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Bases da Meditação e Mindfulness Responsável pelo Conteúdo: Prof.ª Dr.ª Camila Vorkapic Revisão Textual: Prof. Me. Claudio Brites Meditação e Saúde Meditação e Saúde • Familiarizar-se com a utilização das práticas meditativas no contexto da saúde, fornecendo conhecimentos da literatura científica sobre como e quando essas práticas vêm sendo utili- zadas em saúde, especialmente em saúde mental; • Exemplificar a utilização da meditação em processos patológicos com grande incidência atualmente, como o câncer. OBJETIVOS DE APRENDIZADO • Meditação e Saúde; • Visão Geral do Programa MBSR; • Mindfulness na Tradição Budista: Origens Conceituais da Prática em Saúde. UNIDADE Meditação e Saúde Contextualização Para que você se familiarize com a temática da utilização da meditação no contexto da saúde, sugerimos a leitura inicial dos seguintes artigos: • A Prática da meditação aplicada ao contexto da saúde. Disponível em: https://bit.ly/3kkv1h3 • Mindfulness Brasil, disponível em: https://bit.ly/37LpHhI 8 9 Meditação e Saúde Nos últimos anos, observou-se um aumento do interesse popular pela meditação. As práticas meditativas têm despertado curiosidade nas pessoas e atraído cada vez mais a atenção de médicos e pesquisadores. Hoje, a meditação é largamente oferecida a pa- cientes como terapia complementar na rede privada e na pública, por meio da Política Nacional de Práticas Integrativas e Complementares (2006). Figura 1 Fonte: Getty Images No Oriente, a meditação é vista como prática pela busca espiritual. No Ocidente, o foco são os estudos científicos, cujo objetivo é a comprovação de que a prática meditativa pode auxiliar nos processos autorregulatórios do corpo e da mente, legitimando seus benefícios e sua aplicação clínica (FERREIRA VORKAPIC; RANGÉ, 2013). Noguchi et al. (2015) fizeram um amplo levantamento de dados reunindo estudos que observaram efeitos benéficos da meditação em diferentes sistemas do corpo. Demarzo (2011) aponta a existência de vários estudos epidemiológicos e metanálises que relatam alterações significativas no que diz respeito à influência da meditação na saúde de indiví- duos saudáveis e pacientes acometidos por diversas doenças crônicas não transmissíveis. Pesquisa mostra que prática da meditação traz benefícios a saúde. Disponível em: https://glo.bo/37KlOJE Outras pesquisas têm demonstrado resultados significativos da influência da medita- ção sobre o sistema cardiovascular. Esses estudos observam efeitos positivos em testes objetivos de exercícios e qualidade de vida em pacientes cardíacos, redução de hiperten- são, hipercolesterolemia e do hábito de fumar. Uma redução na aterosclerose foi obser- vada em hipertensos afro-americanos com alto risco de complicações cardiovasculares (MENEZES; DELL’AGLIO, 2009). 9 UNIDADE Meditação e Saúde Dados referentes à redução da tensão muscular, redução do metabolismo, melhora em patologias, como a fibromialgia, em distúrbios de humor e sintomas de estresse em pacientes com câncer, aceleração do ritmo de resolução das lesões psoriáticas em pacien- tes com tratamento com luz ultravioleta estão também presentes na literatura. Redução no uso de drogas de abuso em indivíduos que passaram a praticar meditação e me- lhoras no desempenho esportivo são também descritas em outros estudos (MENEZES; DELL’AGLIO, 2009). Além disso, curtas estratégias de modificação do comportamento que incluam a meditação conduzem à redução significativa de visitas aos médicos. A eco- nomia é estimada em 200 dólares por paciente. Importante! Apesar de ser utilizada no contexto da saúde, a meditação não compreende o tratamento principal de nenhuma doença, mas tem papel complementar. Apesar de a meditação reduzir uma série de sintomas de patologias diversas, o maior impacto dessa prática é, sem dúvida, na saúde mental. A meditação como técnica de redução de estresse vem recebendo atenção como prevenção e tratamento com- plementar em saúde mental, especialmente a meditação mindfulness. Mindfulness é mais bem caracterizada em pesquisa pelo Programa de Redução do Estresse Baseado em Mindfulness (mindfulness-based stress reduction – MBSR) (KABAT-ZINN et al., 1992). O MBSR é o programa mais utilizado em pesquisas que envolvem meditação, devido a sua abordagem bem definida, sistemática e centralizada no paciente, e tem se mostrado especialmente eficaz como coadjuvante no tratamento de transtornos de humor e ansiedade. Além de aplicadas aos transtornos de ansiedade, as estratégias de mindfulness têm sido aplicadas a estados depressivos que são secundários ou não a outras patologias (SEGALL et al., 2002). Esses autores sugerem um programa de tratamento de oito ses- sões baseado em estratégias de mindfulness para transtornos depressivos recorrentes. A ideia básica é que pacientes deprimidos operam em um modo ruminativo, que eles denominam “piloto automático”, descrito como um padrão de funcionamento em que apenas se age sem prestar atenção àquilo que se faz. Um tipo de exercício pode ser a descrição de vivências relacionadas com uma uva-passa, conforme descrito por Segall et al. (2002). Nesse exercício, é solicitado que o indivíduo descreva a uva-passa, que está na palma da própria mão, como se nunca a tivesse observado antes, como se ele tivesse acabado de chegar de Marte e estivesse a observando pela primeira vez. Isso fornece uma alternativa instantânea, uma oportunidade para que possamos entrar e residir no chamado “modo consciente”. Dessa maneira, sabemos plenamente bem o que estamos fazendo enquanto estamos realmente fazendo. Do mesmo modo, em mindfulness aprende-se a observar os pensamentos e as emo- ções como experiências que vão e vêm de nossas mentes. Os pensamentos, com sua natureza impermanente, surgem, permanecem por um período e desaparecem. O desa- fio é vê-los dessa maneira. O modo atuante da mente estreita a atenção e faz com que uma pessoa se preocupe somente com os problemas que lhe afligem naquele momento, mantendo-a, assim, completamente fora de contato com a experiência direta. O modo 10 11 de ser da mente permite que uma pessoa não se apegue tanto aos próprios pensamentos ou não se esforce tanto para se livrar deles. Esse modo aumenta nosso foco de atenção para além do que é necessário para alcançar determinado objetivo e nos faz abordar a mente com curiosidade, aceitação e abertura. Ao final desta unidade, apresentaremos alguns exercícios do programa de mindfulness. O que é meditação mindfulness? Disponível em: https://bit.ly/37OjQbn A utilização de técnicas contemplativas para a saúde mental ainda é embrionária. A maioria dos tratamentos para transtornos mentais ainda funciona de modo pura- mente tradicional, incluindo algum tipo de tratamento farmacológico. No entanto, os conhecidos efeitos adversos dos medicamentos contribuem para falhas na conformidade e não aderência ao tratamento (SMITH et al., 2007). A pesquisa e a utilização de auto- estratégias terapêuticas, como a meditação, devem ser priorizadas de modo a melhorar a qualidade de vida de indivíduos acometidos por esses transtornos. Uma quantidade significativa de estudos vem mostrando a eficácia dessas técnicas na manutenção da saúde mental e no tratamento de transtornos (SMITH et al., 2007; EVANS et al., 2008; FERREIRA-VORKAPIC-RANGÉ, 2010; KABAT-ZINN, 1992). Esses estudos mostram tanto alterações no funcionamento quanto na forma de estruturas cerebrais, o que sugere valiosa contribuição terapêutica (LAZAR et al., 2005). Figura 2 Fonte: Getty Images Uma revisão sobre os efeitos da meditação na ansiedade concluiu que a meditação é promissora na redução de aspectos cognitivos e físicos da ansiedade, depressão e em sujeitos saudáveis, assim como auxilia na manutenção dessas reduções. Os autores também concluem que a meditação deve ser utilizada de forma complementar à psico- terapia, especialmente a Terapia Cognitivo-Comportamental (TCC), já que esta melhora o sentidode autodireção dos praticantes de maneira duradoura. Essas melhoras na au- toeficiência e motivação ajudam na capacidade de abordar acontecimentos estressantes não como ameaças, mas apenas como eventos reais; na redução de sintomas associa- dos e na redução da dependência de drogas ansiolíticas. Desse modo, a meditação tem grande potencial terapêutico e de prevenção de transtornos mentais, doenças crônicas, 11 UNIDADE Meditação e Saúde redução de estresse e ansiedade, aumento de compaixão e melhor qualidade de vida (FERREIRA-VORKAPIC-RANGÉ, 2013). Áreas do cérebro ativadas durante a meditação. Disponível em: https://bit.ly/2Moe7kV Visão Geral do Programa MBSR Jon Kabat-Zinn, o criador do hoje reconhecido programa MBSR, é um cientista apai- xonado pelas tradições orientais. Enquanto estudava Biologia Molecular no renomado Massachusetts Institute of Technology (MIT), o autor aprofundava seu conhecimento nas técnicas de yoga e meditação. Foi particularmente inspirado por uma palestra dada no MIT por Philip Roshi, o que o fez posteriormente decidir tornar-se um estudante do mestre zen coreano Seung Sahn. Quando tinha algum tempo livre de seu trabalho no laboratório de anatomia do Centro Médico de University of Masschusetts (UMass), Kapleau se dedicava aos estudos e retiros de meditação. Em uma dessas ocasiões, per- cebeu que o hospital era justamente o local onde as pessoas talvez mais precisassem da meditação. A ideia era simples e brilhante: levar a meditação para o hospital, pois era ali que as pessoas mais experimentavam dor. E então, em 1979, nasceu o Programa de Redução do Estresse Baseado em Mindfulness. No início, o programa era modesto. Em 1990, Kabat-Zinn lançou seu primeiro livro, Full Catastrophe Living (em português, Vivendo a catástrofe total), que continha instruções e descrições detalhadas de todos os aspectos do programa que ele havia desenvolvido no UMass. Esse livro suscitou inte- resse imediato da comunidade científica e de pacientes interessados. Em 1994, o autor lançou Wherever you go, there you are e Coming to our senses (ambos sem tradução para o português), que se tornaram campeões de vendas em poucas semanas. Nesse mesmo período, começavam a surgir trabalhos e publicações de estudos empíricos sobre a eficácia do MBSR. A base do programa de redução do estresse con- siste na prática semanal (duas vezes na semana) de diversas técnicas durante o período de oito semanas. Inclui a prática de yoga, de meditação mindfulness, exercícios para melhorar a percepção nas atividades cotidianas, métodos para melhorar a comunicação e trabalhos de casa diários que podem durar de 45 minutos a 1 hora. O programa enfa- tiza fortemente o trabalho com o corpo: scan corporal e yoga são usados para fornecer o condicionamento corporal, fortalecer o corpo e aliviar a tensão muscular. O programa pode ser adaptado a diferentes condições, mas sua base permanece constante. Ele foi desenhado de maneira a ajudar pessoas em circunstâncias diversas, incluindo ansiedade, depressão, hipertensão, problemas gastrintestinais, cardíacos, problemas de pele, entre outros. Mas também é utilizado por pessoas saudáveis que querem se beneficiar dessas práticas. Recentemente, Kabat-Zinn disse ao periódico Inquiring Mind: “Cerca de 16 mil pacientes já passaram pelo MBSR […] podemos tranquilamente dizer que qualquer indi- víduo com motivação adequada pode aprender a ser menos reativo e menos estressado através do cultivo de mindfulness”. Ele ainda completa, dizendo que o “mundo interior” de cada um pode ser influenciado por todo esse processo, o que pode levar a uma melhora na “pressão arterial, no funcionamento do sistema imunológico, no equilíbrio emocional […] e na tomada de decisões mais saudáveis na vida”. 12 13 Quando se referem ao trabalho de MBSR no Centro Médico da Universidade de Massachussets, tanto Kabat-Zinn quanto Saki Santorelli, o diretor do centro, afirmam que eles são trabalhos focados na educação, no tratamento clínico, na pesquisa e na difí- cil tarefa de transportar a meditação e mindfulness do território familiar de um monasté- rio para a grande diversidade de assuntos humanos cotidianos. Enquanto os pedidos por controle de qualidade fizeram com que o centro iniciasse um programa de certificação, os autores asseguram que uma pessoa não precisa de certificados para ensinar mindfulness: “Nós não inventamos mindfulness, então não somos seu dono ou temos algum tipo de patente. O pré-requisito para se ensinar o MBSR é uma base sólida e muito comprometi- mento com a prática pessoal”, afirma Kabat-Zinn (VORKAPIC ; RANGÉ, 2013). Mindfulness na Tradição Budista: Origens Conceituais da Prática em Saúde Conhecidas pelas pesquisas, desde os anos 1980, do Dr. Jon Kabat-Zinn, as prá- ticas de meditação mindfulness são, na verdade, técnicas meditativas tradicionais do budismo. Aliás, a prática da meditação é ainda anterior ao budismo e todas as religiões do mundo. Essas técnicas perpetuam através dos milênios porque são diretas, potentes e eficazes. Na tradição, diz-se que o chamado Caminho Óctuplo (DHAMMANANDA, 1987) dos ensinamentos de Siddhartha Gautama, o Buda, é dividido em três partes: 1. Sabedoria (entendimento correto e pensamento correto); 2. Moralidade (discurso correto, ação correta e vivência correta); 3. Cultura mental (esforço correto, mindfulness correto e concentração correta). Nesse caminho, Buda anuncia um conjunto de práticas que o indivíduo pode adotar para superar o sofrimento. A palavra “correto” (samma), usada para qualificar cada aspecto do caminho, não envolve julgamentos morais em relação a pecado ou culpa, ou padrões arbitrários impostos externamente. Esse caminho não é hierárquico ou di- tatorial, já que o certo ou o errado não são impostos. Ao contrário, o que existe são ações habilidosas ou inaptas e o caminho apenas serve como um princípio para que as pessoas sejam responsáveis por suas ações. O primeiro e principal item terapêutico no programa de ensinamentos budistas – não necessariamente em sua formulação tex- tual, mas certamente em sua aplicação prática – é o que se chama de mindfulness ou “atenção plena”. E, como a totalidade de nosso mundo virtual é construída no presente momento, é crucial que aprendamos a prestar atenção a esse momento. Prestar aten- ção parece simples, é possível pensar que estamos sempre prestando atenção, mas, na verdade, damos pouquíssima atenção ao que está acontecendo em nossa experiência presente. A mente humana está constantemente alternando entre o passado e o futuro e, como um pêndulo, passa pelo momento presente rapidamente, apenas o suficiente para garantir nossa sobrevivência. Isso não quer dizer que tenhamos de remover toda a nossa sensibilidade à variedade completa da experiência e viver em uma espécie de eterno presente. Mas, para que possamos ir além dos hábitos enraizados de nossa mente, para 13 UNIDADE Meditação e Saúde que possamos nos libertar de algumas das distorções e confusões às quais estamos cons- tantemente submetidos, é preciso treinar nossa mente para observarmos atenta e delibe- radamente os processos pelos quais construímos a experiência do passado e do futuro no momento presente. E isso é basicamente a prática de mindfulness. Mindfulness é o acesso direto ao momento presente e envolve cultivar uma intenção em estar realmente presente ao que está acontecendo naquele instante. A mente precisa ser gentilmente encorajada, por meio da prática constante de percepção real ao que está acontecendo no momento presente e imediato. Pode ser ao dirigir o carro, ao fazer uma refeição, ao caminhar, durante um retiro de meditação ou apenas sentado observando a própria respiração (VORKAPIC; RANGÉ, 2013). T. Nyanaponika (1992) explica mindfulness como “o registro exato e fundamental do objeto [da atenção]”. Geralmente, permeamos nossas percepções com julgamentos subjetivos e pensa- mento associativo. A prática de mindfulness nos ajuda a silenciar nossodiálogo interno e ver as coisas como elas realmente são, sem as rotular como boas ou ruins. Meditações do tipo insight, especialmente mindfulness, ensinam-nos a aceitar as coisas somente quando as experimentamos. Mindfulness provê o método e os recursos internos para tal. Ela permite que o meditador observe a experiência que acontece diante dele sem a necessidade de alterá-la ou justificá-la. Assim, ganha-se insight sobre a verdadeira natu- reza das coisas. Por meio dessa atenção plena, aprendemos a ver as coisas como elas realmente são, sem a intensidade dos julgamentos e preconceitos subjetivos. Dessa maneira, de acordo com os ensinamentos budistas sobre mindfulness (SEGALL et al., 2002), devemos prestar atenção a pensamentos, sensações e sentimentos à medida que eles aparecem, sem que caiamos na tendência habitual de julgá-los ou criticá-los. A ideia é fazer com que percebamos continuamente nossos pensamentos, sensações e emoções e os aceitemos pelo que são verdadeiramente. Ao adquirir essa percepção e compreensão, o indivíduo desenvolve a liberdade para se livrar de hábitos compulsivos. De maneira bem simples, mindfulness é a atenção completa aos detalhes, é o método que nos permite estar completamente absorvidos no tecido da vida, no momento. Percebe-se que a vida é feita desses momentos e que não se pode lidar com mais de um momento ao mesmo tempo. Mesmo que tenhamos memórias de experiências passadas e ideias sobre o futuro, é o momento presente que experimentamos. Assim, a prática de mindfulness é a prática de viver, de estar vivo. Na verdade, as técnicas de meditação nada mais são do que técnicas de vida. A meditação não é algo separado de nós, não estamos tentando alcançar um estado mental superior. A situação presente está intei- ramente disponível, espontânea e neutra, e podemos vê-la dessa maneira por meio da prática de mindfulness (VORKAPIC; RANGE, 2013). Tradicionalmente, a prática de mindfulness começa com shamatha. Shamatha (calm abiding ou dwelling in peace), que se refere às práticas que ajudam a acalmar a mente. Além disso, é considerado um pré-requisito para a concentração. Uma de suas principais técnicas básicas é a de mindfulness da respiração. Em shamatha, com o objetivo de estabelecimento de mindfulness, alguns aspectos iniciais são fundamentais para a prática eficaz, como postura, respiração e pensamentos. Esse é apenas o ponto de partida, de modo que, na tradição, entende-se mindfulness não como uma técnica, mas como um estado mental ou modus operandi da mente. 14 15 Figura 3 – Sua Santidade, o Dalai Lama Fonte: Wikimedia Commons Tópicos especiais Meditação e Câncer O câncer é uma das principais causas de morte no mundo. Além dos graves sintomas e efeitos colaterais do tratamento, como dor, fadiga e náuseas, os pacientes costumam en- frentar ansiedade, insegurança, desânimo, medo e estresse – que provocam impacto subs- tancial na qualidade de vida. O diagnóstico associado ao desafio psicológico é caracteri- zado por muitos desafios. O paciente precisa dar conta de ajustes diversos em sua rotina, já que há interrupção da atual situação de vida, sendo necessário reavaliar as direções e decisões a serem tomadas e ter tolerância para suportar constantes incertezas dessa fase. Muitos pacientes passam a apresentar sintomas de depressão, considerada uma resposta normal à ameaça existencial, e não um processo psicopatológico. Há casos, porém, em que esse estado surge de forma mais severa e duradoura. Nesse sentido, técnicas que fa- voreçam o fortalecimento emocional e imunológico podem ser importantes, não só para a melhoria da qualidade de vida do paciente, mas também para a eficácia da terapêutica. Conheça mais sobre os programas brasileiros que envolvem meditação em saúde. Disponível em: https://glo.bo/37KlOJE A meditação vem sendo investigada há alguns anos em razão de sua eficácia no tra- tamento dos transtornos mentais associados ao câncer (estresse, depressão, ansiedade etc.) e como determinante no controle de sintomas da doença, uma vez que favorece o fortalecimento do sistema imunológico dos pacientes. Recentemente, pesquisadores notaram que a meditação é capaz de reforçar o sis- tema imunológico tanto de indivíduos saudáveis quanto de pacientes. O processo, do ponto de vista neurofisiológico, acontece da seguinte maneira: quando trazemos à mente algo ruim, o pensamento gerado no córtex pré-frontal (área do cérebro responsável pelo 15 UNIDADE Meditação e Saúde planejamento de ações e pela tomada de decisões) rapidamente se projeta para o sistema límbico, envolvido no processamento das emoções. O hipotálamo é então ativado pelo chamado eixo hipotalâmico-pituitário-adrenal (HPA) e o cortisol (hormônio do estresse) é sintetizado. Se essa situação for recorrente – como nas ocasiões em que enfrentamos situações difíceis –, o sistema imune acaba se enfraquecendo (COHEN et al., 2004). Mas, se com a prática de técnicas contemplativas específicas esses estados mentais forem subs- tituídos por bons pensamentos, o impacto positivo no sistema imune se torna evidente. Durante a contemplação, o cérebro parece desencadear uma cascata de reações benéfi- cas que acabam produzindo um efeito ansiolítico poderoso, capaz de alterar o funciona- mento do sistema imunológico e toda a dinâmica emocional do paciente. Entre as mo- dificações neuroquímicas estão, por um lado, o aumento da atividade parassimpática, alteração nas atividades de neurotransmissores, como o GABA e a serotonina, aumento dos níveis de endorfina e a diminuição da síntese de norepinefrina; e, por outro, a di- minuição dos níveis de cortisol. Essas mudanças experimentadas durante a meditação podem se transformar em traços, levando, em longo prazo, à consolidação da prática e ao aumento das chances de prevenção de futuros episódios de ansiedade, depressão, estresse e doenças psicossomáticas, algo que parece determinante no tratamento de indivíduos com câncer (COHEN et al., 2004). Você Sabia? A Organização Mundial da Saúde (OMS) estima que em 2030 haverá 27 milhões de novos casos incidentes de câncer em todo o mundo. Em 2013, 17 milhões de pessoas morreram em decorrência da doença e 75 milhões de pessoas continuarão vivas, enfrentando a patologia. A maior incidência será em populações de baixa e média renda. Segundo o Instituto Nacional do Câncer (INCA), em 2016, no Brasil, houve aproximadamente 520 mil casos novos. Entre os homens, os tipos mais comuns da doença são os de pele (não me- lanoma), próstata, pulmão, cólon e reto e estômago. Mulheres são mais afetadas pelo câncer de pele (não melanoma), mama, colo do útero, cólon e reto e glândula tireoide. Figura 4 Fonte: Getty Images 16 17 Embora a literatura científica sobre o uso de técnicas contemplativas como a medi- tação no tratamento do câncer ainda seja limitada, alguns estudos indicam que essas práticas podem ser consideravelmente eficazes não só na redução dos sintomas de an- siedade e estresse, mas também na manutenção do estado de bem-estar. Moadel et al. (2007) separaram voluntários em tratamento de câncer em dois grupos. Em um deles, durante 12 semanas, pacientes participaram de sessões de meditação e yoga. Já os inte- grantes do outro grupo, de controle, aguardavam numa “lista de espera” para ter acesso à atividade. Ao final do experimento, os autores observaram que apenas no grupo de intervenção houve redução significativa da ansiedade e de uma variável que os pesquisa- dores denominaram “sofrimento psicológico”. O grupo controle, que não participou da prática, teve aumento do “sofrimento relacionado ao estado de humor”. Pesquisadores constataram também que todas as melhoras observadas pelos praticantes eram manti- das até três meses após o término do estudo. Diversos tipos de meditação e práticas contemplativas têm sido utilizados nesse con- texto, mas, independentemente da modalidade, as evidências apontam para ganhos psicológicos dos pacientes com câncer. Em estudocontrolado, em que foram utilizadas durante sete semanas técnicas de meditação do yoga tibetano em pacientes com linfo- ma, observaram-se melhoras significativas na qualidade do sono das pessoas que a pra- ticaram por um período de 12 meses: elas passaram a dormir melhor e por mais tempo (COHEN et al., 2004). Os autores relataram, ainda, que esses benefícios se mantinham meses após os pacientes encerrarem as sessões. Rao et al. (2008) demonstraram que praticantes de meditação em um programa inte- grado de yoga, com duração total de quatro semanas, apresentaram reduções significati- vas nos níveis de ansiedade, depressão, sofrimento e sintomas relacionados ao tratamento quimioterápico. Também foi constatada nesses casos menor redução de linfócitos T CD56 (células de defesa; NK, natural killers, na sigla em inglês) no período pós-operatório, o que sugere menos imunossupressão após a cirurgia. É importante lembrar que a supressão transitória da atividade dessas células é frequentemente observada após um procedimento cirúrgico. A disfunção passageira pode criar um ambiente favorável ao surgimento de metástase. Além disso, alterações na atividade e no número das células NK podem ser afetadas por estados de humor. Os autores observaram reduções drásticas nos níveis de linfócitos CD4, CD8 e CD56 após cirurgia apenas no grupo de controle. Figura 5 Fonte: Getty Images 17 UNIDADE Meditação e Saúde Estudos mais recentes na área exploram a eficácia dessa prática em diferentes diag- nósticos (como linfoma, câncer de mama, de ovários, de próstata), estágios da doença e modalidades de tratamento. Apesar da heterogeneidade, as práticas contemplativas são bem toleradas por todos os pacientes, e a aderência costuma ser boa. Como a me- ditação lida com o corpo e a mente, é possível considerar que os pacientes acabam se beneficiando tanto física quanto emocionalmente. Você Sabia? Instituições brasileiras tradicionais no tratamento do câncer já contam com um programa de medicina integrativa que inclui práticas como meditação e Yoga. O Hospital Albert Einstein, em São Paulo, por exemplo, criou um programa específico para os pacientes em trata- mento de câncer, o Saúde além da Cura. Coordenado pelo médico Paulo de Tarso Lima, o programa promove sessões de técnicas contemplativas. O Hospital Universitário de Brasília também oferece aulas gratuitas de meditação sob a supervisão dos médicos Juarez Castellar e Eduardo Tosta, da Faculdade de Medicina da Universidade de Brasília (UnB). Em resumo, as práticas contemplativas, como a meditação, compreendem um sistema integral que cria harmonia e equilíbrio em todos os níveis: corpo, mente e emoções. Quando esse equilíbrio é perturbado por uma doença grave, a prática pode ajudar de diversas maneiras no processo de reestruturação, uma vez que fortalece o desenvolvi- mento de recursos internos como autoconsciência, percepção de si mesmo, resiliência, estabilidade e confiança. O desenvolvimento desses atributos auxilia os pacientes a enca- rar o desafio com maior tranquilidade e autonomia, nutrindo a sensação de que, mesmo em meio ao sofrimento, é possível fazer algo por si mesmo – o que é fundamental em qualquer processo de cura. Deve-se ressaltar, entretanto, que, para observarmos os efei- tos apontados nas pesquisas, tanto na saúde quanto na doença, a constância da prática é o mais importante, assim como a metodologia. Inicia-se a meditação por pequenos períodos e deve-se ir aumentando com o tempo. Estudo recente mostra que a meditação altera fisicamente as células de sobreviventes ao câncer. Leia o estudo na íntegra, disponível em: https://bit.ly/3pSBkcL PRÁTICAS DE MINDFULNESS Práticas informais de mindfulness Levando consciência plena às atividades cotidianas: • Lavar a louça; • Lavar roupas manualmente; • Levar o lixo para fora; • Escovar os dentes; • Tomar banho; • Dirigir o carro; • Preparar refeições. Fonte: Baseado em KABAT-ZINN, 1990 18 19 PRÁTICA 1 DE MINDFULNESS Atenção a uma uva-passa: saboreando mindfulness pela primeira vez 1. Segurando Primeiro, segure a uva-passa e a mantenha na palma de sua mão ou entre o indica- dor e o dedo polegar. Focando sua atenção nela, imagine que você acabou de cair de Marte e nunca viu um objeto assim em toda a sua vida. 2. Vendo Passe alguns minutos realmente vendo o objeto, observe a uva-passa cuidadosa- mente, com atenção plena. Deixe que seus olhos explorem cada parte dela, exa- minando as peculiaridades do objeto: onde a luz bate, as regiões ocas e escuras, as rugas e as dobras e toda e qualquer assimetria e característica da fruta. 3. Tocando Gire a uva-passa por entre dedos, explorando sua textura, talvez com os olhos fechados, se isso aumentar o sentido do tato. 4. Cheirando Colocando a uva-passa embaixo do nariz, a cada inalação sinta profundamente todos os aromas e fragrâncias que aparecerem, notando, ao fazer isso, quaisquer acontecimentos interessantes que estejam ocorrendo em sua boca e estômago. 5. Pondo na boca Agora, lentamente, leve a uva-passa aos lábios, notando como sua mão e braços sabem exatamente como e onde posicioná-la. Gentilmente, coloque a fruta na boca, sem mastigá-la, notando como ela é distribuída na boca. Passe alguns momentos explorando todas essas sensações, inclusive com a língua. 6. Saboreando Quando estiver pronto, comece a mastigar a uva-passa, notando como e qual parte precisa ser mastigada. Depois, de maneira muito consciente, morda uma ou duas vezes e perceba o que ocorre posteriormente, experimentando quaisquer ondas de sabor que forem emanadas à medida que você continua mastigando. Sem engolir ainda, note as sensações cruas de sabor e textura na boca e como elas mudam com o tempo, de momento a momento, assim como as mudanças na própria fruta. 7. Engolindo Quando estiver pronto, comece a engolir a uva-passa. Veja se consegue notar a primeira intenção de engolir à medida que ela aparece, para que até mesmo essa sensação seja experimentada conscientemente antes mesmo que você engula a uva-passa. 8. Seguindo… Finalmente, veja se consegue sentir o que sobrou da uva-passa se movendo até o estômago e perceba como o corpo como um todo está se sentindo após o término desse exercício de atenção plena ao ato de comer. Fonte: Baseado em KABAT-ZINN, 1990 19 UNIDADE Meditação e Saúde PRÁTICA 2 DE MINDFULNESS Mindfulness da respiração sentado Sente-se em uma posição confortável, no chão, na cadeira ou no banquinho de medita- ção. Deixe que a coluna fique ereta e confortável. Gentilmente, vá fechando os olhos ou olhe fixamente de maneira desfocada para o chão ou para frente, na altura dos olhos. Leve sua consciência (awareness) para as mudanças nos padrões das sensações físi- cas, focando sua atenção nas sensações de tato, contato e pressão do corpo com o chão (ou cadeira). Passe um minuto ou dois explorando essas sensações. Agora, leve sua consciência (awareness) para as mudanças nos padrões das sensa- ções físicas na barriga, à medida que o ar entra e sai, da mesma maneira de quando você estava deitado. Conscientize-se das suaves sensações de alongamento da parede abdominal à me- dida que esta se expande a cada inspiração e relaxa a cada expiração. Da melhor maneira que puder, mantenha contato com essas mudanças nas sensações físicas no abdome durante toda a duração da inspiração e expiração, notando também as pequenas pausas que ocorrem naturalmente entre uma e outra. Alternativamente, focalize sua atenção em qualquer outra parte do corpo na qual você sinta as sensa- ções da respiração mais vívidas e distintas (como as narinas). Não há necessidade de tentar controlar sua respiração – simplesmente deixe que seu corpo respire sozinho. Leve essa atitude de permissão para o resto de sua experiên- cia. Nada precisa ser consertado, e nenhum estágio precisa ser alcançado. Apenas se renda a essa experiência como ela é, sem querer que seja diferente. 6. Mais cedo ou mais tarde, a mente começará a divagar e se afastar do foco da atenção(respiração), perdendo-se em pensamentos e planejamentos, e sonhará acordada. Quando isso ocorrer, quando a mente for para qualquer lugar, não se pre- ocupe, é perfeitamente normal. Essa é a natureza da mente, isso é exatamente o que ela faz, não é nenhum erro ou fracasso. Quando você notar que sua consciência (awareness) e atenção não estão mais focalizadas na respiração, dê os parabéns a você mesmo, já que foi capaz de perceber isso e trazer a mente de volta ao objeto de atenção. Você está consciente de sua experiência. Tente perceber onde sua mente esteve nesse período de divagação e traga-a gentilmente de volta para as sensações da respiração no abdome, conscientizando-se e seguindo desapegadamente cada inspiração e expiração. A divagação da mente ocorrerá algumas vezes. A cada vez, perceba onde ela es- teve e gentilmente traga sua atenção de volta à respiração, continuando de onde parou, notando os padrões das sensações físicas que se estabelecem a cada inspi- ração e expiração. Da melhor maneira que puder, traga para essa conscientização (awareness) a quali- dade da gentileza, talvez vendo essas repetidas divagações da mente como oportu- nidades para cultivar maiores paciência e aceitação para consigo mesmo e compai- xão em direção à sua experiência. Continue com a prática por 10 minutos (ou mais, se preferir), relembrando sempre que a intenção é simplesmente a de se manter consciente (aware) de sua experiência de momento a momento e utilizando a respiração como âncora para que você possa gentilmente se reconectar com o aqui e agora cada vez que sua mente se afastar. Fonte: Baseado em KABAT-ZINN, 1990 20 21 Material Complementar Indicações para saber mais sobre os assuntos abordados nesta Unidade: Livros A força da ioga na luta contra o câncer VORKAPIC, C. A força da ioga na luta contra o câncer. Revista Mente & Cérebro, 2012. Mindfulness meditação, yoga e técnicas contemplativas: um guia de uso pessoal e profissional VORKAPIC, C.; RANGÉ, B. Mindfulness meditação, yoga e técnicas contem- plativas: um guia de uso pessoal e profissional. Rio de Janeiro: Cognitiva, 2013. Neurofisiologia da meditação SIMÕES, R. S. DANUCALOV, M. A. D. Neurofisiologia da meditação. São Paulo: Phorte, 2006. O cérebro de Buda HANSON, R. O cérebro de Buda. São Paulo: Alaúde, 2012. Vídeos Tratamentos integrativos (alternativos) contra o câncer https://bit.ly/2NHxZA2 21 UNIDADE Meditação e Saúde Referências MINISTÉRIO DA SAÚDE. Portaria nº 971 de 03 de maio de 2006. Dispõe sobre a Política Nacional de Práticas Integrativas e Complementares (PNPIC) no Sistema Único de Saúde. Diário Oficial da União, 2006. COHEN L; WARNECKE C; FOULADI R; et al. Psychological adjustment and sleep quality in a randomized trial of the effects of a Tibetan yoga intervention in patients with lymphoma. Cancer, v. 100, n. 10, p. 253-2260, 2004. DEMARZO, M. M. P. Meditação aplicada à saúde. Programa de atualização em me- dicina da família e comunidade. Porto Alegre: Artmed Panamericana, 2011. EVANS, S.; FERRANDO, S.; FINDLER, M. et al. Mindfulness-based cognitive therapy for generalized anxiety disorder. Journal of Anxiety Disorders, v. 22, n. 4, p. 716- 721, 2008. FERREIRA-VORKAPIC, C.; RANGÉ, B. Mente alerta, mente tranquila: constituye el yoga una intervención terapêutica consistente para los trastornos de ansiedad? RACP, n. 19, p. 211-220, 2010. ________; ________. Mindfulness, meditação, yoga e técnicas contemplativas – Um guia para profissionais da saúde, aplicação e prática pessoal. Rio de Janeiro: Cog- nitiva, 2013. KABAT-ZINN, J.; MASSION, A. O.; KRISTELLER, J.; et al. 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