, há
pouco citado, dizia que, quando resolvemos lutar por uma vida mais justa,
causamos três possíveis reações nos outros. A alguns inspiramos com nosso
brilho dos olhos e entrega à jornada. Esses passarão também a lutar conosco.
Essa é a reação que mais buscamos causar. Por outros, não seremos sequer
notados, tamanho seu envolvimento em seu mundo egoico e egoísta. Existe um
terceiro grupo, ainda, que irá nos atacar violentamente. É o grupo que lucra e
se beneficia com as injustiças do mundo. Essa última reação, a que menos
queremos ter. São João Crisóstomo, porém, nos diz que apesar de não desejada,
é exatamente ao sofrer esse tipo de reação que podemos ter a certeza de
estarmos acertando o alvo. E a vida é feita para acertarmos o alvo. A palavra
“pecar” significa errar o alvo.
Por fim, podemos estar errados em tudo aquilo que acreditamos e
defendemos. Todo este livro pode ser falho, com teses que não resistirão nem
ao tempo e nem às críticas. Talvez seja até este seu destino mais provável. Foi o
destino de quase tudo que foi produzido pelo homem até hoje. Mas, com o
amigo Frei Betto, que muito me ajudou com uma conversa num momento de
muito sofrimento nesta jornada que escolhi trilhar, aprendi algo que passei a
sempre lembrar nos momentos difíceis. Disse-me ele: “Querido Eduardo.
Espero que Deus lhe conceda na vida a graça que me concedeu. E que você
perceba que é melhor estar errado ao lado dos oprimidos do que ter a pretensão
de estar certo ao lado dos opressores.”
Notas
14. https://www.theguardian.com/society/2011/mar/06/
lifespan-mortality-health-diabetes
15. https://www.oecd-ilibrary.org/sites/8483c82f-en/index.html?itemId=/content/component/8483c82f-
en
16. https://www.embrapa.br/busca-de-noticias/-/noticia/25883950/preco-do-leite-se-recupera-no-
mercado-internacional-e-ciclo-de-crise-chega-ao-fim
Economia do desejo
Wikipédia do autor:https://pt.wikipedia.org/wiki/Eduardo_Moreira_
(empres%C3%A1rio)
Site do autor:
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Eduardo_Moreira
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