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UNIVERSIDADE REGIONAL DO CARIRI – URCA CENTRO DE ESTUDOS SOCIAIS APLICADOS – CESA CURSO DE DIREITO JOSÉ WELITON LÓCIO BÉRGAMO O FUTURO DO BLOCKCHAIN: estudo sobre a evolução da tecnologia e suas implicações para o direito CRATO – CE 2022 JOSÉ WELITON LÓCIO BÉRGAMO O FUTURO DO BLOCKCHAIN: estudo sobre a evolução da tecnologia e suas implicações para o direito Monografia submetida à Universidade Regional do Cariri para obtenção do título de bacharel em Direito. Prof. Orientador: Me. Jorge Emicles Pinheiro Paes Barreto. CRATO – CE 2022 JOSÉ WELITON LÓCIO BÉRGAMO O FUTURO DO BLOCKCHAIN: estudo sobre a evolução da tecnologia e suas implicações para o direito Esta monografia foi julgada adequada para obtenção do grau de Bacharel em Direito e aprovada em sua forma final pela banca examinadora do Curso de Direito da URCA. Data de Aprovação: _____ de ______________de 2022. Banca examinadora: Orientador: Prof. Me. Jorge Emicles Pinheiro Paes Barreto Membro Profa.º Ma. Bethsaida de Sá Barreto Diaz Gino Membro Prof.º Esp. Cláudio Joel Brito Lóssio UNIVERSIDADE REGIONAL DO CARIRI – URCA CENTRO DE ESTUDOS SOCIAIS APLICADOS – CESA CURSO DE DIREITO TERMO DE RESPONSABILIDADE AUTORAL Declaro, para os devidos fins, que eu, JOSÉ WELITON LÓCIO BÉRGAMO, aluno do Curso de Direito do Crato – URCA, matrícula nº 2017111270-9, responsabilizo-me pela Monografia apresentada como Trabalho de Conclusão do Curso de Bacharel em Direito, sob o título O FUTURO DO BLOCKCHAIN: estudo sobre a evolução da tecnologia e suas implicações para o direito, isentando, mediante o presente termo, a Universidade de qualquer responsabilização, consequência de ações atentas à “Propriedade Intelectual”, assumindo como responsabilidades civis e criminais decorrentes de tais ações. Crato – CE, _____ de___________ de 2022. JOSÉ WELITON LÓCIO BÉRGAMO Matrícula nº 2017111270-9 AGRADECIMENTOS Agradeço aos meus amigos, familiares, mestres e minha companheira. Em especial, sou grato por ter sido criado e educado pela internet. “Aceito de coração o lema: ‘O melhor governo é aquele que menos governa;’ e gostaria de vê-lo agir mais rapidamente e sistematicamente. Realizado, chega-se finalmente a isto: ‘O melhor governo é aquele que nada governa’; e quando os homens estiverem preparados para isso, esse será o tipo de governo que terão. O governo é, na melhor das hipóteses, um expediente; mas a maioria dos governos geralmente são, e todos os governos às vezes são, inconvenientes”. (Henry Thoreau). “No entanto, se a sociedade não determina a tecnologia, ela pode, principalmente através do Estado, sufocar seu desenvolvimento. Ou alternativamente, novamente principalmente por intervenção estatal, pode embarcar em um processo acelerado de modernização capaz de mudar o destino das economias, poder e bem-estar social em poucos anos. Com efeito, a capacidade ou incapacidade das sociedades para dominar a tecnologia, e particularmente as tecnologias que são estrategicamente decisivas em cada período histórico, moldam em grande parte seu destino, a ponto de podermos dizer que enquanto a tecnologia per se não determina a evolução histórica e a mudança social, a tecnologia (ou a falta dela) encarna a capacidade das sociedades de se transformar, bem como os usos a que as sociedades, sempre em processo conflituoso, decidem colocar sua potencialidade tecnológica”. (tradução nossa) (Manuel Castells). LISTA DE ILUSTRAÇÕES Figura 1 – Variação de preço das moedas FIAT em relação ao ouro, 1900 – 2017..................14 Figura 2 – Porcentagem de usuários donos de alguma criptomoeda, 2019..............................17 Figura 3 – World Economic Forum acusa alto consumo da mineração de bitcoin, 2017........22 Figura 4 – Uso de energia para mineração de bitcoin e uso total global, 2021........................22 Figura 5 – Previsão do crescimento do mercado de criptomoedas até 2028............................32 Figura 6 – Carteiras que enviaram ou receberam Terra (Luna)................................................33 Figura 7 – Desvalorização do Terra (Luna)..............................................................................34 Figura 8 – Valor em criptomoeda extraviado por criminosos, 2017 – 2021.............................36 Figura 9 – Casos de fraude usando documentos falsos e alterações no preço do BTC............38 Figura 10 – Desvalorização do Euro em relação ao Dólar........................................................49 LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS BTC Bitcoin CBDC Central Bank Digital Currency DeFi Decentralized Finance DEX Decentralized Exchange DLT Distributed Ledger Technology ECB European Central Bank FUD Fear Uncertainty Doubt IoT Internet of Things KYC Know Your Costumer LGPD Lei Geral de Proteção de Dados RESUMO Esta pesquisa concentra-se em analisar as conexões entre os experimentos com a emergente tecnologia Blockchain e sua possível relevância para o direito. Considera os impactos benéficos possibilitados pela tecnologia, bem como os negativos. O tema principal em torno da deontologia dos primeiros adotantes do Blockchain é a possibilidade de descentralização, que é a palavra principal desta pesquisa. Para entender melhor esse paralelo, foi necessário compreender os diferentes níveis de descentralização presentes na Web3, conforme entendido pelas principais partes envolvidas no desenvolvimento dessa tecnologia. Livros, documentários, entrevistas e artigos de notícias foram utilizados como referencial bibliográfico para a pesquisa. Objetiva também melhor compreensão dos objetivos dos territórios pioneiros em legislar sobre o tema. O principal impulso da tecnologia Blockchain são as criptomoedas, mas sua estrutura também promete outros fins, como garantir a privacidade de dados. O debate sobre se essa tecnologia será ou não aplicada em benefício da sociedade repousa na possível colaboração entre a arquitetura Blockchain e os Estados, considerando que a adoção convencional desta que é chamada de ''tecnologia do povo'' pode enfraquecer severamente os interesses corporativos e também o torso estatal. Portanto, o foco desta pesquisa é o caminho que leva até o surgimento de uma sociedade descentralizada, e como o Blockchain pode possibilitar novas formas de rule of law, como a Lex Cryptographia. Palavras-chave: Blockchain. Descentralização. Privacidade. Web3. Lex Cryptographia. ABSTRACT This research focuses on analyzing the connections between experiments with the emerging Blockchain technology and its possible relevance to the law. It considers the beneficial impacts made possible by the technology as well as negative ones. The main theme around the deontology of the first blockchain adopters is the possibility of decentralization, which is the main word of this research. To better understand this parallel, it was necessary to analyze the different levels of decentralization present in The Web3, as understood by the main parties involved in the development of this technology. Books, documentaries, interviews and news articles were used as bibliographic references for the research. It alsoseeks to better understand the objectives of the pioneer territories that are legislating on the subject. The main drive of Blockchain technology are cryptocurrencies, but its structure also promises other purposes, such as ensuring data privacy. The debate over whether or not this technology will be applied to the benefit of society rests on the possible collaboration between Blockchain architecture and the states, considering that the conventional adoption of this which is called ''people's technology'' can severely weaken corporate interests and also the state’s torso. Therefore, the focus of this research is the path that leads to the emergence of a decentralized society, and how blockchain can enable new forms of rule of law, such as Lex Cryptographia. Keywords: Blockchain. Decentralization. Privacy. Web3. Lex Cryptographia. Sumário 1 INTRODUÇÃO................................................................................................................11 2 POR QUE DESCENTRALIZAR É IMPORTANTE – DESCOMPORTAMENTO.14 2.1 Descentralização e Comportamento ........................................................................ 14 2.2 Registros Descentralizados: Esforços Pró Liberdade ............................................. 18 2.3 Deixando o Poder Coercitivo – Estado de Natureza Pós Cripto ............................. 19 2.4 Blockchain e Thoreau – Um Ato de Desobediência Civil ........................................ 24 3 SEGURANÇA E PRIVACIDADE – PROPRIEDADE CRIPTO................................26 3.1 Propriedade na WEB3 ............................................................................................. 26 3.2 Era de Ouro dos Golpistas – Blockchain e Criminalidade ..................................... 27 3.3 Alcance do Direito – Fora da Jurisdição ................................................................. 31 3.4 WEB2 VS WEB3 – Sucessores das Fake News ........................................................ 36 4 ERA DO CÓDIGO – LEX CRYPTOGRAPHIA: ORDEM SEM LEI.........................39 4.1 Blockchain e Confiança ............................................................................................ 39 4.2 Apesar dos Desafios, é possível regular o Blockchain?............................................ 43 4.3 Supremacia do Interesse Público e Regulação de Criptoativos .............................. 45 4.4 Futuro Incerto – Inovação Imperfeita ..................................................................... 47 5 CONSIDERAÇÕES FINAIS..........................................................................................49 REFERÊNCIAS..................................................................................................................52 GLOSSÁRIO.......................................................................................................................57 11 1 INTRODUÇÃO Em 1949, Lon L. Fuller publica o “Caso dos Exploradores de Cavernas”, na Harvard Law Review, até hoje um dos mais respeitados comentários ao direito. O autor escolheu o ano de 4300 para os acontecimentos da obra, mas certos detalhes chamam a atenção: todos os métodos jurídicos citados foram típicos da lei de seu tempo (os acontecimentos se passam na Inglaterra). Até mesmo a morosidade do judiciário é presente na história, muito semelhante ao Brasil do século XXI. Apesar do ambiente comicamente futurista, a evolução do direito não é explorada pelo autor, e a conclusão dos magistrados da obra pouco se distinguem das sentenças atuais. O motivo da inércia talvez se explique pelo fato de Fuller não prever as transformações que afetariam profundamente a sociedade e o direito. A fim de nos distanciar deste conceito inerte do direito, falar sobre os rumos de sua evolução é mais necessário que nunca. Por definição, Blockchain ou DLT (Distributed Ledger Tecnology) é um banco de dados distribuídos compartilhados entre ‘nódulos’ de uma rede de computadores; informações são armazenadas digitalmente. De forma simples, pode ser interpretada como um grande livro- registro que permite salvar e compartilhar informações, mas não pode ser editado. Tal tecnologia só é possível por conta de outra invenção, a internet. De forma ideal, o futuro do direito deve estar profundamente relacionado ao uso dessas tecnologias. O contrário significa um novo abismo que permanecerá inalcançável ao poder da justiça. Desde então, é urgente imaginar esse futuro. (CAMBRIDGE, 2022). Tal qual os personagens do “Caso dos Exploradores de Cavernas”, juristas modernos também se encontram presos em convenções. Princípios altamente específicos, doutrinas, rotinas, leis e jurisprudências colidem em nome da persuasão. Por fim, é uma ciência humana, em que a elite intelectual decide o destino da sociedade. É um sistema essencialmente não democrático. A tecnologia do Blockchain, em teoria, serve descentralização; isso significa tirar o poder das grandes instituições e entregá-lo aos usuários. Essa transferência é observada através do surgimento de um sistema financeiro paralelo às moedas centralizadas, são as criptomoedas. Governos e instituições financeiras tentam desesperadamente regular ou barrar o avanço dessa influência cuja promessa não é nada modesta: completa reestruturação social. É talvez a maior ameaça ao status quo desde o surgimento da internet. 12 Qualquer usuário com conexão à internet pode interagir com algum sistema influenciado por Blockchain, mas seu uso exige cautela quanto a proteção patrimonial e de informações privadas. O Blockchain permite a criação de terrenos no qual é possível dar valor aos patrimônios digitais. Terrenos que são férteis para crimes digitais, lavagem de dinheiro, espionagem e até mesmo crises diplomáticas causadas pela ascensão de exércitos digitais, uma faca de dois gumes que precisa ser melhor compreendida e abordada. Em sentido prático, o Blockchain possibilita o próximo passo da globalização informacional. Isso significa que mais usuários poderão usufruir deste, havendo incentivo para criação de mais sistemas. O status quo, contudo, se mantêm forte no uso atual da tecnologia. Criptoativos são frequentemente considerados tecnologia usada por criminosos e os super ricos (whales) que influenciam os mercados às custas de pequenos investidores. Essa tecnologia existe para beneficiar esse nicho ou para melhorar nossas vidas? É difícil negar que o mundo virtual está se tangibilizando através do Blockchain, mas será que a tecnologia vai prosperar no futuro? Os riscos e benefícios trazidos pelo Blockchain são intensos, o direito assim deverá ser efetivo, por isso a necessidade de haver sintonia com a tecnologia. Ante o exposto, este estudo busca analisar a convergência para esta nova fase da internet e melhor compreender quais desafios serão enfrentados, especificamente pelo usuário comum introduzido neste novo ambiente virtual. Entre os desafios, se destacam a limitada tutela jurisdicional, vulnerabilidades que facilitam a prática de crimes, e proteção à privacidade. Busca-se elucidar informações sobre a forma de funcionamento do Blockchain e compreender o motivo por trás da oposição das instituições tradicionais. Como também analisar a relevância da tecnologia na construção/implementação de novos sistemas, inclusive relacionados ao direito. Melhor elucidação sobre o processo construtivo das tecnologias de Blockchain, se regulações são cabidas/possíveis e como seremos afetados. O motivo pela qual essa tecnologia é relevante para o direito é por possibilitar a transação para a Web3, que significa maior interação dos usuários com a internet. Como o Blockchain permite a criação de plataformas como o Ethereum, com tokens únicos e de diversas utilidades dependendo da plataforma utilizada, surgem questões sobre direito de propriedade, transferência de bens, tipos de contratos (incluindo o usode smart contracts como prominente exemplo de lex informatica) e qual o papel da justiça tradicional frente aos espaços regulados por códigos. Entre essas questões, as mais urgentes são os desafios quanto a segurança e transações peer-to-peer em nível global, abordados com mais detalhes a seguir. 13 Para demonstrar a pertinência do tema, o primeiro capítulo visa abordar o uso de tecnologias baseadas em Blockchain como possibilitadores de criação de sistemas descentralizadas, notadamente por meio das criptomoedas e explora as razões que motivam tais transformações e como a experiência afeta os adotantes. Ademais, é desenvolvida uma alusão considerando o ponto de vista de Thomas Hobbes e Henry Throreu aplicado à Web3 quanto a relação dos indivíduos com o estado. O segundo capítulo analisa a segurança oferecida pelos projetos que utilizam tecnologia Blockchain, e seus diferenciais em relação aos serviços tradicionais. Adiante, é feita uma alusão histórica sobre a evolução das táticas empregadas por criminosos e como eles se beneficiam de novas tecnologias, como o Blockchain. Por fim, foi analisado o alcance dos poderes de segurança e judiciário quanto sua capacidade de tutelar direitos e possivelmente remediar danos ocorridos nesse ambiente. O terceiro capítulo analisa a ascensão da chamada Lex Cryptographia do ponto de vista dos pesquisadores Primavera Di Filipi e Aaron Wright. Adiante é analisada a principal estrutura para futuras regulações do mercado de criptoativos, a proposta Europeia conhecida por MiCa e até onde esse mercado poderá ser regulado. A discussão quanto à normatização é aprofundada ao se expor a pobreza de medidas voltadas para real proteção e liberdade dos usuários, revelando prevalência de interesse unilateral quanto a preservação dos interesses do estado. Por fim, é feita uma análise crítica quanto a imperfeição da tecnologia em face ao discurso ufanista sobre seu futuro. Os temas do estudo são aprofundados através de revisão bibliográfica, buscando melhor compreensão dos estudos pioneiros sobre o assunto e o que se pode esperar da tecnologia com base em seu estado atual, considerando prioritários os direitos de quarta geração, como à segurança online e privacidade. Para reforças o exposto, há abordagem qualitativa através de dados visuais que melhor elucidam as interações com a Web3. O estudo encerra com a revisão do papel do estado como agente regulador e possibilitador de alcance ao direito e ordem social, também se analisa sua função frente ao conceito de Lex Cryptographia, visto que essa forma de aplicação de regras é em teoria, autorregulável. Objetiva-se contrabalancear os modos de aplicação de lei do ponto de vista da supremacia do interesse público coletivo como prioritário em relação ao interesse administrativo, e como o direito pode intervir para melhor equilibrar as relações conturbadas deste novo ambiente. 14 2 POR QUE DESCENTRALIZAR É IMPORTANTE – DESCOMPORTAMENTO Este capítulo aborda o uso de tecnologias baseadas em Blockchain como possibilitadores de criação de sistemas descentralizados, notadamente por meio das criptomoedas, e explora as razões que motivam tais transformações e como a experiência afeta os adotantes. Ademais, é desenvolvida uma alusão considerando o ponto de vista de Thomas Hobbes e Henry Thoreau aplicado à Web3 quanto a relação dos indivíduos com o estado. 2.1 Descentralização e Comportamento A vanguarda da Web3 são as criptomoedas e ativos não fungíveis, representando os alicerces da economia descentralizada. O sucesso das criptomoedas, principalmente do bitcoin, deve-se ao seu crescimento não ser baseado apenas em especulação utilitária ou mesmo na reserva de um mineral valioso, mas na confiança peer-to-peer, e pela sua quantidade ser perpetuamente limitada, tal qual um mineral precioso. Diferente das moedas FIAT, que possuem valor controlado e ditado pelo estado; resultando em inflação e perda de valor. Figura 1 - Variação de preço das moedas FIAT em relação ao ouro, 1900 – 2017 Fonte: Bloomberg, Reuters 15 Esse sistema baseado em confiança governamental vem de uma noção pré-concebida de que “o governo sabe o que é melhor para nós”, conceito cada vez mais posto em xeque devido à facilidade de acesso à internet, que lança luz sobre todos os tipos de abusos governamentais, como à privacidade e violações dos direitos humanos. Primavera Di Filippi responde da seguinte forma a pergunta sobre como tornar os intermediários obsoletos: A resposta é o Blockchain. Olhando para o Bitcoin vimos que é possível criar um sistema de pagamento descentralizado que opera sem a necessidade de intermediários. E a mesma tecnologia pode ser usada em diferentes áreas de atividades, para que estas também sejam “desentermediadas’’. (DI FILIPPI, 2016). A pandemia do COVID-19 também balançou bastante a relação do povo com os governos. Segundo o Trust Barometer de 2022, pesquisa de opinião da Edelman1 , empresa especialista em pesquisa sobre percepção de confiança, apenas um terço dos brasileiros confia no atual governo. (EDELMAN, 2022). Na obra “Leviatã”, o autor Thomas Hobbes disserta sobre como o Estado pode ser representado por um enorme monstro criado pela centralização do poder que o povo confia a um soberano para governar determinado território, o processo é imperfeito, de modo que a autoridade detém o poder enquanto os limites da sua extravagância não sejam demasiado inconvenientes. Os sistemas centralizados, como bancos centrais ou reservas federais, são integrados ao ecossistema de fome eterna desses Deuses mortais: Feito isto, à multidão assim unida numa só pessoa se chama Estado, em latim civitas. É esta a geração daquele grande Leviatã, ou antes (para falar em termos mais reverentes) daquele Deus Mortal, ao qual devemos, abaixo do Deus Imortal, nossa paz e defesa. Pois graças a esta autoridade que lhe é dada por cada indivíduo no Estado, é-lhe conferido o uso de tamanho poder e força que o terror assim inspirado o torna capaz de conformar as vontades de todos eles, no sentido da paz em seu próprio país, e ela ajuda mútua contra os inimigos estrangeiros. É nele que consiste na essência do Estado, a qual pode ser assim definida: uma pessoa de cujos atos uma grande multidão, mediante pactos recíprocos uns com os outros, foi instituída por cada um como autora, de modo a ela poder usar a força e os recursos de todos, da maneira que considerar conveniente, para assegurara paz e a defesa comum. (HOBBES, 1651, p. 105). 1 EDELMAN. Edelman Trust Barometer 2022, o círculo da desconfiança, 2022. Disponível em: https://www.edelman.com.br/edelman-trust-barometer-2022. Acesso em: 18 jun. 2022. https://www.edelman.com.br/edelman-trust-barometer-2022 16 Sistemas financeiros baseados em Blockchain existem fora do ecossistema leviatã, representando, portanto, uma ameaça ao seu reinado, visto que a soberania do povo só é válida pela confiança existente entre os pares que participam e validam a rede. Dessa forma, a tecnologia, em teoria, possibilita uma economia descentralizada, votações seguras, o fim de diversos aspectos da vida burocrática, como as intermináveis visitas aos cartórios que possuem poder central reconhecer documentos. Considerando os benefícios que sistemas em Blockchain podem trazer, por qual motivo ouvimos falar tão pouco deles? Uma possível resposta está no conceito de “Misbehaving’’ ou descomportamento, estudado pela economia comportamental. O descomportamento pode ser interpretado como um ato de irracionalidade ou ineficiência ao lidar com ações ou gestão de ativos de forma desvantajosa para o gestor. O comportamento é inconsistente com o modelo idealizado de comportamento que está no coração da ciência comportamental. Por exemplo, armazenar vinho em uma adega por anos atéque eles cresçam consideravelmente em valor, mas recusando-se a vender o vinho ou mesmo comprando mais do mesmo enquanto ocasionalmente bebe alguns você mesmo. Ou mesmo reagir com tristeza ao tirar a nota 7 em uma prova que valia 10, mas reagir com felicidade ao tirar 10 em uma prova que vale 14,2. (THALER, 2016, p. 16). O exemplo dos vinhos pode ser considerado como descomportamento, pois como o indivíduo não planeja consumir as garrafas, é vantajoso e lucrativo vender o vinho que você não precisa, e comprar mais garrafas, que por sua vez, vão se transformar em um rendimento muito maior, considerando o aumento de estoque e passagem do tempo. Agora imagine inúmeras situações de descomportamento que são possibilitadas pelo modelo leviatã (centralizado); devemos ter em mente que o principal objetivo desse sistema é de se prosperar, havendo desproporção de benefícios e considerável desvantagem para quem cede sua soberania. Também é exemplo de descomportamento a seguinte situação; considere a análise comportamental de um grupo de trabalhadores de diversos países, em uma empresa que oferece duas opções de pagamento, em dólar através de transferência bancária, ou na criptomoeda USDT (dólar tether), uma stablecoin que possui o mesmo valor do dólar. No dia do pagamento, a criptomoeda entra quase que instantaneamente na conta do trabalhador, que paga taxas não escaláveis para converter e sacar o dinheiro. Já a transferência bancária leva alguns dias, e ainda possui taxas maiores que as criptomoedas, mas mesmo assim, diversos trabalhadores ainda optam pelo pagamento através da transferência bancária. 17 Em um sistema monetário baseado em Blockchain, não há operadores diretos regulando os sistemas, há, em vez disso, uma rede mundial de computadores trabalhando juntos, de forma autônoma, resultando em um sistema de confiança, eficiência, segurança e que se autorregula, funcionando em tempo real com os ativos que possui; dando maior poder ao povo. O impacto prático disso é que pessoas de todo o mundo com acesso à internet possuem uma rota de fuga das influências de seus respectivos governos, estes que são em diversos locais, ineficientes, egoístas e corruptos. O Brasil é uma dessas tragédias, com 8,2% dos usuários de internet reportando possuírem criptomoedas, sinal de desconfiança no modelo centralizado. Não é difícil entender a razão pela qual diversos indivíduos de nações em desenvolvimento depositam maior confiança neste sistema, criado majoritariamente por nações ricas. Fenômeno analisado a seguir2. (Global Web Index, 2019). Figura 2 – Porcentagem de usuários donos de alguma criptomoeda, 2019 Fonte: Global Web Index. 2 O Brasil é o representante da América Latina que reúne mais proprietários ativos de criptomoedas, à frente da Colômbia (7,7%), México (5,9%) e Argentina (4%). O ranking é liderado pela África do Sul (10,7%), seguida pela Tailândia (9,9%), Indonésia (9,5%) e Vietnã (9,1%). (ETN Network, Why is Brazil a Country of Contrasts, where the poorest use crypto the most?) 18 2.2 Registros Descentralizados: Esforços Pró Liberdade Em 2020, a produtora de documentários sul-africana Tamarin Garriety lançou um documentário sobre os impactos do ''bitcoin'' no cotidiano de pessoas de seu país. O filme explorou um lado diferente do que a mídia, professores conservadores de economia e políticos sensacionalistas tentam pregar para a comunidade mainstream3 . É mostrado como sistemas baseados em Blockchain podem resolver problemas do mundo real, melhorar a vida de pessoas reais. Em seu filme, ela entrevistou Alakanani Itireleng, uma mãe solteira sul-africana, fundadora do centro educativo SatoshiCenter, nomeado em homenagem ao ilusivo criador do bitcoin, Satoshi Nakamoto. O centro ensina a comunidade de Gaborone na Botswana sobre cripto, e a possibilidade de independência institucional. A história de Alakanani começa com seu filho, que foi diagnosticado com uma doença rara, os médicos locais disseram que não havia nada que pudessem fazer por ele, essencialmente condenando a criança. Ela não desistiu e tentou angariar fundos da maneira que pudesse na esperança de tratá-lo no exterior, seu plano eventualmente deu frutos, mas não o suficiente para salvá-lo. Ela eventualmente adquiriu bitcoins, que valorizaram em relação ao Rand Sul Africano e permitiram a ela comprar sua própria fazenda e seguir carreira como oradora em eventos focados em cripto. Esta história é sobre busca por soluções fora do que nosso sistema permite, seria improvável que Alakanani tivesse sucesso confiando apenas em sua nação ou governo, simplesmente não há recursos ou interesse para solucionar os problemas como os que ela enfrentou; desemprego e baixo investimento em saúde. A oportunidade estava fora do sistema. Outra solução prática apresentada no documentário foi o experimento que resolveu o conflito das cobranças da companhia elétrica contra consumidores de uma pequena cidade fora de Joanesburgo, Soweto. (GARRIETY, 2020). O problema é o seguinte, as companhias elétricas prestaram o serviço de energia, mas um número crescente da população o usaria sem se preocupar em pagar pelo serviço, situação similar ao Brasil: em grandes cidades como o Rio de Janeiro é de conhecimento público que 3 Professor Jorge Stolfi, Phd, da Unicamp, afirma que criptomoedas não possuem valor intrínseco e são inúteis. Disponível em: https://economia.uol.com.br/noticias/deutsche-welle/2022/07/22/criptomoedas-sao-esquema- de-piramide-nao-servem-para-nada-diz-professor-da-unicamp.htm https://economia.uol.com.br/noticias/deutsche-welle/2022/07/22/criptomoedas-sao-esquema-de-piramide-nao-servem-para-nada-diz-professor-da-unicamp.htm https://economia.uol.com.br/noticias/deutsche-welle/2022/07/22/criptomoedas-sao-esquema-de-piramide-nao-servem-para-nada-diz-professor-da-unicamp.htm 19 áreas menos favorecidas tendem a usar técnicas improvisadas para desviar eletricidade, sobrando para o resto da população pagar o excedente. (G1, 2022). A companhia elétrica decidiu pré-cobrar os clientes pela energia, método que apresenta outros desafios, como a demora no fornecimento do serviço após o pagamento e demora para que um validador humano reconheça que o pagamento foi efetuado. Cientistas do MIT então tiveram a ideia de instalar um medidor de energia em uma escola de Soweto, o equipamento está conectado a uma rede Blockchain e reconhece pagamentos através de bitcoins. A demonstração do seu funcionamento foi a seguinte, um dos pesquisadores em Boston fez o pagamento à companhia elétrica através de seu computador, e a energia foi fornecida em menos de um minuto. O projeto automatizou todo o processo e a transferência pode acontecer de qualquer lugar do mundo. Dessa forma, a questão da confiança foi parcialmente resolvida, já que há um sistema de computadores responsável por validar em tempo hábil a transação para que o serviço seja fornecido. Essa abordagem focada em solucionar problemas através da praticidade da tecnologia Blockchain mostra que sistemas descentralizados não são essencialmente uma ferramenta para que criminosos escapem da jurisdição estatal. São um meio no qual as pessoas podem se conectar para resolver problemas através de interesses e uma moeda compartilhada, a quebra de fronteiras internacionais abre possibilidades para o desenvolvimento. 2.3 Deixando o Poder Coercitivo – Estado de Natureza Pós Cripto “Assuntos humanos não podem ser sem algum inconveniente”, escreveu Thomas Hobbes ao explicar a importância do poder soberano. Através de um contrato social mutuamente acordado, se aceita obediência a uma autoridade central que representa o governo unificador. (Hobbes, 1651, p, 19). O filósofo considera que o inconveniente deve ser aceito devido à falta de umamelhor alternativa, a oposição resultaria em retorno a um estado de natureza semelhante ao vivenciado por ele, que soube dos detalhes da decapitação pública do rei Carlos I, acusado de traição. Hobbes acreditava que a obediência era devida aos líderes, a menos que seu “inconveniente” ultrapassasse os limites, como em caso de incompetência generalizada, uma vez que os resultados de uma revolução popular podem ser muito piores: 20 Quando um homem recebe algo da autoridade do povo, não o recebe do povo, seus súditos, mas recebe do povo sua soberania. Além disso, embora na eleição de um rei pra vida, o povo lhe concede o exercício de sua soberania por determinado tempo; mas caso vejam causa, eles podem tomar este antes do tempo. (Hobbes, 1650, p 122, tradução nossa). O retorno gradual ao estado da natureza descrito por Hobbes pode ser acompanhado no livro “Senhor das moscas” escrito por William Golding. Os livros contam a história de um grupo de jovens britânicos que sobreviveram a queda de um avião que caiu em uma ilha deserta longe de qualquer supervisão adulta durante uma guerra. Inicialmente, as crianças tendem a confiar na “Superioridade da Nação Inglesa” como um estado orientador inerente. Se organizam e escolhem um líder, são definidos papéis adequados a cada um para que sobrevivam até que o resgate chegue. (GOLDING, 1954). Os meninos conseguem sobreviver decentemente sob a liderança de Ralph, um garoto bem-humorado cujas opiniões fortes seriam a pólvora a culminar na separação do grupo. Na maioria das sociedades organizadas é natural que a liderança tenda a mudar; a principal oposição à autoridade de Ralph é um garoto chamado Jack, com ideias radicais sobre como os meninos devem passar seu tempo na ilha. Contra a vontade de Ralph, Jack consegue manipular os meninos a se concentrarem em caçar porcos selvagens para se alimentarem, processo que nutre a entrada em um estado de barbárie, incompatível com a sociedade em miniatura que Ralph tenta criar. O clímax do livro mostra Ralph em completo isolamento, tentando desesperadamente escapar do instinto assassino dos caçadores. O romance termina com Ralph fugindo para a praia onde ele é recebido por um único soldado, horrorizado com o que encontrou. O retorno ao status quo representado pela reinserção de uma figura de autoridade lembra as crianças de seu papel social original, eles explodiram em lágrimas depois, terminando o livro. Segundo Hobbes, é esse o momento em que a soberania das crianças deixa à barbárie, representada por Jack, e passa para o soldado. E no meio deles, com o corpo imundo, o cabelo emaranhado e o nariz precisando ser assoado, Ralph chorava o fim da inocência, as trevas do coração humano, e a queda no abismo do amigo sincero e ajuizado chamado Porquinho. O oficial, cercado por esses sons, ficou comovido e um pouco encabulado. “Virou-se de costas para dar aos meninos o tempo de se recomporem; e ficou esperando, com os olhos pousados no aprumo do cruzador ao longe”. (GOLDING. 1954. p. 194). 21 A inconveniência de seguir um líder que não representa totalmente seu interesse culmina em Jack apropriar a liderança e se corromper, levando os outros meninos com ele. O resultado da separação com a natureza idealista de Ralph foi a perda de si como ser civilizado, despertando o instinto assassino, possibilitado pelo cessar a obediência em uma figura de autoridade pouco inconveniente, moderada. Outro personagem importante do romance é o próprio senhor das moscas, a cabeça de um porco erguida por uma estaca, uma oferta feita por Jack e seu seguidor para a “Besta”. O senhor das moscas representa o que resta depois que os meninos voltam à natureza. Embora o Blockchain como tecnologia não responda totalmente à pergunta de o que fazer quanto nossa liderança inconveniente, a ferramenta oferece uma alternativa sobre como transferir parte dessa autoridade para as pessoas sem violência. O Banco Central Europeu pode ser considerado como um dos principais agentes resistentes à ascensão das criptomoedas e das futuras tecnologias baseadas em Blockchain. Num paradigma Hobbesiano, os bancos centrais representam um poderoso setor do estado, um órgão do leviatã. Tal como a separação da igreja do estado e garantia da liberdade religiosa, o poder central se enfraquece com a remoção ou enfraquecimento de um dos seus alicerces, portanto vai buscar se defender de todas as formas possíveis. Em seu estado atual, tecnologias baseadas em Blockchain como as criptomoedas ainda possuem defeitos, alguns destes que podem ser remediados com o tempo. Exemplo disso é o projeto “The Merge” do Ethereum, que promete reduzir o consumo de energia para aquisição da moeda em até 99.95% ao abandonar o sistema proof of work para o proof of stake, não sendo mais necessários computadores poderosos para realizar as minerações. Após a transição da rede Ethereum, bitcoin será a única criptomoeda notável que ainda necessita do sistema proof of work. Tais iniciativas colocam em xeque a propaganda das autoridades centrais, como o fórum econômico mundial, que tentam justificar a proibição do uso de criptomoedas por conta de possíveis alterações climáticas. 22 Figura 3 – World Economic Forum acusa alto consumo de mineração de bitcoin, 2017 A imagem acima se trata de uma postagem feita pela página oficial do Twitter do Fórum Econômico Mundial, afirmando que até 2020 o Bitcoin vai consumir mais energia que o mundo inteiro. A postagem promovia um estudo estimativo que previa que a infraestrutura necessária para manter o sistema de mineração funcionando cresceria até se tornar insustentável. A previsão não se concretizou. Figura 4 – Uso de energia para mineração de bitcoin e uso total global, 2021 Fonte: BP Statistical Review of The World’s Energy Fonte: Twitter 23 A imagem gráfica mostra a comparação de toda energia produzida mundialmente em relação ao consumo da mineração do bitcoins, conforme o BP – Statistical Review of the world Energy 2021. Além de tentar manipular a atenção pública, outra poderosa ferramenta do poder centralizado são as legislações. A principal proposta que pode vir a influenciar o resto do mundo é a MiCA (Markets in Crypto-Assets)4. Os efeitos desta lei podem em breve ser sentidos no Brasil, de forma similar a qual a General Data Protection Regulation (GDPR) influenciou a criação da Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD). Os recentes desenvolvimentos neste setor em rápida evolução confirmaram a necessidade urgente de uma regulamentação à escala da UE. O Regulamento MiCA protegerá os europeus que investiram nestes ativos e evitará a utilização abusiva de criptoativos, deixando simultaneamente espaço à inovação para manter a atratividade da UE. Este regulamento histórico porá termo à utilização desregrada de criptoativos e confirma o papel da UE enquanto definidor de normas para as questões digitais. (LE MAIRE; BRUNO, 2022, tradução nossa). Outro problema fundamental com as acusações quanto a sustentabilidade da mineração de criptomoedas é por não levar em conta dois importantes fatores. O primeiro é de que os principais projetos como Bitcoin possui um hardcap, que limita o número máximo de moedas que podem ser emitidas, ou seja, as minerações não são perpétuas. O outros é o fator de rápido desenvolvimento das tecnologias, que tal qual o Ethreum, as futuras moedas a serem mineradas serão cada vez mais econômicas. Outra possível consequência do aumento do uso de energia resultante das minerações são o incentivo para que tecnologias renováveis como painéis solares encontrem mais espaço no mercado. 4 O projeto de regulamento europeu sobre os mercados de criptoativos (“Markets in Crypto-Assets” ou “MiCA”) foi objeto de um acordo político provisório em30 de junho de 2022, no final da fase de negociações interinstitucionais (trílogos) entre o Parlamento, o Conselho e a Comissão Europeia. Este acordo é bem-vindo para a Autoridade dos Mercados Financeiros (AMF), que apela à rápida entrada em vigor deste texto que introduz um quadro harmonizado na União Europeia (UE). Fonte: AMF France, tradução nossa. 24 2.4 Blockchain e Thoreau – Um Ato de Desobediência Civil Henry David Thoreau foi um escritor americano conhecido por sua oposição ao presidente James K. Polk. Entre as decisões de Polk, estava o aumento das hostilidades que levaram à guerra com o México e conflito com a Inglaterra sobre disputas territoriais5. Polk também foi um ávido escravista, denunciando os abolicionistas como sentimentais ingênuos, reforçando a política de perseguição de escravos fugitivos para serem devolvidos aos seus mestres. Diante de um indivíduo tão inescrupuloso como líder, Thoreau defendeu que a população deveria desobedecer a autoridade do presidente em vez de apenas aceitar atos e legislações injustas. Thoreau publicou suas ideias e acabou sendo preso; em suas próprias palavras “Sob um governo que aprisiona qualquer indivíduo injustamente, o verdadeiro lugar para um homem justo é uma prisão”. (THOREAU, 1849, p, 14.) Usuários que se beneficiam do Blockchain enfrentam um dilema semelhante, países como a Venezuela vêm limitando a liberdade da população que usa as Criptomoedas como um meio de escapar do bolívar altamente inflacionado e globalmente inútil. O governo pode rastrear o uso de eletricidade nas casas para inspecionar se há algum vestígio de mineração cripto acontecendo, se a polícia encontrar os equipamentos, podem confiscá-los4. Algumas demonstrações de poder das autoridades centrais são ainda mais extremas, como o governo da Malásia destruindo publicamente equipamentos de mineração de criptomoedas avaliados em aproximadamente 1.25 milhões de dólares, sob alegações de roubo de energia. (SOUTH CHINA MORNING POST, 2021). As acusações e prisões dos mineradores da Venezuela estão intimamente relacionados com a desinformação que circula pelo mundo sobre os sistemas baseados em Blockchain. As acusações frequentemente são baseadas em falsos rumores de terrorismo, lavagem de dinheiro ou crimes computacionais. O motivo principal dessa reação do estado não é para manter a lei e ordem, mas o fato de que criptomoedas são uma ameaça expressa ao bolívar, e ao poder altamente centralizado do 5 Polk manteve uma posição pública diferente sobre a escravidão durante sua presidência (1845-1849) do que expressou em particular. Além de usar trabalho escravo na Casa Branca, Polk comprou secretamente pessoas escravizadas e separou crianças de dez a dezessete anos de suas famílias enquanto estava no cargo. Fonte: White House History.org, tradução nossa. 25 país. Mineradores também reportam extorsão direta dos seus ganhos de bitcoin pela polícia política do país, a Sebin (Servicio Bolivariano de Inteligencia Nacional). (CNBC. 2017). Essa situação não é exclusiva de países com “menos liberdade”. Os Estados Unidos estão estudando a possibilidade de proibir a operação de corretoras de criptomoedas em seu território como parte da sua política para manter sua liderança em inovações tecnológicas, e preservar o poder do dólar, em especial frente à China6. O projeto é uma bala contra essa economia em ascensão, que ameaça diretamente à supremacia do dólar americano como a principal moeda para transações internacionais. Se as criptomoedas tiverem sucesso, o dólar provavelmente sofrerá com isso, e é natural que o Leviatã tente se preservar mantendo o status quo mesmo que contra o interesse direto da população que cede sua soberania. A decisão dos EUA, no entanto, é para o seu próprio benefício, e prejudicial para o resto do mundo, visto que representa dificuldades na popularização e desenvolvimento da tecnologia e economia. (AMERICA COMPETES ACT, 2007-2022). 6 America Competes Act, página 1482. Título 2, Proibições ou Condições em Certos Fundos Transmissíveis (Prohibitions or Conditions on Certain Transmittal funds. A America COMPETES act (América Creating Opportunities to Meaningfully Promote Excellence in Technology, Education, and Science Act of 2007). É de autoria de Bart Gordon e assinado pelo presidente George W. Bush; tornou-se lei em 9 de agosto de 2007. Trata-se de um ato para “investir em inovação por meio de pesquisa e desenvolvimento e melhorar a competitividade dos Estados Unidos”. 26 3 SEGURANÇA E PRIVACIDADE – PROPRIEDADE CRIPTO Este tópico analisa a segurança oferecida pelos projetos que utilizam tecnologia Blockchain, e seus diferenciais em relação aos serviços tradicionais. Adiante, é feita uma alusão histórica sobre a evolução das táticas empregadas pelos criminosos e como eles se beneficiam de novas tecnologias, como o Blockchain. Por fim, foi analisado o alcance dos poderes de segurança pública e sistema judiciário quanto sua capacidade de tutelar direitos e possivelmente remediar danos ocorridos nesse ambiente. 3.1 Propriedade na WEB3 Propriedade de criptomoedas é sobre segurança das chaves de acesso, se você tem acesso às chaves para acessar suas moedas, elas são suas, as moedas pertencem a quem conhece as chaves. Segurança é a preocupação principal para qualquer proprietário de cripto, isso significa que, ao armazenar cripto, os usuários devem ter certeza de que ninguém mais pode acessar suas carteiras. Esse processo ainda não pode ser considerado seguro devido ao número de passos que hackers e golpistas podem adotar para roubar essas chaves. Keylogging, compartilhamento de tela, invasões de computadores e engenharia social são métodos usados para roubar chaves tanto durante o processo de criação, quanto depois que são salvas no computador ou celular. É recomendado escrever suas chaves no papel e de preferência armazená-las em um cofre com pelo menos uma cópia. Comparado com os métodos tradicionais de armazenamento de fundos, existem alguns benefícios imediatos. Por exemplo, o Brasil recentemente adotou o PIX, permitindo transações financeiras instantâneas. Embora a tecnologia seja inovadora, resultou em um pico de sequestros e outros crimes violentos com o objetivo de roubar grandes quantidades de capital rapidamente. Isso é possível, pois os smartphones essencialmente se tornaram carteiras, e os criminosos estão cientes disso. Consideremos o cenário em que um indivíduo optou por usar uma cold wallet7 em vez do smartphone para “carregar dinheiro”. Caso esse indivíduo seja sequestrado, os criminosos 7 Cold wallet ou Hardware wallet (“carteira fria” em português) é uma opção para guardar as criptomoedas que não está conectada à internet. Isso significa que, ao utilizar a carteira fria, os criptoativos ficam offline e, dessa forma, mais protegidos contra eventuais ataques cibernéticos. (Fonte: Yubb). 27 precisariam de uma conexão com a internet para acessar a carteira a fim de acessar os fundos, além disso, precisariam de uma complexa e longa senha chamada “seed’’, a qual os usuários dificilmente lembram de cor, também pode ser necessário passar por uma DEX (corretora descentralizada) antes de transferir o dinheiro. O uso de um hardware wallet torna o processo altamente inviável para esse tipo de crime, tornando esse dispositivo uma opção muito mais segura para armazenar fundos. Em seu estado atual, as criptomoedas são suscetíveis a problemas tal qual as moedas tradicionais enfrentam, principalmente na internet, mas são uma alternativa viável para diminuir crimes violentos na vida real. Outro benefício é de maior privacidade e alcance. As transações com o PIX, por exemplo, estão restritas entre usuário que possuema mesma chave e podem sofrer encargos adicionais como o IOF caso feitas internacionalmente. Já transferências de criptomoedas não possuem essa limitação, sendo necessário apenas o compartilhamento do endereço da carteira que espera receber a moeda com encargos que variam apenas da carteira digital ou corretora, mas permanece a opção mais barata e segura. (WESTERN UNION, 2022). Do ponto de vista da proteção de dados, a adoção de criptomoedas para transações cotidianas, mesmo que seja uma moeda digital nacional, deveria ser encorajada. A Lei nº 13.709, de 14 de agosto de 2018 (Lei Geral de Proteção de Dados ou LGPD), em seu artigo segundo tem entre seus fundamentos o respeito à privacidade, liberdade de expressão, informação, comunicação e opinião. Quanto à aplicação, o artigo terceiro estabelece: Art. 3º Esta Lei aplica-se a qualquer operação de tratamento realizada por pessoa natural ou por pessoa jurídica de direito público ou privado, independentemente do meio, do país de sua sede ou do país onde estejam localizados os dados, desde que: I - a operação de tratamento seja realizada no território nacional. (BRASIL, 2018). Considerando que transações financeiras através da internet exigem processamento de dados, e que para os propósitos da lei transações bancárias são equivalentes a trocas através dos sistemas de Blockchain, o método mais seguro e privado deve prevalecer. 3.2 Era de Ouro dos Golpistas – Blockchain e Criminalidade Agentes maliciosos sempre estiveram presentes em organizações humanas. A popularização do rádio e televisão possibilitaram que as informações se espalhassem de forma 28 mais rápida, as pessoas se uniram para acompanhar novelas, talk shows e outras formas de entretenimento. Considerando que esses meios de vinculação de informação se popularizaram inicialmente nas sociedades capitalistas, não é surpresa que os primeiros golpes financeiros em maça começaram nesta época. O Art. 171 do código penal brasileiro define o crime de estelionato como “Obter para si ou para outrem, vantagem ilícita, em prejuízo alheio, induzindo ou mantendo alguém em erro, mediante artifício, ardil, ou qualquer ou qualquer outro meio fraudulento’’. (BRASIL, 1940). A noção imediata de criminoso projeta a imagem do assaltante, batedor de carteira, homicida etc. Mas existe uma espécie mais refinada, capaz de operar no limite do alcance jurisdicional, comumente causando muito mais danos e quase nunca respondendo por eles. Esses agentes disruptores são os estelionatários, representando a principal ameaça criminal aos usuários da Web3. Os estelionatários que visam criptomoedas costumam ser altamente especializados, capazes de usar técnicas de engenharia social e lavagem de dinheiro para acumular altas quantias de capital sem serem rastreados. (THE CONVERSATION, 2022). Novamente, é importante frisar que esse modus operandi é tão antigo que talvez seja impossível traçar os primeiros casos. Um dos mais famosos e que em muito se assemelha com os dos estelionatários modernos, foi o caso de Gregor MacGregor, um “Con Artist’’ (Artista da Enganação), nascido em uma família nobre da Escócia. Gregor desde cedo aproveitou as vantagens de uma vida burguesa. Aos 16 entrou no exército Britânico, paraíso para jovens que buscam status, e conquistou Maria Bowater, filha de um almirante da marinha. (THE HUSTLE. 2022). Armado com ainda mais poder e influência, Gregor comprou o cargo de capitão do seu regimento, posição que em condições normais leva anos para ser alcançada. Contudo, a falta de preparo e arrogância foram o fim de sua carreira no exército, após discutir com um superior, foi obrigado a renunciar. A reputação de Gregor, de oportunista covarde, fez com que fosse excluído da herança de sua falecida esposa. Gregor tentou recuperar sua reputação ao participar da Revolução da Inglaterra, onde usava o falso alias de “Sir Gregor’’, que teria sido uma condecoração dada pela Ordem de Cristo de Portugal. Gregor usou de sua influência para comandar tropas, mas fugia das batalhas sempre que sua vida estava em risco. Seus atos de covardia só foram expostos anos mais tarde. 29 Por conta de sua atuação na revolução, conseguiu se casar com Doña Josefa Antonia Aristeguieta y Lovera, prima do revolucionário Simón Bolivar. A vida do casal foi marcada por festas na alta sociedade europeia. Em 1820, outra polêmica em torno de MacGregor se iniciou. Dessa vez um dos combatentes que presenciou as trapalhadas do pilantra divulgou um livro de 418 páginas detalhando os danos causados pelo seu abuso de poder no exército. Um dos comentários é seguinte, “Induzir alguém a novamente participar de seus projetos desesperados, é como conceder um nível de loucura que por natureza humana, mesmo que derrotada, é inconcebível”. A crítica não foi o suficiente para abalar a reputação de Gregor, que voltou para a Europa com um novo plano em mente. Na época, havia bastante agitação entre os investidores europeus sobre a América do Sul, a exploração do continente era ainda fervente, e muito comum ouvir histórias que europeus ricos estavam enchendo os bolsos às custas das novas terras. MacGregor aproveitou desse sentimento para anunciar que havia descoberto a terra perfeita, chamada por ele de Poyais. MacGregor se gabava de ser o “Cacique” de um país independente ao sul, ele criou a bandeira do país, registrou títulos, distribuiu folhetos e criou músicas sobre a grandeza de Poyais. Foi criado também um livro, que contava como em breve Poyais seria um país rico e próspero, tudo para atiçar o interesse dos investidores. MacGregor usava testemunhos de figuras aparentemente importantes, como o Capitão Wright, suposto oficial veterano da marinha inglesa, para dar seus testemunhos inédito sobre a grandeza de Poyais, mesma técnica utilizada por gurus de internet para vender produtos e serviços sem valor intrínseco. Investidores acreditavam que ao comprar um título de Poyias receberiam seu dinheiro de volta através dos juros, consequência do desenvolvimento de Poyais. Contudo, o dinheiro não estava indo para o desenvolvimento do suposto país, mas diretamente para Gregor, que tinha outros planos. Os primeiros colonos saíram de barco com esperança de encontrar o fértil país no litoral de Honduras. Ao chegar, encontraram uma terra seca e vazia. Não haviam casas, o solo era árido e pobre, animais difíceis de caçar, e a viagem de volta para a Europa era difícil, visto que só tinham “a passagem de ida”. As mortes começaram, colonos morriam de doenças como a malária, desnutrição, calor e humidade das terras da América do Sul. Os sobreviventes conseguiram alertar a Inglaterra que tudo não passava de um golpe, resgates foram enviados. 30 Os sobreviventes foram descritos da seguinte forma: “Evidentemente, eles passaram por extremo sofrimento e doenças, sua aparência era mórbida e cadavérica” (THE CALEDONIAN MERCURY, 1822). As denúncias geraram indignação da Inglaterra, tanto a economia privada quanto pública foi afetada pelo esquema de MacGregor, que havia gastado quase tudo em marketing do país falso e em um estilo de vida luxuoso. Sua estratégia de investir no marketing ao invés do produto é usada até hoje por grandes corporações, como a Apple. (FORBES, 2018). MacGregor foi acusado formalmente de fraude, mas fugiu para a Venezuela. Lá, ele foi recebido de braços abertos por ter sido um dos combatentes da revolução, e viveu confortavelmente até o dia da sua morte. As ações de MacGregor causaram a morte de aproximadamente 200 colonos ingleses. Curiosamente, muitos colonos sobreviventes acreditaram que ele era inocente, mesmo ele tendo causado a morte de seus parentes. Essa história mostra um ciclo presente até hoje, enganadores vendem ilusões, lucram bastante e somem para viver tranquilamente em alguma outra parte do mundo, quase nunca respondendo pelosseus danos. Exemplo são os esquemas de pirâmides financeiras que se popularizaram muito nos últimos anos, que com o advento das criptomoedas, se tornaram mais fáceis de aplicar. (UOL, 2022). O problema na Web3 não é a perpetuação do ciclo de fraudes, mas à proporção que elas tomam em muito menos tempo. Um dos requisitos mais recorrentes entre os grandes golpistas até a Web2 era o do carisma; atributo usado para conquistar a confiança da vítima, a maior parte do processo acontece através de engenharia social. A Web3 permite que agentes habilidosos causem grandes danos a partir do anonimato. Dois casos que ilustram essa mudança é o da “rapper do bitcoin” e o grupo Lazarus, analisados adiante. Por hora, a Web3 é um ambiente fértil para todos os tipos de cyber ataques, tanto os possibilitados por habilidade computacional quanto os de engenharia social. Essa ferramenta é poderosa nas mãos dos criminosos, pois são eles os primeiros a dominá-las, existe uma necessidade que esse ambiente seja desenvolvido de forma precisa através de uma atuação conjunta dos interesses público e privado. (FOX 5, 2022). Uma das possibilidades é o implemento de programas de instrução digital desde o ensino fundamental, informando sobre as melhores práticas de segurança digital. Por ora, pode se esperar que o fenômeno de golpes e cibercrimes da Web2 vão se intensificar após a transação mainstream para Web3. 31 3.3 Alcance do Direito – Fora da Jurisdição O poder judiciário é por natureza administrador do interesse público. O significado de interesse público difere a depender do território. A Constituição Brasileira, por exemplo, não define seu significado, apesar de citá-lo diversas vezes; mas é possível compreender as prioridades de cada área analisando onde o orçamento público é investido. É possível realizar algumas perguntas para melhor compreender quais são as prioridades: Quais são os principais crimes/atos infracionais acolhidos pelo judiciário? Qual a infraestrutura existente para lidar com crimes maiores? O serviço público está sendo bem feito? (ISMAIL; SALOMÃO, 2016). Contemplar a possível regulação da Web3 e suas inevitáveis evoluções, de um ponto de vista jurídico, não se limita apenas aos métodos de como combater possíveis crimes ou identificar qual tipificação se aplica. Se trata de um mercado que movimenta bilhões de dólares, e interesses privados precisam ser tutelados. Cada vez mais novos usuários acessam esse mercado que está em desenvolvimento constante, a previsão é que o crescimento continue também nos próximos anos. O motivo de entrada é variável, vai desde a falta de confianças em instituições financeiras centralizadas até o desejo de enriquecer rapidamente com a onda, caso de FOMO8. (FORTUNE BUSINESS INSIGHTS, 2021). Figura 5 – Previsão do crescimento do mercado de criptomoedas até 2028 Fonte: Fortune Business Insights 8 FOMO quer dizer Fear of Missing Out (Medo de perder oportunidades). Existe a variação FOBO, Fear of Better Opportunities (Medo de oportunidades melhores serem desperdiçadas). Estamos sofrendo de ansiedade causada pelo custo da oportunidade. 32 A maior parte dos projetos DeFi, além de serem altamente especulativos, não possuem estrutura segura o suficiente para suportar a adoção em massa dos usuários comuns vindos de todas as partes do mundo. Por estrutura, entende-se o seguinte: suporte para as línguas dos principais adotantes, suporte para uso de hardware wallets, transparência quanto a continuidade da rede para os próximos anos e conteúdo informativo sobre os possíveis riscos. Alguns dos métodos mais atrativos para novatos, como o Staking de moedas, são altamente susceptíveis à perda impermanente, capaz de engolir as finanças do investidor despreparado, sendo considerado um investimento agressivo. (MEDIUM, 2019). Uma consequência preocupante dessa adoção é de um possível rombo na economia mundial, com diversos investidores retirando suas economias a cada ciclo de impermanência, ou mesmo depositando suas finanças em péssimos projetos com pouca ou nenhuma chance de gerar algum valor à longo termo. Tal preocupação pode parecer alarmante, mas em 2022, criptomoedas já equivalem a 7% da economia mundial. Considerando que as primeiras cripto, os bitcoins, entraram em circulação em 2008, apenas 14 anos atrás, é possível afirmar que o crescimento e adoção dessa economia são monstruosos. (INVESTOPEDIA, 2021). Tal problema é bem ilustrado pelo caso TERRA LUNA, projeto DeFi que prometia interesse alto e seguro aos seus investidores, pois sua moeda era uma STABLECOIN suportada pelo dólar americano. A moeda chegou a ter 517,700 carteira únicas que transacionavam ativamente, e seu valor de pico foi de 535R$ antes de cair 99.9%. (STATISTA, 2022). Figura 6 – Carteiras que enviaram ou receberam TERRA (Luna) Fonte: Statista 33 Os resultados foram desastrosos, o desabe causou relatos de divórcios, suicídios, e foi um soco para a economia mundial, o caso chegou a ser amplamente discutido por legisladores dos Estados Unidos, em especial pela secretária de estado Janet Yellen, que considera a necessidade de regulação urgente. (CNBC, 2022). Figura 7 – Desvalorização do Terra (Luna) O caso possui proporções semelhantes aos danos de Poyais, mas o criador do Terra Luna, o Sul Coreano Do Kwon, não foi responsabilizado e continua desenvolvendo projetos que põem em risco a economia e vida de futuros investidores. Este é mais um cenário que expõe os riscos que os novos usuários vão enfrentar ao se aventurar com os projetos de finanças descentralizadas da Web3, e até o momento, não existe nenhuma tutela legislativa que seja satisfatória o suficiente para proteger esse grupo, e considerando que a esmagadora maioria desses serviços são de território estrangeiro, o público brasileiro é um alvo fácil. Resta apenas a informação como meio de prevenir danos. (THE WASHINGTON POST, 2022). Considere o usuário brasileiro que resolve converter suas economias em cripto, em parte ou toda, em uma corretora de criptomoedas, hot wallet9 ou similar. Segundo uma pesquisa da 9 Hot wallet, traduzido do inglês, significa “carteira quente”. As hot wallets são carteiras digitais capazes de armazenar, em espaços virtuais, as chaves privadas dos investidores em criptoativos, ou seja, funcionam conectadas à internet. (iDinheiro, 2022). Fonte: Coinmarketcap 34 revista Money, o principal objetivo de novos usuários é apenas de lucrar com uma futura alta do mercado. Considere que dias depois o usuário descobre que seus fundos foram extraviados por um terceiro mal intencionado, que se aproveitou de alguma vulnerabilidade da plataforma. Em regra, não há qualquer efetividade de uma possível persecução administrativa ou judicial iniciada por esse usuário, visto que na grande maioria dos casos, o terceiro malicioso consegue extraviar os fundos deixando apenas traços na rede Blockchain na forma de carteiras virtuais, que são como várias contas bancárias anônimas. (MONEY, 20220). Mesmo nos casos em que é possível identificar os culpados, é necessário a intervenção de profissionais altamente treinados e de medidas imediatas para possivelmente mitigar os danos causados pelo agente, recursos inalcançáveis para maior parte da população brasileira. A regra de ouro para criptomoedas é “se não são suas chaves, não são suas moedas’’, no momento em que os fundos do usuário são transferidos para outra carteira, é fim de jogo, os fundos foram roubados com sucesso e não há nada que o proprietário possa fazer, sem mais informações sobre o caso e com barreiras territoriais, o alcance jurisdicional é limitado. Nem todos que investem em DeFi conhecem os riscos, mas todos querem enriquecer. Esse sentimento é facilmente explorado pelos diversosprojetos de finanças descentralizadas criados na rede Ethreum, e até então, nenhum responsável respondeu adequadamente pelos danos causados. Alguns simplesmente somem, pois sabem que o cenário cripto é um verdadeiro faroeste eletrônico. É um espaço onde o branqueamento de capitais, extorsão, furto, chantagem e diversos outros crimes típicos foram facilitados, e dificilmente existem chances de reparação, onde a maior parte dos criminosos especializados estão em países distantes, também não há qualquer tratado internacional específico sobre o assunto cujo Brasil faça parte. O potencial é tanto que existe evidências que países como Rússia e Coreia do Norte já se armaram disso. (THE GUARDIAN, 2022). 35 Figura 8 – Valor em criptomoeda extraviado por criminosos 2017 - 2021 O ano de 2022 foi palco do segundo maior furto de criptomoedas já registrado. 622 milhões de dólares foram extraviados da bridge10 da empresa Sky Mavis; a ponte é responsável pelas transações dos usuários dentro da DEX da plataforma. Os esforços da investigação foram os mais avançados possíveis, criptógrafos trabalharam com o FBI para tentar identificar os suspeitos e rastrear os fundos. As investigações apontaram o grupo hacker Lazarus como os culpados, acusados de serem subsidiados pelo governo da Coreia do Norte. Mesmo com investimentos de ponta, apenas 5.8 milhões de dólares foram recuperados, equivalente a menos de 1% do valor roubado. (DECRYPT, 2022). 10 As bridges ou pontes de Blockchain funcionam exatamente como as pontes que conhecemos no mundo físico. Assim como uma ponte física conecta dois locais físicos, uma ponte Blockchain conecta dois ecossistemas blockchain. As pontes facilitam a comunicação entre Blockchains por meio da transferência de informações e ativos. Fonte: Ethereum.org Fonte: Chainalysis 36 3.4 WEB2 VS WEB3 – Sucessores das Fake News A ascensão em massa da internet aconteceu na sua segunda fase. O forte investimento para que o acesso à rede alcance grande parte do mundo se deu em maior parte por conta do enorme potencial econômico da tecnologia. Nesta fase, os usuários são expostos a textos e vídeos que influenciam suas decisões como consumidores. Eles podem interagir com conteúdo de qualquer parte do mundo, inclusive consumir produtos, tangíveis ou não (eletrônicos), usando cartão de crédito, transferências bancárias carteiras virtuais e outras formas de pagamento. (BRITANNICA, 2022). Contudo, o interesse na Web2 não parou com o consumo de produtos e informações para meros fins comerciais. A possibilidade de rápida difusão de informações se tornou arma política, uma nova utilidade para internet foi encontrada, moldar a opinião popular a qualquer custo. O dicionário de Cambridge define Fake News como histórias falsas que parecem ser notícias, divulgadas na internet ou usando outros meios de comunicação, geralmente criadas para influenciar opiniões políticas ou como piada. (CAMBRIDGE, 2022). A Web3 permite aos usuários mais que interação com informações, é possível adquirir bens virtuais, participar da governança de projetos DeFi e interagir com seus bens virtuais de forma criativa, como através de jogos. Ser proprietário de um novo tipo de capital virtual, e possivelmente enriquecer enquanto o mercado “está quente”, é um dos grandes atrativos e riscos da adoção. Nesta fase da internet, não é apenas a opinião pública sendo disputada, mas grande parte das finanças individuais. Quanto a segurança, os bens da Web3 são “de quem pegar’”. A falta de regulação, tanto em escala individual quanto global, permite que estados sejam subsidiem grupos especializados em explorar as vulnerabilidades das plataformas DeFi. Os milhares de fundos depositados nessas redes são uma mina de ouro a ser explorada por essas entidades. A dificuldade em controlar as proporções desse armamento é similar ao caso das Fake News da Web2, já que novas vulnerabilidades surgem mais rápido do que são corrigidas. O perigo se agrava, visto que as vulnerabilidades de ambas as webs coexistem. A junção de problemas deixa o usuário mais vulnerável do que nunca, visto que são alvo fácil para desinformação e extravio financeiro. A informação é instrumento importante para amenizar esses danos. Considerando a inevitabilidade da adoção das tecnologias baseadas em Blockchain, e ondas crescentes de 37 usuários em projetos DeFi, uma das mais efetivas práticas de segurança é de instrução dos usuários. Por um lado, não é razoável delegar esse papel de forma exclusiva às empresas, visto que ciência dos riscos pode desencorajar adoção. Mas é possível encorajar a adoção de políticas de compliance11, também chamadas de awareness training quando aplicadas no ambiente de trabalho, através do desenvolvimento de leis sob consulta de especialistas da área. A possível regulação deve ter caráter contínuo e considerar a evolução das tecnologias, com atenção especial ao caráter preventivo a ser adotado quanto a novas vulnerabilidades. (LAW TIMES, 2020). Figura 9 – Casos de fraude usando documentos falsos e alterações no preço do BTC Existem desafios para se aplicar tais políticas, visto que o preço pode ser a privacidade. Carteiras e corretoras que não adotam políticas de KYC estão mais expostas a criação de contas 11 De acordo com o dicionário Cambridge, compliance no direito significa obediência a certa lei, regra ou agir conforme acordo ou combinado. (LAW TIMES, 2020). Fonte: Onfido 38 para branqueamento de capital, venda de contas falsas, phishing12 e outras práticas fraudulentas. As medidas de segurança ainda são tão simples que em alguns casos, é possível a criação de carteiras apresentando documentos encontrados em ferramentas de pesquisa, como Google Imagens. Em outras palavras, a Web2 foi a fase da informação, e com informação veio a desinformação. Visto que os domínios da internet são de fácil acesso, grupos organizados conseguem espalhar desinformação, ou Fake News, de forma a alcançar o maior número de pessoas. As táticas da desinformação evoluíram junto com a Web2, inicialmente, era comum encontrar sua forma menos agressiva, a de postagens com informações falsas, com intuito de chamar atenção. Após a popularização do acesso à rede, as Fake News evoluíram de forma a tentar interferir em campanhas eleitorais, de saúde e outras. (GUERRA, 2019). Os Estados logo perceberam que não era possível controlar a disseminação de tais informações, visto que medidas de proibições dos meios de comunicação os quais tais informações tramitam seriam recebidas com protestos pela população. Logo, a melhor alternativa foi tentar contra atacar a desinformação. Essas medidas de resposta são encontradas através de sites de notícias, do governo e muitas vezes até em plataformas como Facebook e Instagram, onde a vinculação de Fake News é constante. De certa forma, a população possui instrumentos para combater a desinformação, mas houveram danos. Se aprofundou o vão de desconfiança entre as pessoas e o governo, e em determinados grupos demográficos, as notícias fantasiosas parecem mais plausíveis, ou oferecem maior conforto que as transmitidas pela mídia geral e estado. (THE GUARDIAN, 2022). A Web3 também usa da desinformação para fins maliciosos. Por ora, as finalidades aparentam ser primariamente financeiras, visto que a grande maioria dos usuários deste espaço possui tokens com valor monetário e de fácil transferência. No caso das organizações financiadas pelos estados, como a Lazarus na Coreia do Norte, responsáveis por cyber ataques desde 2010, a motivação tem raízes políticas. Os danos financeiros facilitados pelas tecnologias da Web3, provam que Fake News e venda de dados para grandes corporações vão deixar de ser o principal dilema dasredes. (THE ECONOMIST, 2022). 12 Phishing acontece quando os golpistas entram em contato com potenciais vítimas e as convencem a transferir fundos ou revelar suas chaves. Phishing pode acontecer por e-mail, SMS, mídia social e bate-papo. Fonte: (PHISHING.ORG, 2022). 39 4 ERA DO CÓDIGO – LEX CRYPTOGRAPHIA: ORDEM SEM LEI Este tópico analisa a ascensão da chamada Lex Cryptographia do ponto de vista dos pesquisadores Primavera Di Filipi e Aaron Wright. Adiante é analisada a principal estrutura para futuras regulações do mercado de criptoativos, a proposta MiCa, e até onde esse mercado poderá ser regulado. A discussão quanto a regulação é aprofundada ao se expor a pobreza de medidas voltadas para real proteção e liberdade dos usuários, revelando prevalência de interesse unilateral quanto a preservação dos interesses do estado. Por fim, é feita uma análise crítica quanto a imperfeição da tecnologia em face ao discurso ufanista sobre seu futuro. 4.1 Blockchain e Confiança Segundo o filósofo do direito Pierre Legendre, fundador do campo de reflexão chamado de antropologia dogmática, a existência humana e social é fundamentalmente baseada em uma lógica triangular: Deus, povo e Estado. Deus é a representação de uma entidade metafísica que encarna os valores a serem constituídos pela sociedade; o Estado brasileiro, apesar de laico em teoria, é um dos que incorpora essa entidade, a exemplo da sua invocação no preâmbulo da carta magna: Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembléia Nacional Constituinte para instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem- estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias, promulgamos, sob a proteção de Deus, a seguinte CONSTITUÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL. (BRASIL, 1988). O filósofo explica que é a partir do ethos de Deus, seu nome e perfeição, que a sociedade e o direito se legitimam, é a origem da confiança como instituto entre os homens. Esse modelo, em escala ocidental, encontrou seu ápice na idade média e persistiu até então. O sistema peer- to-peer possibilitado pelo Blockchain não se trata de novidade em questão de comunicação financeira em nível global, a inovação é permitir pela primeira vez na história que essa interação seja livre da influência direta de terceiros. A grande promessa dessa tecnologia é de em caso de adoção em massa, as únicas instituições necessárias serão o código open source e o Blockchain, 40 e em caso de adoção e desenvolvimento em demais áreas, Deus, como instituição, não será mais necessário. (LEGENDRE, 2001). O novo tipo de confiança nesse sistema, segundo os pesquisadores Primavera De Filippi e Aaron Wright, em seu livro Blockchain and the law: the rule of code, é de confiança sem confiança. Em outras palavras, a confiança na precisão e exatidão do código são o suficiente. Além do bitcoin, que é um sistema em Blockchain puramente financeiro, outros projetos foram criados. O segundo maior é o Ethereum, que opera com a moeda, ou token, ETH, e permite a criação dos smart contracts (contratos inteligentes). Os smart contracts são transações que usam “confirmadores” na rede Blockchain para verificar a validade e veracidade de uma transação. Em outras palavras, vários pontos do sistema se comunicam para confirmar que o elemento analisado é válido de acordo com os parâmetros definidos da rede, é o equivalente humano a diversas pessoas analisando a veracidade de um documento. Países como Estônia já adotam a tecnologia de Blockchain em seu sistema notarial, trazendo maior eficiência para sua rede burocrática. Vale salientar ainda que plataformas como Ethereum ainda estão “em construção”, e o potencial da rede pode ser muito maior. Outros projetos com tecnologia superior ao Etherium, os chamados de terceira geração já conseguem realizar contratos com até 2500 validadores, como caso da rede cardano, ainda bem menos estável que o Etherium em sua atual fase de desenvolvimento. (INVESTINESTONIA, 2019). Em teoria, uma possível aplicação para o direito seria o uso de smart contracts em autenticações de diversos tipos de documentos e provas em processos jurídicos públicos. Um sistema construído para essa finalidade poderia confirmar a veracidade de fotos, documentos, vídeos, assinaturas e etc. A Lex Informatica, ou código como lei, é em parte uma nova aplicação do direito. Uma mudança considerável é a revisão da burocracia vis-à-vis (cara a cara), visto que as regras seriam impostas pela rede e poderiam ter aplicações imediatas, por exemplo, em situações de crimes virtuais de menor potencial ofensivo. A questão das garantias fundamentais, no caso do Brasil, deveria ser revista para esse tipo de aplicação, ou mesmo automatizadas. A exemplo do contraditório, caso um fraudador fosse pego pelo código executando uma ação evidentemente reconhecida pelo sistema como intencionalmente fraudulenta, com vistas de prejudicar outrem, a penalidade, ou outra espécie de sanção, poderia ser imposta na hora e possivelmente revista após o infrator apresentar sua defesa. 41 Tal qual os teóricos citados ao decorrer desta exposição, não se pode na fase atual falar com certeza do futuro do Blockchain e como será sua aplicação de fato. A tecnologia, no estado atual, possui uso utilitário e pode ser acessada por qualquer indivíduo com conexão à internet, mas seu futuro ainda está em desenvolvimento, em fase de ideias. Portanto, são discutidos usos práticos dentro do que já é possível ou será possível em pouco tempo. Uma aplicação ad hoc das regras “jurídicas” impostas pelo Blockchain são as interações em plataformas virtuais conhecidas como “metaverso”. O conceito de metaverso, segundo Noel Stephenson, autor de ficção científica e primeira pessoa a usar o termo, é de “uma realidade digital onde humanos e agentes de software podem interagir entre si em vários aspectos da vida social”. Com o Blockchain, é possível a existência de plataformas virtuais “finitas”, ou seja, com quantidade limitada de terreno e moedas, de forma que os bens virtuais possuem utilidade e valor intrínseco dentro e fora deste universo, visto que criptomoedas podem ser facilmente trocadas por moedas FIAT. (STEPHENSON, 1992). Digamos que nesse cenário já existente, através de protótipos como Decentraland e Sandbox, os usuários estão expostos aos conceitos iniciais da rule of code de forma mais madura que na Web2. As interações através desta tecnologia possibilitam práticas, considerando a legislação brasileira, de crimes de injúria, racismo, ameaça e outros; também crimes financeiros, como estelionato. Caso essas situações cheguem nas autoridades brasileiras, estas pouco poderiam fazer para regular atos que em teoria, não ocorreram em território brasileiro. Desta forma, as empresas responsáveis por esses universos deveriam impor um conjunto de regras iniciais que visam barrar esse comportamento. Não se afirma nessa alusão que tais comportamentos só foram possibilitados através de plataformas da Web3, visto que as redes socias e jogos online já conectam pessoas e possibilitam tais situações. A diferença é que a automatização na Web3 é em teoria, muito mais precisa. Visto que as regras podem ser validadas também por fontes externas, melhorando sua eficiência. Para Primavera Di Filipi, existe uma máxima quanto ao direito a propriedade nos espaços que utilizam Blockchain, que o código é o único regulador que pode ou não analisar a legalidade da propriedade de algo, e o único que pode tirar. Essa teoria é válida apenas para sistemas de menor nível de centralização,
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