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EDICIÓN COLECCIONISTA TUTANKAMON TU TA N K A M O N N .º 1 EDIÇÃO BIBLIOTECA LENDA Vida, morte e maldição ÉPOCA O dia-a-dia na corte do faraó TESOUROS As últimas descobertas EGIPTOLOGIA O que falta descobrir INTERESSANTE HISTÓRIA “Possa o teu espírito viver e durar milhões de anos, tu que amas Tebas, sentado com a cara ao vento norte, os olhos cheios de felicidade” INSCRIÇÃO NUMA TAÇA DE ALABASTRO DO TÚMULO DE TUTANKAMON 3 ALBUM V oltar a casa. Era o que pediam Ísis e Neftis nesta antiga litania (papiro Berlim 3008) ao seu irmão, o deus Osíris. Voltar a casa depois da sua morte. Melhor, apesar da sua morte, porque no Antigo Egito a morte não era o fim da vida. Com esta nova série de especiais SUPER História, também desejamos voltar a casa, a uma conceção da história rica em conhecimento e aventura. Desejamos ler, com os olhos curiosos e atrevidos da infância, essas histórias passadas que nos tornaram quem somos. Histórias escritas pelos melhores especialistas em cada matéria, capazes de contagiar-nos com o seu entusiasmo, de partilhar erudição sem falar de cátedra. Textos, seguindo Walter Benjamin, sempre contra o pêlo, para não ficarmos com uma única visão das coisas, para continuarmos a interrogar-nos. Começamos com o faraó menino, Tutankamon. Se Carter disse “não tenho vergonha de confessar que, ao vê-lo, fiquei com um nó na garganta”, também não nos custa afirmar que nos emocionámos mais de uma vez com estas páginas. O saber é uma paixão. C.S. “Ó, bom rei, volta à tua casa! Apazigua o teu coração, não há qualquer dos teus inimigos! Junto a ti, as tuas duas irmãs protegem o teu féretro, chamam-te em pranto! Regressa ao teu féretro! Observa as mulheres, fala-nos! Rei, nosso senhor, afasta todas as penas dos nossos corações!” 4 Conteúdos 26 O REBELDE DE AMARNA Akhenaton, pai e antecessor de Tutankamon, rompe com a ordem religiosa. 10 EGITO ETERNO De onde vem a paixão pelo país do Nilo? 38 QUEM FOI TUTANKAMON? Como era o seu dia-a-dia? Que educação recebeu? Últimas descobertas. 48 A IMPORTÂNCIA DE UM NOME Para assinalar o regresso à ordem tradicional, o faraó mudou de nome. 54 A LENDA DA MALDIÇÃO As estranhas mortes que rodearam a descoberta cobriram-na de mistério. 58 A ÉPOCA DA XVIII DINASTIA Como se vivia naquela altura? O que se passava no Egito? 18 HOWARD CARTER Quem era este arqueólogo sem formação que conseguiu transformar a sua paixão em realidade? 5 162 TESOUROS FASCINANTES Descobriram-se mais de 5000 objetos, alguns dos quais raramente são referidos. 82 144 TÚMULOS INTACTOS Uma recapitulação das descobertas mais significativas. 68 COMO VIVIAM AS MULHERES? O que sabemos sobre elas, a partir dos escritos nos túmulos e outros textos. 88 MORTE E VIAGEM AO INFRAMUNDO As crenças sobre o Além foram mudando ao longo da história do Egito. 100 O VALE DOS REIS A última morada dos faraós tutméssidas, na margem oriental do Nilo. 124 TÚMULO MISTERIOSO O que continha e o que revelou esta extraordinária descoberta que continua a surpreender-nos. O LIVRO DOS MORTOS Datado do Segundo Período Intermédio, descreve como sobreviver no Além. 6 Cronologia de uma civilização A G E 3800 a.C. Na Mesopotâmia, consolida-se a cidade suméria de Uruk. Os seus dirigentes e habitantes inventam a burocracia, a contabilidade e o comércio externo. 3500 a.C. A desertifi cação das terras interiores do Alto Egito obriga os seus reis a mudar-se para as margens do Nilo. Cultivam os campos e estabelecem as primeiras cidades. 2950 a.C. O rei Narmer unifi ca o Egito, um facto decisivo: é o primeiro estado-nação do mundo. 2500 a.C. Inicia-se a construção das grandes pirâmides de Gizé: as de Kéops, Kefrén e Miquerinos. 2080 a.C. Grandes turbulências sociais e políticas desembocam numa guerra civil que divide o Egito. 2000 a.C. O faraó Mentuhotep II reunifi ca as Duas Terras. Começa o Império Médio. 1800 a.C. Os hicsos, procedentes dos atuais Líbano e Síria, conquistam Mênfi s. Introduzem o cavalo e o carro de guerra. Começa a XV Dinastia. 1792 a.C. O rei Hammurabi dá início ao império babilónico, na Mesopotâmia. No fi nal do reinado, ordena a execução do código legal conhecido pelo seu nome. A coroa do faraó representa a união das Duas Terras. 1600 a.C. A civilização minoica de Creta atinge o apogeu. Surge a cultura micénica, no Mediterrâneo ocidental. 1539 a.C. O faraó tebano Amósis I liberta o Egito dos hicsos e trava uma invasão núbia. 1490 a.C. A rainha Hatshepsut governa as Duas Terras durante mais de 20 anos. Sucede-lhe o afi lhado, Tutmés III. 1353 a.C. Akhenaton revoluciona o Egito ao impor o culto a Aton, o disco solar. Será o pai de Tutankamon. 1278 a.C. Ramsés II conquista a Líbia, chega a um acordo de paz com os hititas e reforça o papel do Egito como potência imperial. No seu longo reinado, são construídos vários grandes templos. 1250 a.C. Moisés e os hebreus abandonam o Egito a caminho da Palestina, a Terra Prometida. G E TT Y G E TT Y Palácio minoico de Cnossos (Creta). Akhenaton presta tributo ao disco solar. 7 S H U TT E R S TO C K A LB U M 8 Péricles num quadro do século XIX. 750 a.C. Fundação da cidade de Roma, na península Itálica. 747 a.C. Os núbios assumem o poder no Egito, liderados por Piye, caudilho de Kush. É a época dos faraós negros. 680 a.C. O rei assírio Ashardon invade o Egito e arrasa Mênfis. 587 a.C. Os exércitos babilónios capturam Jerusalém, o que provoca o exílio dos hebreus. 1100 a.C. Na sua expansão comercial pelo Mediterrâneo, os fenícios fundam Gades (atual Cádis, Espanha) e Útica (perto da futura Cartago, na atual Tunísia). 945 a.C. Os líbios chegam ao poder no Egito com o rei Sheshonq I, que submete os tebanos. 814 a.C. Fundação de Cartago, cujos habitantes se expandirão pouco a pouco pelo Mediterrâneo ocidental. A G E Ruínas de Cartago (Tunes). A LB U M 525 a.C. Os exércitos persas conquistam o Egito e revitalizam o comércio e a economia do vale do Nilo. 462–429 a.C. A era de Péricles, em Atenas, é o momento de maior esplendor cultural da Grécia clássica. 336 a.C. Alexandre, o Grande, conquista extensos territórios. Funda a cidade de Alexandria, no Egito, e chega ao Indo. 305 a.C. Após a morte de Alexandre, os generais macedónios repartem entre si o império. Ptolomeu fica com o Egito. 58–44 a.C. Júlio César conquista as Gálias, reforça o poder de Roma e invade o Egito, onde manterá uma relação sentimental com a rainha Cleópatra VII. 27 a.C. Após a morte de Marco António e Cleópatra, Otávio assegura o poder no Egito e em Roma. Passará à história como Augusto, o primeiro imperador romano. A LB U M Estátua de Augusto (Prima Porta, Roma). S H U TE R S TO C K 9 1010 egitoeete rnte rnte rnete rneete rne 1111 A G E te rnte rnte rnoote rnote rnte rnote rn Foi na sequência da campanha napoleónica no Egito (aqui, a batalha das Pirâmides, em 21 de julho de 1798, num óleo de Louis-François Lejeune) que despertou o fascínio pela milenária civilização do Nilo na velha Europa. A G E 12 O linguista e historiador Jean-François Champollion e a Pedra de Rosetta. Compilação essencial Àdireita, capa da edição original francesa da Descrição do Egito, um colossal compêndio em 21 volumes que narra todas as descobertas da primeira grande missão arqueológica interdisciplinar no país do Nilo. Esta obra foi a origem da egiptomania na sociedade europeia na primeira metade do século XIX. No que toca a civilizações antigas, é possível que hoje saibamos mais sobre a egípcia do que sobre qual-quer outra, e há um par de boas razões para isso. Por um lado, estamos a falar da mais duradoura e refinada das culturas que o mundo conheceu, com cerca de quatro milénios de história, o dobro do vigente cris- tianismo. Por outro, referimo-nos ao setor mais ativo e dinâmico do nosso interessepelo passado: a egiptologia. Pode dizer-se que a arqueologia atual nasceu no Egito e que o seu primeiro impulsionador foi Napoleão Bonaparte. As pirâmides de Gizé sempre lá estiveram, como objeto de admira- ção para o mundo, mas, até ao século XIX, o Ocidente olhava o velho universo faraónico de longe. Em 1798, a expedição militar de Napo leão ao Nilo para interromper a comu- nicação do Império Britânico com as suas possessões orientais integrava uma comitiva de 170 naturalistas, filólogos, historiadores, topógrafos e artistas que levou a cabo, durante quase três anos, a primeira grande missão arqueológica interdisciplinar realizada no mundo. Os seus resultados foram recolhidos nos 21 volumes da monumental Description de l’Égypte, uma das publicações mais impor- tantes da história. A obra, muito cuidadosa e exuberante, pesava um total de meia tonelada e lançou as buscas apaixonadas das missões francesas, inglesas, alemãs e italianas no Vale dos Reis que teriam lugar nos dois séculos seguintes. Porém, o que mais se destacou de todo aquele esforço extraordinário acabou por ser fruto do acaso. Um tenente francês chamado Bou- chard ter-se-á apercebido de inscrições numa das pedras que os seus soldados estavam a remover durante as operações de fortificação na cidade de Rosetta, localizada 50 quilómetros a leste de Alexandria. Ao observá-la com mais atenção, reparou que os sinais estavam agru- pados em três blocos distintos, como se fossem três alfabetos diferentes. Tratava-se de um edital faraónico escrito em hieróglifos, demótico e grego durante a era ptolemaica. Esse monólito seria a porta pela qual se entraria no conhecimento da escrita hieroglífica 23 anos depois, quando o linguista Jean-François Champollion (1790–1832) conseguiu terminar a decifração da pedra de Rosetta, o que significava resolver, em grande parte, o problema. De repente, os grandes pai- néis cheios de sinais hieroglíficos que cobriam as paredes dos templos e túmulos faraóni- parte, o problema. De repente, os grandes pai-parte, o problema. De repente, os grandes pai- néis cheios de sinais hieroglíficos que cobriam néis cheios de sinais hieroglíficos que cobriam as paredes dos templos e túmulos faraóni-as paredes dos templos e túmulos faraóni- A G E G E TT Y G E TT Y 13 O prussiano Karl Richard Lepsius foi um destacado arqueólogo, mas destruiu materiais e “ofereceu” ao Museu de Berlim uns 15 mil objetos. Nesta litografia colorida que ilustra um dos seus livros, vemos o interior do Templo de Philae, chamado “Pérola do Nilo” e consagrado à deusa Ísis. Napoleão foi ao país do Nilo para cortar as comunicações entre Londres e as suas possessões orientais e levou 170 naturalistas, filólogos, historiadores, pintores e desenhadores A G E 14 A pedra de Rosetta contém um edital faraónico escrito em hieroglífico, demótico e grego na era ptolemaica cos podiam desvendar os mistérios da civilização do Nilo. EGIPTOMANIA O século XIX foi a época dos grandes egiptólogos espoliadores, tal o entu- siasmo que as suas des- cobertas provocavam nas ilustradas Londres, Paris e Berlim. O Egito estava na moda, tendo triunfado personagens como Giovanni Battista Belzoni (1778–1823), um jovem italiano ruivo de dois metros de altura que trabalhou no teatro londrino e mais tarde acompanhou as tropas de Wellington na península Ibérica para animar os tempos de descanso dos soldados. Belzoni visitou o Egito e caiu nas graças do então governador otomano Mehmet Ali (c. 1769–1849), pelo que foi o primeiro europeu a realizar escavações no Vale dos Reis, o grande cemitério dos faraós. A descoberta do mag- nífico túmulo do faraó Seti I tornou-o mun- dialmente famoso e, com as suas exposições e publicações, conseguiu que o Egito se enraizasse na cultura popular britânica, tendo reunido a fabulosa coleção de peças que esteve na base da criação das salas do Museu Britânico dedicadas ao país do Nilo. Belzoni foi seguido por dezenas de outros investigadores europeus, como o inglês John Gardner Wilkinson (1797–1875), que investi- gou e catalogou os túmulos do Vale dos Reis e compilou relatórios importantes sobre o estado de muitos monumentos e túmulos, dos quais entretanto alguns se deterioraram ou desapareceram totalmente. A GENEROSIDADE DO PAXÁ Estima-se que o número de peças retiradas do Egito nos últimos dois séculos pode ser maior do que o daquelas que foram lá deixadas. Não apenas pelo saque e pelo con- trabando, mas também por vontade dos Giovanni Battista Belzoni (1778–1823) foi uma das figuras da era dos espoliadores do início do século XIX. Costumava vestir-se “à turco”, para passar despercebido. A G E 15 governantes otomanos, sobre tudo Mehmet Ali, que represen tou o sultão otomano entre 1805 e 1848. Mehmet sabia que o seu país estava na moda na Europa e que os monumentos faraónicos eram muito cobiçados. Em 1829, negou o seu apoio a França na ocupação da Argélia, tendo ofere cido, à laia de compensação, os dois obeliscos de 23 metros de altura que ladeavam a entrada do Templo de Luxor. Um chegou a Paris e foi instalado na Praça da Concórdia, onde ainda hoje se mantém; o outro acabou por ficar no Egito, devido a dificuldades de transporte. Quando lhe interessava, Mehmet Ali era muito generoso. Foi o que aconteceu com o rei da Prússia, Frederico Guilherme IV (1795–1861), que, encorajado pelo geógrafo e naturalista Alexander von Humboldt (1769–1859), patrocinou uma missão arqueológica de três anos ao Egito, comandada pelo linguista Karl Richard Lepsius (1810–1884). Os prussianos tinham um grande amor pró prio, e as suas atividades no exterior nunca podiam ser inferiores às das outras nações. Assim, a excelente dotação financeira atribuída para o efeito permitiu a Lepsius recolher materiais de todo o Egito, chegando, para isso, a recorrer a explosivos. No final da missão, Mehmet disponibilizoulhe os seus melhores homens e transportes para facilitar a espoliação: a oferta consistia num conjunto de 15 mil objetos e peças de todos os tipos (nenhum deles medío cre) que foram a base do Departamento de Antiguidades Egípcias do Museu de Berlim. SANGRIA HISTÓRICA E ARTÍSTICA França, Itália e Estados Unidos foram outros dos destinos das antiguidades egípcias durante o século XIX, que incluíam não só museus como também os magníficos salões das mansões das classes altas. Por fim, o senso comum francês acabou por prevalecer perante a sangria histórica e artística que estava a assolar o Egito. Quando o quarto filho de Mehmet Ali, Said Pachá (1822–1863), que tinha estudado em Paris, chegou ao poder, o prestigiado con servador do Museu do Louvre, Auguste Mariette (1821–1881), propôslhe criar uma instituição (o Serviço de Antiguidades) para zelar pelo património egípcio e para ter onde expor as peças mais perfeitas e delicadas. Foi lhe, então, oferecido um edifício em Bulak, antecessor do atual Museu Egípcio. Hoje, é impensável retirar do Egito qualquer peça arqueológica, a não ser que seja um presente oficial, como o belo Templo de Debod, ofere Nesta ilustração, são recriados os supostos restos do Grande Labirinto. Hoje, duvida-se de que estas ruínas lhe pertençam. GETTY 16 A esfinge e as pirâmides de Gizé são algumas das maiores maravilhas da civilização egípcia. IS TO C K cido a Espanha como retribuição pela ajuda no salvamento dos templos núbios que iriam ser inundados pelas águas da grande barra- gem de Assuão. ONDE ESTÁ O LABIRINTO? Apesar de tudo o que sabemos sobre o Antigo Egito, ainda há coisas fabulosas por aparecer. Uma das mais faladas, embora sem grandes fundamentos históricos, é o Grande Labi- rinto. Devemos a sua descrição ao grego Heródoto (c. 485–c. 425 a.C.), considerado “o pai da história”. No Livro II da sua obra pioneira, precisamente chamada História, narra o seguinte: “Construíramum labirinto perto do lago Moeris e não muito longe da Cidade dos Crocodilos. Vi este monumento e achei-o superior a qualquer descrição. Nenhuma obra ou edifício grego se lhe pode comparar: todos são inferiores. Os templos de Éfeso e de Samos são admiráveis, mas as pirâmides superam-nos em muito. No entanto, o labirinto é ainda superior. É composto por doze pátios rodeados por paredes cujas portas se encontram de frente umas para as outras, seis a norte e outras seis a sul. As salas estão duplicadas: existem 1500 subterrâneas e outras 1500 na superfície, 3000 no total. Visitei as salas superiores, de modo que falo com conhe cimento de causa, como testemunha 17 ocular. Quanto às salas subterrâneas, não sei mais do que me contaram, porque servem como sepulturas dos reis que construíram o monumento e a sua visita está vedada. As que visitei na superfície são, aos meus olhos, a coisa maior que alguma vez o ser humano construiu. É impossível não ficar boquiaberto com a variedade de corredores tortuosos que, a partir dos pátios, conduzem às salas e destas, por sua vez, a outros pátios. Cada secção do monumento é composta por uma infinidade de salas que terminam em passa- gens que levam a outros edifícios cujas salas há que atravessar para desembocar em novos pátios. Os tetos são todos de pedra, bem como as paredes, decoradas com figuras em baixo- -relevo. Em torno dos pátios, há colunas de pedra branca perfeitamente ordenadas. No ângulo em que o labirinto termina, eleva-se uma pirâmide de duzentos côvados de altura com figuras de animais esculpidas, na qual se entra por um corredor subterrâneo.” Depois de Heródoto, outros cronistas e his- toriadores, como os gregos Diodoro Sículo (c. 90–60 a.C.) e Estrabão (63 a.C.–23 d.C.), considerado “o pai da geografia”, ou o romano Caio Plínio (c. 23–79 d.C.), falaram sobre esta incomparável construção labiríntica, que supostamente ainda poderia ser visitada no século II da nossa era. A partir desta data, nunca mais se soube dela: a que havia sido a obra arquitetónica maior e mais complexa da Antiguidade dilui-se no ar como se fosse fumo. Terá sido uma lenda urbana grega. Na realidade, julga-se hoje que era o templo funerário adjacente à pirâmide de Amenófis III. A.P. “Os templos de Éfeso e de Samos são admiráveis, mas as pirâmides superam-nos em muito. No entanto, o labirinto é ainda superior”, escreveu Heródoto. Atualmente, sabemos que se trata apenas de uma lenda. IS TO C K 18 Carter no seu quarto do Hotel Waldorf-Astoria, logo depois de ter chegado no navio SS Berengaria. G E TT Y Q uem era o homem que esteve por detrás do achado do túmulo de Tutankamon, essa descoberta que marcou o momento mais espeta- cular da história da arqueologia? Era o último de onze filhos de Samuel John Carter, um reconhecido ilustrador de animais, e herdou do seu pai a paixão pelo desenho. Nascido em 1874, em Kensington (Londres), desde menino que acompanhava o progenitor nas suas visitas às luxuosas casas de campo dos seus clientes. Numa delas, conheceu o deputado William Amherst, dono de uma das coleções de arte egípcia mais relevantes de Inglaterra. Aquele encontro alimentou o seu interesse pela egiptologia e mudou-lhe a vida. Um dia, casualmente, lady Amherst conhe- ceu o biólogo Percy Newberry, um professor de egiptologia da Universidade do Cairo que procurava um desenhador, e falou-lhe de Carter, o filho. O professor, seduzido pela qualidade dos seus trabalhos, não hesitou em contratá-lo para o Egypt Exploration Fund. Nem a falta de experiência (tinha apenas 17 anos), nem a nula formação científica impe- diram Carter de se lançar à aventura. No início, nem todos reconheceram o seu potencial. Entre os seus detratores, estava o egiptólogo mais destacado na época: William Flinders Petrie, que reconhecia o seu inte- resse pela pintura e pela história natural, mas não via “utilidade em torná-lo escava- dor”. Apesar das reticências e da sua falta de confiança, Carter conseguiu tornar-se arqueólogo no terreno. A CAMINHO DA FAMA Uma vez terminada a sua colaboração com Newberry em Beni Hassan, Petrie recru- tou-o de novo graças à intervenção de lady Amherst. Uma vez que era ela quem finan- ciava as suas escavações em Amarna, foi fácil convencê-lo que o contratasse como aju- dante. Longe de se arrepender, o exigente egiptólogo ficou encantado com o novo cola- borador, a quem ensinou a escavar. Entre 1893 e 1899, Carter tornou-se o dese- nhador e fotógrafo oficial do suíço Edouard Naville. As suas representações dos baixos- -relevos do templo de Mentuhotep, em Deir el-Bahari, foram muito valorizadas pelo rigor que apresentavam. Por fim, o trabalho de Carter viria a cha- mar a atenção do responsável do Serviço de Antiguidades egípcio, Gaston Maspero, que, apesar da sua juventude (tinha na altura 25 anos) e da sua falta de formação académica, o nomeou inspetor-chefe de Antiguidades para o Alto Egito. Estreou-se no cargo com uma viagem ao sul do país que marcaria o início da sua grande oportunidade e de uma amizade para a vida. VIDA DE INSPETOR Entre as múltiplas responsabilidades de Carter, estavam as tarefas de conservação, de inspeção das escavações em curso e dos monumentos abertos ao público, de con- cessão de autorizações de escavação e da instalação de luzes elétricas nos túmulos. Absorvido pelo seu trabalho, Carter, que não costumava expressar facilmente os seus sentimentos, escrevia cartas à mãe a des- crever as tarefas de que estava incumbido. “As minhas visitas de inspeção a lugares imprevistos fazem os dias parecerem sema- nas. É uma vida estranha: chega uma carta durante a manhã e tudo muda. Nunca sei onde devo acudir. Saio na direção contrá- ria à que estava previsto, a menos que me peçam para ficar onde estou. Seja como for, é a vida de inspetor.” O arqueólogo Carter 19 20 Entre as suas atividades, estava a luta contra os roubos. Os tesouros dos faraós, escon- didos sob a areia do Vale dos Reis, eram uma tentação para os habitante pobres da região, e Carter chegou a ter de fazer de detetive. Chegou à conclusão, por exemplo, que o roubo do túmulo de Amenófis II fazia parte de uma grande rede de corrupção que incluía a Polícia. Apesar de gostar do que fazia, o sonho de Carter era escavar no Vale dos Reis. Naquele tempo, o Egito estava na moda, pelo que era relativamente fácil encontrar entusiastas da arqueologia abastados que patrocinassem uma escavação. Um deles era o advogado norte-americano Theodore M. Davis, que tinha conseguido a concessão de todo o Vale dos Reis. Davis só tinha interesse em encon- trar peças espetaculares que chamassem a atenção e de se fazer fotografar com elas. EMPURRADO PARA UM POSTO MENOR Carter supervisionou os seus trabalhos entre 1902 e 1904, mas a relação entre ambos nunca foi boa. Apesar de tudo, ainda reali- zou várias escavações extraordinárias que apresentou sob a assinatura de Davis. Entre elas, destacam-se a localização dos túmulos de Tutmés IV e de Tutmés I, o maior do Vale, ampliado para servir também de sepulcro à sua filha Hatshepsut. A prometedora carreira de Carter na altura foi bruscamente interrompida devido a um incidente. Embora haja várias versões do mesmo, a mais conhecida é aquela de que o escritor francês Christian Jacq (n. 1947) dá conta no livro La Vallée des Rois – Histoire et Découverte d’une Demeure d’Éternité (1992): “Um grupo de franceses, já muito embriagados, exigiu visitar o Serapeum “Nunca sei onde devo acudir. Saio na direção contrária à que estava previsto. É a vida de inspetor” Lord Carnarvon, a sua filha, lady Evelyn Herbert, e Howard Carter, à entrada da escada que leva ao túmulo de Tutankamon, no vale dos Reis, em 1922. Ainda não sabiam exatamente o que iriam encontrar. A LB U M G E TT Y 21 após a hora de encerramento. O guarda, de acordo com as instruções recebidas, negou- -se. A confusão instalou-se,não faltando alguma pancadaria. Carter dirigiu-se ao local e tomou partido pelo seu funcionário, expul- sando os insubordinados. Porém, eles dis- punham de apoio diplomático. Houve quem interviesse junto de Maspero, que pediu a Carter que apresentasse as suas desculpas.” Tudo indica que ele se tenha negado e, embora Maspero quisesse mantê-lo a seu lado, atri- buiu-lhe uma função menor, como inspetor da zona do delta, pelo que o arqueólogo pre- feriu demitir-se. “Tenho um temperamento fogoso, e além disso possuo aquela tenacidade que as pessoas mal intencionadas descrevem às vezes como casmurrice e que os meus ini- migos, até hoje, se alegraram a assinalar como sendo um sinal de mau caráter. Pois bem, nada posso fazer a esse respeito”, escreveu. Dizia-se que ele tinha mau génio. SOBREVIVER A VENDER PINTURAS Enquanto Davis continuava a escavar no Vale dos Reis, Carter encontrava-se sem trabalho e sobrevivia a vender as suas pinturas. A sua sorte mudou quando conheceu George Edward Stanhope Molyneux Herbert (1866– –1923), quinto conde de Carnarvon, que encarnava o estereótipo do cavalheiro inglês: distinto, rico, grande colecionador, apaixo- nado por cavalos e automóveis. Depois de sofrer um grave acidente de viação, mudou- -se para o Egito à procura de um clima seco que o ajudasse a melhorar. Como se sentia aborrecido, começou a fazer escavações sem suspeitar que acabariam por se tornar a sua grande paixão. Ilustração de como terá sido o momento em que Carter viu pela primeira vez o interior do túmulo. GETTY 22 Maspero autorizou-o a escavar num pequeno terreno que tinha comprado e onde encontrou um gato mumificado que o motivou a conti- nuar. Por isso, pediu ao Serviço de Antigui- dades um arqueólogo profissional para come- çar a desenvolver um projeto mais relevante. Maspero viu ali a oportunidade de “recuperar” Carter, algo que reforçou para sempre a ami- zade criada entre ambos. AVENTURA NO VALE DOS REIS Carter e lord Carnarvon eram os parceiros per- feitos: um egiptólogo autodidata, sem qualquer ligação a museus ou universidades, e um abas- tado cavalheiro apaixonado pela egiptologia e disposto a tornar-se um mecenas de missões arqueológicas. A dupla tinha de funcionar, e assim foi. Começaram a traba- lhar juntos em 1907, enquanto Davis escavava caoticamente na necrópole sem que Maspero interviesse, por acreditar que o vale estava “esgotado”. Por fim, em 1914, o governo autónomo (o Egito era um protetorado britânico) auto- rizou Carnarvon a escavar no Vale dos Reis. Ele quis pôr logo mãos à obra, mas a eclosão da Primeira Guerra Mundial acabou com o sonho mesmo antes de ele começar: o aristo- crata regressou a Inglaterra e tentou alistar- -se, mas sem sorte, e Carter ficou no Egito a fazer pequenas escavações no Vale dos Reis, sobretudo no triângulo formado pelos túmulos de Ramsés II, Rerenptah e Ramsés VI. O seu principal objetivo era localizar o túmulo de Tutankamon, um faraó pratica- mente desconhecido mas cuja existência na zona era dada como certa, dedicando-se de corpo e alma à descoberta da sepultura do jovem rei esquecido pela história. Sondou o terreno ao longo de vários quilómetros, e um exército de operários removeu milhares de toneladas de escombros. Ao fim de cinco anos de esforços, não obteve quaisquer resultados. Carter limpa os óleos de conservação da múmia de Tutankamon, que estavam colados à máscara funerária. G E TT Y 23 Lord Carnarvon era um homem rico, mas os seus bolsos tinham limites, e pensou aban- donar o projeto. Carter, que ainda acreditava nele, convenceu-o a realizar só mais uma temporada. Era a última oportunidade e não queria perdê-la. 4 DE NOVEMBRO DE 1922 A sua intuição levou-o junto aos acessos ao túmulo de Ramsés VI e, às dez da manhã de 4 de novembro de 1922, apareceu, debaixo da entrada do mesmo, uma escada escondida a quatro metros de profundidade. Os degraus levavam a uma porta tapada e engessada, ainda com os selos intactos. “Não havia dúvi- das de que o túmulo tinha todas as caracte- rísticas próprias da XVIII Dinastia. Pertencia a um aristocrata enterrado com autorização real ou era um esconderijo real que guar- dava, por razões de segurança, a múmia e o seu mobiliário. A menos que fosse o túmulo do rei ao qual eu tinha dedicado tantos anos de busca”, escreveu Carter. Sem perder tempo, enviou um telegrama a Carnarvon: “Fizemos uma descoberta extraordinária no Vale: um túmulo luxuoso cujos selos ainda estão intactos. Voltámos a fechá-lo até à sua chegada. Felicidades.” Car- narvon chegou vinte dias depois. Desmonta- ram a porta, pedaço a pedaço, e descobriram um corredor de pedra calcária. Havia uma segunda porta, também engessada e com os selos do rei-menino. “COISAS MARAVILHOSAS” No dia 26 de novembro, teve lugar a cena mais famosa da história da arqueologia. Carter fez um pequeno orifício na segunda porta, por onde introduziu uma vela. “No início, não via nada, mas, à medida que os meus olhos se acostumavam àquela escuridão, os porme- nores foram ganhando contornos. Animais estranhos, estátuas e ouro que brilhava por toda a parte. Durante alguns segundos, que pareceram uma eternidade aos meus compa- nheiros, fiquei mudo de espanto”, recordou. Ao seu lado, estavam lord Carnarvon, a filha deste e outro egiptólogo, de nome Callender. Em baixo, primeira página do jornal que noticiou a abertura do túmulo. À esquerda, um vista da antecâmara do túmulo. G E TT Y A LA M Y Carter convenceu Carnarvon a realizar uma última temporada, e aproveitou-a bem 24 Quando lhe perguntaram o que via, respon- deu: “Coisas maravilhosas.” Naquele instante, ainda não sabia se se tratava de um túmulo ou de um esconderijo. A dúvida volatilizou- -se três dias depois, quando abriu a porta e entrou na antecâmara. Duas estátuas guarda- vam uma montanha de objetos, incluindo um trono, e havia uma terceira porta. Três anos após a descoberta do túmulo, che- gou o momento mais aguardado: o encontro com a múmia real. Foi nessa altura que Car- ter teve consciência da importância daquele achado. Quatro placas de ouro decoradas com motivos do Livro dos Mortos rodeavam um sarcófago de grandes dimensões (5,20 por 3,35 por 2,75 metros), que encerrava outros sepulcros. O quarto e último féretro, de ouro maciço e 110 quilos de peso, continha o corpo do rei, coberto com a famosa máscara com pedras incrustadas. “Foi então que nos apercebemos realmente da beleza da nossa descoberta, quando aquela peça única e maravilhosa, essa massa de ouro fabulosamente trabalhada, resplandeceu à nossa frente. A máscara tinha uma expressão triste e serena, sugerindo a juventude prema- turamente surpreendida pela morte”, diria Carter levou dez anos a extrair e catalogar todos os objetos encontrados Howard Carter demorou dez anos a catalogar tudo o que encontrou no túmulo de Tutankamon. A LA M Y 25 Homem sem estudos Carter. Segundo ele, o aspeto da múmia era ao mesmo tempo “magnífico e terrível”, e o rosto do rei “pacífico, suave, de adolescente; era nobre e de belos traços, com os lábios desenhados com linhas muito nítidas”. Ainda havia uma quarta sala repleta de mara- vilhas: o tesouro, com cofres, caixões em miniatura, joias, pérolas, arcos, flechas... Tudo o que um rei egípcio podia desejar para poder ser feliz no Além. SONHO REALIZADO A repercussão do achado foi gigantesca. Enquanto repórteres e turistas chegavam em massa para visitar o túmulo do faraó- -menino, Carter catalogava e restaurava tudo o que tinha sido tencontrado, uma tarefa colossal que apenas terminou dez anos depois. O resto da sua vida foi dedicado a fazer um relatório preliminar que apenas listava resumidamente os objetos desco- bertos, sem análise epigráfica e técnica. De acordo com muitos especialistas, o arqueó- logo não estava à altura do trabalho ao qual havia dedicado três décadas da sua vida. Ainda assim, dada a magnitudedo empreen- dimento, ninguém teria feito melhor. Fosse como fosse, Howard Carter pôde, gra- ças a Tutankamon, realizar o seu sonho: “Foi a coisa mais maravilhosa que me foi dado viver, e, a meu ver, permanecerá inigua- lável”, afirmou. Morreu em 2 de março de 1939, em Londres, convertido no arqueólogo mais famoso do mundo. L.M G E TT Y Retirada de alguns objetos do túmulo, incluindo partes de um carro. “O meu pai foi um grande pintor de animais com algu- ma fama e a minha mãe era uma pequena mas extraor- dinária mulher, que amava o luxo, o belo, a perfeição, a elegância e o bem-fazer”, escreveu Carter, que herdou as qualidades da mãe e a paixão pelo desenho do pai. Graças a elas, conseguiu prosperar e, com a ajuda da sorte, alcançar a fama, embora a sua educação tenha sido muito limitada. Esta carência, que sempre lamentou, pode explicar o seu caráter seco e a sua ten- dência para estar constante- mente à defesa. Ele próprio reconhecia o seu tempera- mento irritável e teimoso, que os inimigos apelidavam de “mau génio”. “Nunca pude ter aulas de desenho e pintura e não era esse o meu desejo”, constataria. Ainda assim, saiu-se bem como autodidata, e aos 15 anos já ganhava a vida. Num obituário. o egiptólogo Guy Brunton escreveu: “Se Car- ter tivesse podido frequentar uma boa escola, poderia ter sido realmente uma grande figura pública.” Pilar de pedra calcária com uma estátua de Amenófis IV para ser adorada no Templo de Aton, em Karnak (Museu do Cairo). Na página oposta, o mesmo rei com o ureu, numa escultura ao estilo de Amarna. A G E 26 27 A história do Antigo Egito desenro-lou-se ao longo de quatro milénios e, embora existam e se tenham escavado (e se continuem a escavar) múltiplos documentos escritos, bem como uma infindade de espaços urbanos, militares e necrópoles, na hora de reconstruir a sua história, encontramos lacunas recorrentes em diversos períodos. Isso deve-se a vários fatores: ao acaso, ao estado de conservação dos materiais e ao interesse dos egiptólogos. No que se refere ao reinado de Akhenaton, pai de Tutankamon, temos a sorte de pos- suir numerosas fontes de informação, graças aos achados extraordinários e ao indubitável interesse dos egiptólogos por este reinado excecional, que centraram os seus estudos nos principais lugares relacionados com Akhena- ton: a sua capital, Akhet-Aton, os templos e túmulos da antiga Tebas egípcia e outros locais ao longo do vale do Nilo. Quando Akhenaton nasceu, recebeu o nome de Amenófis, como o seu pai, o faraó Ame- nófis III. A sua mãe era a Grande Esposa Real Tiy. Ele era o segundo descendente masculino do rei, que provinha de uma longa dinastia de faraós que, depois de unificarem o Egito, tinham alargado as suas fronteiras por todo o Canã e a Núbia. O Egito era a primeira potência militar, económica e cultural da região. Recebia tributos de vários reinos conquistados e presentes dos vizinhos. O jovem príncipe Amenófis não estava des- tinado ao trono; o escolhido era o seu irmão mais velho, Tutmés, que entretanto morreu. O acontecimento ocorreu antes do Primeiro Festival de Heb Sed de Amenófis III, que se celebrou no seu trigésimo ano de reinado. A partir daquele ano, ou numa data posterior, o jovem príncipe Amenófis torna-se o her- deiro e, segundo alguns especialistas, corre- gente juntamente com o seu pai, se bem que haja debate entre os egiptólogos sobre se na realidade este reinado conjunto terá ou não acontecido PRIMEIROS ANOS DE REINADO O príncipe subiu ao trono como Amenófis IV e escolheu para Grande Esposa Real Nefertiti, que era filha de Ay, um alto funcionário da corte que foi adquirindo cada vez mais res- O rebelde de Amarna A G E 28 ponsabilidades até chegar a ser faraó, três décadas depois deste casamento. Durante os primeiros anos do seu reinado, Amenófis IV demonstrou a sua predileção por uma divin- dade que se foi desenvolvendo nos círculos palacianos, pelo menos desde o reinado do seu avô, Tutmés IV: Aton. Tratava-se de uma das numerosas formas do deus Rá, o deus-Sol: em concreto, o disco solar, uma das suas mais recentes representações e cujos raios termi- nam numas mãos que tocam exclusivamente no rei e na rainha, a quem concede a vida e a prosperidade. Em Karnak, o principal lugar de culto de Amon-Rá, rei dos deuses, o jovem Amenófis IV desenvolveu um ambicioso plano arquite- tónico no qual se podem apreciar as ino- vações iconográficas que foram típicas do seu reinado. Entre elas, a partir do terceiro ano, Aton passou a estar referido no cartucho real, de tal forma que ficava implícito que este deus se equiparava ao rei terreno. Por outro lado, as instituições dos deuses tradicionais ficaram economicamente subordinadas ao culto de Aton. Esta mudança, a juntar ao facto de Amon deixar de ser a principal divindade relacionada com a realeza, teve importantes consequências políticas que, com toda a probabilidade, revolucionaram a estabilidade interna do estado egípcio. PERÍODO DE AMARNA: 1349–1336 A.C. Estas e outras alterações implicaram um confronto direto com a ordem religiosa estabelecida. Nos primeiros meses do quinto ano do seu reinado, Amenófis IV deu mais um passo que afetava a figura do faraó: a mudança de nome. De Amenófis (Amenho- tep), que significava “Amon está satisfeito”, passou a chamar-se Akhenaton (“Benéfico para Aton”), eliminando desta maneira o teónimo Amon do nome real. A sua principal mulher, Nefertiti, acrescentou também ao seu nome o cartucho de Neferneferuaton (“A mais bela de Aton”). Pouco depois, Akhenaton percorreu o país para encontrar um lugar puro para a sua nova capital. Encontrou-o no Médio Egito, próximo do lugar onde estabeleceria a loca- lidade de Amarna, perto da atual cidade de Minya, e a meio caminho entre Mênfis e Tebas. Era um grande anfiteatro rochoso que ainda não tinha sido ocupado. Nos montes a leste do rio Nilo, a montanha reproduzia em cada amanhecer a elevação do Sol entre outras duas montanhas, assemelhando-se ao ideo- grama utilizado para a palavra “horizonte”. Isto tinha uma dupla leitura: por um lado, relacionava-se com o conceito egípcio de renascimento diário; por outro, vinculava a nova capital ao deus Rá e ao seu ciclo diurno. G E TT Y G E TT Y O afastamento de Amon como principal divindade, substituído por Aton, o disco solar, provocou grande instabilidade À esquerda, Akhenaton e Nefertiti com três das suas filhas (baixo-relevo amarniense de cerca de 1350 a.C.). À direita, Akhenaton em esfinge numa oferenda ao Sol como Aton (baixo-relevo amarniense, 1373 a 1357 a.C.). 29 Como não podia deixar de ser, a cidade foi chamada de Akhet-Aton (“O horizonte de Aton”). NOVA E EFÉMERA CAPITAL A nova cidade foi delimitada com 14 estelas visíveis para quem se aproximasse da capital vindo de qualquer direção. Incluía não só o anfiteatro, onde se ergueria o centro urbano e as necrópoles, como também as terras para a agricultura. No total, Akhet-Aton teria uns 160 quilómetros quadrados e nela ter-se-ão estabelecido entre 20 e 50 mil pessoas, nos seus dias de maior glória. Porém, Akhet- -Aton teve uma vida efémera, pois foi aban- donada por Tutankamon, cerca de 21 anos depois da sua fundação. A partir de então, a zona não voltou a ter grande densidade populacional, mas tornou-se um local de exceção para os arqueólogos. Amarna permite obter uma imagem clara da organização de uma capital durante a segunda metade do segundo milénio a.C. Após a delimitação do espaço, Akhenaton investiu boa parte dos recursos do estado na construção de todo um complexo urbano e funerário. No que respeita ao primeiro, a cidade carecia de um planeamento prévio; foi traçada numa franja de deserto relativamente plana, à volta de uma via já existente (o “Caminho Real”), que ligava o norte ao sul do país. Na atualidade, o sítio de Amarna divide-se em várias áreas para facilitar a sua compreensão.De norte para sul, encontram-se a Cidade Norte, o Palácio Norte, o Bairro Norte, a Cidade Central e os Bairros do Sul. A leste destas áreas, foram construídos outros centros sub- sidiários, entre os quais se destaca o povoado dos artesãos que se encarregavam da cons- trução dos túmulos reais. Este povoado, de forma quadrangular e muralhado, possuía 68 casas com dimensões idênticas, à exceção de uma, de maior tamanho, que seria ocupada pelo responsável pelos trabalhadores. Estes operários, pagos pelo estado, eram os melhores construtores e artistas de todo o Egito e foram, por certo, transferidos de um povoado seme- lhante que existia em Tebas. EDIFÍCIOS MAGNÍFICOS Para lá dos aglomerados de casas, o Caminho Real tornou-se uma avenida retilínea à volta da qual foram construídos os edifícios mais importantes de Akhet-Aton: o Grande Tem- plo de Aton, o Grande Palácio, a Casa do Rei e o Pequeno Templo de Aton. O Grande Templo de Aton deve ter sido um edifício espetacu- lar, como testemunham os seus alicerces. Infelizmente, como quase todos os edifícios construídos em pedra, este também foi des- mantelado na época de Ramsés II. Tinha uma superfície delimitada de cerca de 17 hectares, nos quais se erguiam pilones com mastros decorados, que davam acesso a uma colu- nata. À sua volta, havia centenas de altares ao ar livre, onde se realizavam as oferendas ao deus Aton. Estava propositadamente orientado segundo o eixo leste-oeste, de forma a seguir sempre o ciclo do Sol no céu. A confi- guração do templo, que ficou inacabado, era completamente inovadora e contrastava com os templos egípcios que durante milénios G E TT Y Rá, o deus Sol, foi a divindade suprema do Egito desde, pelo menos, meados do terceiro milénio a.C. Tinha muitas formas divinas: por exemplo, ao meio-dia, demonstrava todo o seu poder. 30 G E TT Y G E TT Y Apesar de ter perdido uma grande quantidade de pedra e construções inteiras, a Amarna abandonada (em cima e à direita), depois de ter sido utilizada como capital, é uma grande fonte de informação sobre a sua organização. tinham sido construídos no Egito. Enquanto os edifícios anteriores eram espaços fechados e escuros, os templos erguidos por Akhenaton procuravam que os raios solares banhassem todos os rituais. GRANDES MORADAS Lamentavelmente, do Grande Palácio também pouco sobreviveu. Estendia-se desde o Cami nho Real até às margens do Nilo e estava organizado em torno de um grande pátio rodeado por estátuas colossais do rei, hoje desaparecidas. As salas mostravam chãos pintados com cores vivas e cenas do mundo natural, bem como os principais inimigos do Egito, de tal forma que eram pisados por todos aqueles que visitavam o palácio, incluindo os embaixadores estrangeiros. Este edifício monumental estava ligado a um palacete (a Casa do Rei) através de uma ponte que atravessava o Caminho Real. Era a partir deste edifício menor que Akhenaton fazia os despachos e governava o país, em conjunto com os seus oficiais. Junto à Casa do Rei, foi construída a chamada “Mansão de Aton”, que, na realidade, era uma versão mais 31 pequena do Grande Templo. É muito pro- vável que a função deste templo fosse a de um lugar onde o faraó celebrava os rituais religiosos e as oferendas a Aton diante de um público escolhido. Uma vez que o eixo do templo estava alinhado com o túmulo real, julga-se que tenha sido desenhado como um templo funerário para o faraó. Como nova capital do Egito, Akhet-Aton transformou-se na residência oficial dos mais altos funcionários do estado, os quais construíram grandes moradas compostas por um casarão de dois pisos, jardim, cozi- nhas, capela, cavalariças, armazéns e casas mais modestas para os serviçais. Nos salões mais nobres do edifício principal, situados no piso térreo, sobreviveram restos de deco rações figurativas pintadas com muitas representações de vegetais e de animais, refle tindo a paisagem fértil do vale do Nilo. Um dos grandes artesãos do palácio, Tutmés, tinha a oficina na sua própria casa e, em 1912, foi descoberto nela um grande número de peças de gesso e bustos da família real, incluindo o famosíssimo busto policromado da rainha Nefertiti que hoje se encontra em Berlim. SEM SEPARAÇÕES POR CLASSES A cidade não estava dividida socialmente, e mesmo as casas mais ricas podiam estar rodeadas de outras muito mais modestas. As moradas estavam organizadas em quar- teirões com ruas mais ou menos largas, dispostas em paralelo ao Nilo. A partir dos diferentes achados arqueoló- gicos e das cenas que resistiram, é possível afirmar que a atual planície de Amarna era muito diferente da capital no seu pleno apo- geu. Assim, os edifícios e as casas mais nobres estavam ornamentadas com inúmeras árvores que proporcionavam a necessária sombra aos seus residentes, e tinham os seus próprios poços de abastecimento de água. No entanto, havia poços espalhados por toda a cidade, destinados à população em geral. Este gene- roso abastecimento de água não era comum nas cidades egípcias, pelo que, sem dúvida, Akhet-Aton oferecia maior bem-estar aos seus habitantes. Akhet-Aton também dispunha de uma necrópole. A zona escolhida para o descanso eterno da família real encontrava-se num wadi principal, a cerca de onze quilómetros da cidade. Foi lá que se escavou um túmulo para Akhenaton e outros membros da sua família, embora conste que apenas uma das suas filhas, Meketaton, tenha sido ali enter- rada, para além do rei. O facto de Akhenaton ter planeado ficar enterrado com outros membros da sua família no mesmo hipogeu era uma novidade, já que tanto antes como depois os faraós do Império Novo eram enter rados sozinhos, enquanto os seus fami- liares mais próximos ficavam em túmulos individuais ou coletivos. Alguns dos altos funcionários também pre- pararam o seu túmulo em Amarna, concre- tamente em duas áreas das falésias rochosas que compunham o anfiteatro que delimitava a cidade. Ambas as zonas estavam situadas a norte e a sul da entrada do wadi que conduzia à necrópole real. Atualmente, conhecem-se 25 túmulos, alguns dos quais não chegaram a ser terminados. Como nova capital do Egito, Akhet-Aton passou a ser residência de altos oficiais, que construíram nela grandes moradas B R IT IS H M U S E U M O Heb Sed Erradamente conhecido também como “Festival do Jubileu”, o Heb Sed era na realidade um festival que os antigos reis do Egito celebravam (nesta época, por volta do 30.º ano de reinado), no qual o faraó, através de rituais, morria e renas- cia magicamente para renovar os seus poderes cósmicos e a sua relação divina com os restantes deuses. 32 NOS BRAÇOS DE ATON Durante a construção da nova capital, Akhe naton mandou eliminar, em todos os monu mentos, os nomes do deus Amon e da sua mulher, a deusa Mut. Este damnatio memoriae significou, sem dúvida, a imposição da religião real sobre a tradicional. Estas ações, levadas a cabo muitas vezes por indivíduos que mal sabiam reconhecer os hieróglifos que compunham ambos os nomes, não pro vocaram confrontos violentos no país. A nova fé situava Aton como o criador uni versal sem ter uma forma humana ou animal, o que o distinguia das crenças ancestrais. Era representado como um disco solar com raios que terminavam em forma de mãos. A sua universalidade implicava o seu reconheci mento por todos os países e povos. Nesta nova ordem religiosa, o faraó desem penhava um papel primordial, já que era a única figura à qual havia que obedecer, pois era o mais amado de Aton. O faraó e a sua família nuclear (a Grande Esposa Real Nefer titi e as suas filhas) também tiveram um papel fundamental nas representações religiosas. Antes do período de Amarna, as represen tações públicas estavam centradas no faraó e nos deuses. Raramente apareciam outras personagens (as esposas principais eram as grandes exceções). Os príncipes e as princesas quase nunca eram representadosou sequer mencionados. No entanto, agora as novas temáticas artís ticas centravamse na família real, e nelas as princesas apareciam ao lado dos seus proge nitores. Desenvolviamse no âmbito privado, sempre beneficiadas pelo deus Aton. Estas novas composições têm um objetivo religioso evidente, de modo a identificar a família real com os conceitos sintetizados pelo deus Aton: criação, fertilidade, abundância e vida. Neste sentido, Akhenaton e Nefertiti encarnavam todos estes aspetos abençoados por Aton. PRIMEIRO MONOTEÍSMO? À parte o debate existente sobre se a religião de Aton foi ou não a primeira fé monoteísta, o que parece claro é que o principal benefi ciado foi o faraó, em quem se concentrava todo o poder por vontade divina. No entanto, o desenvolvimento desta fé não foi muito mais além do que as esferas relacionadas com ASC Foi neste reinado que apareceram as primeiras representações das princesas, filhas do faraó 33 o palácio. No próprio sítio de Amarna, foram encontrados numerosos vestígios que provam que a população continuava a praticar a religião tradicional, como menções, em várias capelas domésticas, a diversos deuses, incluindo o proscrito Amon e divindades mais populares como Bes ou Taweret. Durante as duas guerras mundiais, escre- veu-se muito sobre o suposto pacifismo de Akhenaton na sua política externa, mas este pensamento não podia estar mais longe da realidade. Este rei não só mandou os seus exércitos para o exterior, como comprova a campanha na Núbia durante o seu 12.º ou 13.º ano de reinado, como era habitualmente representado como um faraó triunfante. O principal problema externo que Akhenaton teve de enfrentar foi a inconstante situação que se vivia no Médio Oriente, pois o reino hitita tornou-se uma potência militar deter- minante na região. No entanto, não há dúvida de que o Egito se manteve como ator principal no panorama internacional da zona, como mostram as representações do seu festival Sed, durante o qual era homenageado por todos os territórios sob a sua alçada, bem como pelos restantes grandes reinos. FAMÍLIA REAL Graças a um grande número de represen- tações de Akhenaton e da sua família, foi possível reconstituir cronologicamente como ela foi aumentando. A Grande Esposa Real, Nefertiti, foi mãe de seis princesas: Meritaton, nascida durante o primeiro ou segundo ano de reinado; Meketaton, nascida no ano seguinte ao da sua irmã, faleceu por volta do 14.º ano de reinado; Ankesenpaaton, nascida no quarto ou quinto ano de reinado; Neferneferuaton- Tasherit, nascida no sétimo ou oitavo ano de reinado e falecida nos últimos três anos do reinado; Neferneferure, nascida entre o oitavo e o décimo ano de reinado e falecida antes do final do reinado; Setepenre, nascida entre o 10.º e o 12.º do reinado e falecida pouco depois. Assim, do 12.º ano até ao final do reinado de Akhenaton, morreram Meketaton, Nefer- neferuaton-Tasherit, Neferneferure e Seten- penre. Estas mortes podem estar relacionadas com a reduzida esperança de vida de todas as sociedades pré-industriais, mas também G E TT Y A rainha Nefertiti beija uma filha, provavelmente Meritaton, neste baixo-relevo encontrado em Amarna e datado dos anos 1352 a 1336 a.C. que o casamento tenha sido consumado e que o título não fosse meramente simbólico. No caso de Meketaton, a representação de uma menina no colo da princesa poderia ser a revelação do ka desta após a sua morte. Igualmente de difícil interpretação é o caso de Ankesenpaaton-Tasherit, filha da terceira filha. Akhenaton teve igualmente mulheres se- cundárias: entre elas, uma tal Kiya, cujo no- me pode ter sido uma forma “egipcianizada” de Tadukhepa,princesa de Mitani, que fora mulher do pai de Akhenaton, Amenófis III. Embora haja poucas referências a Kiya, sabe- com a peste que assolou boa parte do Médio Oriente naqueles anos, como mencionam várias fontes. FILHAS, MÃES, NETOS Há várias referências e representações de algumas das filhas de Akhenaton e Nefertiti, como Meritaton, Meketaton e Ankesenpaaton, que podem ter sido mães de outras tantas filhas do seu próprio pai, mas infelizmente estas informações carecem de confirmação. O que se sabe é que Meritaton chegou a ser Grande Esposa Real durante os últimos três do reinado do seu pai, mas isso não indica Apesar da sua fama de pacifista, Akhenaton foi representado como um rei vitorioso. 3434 35 mos que foi a mãe de Tutankaton (mais tarde Tutankamon), nascido no oitavo ou nono ano do reinado do pai. FINAL DO REINADO A morte da princesa Meketaton no 14.º ano do reinado de Akhenaton pode ser considerada um ponto de inflexão. Um ano mais tarde, o faraó escolheu como corregente um desco nhecido, Semenkhkare, talvez um meio irmão ou um filho de uma mulher secundária. A legitimidade ao trono, ganhoua através de Meritaton, que se tornou a sua consorte. Akhenaton morreu durante o 17.º ano do seu reinado, devido a causas desconhecidas, muito provavelmente antes dos 40 anos de idade. Foi enterrado no seu túmulo, próximo de AkhetAton, mas é possível que o seu corpo tenha sido trasladado pouco depois, talvez para Tebas. De facto, terá sido identificado com os restos encontrados no túmulo 55 do Vale dos Reis, embora isso não esteja cem por cento confirmado. A razão é que o seu túmulo original, no Vale Real de Amarna, foi atacado e o seu sarcófago destruído (hoje, pode verse reconstruído no Museu do Cairo). GRAFITO ESCLARECEDOR Em 2004, descobriuse um grafito em Deir Abu Hinnis (Médio Egito) que ajudou a reconstruir o final do reinado de Akhenaton. Nesta inscrição, o faraó encontrase ao lado de Nefertiti no 16.º ano do reinado, um dado que demonstra que a esposa principal con tinuava viva naquela época, facto que se desconhecia. O que se sabia de Nefertiti não ia muito além da morte de Meketaton, e havia várias expli cações, algumas romanceadas, sobre o destino da rainha depois da morte da princesa. Além disso, esta inscrição permitiu determinar que Semenkhkare morreu pouco antes de Akhenaton e não lhe sucedeu, de tal forma que Akhenaton escolheu um desconhecido, Ankh(et)kheperure Nefereneferuaton, para o acompanhar na direção do estado. Segundo a egiptóloga belga Athena van der Perre, Ankh(et)kheperure Nefereneferuaton não é outra pessoa senão a própria Nefertiti, que teria sucedido ao seu marido e reinado durante três anos sozinha após a morte daquele. A partir desta reconstrução, uma das cartas descobertas em Amarna faz mais sentido: uma rainha solicita ao rei hitita Suppiluliuma que lhe envie um filho para, ao seu lado, ocupar o trono do Egito. Este príncipe foi assassinado antes de chegar à corte, o que terá possivel mente mudado o destino de Nefertiti à frente do Egito. Pouco depois, Tutankaton tornar seia o rei Tutankamon. A.J.S G E TT Y Após a sua morte, Akhenaton foi praticamente apagado da história T u t a n k a m O n 36 37 Genealogia do faraó-menino Amenófis III (1390–1353 a.C) Avô de Tutankamon e pai de Akhenaton. Governou um reino imenso. Tiye Esposa principal de Amenófis III e mãe de Akhenaton. Akhenaton (1353–1336 a.C.) Também conhecido como Amenófis IV. Promoveu a deus único o disco solar e construiu uma nova capital: Amarna. Nefertiti Grande Esposa Real de Akhenaton, deu à luz seis meninas. Kiya, princesa de Mitani e esposa secundária, foi, provavelmente, a mãe de Tutankamon. Ankhesenamon Terceira filha de Akhenaton e Nefertiti, meia-irmã de Tutankamon e sua mulher. Tutankamon (1332–1323 a.C.) Também conhecido como Tutankaton. No Antigo Egito, a tradição ditava que a Grande Esposa Real, que coexistia com outras mulheres e concubinas, tinha de ser de linhagem real, pois eram as princesas nascidas das esposas principais quem fazia a transmissão da realeza faraónica. A consanguinidade era muito comum. O faraó-meninofoi o último des-cendente por linhagem sanguí-nea da poderosa XVIII Dinastia de reis do Antigo Egito, os tut- méssidas, que governaram durante o período conhecido como Império Novo. A sua coroa- ção ocorreu por volta de 1334 a.C., altura em que adotou o nome de reinado de Nebkhepe- rure. Dado que subiu ao trono quando contava cerca de oito anos e viveu apenas até aos 19, o seu reinado foi breve. Reconstruir a sua existência continua a ser um desafio para os historiadores, a começar logo desde o seu nascimento. Tutankamon veio ao mundo entre o nono e o 12.º ano de reinado de Akhenaton. Era descendente de uma segunda esposa real, não da famosa rainha Nefertiti, com a qual, segundo parece, Akhenaton só teve filhas, o que explica o motivo pelo qual Tutankamon não aparece representado juntamente com o resto da família real em numerosas cenas em que os monarcas surgem ao lado das princesas. Na verdade, há várias teorias sobre a identi- dade dos progenitores de Tutankamon, ainda que todas defendam que ele tinha sangue real. Durante décadas, a mais plausível argumen- tava que ele era filho de Akhenaton e de Kiya, provavelmente a princesa mitânia Taduhepa, que se tornara esposa secundária do faraó e, provavelmente, morreu durante o parto. Por outro lado, um estudo forense que di- vulgou os seus resultados em 2010 encon- trou grandes coincidências genéticas entre Tutankamon e a múmia daquela que é conhe cida como “jovem senhora” e que, diz-se, terá sido sepultada juntamente com Akhenaton, embora não esteja comprovado. Consta que Akhenaton e a não identificada “jovem senhora” eram irmãos, ambos filhos de Amenófis III e da rainha Tiyi. Embora nenhuma das hipóteses seja con- siderada definitiva (ainda está muito por demonstrar), pelo menos ambas explicam os elevados níveis de consanguinidade entre os pais de Tutankamon e que estarão por detrás da frágil saúde do jovem monarca. INFÂNCIA POUCO SAUDÁVEL Ao nascer, chamava-se Tutankaton, “imagem viva de Aton”, nome com o qual o seu pai honrou o disco solar durante o seu reinado. Desde pequeno que as suas deformações físicas eram facilmente visíveis. Diz-se que tinha lábio leporino e fenda palatina e que padecia de síndrome de Köhler no osso escafoide do pé e de uma debilid de palpável na restante estrutura óssea, que o fez sofrer durante toda a sua existência. De facto, parece que as ben- galas como as que foram encontradas no seu túmulo foram companheiras contínuas ao longo da sua curta vida. O menino terá sido criado no berçário real, como as suas seis meias-irmãs e o seu meio- -irmão mais velho e herdeiro do trono, Semenkhkare. Alguns investigadores argu- mentam que Semenkhkare governou ao lado do pai durante os seus dois últimos anos de mandato, enquanto outros defendem que sobreviveu a Akhenaton e reinou sozinho durante um biénio. Seja como for, pode con- firmar-se que, em princípio, Tutankamon nunca esperou reinar e nos seus primeiros anos de vida recebeu formação cortesã para ser príncipe. Depois da sua passagem pelo berçário real, o jovem continuaria a sua for- mação no Kap, a escola da corte, com outros membros da família real, da nobreza e dos Quem foi Tutankamon? S H U TT E R S TO C K 38 Estátua de pedra de Tutankamon, no estilo monumental típico do Egito. 39 príncipes convidados de outros territórios sob a influência egípcia, incluindo os her- deiros da oligarquia núbia. Podemos imaginar o nosso príncipe a apren- der a ler aos quatro anos, reconhecendo e pronunciando os muitos hieróglifos egípcios que faziam parte de um idioma formado ao longo de várias centenas de anos. Dominada a gramática, também teve de assistir a lições de aritmética e aprendeu a prática da retórica necessária para o exercício político, e até mesmo a reconhecer os caracteres asiáticos de civilizações com as quais o Egito manti nha relações comerciais e políticas. Além disso, ainda em menino, descobriu a escrita sobre o caro e exclusivo papiro usado na docu- mentação oficial, bem como em óstracos, quadros de pedra calcária ou terracota, mais baratos e acessíveis e utilizados na escrita convencional. EDUCAÇÃO DE ELITE Esta preparação completava-se com exer- cícios físicos, com momentos dedicados à natação e à luta corpo-a-corpo. Como nos mostram os relevos e as pinturas de cenas de caça, o aluno também se exercitava no tiro com arco, uma prática muito apreciada pelos reis da XVIII Dinastia. Não sabemos se a saúde frágil de Tutankamon lhe permitiu realizar por completo todas estas atividades, mas de alguma forma deve ter participado em práticas deste tipo. Algumas vezes mon- taria a cavalo sobre os exemplares oferecidos aos seus pais por soberanos asiáticos, embora este fosse um costume pouco comum entre O príncipe foi criado como tal, mas não estava destinado ao trono, que cabia por direito ao seu meio-irmão mais velho Ruínas do pórtico do templo de Hermópolis, atual Ashmunein (gravura de 1817). 40 os egípcios, mais habituados ao uso do carro. O seu destino tranquilo como membro do família real, sem a responsabilidade política agregada ao líder de toda a sociedade egípcia, mudou com a morte do seu meio-irmão. Foi então que Tutankamon se tornou herdeiro e soberano do país, colocando sobre a sua cabeça as coroas do Alto e do Baixo Egito. A partir desse momento, provavelmente mani pulado por interesses cortesãos mediados pelos sacerdotes de Amon, que viram nele uma oportunidade para recuperarem o seu poder, protagonizou a primeira reversão do período extraordinário amarniense e o regresso à ordem secular egípcia. MUDANÇA ESTRATÉGICA Para promover a sua legitimidade ao trono, o ainda Tutank aton tinha casado com a sua meia-irmã Ankhesepaaton, filha de Akhena- ton e de Nefertiti, o que contribuiu para que aquele enlace tivesse uma completa ascen- dência real. Além disso, no segundo ano do Busto da rainha Nefertiti, conservado no Museu Egípcio de Berlim, que tem sido a fonte da sua lendária beleza. S H U TT E R S TO C K S H U TT E R S TO C K 41 seu reinado, os reis mudaram os seus nomes de nascimento. Assim, Tutankaton tornou-se Tutank amon, “imagem viva de Amon”, e a sua mulher passou a chamar-se Ankhe- senamon. Isto pode parecer meramente simbó lico, mas, para os egípcios, o rei era a reencarnação do deus Hórus, filho de Ísis e de Osíris, pelo que qualquer mudança de nomenclatura implicava também uma modi- ficação das crenças de todo o país. Com esta estratégia, a administração de Tutankamon estava simplesmente a reativar o culto milenar egípcio para se apoiar na tradição. No seu governo, Tutankamon foi acompa- nhado pelo antigo servidor da corte amar- niense, Ay, seu sucessor no trono. Ao seu lado, esteve também o general Horem heb (é possível que seja o oficial mencionado no reinado de Akhenaton chamado Remheb) que reinou depois de Ay, terminando assim a XVIII Dinastia e dando lugar à XIX Dinastia, a dos raméssidas. Horemheb tinha iniciado a sua carreira durante o novo reinado e foi o porta-voz do rei em matéria de política externa, com des- tacadas ações na Núbia e na Palestina. Por seu lado, Ay é referido em algumas inscrições do reinado de Akhenaton como “o pai divino”, marido da ama-de-leite de Nefertiti, embora algumas interpretações considerem que ele era o pai da rainha. Isto explicaria a sua posição como intendente do cavalo real, tenente- -general do carro do faraó e seu escriba pessoal, além de detentor do privilégio de abaná-lo com o leque. Com todos estes cargos, que lhe permitiram ter a máxima proximi- dade à realeza, nos primeiros anos do novo reinado gozou de grande influência política, Pormenor de um batalha contra núbios, pintada no túmulo de Tutankamon, por volta de 350 a.C. Os carros egípcios foram projetados para serem uma força de ataque rápido, com uma estrutura de madeira muito leve e partes de lona ou couro. No lado esquerdo, veem-se osinimigos núbios mortos em combate, espezinhados pelo carro do faraó. Ao centro, Tutankamon lança flechas sobre os inimigos. No lado direito, estão representados a comitiva e os guerreiros que acompanhavam o faraó. 42 através da qual liderou as mudanças que restituíram a primazia do culto a Amon e tiraram o faraó de Amarna. REINADO CURTO E MENOR A espetacular descoberta do túmulo de Tutankamon tornou-o um ícone do mundo egípcio, mas o seu reinado foi certamente de pouca importância comparado com os grandes reis da XVIII Dinastia. Entre outras questões, apesar das tentativas da adminis- tração de Tutankamon para acabar com as práticas corruptas do período anterior, a sua morte precoce tornaria quase impossível completar a tarefa, de modo que a venali- dade e a arbitrariedade do serviço público e do sacerdócio egípcio só seriam seriamente extirpadas no governo de Horemheb. Ainda assim, há que assinalar conquistas impor- tantes, como o fim do isolamento provocado pelo regresso da chancelaria real à inter- venção ativa na política externa, descuidada durante o reinado de Akhenaton ao ponto de se perder toda a influência alcançada nos tempos de Amenófis III. Para romper com o período anterior, Tutankamon abandonou Amarna (Akhet- -Aton, “o Horizonte do Disco Solar”), fundada Tutankamon foi acompanhado pelo servidor da corte amarniense Ay, seu sucessor no trono, e pelo general Horemheb, que reinou depois de Ay, encerrando a XVIII Dinastia e dando lugar à XIX, a dos raméssidas 43 44 A G E Parte do conjunto monumental do Templo de Amon-Rá em Luxor. A G E 44 por Akhenaton. Após a morte deste, o ainda Tutank aton viveu durante algum tempo no bairro norte de Amarna, mas trocou a capital do seu pai por Mênfis e pelo palácio de Malkata, transformado em residência temporária durante as suas estadas em Tebas. Além disso, para tornar o regresso ao estado anterior mais forte, ordenou que lhe cons- truíssem um túmulo perto do do seu avô, Amenófis III. TEMPO DE RECONSTRUIR Face ao período de destruição que implicou o devaneio amarniense do seu pai, o tempo de Tutankamon foi de tentativa de reconstrução. As intervenções arquitetónicas levadas a cabo em seu nome são em maior número do que se tinha pensado até agora, já que, depois do seu breve reinado, os seus sucessores usurparam muitas das suas iniciativas, des- virtuando a sua memória. Como restaurou o culto de vários deuses egípcios, privilegiando Amon, as esculturas representavam um faraó de regresso ao Templo de Karnak, santuário tebano de Amon. Por exemplo, Tutankamon ao lado daquele deus e da sua mulher, a deusa Mut. Há outros exemplos, como o de uma estátua colossal de Amon esculpida em Karnak com o rosto do nosso protagonista. Assim, com ele não só terminou o período monoteísta do reinado de Akhenaton como criou o seu próprio, com traços estilísticos de arte figurativa oficial. Se no reinado do seu pai a aposta recaiu em formas curvas e sensuais inéditas na representação de figuras humanas, com um grande número de cenas familiares da monarquia surpreendentemente íntimas, nas quais as personagens apresen- tavam deformações físicas curiosas (alonga- mento do crânio ou grandes abdómenes), no reinado de Tutankamon regressa-se a uma representação rígida do poder hierático. São dadas poucas concessões ao naturalismo e ao retrato, e os faraós são representados como seres que não pertencem a este mundo. Além disso, a conclusão da Colunata Pro- cessional de Amenófis III, em Luxor, com a inclusão da sua efígie na porta da parede norte, é igualmente uma declaração explícita da vontade de se sobrepor ao reinado do pai e de retomar a imagem dinástica do avô através das artes plásticas. A descendência que não chegou Tutankamon e Ankhese- namon não tiveram filhos. Assim, extinguiu-se com eles a linhagem sanguínea da dinastia iniciada com o rei Amósis I. O casal real ainda esperou um herdeiro (na realidade, seriam duas gé- meas), mas Ankhesenamon sofreu um aborto espontâ- neo que deitou por terra os seus desejos. Esta teoria apoia-se no achado de fetos mumificados junto dos restos mortais do faraó que corres- pondiam a duas meninas (a diferença de tamanho não impediu que os egiptólogos os considerassem fruto de uma gravidez única). Atual- mente, está a ser procurado o túmulo de Ankhesenamon no Vale dos Reis, perto do de Ay, com quem Ankhesena- mon casou após a morte de Tutankamon. A sua possível descoberta foi anunciada pelo egiptólogo Zahi Hawass em 2018, depois de detetar, numa escavação, restos de cerâmicas, alimentos e ferramentas compatíveis com a proximidade de um enterro real. Com a ajuda de radares, a expedição encontrou uma anomalia no subsolo que pode corresponder à entrada da sepultura. A G E Tutankamon sentado com a mulher, Ankhesenamon, num suporte de madeira dourada da antecâmara do seu túmulo. Sabemos que sofreu de inúmeras enfermidades, pelo que deverá ter usado bengalas desde muito cedo 45 O MISTÉRIO DA SUA MORTE De qualquer forma, embora na Estela de Res- tauração de Cultos se descreva o estado mise- rável em que o país se encontrava devido aos erros de Akhenaton, é importante destacar que Tutankamon respeitou a memória do pai, que só mais tarde foi considerado um inimigo do país. Podemos afirmá-lo porque a múmia de Akhenaton só foi ultrajada algumas décadas após a sua morte, momento em que a sua memória começou oficialmente a ser denegrida. Na verdade, a transição política de pai para filho foi pacífica, até porque ambos os reinados foram considerados, no seu tempo, como parte da revolução amarniense, tal como o de Ay, sucessor de Tutankamon. Pode, pois, concluir-se que a mudança foi mais gradual do que inicialmente se pensava. A LA M Y Uma dinastia a querer transcender-se Quando Tutankamon morreu, a rainha Ankhe- senamon fez uma tentativa desesperada de impedir o fim da sua linhagem. Com esse obje- tivo, endereçou uma carta ao rei dos hititas, Suppiluliuma, a solicitar o envio de um dos seus filhos para o Egito de modo a casar com ele e torná-lo faraó. Nela, a rainha confessava, inclusivamente, o horror que sentia face à ideia de poder vir a unir-se a um servidor da corte para evitar a perda de poder. Suppiluliuma demorou a convencer-se da veracidade desta oferta e só enviou o seu filho Zennanza depois de receber a confirmação de um embaixador que tinha passado pela corte tebana. No en- tanto, todos os seus receios estavam certos, porque o príncipe foi assassinado durante a viagem, outra morte que se junta às acu- sações por assassínio formuladas contra Ay. Alguns investigadores apontam, contudo, que a responsável por esta proposta ao rei hitita tenha sido Nefertiti, para, à morte de Akhena- ton, ter hipótese de reinar. Daqui surgiu a ideia de que Semenkhkare nunca existiu e que, na verdade, foi o nome que Nefertiti adotou para, travestida de homem, aceder ao trono após a morte do marido. A colunata do Templo de Karnak é um dos monumentos que mais informação oferecem sobre a época. Escultura de pedra, provavelmente hitita, do rei Suppiluliuma, com mais de 3000 anos de antiguidade. 46 A morte repentina de Tutankamon deu lugar a várias suposições sobre as possíveis causas. Alguns investigadores apostaram num assassínio, uma vez que a múmia apresentava um buraco no crânio, tendo sido interpretado como o resultado de um golpe com um objeto contundente. Nos últimos anos, tam- bém tem ganhado força a suspeita de um acidente de carro, que pode ter sido provocado ou não. O certo é que a rapidez com que o seu túmulo foi arranjado indica que não era uma morte esperada, talvez determinada por algum usurpador de poder. Além disso, as pinturas da sua sepultura, que parece ter sido um reaproveitamento de outra, foram reali- zadas à pressa e os objetos não eram os mais adequados ao enterro deum rei. A pergunta que continua no ar é se não terá sido Ay o causador da sua morte, a fim de aceder à coroa e ao poder absoluto do Egito, se foi um acidente de caça ou outro ou se, pelo contrário, o jovem faraó Tutankamon morreu em resultado das suas inúmeras doenças. S.R.R. A G E A colunata de Luxor mostra a vontade de Tutankamon de colocar um ponto final na deriva religiosa do pai 47 G E TT Y 48 Os reis egípcios não tinham um, mas cinco nomes, que os definiam como o único soberano do país do Nilo e confirmavam a sua dupla natureza entre a humana e a divina. Entre os mais importantes, vale a pena destacar o nome de coroação (prenomen) e o nome de nascimento (nomen). Ambos são facilmente distinguíveis porque eram escritos dentro do cartucho, termo dado ao círculo protetor que emoldurava os nomes reais, pela sua seme- lhança com as munições usadas pelos solda- dos franceses durante as campanhas militares de Napoleão no final do século XVIII. O nomen era o que recebia especial atenção da parte dos reis egípcios e aquele que estava intimamente relacionado com as mudanças e a situação política do país. O paradigma deste facto está em Tutankamon, que teria inicialmente nascido com outro nome. Tanto ele como a sua irmã Ankhesenamon receberam um “nome de nascimento” que homenageava claramente Aton, um aspeto menor do deus Rá transformado em divin- dade única quando o seu antecessor, o rei Akhenaton (Amenófis IV), decidiu instau- rar a sua ideia de religião monoteísta no Egito. REGRESSO À ORDEM TRADICIONAL Assim, o nome de ambos era na verdade Tutankaton e Ankhesenpaaton. Uma vez restabelecida a ordem, foi aplicada uma damnatio memoriae que também envolvia a transferência da residência e da necrópole real para Tebas, antiga capital do país, a recuperação dos cânones artísticos tradi- cionais e o regresso a uma religião politeísta, a qual privilegiava o deus Amon, divindade que, aos poucos, tinha alcançado um lugar relevante no panteão egípcio. Este claro desejo de rutura com o estado anterior, que se tinha totalmente oposto à ideia cosmogónica tradicional do Egito, foi materializado pelo próprio rei através de uma mudança de nome: agora honrava Amon, e o Egito seguia, mais uma vez, a ordem natural das coisas. M.L.G.G.T A importância de um nome “Oh, seja outro nome! o que há num nome? Aquilo a que chamamos rosa com qualquer outro nome teria o mesmo doce aroma.” William Shakespeare (“Romeu e Julieta”) 49 A G E Após a restauração da ordem Após a restauração da ordem Nome de nascimento original Nome de nascimento original = Tutankaton “A viva imagem de Aton” =Tutankamon “A viva imagem de Amon, governador de Tebas” =Ankhesenamon “Ela vive para Amon” = Ankhesenpaaton “Ela vive para Aton” 50 Tutankamon Ankhesenamon 51 Otúmulo de Tutankamon continha um dote funerário composto por 5398 objetos, entre os quais vários pertences pessoais e íntimos, que nos dão uma imagem mais humana e próxima do faraó.Foram encontrados cerca de 40 baús de madeira que continham joias, roupas e outros utensílios pessoais. A coleção de tecidos, ainda muito pouco estudada, é considerada a mais importante da arqueologia egípcia. Entre as diferentes peças, estão as cuecas do faraó, a primeira roupa interior historicamente documentada. É uma espécie de fralda de linho, de forma triangular, que se colocava por baixo da túnica. Há também mais de 40 pares de sandálias, de vários tamanhos. Algumas foram claramente usadas pelo monarca, devido às marcas de desgaste que apresentam; outras são novas, para estrear no Além. Algumas das sandálias eram feitas com papiro e junco, enquanto outras eram de couro e lâminas de ouro, bor- dadas com contas. Entre todas, destacam-se as sandálias em que, na base, podemos ver representados os seus inimigos, núbios de pele escura e asiáticos de barba pontiaguda, amarrados, simbolizando os adversários do rei, esmagados a cada passo sob os seus pés e a sua força divina. PROBLEMAS DE SAÚDE Dos estudos clínicos que foram sendo realizados ao longo do tempo à múmia do jovem faraó, sabemos que, entre os vários problemas de saúde que o seu corpo de 19 anos apresentava, estava um pé de equino- varo, ou pé torto (o esquerdo). Trata-se de uma deformação congénita que lhe deverá ter causado grandes dificuldades em andar ou manter-se de pé, pelo que necessitava de calçado adaptado e de bengalas, das quais foram encontradas 130 exemplares de vários tamanhos e materiais. Entre as diferentes sandálias, Carter também encontrou algumas que apresentavam uma estrutura curiosa que garantia melhor aderência do pé esquerdo quando pousado no chão. Tutankamon terá tido, sem dúvida, o que podemos considerar o primeiro sapato ortopédico da história. Todos estes objetos pessoais do monarca revelam uma imagem invulgar: a de uma criança frágil, incapacitada, com sapatos adaptados e que precisava de bengalas para poder manter-se de pé, o que deve ter sido muito difícil para um dos faraós mais conhe- cidos da história do Egito. V.B.T Objetos pessoais 52 As peças dão muita informação sobre a vida de Tutankamon No túmulo, havia mais de 40 pares de sandálias, todas muito ornamentadas, em cuja base se podem observar representações dos seus inimigos. Algumas estavam adaptadas ao seu problema dos pés. O cabo de uma das bengalas do faraó que o ajudavam a manter-se de pé representa dois dos seus escravos ou prisioneiros. Este frasco cosmético continha uma mistura de gorduras vegetais e animais. O leão representa Tutankamon por cima dos seus inimigos tradicionais, da Núbia e da Ásia. O trono real de Tutankamon é feito de madeira, folha de ouro, prata, gemas de vidro e pedras preciosas. A sua elaboração é de uma complexidade extraordinária. G E TT Y G E TT Y A G E G E TT Y 53 Após sete anos a escavar no Vale dos Reis, a longa e até então infrutífera expedição de Howard Carter estava prestes a fazer perder a paciência ao seu mecenas, lord Carnarvon. Porém, o milagre aconteceu, e aquela associação de talento e dinheiro que começara em 1908 deu frutos em 4 de novembro de 1922, quando o arqueólogo inglês descobriu o túmulo de Tutankamon, o mausoléu faraónico mais bem preservado e intacto jamais encontrado. O achado viria a desencadear a febre da egip- tologia no início do século XX e fez correr rios de tinta. Por essas águas da imprensa, navegou também a notícia sensacionalista de que o túmulo carregava uma terrível maldição que se abateria sobre quem ousasse profaná-lo. Sobre o achado, Carter ficou com todas as honras, mas a verdade é que o túmulo foi des- coberto por um rapaz de dez anos, chamado Hussein. Aguadeiro oficial da missão, foi ele que, naquele dia, ao escavar com as mãos a areia para acomodar os seus potes de barro, encontrou acidentalmente o primeiro degrau de uma escada esculpida na pedra, quatro metros abaixo da entrada do túmulo de Ram sés VI. Quando isto aconteceu, o teimoso e solitário Carter tinha 47 anos e andava há 30 à procura de algo assim nas areias do Egito, mas sem sucesso. Retirada a areia da escada, esta conduzia a uma porta decorada e trancada. Carter introduziu uma lanterna elétrica por um pequeno buraco e avistou uma passagem. “Precisei de auto- controlo para evitar derrubar a porta”, disse. Carter ordenou que o achado fosse coberto e guardado, enquanto atravessava o Nilo para enviar um telegrama a Carnarvon, que chegou à cidade no final daquele mês. Em 16 de feve- reiro de 1923, a câmara funerária foi aberta, na presença do próprio Carter, de Carnarvon, de Arthur Callender, amigo de Carter e antigo funcionário egípcio, de lady Evelyn Herbert, filha de Carnarvon, do químico Alfred Lucas e do fotógrafo Harry Burton. As portas exteriores das câmaras tinham sido abertas e saqueadas duas vezes na Antiguidade, mas as da terceira, coberta de ouro, que continha o sarcófagoreal, ainda estavam seladas, sugerindo que o seu conteúdo estaria intacto. Foi Carter quem quebrou o selo de entrada. No fundo de um corredor, numa segunda parede, fizeram uma pequena aber- tura pela qual o inglês introduziu uma luz. Embora o seu mecenas, lord Carnarvon, e a sua filha, lady Evelyn, estivessem ao seu lado, foi o egiptólogo o primeiro a ver o sarcófago de Tutankamon. Os seus olhos contemplaram ao vivo, pela primeira vez, os restos milenares do faraó e todo o seu dote funerário. MORTES ESTRANHAS Dois meses depois, quando os trabalhos no tú- mulo mal tinham começado, lord Carnarvon morreu inesperadamente no Cairo. A sua morte prematura, aos 56 anos, foi oficialmente atri- buída a “uma pneumonia devida a erisi pe las”, infeções cutâneas causadas por estrep to co cos. Dizia-se que tinha cortado uma borbulha de mosquito ao fazer a barba e que a infeção se espalhara, culminando numa pneumonia devastadora (foi o que o seu filho contou à egiptóloga Christiane Desroches). Carnarvon tinha uma saúde delicada, devido a um acidente de automóvel que quase lhe custou a vida, pelo que sofria com frequência de infeções pulmonares, mas depressa começou a surgir uma versão muito diferente que fez crescer a lenda da maldição da múmia, para a qual contribuíram outras mortes A lenda da maldição 54 55 G E TT Y “Estes homens encontrarão ouro... e morte!”, terá gritado um dos operários egípcios quando viu Carter entrar no túmulo. A maldição das múmias já era uma lenda popular. estranhas para além da do próprio conde: a de Arthur Mace, que abriu o túmulo ao lado de Carter e morreu antes de ele ser esvaziado; a do irmão de lord Carnarvon, Aubrey, que morreu subitamente no mesmo ano; a de sir Archibald Douglas Reid, que tinha radiografado a múmia; a do magnata norte-americano George Jay Gould, que morreu de pneumonia depois de visitar o túmulo; a de Richard Bethell, secre- tário de Carter, que se finou estranhamente também em 1929. A verdade é que estudos posteriores revelaram que, das 58 pessoas que estiveram presentes durante a abertura do túmulo e do sarcófago, apenas oito morreram ao longo dos doze anos seguintes, mas estes acontecimentos não fizeram mais do que avivar a imaginação da imprensa, que difundiu a ideia de que as estranhas mortes eram consequência da profanação do túmulo (os jornais ingleses chegaram a atribuir 30 mortes à maldição). MALDIÇÃO ALIMENTADA Howard Carter nunca acreditou na maldição, chegando a referir: “O espírito de compreen- são inteligente está ausente dessas ideias estú pidas.” A sua própria morte, 17 anos após a descoberta, ocorrida em Londres, aos 64 anos, uma idade avançada para a época, e devida à doença de Hodgkin, é o melhor argumento para os detratores da maldição. Porém, vários fatores alimentaram a fantasia popular: a segurança (provavelmente, o mito visava assustar os ladrões de túmulos para que se mantivessem afastados) e a imprensa. A história da maldição foi impulsionada pelos jornais da época, talvez pelo próprio Times, que tinha conseguido o exclusivo do achado. Personagens como o escritor escocês Arthur Conan Doyle, criador de Sherlock Holmes, e 56 A imprensa inglesa atribuiu à maldição a morte de 30 pessoas, incluindo Carnarvon 57 M E TR O P O LI TA N M U S E U M O F A R T a popular romancista britânica Marie Corelli também colocaram achas na fogueira. O pri- meiro, segundo publicou a imprensa na altura, atribuiu a morte de Carnarvon a um “mal elementar” guardado no túmulo, que assim se vingava dos seus profanadores; a segunda escreveu uma carta ao jornal New York World, alegando conhecer velhos textos árabes que mencionavam uma maldição antiga (“A morte estenderá as suas asas sobre todo aquele que se atrever a entrar no túmulo selado de um faraó”) e que falavam de venenos depositados nos túmulos egípcios para aniquilar aqueles que os profanassem. Apesar de tanto egiptólogos como médicos terem desprezado a teoria do veneno, acabaram por fornecer outra hipótese: germes que causariam uma infeção fatal. EXPLICAÇÃO LÓGICA? A teoria de que lord Carnarvon morreu de uma infeção causada por fungos adormecidos durante séculos no túmulo de Tutankamon perdurou porque chamou a atenção da ciên- cia. Muitos cientistas começaram a discutir a versão infecciosa e várias revistas médicas, como a The Lancet, publicaram estudos a esse respeito. O microbiólogo Raul Rivas escreveu que alguns agentes patogénicos, como o Asper gillus niger, o Aspergillus terreus ou o Aspergillus flavus, conseguiram permanecer trancados na câmara real durante milénios, acabando por atacar o imunodeprimido Car- narvon. O facto de os esporos de Aspergillus poderem permanecer adormecidos por longos períodos de tempo nos pulmões explicaria que não tivesse apresentado sintomas de infeção nos cinco meses a seguir à entrada na sepultura, além de poderem estar relacionados também com a infeção que sofreu nos olhos e nas fossas nasais. O certo é que, ainda hoje, a história da infeção fúngica tem mais de rumor do que de verdade. É uma ideia plausível como explica- ção para a morte de Carnarvon, mas a ciência não pode afirmar categoricamente que foi a causa. C.E.T Ao quebrar o selo que fechava a terceira câmara do túmulo de Tutankamon (a que continha o sarcófago real), Howard Carter abriu a porta à lenda da “maldição da múmia”. S H U TT E R S TO C K 58 A época da XVIII Dinastia P or volta de 1540 a.C., inicia-se, no Egito, o período conhecido como Império Novo, uma era que vai fazer florescer todo o vale do Nilo. Será uma das fases mais apaixonantes e de maior esplendor de toda a história do país. Tebas torna-se a residência real, a grande capital do Egito, uma fabulosa metrópole que se estendia por mais de 93 quilómetros quadrados, na margem oriental do Nilo. Era o reino do deus Amon, cujo filho terreno era o faraó. Do outro lado do rio, na margem ocidental, onde o Sol se põe, encontrava-se a montanha tebana, ou sagrada, onde se estendiam todas as necrópoles reais e civis da capital e os templos funerários dos faraós; era o reino de Osíris, senhor do Além. Os egípcios chamavam a este lugar el-Gurn ou monte ta-sejet-aat. O Corno ou Pico Tebano eleva-se a 420 metros de altitude e a forma da mon- tanha possui uma geometria curiosa que lembra as pirâmides, lugar de enterros reais no Império Antigo. É possível que este ele- mento geomorfológico tenha impulsionado os primeiros faraós da XVIII Dinastia a escolher este impressionante lugar para acomodar, sob o sol escaldante do deserto, as suas moradas eternas. EXPULSAR OS ESTRANGEIROS Ao longo de vários séculos, o Egito viveu con- tínuas flutuações, períodos de declínio e de florescimento, crises de poder, guerras civis. Houve, inclusivamente, reis estrangeiros a governar o vale do Nilo. No entanto, poucos acontecimentos foram tão importantes como os ocorridos por volta de 1550 a.C. Cerca de cem anos antes, governantes de origem asiá- tica já tinham assumido o poder no Egito, aproveitando a fraqueza dos reis e a decadên- cia da etapa conhecida como Império Médio. Pela primeira vez na sua história, o país estava a ser governado por estrangeiros, os hicsos, termo que vem do antigo egípcio heqa kha- sewet, que significava literalmente “gover- nante de terras estrangeiras”. Entre os muitos vassalos dos hicsos, encon- travam-se nobres de Tebas que durante a XVII Dinastia sempre cooperaram sem qual- quer resistência, até ao reinado de Seqenenre, 59 A G E A G E A G E Esta gravura retrata a invasão dos hicsos, um termo que vem do egípcio antigo heqa khasewet e significava literalmente “governante de terras estrangeiras”. Avenida das Esfinges no Templo de Karnak, em Luxor. 60 que deu início à guerra de libertação do Egito. Durante anos, lutas intensas abalaram o vale do Nilo, até que, por fim, cerca do ano 1540 a.C.,Amósis I saiu vitorioso quando enfrentou os “governantes estrangeiros” e subiu ao trono, inaugurando a XVIII Dinastia e uni- ficando o país. É assim que começa uma das etapas mais importantes e florescentes do Antigo Egito. MAIOR CIDADE DO MUNDO O historiador inglês Ian Morris (n. 1960) estimou que, por volta do ano 1500 a.C., Tebas seria a maior cidade do mundo, com uma população de mais de 75 mil habitantes. O deus tebano Amon foi nomeado deus do Império, e em sua honra foram construídos vários santuários. O Templo de Karnak tornou-se o maior centro religioso do mundo de então, um complexo de recintos sagrados dedicado aos deuses mais importantes do Egito. Esta espetacular construção destaca-se pela sua sala hipóstila, com mais de meio hectare, e pelas 134 gigantescas colunas papiriformes que a sustentam. Os seus colossais fustes foram completamente decorados com relevos policromados e simbolizam o grande pântano primitivo a partir do qual surgiu a vida no Egito. Todos os faraós desta dinastia quiseram engrandecer a majestosidade do lugar, cons- truindo templos, capelas e locais de culto que, progressivamente, foram dando maior poder à classe sacerdotal. Os primeiros reis da XVIII Dinastia começaram a proteger as fronteiras do Egito, reforçando militarmente os territórios conquistados no Médio Oriente e na Núbia. O país começou a abrir-se cada vez mais ao exterior e o comércio e a arte floresceram por todo o lado. A rainha Hatshepsut chegou ao trono em 1479 a.C., depois da morte do seu meio-irmão e marido Tutmés II. Com o seu reinado, iria escrever-se um dos capítulos mais apaixo- nantes das famílias reais egípcias. INÍCIO DO FLORESCIMENTO Depois de ficar viúva, Hatshepsut tornou-se corregente com o seu sobrinho menor, Tut- més III, filho do marido e de uma das suas ASC Todos os reis fizeram Questão de engrandecer o Templo de Karnak, o que deu mais poder aos sacerdotes Osíris era o Senhor dos Mortos na antiga religião egípcia. Podemos vê-lo aqui com o traje mortuário com que se mumificava. É uma ilustração baseada em obras do Império Novo. 61 A G E A S C Coluna com a cabeça da deusa Hathor, representada com orelhas de vaca A localização privilegiada do Templo Mortuário de Hatshepsut sublinha ainda mais a sua magnificência. As montanhas, ao fundo, cobrem-no como um manto. 62 Fascínio sem fi mesposas secundárias. Não demorou muito para se autoproclamar faraó, fazendo-se representar até com o arquétipo próprio de um faraó: físico masculino, rosto e corpo vigorosos, toucado e a cerimonial barba pos- tiça, como podemos observar nas imagens do seu emblemático templo funerário em Deir el-Bahari. A história da sua vida esteve ligada a diferentes lutas pelo poder, que lhe pertencia legitima- mente desde o nascimento. A ascensão da rainha ao trono aconteceu graças ao apoio de um grupo de poderosos e influentes funcio- nários da corte real. Hoje em dia, sabemos que o seu reinado foi um dos mais florescentes, do ponto de vista artístico, de todo o Egito. A arte e a cultura tiveram um impulso incrível em todo o vale do Nilo, muitas tradições antigas reativaram-se, ao mesmo tempo que surgiram grandes inovações. A rainha-faraó atribuiu grande importância à construção e ao restauro de edifícios religiosos, bem como aos contactos comerciais e diplomáticos com países estrangeiros. Impressionante, também, foi a expedição comercial que, no oitavo ano do seu reinado, Hatshepsut enviou ao país de Punt, cuja localização exata ainda hoje se desconhece. Os esplêndidos relevos do seu templo fune- rário narram que a expedição durou vários meses e percorreu mais de mil quilómetros em terras e mares estrangeiros, e que regres- sou com árvores de mirra, incenso, animais exóticos, ouro e pedras preciosas. A viagem a Punt foi um marco na história da humani- dade, por ter sido a primeira grande decisão estratégica de política internacional com o objetivo de controlar uma rota comercial importante, neste caso para os interesses do Egito. DO PACIFISMO À GUERRA Tudo o que o reinado de Hatshepsut teve de pacífico se revelou belicoso e militar no do seu sucessor, Tutmés III. Depois de subir ao trono, este mandou destruir todos os monu- mentos da sua antecessora (usurpou alguns) e fez apagar o nome da rainha enquanto faraó, de tal forma que as listas de reis que surgiram posteriormente não mencionam a presença desta mulher no trono do Egito. Ficaram famosas as suas campanhas militares contra os mitani, no atual Curdistão, assim como as realizadas na zona da Líbia e na Alta Núbia. Com Tutmés III, Tebas tornou-se uma grande capital cultural e comercial. Amenófis III, o nono faraó da XVIII Dinastia, Fascínio sem fi m Desde que, em 1922, Howard Carter descobriu o túmulo surpreendente do faraó esquecido, demorou mais de dez anos a escavá-lo, documentá-lo e extrair todo o seu tesouro. Hoje, esta incrível história cheia de mistério continua a fascinar, e a sua máscara de ouro, passados 3300 anos, con- tinua a cativar o olhar de milhões as pessoas. Carter escreveu: “A más- cara de ouro batido, um belo e único exemplar da antiga arte retratista, tem uma expressão triste mas tranquila, evocando a juventude ceifada prema- turamente pela morte. Esta máscara é, sem dúvida, uma das mais incríveis joias de ourivesaria jamais realizadas. Composta por onze quilos de ouro puro, lápis-lazúli, cornalina, turquesa, massa vítrea, quartzo e obsidiana, apresenta um rosto com uma elegân- cia inigualável. A parte traseira contém um texto extraído do capítulo 151 do Livro dos Mortos, no qual se equipa- ram os órgãos sensoriais do falecido a divindades. Ao recitar o texto, o sobe- rano torna-se um ser todo-poderoso. Este feitiço era um fortíssimo talismã na viagem para o Além e no caminho para a eternidade.” Extrair a máscara do corpo mumificado do faraó não foi tarefa fácil. O próprio Carter contou: “Estava tão presa que tive de arran- car a escopro o material por baixo do tronco, dos braços e das pernas para poder levantar os restos mortais do rei.” O corpo estava praticamente colado ao caixão por uma substância negra solidificada, por certo relacio- nada com uma quantidade excessiva de óleos e resinas usados durante a mumificação. A grandiosidade do Templo Mortuário de Hatshepsut atesta a importância da rainha-faraó 63 G E TT Y A G E IS TO C K Nenhum outro faraó da XVIII Dinastia se fez representar tanto como Amenófis III Relevo pintado na colunata sobre a expedição a Punt, no Templo Mortuário de Hatshepsut em Deir el-Bahari. Busto de madeira de Tutankamon, encontrado no seu túmulo. Os Colossos de Mémnon são duas estátuas gémeas que mostram Amenófis III a olhar para leste, em direção ao Nilo e ao Sol nascente. 64 proporcionou estabilidade e bem-estar ao país. A sua política caracterizou-se por uma audaciosa diplomacia com os reinos estran- geiros, através dos seus casamentos com as filhas de príncipes e governantes dos povos vizinhos. Nenhum outro faraó da sua dinastia mandou construir, por todo o país, tantos e tão monumentais templos e estátuas de si mesmo. Vale a pena destacar, por exemplo, os Colossos de Mémnon, que se encontravam à entrada do seu templo funerário. Akhenaton subiu ao trono quando o seu irmão mais velho, o príncipe-herdeiro, morreu prematuramente. Este monarca deu início a uma nova etapa na história da arte no Egito. Foi um rei visionário e radical e um grande reformista. Quando Akhenaton morreu, subiu ao trono um soberano efémero, seguindo-se uma criança com oito ou nove anos chamada Tutankaton, que depois mudou de nome para Tutankamon. FINAL INESPERADO Tutankamon reinou apenas durante cerca de dez anos, e o seu pequeno túmulo, pouco ade- quado para um faraó, leva a pensar que a sua morte foi súbita e que a sua verdadeira morada para o Além ainda não estava preparada. A sua sepultura foi arranjada e decorada à pressae de forma pouco cuidada. Em contrapartida, o seu incrível enxoval funerário, composto por 5398 objetos, continua a ser, ainda hoje, objeto de inúmeros estudos e análises. Tutankamon morreu aos 19 anos, sem deixar herdeiros (as suas filhas morreram antes). Como disse Howard Carter (1874–1939), o arqueólogo inglês que descobriu o seu túmulo quase intacto, em 1922, se alguma das filhas de Tutankamon tivesse sobrevivido e reinado, a história do Egito teria sido muito diferente. Assim, acabou por extinguir-se a XVIII Dinastia. V.B.T Busca incessante da morada eterna Dos 62 túmulos já desco- bertos no Vale dos Reis, apenas 24 pertencem realmente a faraós. Na ta- bela abaixo, são referidos, por ordem cronológica, os da XVIII Dinastia (1550 a 1295 a.C.) cujo túmulo foi encontrado; KV (Kings’ Valley) ou WV (West Valley); a data da sua descoberta; a pessoa que o descobriu e o tamanho do túmulo em metros. Num dos ramais ocidentais do Vale dos Reis (Kings’ Valley) está o Vale dos Macacos ou Oci- dental (West Valley), local onde foram encontrados quatro túmulos de faraós das dinastias XVIII, XIX e XX. Podemos ver que o túmulo de Tutankamon é o segundo mais pequeno da sua dinastia, o que indicia que o enterro do faraó foi repentino e improvisado. A localização exata da última morada de muitos faraós continua a ser um mistério. XVIII Dinastia Túmulo Descobrimento Descobridor Tamanho Tutmés I (m. 1493 a.C.) KV 38 1899 Loret 25 m Tutmés II (c. 1510–1479 a.C.) KV 42 1900 Carter 50 m Hatshepsut (c. 1507–1458 a.C.) KV 20 1903 Carter 200 m Tutmés III (1481–1425 a.C.) KV 34 1898 Loret 55 m Amenhotep II (m. 1401/1397 a.C.) KV 35 1898 Loret 60 m Tutmés IV (m. 1391/1388 a.C.) KV 43 1903 Carter 90 m Amenhotep III (c. 1401–1353/1351 a.C.) WV 22 1799 Jollois / Devillier 100 m Tutankamon (c. 1342–c. 1325 a.C.) KV 62 1922 Carter 40 m Ay (m. 1323/1319 a.C.) WV 23 1816 Belzoni 55 m Horemheb (m. 1292 a.C.) KV 57 1908 Ayrton 114 m 65 66 O esplendor de Luxor PÁTIO SOLAR DE AMENÓFIS III SALA DO SANTUÁRIO CAPELA DA BARCA DE JONSUDE JONSUDE JONSU CAPELA DA BARCA DE MUT CAPELA DA BARCA DE AMON SALA HIPOSTILA TERRAÇOS DO PÁTIO GRANDE COLUNATA OTemplo de Luxor, um dos locais de culto mais antigos do mundo, serve como referência para entender a magnitude das cons- truções egípcias. Foi erguido na antiga Tebas por volta de 1400 a.C. Dedicado à tríade tebana (Amon, Mut e Khonsu), estava relacionado com o Templo de Karnak, nas proximidades, do qual se separava por uma avenida de dois quilómetros rodeada por 700 esfinges com cabeça de carneiro. Um caminho que, uma vez por ano, na Festa de Opet, era percorrido por Amon, o deus do Sol, quando este regressava da visita à deusa Mut, sua mulher, em Luxor (Khonsu, o deus da Lua, foi o resultado da união de ambos). A viagem de ida desde Karnak era feita de barco, pelo rio. Iniciado por Amenófis III, 67 R E C O N S TR U C C IÓ N : J O S É A N TO N IO P E Ñ A S OBELISCO LEVADO PARA PARIS DECORAÇÃO POLÍCROMA PÁTIO SOLAR DE RAMSÉS II ACESSO AO CAIS GRANDE PILONE DE RAMSÉS II PORTA DO POVO que construiu a parte interior do templo, viria a ser acabado por Ramsés II, que pro- jetou o recinto externo. Outros reis também intervieram na sua construção, como Tutan kamon, Horemheb e, até, o conquis- tador grego Alexandre, o Grande. Tinha 260 metros de comprimento e 50 de largura. A construção inicial era formada por um grande pátio solar, a sala hipostila, o ves- tíbulo e o santuário. Mais tarde, Ramsés II acrescentaria outro pátio, a fachada, os grandes colossos e os obeliscos. As paredes do pilone descrevem a batalha de Kadesh, travada por Ramsés II contra os hititas. Dois obeliscos ladeavam a porta, mas, em 1836, um deles foi removido e levado para Paris, onde ainda hoje se encontra, na Praça da Concórdia, frente ao pátio do Louvre. 68 METROPOLITAN MUSEUM OF ART Mulher e menina do tempo de Akhenaton, num baixo-relevo de 1349 a 1336 a.C. 69 A sociedade do Antigo Egito estru-turava-se em torno da família e era tremendamente hierarqui-zada e administrada por uma elite minoritária. Neste contexto organi- zacional, as egípcias ocupavam um lugar decisivo. A capacidade administrativa, legal e jurídica das mulheres egípcias do período faraónico estava equiparada, em muitos aspetos, à dos homens. É o que os textos indicam, ao mesmo tempo que nos informam do afeto e do respeito que o varão nutria pela mãe ainda no seio familiar, partilhado depois, com as devidas precauções, com a mulher, como podemos ler em frases de sábios: “Divide ao meio a comida que a tua mãe te deu, susten- ta-a como ela te sustentou. Ela teve uma carga pesada contigo, mas nunca te abandonou.” “Não abras o teu coração à tua mulher; o que quer que lhe digas pertencerá à rua... Abre-o com a tua mãe, que é uma mulher discreta.” SER MULHER NO EGITO DOS FARAÓS A partir dos escritos e de várias cenas que decoram as paredes de túmulos, templos e papiros, entre muitos outros suportes, é fácil deduzir que a mulher egípcia participava ple- namente na sociedade em que estava inserida. As imagens mostram-nos desde mulheres de classes superiores às mais simples envolvidas em diversas atividades, representadas em cenas que nos permitem observar o quotidiano da sociedade egípcia sob uma pers- petiva de género. As inscrições associadas às suas figuras indicam-nos os cargos que as mulheres podiam ocupar e os níveis sociais que algumas che- gavam a alcançar, mas é precisamente em re- lação a essas hierarquias que constatamos que ser mulher limitava muito as egípcias. Não eram muitas as posições relevantes às quais as damas da elite podiam aspirar, embora algumas, sempre em número inferior ao dos seus pares masculinos, atingissem elevadas posições nos escalões mais destacados do governo e do clero. Foi o que aconteceu ao longo da história do estado faraónico, que reconhecia e respeitava os direitos das mulheres, mas, normalmente, as su- bor dinava à figura masculina. G E TT Y A vida das mulheres A vida A vida AA sociedade do Antigo Egito estru-sociedade do Antigo Egito estru-turava-se em torno da família e turava-se em torno da família e era tremendamente hierarqui-era tremendamente hierarqui-zada e administrada por uma zada e administrada por uma elite minoritária. Neste contexto organi-elite minoritária. Neste contexto organi- zacional, as egípcias ocupavam um lugar zacional, as egípcias ocupavam um lugar decisivo. A capacidade administrativa, legal decisivo. A capacidade administrativa, legal e jurídica das mulheres egípcias do período e jurídica das mulheres egípcias do período faraónico estava equiparada, em muitos faraónico estava equiparada, em muitos aspetos, à dos homens. aspetos, à dos homens. É o que os textos indicam, ao mesmo É o que os textos indicam, ao mesmo tempo que nos informam do tempo que nos informam do afeto e do respeito que afeto e do respeito que o varão nutria pela mãe o varão nutria pela mãe ainda no seio familiar, ainda no seio familiar, partilhado depois, com as partilhado depois, com as devidas precauções, com devidas precauções, com a mulher, como podemos a mulher, como podemos ler em frases de sábios: ler em frases de sábios: “Divide ao meio a comida “Divide ao meio a comida que a tua mãe te deu, susten-que a tua mãe te deu, susten- ta-a como ela te sustentou. Ela ta-a como ela te sustentou. Ela teve uma carga pesada contigo, teve uma carga pesada contigo, mas nunca te abandonou.” mas nunca te abandonou.” “Não abras o teu coração à “Não abras o teu coração à tua mulher; o que quer que tua mulher; o que quer que lhe digas pertencerá à rua... lhe digas pertencerá à rua... Abre-o com a tua mãe, que Abre-o com a tua mãe, que é uma mulher discreta.”é uma mulher discreta.” das mulheresdas mulheres Uma princesa de Amarna, talvez Nefertiti, numa escultura de quartzito rosa de 29 cm de altura,atualmente no Museu do Louvre (Paris). DEUS VIVO Segundo a ideologia faraónica, o trono do Egito estava destinado ao homem. Uma vez no poder, a natureza humana dessa persona- gem fundia-se com uma divindade poderosa: o deus Hórus. Nessa capacidade, o faraó, enquanto expressão máxima da realeza, tor- nava-se o instrumento sagrado que mediava entre os deuses e a humanidade. A sua con- dição de Hórus vivo obrigava-o a proteger o reino de ameaças e adversidades. Nessa missão sagrada, que envolvia dirigir e proteger o país que governava, o faraó atuava ao lado da Grande Esposa Real, título de grande significado que mostrava a importância da mulher nos meandros do poder real. TRANSMISSORAS DA REALEZA Essa tradição ditava que a esposa principal do faraó, que coexistia com outras esposas e con- cubinas do monarca, tinha de ser de linha- gem real, pois eram as princesas nascidas das esposas principais que transmitiam a rea- leza faraónica. Estas mulheres transferiam a sua condição sagrada para o marido através do casamento, e as filhas nascidas de ambos herdariam a mesma capacidade da mãe para transmitir a realeza. Esta perceção dotou as princesas reais de grande transcendência e implicou que, ao longo da história do Egito faraónico, se rea- lizassem casamentos entre irmãos, meios- –irmãos e, até, entre pais e filhas, embora muitos destes enlaces fossem meramente simbólicos e respondessem a razões proto- colares. Ao longo da história do Antigo Egito, estes preceitos ideológicos foram sendo obviados, em certas ocasiões. Durante a XVIII Dinastia, verificaram-se, até, algumas irregularida- des. A que mais se destaca é a ascensão ao trono da rainha Hatshepsut, ocorrido pouco depois de 1470 a.C. Na mesma dinastia, houve esposas principais na realeza faraónica, como a rainha Tiy e Nefertiti, que não pertenciam à linhagem dinástica. No entanto, apesar da sua chegada irregular à realeza, estas duas mulhe res afirmaram fortemente o seu poder: atuaram à margem da discrição que havia caracterizado as suas antecessores e deixaram a sua autoridade registada em inúmeros monumentos da época. SENHORA DA CASA Como viviam as mulheres naquele tempo? Nos túmulos dos homens da XVIII Dinastia, é frequente encontrar cenas que mostram o dono do monumento e a sua mulher. Ambas as figuras costumam estar equiparadas em tamanho e no tipo de ornamentos que exi- bem. As inscrições hieroglíficas, dedicadas principalmente ao varão, incluem, em regra, o nome da sua mulher acompanhado pelo título de “senhora da casa”, o que assinala a sua importância no âmbito do lar. Outras vezes, as inscrições expunham, se fosse o caso, o cargo por ela detido, frequentemente relacionado com o culto de uma divindade. 70 G E TT Y As filhas de Akhenaton foram largamente representadas, o que demonstra a sua importância; aqui, num fresco de Amarna datado de 1353 a 1335 a.C. Alguns destes túmulos também oferecem representações de banquetes ou outras celebrações em que participam grupos femi- ninos. Essas mulheres aparecem cobertas com amplos vestidos de linho, grandes perucas e adornadas com joias e outros acessórios que fazem sobressair a sofisticação e o luxo femi- nino da época nos círculos mais abastados. Nestas representações, as mulheres da nobreza são cuidadas por jovens que se cobrem apenas com uma faixa de tecido, expondo os seus corpos com naturalidade. Algumas destas jovens integram orquestras femininas que acompanham a festa, atuando ao lado de outras tangedoras de instrumentos que usam igualmente vestidos requintados. Na deco- ração de túmulos, templos e capelas, veem-se ainda cenas em que dançarinas profissionais animam as mais diversas celebrações. Noutros suportes semelhantes, as mulheres aparecem como carpideiras nos cortejos fúnebres que acompanhavam os defuntos até ao cemitério, bem como em variadíssimas cenas da vida quotidiana. No entanto, o número em que estas figuras surgem representadas é sempre menor do que o dos homens em tarefas semelhantes. Resumidamente, a partir destas e de outras fontes documentais, sabemos que as mulhe res egípcias de diferentes meios sociais da XVIII 71 A S C Este baixo-relevo de Amarna pode representar Akhenaton e Nefertiti, Semenkhkare e Meritaton ou Tutankamon e Ankhesenamon. G E TT Y Tutankhamon e Ankhesenamon sob o disco solar, no encosto de um dos tronos encontrados no seu túmulo. Dinastia cuidavam das suas casas e participa- vam nos cultos dos deuses, atendiam como anfitriãs, convidadas ou servas em várias fes- tividades, eram músicas e dançarinas, chora- vam os seus mortos e participavam nos rituais fúnebres, trabalhavam no campo, cuidavam das crianças e desempenhavam tarefas de intendência. GRANDE ESPOSA REAL No nível superior daquela sociedade, havia espaço para as damas da realeza. Entre elas, destacava-se a figura da Grande Esposa Real, que ocupava os cargos mais relevantes do clero feminino, seguindo-se, por ordem de importância, as princesas nascidas dela, capazes de transmitir a condição divina, e a mãe do rei. Ainda nesse meio, conviviam as outras esposas oficiais do faraó e as suas con- cubinas. Entre as primeiras mulheres de sangue real da XVIII Dinastia, esteve a princesa Ahho- tep, filha do rei tebano Seqenenre Taa I e da rainha Tetisheri, monarcas da XVII Dinastia. Ahhotep foi a Grande Esposa Real do seu irmão Seqenenre Taa II. Deste casamento, nasceram pelo menos quatro príncipes: duas meninas e dois meninos, ambos chamados Amósis. O primeiro morreu, provavelmente na ado- lescência; o segundo viria a ocupar o trono do seu pai, após o reinado de Kamose, e foi o pri- meiro faraó da XVIII Dinastia. A rainha Ahho- tep I tinha na altura o título de Mãe do Rei. Pelo menos durante uma década, Ahhotep I foi regente do jovem faraó Amósis I, que sempre reconheceu que ele e o Egito muito deviam ao bem-fazer desta rainha. Durante os primeiros reinados da XVIII Dinastia, o título de Grande Esposa Real foi usado por princesas descendentes de Ahhotep I e da linhagem que tinha fundado a dinastia. Os seus casamentos colocaram no trono do Egito os faraós Amenófis I, Tutmés I e Tutmés II. À morte deste último, a sua viúva e meia-irmã, Hatshepsut, assumiu a regência em nome do jovem príncipe Tutmés III, nascido de uma esposa secundária do rei falecido. Alguns anos depois, Hatshepsut autoproclamou-se faraó e, apesar da sua condição feminina no trono de Hórus, esteve no poder durante mais de vinte anos. Sucedeu-lhe Tutmés III, do qual duas das suas mulheres, Sitiah e Hatshepsut Merira, ostentaram o título de Grande Esposa Real, embora a sua pertença à linhagem funda- dora da dinastia seja duvidosa. Outra Grande Esposa Real de Tutmés III pode ter sido a sua meia-irmã, a princesa Neferure, filha de Hat- shepsut, sendo este o casamento que conferiu a realeza ao faraó. ESPOSAS PLEBEIAS Os monarcas que lhe sucederam, Amenó- fis II e Tutmés IV, tinham esposas principais nascidas no seio da realeza. Apesar disso, o sucessor de Tutmés IV, Amenófis III, era filho de uma princesa estrangeira, segundo parece filha do rei de Mitani, país que se situava na zona norte do Médio Oriente. Esta rainha, cujo casamento com Tutmés IV selava um acordo diplomático, é conhecida nas fontes egípcias com o nome de Mutemuya e osten- tou os títulos de Grande Esposa Real, apesar 73 A G E As mulheres cuidavam das casas e das crianças, participavam no culto dos deuses e tinham vida social Busto do Templo de Hatshepsut, provavelmente representando a rainha. da sua origem estrangeira, e de Mãe do Rei. Outras mulheres alheias à realeza alcançaram as mesmas distinções nos reinados seguintes: Amenófis III teve como esposa principal Tiy, nascida de um casal de nobres com cargos relevantes na corte e no clero. Este rei teve outras mulheres, algumas delas estrangeiras, como Gilukhipa e Tadukhipa, de origem mitânica. De Amenófis III e Tiy, nasceramtrês filhas, as princesas Sitamon, Ísis e Henuttabet, e três filhos, os príncipes Tutmés, que morreu na adolescência, Semenkhkare, cuja filiação foi recentemente constatada através de estudos 74 G E TT Y A G E Estela de Akhenaton, Nefertiti e uma princesa de Amarna, que não se vê na foto (Museu do Cairo). Representação de Amenófis III e da mulher, a rainha Tiy, ataviados com o tipo de roupa e objetos próprios da sua condição. genéticos, e Amenófis IV, também conhecido como Akhenaton e que veiculou o seu reinado a Nefertiti, elevando-a a Grande Esposa Real. Casou-se também com a rainha estran- geira Kiya, que alguns investigadores identi- ficam como a mitânica Tadukhipa, anterior- mente casada com Amenófis III. As mulheres mais significativas nos reinados de Amenófis III e de Akhenaton foram, sem dúvida, as suas esposas principais, Tiy e Nefertiti. Apesar de não pertencerem a uma linhagem real, nenhuma delas hesitou em manifestar o seu estatuto de Grande Esposa Real em cenas e representações que partilham com os seus maridos. AMBIENTE FAMILIAR Foi também no meio da realeza que nasceu um príncipe chamado Tutankaton, nome que o ligou a Aton, o deus único proclamado na revolução de Akhenaton. Tutankaton nasceu e cresceu em Akhet-Aton, a capital da heresia. Do seu ambiente infantil, faziam parte as esposas principais e outras rainhas de Ame- nófis III, de Akhenaton e de Semenkhkare, irmão daquele, e várias princesas aparentadas com ele com o grau de irmãs, meias-irmãs, tias e primas, além da sua mãe. Entre estas mulheres e meninas de várias idades, estariam as seis filhas de Akhenaton e de Nefertiti: Meritaton, que detinha o título de Grande Esposa Real associado a Nefer- nefruaton, nome aparentemente usado por Nefertiti como corregente do seu marido, e a Semenkhkare, que sucedeu por pouco tempo a Akhenaton, em Amarna; Maketaton, que morreu na infância; a princesa Ankhesenpa- aton, conhecida também como Ankhesena- mon, com a qual Tutankaton viria a casar; e as princesas Nefernefrutaton-Tasherit, Nefernefrure e Setepenre, sobre as quais há poucos dados. Além das filhas de Akhenaton e de Nefertiti, conhecem-se os nomes de outras princesas que podem ter nascido da união de Akhena- ton com a rainha Kiya. Estas e muitas outras mulheres da corte, que foram amas-de-leite, acompanhantes, educadoras e servas, fize- ram parte do quotidiano do príncipe egípcio que conhecemos como Tutankamon. M.J.L.G.T 75 A G E No luto pela morte de um faraó, as mulheres desempenhavam o papel de carpideiras. Tutankamon, como príncipe, viveu numa corte cheia de irmãs e meias-irmãs 76 Cleópatra VII, a última rainha do Egito antes da anexação por Roma, não reinou sozinha, mas como consorte dos irmãos, embora tenha estado sempre ao comando. G E TT Y 77 E m mais de três milénios de histó-ria (3100–30 a.C.) do Antigo Egito, foram poucas as mulheres que se destacaram no poder. Mesmo assim, o estatuto social e as possibilidades de acesso a postos de comando das egípcias era muito superior ao das gregas ou romanas, o que se devia por um lado ao facto de em termos legais haver igualdade em relação aos homens (podiam denunciá-los por maus tratos, gerir heranças, comprar e vender imóveis ou divor- ciarem-se), e por outro às particularidades da sua religião, com a deusa Ísis à cabeça. A relevância das mulheres na corte é indiscu- tível. A Grande Esposa Real tinha um grande poder, fosse na sombra ou como cor regente, sendo considerada guardiã e protetora da nação. Além disso, casar com uma mulher de sangue real dava legitimidade e facilitava o acesso ao trono por parte dos varões (daí os frequentes casamentos entre irmãos). O trono estava, em princípio e por tradição, reservado ao homem, mas, devido a vazios na sucessão, por não haver um aspirante evidente, várias rainhas ocuparam a mais alta posição do país do Nilo. TRÊS, CINCO, OITO, MAIS? Quem e quantas foram estas mulheres extraordinárias? Segundo o historiador greco- -latino Diodoro Sículo (90–30 a.C.), que compilou tudo o que se sabia sobre faraós, tinham sido apenas cinco: por ordem crono- lógica, Nitocris, Neferusobek, Hatshepsut, Nefertiti e Tausert. Para chegar a estes núme- ros, ele e outras fontes clássicas recorreram ao trabalho anterior de Maneton, sacerdote egíp- cio que, na época ptolemaica (século III a.C.), se encarregou de redigir a história do seu país e de fazer o censo da longa lista dos seus reis. No entanto, o número real das rainhas-faraó não é consensual. Os achados arqueológicos trouxeram alguma luz sobre outras possíveis candidatas, pelo que é possível que continuem a aparecer pistas resgatadas do esquecimento, em muitos casos nem casual nem inocente, porque a sua memória foi perseguida e des- truída pelos sucessores masculinos. Hoje, está historicamente documentado o reinado de apenas três delas: Neferusobek, Hatshepsut e Tausert. As outras duas da lista de Maneton e Diodoro (a obscura Nitocris e a fascinante Nefertiti) têm-se como muito prováveis. Há mais três, até um total de oito, que emergiram das sombras do passado, envolvidas em dúvidas prudentes por serem muito anteriores no tempo. MERITNEITH E AS DUAS KHENTKAUS Meritneith é a mais antiga de todas, mas ainda não se pôde demonstrar que tenha chegado a governar com poder absoluto. Viveu por volta do ano 3000 a.C., no início da I Dinastia (Período Arcaico). O egiptólogo inglês W.F. Petrie (1853–1942) catalogou-a como um faraó masculino chamado Merneith, mas várias descobertas, como a ausência do nome Hórus (símbolo do rei composto por um falcão sobre um serej), demonstraram que quem foi a enterrar com insólitas honras reais, num grandioso túmulo em Abidos, foi uma mulher. Ela foi regente do seu filho Den enquanto este foi menor, mas a incógnita é se chegou a possuir títulos próprios de um faraó ou se se limitou a ser tutora do jovem herdeiro. Poder no feminino 78 A rainha Tau- sert (aqui, numa pintura mural do túmulo de Irinufer, em Luxor) fechou a XIX Dinastia.ASC 79 Primeiras-damas influentes Algumas Grandes Esposas Reais, as principais mulheres do harém, ultra- passavam as funções do seu título. Foi o caso de Tiy, a “primeira-dama” de Amenófis III, que governou o Egito de 1386 a 1349 a.C. Apesar da sua origem plebeia, vários manuscritos (por exemplo, uma carta de Tushratta, rei de Mitani) mostram uma capacidade de tomada de decisão política semelhante à do seu cônjuge. Eram muito uni- dos, desde o seu casamen- to com apenas dez anos, e aparecem como iguais nas imagens que os honram. Tiy era a mãe de Akhenaton e, portanto, sogra de Nefer- titi, outra consorte lendária, não só pelo seu extraordi- nário físico, mas também pela autoridade de que usu- fruiu. O mesmo aconteceu com Nefertari (1295–1186 a.C.), Grande Esposa Real de Ramsés II, cujo poder se reflete nos monumentos onde surge ao lado do marido em Abu Simbel. Houve também esposas secundárias que tiveram um papel ativo na vida pública, como algumas do final da XVII Dinastia (Tetisheri ou Ahhotep), que se desta- caram na guerra contra os hicsos tanto quanto os seus companheiros masculinos. Ainda mais enigmático é o caso das duas seguintes e hipotéticas rainhas-faraó, que partilham o nome e a etapa histórica, o Império Antigo. Da primeira, Khentkaus I, testemu- nham-na o seu túmulo em Gizé e uma pequena pirâmide em Abusir que lhe é dedicada. Esti- ma-se que tenha vivido na IV ou na V Dinastias (2510 a 2470 a.C.). O que desconcerta os egiptólogos são as representações nas quais aparece adornada por um uraeus (coroa com a serpente) e com a barba postiça faraónica. É conhecida, embora haja quem diga que é uma tradução imprecisa, por “Rei do Alto e Baixo Egito e Mãe do Rei do Alto e Baixo Egito”. Dizem ser parecida com a figura de Dyedefptah, o suposto último faraó da IV Dinastia, mas semcertezas. Igualmente incertos são os dados sobre Khentkaus II, já pertencente à V Dinastia: terá sido um faraó ou apenas mãe de um? Há várias representações suas com o uraeus e a barba, o que faz as duas Khentkaus serem as únicas a exibir esses atributos até à chegada de Hatshepsut, cerca de mil anos depois. DE NITOCRIS A TAUSERT A imprecisão também tira protagonismo à pioneira das rainhas-faraó. Segundo os histo- riadores clássicos, Nitocris, que é mencionada em certas listas reais, terá governado sozinha durante dois anos, de 2183 a 2181 a.C., fechando a VI Dinastia. O historiador grego Heródoto (século V a.C.) fez dela uma lenda e conta que, para vingar a morte do seu marido, Merenra II, afogou no Nilo os assassinos, incluindo o seu próprio irmão, e, em seguida, suicidou-se lançando fogo a si mesma. Maneton elogiou-a pela sua beleza e bravura e atribuiu-lhe erradamente a terceira pirâmide de Gizé (de Miquerinos). É de certeza uma personagem central na crise que pôs fim ao Império Antigo. O Império Médio aniquilou outra soberana, Neferusobek, que reinou durante pelo menos quatro anos, de 1777 a 1773 a.C. (foi a última governante da XII Dinastia). Também pouco se sabe sobre ela: filha de Amenemhat III, terá assumido o poder depois de enfrentar o irmão, Amenemhat IV, com quem, em princípio, o partilhava. O seu nome de coroação consta da lista real de Saqqara e foi na sua época que se ergueu o complexo funerário de Ame- nem hat III, em Hawara. Apesar dos tempos conturbados em que viveu, parece que a sua sucessão foi pacífica. A seguinte da lista, a transcendental Hats- hepsut, merece um capítulo à parte, tal como Nefertiti, quer pela sua faceta de consorte de Akhenaton, quer pela (discutível) de rainha- -faraó. Isto leva-nos até à quinta e última, a rainha Tausert, que surge igualmente num período Perseguida pelo clero, pelos militares e pelos governantes núbios, Tausert reinou durante apenas dois anos 80 Nefertiti ou Semenkhkare? É sabido que Nefertiti, a Grande Esposa Real de Akhenaton, o herege monoteísta de Amarna, foi a única mulher de um faraó tornada corregente oficial pelo rei (com o nome Ankh- kheperura Neferneferuaton). No entanto, após 14 anos de reinado, perde-se por completo o seu rasto. Uma teoria diz que a dor da sua morte fez Aakhenaton per- der a memória, mas cada vez são mais os especialis- tas a defender a possibili- dade de ela realmente não ter morrido, tendo mesmo sobrevivido ao faraó, falecido por volta de 1337 a.C., e substituindo-o com nome de Semenkhkare. Este nome aparece ligado a um brevíssimo corregente no final da vida de Akhena- ton e reinou sozinho durante mais alguns meses, até à subida ao trono do ainda muito jovem faraó Tutankamon. Segundo esta teoria, o fantasmagórico Semenkhkare não teria sido um homem, mas sim a própria Nefertiti transfor- mada em rainha-faraó para assegurar o trono contra os inimigos do seu amado falecido. Vestígios arqueoló- gicos em que aparece com atributos faraónicos (à esquerda) dão aval a esta tese. caótico e conflituoso: o fim da XIX Dinastia, a de Seti I e Ram sés II. Quando morreu o seu marido, Seti II, Tausert assumiu a regência do seu filho Siptah e, após a morte deste, subiu ao trono e governou durante dois anos, de 1188 a 1186 a.C. Não foi tarefa fácil: perseguida pelo clero de Amon, pelos militares e pelos reis núbios e questionada pelo povo, acabou der ru bada por Sethnakhte, o fundador da XX Dinastia, que manchou a sua memória com calúnias e lendas. HATSHEPSUT, A PODEROSA A verdadeira rainhafaraó na história do Egito é, sem dúvida, a formidável Hatshepsut, cujo reinado de 22 anos (1479 a 1457 a.C.) foi o mais longo dos governados por mulheres. É um para digma de poder feminino no mundo antigo. Filha predileta do faraó Tutmés I (que, segundo algumas fontes, a nomeou herdeira num papiro), era ambiciosa e inteligente e tinha grandes capacidades de comando. Soube usar o seu sangue real para se esquivar às arma dilhas sucessórias, casando com o irmão, Tutmés II. Ao enviuvar, e num gesto sem precedentes, afastou o herdeiro, Tutmés III, da linha dinástica, argumentando a sua tenra idade e uma linha gem duvidosa, dizendo ser filho de uma con cu bina, e vestiuse com o traje e a barba de faraó. Foi apoiada por duas pessoas pode rosas: o alto funcionário Hapuseneb e o arqui teto real Senenmut (provavelmente, um amante seu). Autoproclamouse filha de Amon, uma jogada de mestre cujo apoio teve de “comprar” aos sacerdotes do culto àquele deus, o que explicaria o excessivo poder pos terior deste clero. Assim começou uma das etapas mais prósperas e pacíficas da XVIII Dinastia e de todo o Antigo Egito. A rainha organizou campanhas defen A LB U M Nefertiti foi nomeada corregente pelo marido, Akhenaton 81 sivas na fronteira, dedicou-se a questões como a famosa expedição a Punt, o mítico país da mirra, restaurou templos e edifícios destruídos durante as guerras com os hicsos e mandou erguer construções fabulosas em Tebas, incluindo obeliscos memoráveis. Senenmut concretizou ainda o seu projeto mais conhe- cido, o Templo Dyeseru (em Deir el-Bahari), joia do Egito monumental. Ainda por cima, Hatshepsut foi, que se saiba, a única mulher faraó que se fez representar como esfinge. A sua estrela foi-se apagando com as mortes de Senenmut e de Hapuseneb, provavelmente maquinadas por Tutmés III, o seu sucessor, que a odiava por tê-lo afastado, e que destruiu, assim que pôde, o seu legado. A rainha ainda tentou estabelecer uma dinastia feminina, nomeando como corre- gente a sua filha Neferure (nascida talvez da relação com o arquiteto), mas a morte ines- perada da menina terá frustrado este sonho e Hatshepsut acabou por morrer no seu palá cio de Tebas antes de completar 50 anos. A sua múmia, descoberta no Vale dos Reis ao lado da do seu amado pai, revelou, quando foi analisada em 2007, que a soberana, nos seus últimos anos de vida, sofria de diabetes, obesidade e alopecia. CLEÓPATRA: UM FIM GLORIOSO As últimas rainhas do Egito surgiram no tempo dos ptolemeus, uma dinastia que governou o país entre 305 e 30 a.C. após ter sido instaurada por Ptolemeu I Sóter, general de Alexandre, o Grande. Não renun- ciaram à sua essência helénica e foram rainhas porque se casaram com os seus irmãos, de forma a legitimá-los no trono. Algumas destacaram-se, como foi o caso de Cleópa- tra II (185–116 a.C.) ou Berenice III (116–80 a.C.), mas nenhuma como a última antes da anexação do Egito ao Império Romano: Cleó- patra VII. A sua história está cheia de mitos: sobre a sua beleza, sobre o seu nariz... Mais do que à aparência física, o historiador grego Plutarco (46–120 d.C.) atribuiu o seu magnetismo à inteligência e aos modos requintados. Muito instruída, falava várias línguas além do grego (foi o primeiro representante ptolemaico que aprendeu egípcio). Foi coroada em 51 a.C., aos 17 anos, com o seu irmão, Ptolomeu XIII, de apenas 12, com quem casou, de acordo com a tradição. No entanto, Ptolomeu deixou- -se levar pelas intrigas de Arsinoe, irmã de ambos, e, juntamente com o eunuco Potino, conseguiram afastar a jovem do trono e expulsá-la de Alexandria. Com o amor e a cumplicidade de Júlio César, Cleópatra recuperou o trono, não sem passar por uma guerra civil na qual ardeu a Biblioteca de Alexandria. Assegurou o seu estatuto de rainha casando com outro dos seus irmãos, Ptolomeu XIV, e da sua relação com César nasceu um filho, Ptolomeu XV, conhecido como Cesarião. No seu reinado, Cleópatra embelezou a capital helenística egípcia com várias obras públicas e, após a morte de César (44 a.C.), reeditou a sua história de amor com um dos aspirantes à sucessão romana, Marco António, com quem teve três filhos. Entretanto, havia seguido um cruel costume ptolemaico: envenenou o segundo marido, para não ter de partilhar o poder a não ser com Cesarião. Confrontada com o novo líder romano, Otávio Augusto, e com o povo egípcio mergu lhado na fome, Cleópatra e o seu amado caíram na batalha de Áccio (31 a.C.) e, em seguida, suicidaram-se. Segundo a lenda, a última rainha do Egito ter-se-á feito morder por uma serpente venenosa. N.O. Hatshepsut foi representada com os atributos faraónicos: a barba postiça e a coroa dupla. A LB U M 82 Olho de Hórus ou de Rá, símbolo apotropaico egípcio que conferia poderes curativos e protetores. S H U TT E R S TO C K 83 O Livro dos Mortos S egundo o sacerdote egípcio Maneton (século III a.C.), a V Dinastia terminou com o reinado de Unas, cuja pirâmide está situada em Saqqara, perto do re- cinto funerário construído em honra do faraó Djoser. Nela, destaca-se uma longa e bela cal- çada, decorada com cenas de episódios con- cretos da biografia do faraó. Esta não é, no entanto, a principal inovação do monumento, porque a pirâmide sobressai ainda mais por ser a primeira em cujas câmaras funerárias se gravaram textos: os Textos das Pirâmides. Estes são as composições religiosas mais antigas do Egito, pelo menos entre o que sabemos atualmente, e nelas expressam-se o desenvol- vimento da religião egípcia e as crenças sobre o mundo além-túmulo desde os tempos pré- -dinásticos. No caso da de Unas, vemos uma clara tentativa de identificar o faraó com os deuses Rá e Osíris, embora também se detete o desenvolvimento de uma série de conceitos relacionados com os astros e outros de mais difícil compreensão. Os motivos por que foram gravados no interior do túmulo são óbvios: eram essenciais para garantir a sobrevivência do rei na vida após a morte. PROTEÇÃO PARA O FARAÓ MORTO Aos poucos, a crença de que depois da morte física do faraó se entrava no reino de Osíris foi-se generalizando entre os egípcios. Jun- tamente com o deus-Sol Rá, Osíris acabou por ter um protagonismo especial no âmbito funerário. Curiosamente, os Textos das Pirâ- mides são escritos com um tipo de hieróglifos pouco comum, pois alguns dos ideogramas que representam humanos e animais ficaram incompletos ou foram desenhados com muti- la ções, para evitar que causassem qualquer tipo de dano ao faraó morto. Sublinhe-se que, com o passar das gerações, estes textos deixaram de ser um privilégio exclusivo dos faraós, tendo sido igualmente utilizados pelos governadores regionais, pela aristocracia e pelos funcionários públicos de nível superior. A descentralização política associada ao Primeiro Período Intermédio é também visível no que se refere ao mundo religioso e funerário, como podemos observar numa série de gravuras feitas nas partes late- rais dos caixões de madeira, que representam uma série de fórmulas mágicas e litúrgicas que, juntas, recebem o nome de Textos dos Sarcófagos. APOIAR O FALECIDO NO SEU CAMINHO A origem deste novo corpus pode ser rastreada nos Textos das Pirâmides, já que ambos costumam aparecer juntos em sarcófagos do Império Médio. Apesar de tudo, os Textos dos Sarcófagos incluem um modelo diferente e novos conceitos relacionados com o reino dos mortos. A sua principal contribuição é a inclusão das famílias dos falecidos, bem como de servos e amigos do defunto. A arqueologia detetou uma série de mudanças na estrutura dos túmulos, pois desde o Primeiro Período Inter- médio predominam as mastabas com múltiplas salas para acomodar famílias numerosas. Por outro lado, as novas fórmulas sagradas e os rituais funerários refletem uma clara influência As fórmulas sagradas eram pintadas nas paredes das câmaras funerárias para orientar o falecido na vida após a morte 84 Papiro do Antigo Egito com uma passagem do Livro dos Mortos. Na página oposta, Toth, deus antropomórfico com cabeça de pássaro. Era acompanhado nas suas representações por um estilete e pela tábua de escriba celestial, usada para tomar nota dos pensamentos, palavras e atos dos homens cujos corações serão pesados na balança. de ajudar o falecido a superar os perigos, a encontrar o caminho da viagem pelo duat (o submundo onde ocorria o Tribunal de Osíris), e a ser capaz de preservar a sua imortalidade. Além disso, permitem lembrar métodos para satisfazer necessidades quotidianas, como alimentar-se na outra vida. DIFUSÃO PROGRESSIVA O Livro dos Mortos, entendido como um con- junto de sortilégios mágicos destinados a aju- dar os defuntos a superar o Tribunal de Osíris e a apoiá-los na sua viagem para a outra vida (a aru) através do reino do submundo, tem origem no Segundo Período Intermédio, por volta de 1650 a.C., em contextos funerários da cidade de Tebas. Os primeiros feitiços típicos deste texto religioso (não presente em perío- dos anteriores) podem ser vistos no túmulo da rainha Mentuhotep, da XVI Dinastia, embora pareçam ter uma origem muito anterior. Na XVII Dinastia, o seu uso já se havia esten- dido entre os cortesãos e funcionários mais proeminentes do estado egípcio. Isto torna-se evidente a partir do Império Novo, quando aparece o capítulo 125 na XVIII Dinastia, no qual é representada a pesagem do coração, que tanta influência teve noutros sistemas religiosos muito posteriores ao egípcio. A partir de então, o Livro dos Mortos apareceu escrito num rolo de papiro e com o texto ilustrado com desenhos, algo que na XIX Dinastia alcança uma grande riqueza estilística. Embora esteja mais ligado ao Império Novo, a época de maior difusão deste enigmático texto religioso surge mais tarde. O Terceiro Período Intermédio conhece o aparecimento da versão em escrita hierática, destinada a satisfazer as necessidades funerárias de toda a sociedade egípcia. Durante esta fase, come- ça ram a circular outros textos funerários, como o Livro de Amduat, um reflexo fiel da obsessão que os habitantes do país do Nilo tinham por compreender a vida além-túmulo. Esta versão é a que se vai manter no período ptolemaico, mas partilhando importância com outras escrituras sagradas, como o Livro das Respirações ou o Livro para Percorrer a Eternidade. A INFLUÊNCIA NOS ROMANOS E CRISTÃOS O Livro dos Mortos deixou de ser utilizado no século I a.C., embora a sua influência perma- S H U TT E R S TO C K 85 G E TT Y Câmara funerária de Tutmés III. Nas paredes, vê-se a versão completa do Livro de Amduat, que define os feitiços e encantamentos necessários para vencer as forças do mal durante a viagem noturna para o outro mundo (XVIII Dinastia, Vale dos Reis, Tebas). 86 neça: faz-se sentir na época romana e também no aparecimento da nova religião cristã, cuja natureza não se poderia compreender sem recorrer à memória das antigas crenças do Egito faraónico. Quanto ao seu conteúdo, o livro é composto por um grupo de textos individuais, mas que em conjunto apresentam uma unidade com um significado coerente. A maioria dos fragmentos em que está dividido começa com a palavra ro, cuja tradução mais aproximada poderá ser “capítulo” ou “sortilégio”. Até hoje, conse- guiram identificar-se 192 destes sortilégios, embora não haja qualquer manuscrito indi- vidual que reúna todos. A sua finalidade é muito variada: alguns dão ao falecido uma imagem o mais aproximada possível sobre o que o espera no Além; outros incluem métodos para garantir que as três partes em que o homem se divide (corpo, alma e espírito) possam reencontrar-se novamente no outro mundo; outros ainda visam proteger o defunto das forças hostis do submundo, para que possa superar os obstáculos antes de alcançar a “salvação”. MAGIA E RELIGIÃO A leitura do Livro dos Mortos permite-nos verificar a união de elementos mágicos e religiosos nas relações estabelecidas pelos homens e pelas mulheres do Nilo com os deuses do extenso panteão egípcio. Para eles, a fronteira entre a magia e a crença religiosa não estava bem definida. A magia (heka) relacionava-se com a força da palavra criadora, suficiente- mente poderosa para influenciar as decisõesdas divindades. O simples ritual de pronunciar uma palavra estava associado ao ato de criação, sendo este um dos elementos característicos do pensamento egípcio que influenciaria o nascimento de outros sistemas religiosos. Para os egípcios, a sua própria escrita hiero- glífica tinha uma origem divina, por ter sido inventada por Toth. Vista nesta perspetiva, não se estranha a sua crença na necessidade de saber o nome místico de qualquer ele- mento para se ter poder sobre ele. Não é em vão que uma das principais preocupações do Livro dos Mortos era dar a conhecer o nome secreto dos seres do submundo, para conferir ao morto controlo sobre eles. Nem todos os sortilégios presentes no texto foram representados em papiro, já que alguns foram feitos em amuletos mágicos destinados a proteger os defuntos dos perigos do Além. Alguns destes amuletos foram encontrados escondidos entre as ligaduras das múmias egípcias (por exemplo, o escaravelho). C.S.T. Um dos momentos principais da segunda vida do defunto era a pesagem do coração, onde os egípcios colocavam aquilo a que mais tarde se chamaria “alma” A maioria dos estudiosos distingue quatro secções no Livro dos Mortos. A primeira (capítulos 1 a 16) define os passos pelos quais o falecido entra no túmulo, desce para o submundo e, posteriormente, recupera a fala e a compreensão. A segunda (cap. 17 a 63) fala sobre a origem mítica dos deuses, além da necessidade que os falecidos têm de voltar a viver, podendo renascer como o Sol da manhã. A terceira (cap. 64 a 129) narra a viagem do falecido através dos céus a bordo da Barca Solar e a sua des- cida para o submundo para se encontrar com Osíris ao cair da noite. Finalmente (cap. 130 a 189), o espírito do falecido assume o poder do cosmos depois de ser aceite pelos deuses e após superar o julgamento a que vai ser submetido pelo deus Osíris (a pesagem do coração). Estrutura do texto sagrado 87 A LA M Y 88 A última viagem 89 Pôr do Sol no Nilo e Templo Egípcio (1869), obra de Carlo Macro atualmente no Museu Stibbert (Florença, Itália). GE TT Y A última viagem 90 A civilização egípcia desenvolveu-se du-rante mais de 3000 a n o s ; p o r t a n t o , muitas das crenças acerca da morte e do Além foram mu- dando ao longo da sua história. No entanto, desde o início que os antigos egípcios se recusavam a ter apenas uma vida física e temporária e, para isso, instituíram uma série de ideias religiosas com o objetivo de alcançarem a imortalidade, baseadas em ciclos de morte e renascimento. Não podemos esquecer que a religião e a política estavam intimamente ligadas e apoiavam-se no conceito abstrato de Maat. Este termo poderia traduzir-se por “verdade, justiça universal, harmonia, ordem natural”. Estava representado por uma deusa com o mesmo nome, filha de Rá. Esta ordem gover- nava o universo e, graças a ela, o Sol aparecia todos os dias, havia cheias no Nilo e os mortos renasciam no Além. SEGUNDA VIDA Os egípcios acreditavam que todos os seres humanos são formados por vários elementos, tanto materiais e tangíveis como imateriais e intangíveis. Alguns podiam ser integrados na esfera terrena, mas outros permaneciam na esfera não palpável, mais próximos do mundo dos deuses. Quando a morte ocorria, estes elementos desagrega- vam-se e a única forma de voltar a reuni-los era através dos rituais fúnebres. Assim se chegava à sobrevivência e à imortalidade. Se hoje temos estas informações, isso deve-se ao facto de se terem conseguido preservar muitos textos funerários que aludem a elas. Esta cena do túmulo de Irynefer, em Deir el-Medina, mostra a saída da sombra do defunto e do seu ba para a luz do dia. A G E 91 Graças aos egiptólogos, pôde-se estudar e listar os elementos que compunham o ser humano. Muitos são difíceis de compreender, mas podem resumir-se no que se segue. O ka é a força vital de cada indivíduo, ou seja, o seu caráter, a sua natureza, o seu tempera- mento. Nasce com cada pessoa, moldado pelo deus Khnum no seu torno de oleiro, ao mesmo tempo que o corpo físico. É representado com duas mãos levantadas e pode sobreviver depois da morte do indivíduo, que, para isso, necessita que se realizem cultos funerários e oferendas de alimentos. O túmulo é o seu lar. Ba pode traduzir-se por “alma”, embora não tenha a mesma conotação que nós lhe damos. Podemos defini-la como a nossa ideia de per- sonalidade, ou seja, o aspeto ou as caracterís- ticas de cada indivíduo que o tornam único. Pensava-se que este fugia com a morte do indivíduo e que viajava para se unir ao ka e transformar-se no akh. Representa-se com um pássaro com cabeça humana. Todas as noites, o ba deve reunir-se com o corpo para poder sobreviver eternamente. O akh é o sopro da vida, espírito eterno e transfigurado de uma pessoa morta que se forma quando o ba se une ao ka no Além. Representa-se como uma múmia. Pensava-se que era duradouro e imutável e que residia para sempre no submundo. O nome, rn, também era parte primordial do ser, já que sem ele não se pode existir. Costu- mava ser atribuído após o nascimento. Muitas vezes, para castigar os faraós (como aconteceu com Hatshepsut ou Akhenaton), procedia-se à damnatio memoriae, ou seja, os seus nomes eram eliminados dos monumentos, e assim condenados ao esquecimento. Shwt, a sombra, era outro elemento impor- tante e essencial do ser humano: para que o indivíduo esteja completo, precisa de ter uma, para se proteger de possíveis males. Era uma entidade imbuída de poder e capaz de se mover a grande velocidade. Um ser humano era composto por vários elementos, que a morte desagregava O processo de mumificação e o ritual fúnebre foram mudando ao longo de milhares de anos. Vasos canópicos identificados com as divindades que guardavam cada órgão. GETTY G E TT Y 92 Estes cinco elementos variaram ao longo da história do Egito. Por exemplo, enquanto no Império Antigo (c. 2575–2125 a.C.) o ka tinha maior importância e era o elemento essencial, depois do Primeiro Período Intermédio (c. 2125–1940 a.C.), foi a vez de o ba, inicial- mente reservado aos deuses e ao faraó, se estender à elite e à classe média, tendo depois grande importância durante o Império Novo (c. 1539–1069 a.C.), altura em que se inten- sificou a procura da vida eterna. Foram encontrados cerca de 14 componentes do ser humano referentes àqueles momentos, que podem ser observados no túmulo de Ame- nemhat, em Tebas (TT82). Durante a Época Baixa (664–332 a.C.) foram enumerados oito componentes; durante o período greco- -romano (332–395 d.C.) deixaram-se de lado o ka e o ba e ganharam mais importância o nome (rn) e a sombra (shwt). VOLTAR A VIVER: A MUMIFICAÇÃO A morte era apenas uma interrupção tempo- rária da vida, já que os egípcios acreditavam que se podia viver eternamente. Na procura da imortalidade, mumificavam os corpos, um ritual cuja missão era preservá-los para que não se decompusessem e reconhecer os vários elementos diferentes que compunham uma pessoa para que pudessem voltar a ela após a morte, altura em que se separavam, dando- -lhe um novo alento e vida. Os rituais fune- rários permitiam que voltassem a juntar-se. O tipo de mumificação dependia do poder económico do defunto. Há referências ao pro- cesso de mumificação em autores clássicos como os historiadores grego Heródoto (século V a.C.) e romano Diodoro Sículo (90–30 a.C.), que pormenorizam diferentes aspetos. As origens da mumificação são difíceis de iden- tificar e, embora já no Período Pré-dinástico (c. 5000–2950 a.C.) se encontrem alguns exemplos, foram-se aperfeiçoando com o tempo. Nessa época mais primitiva, os mortos eram enterrados nas areias do deserto, o que permitia uma dessecação natural do corpo. Os primeiros corpos enrolados em ligaduras e tratados com resinas (nas quais se embebiam as ligaduras) aparecem mais tarde, na épocabadariense (c. 5000–4000 a.C.) e também em muitas das sepulturas pré-dinásticas de Hierakonpolis, no sul do Egito (nesta jazida, até surgem animais mumificados, como um elefante). Nestes primeiros enterros, ainda não se verifica a extração de quaisquer órgãos do corpo. Há que esperar até ao Império para se falar realmente de mumificação. Os trabalhos eram realizados em oficinas por embalsama- dores e o processo chegava a demorar 70 dias, de acordo com autores clássicos, embora dependesse do nível económico do defunto. EXTRAÇÃO DE ÓRGÃOS Em primeiro lugar, lavava-se o corpo e proce- dia-se à extração dos seus órgãos. Os embal- samadores faziam uma incisão no abdómen para remover os órgãos do corpo, que também podiam ser extraídos através do ânus, se o falecido não tivesse recursos suficientes; em seguida, os órgãos eram lavados e secados com natrão. Mais tarde, eram envolvidos em liga- duras de linho e colocados em vasos canópicos, cujas tampas representavam as quatro divin- dades guardiãs: Imsety tinha uma cabeça humana e guardava o fígado; Hapi, em forma de macaco, conservava os pulmões; Qebeh- senuef, com cabeça de falcão, mantinha os intestinos; finalmente, Duamutef, que repre- Conjunto de caixões do sacerdote Djed Djehuty-Iuef-Dnkh, exposto no Museu Ashmolean de Oxford (Inglaterra). O caixão (e o sarcófago, se houvesse) era um contentor mágico, protetor do corpo G E TT Y 93 Ushebtis do túmulo de Nassa no oásis de Bahariya (663–525 a.C.), XXVI Dinastia. A G E G E TT Y Anúbis, deus dos mortos e com cabeça de chacal, realiza a mumificação inclinado sobre o defunto, que repousa sobre uma cama com cabeças de leão. Cena proveniente do túmulo de Irynefer, em Deir el-Medina. 94 sentava um chacal, protegia o estômago. Estes vasos costumavam ser depositados numa caixa de madeira que fazia parte do enxoval funerário que acompanhava o caixão. Em contrapartida, o coração costumava ser deixado no corpo ou embalsamado para voltar a colocá-lo no sítio, porque para os egípcios era neste órgão que se encontravam a personali- dade, a memória e a consciência de cada ser humano. No início do Império Médio, muitas múmias tinham o etmoide (cavidade nasal) perfurado; era por aqui que, com um instrumento afiado e um gancho na ponta, extraíam o cérebro, uma vez que também era considerado um ór- gão. Esta prática não se realizava sempre, pelo que nem todas as múmias têm o etmoide per- furado. Durante o Terceiro Período Intermé- dio, os órgãos voltam a ser introduzidos no corpo após o processo de mumificação. COMO SE TRATAVA O CORPO O corpo era também dessecado com natrão, tratado com óleos e outros tipos de unguentos e envolvido em ligaduras de linho. Eram necessários muitos metros de ligaduras para envolver o defunto (calcula-se que pelo menos 370 metros, embora variasse segundo o esta- tuto do defunto). As classes mais baixas reci- clavam outros têxteis, como a roupa velha e tecidos que os embalsamadores transfor- mavam em longas tiras com oito a vinte centímetros de largura. Entre as ligaduras, sobretudo na Época Baixa, costumavam co- locar-se os amuletos que ajudavam o falecido a renascer e tinham um caráter protetor do corpo. Além disso, muitas múmias estavam ornamentadas com joias, colares, pulseiras, brincos, máscaras funerárias, etc. Não podemos esquecer a mumificação de ani- mais, já que foi uma prática corrente no Egito, 95 G E TT Y sobretudo na Época Baixa. Tinha a mesma finalidade: preparar a sua viagem para a eter- nidade. Encontramos desde gazelas a macacos, crocodilos, íbis, gatos, bois, cães, musara- nhos e escaravelhos, entre outros. Curio- samente, algumas das múmias de animais expostas em museus apenas têm a parte exterior do animal, já que no seu interior não há nada ou, às vezes, apenas um par de ossos. MITO FUNDACIONAL O corpo mumificado associava o defunto a Osíris, o deus da morte, da ressurreição e da fertilidade e governador do submundo. A mitologia conta que morreu afogado no Nilo, assassinado por um complot organizado por Seth, o seu irmão mais novo. O seu corpo foi desmembrado e espalhado pelo Egito. Posteriormente, Ísis (sua mulher e irmã) encarregou-se de recolher as diversas partes e embalsamá-las: foi a primeira múmia. Osíris renasceu pelo poder mágico das irmãs, Ísis e Nephtys. É neste mito que estão as bases da mumificação a imitar a forma de Osíris. De facto, uma vez mumificado o defunto, este recebia o nome de Osíris e tinha de renascer também de maneira mágica. A mumificação era supervi- sionada pelo deus Anúbis, guardião da necró- pole e deus da mumificação. Os rituais eram acompanhados de objetos cerimoniais que ajudavam o defunto a chegar ao Além. O CAIXÃO Uma vez mumificado o defunto, colocava-se a múmia no caixão. Este era um contentor mágico e protetor do corpo. Dependendo do nível económico do falecido, os caixões de madeira podiam ser de vários tipos, decora- O funeral propriamente dito era um ritual muito elaborado, que podia durar vários dias Escaravelho, olho de Hórus e génio funerário com cabeça de falcão, amuletos protetores da XXVI Dinastia habitualmente inseridos entre as ligaduras das múmias (página oposta). G E TT Y 96 dos com inscrições ou com incrustações ou revestidos de metais preciosos, como os de Tutankamon. Em muitos casos, sobretudo nos associados à realeza, os defuntos eram colocados num sarcófago de pedra para con- servar melhor o corpo. Depositavam-se depois na câmara funerária do túmulo, juntamente com o enxoval que os iria ajudar na sua vida seguinte. Embora os costumes tenham mudado ao longo da his- tória do Egito, pode dizer-se que a tradição geral mandava colocar uma série de oferendas no túmulo. As mais importantes eram a comida e a bebida, para alimentar o ka, que se costu- mava colocar numa mesa de oferendas ao lado de uma série de objetos de caráter funerário e apotropaico que iriam contribuir para um renascimento bem-sucedido e uma existência eterna, além de satisfazer as necessidades do defunto na duat. Muitos desses objetos eram feitos de propósito para o enterro, mas outros já pertenciam ao falecido durante a sua vida terrena. A quantidade e a qualidade destes dependia da classe social. FERRAMENTAS E SERVIDORES Barcos e maquetas funerárias que represen- tavam ofícios ou trabalhos do quotidiano, muitas vezes retratados nas pinturas e relevos dos túmulos, são os objetos que mais se des- O processo de mumificação podia durar até 70 dias. Começava com a extração dos órgãos (exceto o coração, que se mantinha no sítio; noutros casos, era removido, mumi- ficado e devolvido ao lugar) através de incisões de não mais de nove centímetros. Uma vez guardadas as vísceras em vasos canópicos que seriam enterrados com a múmia, desidratavam o corpo com natrão (carbonato de sódio), cobrindo-o com esta substância durante uns 35 dias. A seguir, envolviam-no com ligaduras de linho impregnadas de unguentos e perfumes, que reves- tiam com resina para se fixarem melhor, enquanto o sacerdote rezava e se iam colocando amu- letos entre as várias camadas. No caso da realeza, cruzava-se o braço direito sobre o peito, postura que deu a primeira pista para identificar Hatshepsut. O cérebro era extraído com uns ganchos de cobre que se introduziam pelos orifícios do nariz. As vísceras eram retiradas através de uma incisão no ventre. Os pulmões guardavam-se no vaso canópico de Hapi, com cabeça de macaco. O fígado e a vesícula biliar colocavam-se no vaso de Imsety, com cabeça humana. O estômago e o intestino grosso depositavam-se no vaso de Duamutef, com cabeça de chacal. O intestino delgado ia para o vaso de Qebeshnuef, com cabeça de falcão. Mumificação 97 tacam, além de roupa, mobiliário, artigos de toucador e cosmética, papiros e até armas. A razão pela qual se enterravam os mortos com tudo isto estava relacionadacom o conceito de vida futura, em que o indivíduo voltava a existir e precisava de sustento, além de recursos diários. Outros objetos que sobressaem e costumam encontrar-se em grande quantidade são os shabtis ou ushebtis, literalmente “aqueles que respondem”. Eram os servos do falecido, na forma de pequenas estátuas de madeira, pedra ou faiança, equipadas com enxadas e outras ferramentas: o Além era um lugar físico real, onde era preciso trabalhar. Os shabtis encarregar-se-iam de servir o falecido no aaru, o paraíso da mitologia egípcia e o lugar onde Osíris reinava, realizando as atividades agrícolas e de construção. HORA DA VIAGEM DEFINITIVA Após a morte, a pessoa devia dar início a uma O objetivo do ritual funerário era reunir e ordenar os elementos desagregados Alguns objetos funerários tinham sido usados pelo morto, outros eram criados exclusivamente para a vida no Além. SHUTTERSTOCK 98 viagem em direção ao oeste e ultrapassar uma série de “enigmas” apresentados por demónios. Uma vez superados, devia sub- meter-se ao tribunal de Osíris. Durante este julgamento, tinha de jurar que não havia cometido qualquer falta, e o seu coração era pesado numa balança tendo como contrapeso uma pluma da deusa Maat, que era a divin- dade da verdade e da justiça. Se a balança se mantivesse equilibrada, sig- nificava que o defunto não havia cometido qualquer transgressão e a sua vida tinha sido exemplar. Como tal, podia viver eternamente no aaru. Aqueles cujo coração pesava mais do que a pluma e desequilibrava a balança, devido aos seus atos perversos, não eram dignos do aaru. Então, uma terrível criatura chamada Ammit, com a metade superior do corpo em forma de leoa e a inferior de hipopótamo com cabeça de crocodilo, que vivia no submundo, encarregava-se de devorar os corações. Durante a vida, os egípcios planeavam a construção do seu túmulo e dotavam-se de um enxoval que levavam consigo para o Além. Os túmulos, além de guardarem e protegerem o corpo, serviam de ponto de contacto entre os dois mundos: o dos vivos e o dos mortos, na duat. A sepultura era uma casa para a eter- nidade, prankh, segundo o termo egípcio. Tratava-se de um lugar físico para a vida eterna do defunto. CERIMÓNIA FUNERÁRIA Depois da mumificação, realizava-se o funeral e à porta do túmulo era levada a cabo uma cerimónia: a abertura da boca e dos olhos, geralmente abreviada e conhecida como “abertura da boca”. A cerimónia é mencionada nos Textos das Pirâmides como “ritual de oferenda”, mas parece que naquele momento apenas se fazia às estátuas do faraó no seu complexo funerário. As evidências deste ritual começaram a aparecer no Império Antigo e foram até ao Período Romano, sendo mais A primeira múmia embalsamada, segundo a mitologia egípcia, foi a do deus Osíris 99 frequentes durante o Império Novo, em que incluía 75 passos. Durante este período, surgi- ram várias representações nos túmulos, como, por exemplo, na capela do vizir Rekhmira, em Tebas, da XVIII Dinastia, que contém uma das cópias completas que existem da cerimónia. Outras representações foram também encontradas no túmulo do faraó Seti I (XIX Dinastia), no Vale dos Reis, e na capela do túmulo da sumo- -sacerdotisa de Amon, Amenirdis, em Medi net Habu (XXV Dinastia), bem como em algu mas vinhetas do Livro dos Mortos. Era descrito como um ritual de consagração em que se vivificava, de forma simbólica, uma estátua do defunto ou a sua múmia. Ao abrir magi- camente a boca, este podia de novo respi rar e falar: era-lhe devolvido o uso destas facul- dades, além de poder comer e beber, funções básicas na vida na eternidade. PURIFICAÇÃO E FEITIÇOS O ritual era muito elaborado e podia durar vários dias, dependendo também do nível económico do falecido, mas incluía sempre purificação, aromatização, unção e feitiços. A pessoa encarregada de o dirigir cos- tumava ser o filho mais velho ou o herdeiro do defunto, como ato final de piedade, ou um sacerdote, o sem, que se considerava a representação de Hórus e ia vestido com uma pele de leopardo sobre uma túnica branca. Carpideiras con- tratadas tinham de chorar e de se cobrir com areia e pó. Para levar a cabo esta cerimónia, o sem tinha de se sentar agachado frente à múmia e simular um sonho cataléptico pelo intangível, para assim devolver o ka ao morto, restabe- lecendo-o na múmia. Entretanto, tocava em várias partes da múmia ou da estátua com ferramentas consideradas amuletos no Além, como o peseh-kef, uma lâmina de ponta bifurcada, de sílex, obsidiana ou outro material; além disso, acompanhavam-no mesas de oferendas, copos de libações, recipientes de óleos sagrados, incensários, etc. A nova vida estava a um passo. J.M.A.G.T S H U TT E R S TO C K Anúbis, deus dos mortos, com cabeça de chacal, realiza a mumificação inclinado sobre o defunto (neste caso, um faraó) A G E O Vale dos Reis 100 A imponência do Vale dos Reis só é comparável às maiores maravilhas do mundo antigo. Ao vê-lo, é possível compreender a sua capacidade simbólica como destino final de um ser humano. 101 D urante 500 anos e três dinastias (XVIII, XIX e XX), o Vale dos Reis foi o local do enterro dos faraós a partir de Tutmés I, à exceção de Akhenaton e da sua família. Sobre a entrada do vale, eleva-se a montanha mais alta do cordilheira ocidental, de nome Gurn, cuja silhueta se assemelha à forma de uma pirâmide tradicional. Encontra-se a cerca de cinco quilómetros do Nilo, frente à antiga cidade de Tebas, a capital do país naquele período. Rodeado por grandes falésias, que o ocultam de olhares alheios desde as margens do Nilo, o vale é relativamente pequeno e fácil de pro- teger. Os túmulos reais foram escavados na rocha, escondidos num lugar isolado pela necessidade de mantê-los em segredo e longe da vista. Foi neste vale que, pela primeira vez, foram construídas as sepulturas onde o rei era enterrado independentemente dos templos funerários onde o culto fúnebre diário era realizado. A sua localização, na margem esquerda do Nilo, tinha um forte caráter simbólico, já que os egípcios consideravam a margem oeste do rio o limiar entre esta vida e o Além, relacionando o pôr do Sol com o submundo. Na verdade, todas as necrópoles menfitas do Império Antigo se encontram na margem ocidental do Nilo. CONSTRUIR O PRÓPRIO TÚMULO Quando um novo rei chegava ao trono, incum- bia o arquiteto real (um funcionário da sua confiança) de projetar o seu túmulo, a come- çar pela escolha da localização, que teria de ser aprovada pelo rei. Dois exemplos de pla- neamento de túmulos são os projetos do KV2, de Ramsés IV (Papiro de Turim 1885), e do KV6, de Ramsés IX (Cairo Ostracon 25184). Os trabalhos de construção eram encomen- dados aos habitantes de Deir el-Medina, uma povoação situada nos arredores do vale, onde os construtores se organizavam por ofícios. Muitas das sepulturas nunca chegaram a ser completamente acabadas, algo que nos per- mite conhecer as diferentes fases da sua construção e decoração. A obra começava com a abertura de um túnel estreito. Os construtores iam cortando a pedra até criarem os espaços interiores, onde, no geral, predominam as formas simples. Nos espaços mais amplos, as futuras câmaras, os trabalhos avançavam em comprimento e em largura. A escavação prosseguia através de túneis secundários à esquerda e à direita, mantendo a rocha intacta nos lugares onde iriam ficar os futuros pilares. Só havia problema quando se deparavam com grandes nódulos de sílex (pedra de dureza extrema) ou camadas de xisto (rocha pouco firme). No primeiro caso, por vezes, os cons- trutores não tinham outro remédio senão desviar o eixo do túmulo. No segundo, devido à probabilidade de derrocada, chegavam a ter de abandonar a obra. ILUMINAÇÃO ARTIFICIAL O acabamento final das paredes e dos tetos fazia-se recorrendo a cinzéis de cobreou de bronze até obter áreas com superfícies lisas. Nos corredores, os tetos inclinavam-se, para- lelos à inclinação das rampas ou das escadas. Nas câmaras, o chão e os tetos eram paralelos entre si, planos e horizontais. Os pilares, qua- drados, com dimensões de dois por dois côva- dos (o côvado era a unidade de comprimento dos egípcios, equivalente a cerca de 50 centí- metros), distribuíam-se equidistantes entre si e com as paredes das câmaras. Para finalizar, quando paredes e pilares estavam devidamente esculpidos e polidos, aplicava-se uma camada de gesso que servia de base para as pinturas murais que os decoravam. De forma a poderem realizar todos estes trabalhos em câmaras e corredores subter- râneos, os operários tinham de recorrer a iluminação artificial: vasos cerâmicos com mechas de linho untadas de óleo ou gordura, recorrendo ao sal para evitar que fumegassem e sujassem o sepulcro. VERIFICAÇÃO DA OBRA No teto do primeiro túnel, marcava-se uma linha, que servia como eixo do túmulo, sobre a qual se assinalava o comprimento dos dife- rentes espaços, e que servia para achar a sua largura, de forma simétrica, de um lado e do outro do eixo. Para marcar e verificar a obra, os operários socorriam-se de diferentes tipos de esquadros de madeira e prumos com os quais traçavam os ângulos dos cantos e verificavam a sua precisão. Por exemplo, podemos obser- Como se construía o túmulo Os túmulos eram escavados em total segredo, para os salvaguardar dos ladrões 102 Sarcófago de madeira Sarcófago de ouro Sarcófago de pedra Placas de madeira sobrepostas, chapeadas a ouro Como se construía o túmulo Nesta recriação de um túmulo, podemos observar as diferentes camadas e níveis com que eram construídos, sendo que cada um tinha uma função específica para salvaguardar o corpo do defunto. J. A . P E Ñ A S 103 var um caso deste tipo no túmulo TT1, de Sennedjem, localizado em Deir el-Medina: entre os objetos encontrados, destacam-se um prumo, um esquadro e um nível. Para concretizar o projeto previsto desde o início, recorriam a desenhos muito porme- norizados da construção. No Vale dos Reis, foram encontrados muitos planos de ar- quitetura em óstracos (placas de cerâmica) que mostravam diversas partes do trabalho, incluindo medidas. Num esboço da planta de uma câmara com quatro pilares (especifica- mente, o Ostracon MB 41228) estão definidas as distâncias concretas entre pilares e entre os pilares e as paredes, bem como o comprimento e a largura da câmara. PRIMEIROS SEPULCROS Os túmulos reais da XVIII Dinastia (tutmés- sida) foram escavados em lugares inacessí- veis, no sopé das falésias, com as entradas bem ocultas. A necessidade de manter o túmulo secreto está expressa numa inscrição autobiográfica do arquiteto Ineni, encontrada na sua sepultura (TT81), quando, referindo-se ao túmulo do seu rei, disse: “Presenciei como foi escavado na rocha o túmulo de sua majes- tade [Tutmés I]. Na solidão na rocha, ninguém viu, ninguém ouviu.” Muitos dos túmulos tutméssidas permane- ceram escondidos até ao final do século XIX, início do XX, porque, com o tempo, as entradas foram sendo cobertas por escombros que caíam das falésias, arrastados por tempestades. É provável que o primeiro túmulo a ser cons- truído no vale tenha sido o KV20 (Tutmés I e Hatshepsut), que tem um longo corredor, com mais de 200 metros de comprimento, que ser- penteava ao longo do seu percurso até chegar à câmara funerária, escavada nas profundezas. A margem do Nilo, frente a Tebas, inclui o Vale dos Reis, o das Rainhas e a povoação de Sheikh Abd el-Qurna. Os túmulos e outros edifícios parecem fundir-se com as colinas desérticas. AGE 104 CARÁTER SIMBÓLICO Mais evoluído do que este, o túmulo KV34 (Tutmés III) tem planta em forma de L, que se repetiu nos túmulos seguintes. O acesso realiza-se por uma escada íngreme. Sobre um primeiro eixo, há um corredor estreito, composto por várias secções alter- nadas de rampas e escadas, que descem desde o acesso ao túmulo até à câmara do poço. Esta câmara faz a ligação a uma outra de forma trapezoidal, com dois pilares, onde o eixo do túmulo gira para a esquerda. Sobre um segundo eixo, a partir desta câmara, começa uma escada que desce diretamente para a do sarcófago, também com dois pilares, localizada num nível mais profundo. A forma retangular com cantos arredondados desta câmara lembra a de um cartucho real (empre- gado na escrita hieroglífica, é a representação esquemática de uma corda com nós que rodeia o nome do faraó). Este desenho tem um forte caráter simbólico: enquanto o eixo superior permite a entrada da luz solar, o inferior per- manece na escuridão, que está intimamente relacionada com o submundo e a morte. Os túmulos KV35 (Amenófis II), KV43 (Tut- més IV) e KV22 (Amenófis III), embora com ligeiras modificações, continuam a ter o mesmo esquema arquitetónico, apresentando o eixo típico que caracteriza os túmulos tutméssidas. Em todos eles, os corredores e os diferentes espaços são distribuídos ao longo de dois eixos longitudinais dispostos num ângulo de 90 graus. Contudo, os túmulos de Tutmés IV e Amenófis III têm uma antecâmara que precede a câmara funerária, onde se volta a mudar, pela terceira vez, a direção do eixo do túmulo: o primeiro (KV43) segue pela esquerda e o segundo (KV22) pela direita. É um autêntico labirinto. PRINCIPAIS ÁREAS Num túmulo, sobressaem várias salas. A câmara do poço, que deve o seu nome ao facto de apresentar um grande poço vertical, tem geralmente no seu nível inferior uma câmara anexa. Embora este poço tivesse funções pro- tetoras, o mais provável era ser meramente simbólico. De facto, após a realização do enterro, o acesso a partir desta câmara ao resto do túmulo estava selado por uma parede de adobe ou de pedra revestida de gesso e deco- rada com pinturas, como as paredes laterais adjacentes, a fim de fazer acreditar que o túmulo acabava nesta primeira câmara. Quanto à sala dos pilares, tratava-se de uma câmara localizada logo após a câmara do poço. Tinha uma forma retangular orientada a 90 graus da direção do primeiro eixo do túmulo. O teto estava apoiado por dois pilares qua- drados que a dividiam em duas naves. Do lado esquerdo, partia um corredor descendente que seguia na direção do segundo eixo do túmulo diretamente para a câmara funerária. Muitos conseguiram permanecer escondidos até ao final do século XIX, outros continuam por localizar 105 Esta, muito mais ampla, era o lugar mais importante no túmulo. O teto estava apoiado em seis pilares que dividiam a câmara em três naves. Por sua vez, o chão da sala apresentava dois níveis diferentes, estando a parte poste- rior, reservada para acomodar o sarcófago, escavada em maior profundidade. O acesso a esta zona fazia-se por uma escada situada entre os dois últimos pilares da câmara. Havia quatro pequenas câmaras escavadas nas A S C 106 paredes laterais, onde se colocavam as ofe- rendas e o enxoval funerário. ESPAÇO PRECIOSO Dois dos túmulos apresentam novidades: o do último rei da XVIII Dinastia, Horemheb (KV57), continua a ter o mesmo esquema dos túmulos anteriores, embora os eixos do túmulo já não estejam dispostos a 90 graus, mas na mesma direção, embora desviados uns dos outros. A alteração ao traçado dos túmulos poderia dever-se a que, com a adoção de um esquema linear, ocupavam menos espaço, algo que deveria ser precioso, após várias gerações a construir sepulturas. No início da XIX Dinastia, o túmulo KV17 (Seti I) repete a mesma disposição, com dois eixos paralelos entre si, mas ligeiramente desviados um do outro. O desenho dos espaços deste túmulo apresenta dois desen- volvimentos importantes. Em primeiro lugar, a sala dos pilares é quadrada, em vez de retan- gular, e o seu teto é apoiado por quatro pilares, em vez de dois. Além disso, o teto da área parao sarcófago foi, pela primeira vez, esculpido em cúpula, em vez de ser plano, com o que se conseguiu maior altura. TÚMULOS RAMÉSSIDAS Estes foram construídos em zonas mais planas, próximas do centro do vale. Durante a XX Dinastia, os construtores escavavam no exterior um corredor que levava à entrada, mas agora com dimensões monumentais. Por serem mais visíveis, estes túmulos foram os primeiros a ser descobertos. A partir desta fase, o esquema arquitetónico simplifica-se, de modo que os corredores e os diferentes espaços estão dispostos simetri- camente, ao longo de um único eixo retilíneo. Os túmulos KV7 (Ramsés II), KV8 (Merenp- tah), KV11 (Ramsés III) e KV9 (Ramsés V e VI) continuam a ter este esquema arquitetónico. No entanto, não existe um desenho único e vinculativo. INVASÃO DO SEPULCRO DO LADO Por exemplo, na sepultura de Ramsés II, o primeiro corredor, a sala dos pilares e o segundo corredor estão dispostos seguindo um único eixo de simetria, mas, ao chegar à ante- câmara, o eixo do túmulo vira à direita, dire- cionando a câmara funerária ortogonal para o primeiro corredor, fazendo lembrar o eixo duplo típico dos túmulos tutméssidas. Além disso, durante a construção do túmulo de Ramsés III, pouco antes de chegar à câmara A G E Os túmulos em L combinavam a simbologia da luz solar e a obscuridade da morte Interior do túmulo de Tutmés III, no qual se pode apreciar a elaborada decoração que acompanhava o faraó no Além. À esquerda, esquema das diferentes partes que configuram o túmulo, em planta e corte vertical. 107 ANÚBIS A antessala, também chamada “sala das colunas”, poderá ter sido usada para depositar oferendas e alimentos. As salas suplementares albergavam os sarcófagos de familiares do rei ou de membros destacados da sua corte. Na câmara sepulcral propriamente dita, repousava o corpo do rei, em sarcófagos protegidos por camadas sobrepostas. Um pequeno armazém situado junto à câmara era provavelmente usado para guardar os objetos pessoais do monarca: roupa, armas, imagens de divindades protetoras, alimentos, bebidas, etc. Segundo alguns autores, o poço da galeria servia para regular as águas freáticas e impedir que a chuva se infiltrasse, preservando e isolando o túmulo. A última morada dos faraós 108 HÓRUS BASTET TOTH OSÍRIS OSÍRIS ÍSIS ÍSIS ANÚBIS A sala funerária continha os tesouros do faraó, que incluíam o seu carro de guerra (A), a Barca Solar (B), o tabernáculo que guardava a sua alma (C), as suas camas (D), os seus tronos (E) e outros objetos que refletiam o seu poder. Corredor Nas pinturas da sala funerária, vários deuses (Toth, Hórus...) guiavam o faraó pelo submundo até aaru, o reino de Osíris, o paraíso egípcio. Uma arca guardava os canopos (vasos mortuários) com as vísceras do faraó. Um pequeno armazém situado junto à câmara era provavelmente usado para guardar os objetos pessoais do monarca: roupa, armas, imagens de divindades protetoras, alimentos, bebidas, etc. a b c d d e Os túmulos do Vale dos Reis são o equivalente às câmaras sepulcrais das antigas pirâmides do Império Antigo e Médio. O local escolhido para este fim foram as encostas das montanhas tebanas na margem direita do Nilo, mesmo em frente ao pico de Gurn. A natureza deste lugar só pode ser entendida tendo em conta as novas ideias teológicas relacionadas com o mundo da morte durante o Império Novo. Os textos religiosos, muito mais complexos do que os anteriores, vão começar a ser gravados nas paredes dos túmulos reais, provocando um aumento dos elementos decorativos, e vão predominar os grandes murais cheios de cenas de grande beleza. Os túmulos do Vale dos Reis aumentaram progressivamente de tamanho à medida que o tempo foi passando. J. A . P E Ñ A S 109 do poço, foi invadido o túmulo vizinho, o KV10, o que forçou a deslocar ligeiramente o eixo para seguir uma linha paralela à inicial, lem- brando o esquema dos túmulos KV57 e KV17. Os túmulos foram crescendo em dimensão. A escavação adentrava-se cada vez mais no interior da montanha, aumentando a super- fície e o volume do túmulo. As dimensões dos corredores aumentaram progressivamente tanto em largura como em altura, evoluindo de uma altura inicial de cerca de dois metros, nos túmulos tutméssidas, até quase o dobro, nas últimas sepulturas raméssidas. Da mesma forma, a inclinação foi diminuindo progres- sivamente, até que, já durante a segunda metade da XX Dinastia, muitos são horizontais. A partir desse momento, os degraus das escadas foram divididos em duas secções por uma rampa central (KV11, KV7 e KV8). No entanto, como as escadas eram esculpidas na fase final da obra, em algumas sepulturas inacabadas foram substituídas por rampas. ALTERAÇÕES NOS ESPAÇOS Cada secção do corredor conduzia a uma porta que servia de acesso ao vão seguinte. O dintel e as ombreiras das portas eram es- culpidos diretamente na rocha, embora por vezes se eliminassem para facilitar a passagem do sarcófago (cada vez maior), como no túmulo KV8, onde foram posteriormente substituídos por blocos de pedra. A câmara do poço continuava a fazer parte do esquema, embora, a partir de então, já quase não haja exemplos em que tenha sido esca- vado o poço funerário, à exceção do túmulo de Ramsés III. A sala dos pilares passa a ser quadrada em vez de retangular e é maior do que em túmulos anteriores. O teto está apoiado por quatro pilares, em vez de dois, dispostos simetricamente à volta do eixo do túmulo. Isto permite que a escada pela qual se acede ao resto do sepulcro seja escavada sobre o eixo. A câmara funerária, por seu lado, também aumentou de tamanho em comparação com sepulturas anteriores. O teto está apoiado por oito suportes, em vez dos seis dos túmulos do passado, distribuídos em duas linhas de quatro pilares que se dispõem ortogonalmente ao segundo eixo do túmulo, situado na área reservada para o sarcófago, na parte central, com maior altura. O DECLÍNIO DO VALE No geral, os últimos reis raméssidas tiveram reinados muito breves, pelo que quase nenhum túmulo deste período foi completamente aca- bado. Por exemplo, a morte de Ramsés VII (túmulo KV1) aconteceu no início da escava- ção da quarta secção do seu corredor, antes de chegar à câmara do poço, pelo que alargaram a terceira secção de modo a transformá-la em câmara funerária. Um dos últimos túmulos do vale, o KV4 (Ramsés XI), que provavelmente nunca foi usado, seguia originalmente o esquema ar- quitetónico típico dos túmulos raméssidas, mas, a partir da sala dos pilares (inacabada), o esquema simplifica-se: a antecâmara é elimi- Sala hipostila do túmulo de Seti I (XIX Dinastia) com um fresco de Osíris entronizado. À direita, planta do túmulo. G E TT Y 110 nada e surge uma câmara funerária (também inacabada) muito mais pequena, onde come- çaram a escavar um poço. Em 1090 a.C., o “ano das hienas”, a econo- mia do país cambaleava, a fome apoderava-se de Tebas, houve ataques de inimigos vindos do deserto e a coroa não parecia ser capaz de manter o país unido por muito mais tempo. A partir desse momento, 500 anos após a cons- trução do primeiro túmulo, o Vale dos Reis já não era um lugar tão seguro como antes, pelo que foi abandonado pelos faraós. J.A.M.H. A partir de certa altura, foi necessário começar a Fazer túmulos lineares, para poupar espaço A S C 111 112 113 O Vale das Rainhas A S CA orografia do Vale das Rainhas é uma maravilha da natureza. A sua variedade topográfica foi um desafio para os construtores. 114 C onhecido pelos egípcios como Wadi el-Malika, este topónimo que pode ser traduzido de várias maneiras foi sugerido por Champollion. No passado, os egípcios chamavam-lhe ta-set- neferu, que significaria “o lugar dos filhos do faraó”, referindo-se às sepulturas dos prínci- pes reais. Trata-se de uma necrópole com mais de90 túmulos, situada a sul da montanha tebana, um lugar que só recentemente começou a ser visitado por turistas, que costumam preferir o Vale dos Reis. Foi a partir da XVIII Dinastia que este local teve especial relevância, ao ter sido escolhido para enterrar os primeiros príncipes e princesas de sangue real ao lado de ilustres personagens da corte. Com Ramsés II, o vale serviu para inumar as suas mulheres que tinham título real. Era um lugar privilegiado e sagrado; a sua topografia apresenta, ao fundo, uma cascata dentro de uma caverna cuja configuração se assemelha e representaria o ventre ou útero da Vaca Celestial, uma das formas da deusa Hathor, da qual bro- tavam as águas que anunciavam a ressurreição dos defuntos. DE NECRÓPOLE REAL A CEMITÉRIO COMUM Nesta necrópole, podemos encontrar dois ti- pos de túmulos muito diferentes: os primeiros pertencem à XVIII Dinastia e correspondem a 60 hipogeus construídos em forma de poço funerário, enquanto os segundos seriam os grandes túmulos da XIX e da XX Dinastias, que apresentam complexos funerários monumen- tais e cujos modelos são muito semelhantes aos sepulcros reais do vizinho Vale dos Reis (com autênticos aposentos fúnebres). A partir da XIX Dinastia, com o enterro de Sat Ra, Grande Esposa Real de Ramsés I e mãe de Seti I, o vale começou a receber os restos mortais das mulheres dos faraós. Mais tarde, no período raméssida, sofreu saques contínuos de ladrões, como atestam numerosos papiros judiciais da época. A partir do Terceiro Período Intermédio, a necrópole tornou-se um local de enterro para personagens sem sangue real, e, gradualmente, tornou-se um cemitério popular. Na época copta, por volta do século IV, vários túmulos foram queimados e saqueados, tendo sido construído no local o mosteiro de Deir Rumi, cujas ruínas ainda são visíveis. onhecido pelos egípcios como Wadi onhecido pelos egípcios como Wadi el-Malika, este topónimo que pode el-Malika, este topónimo que pode ser traduzido de várias maneiras ser traduzido de várias maneiras foi sugerido por Champollion. No foi sugerido por Champollion. No ta-set-ta-set- , que significaria “o lugar dos filhos do , que significaria “o lugar dos filhos do faraó”, referindo-se às sepulturas dos prínci-faraó”, referindo-se às sepulturas dos prínci- pes reais. Trata-se de uma necrópole com mais pes reais. Trata-se de uma necrópole com mais de 90 túmulos, situada a sul da montanha tebana, de 90 túmulos, situada a sul da montanha tebana, um lugar que só recentemente começou a ser um lugar que só recentemente começou a ser visitado por turistas, que costumam preferir visitado por turistas, que costumam preferir Foi a partir da XVIII Dinastia que este local teve Foi a partir da XVIII Dinastia que este local teve especial relevância, ao ter sido escolhido para especial relevância, ao ter sido escolhido para enterrar os primeiros príncipes e princesas de enterrar os primeiros príncipes e princesas de sangue real ao lado de ilustres personagens da sangue real ao lado de ilustres personagens da corte. Com Ramsés II, o vale serviu para inumar corte. Com Ramsés II, o vale serviu para inumar as suas mulheres que tinham título real. Era um as suas mulheres que tinham título real. Era um lugar privilegiado e sagrado; a sua topografia lugar privilegiado e sagrado; a sua topografia apresenta, ao fundo, uma cascata dentro de apresenta, ao fundo, uma cascata dentro de uma caverna cuja configuração se assemelha e uma caverna cuja configuração se assemelha e representaria o ventre ou útero da Vaca Celestial, representaria o ventre ou útero da Vaca Celestial, uma das formas da deusa Hathor, da qual bro-uma das formas da deusa Hathor, da qual bro- tavam as águas que anunciavam a ressurreição tavam as águas que anunciavam a ressurreição Nesta necrópole, podemos encontrar dois ti-Nesta necrópole, podemos encontrar dois ti- pos de túmulos muito diferentes: os primeiros pos de túmulos muito diferentes: os primeiros pertencem à XVIII Dinastia e correspondem pertencem à XVIII Dinastia e correspondem a 60 hipogeus construídos em forma de poço a 60 hipogeus construídos em forma de poço funerário, enquanto os segundos seriam os funerário, enquanto os segundos seriam os grandes túmulos da XIX e da XX Dinastias, que grandes túmulos da XIX e da XX Dinastias, que apresentam complexos funerários monumen-apresentam complexos funerários monumen- tais e cujos modelos são muito semelhantes aos tais e cujos modelos são muito semelhantes aos sepulcros reais do vizinho Vale dos Reis (com sepulcros reais do vizinho Vale dos Reis (com A partir da XIX Dinastia, com o enterro de Sat A partir da XIX Dinastia, com o enterro de Sat Ra, Grande Esposa Real de Ramsés I e mãe de Ra, Grande Esposa Real de Ramsés I e mãe de Seti I, o vale começou a receber os restos mortais Seti I, o vale começou a receber os restos mortais das mulheres dos faraós. Mais tarde, no período das mulheres dos faraós. Mais tarde, no período raméssida, sofreu saques contínuos de ladrões, raméssida, sofreu saques contínuos de ladrões, como atestam numerosos papiros judiciais da como atestam numerosos papiros judiciais da época. A partir do Terceiro Período Intermédio, época. A partir do Terceiro Período Intermédio, a necrópole tornou-se um local de enterro para a necrópole tornou-se um local de enterro para personagens sem sangue real, e, gradualmente, personagens sem sangue real, e, gradualmente, tornou-se um cemitério popular. Na época copta, tornou-se um cemitério popular. Na época copta, por volta do século IV, vários túmulos foram por volta do século IV, vários túmulos foram queimados e saqueados, tendo sido construído queimados e saqueados, tendo sido construído no local o mosteiro de Deir Rumi, cujas ruínas no local o mosteiro de Deir Rumi, cujas ruínas A descoberta destes túmulos e templos funerários ocorreu num período muito recente A S C A deusa Hathor foi representada de muitas formas, sobretudo como uma mulher com chifres de vaca e um disco solar sobre a cabeça. Ísis também podia ser representada assim, pelo que, muitas vezes, só se consegue distingui-las através de alguma inscrição. G E TT Y 115 Pintura a têmpera de Nefertari, datada de cerca de 1754 a.C. O mais belo túmulo para a mais bela rainha Um dos túmulos mais impressionantes encontrados no vale foi, sem dúvida, o da rainha Nefertari, uma das sete grandes esposas reais de Ramsés II. Descoberto em 1904 pelo arqueólogo Ernesto Schia- parelli, esteve fechado ao público durante várias décadas, embora hoje seja visitável e se considere o túmulo mais espetacular e belo de todos os construídos no Antigo Egito, tal a sua elegância e requinte. Impressiona o seu colorido brilhante e a qualidade excecional das suas pinturas a têmpera. Nefertari Merien-Mut (“a mais bela de todas, a amada de Mut”) foi uma grande rainha e teve um papel muito proeminente, em comparação com outras esposas reais na história do Egito. Fez sempre parte da comitiva do faraó, não só nas cerimónias civis e religiosas como tam- bém durante todas as viagens importantes, como aquelas que ambos realizaram ao reino da Núbia (por volta de 1255 a.C.), aquando da construção do Templo de Abu Simbel, onde se podem ver representações da rainha em grandes estátuas do mesmo tamanho das do faraó. A estrutura do seu túmulo é típica da XIX Dinastia. Entra-se por uma escadaria de 18 degraus que leva ao primeiro nível do sepulcro, composto por uma antecâmara quadrangular e um anexo. A partir daí, um segundo lance de escadas desce para a câmara funerária propriamente dita, que possui três anexos e em cujo centro terá sido colocado o sarcófago da rainha, pois Schiaparelli só encontrou alguns fragmentos da tampa. Numa parede, tinha sido escavado um pequeno nicho para provavelmente depo- sitar a caixa com os vasos canópicos que continham as vísceras. A complexa deco- ração do túmulo evoca uma viagem ritual da almade Nefertari para o submundo, o reino de Osíris, ao qual a rainha acede depois de atravessar as portas descri- tas nos capítulos 144 e 146 do Livro dos Mortos, na sala do sarcófago. É aí que acontece a gestação e o renascimento da sua alma, que regressa à antecâmara, se transfigura e resplandece. Por fim, Nefertari aparece em plena luz do dia, representada no teto da porta de entrada do seu túmulo, seguindo uma imagem que evoca a saída da escuridão e o regresso à luz eterna. 116 DIFICULDADE OROGRÁFICA Muitos dos túmulos reais da antiguidade que foram ali erguidos apresentavam inúmeros problemas estruturais, relacionados com as características geológicas do lugar. Os pró- prios artesãos que os construíram, há 3500 anos, sabiam que estavam a trabalhar um tipo de rocha difícil, o que os forçou a recorrer a técnicas específicas, como o uso maciço de muna, um gesso especial com o qual se cobriam todas as paredes e tetos da sepultura, dissimulando desta maneira as imperfeições da rocha. Por vezes, o terreno escavado era tão mau que foi necessário desistir do trabalho e começar de novo num local mais apropriado, o que explica o grande número de sepulturas ina- cabadas que existem no vale. Da mesma forma, foram detetados sinais de ter havido um período de chuvas torrenciais que tiveram efeitos devastadores em alguns túmulos. RESGATADO POR CHAMPOLLION O lugar ficou esquecido durante 1500 anos, até ter sido redescoberto pelos primeiros exploradores do século XIX. O primeiro a O túmulo de Nefertari, Grande Esposa Real de Ramsés II, é certamente uma das joias mais preciosas deixadas pelo Antigo Egito Muitos dos túmulos reais da antiguidade que foram ali erguidos apresentavam inúmeros Março de 1965: turistas e operários observam o Templo de Nefertari. A areia protegeu as estátuas de dez metros de altura esculpidas na fachada. 117 visitá-lo foi Robert Hay, em 1826, e só dois anos mais tarde John Gardner Wilkinson fez aquela que seria a primeira classificação dos túmulos. Foi nessa altura que Jean-François Champol- lion lhe deu o nome de Vale das Rainhas. As investigações mais profundas do local só começaram no início do século XX, quando o Museu Egípcio de Turim (Itália) enviou uma equipa de arqueólogos liderada por Ernesto G E TT Y Schiaparelli, diretor daquele museu, que trabalhou no vale entre 1903 e 1906. A este arqueólogo devemos as descobertas mais importantes, como os túmulos dos filhos de Ramsés III, embora a mais surpreendente tenha sido certamente o túmulo de Nefertari, a Grande Esposa Real de Ramsés II. V.B. De que morreu Tutankamon? 118 De que morreu Tutankamon? G E TT YTutankamon envolvido em linho, na sua vitrina com temperatura controlada no túmulo KV62, no Vale dos Reis. 119 P or decisão de Howard Carter, o corpo mumificado do jovem faraó Tutankamon continua depositado naquela que foi escolhida como a sua morada eterna, ou seja, repousa no seu próprio túmulo, embora todo o seu tesouro tenha sido distribuído por vários museus. Quem já tenha entrado no túmulo KV62 do Vale dos Reis terá por certo contemplado a múmia coberta por um fino lençol de linho branco numa pequena urna de vidro. Muito se tem especulado e escrito sobre a sua morte, que ocorreu por volta de 1325 a.C. Trata-se, sem dúvida, da múmia egípcia mais submetida a estudos médicos: o seu corpo foi alvo de numerosas análises clínicas e antropológicas, radiografias, análises de ADN, tomografias, etc. Apesar disso, há um manto de mistério a cobrir a sua morte. INÍCIO DA LENDA Tutankamon foi encontrado intacto dentro do seu sarcófago, e Carter demorou três anos, desde a descoberta, até conseguir desenrolar a múmia, olhá-la no rosto e examiná-la, che- gando a escrever: “Não tenho vergonha de confessar que quando olhei para ele fiquei com um nó na garganta.” Ao que parece, o processo de exploração do corpo não terá sido muito meticuloso nem feito com o rigor O processo de extração da múmia foipouco cuidadoso e causou danos que dificultam o seu estudo. G E TT Y 120 Os processos de Howard Carter não eram rigorosos, pelo que é difícil analisar a múmia científico necessário: o corpo foi destruído com a amputação de todos os membros e a prática de várias incisões. Ainda hoje, os especialistas discordam sobre as numerosas feridas que a múmia apresenta: não se sabe ao certo quais foram feitas no processo de embalsamamento, há 3300 anos, e quais as praticadas pela equipa de Carter. A primeira análise ou autópsia realizada por esta, em 1925, determinou que o faraó tinha 1,67 metros de altura. Com base na estrutura óssea, estimou-se que tivesse morrido entre os 17 e os 19 anos, embora posteriormente a tomografia dos dentes do siso tenha ditado a idade da sua morte aos 19 anos. A primeira análise concluiu, ainda, que o jovem rei morreu devido a vários traumatismos. TEORIAS SOBRE A SUA MORTE Em 1968 e, mais tarde, em 1978, foram feitas diversas radiografias à múmia com equipa- mentos portáteis dentro do túmulo, pelo que a qualidade não foi a mais adequada. Na época, muito se especulou de novo sobre as causas da sua morte. As teorias passaram pelo assas- sí nio com um golpe na cabeça até doenças congénitas e infecciosas, um acidente de carro ou um envenenamento. Em 2005, a múmia foi submetida a um exame mais rigoroso através de tomografia axial com- putorizada (TAC), que permitiu reconstruir uma imagem tridimensional de todo o corpo. Foi o egiptólogo Zahi Hawass, chefe do Departa- mento de Antiguidades do Egito, quem liderou a operação, tendo contado, para o efeito, com uma equipa de especialistas de craveira internacional. As conclusões desse estudo evidenciaram que Tutankamon terá morrido de um conjunto de causas e não apenas de uma, motivadas pelo culminar de múltiplas circuns- tâncias e patologias. O corpo apresentava uma fratura aberta acima do joelho esquerdo, causada provavelmente por um acidente e cujo feri- mento poderá ter sido fatal. Naquela época, uma científico necessário: o corpo foi destruído científico necessário: o corpo foi destruído a qualidade não foi a mais adequada. Na época, a qualidade não foi a mais adequada. Na época, G E TT Y G E TT Y Em cima, Zahi Hawass, arqueólogo egípcio e ex-ministro de Estado para os Assuntos das Antiguidades encarregado da investigação. À direita, o rosto do faraó mumificado. 121 hemorragia ou uma infeção grave poderiam resultar numa morte certa. Também se especulou sobre o embalsama- mento da múmia. Muitos especialistas indicam que ele não foi corretamente realizado, como os cânones clássicos mandavam. Na verdade, a múmia de Tutankamon é uma das mais mal preservadas de toda a sua dinastia. Isto talvez se tenha devido ao facto de, provavelmente, ter falecido longe de Tebas, numa batalha, incursão ou caçada, e, com a pressa, não ter havido tempo para realizar um embalsamamento apropriado. Este facto viria a confirmar que a sua morte ocorreu inesperadamente, e daí as falhas dete- tadas no processo de mumificação, uma vez que os responsáveis pelo cuidado do seu corpo até ao enterro definitivo não eram, seguramente, especialistas. ENDOGAMIA, UM PROBLEMA A múmia também apresenta numerosas fratu- ras ósseas e lesões em partes moles, tornando muito difícil atribuir a sua morte a uma causa específica apenas com base em imagens de TAC. Não é claro se estes ferimentos ocorreram, como foi dito, devido a um acidente de carro ou ao processo de embalsamamento, ou se foram causados pela equipa de Carter. Uma das coisas que chamam a atenção é que a múmia não tem coração, órgão importante e fundamental para chegar ao Além no Antigo Egito. Por outro lado, Tutankamon nasceu com graves problemas congénitos, devido à forte endogamia da família real na XVIII Dinastia. Mais de 250 anos de casamentos incestuosos deixaram uma pegada genética fatídica. Os seus pais, Akhenaton e a princesaKiya, seriam irmãos, o que, sem dúvida, representaria uma herança genética muito fragilizada, fazendo o jovem faraó sofrer de malformações gravíssi- mas desde o nascimento: foi-lhe diagnosticado lábio leporino e deformações nos pés, razão pela qual foram encontradas cerca de 130 bengalas no seu túmulo. As análises de ADN revelaram igualmente que sofria de malária, dando uma imagem muito frágil e débil do monarca egípcio. Os dibersos testes ao corpo do jovem faraó efetuados em 2005 são os mais completos realizados até agora e, apesar de fornecerem muitos dados importantes, não foram con- clusivos sobre a causa da morte. O diagnóstico médico que temos neste momento é que ele morreu de necrose óssea na sequência de uma grave infeção de malária. O mistério continua, portanto. V.B. O que sabemos, por múltiplas fontes, é que sempre foi uma criança doente A S C 122 Onde está o coração? Normalmente, no processo de embalsamamento de um faraó, o coração era extraído, dessecado e reintroduzido no corpo do defunto. Os egípcios pensavam que este órgão era o mais importante: nele convergiam todos os fluidos do corpo e residiam a inteligência, a consciên- cia moral e o pensamento. Durante a viagem para o Além, o coração desem- penhava um papel funda- mental, por isso tinha de ser preservado. A jornada do falecido terminava no Tribunal de Osíris, em que o coração era pesado numa balança. Se o seu peso fosse superior a uma pena, significava que o falecido estava cheio de culpas, não tinha agido corretamente na vida e, consequentemente, seria devorado por Ammit, a deusa com cabeça de crocodilo. Caso contrário, o morto teria levado uma vida justa e estava preparado para alcançar a eternidade. Para garantir esta passagem pelo temido tribunal, sobre o corpo do defunto e junto ao coração colocava-se um escaravelho que costumava ser gravado com o capítulo 30 do Livro dos Mortos e cuja missão era garantir, através desse feitiço, que o coração não revelaria os pecados cometidos em vida. O coração de Tutankamon nunca foi encontrado: durante o embalsama- mento, algo falhou e o órgão perdeu-se pelo caminho, sem que se saiba o que aconteceu quando a alma do jovem faraó teve de enfrentar o Tribunal de Osíris. O que parece claro é que, com ou sem coração, Tutankamon alcançou a vida eterna. G TR E S O N LI N E Reconstrução forense do rosto de Tutankamon, que sugere ter nascido com lábio leporino. 123 G E TT Y 124 Howard Carter (ajoelhado) na abertura do túmulo de Tutankamon, em 1922. 125 Mistérios sem fim N o dia 4 de novembro de 1922, após anos de buscas infrutíferas, os trabalhadores de Howard Carter desenterraram três degraus no chão do deserto. Era o começo de uma escada de pedra. Não era uma escada muito longa, pelo que em pouco tempo os operários conseguiram descer até ao que parecia um cor redor cheio de entulho. Depois de removidos os escombros, Carter não queria acreditar. Atrás do corredor, havia outra divisória com selos reais estampados. Tudo apontava para que, pela primeira vez na história, se teria descoberto um túmulo real egípcio não profa nado. Carter ordenou que a escada voltasse a ser coberta e enviou rapidamente um tele grama ao seu mecenas, lord Carnarvon, que chegou no dia 23, com a filha. Quando já se encontravam no corredor, ambos puderam ler, pela primeira vez, o nome de um faraó perdido: Tutankamon. Depois de abrir um pequeno buraco na parede, o arqueólogo introduziu uma vela. Inicialmente, nada discerniu, mas os seus olhos foramse habi tuando à escuridão. “Consegue ver alguma coisa?”, perguntou Carnarvon, expectante. As palavras de Carter ficaram na história da arqueologia: “Sim, coisas maravilhosas.” Com efeito, Carter tinha descoberto o túmulo de um faraó que não aparecia em qualquer dos registos conhecidos, mas esse seria apenas o primeiro dos mistérios: nem o tamanho do túmulo correspondia ao de um faraó, nem a disposição dos objetos era o que se poderia esperar de uma sepultura real. A verdade é que, ainda hoje, o túmulo de Tutankamon continua a fascinar tanto os especialistas como os leigos, porque, apesar de ser, provavelmente, um dos mausoléus mais famosos do mundo, a última morada do faraómenino continua a guardar muitos segredos. LUGAR INSUSPEITO Não há dúvida de que as pirâmides erguidas durante o Império Antigo egípcio são alguns dos sepulcros mais espetaculares alguma vez construídos. No entanto, essas grandiosas construções de faraós como Kéops ou Miqueri nos demonstraram ser pouco práticas a longo prazo. Apesar de terem sido projetadas como máquinas perfeitas para garantir a sobrevi vência do faraó na eternidade, apresentavam uma falha óbvia: as pirâmides eram gigantes cos chamarizes para os ladrões de túmulos, que assim sabiam facilmente onde atuar. Por isso, no início da XVIII Dinastia, foi decidido 126 O túmulo de Tutankamon 16 degraus 2 m 1,7 m Porta selada e engessada Túmulo de Ramsés VI Entrada Entrada Corredor Corredor Antecâmara Antecâmara Anexo Anexo Câmara funerária Câmara ritual Sala dos pilares Descoberto em 1922, ao contrário dos restantes túmulos reais, praticamente não foi saqueado, e por isso estava repleto de tesouros magníficos. Tutankamon nasceu por volta de 1341 a.C. Reinou durante nove anos e morreu antes de chegar aos vinte. Apesar de não se saber ao certo quem foram os seus pais, os candidatos mais prováveis são Amenófis IV (mais tarde conhecido por Akhenaton) e uma sua esposa secundária, Kiya. O túmulo de Tutankamon Entrada Howard Carter descobre, em 4 de novembro de 1922, após cinco anos de buscas, a entrada do úmulo, escondida no solo dos Vale dos Reis. Túmulo perdido Duzentos anos após a morte de Tutankamon, foi construído o túmulo de Ramsés VI. Os escombros e os restos desta obra esconderam a entrada da sepultura, a um nível inferior da encosta, o que permitiu que a última morada do jovem rei do Egito permanecesse praticamente intacta. Ao que parece, houve duas tentativas de roubo, mas o túmulo voltou a ser selado. Tesouro Junto à câmara funerária, atrás de uma porta selada, encontrava-se a Sala do Tesouro. Uma estátua do deus Anúbis vigiava a entrada. O próprio Santuário Canópico estava protegido pelas estátuas de quatro deusas. Antecâmara A sala estava selada por paredes. Quando Carter atravessou a primeira porta, ficou diante de uma câmara cheia de objetos pertencentes ao faraó, muitos deles fabricados em ouro ou cobertos de talha dourada. Corredor O corredor de acesso e as escadas, escavados na rocha, estavam cobertos de pedra picada. Também se encontraram alguns objetos caídos, possivelmente provenientes de um roubo. Continha mais de 600 objetos Continha cerca de 500 objetos 16 degraus 2 m 1,7 m Carros em tamanho real Porta selada e engessada Barcas em miniatura Deusas Arca de ouro com os vasos canópicos Santuário canópico Vasos canópicos Continham as vísceras do faraó Túmulo de Tutankamon Entrada Corredor Corredor Antecâmara Antecâmara Anexo Anexo Câmara funerária Câmara ritual Sala dos pilares Santuário canópico Continha os órgãos do faraó. Pulmões, fígado, intestinos e estômago eram extraídos do corpo antes de se iniciar o processo de mumificação. 127 Estátua de Anúbis C A R LO S A G U IL E R A Anexo Atrás dos móveis da antecâmara, encontrava-se uma sala, a última a ser explorada, já que estava praticamente inacessível devido à grande quantidade de objetos que ali havia. Continha óleos, vinhos e uma grande variedade de comidas. Sarcófago Foi talhado num bloco maciço de quartzite vermelha. Múmia Estava dentro de três caixões dourados. Na cabeça, tinha uma máscara de ouro. Câmara funerária Estava selada e era nela que se encontrava o sarcófago. À entrada, havia duas estátuas de Tutankamon em tamanho real. Quatrosantuários de madeira cobertos de ouro, encaixados uns nos outros, cobriam o sarcófago, que continha três caixões, os dois primeiros de madeira chapeada a lâminas de ouro e o terceiro de ouro maciço. Lá dentro, repousava a múmia do jovem faraó, com a cabeça e os ombros cobertos por uma máscara de ouro que ficou célebre. Primeiro santuário Talhado em madeira de cedro, com peças de louça azul, decorado com simbologia protetora. Segundo santuário Coberto com uma carcaça de madeira e tapado com um tecido de linho. Terceiro santuário Decoração semelhante aos anteriores, com símbolos religiosos. Quarto santuário Madeira talhada com representação de deuses. Nut e Hórus cuidam do teto; Ísis e Nephtys, das portas. Murais As paredes engessadas e pintadas, em fundo amarelo-ouro, representam diversas cenas do Livro dos Mortos, num estilo diferente da decoração tradicional. A única sala decorada continha o sarcófago e 300 objetos Foram precisos dez anos para esvaziar o túmulo e levar para o Cairo as mais de 5000 peças encontradas Estátua de Anúbis criar uma nova necrópole real num lugar mais discreto, num terreno próximo da nova capital que tinha sido estabelecida em Tebas, o que hoje conhecemos como Vale dos Reis. Este estava situado numa margem do Nilo e permitia um fácil controlo da zona, aumentando assim a segurança dos túmulos reais. Além disso, o vale encontrava-se sob a sombra do monte Gurn, uma montanha em forma pira- midal que evocava os grandiosos monumentos dos seus antepassados. Ao contrário da maioria dos túmulos anteriores, os que foram cons- truídos no Vale dos Reis não apresentavam qualquer sinal exterior que os denunciasse. Articulavam-se através de diferentes câmaras que estavam ligadas entre si por galerias sub- terrâneas. SEMPRE MAIORES, MENOS ESTE Geralmente, as obras nos túmulos reais começavam logo após a coroação do faraó. Os trabalhos, distribuídos por períodos laborais GETTY 128 Apesar da quantidade de grandes objetos descobertos, é provável que a maior parte das joias tenha sido saqueada As três pirâmides de Gizé: Kéops, Quéfren e Miquerinos. A sua simples presença alertava os saqueadores de túmulos para a existência de tesouros. de dez dias, começavam com o esvaziamento em bruto do túmulo. Depois, grupos com cerca de 50 operários estavam encarregados de alisar as paredes para aplicar a decoração. No final, estas eram rebocadas com gesso e pintadas para adquirir o luxuoso e colorido aspeto que ainda hoje exibem. Os túmulos construídos no Vale dos Reis, no início da XVIII Dinastia, apresentavam uma forma típica, em ângulo. Isto foi interpretado como sendo uma metáfora do caminho tortuoso S H U TT E R S TO C K G E TT Y que o faraó tinha de percorrer para atravessar o submundo antes de chegar à vida eterna. Com o tempo, as sepulturas mudaram a sua organização para um corredor reto, para poupar espaço e sublinhar a ligação aos raios solares do deus Rá. Porém, se algo define a evolução na construção dos túmulos do Império Novo é que, em geral, cada um deles era mais comprido e amplo do que o anterior. Só um túmulo não seguiu esta regra: o de Tutan- kamon. Não tão intacto como se diz Embora a lenda diga que o túmulo de Tutankamon foi encontrado intacto (o que servia os interes- ses de Carter), isto não é exato. Quando Carter entrou nele pela primeira vez, encontrou indícios de que não seria o primeiro a visitar o mausoléu depois de ele ter sido selado. Por um lado, esbarrou em objetos manipulados de forma grosseira, e também se apercebeu de que outros teriam mudado de lugar. Na realidade, hoje sabemos que houve pelo menos dois saques à sepultura pouco depois do enterro do faraó. Por outro, a câmara funerária terá sido selada novamente com os cartuchos reais, o que indica que, muito provavelmente, os ladrões seriam trabalhadores que tinham ajudado na sua construção ou no armaze- namento. Os saqueadores terão levado apenas ador- nos e pequenos objetos de fácil transporte. Com estes roubos, calcula-se que tenham desaparecido 60 por cento das joias com as quais Tutankamon terá sido enterrado. 129 A lenda do túmulo intacto aumentou a fama de Carter, mas não é exata. Entrada atual do túmulo KV62, o de Tutankamon. O ESTRANHO SEPULCRO KV62 O túmulo de Tutankamon, também conhecido como KV62, é composto por uma galeria de acesso, uma antecâmara e três câmaras. A ante câmara não tem qualquer decoração e destinava-se a guardar os objetos de que o faraó iria necessitar no Além, como camas, cadeiras e carros, entre outros. Esta dava acesso a uma pequena câmara que continha igual- mente vários objetos, incluindo mais de 26 jarros cheios de vinho. Outra das câmaras apresentava um tesouro com mais de 5000 objetos, a maioria de natureza funerária. No entanto, a mais espetacular de todas as divisões é, sem dúvida, a câmara funerária. Trata-se, além disso, da única que apresentava decoração nas paredes. Um dos murais narra a história do Livro dos Mortos, enquanto os outros três mostram o faraó em várias cerimó- nias relacionadas com a viagem para o Além, como a “abertura da boca” ou a receção de Osíris no submundo. As proporções das figuras são semelhantes às realizadas no período anterior de Amarna, um facto que indica que os artesãos seriam oriundos da corte do pai de Tutankamon. Mais espetaculares do que a própria câmara são os quatro tabernáculos de madeira dourada ali encontrados e que hoje podem ver-se no Museu do Cairo. Estes eram verdadeiras capelas que, acomodadas umas dentro das outras, serviam para proteger o sarcófago do faraó. Também chama a atenção o facto de o tabernáculo exterior ser tão grande (mais de cinco metros de comprimento por mais de três de largura) que mal deixou espaço para andar à volta dele. A câmara funerária era tão pequena em comparação com os objetos ali guardados que foi preciso cortar um dos cantos para poder introduzi-los. Era, pois, uma obra imprópria de um mausoléu régio. ÚLTIMA MORADA PARA QUEM? Se o tamanho insuficiente do túmulo nos diz ser um espaço pouco digno de um faraó, estar- -lhe-ia destinado? De facto, parece pouco O túmulo de Tutankamon é mais pequeno do que os dos faraós anteriores G E TT Y 130 O sarcófago está agora vazio, para proteger a múmia do faraó, guardada numa vitrina em condições controladas. G E TT Y 131 Pintura mural do túmulo de Tutankamon que mostra Ay a realizar o ritual da “abertura da boca” do faraó. provável que o túmulo onde Tutankamon repousava tenha sido construído para o seu sarcófago. É o menor túmulo real em todo o Vale dos Reis, mas não é só o tamanho da sepultura que leva a suspeitar da sua verdadeira origem: há múltiplas evidências que indiciam que o enterro do faraó-menino foi fora do comum e repleto de contradições. A primeira delas encontra-se nas próprias pinturas da câmara funerária. Apesar de coin- cidirem com o estilo das de outras sepulturas do seu tempo, o espaço destinado ao enterro de Tutankamon parece, à primeira vista, pouco decorado. Se compararmos o seu mausoléu com outros contemporâneos, per- cebemos que a quantidade de hieróglifos ali presentes é surpreendentemente menor. Há outro pormenor que dá a entender que o túmulo KV62 foi terminado à pressa e sem muito cuidado. Ainda hoje se podem observar sobre as pinturas da câmara vários manchas que cobrem quase toda a sua superfície. Trata-se de bolor, mas não daquele que é produzido pelas condições climatéricas atuais. Análises recentes mostraram que os micróbios já lá estavam antes de Carter abrir o túmulo. Isto demonstra que o espaço foi selado antes de o reboco de gesso das paredes ter acabado de secar, o que indica que o enterro foi feito com urgência, certamente devido à morte ines- perada do faraó. A confirmar esta teoria, os objetos quecompõem o seu tesouro parecem ter múltiplas origens e diferentes adaptações, dando a sensação de serem peças de um enxoval em segunda mão. Não podemos esquecer que foi durante o reinado de Tutankamon que a economia e a paz alteradas pelo seu pai foram restauradas. No entanto, terá reinado durante dez anos, tempo suficiente para planear e começar a construir um panteão de maiores dimensões, dignas do seu posto. Porque foi enterrado numa sepultura mais própria de um nobre do que de um rei? SOB A SOMBRA DE AY, O GRÃO-VIZIR Após a morte do faraó-menino, sucedeu-lhe como regente o seu tio e avô político, o grão- -vizir Ay. Podemos encontrar a sua figura nas G E TT Y 132 As câmaras eram tão pequenas que quase não havia espaço para circular em volta dos tabernáculos Túmulo descoberto em 2006, no Vale dos Reis, que remonta a uma data similar ao de Tutankamon. G E TT Y 133 Tabernáculo dourado da terceira capela do túmulo de Tutankamon. pinturas da câmara funerária de Tutankamon, nomeadamente na cena da “abertura da boca” do faraó. Não é um pormenor casual, já que normalmente a pessoa retratada neste ritual era aquela que iria suceder no trono ao rei falecido. Tutankamon morreu sem deixar des- cendentes, pelo que, se Ay queria legitimar-se como seu sucessor, não parece estranho que se tenha feito representar a realizar a cerimónia. Devido à sua idade avançada, Ay apenas governou o Egito durante quatro anos. No entanto, a sua sepultura, apesar de estar ina- cabada, é muito maior e consideravelmente mais rica do que a de Tutankamon. Não parece um túmulo construído em apenas quatro anos. Perguntamo-nos, então, se Ay não terá usur- pado e modificado o túmulo inacabado de Tutankamon para enterrar o faraó naquele que iria ser o seu. Muitos especialistas acre- ditam que foi isso que aconteceu. PORQUE ESTAVA EM TÃO BOM ESTADO? O túmulo de Tutankamon faz história também por ser a sepultura real mais bem preservada de todo o Antigo Egito. O saque generalizado de quase todos os túmulos tornou a descoberta do do faraó-menino quase um caso único. A que se deve a preservação extraordinária do KV62? Cerca de 200 anos após a morte de Tutanka- mon, o faraó Ramsés VI começou a construir 134 G E TT Y a sua sepultura também no Vale do Reis, concretamente sobre a do faraó-menino. É muito possível que os destroços desse trabalho tenham ajudado a esconder a entrada do túmulo KV62. No entanto, alguns especialistas afirmam que a sepultura de Tutankamon se salvou dos saques graças a uma inundação. Segundo esta teoria, a lama arrastada pela água terá coberto completamente o solo do Vale do Reis, criando uma camada de terra que, ao secar, se sobrepôs ao chão original. Como o mausoléu do faraó estava localizado num dos níveis mais baixos do vale, acabou por ficar, casualmente, ainda mais enterrado. Seja fruto do acaso ou não, a verdade é que a descoberta do túmulo de Tutankamon fica na história como um dos grandes marcos da arqueologia de todos os tempos. A sua inves- tigação e história posterior rodearam-no de um halo de mistério que permanece intacto e gera interesse ainda hoje. É que muitos dos segredos do túmulo do faraó-menino, longe de estarem decifrados, continuam à espera de novas respostas. A.F.O.T 135 O faraó com o seu ka perante Osíris e diante da deusa Nut, no fresco pintado na parede norte do sepulcro. Segundo uma teoria, o grão-vizir Ay, sucessor de Tutankamon, teria trocado o seu túmulo pelo do faraó falecido Em 2015, o egiptólogo inglês Nicholas Reeves sugeriu que, por detrás das paredes norte e oeste da câmara funerária de Tutankamon, poderia estar escondida uma sala secreta com os restos mortais da mulher de Akhenaton, Nefertiti. Segundo a teoria, uma parede falsa poderia ter servido de ligação entre as duas divisões. Pouco tempo depois, uma equipa de arqueólogos japoneses, que usaram técnicas de radar e termografia de infra vermelhos, afirmou haver uma elevada probabilidade de existir ali um espaço vazio. O Ministério das Anti guidades egípcio garantiu, “com 90 por cento de cer teza”, que essa cavi dade indicava a existência de uma câmara que ainda não tinha sido explorada. Con tudo, um estudo realizado em 2018 por cientistas da Universidade Politécnica de Turim (Itália), com radares de maior precisão, excluiu essa hipótese. Aparente mente, atrás das paredes do túmulo de Tutankamon há apenas pedra. A suposta câmara secreta 136 G E TT Y O poder da palavra G E TT Y A deusa Nephtys protege o defunto com as suas asas abertas (pormenor da decoração em relevo do sarcófago de quartzite do túmulo de Tutankamon). 137 O poder da palavra 138 E assim temos aqui os primeiros fun-damentos do que pode chamar-se ‘gramática’ e ‘dicionário’ destas duas escritas usadas num grande número de monumentos, cuja interpretação vai lançar uma luz imensa sobre a história geral do Egito.” (Carta a M. Dacier, J.F. Cham pollion, Paris, 22 de setembro de 1822) Como a citação anterior indica, a compreensão da escrita hieroglífica representou um pas- so em frente na interpretação dos costumes e rituais religiosos e fúnebres dos antigos habi tantes do país do Nilo. A sua crença de que a palavra escrita tinha um poder mágico fazia os túmulos estarem cheios de textos escritos em inúmeros suportes que se adequa- vam ao espaço disponível. Assim, e embora com certos limites, há muitos associados ao túmulo de Tutankamon. Nele, encontramos sobretudo inscrições nos objetos que faziam parte do seu impressio- nante enxoval funerário, as registadas sobre a sua múmia e as gravadas nas paredes da câmara sepulcral. Outro dado a considerar é a natureza dos textos. Tendo em conta o con- texto em que se encontram, trata-se basica- mente de textos de índole religiosa, fórmulas mágicas associadas ao âmbito funerário que exaltam a figura do rei e oferecem uma longa lista de títulos e epítetos que o caracterizavam. INSCRIÇÕES NA MÁSCARA Falando em caracterização, vale a pena men- cionar a famosíssima máscara dourada que cobria a múmia do rei e tinha muitas inscri- ções na parte traseira. Trata-se do capítulo 151 (Parte B) do Livro de Sair para a Luz, popu- larmente conhecido como Livro dos Mortos. É bem possível que este capítulo em particular tenha origem nos rituais de embalsamamento nos quais o sacerdote-leitor recitava uma série de fórmulas mágicas, entre as quais estariam aquelas que relatavam a colocação de obje- tos para garantir a preservação do corpo do defunto, como era o caso da máscara fune- rária. A religião egípcia possuía um vasto corpo sacerdotal que se encarregava de diferentes áreas de atuação. Os sacerdotes-leitores (literalmente, “portadores do livro ritual”), eram um corpo especializado da casta sacer- dotal que estava orientado para o âmbito funerário. Eram os encarregados da leitura das fórmulas mágicas necessárias nos rituais, nos quais o principal momento de atuação era o processo da mumificação. No que diz respeito ao texto da máscara de Tutankamon, as doze colunas de hierógli- fos fazem uma comparação contínua do rei com as principais divindades egípcias, o que lhe dava poder e proteção suficientes para enfren tar os seus inimigos e adversidades no Além e voltar a ser coroado rei vitorioso perante os restantes deuses, como se pode ler: “Saúdo-vos, rosto bonito, senhor do esplendor, ligado [ao seu destino] por Ptah- -Sokar, a quem Anúbis fez ascender e a quem Thoth apoiou. Belo de rosto, que está entre os deuses: o teu olho direito é a barca noturna e o teu esquerdo a barca diurna; as tuas sobrancelhas são a Enéade e a tua testa A S C Sacerdote do culto ao deus Amon, desenhado num sarcófago. 139 Anúbis; o teu pescoço é Hórus e a tua trança Ptah-Sokar; estás à frente de Osíris, que pode ver através de ti. Podes guiá-lo pelos caminhos certospara que possa aniquilar a confedera- ção de Seth e derrotar os inimigos perante a Enéade na Grande Casa do Oficial, em Helió- polis! Tomaste posse da coroa na presença de Hórus, senhor dos nobres. Osíris, rei Khepe- ru nebra, diz que tu podes viver como Rá!” ORIGEM DESTE COSTUME Curiosamente, este texto tem o seu antece- dente nas máscaras cartonadas de Meir do Império Médio (cerca de 1820 a.C.), em que o texto se colocava numa extensão na parte da frente da máscara, logo abaixo do colar. Tratava-se do Salmo 531 dos Textos dos Sarcófagos, embora paradoxalmente nunca tenha sido encontrado num sarcófago, só em máscaras. Mais tarde, foi incorporado na composição do Livro de Sair para a Luz. Embora não seja possível dizer que estas máscaras eram um retrato fiel do defunto, o material com que eram feitas, uma mistura de gesso endurecido e ligaduras, permitia que fossem realizadas com certas parecenças, realçando as feições mais representativas do falecido. De facto, a máscara de Tutankamon apresenta sem dúvida feições especialmente juvenis, assim como lábios carnudos e olhos estreitos, características partilhadas com a múmia do rei. Na zona da cabeça, é também digno de menção o apoio de marfim encontrado na câmara anexa. Trata-se de um belo exemplo de como a iconografia acrescenta ainda mais magia e caráter protetor (apotropaico) ao objeto. O deus Shu aparece a apoiar a abóbada celeste com a ajuda de dois símbolos em cada um dos ombros, e sobre as extremidades da base estão dois leões deitados. Ambos os elementos acrescentam valor mágico. O leão como sen- tinela protetora fazia deste animal um pode- roso símbolo de defesa (devido à sua carga simbólica, cadeiras, tronos e camas tinham forma de leão). Era assim que se conferia uma clara função protetora ao objeto, que se tornava um amuleto. 139139 Embora não seja possível dizer que estas Embora não seja possível dizer que estas máscaras eram um retrato fiel do defunto, o máscaras eram um retrato fiel do defunto, o material com que eram feitas, uma mistura material com que eram feitas, uma mistura de gesso endurecido e ligaduras, permitia de gesso endurecido e ligaduras, permitia que fossem realizadas com certas parecenças, que fossem realizadas com certas parecenças, realçando as feições mais representativas do realçando as feições mais representativas do falecido. De facto, a máscara de Tutankamon falecido. De facto, a máscara de Tutankamon apresenta sem dúvida feições especialmente apresenta sem dúvida feições especialmente juvenis, assim como lábios carnudos e olhos juvenis, assim como lábios carnudos e olhos estreitos, características partilhadas com a estreitos, características partilhadas com a Na zona da cabeça, é também digno de menção Na zona da cabeça, é também digno de menção o apoio de marfim encontrado na câmara o apoio de marfim encontrado na câmara anexa. Trata-se de um belo exemplo de como anexa. Trata-se de um belo exemplo de como a iconografia acrescenta ainda mais magia e a iconografia acrescenta ainda mais magia e caráter protetor (apotropaico) ao objeto. caráter protetor (apotropaico) ao objeto. O deus Shu aparece a apoiar a abóbada celeste O deus Shu aparece a apoiar a abóbada celeste com a ajuda de dois símbolos em cada um com a ajuda de dois símbolos em cada um dos ombros, e sobre as extremidades da base dos ombros, e sobre as extremidades da base estão dois leões deitados. Ambos os elementos estão dois leões deitados. Ambos os elementos acrescentam valor mágico. O leão como sen-acrescentam valor mágico. O leão como sen- tinela protetora fazia deste animal um pode-tinela protetora fazia deste animal um pode- roso símbolo de defesa (devido à sua carga roso símbolo de defesa (devido à sua carga simbólica, cadeiras, tronos e camas simbólica, cadeiras, tronos e camas tinham forma de leão). Era assim tinham forma de leão). Era assim A cabeça era considerada um membro impor- tante do corpo, pelo que se tinha especial cuidado com a sua preservação: daí a colocação de máscaras e apoios de cabeça, já para não mencionar os amuletos em forma desta colocados entre as ligaduras da múmia. Parece que todas as precauções eram poucas quando se tratava de proteger o corpo do defunto. Quanto ao texto, trata-se de uma pequena inscrição hieroglífica escrita sobre a parte traseira da coluna do apoio de cabeça, que basicamente enaltecia a figura do monarca: “O bom Deus, filho de Amon, rei do Alto e do Baixo Egito, Senhor das Duas Terras, Kheperunebra, que tenha vida como Rá para sempre!” Com este texto, não só se reconhecem os títulos e os epítetos mais significativos de um rei egípcio, como também se está a realizar uma filiação direta com o deus Amon, já que é ele mencionado como seu próprio filho. Esta pequena referência é, na verdade, uma forma Os sacerdotes-leitores eram um corpo especializado da casta sacerdotal, orientado para proceder aos ritos funerários G E TT Y Escriba sentado, estatueta esculpida entre 2480 e 2350 a.C. e encontrada na necrópole de Saqqara. 140 de quebrar e se afastar do período vivido pelo seu pai e antecessor, Akhenaton. Esta filiação é uma clara tentati- va de reforçar o regresso aos cânones tradicionais, aspeto muito presente e recorrente durante o curto rei nado do jovem Tutankamon. NA CÂMARA DO SARCÓFAGO Se entrássemos agora na pequena sala que alojava os sarcófagos dourados do jovem soberano, veríamos que as quatro paredes foram decoradas com diferentes cenas de temática fúnebre. Trata-se da câmara fune- rária, a única sala decorada no túmulo de Tutankamon. A parede ocidental está total- mente pintada com um excerto do Livro de Amduat (“O que está no Além”), uma com- posição literária egípcia que descreve as diferentes regiões do submundo e os seus habitantes à medida que o deus Rá faz a sua viagem noturna na barca, antes de renascer na manhã seguinte. A partir do reinado de Hatshepsut (cerca de 1470 a.C.) e durante todo o Império Novo (cerca de 1470–1077 a.C.), era moda decorar as paredes dos túmulos reais com fragmentos do Livro de Amduat. Ao contrário do Livro de Sair para a Luz, composto por salmos individuais sem sequência fixa, estava estruturado em doze secções correspondentes às doze horas da noite, e texto e imagem andavam de mãos dadas. Em concreto, o extrato da parede ocidental do túmulo de Tutankamon contém um fragmento da Primeira Hora, em que basicamente se enumeram alguns dos seres que habitam no Além. Na parte superior, está representada uma barca que leva a Khepri, a forma noturna de Rá, emoldurada por duas divindades ajoe- lhadas, ambas identificadas como Osíris. À sua direita, há uma cena em que aparecem representadas mais cinco divindades: Maat, a Senhora da Barca, Hórus, o Touro de Maat e o Vigilante, cada uma devidamente identi- ficada pelo seu nome em hieróglifos. Sobre ambas as cenas, uma linha de hieróglifos diz: “As duas deusas Maat levam este deus na barca noturna, passando através da porta desta região pela qual este deus passa como um carneiro.” G E TT Y Pormenor dos macacos na Primeira Hora do Livro de Amduat, nos frescos da câmara funerária de Tutankamon. Os doze macacos louvam a chegada do deus (faraó) ao submundo 141141 Corrigir hieróglifos “As duas deusas Maat levam este deus na barca noturna, passando através da porta desta região”. No entanto, apesar da forma retrógrada em que o texto foi escrito, observa-se que contém erros na posição de alguns sinais: alguns determinantes (sinais que davam semântica à palavra) aparecem separados da palavra a que dão significado e também as duas preposições (as corujas) não estão no lugar que lhes corresponde, o que realmente muda o sentido gramatical da oração. Eis o texto corrigido com os sinais orientados no sentido correto da escrita, mas mantendo os erros de colocação dos sinais: Vê-se que há um movimento de sinais importante: as corujas não estãona posição correta no texto de Tutankamon e no final da frase há uma mistura significativa de sinais. Este é o texto completamente corrigido: A escrita hieroglífica do Antigo Egito seguia preceitos quanto à forma, como a orientação. Em geral, os sinais animados (figuras humanas ou animais), estavam orientados de modo a olharem para o início da frase. Assim, quando se quer identificar o sentido da escrita de um texto hieroglífico, basta procurar um pás- saro. A frase começa no lugar para onde o pássaro estiver a olhar. No entanto, há textos escritos de forma retrógrada, numa antítese da norma. A escrita retró- grada tornou-se muito comum durante o Império Novo (c. 1539–1077 a.C.) e espe- cialmente em textos como o Livro de Sair para a Luz e o Livro de Amduat, compo- sições religiosas que costumavam ser escritas em hieróglifos cursivos sobre papiro. Parece que a escrita retrógrada surgiu da necessidade de assinalar a natureza arcana e especializada do texto. É o caso do texto gravado na parede ocidental do túmulo de Tutankamon. Trata-se de um fragmento do Livro de Amduat em escrita retrógrada, em hieróglifos monumentais e não cursivos. Em baixo, o texto tal como aparece no túmulo de Tutankamon: A ordem de leitura é de cima para baixo e da esquerda para a direita. O lado para onde olha o pássaro indica o sentido da leitura. 142 As impressões do túmulo M E TR O P O LI TA N M U S E U M O F A R T Um tipo de escrita que não podemos ignorar é a gravada nos selos. Muito provavel- mente feitos de madeira ou de pedra, estes eram conce- didos pelo rei aos oficiais; daí o título de “portador do selo real”. O selo estampava-se em superfícies de adobe fresco, ficando o texto aí gravado. No túmulo de Tutankamon, encontraram-se vários selos impressos e em dois tipos de suportes: nos fechamentos das diferentes salas e em alguns objetos do enxoval funerário. Alan H. Gardiner e James Henry Breasted, filólogos da equipa de Howard Carter, encarrega- ram-se da sua identificação e tradução. No túmulo do rei, foram encontrados quatro: o primeiro no início do corre- dor, mais precisamente no final das escadas de acesso; o segundo no umbral da entrada para a antecâmara; o terceiro selava o acesso à câmara ocidental; o quarto, talvez o mais identitário, selava a própria câmara fune- rária. As câmaras podiam ser seladas de diferentes manei- ras: com grandes lousas à medida da abertura, colo- cando pedras de diferentes tamanhos encaixadas entre si ou através de uma parede de tijolos de adobe ou argila. Ocasionalmente, a parte exterior destas “paredes” era coberta com uma camada de adobe sobre a qual os vários oficiais que prestavam assis- tência ao enterro deixavam a impres- são dos seus selos enquanto a massa ainda estava fresca, como uma espécie de carimbo. Estes “carimbos” no túmulo do jovem rei mediam apro- ximadamente 15 centímetros de altura por seis de largura e ocupa- vam praticamente toda a superfície do adobe. Os textos neles impressos tinham uma dupla funcionalidade. Por um lado, identificavam o proprietário (neste caso, o rei Tutankamon); por outro, estavam carregados de simbo lismo e magia. Se analisarmos o conteúdo destes textos, basicamente identificam o rei mencio- nando o seu nome de trono ou prenomen, Kheperunebra, e os seus títulos e epítetos que o caracterizam como o rei do Alto e Baixo Egito, um soberano que é piedoso com os deuses e se encontra em harmonia com eles e, por isso, é amado em “toda a terra”. Provavelmente, todas estas menções foram estra- tegicamente escolhidas para reforçar a ideia de regresso à ordem e aos cânones tradicionais após o período do rei Akhenaton. Por outro lado, destaca-se um tema muito recorrente e com muita carga simbólica. Trata-se dos Nove Arcos, isto é, a representação dos inimigos tradicionais do Egito como prisioneiros. No caso das impressões do túmulo de Tutankamon, Anúbis aparece sobre nove presos ajoelhados e com as mãos atadas nas costas, dispostos em três filas sobrepostas. Vislumbram-se neles traços típicos dos tradicionais povos inimigos do Egito: asiáticos, núbios e líbios. A representação simbólica destes prisioneiros assegu- rava a vitória do Egito sobre o caos do “estrangeiro”. 143 Sob as duas cenas, aparecem doze macacos sentados, cada um com a sua etiqueta em hieróglifos: o Devoto, o que Guincha, o Fla mejante, o que Louva Com a Sua Chama, o Bailarino, o Anónimo (macaco que normal mente não aparece identificado na compo sição literária), o Macaco, o Aclamador, o Macaco da Barriga Mole, o Coração da Terra, o Favorito da Terra e o Adorador. Estes nomes fazem referência à atitude e à função dos seres na Primeira Hora da viagem de Rá, isto é, louvam a chegada do deus ao submundo. SERES DO SUBMUNDO Outra cena com forte componente religiosa é aquela que se encontra na parede norte e que está estruturada em três partes bem diferen ciadas, nas quais, basicamente, se representa a preparação e a chegada de Tutankamon ao Além. Ali, a deusa Nut recebe o rei falecido, que mais tarde é também recebido pelo sobe rano do submundo, o deus Osíris, com quem se funde num terno abraço. Esta união sim boliza a assimilação e a conversão final do falecido no próprio Osíris. Os antigos egípcios não acreditavam no desaparecimento total do homem, mas na sua transfiguração no Além, razão de ser dos rituais. Por exemplo, Ay é representado como um sacerdote que, enquanto sucessor de Tutankamon, realiza o ritual da “abertura da boca” ao rei mumificado. Os sacerdotes desempenhavam funções no campo funerário e uma delas era a realização deste ritual. São facilmente reconhecíveis porque usam uma pele de leopardo sobre as suas vestes. Este ato marcava um ponto de viragem no estado vital do indivíduo. A morte significava uma rutura momentânea entre a realidade material (o corpo) e as suas entidades espi rituais. Graças aos rituais, conseguiase restabelecer o equilíbrio. Com a “abertura da boca”, restauravamse os sentidos do defunto depois de ser mumificado. Desta forma, podia chegar a transformarse numa alma transfi gurada (entidade intangível do indivíduo), e a sua vida continuaria plena no Além. A palavra escrita, a palavra recitada e a imagem conjugavamse no Antigo Egito como parte fundamental do mundo funerário, chegando inclusivamentee a garantir a existência eterna com a ajuda da magia. L.M.G.G. A G E Pormenor do túmulo de Tutmés III (Vale dos Reis), no qual se observa parte do Livro de Amduat. O túmulo de Tutankamon ostenta vários selos, alguns dos quais se destinam a identificá-lo na viagem pelo Além 144 145 S H U TT E R S TO C K Túmulos intactos Recriação do interior do túmulo de um faraó. 146 E ncontrar uma sepultura intacta onde alguém foi enterrado é relativamente comum em todas as missões que fazem escavações no Egito. Isto acontece porque a grande maioria pertence a grupos sociais que não tinham muitos recursos para enterrarem os seus mortos com um grande enxoval em túmulo próprio, ou porque foram enterrados em valas escavadas na areia do deserto. Essas sepulturas não chamam a atenção do grande público, dado não possuírem mobiliário funerário de grande qualidade e beleza, porque a sua conservação é deficiente ou porque, sim- plesmente, estão apenas acompanhados de algumas oferendas guardadas em cerâmicas de uso quotidiano. No entanto, para os diferentes especialistas que compõem as atuais equipas de investiga- ção, podem ser uma fonte muito importante para reconstruir as condições de vida dos antigos egípcios. Por exemplo, os antropólogos físicos determinam a idade, o sexo, o grupo étnico, as doenças de que padeciam e, em alguns casos, até a causa da morte. Especialistas paleo- ambientais determinam quais as madeiras usadas nos caixões, que podiam ser locais ou im- portadas, e as sementes deplantas e flores das oferendas e dos ramos que acompanha- vam o falecido aquando do enterro, o que, em alguns casos, permite identificar a altura do ano em que acon- teceu o funeral. Os peritos em cerâmica determinam a origem das peças, etc. Tudo isto, em conjunto, além dos textos e da comparação com outros túmulos e cemitérios contemporâneos, per- mite ao egiptólogo aval iar como eram as condições de vida daqueles egípcios que não aparecem retra- tados nos templos das grandes personagens da Antiguidade. No entanto, para o bem e para o mal, os meios de comunicação, desde a descoberta de Tutankamon, destacam sempre o descobri- mento de sepulturas de faraós ou daqueles que se evidenciam pela riqueza do seu enxoval. Com os meios e os especialistas que temos hoje, as possibilidades de obter informação multiplicam-se. CAÇA AO TESOURO A história das grandes descobertas de túmulos intactos remonta ao século XIX, quando o mercado europeu de antiguidades e, mais tarde, o norte-americano, começaram a procurar objetos egípcios. Nas primeiras décadas daquele século, a caça ao tesouro multiplicou-se, mas tratava-se sobretudo de saques perpetrados por populações locais, que esperavam encontrar tesouros, ou por europeus residentes no Egito, que transfor- mavam as antiguidades egípcias num negócio A S C O caixão de madeira do faraó Nubkheperre Intef, da XVII Dinastia, datado de por volta do ano 1600 a.C. 147 muito rentável. Na década de 1820, começa- -se a ouvir falar de alguns túmulos de grandes personagens do Antigo Egito, como o faraó Nubkheperre Intef, da XVII Dinastia, enter- rado na margem ocidental de Luxor. Infeliz- mente, os objetos nele encontrados, bem como outras descobertas semelhantes desen- terradas naqueles anos, estão espalhados por diferentes museus arqueológicos europeus, em alguns casos sem se ter podido estabe- lecer claramente a sua proveniência. Esta falta de proteção dos monumentos egípcios começou a mudar na década de 1850, após a chegada ao Egito do jovem egiptólogo francês Auguste Mariette (1821–1881), que lutou para que as autoridades locais regulamentassem as escavações. Por fim, em 1858, foi criada uma instituição que zelaria pelo património egípcio: o Serviço de Antiguidades (hoje deno- minado Ministério das Antiguidades). Graças a esta instituição e aos regulamentos, que se foram tornando cada vez mais restritivos, podemos hoje apreciar, nos museus egípcios, os enxovais encon- trados em túmulos intactos, como o do enterro sumptuoso de um boi sagrado, Ápis XIV (do reina- do de Ramsés II) que Mariette descobriu em 1852 no Sera- peum de Saqqara. Em 1859, funcioná- A S C Mais do que as joias e máscaras de ouro, aos egiptólogos interessa compreender e definir como era a vida quotidiana O egiptólogo francês Auguste Mariette ajudou a mudar a forma como se procedia à escavação dos achados. 148 rios de Mariette descobriram o túmulo intacto da rainha Ahhotep. O egiptólogo não chegou a tempo de evitar que as principais peças, como o caixão dourado, os diademas, os colares, as pulseiras e os peitorais, fossem enviadas ao governante do Egito, Said Pachá. No entanto, acabou por conseguir resgatá-las a caminho do Cairo, onde iriam ser repartidas pelas favo- ritas do harém de Pachá. Este acontecimento motivou o egiptólogo francês a convencer os políticos egípcios a criarem uma instituição que exibisse as melhores peças descobertas até ao momento, que estavam guardadas num armazém. Em 1863, o Museu de Boulaq abriu as suas portas no Cairo, tendo perma- necido em funcionamento até 1891. CHEGA GASTON MASPERO A Mariette sucedeu Gaston Maspero (1846–1916), outro arqueó logo francês que, com as suas descobertas, deu grande impulso à egipto- logia, tendo ainda desenvolvido e profissio- nalizado o Serviço de Antiguidades. Em 1881, um assistente alemão de Maspero, Émile Bru- gsch (1842–1930), ouviu dizer que uma família de Luxor, os Abd el-Rassul, tinha descoberto um túmulo intacto, possivelmente da realeza, e que, esporadicamente, vendia a antiquários os objetos nele encontrados. Depois de obter a localização do túmulo através de métodos pouco ortodoxos, Brugsch desceu a um sepulcro situado perto de Deir el-Bahari, onde descobriu algo excecional: numa sepul- tura de grandes dimensões, mas desprovida de qualquer decoração, estavam depositados os corpos de vários reis e membros da família real do Império Novo, além de diversas per- sonagens importantes da XXI Dinastia. As múmias jaziam dentro de caixões, rodeadas de oferendas e alguns objetos do enxoval ori- ginal. Tinham sido escondidas durante a XXI e a XII Dinastias para evitar os saques que A S C Sucessivos arqueólogos desenvolveram e profissionalizaram a egiptologia Representação da colheita no túmulo de Sennedjem (Deir el-Medina). 149 tinham como alvo o Vale dos Reis e as necró- poles próximas desde o final da XX Dinastia. TROCA DE CAIXÕES Infelizmente, quase todas as personagens importantes do Império Novo não repousavam nos seus caixões e sarcófagos originais, pois estes tinham sido trocados por outros de madeiras nobres. Dos enxovais, pouco restava, embora fosse o suficiente para imaginar como teriam sido quando foram enterrados nos vales dos Reis ou das Rainhas. Este achado facilitou o trabalho dos responsáveis que reuniram as peças de metais nobres, até porque naquela época o Egito não tinha capacidade para produzir esse tipo de metais como nos séculos anteriores. Além disso, este achado composto por mais de 6000 peças obrigou Brugsch a esvaziar o túmulo em dois dias, pois havia a ameaça de que a população local queria fazer valer os seus “direitos” sobre o “saque”. Ao retirar as peças tão rapidamente, perdeu-se grande quantidade de informação, como a locali- zação dos corpos e dos objetos associados a eles. G E TT Y Aldeia dos trabalhadores da antiga Tebas, em Deir el-Medina. 150 AS AUTORIDADES GANHAM PESO Com o passar dos anos, a situação foi-se nor- malizando. A autoridade do Serviço de Anti- guidades consolidou-se, de tal forma que, na viagem de inspeção ao Alto Egito que Gaston Maspero realizou em 1886 juntamente com vários egiptólogos e o cônsul espanhol Eduard Toda i Güell, se descobriu o túmulo intacto de um artesão chamado Senedjem, oriundo de Deir el-Medina, a aldeia onde residiam os operários e artistas que construíram os túmulos reais no Vale dos Reis. Eduard Toda, que ficou encarregado de documentar e esvaziar a sepultura, deparou-se com cerca de vinte sarcófagos e múmias (algumas ainda com máscaras e peitorais), cerâmicas, cofres, caixas, camas, cadeiras e bancos. Havia também shabtis, ferramentas de arquitetura e até mesmo um fragmento de calcário com uma parte do texto em hierático do Conto de Sinué, obra cimeira da literatura egípcia, escrita 600 anos antes. O conteúdo do sepulcro era uma verdadeira joia para os egiptólogos. Se compararmos com descobertas posteriores, essa vintena de múmias indicava que aquele túmulo tinha sido aberto e fechado em várias ocasiões, durante as quais parte do enxoval foi prova- velmente usado de novo pelos familiares dos defuntos no mundo dos vivos. CONCORRENTES DE TUTANKAMON Só em 1894 voltaram a desco- brir-se túmulos de personagens da realeza, pela mão do diretor do Serviço de Antiguidades, Jacques de Morgan (1857–1924), que durante um par de anos escavou em torno das pirâmides dos reis Amenemés II, Sesós- tris III e Amenemés III (XII Dinastia), em Dahshur. Junto à pirâmide de Sesóstris, encon trou duas câmaras funerárias saqueadas na Antiguidade. Felizmente, os ladrões tinham-se esquecido de verificar uns poços próximos dali, onde se encontravam as joias de ouro e as pedras preciosas que pertenciam originalmente à princesa Sit-Hathor e à rai- nha Meret. De Morgan continuou as escavações em Dahshur durante maisum ano e teve ainda mais sorte. Perto da pirâmide de Amenemés, descobriu quatro túmulos intactos, três dos quais (das princesas It e Itweret e da rainha Khnemet) continham grandes quantidades de joias, amuletos, punhais e diademas que rivalizavam os com que viriam, mais tarde, a ser encontrados no túmulo de Tutankamon. Por fim, De Morgan descobriu ainda o túmulo de um rei quase desconhecido da XIII Dinas tia, Hor. O caixão tinha sido igualmente saqueado na Antiguidade, mas o sepulcro continha ainda inúmeros objetos, entre os quais uma estátua do ka do rei que chama a atenção pela sua vivacidade, graças aos olhos de vidro com que foi decorada. TESOUROS IMPENSÁVEIS O início do século XX significou a gene- ralização das escavações por todo o Egito, principalmente na necrópole de Mênfis e na antiga Tebas. Em 1905, o milionário norte- -americano Theodore Davis (1837–1915), sob a supervisão dos arqueólogos ingleses James Quibell (1867–1935) e Arthur Weigall (1880–1934), descobriu um túmulo no Vale dos Reis (KV46) onde repousavam os corpos de Yuya e Tuya, os pais da rainha Tiy, mulher de Amenófis III e mãe de Akhenaton. A sepultura tinha sido aberta por saqueadores antigos, mas apenas roubaram as joias dos corpos e os perfumes. O resto estava intacto e havia um enxoval que, pela sua variedade e riqueza, só foi ultrapassado pelo de Tutan- kamon. Continha sarcófagos, caixões e más- caras douradas, mobiliário folheado a ouro e diversas incrustações, shabtis, vasos canó- A G E Um dos quatro vasos canópicos de prata de Sheshonq I. Sheshonq II teve um caixão de prata. 151 picos, cerâmicas com o natrão de embalsa mamento, etc. Um ano depois, o egiptólogo italiano Ernesto Schiaparelli (1856–1928) encontrou, não muito longe da sepultura na qual Eduard Toda tinha trabalhado, a de um arquiteto de túmulos reais de meados da XVIII Dinastia, Kha, acompanhado da sua mulher, Meryet. O seu enxoval é um dos melhores entre os encontrados no Egito, não só pelo seu exce lente estado de conservação, mas porque era composto por inúmeros objetos da vida quotidiana. A variedade é imensa: mobiliário, perucas, cosméticos, roupa guardada em baús, ferramentas, etc. Um dos aspetos que mais informação pode oferecer é a análise das oferendas, compostas por verduras, car nes, pão, ervas aromáticas, farinha, frutas, flores. Estas e outras descobertas foram a base do Museu Egípcio de Turim. IDADE DE OURO DA EGIPTOLOGIA Os tempos que se seguiram à descoberta de Kha podem considerarse os anos dourados da egiptologia. Realizaramse grandes esca vações em importantes e numerosas jazidas, e foi com elas que se estabeleceram as bases de grande parte do nosso conhecimento atual. No Vale dos Reis, em Luxor, depois de se terem desenterrado as sepulturas dos grandes faraós do Império Novo, parecia que as jazidas estavam esgotadas. No entanto, o inglês Howard Carter (1874–1939) acreditava que havia túmulos por encontrar, nomeada mente o de Tutankamon. Assim foi. Embora tenha afirmado que “os selos estavam intactos” (os egípcios cerravam os túmulos com barro, por exemplo), a sepultura tinha sofrido um pequeno saque após a morte do rei e um segundo que foi descoberto a tempo: Carter encontrou algumas peças envolvidas em tecido prontas a serem levadas. Apesar disso, o túmulo de Tutankamon pode ser consi A G E derado, com toda a justiça, o maior achado arqueológico da história. Documentar o túmulo não foi tarefa fácil para Carter: houve uma interrupção por motivos políticos (o Egito estava a tornar se independente do Reino Unido), tinha de trabalhar em condições difíceis por falta de espaço, o ambiente à volta do túmulo começou Apesar de Saqueados, muitos túmulos continham belíssimos tesouros que não tinham interessado aos ladrões O ka do faraó Hor I, simbolizado pelos braços levantados, é uma estátua de madeira com 1,70 metros de altura. 152 a estar pejado de turistas e Carter recebia constantemente visitas de políticos impor- tantes ou de membros da realeza. Como se não bastasse, tinha a responsabilidade de documentar cada uma das peças e garantir a sua preservação. No entanto, tudo foi realizado com grande sucesso. NOVO ACHADO EM GIZÉ Em plena ressaca da descoberta de Tutanka- mon, em 1925, a equipa do arqueólogo norte- -americano George Reisner (1867–1942) encontrou em Gizé outra sepultura real. No que terá sido uma pirâmide que acabou por nunca ter sido erguida, foi construído um poço de 27,5 metros de profundidade que conduzia a uma câmara sepulcral. Ainda intacta, escon dia o luxuoso enxoval da mãe do rei que construiu a maior pirâmide alguma vez erguida: Kéops. A rainha, mulher do rei Sneferu, chamava-se Hetepheres. Dentro da câmara, foi encon- trada uma grande quantidade de peças de excelente manufatura, embora muitas tenham sofrido os estragos próprios do tempo. Desta cam-se as camas de madeira, os cofres e os armários, tudo revestido a ouro com incrustações, ferramentas de cobre e vasos de pedra e cerâmica, além dos vasos canópicos com as vísceras. Havia também um sarcófago de calcite (alabastro egípcio) que, contra todas as probabilidades, estava vazio. Vários egiptólogos tentaram explicar este facto. Recentemente, Francisco Borrego Gallardo, professor da Universidade Autó- noma de Madrid, propôs a teoria de que a rainha terá sido originalmente enterrada em Dahshur, perto do marido, e que o seu filho, Kéops, decidiu trasladar uma parte do corpo (as vísceras e os órgãos mumificados) para perto do lugar escolhido para o seu próprio descanso eterno, para que ela pudesse ajudá- -lo a renascer no Além. ACHADO EM TÂNIS Na primavera de 1939, o mundo começava a conter a respiração devido aos problemas políticos que se viviam na Europa e conduzi- riam à Segunda Guerra Mundial, desencadeada pela invasão nazi da Polónia, em 1 de setembro. Entretanto, no delta do Nilo, concretamente na cidade de Tânis, iria ocorrer um dos acon- Domínio de Amon Domínio de Montu Mapa do sítio de Karnak, com os diferentes domínios Domínio de Amon Domínio de Montu A Segunda Guerra Mundial obrigou a suspender as escavações 153 tecimentos mais marcantes da egiptologia. O francês Pierre Montet (1885–1966) descobriu a necrópole do Terceiro Período Intermédio, numa extremidade do recinto de Mut. As primeiras câmaras, às quais se acedia atra- vés de um poço com cerca de quatro metros, tinham sido saqueadas, embora ainda hou- vesse restos do enxoval original, bem como vários sarcófagos nos quais repousavam reis da XXII Dinastia e um príncipe. As escavações continuaram e, em 17 de março de 1939, foi encontrada outra estrutura subterrânea que continha cinco câmaras. Na primeira, saqueada, repousavam os restos mortais de Sheshonq II (um rei até então desconhecido), Siamun e Psusennes II. No entanto, ainda havia o caixão de prata do rei Sheshonq II, cujo rosto representava o deus Hórus. SOFISTICAÇÃO REAL Mais à frente, havia duas câmaras atrás de uma parede decorada e de enormes blocos de granito. Numa, estava o sepulcro intacto de Psusennes I, acompanhado dos seus vasos canópicos, shabtis e recipientes de prata. A múmia do rei estava dentro de um sarcófago originalmente preparado para o rei Merneptah, da XIX Dinastia. Lá dentro, a missão francesa encontrou um belíssimo caixão de prata com apliques de ouro e a máscara de ouro do rei, juntamente com outras peças e joias que decoravam a múmia real. A segunda câmara, originalmente preparada para a mulher de Psusennes II, Mutnedjmet, acabou por ser ocupada pelo faraó Amene- mope, filho de ambos. Numa das restantes câmaras, abertas já após a Segunda Guerra Mundial, encontrava-se o general Wend- jebauendjedet; a outra, também preparada para um militar, estava vazia. O enxoval funerário de Wendjebauendjedet era quase tão espetacular como o de Psusennes I. Embora os objetos orgânicos estivessemmais deteriorados do que os que foram recuperados no túmulo de Tutankamon, o achado de Tânis permitiu aproximar-nos da sofisticação da corte real egípcia, desta vez numa época em que a realeza do país do Nilo ocupava um lugar secundário no palco inter- nacional. A.J.S. Domínio de AmonDomínio de Amon Domínio de Mut 1 Embarcadouro 2 Dromos de Montu 3 Templo de Montu 4 Templo de Harpra 5 Templo de Maat 6 Tesouro de Tutmés I 7 Setor de Osíris 8 Porta do Leste 9 Templo de Amon 10 Tesouro de Shabako 11 Capela Alta de Amon 12 Grande Templo de Amon 13 Osireion 14 Oratórios de Osíris 15 Dromos de Karnak 16 Capela de Hakor 17 Parede de Nectanebo I 18 Habitações dos sacerdotes 19 Lago sagrado 20 Armazém de oferendas 21 Sétimo pilone 22 Oitavo pilone 23 Primeiro pilone 24 Décimo pilone 25 Edifício de Amenhotep II 26 Templo de Khonsu 27 Templo de Opet 28 Porta de Ptolomeu 29 Dromos de Mut 30 Templo de Mut 31 Templo de Amon-Kamutef 32 Monumento da Barca Sagrada 33 Templo de Khonsu-Menino 34 Avenida das Esfinges 35 Lago sagrado 36 Dromos de Khonsu 37 Dromos para Luxor 38 Oratório branco 39 Oratório vermelho 40 Pátio de Tutmés IV 41 Oratório de Tutmés III Navegar para o Além 154 Uma das barcas miniatura encontradas no túmulo de Tutankamon. A G E 156 F oram 36 as miniaturas de barcas de madeira, douradas e pintadas, encontradas no túmulo de Tutankamon. Decoradas com figuras zoomorfas ou divindades, destinavamse a proteger o rei Sol durante a sua peregrinação à cidade sagrada de Abidos, que alberga o túmulo do deus dos mortos, Osíris. Algumas carregam um trono, outras uma cabina de viagem ou vários toldos dourados no convés. Estas embarcações têm uma função clara mente funerária e simbólica: permitir que o rei renasça no Além como Osíris. A prática de colocar maquetas de barcos nas sepulturas não é uma inovação de Tutanka mon; na verdade, as barcas acompanham o falecido desde a primeira dinastia do Egito. Baixo-relevo que mostra uma barca solar a transportar Rá (como Nefertum, o Sol Poente), do templo mortuário de Ramsés III, em Luxor. Data, provavelmente, do século XII a.C. No início, eram colocadas grandes embarca ções em tamanho real, como as do rei Kéops, datadas da IV Dinastia (2630–2510 a.C.) e que foram descobertas perto da grande pirâmide do rei no planalto de Gizé. A partir do final do Império Antigo, passouse a depositar nos túmulos reais e privados modelos de barcas de madeira em miniatura, perpetuando assim, simbolicamente, a peregrinação a Abidos. TALHOS, PADARIAS E OFERENDAS As maquetas de barcas funerárias não são os únicos objetos que acompanham o defunto. Há também modelos e miniaturas de padarias, cervejarias, ganadarias, talhos, hortas e por tadores de oferendas, entre muitos outros, 157 evoluíram em relação à literatura fúnebre da época. É surpreendente, portanto, que as miniaturas de barcas do túmulo de Tutanka- mon perpetuem, quase mil anos depois, uma prática funerária herdada do Império Antigo. A razão é desconhecida. G.E.D.T garantindo assim ao falecido o fornecimento daquilo que mais aprecia e um renascimento eterno com tudo o que deseja e necessita à sua disposição. Esta prática continuou até ao reinado de Se- sóstris III, faraó da XII Dinastia do Impé rio Médio (2025–1872 a.C.), e mais tarde desapa- receu a favor de outros objetos cujas funções Em cima, miniatura de barca solar para o transporte de uma múmia, em madeira pintada (X Dinastia). Em baixo, barca esculpida em alabastro com pormenores dourados, do túmulo de Tutankamon. As barcas tinham uma função prática, funerária e simbólica (permitir que o rei renasça no Além como Osíris) e surgiram na I Dinastia A G E G E TT Y G E TT Y A S C Colar floral encontrado no túmulo de Tutankamon, feito com papiro, linho, folhas de oliveira, persea, centáurea-azul, pétalas de lótus-azul e contas de faiança. Está hoje no Museu Metropolitano de Arte de Nova Iorque. 158 Ofertas de vida Q uando Howard Carter escavou o túmulo de Tutankamon, descobriu outros tesouros que, sem tanto valor material como o ouro e as joias, eram igualmente valiosos pelo conhecimento que se podia extrair deles. Consistiam num grande número de elementos vegetais que tinham sido preservados desidratados graças à falta de humidade dentro da sepultura. Por este motivo, o egiptólogo, convencido de que as plantas eram uma ferramenta muito útil para a reconstrução dos costumes funerários e da vida quotidiana dos antigos egípcios, incor- porou na sua equipa de escavação o botânico inglês Percy Newberry (1869–1949), professor da Universidade de Liverpool. 159 PLANTAS QUE CONTAM HISTÓRIAS Desde ramos de flores e grinaldas até alimentos, medicamentos e óleos, as espécies botânicas identificadas nos túmulos egípcios faziam parte das oferendas que ali se depositavam para fornecer ao falecido tudo o que poderia ser necessário na outra vida, partindo do prin- cípio de que era reflexo da terrena. No túmulo de Tutanka- mon, foram encontrados 116 cestos com sementes e comida e vários colares de flores que indicavam que o faraó teria morrido entre meados de março e o final de abril: frutos como melancia, figos-sicômoros, amêndoas, tâmaras, romãs e uvas; espécies aromáticas como coentros, cominho-preto, tomi- lho e açafrão; plantas medicinais como feno-grego, alho e zimbro; fogaças de trigo envolvidas em jun- cos e jarros de vinho etiquetados com a data da colheita. Tudo isto mostra-nos que o túmulo de um faraó estava bem abastecido e continha no seu interior não só uma boa despensa como também uma farmácia bem abastecida. Atualmente, estes materiais fazem parte da Coleção Económica Botânica dos Reais Jardins Botânicos de Kew, em Londres, e do Museu do Cairo. E.M.M.M. O túmulo de um faraó continha uma boa despensa e uma farmácia bem abastecida 160 A S C Também encontrado no túmulo de Tutankamon e igualmente exposto no Museu Metropolitano de Arte de Nova Iorque, colar floral realizado sobre uma rede de papiro em que foram inseridas folhas de oliveira, pétalas de centáurea-azul, bagas, etc. O colar segurava-se ao pescoço com fios de linho. 161 162 Tesouros fascinantes 163 G E TT Y Tesouros fascinantes Imagem da exposição sobre Tutankamon, o seu túmulo e o seu fabuloso tesouro, na África do Sul, 2014/15. 164 B astou uma frase para começar o mito de um faraó pouco conhecido até àquele momento: Tutankamon. Era uma manhã de novembro de 1922 e uma das últimas oportunidades de que Howard Carter dispunha para descobrir o túmulo deste rei da XVIII Dinastia (1539–1292 a.C.). O seu mecenas, lord Carnarvon, estava a perder a esperança de o encontrar, tantas tinham sido as tentativas frustradas de Carter. Este, por sua vez, já tinha começado a duvidar da sua própria sanidade mental. “Consegue ver alguma coisa?”, perguntou Carnarvon quando Carter introduziu uma vela através do buraco que esca vara na parede. “Sim, coisas maravi lhosas”, respondeu o arqueólogo. De facto, a descoberta de um degrau escavado na rocha mudou o curso da história da egiptologia e o conhecimento sobre aquele período histórico. O túmulo de Tutankamon (KV62), embora modesto em dimensões, tendo em conta a sumptuosidade e a magnificência de outros túmu los do vale, era constituído por várias dependências. Destas, destaca-se a antecâ- mara, que continha um trono dourado com incrustações de ébano e marfim, cadeiras, divãs funerários dourados com cabeças de leão e da deusa Hathor, baús, vasos de alabastro, estojos, tamboretes e numerosos acessórios pertencentes a carros dourados. Também foram encontradas aqui as duas famosas estátuas de Tutankamon, que ladeavam a porta de acesso à câmara funerária, elaboradas em madeira e bronze e cobertas por resina negra.Cada uma tinha 1,90 metros de altura, ou seja, estavam representadas em tamanho real (mas o faraó teria só 1,67 m). MÚLTIPLOS SEPULCROS O espaço da última depen- dência, a câmara funerária, encontrava-se ocupado quase na sua totalidade pelo grande sepulcro feito de madeira dourada com incrustações de faiança a formar um padrão de pilares djed (símbolos de Osíris, senhor do submundo) Os objetos achados no túmulo de Tutankamon ajudam a compreender a sua época 165 G E TT Y G E TT Y Recriação esquemática de alguns túmulos encontrados no Vale dos Reis (Ramsés III e IV). Encontrado quase intacto, o túmulo de Tutankamon fascinou os leigos e forneceu informação preciosa e inédita aos especialistas. 166 e de nós tjet (emblemas de Ísis, mulher de Osíris, a quem ressuscitou). Depois de remover o pri- meiro, surgia um segundo sepulcro, igualmente dourado e com desenhos pr-wr, que significam “casa grande”. Acredi- ta-se que este desenho repre sente o santuário da deusa guardiã do Alto Egito, Nekhbet. A decoração deste sepulcro integra textos mágicos provenientes do Livro dos Mortos (ou, mais corretamente, o Livro de Sair para a Luz), bem como representações de divindades protetoras de cada um dos lados, incluindo a tampa. Estas divindades eram Ísis e Osíris, Maat e Rá-Horakhty (divindade solar) e Nut (a deusa do céu, que abria as suas asas protetoras sobre o defunto na tampa). TRÊS CAIXÕES Para chegar finalmente à múmia do rei, tinha de se passar por um sarcófago de quartzite e granito vermelho pintado que continha três caixões antropomorfos, dourados e ricamente decorados. O féretro mais interno de todo o conjunto era feito de ouro maciço. Todos estes caixões represen- tavam o faraó de uma maneira osírica, ou seja, tratava-se da inte- gração do defunto no próprio Osíris, senhor do submundo. Por sua vez, Tutankamon tinha colocada a sua máscara funerária de ouro, para além de inúmeras peças de joalharia (colares, pulseiras, anéis e dedais) nas mãos e nos pés, na sua maioria de ouro. No chamado “anexo”, foi encontrada uma mistura de objetos que variavam desde jarros de vinho a provisões funerárias (mantimentos) para alimentar o defunto na sua outra vida: óleos, pomadas, caixas, cadeiras, bancos e cabeceiras de cama, bem como muitos outros artigos destinados ao uso por parte do falecido no Além. PRONTO PARA UMA LONGA VIAGEM No Antigo Egito, a maior aspiração do indivíduo era renascer no Além. Para consegui-lo, não só G E TT Y Réplica de alguns dos objetos encontrados na antecâmara do túmulo de Tutankamon. Encontraram-se seis carros de combate; antes, apenas se conheciam dois exemplares 167 se preocupavam com a preservação do corpo através do processo de mumificação, como também faziam um enxoval que supunham lhe iria ser útil na outra vida. Por isso lhe levavam os seus objetos favoritos ou, em alguns casos, réplicas encomendadas. A prática de incluir um enxoval no local do enterro terá estado presente durante toda a era faraónica, mas foi G E TT Y G E TT Y no Império Novo, precisamente a época em que Tutankamon viveu e morreu, que surgiu a maior quantidade e variedade deste tipo de enxovais. O enxoval funerário de Tutankamon era composto por mais de 5000 objetos de todo o tipo, que podem ser divididos em três grupos bem definidos: Não há tesouro do Antigo Egito comparável, em beleza e carga mística, à máscara funerária do faraó-menino. 168 • Elementos pertencentes ao âmbito da vida quotidiana. Aqui incluiríamos todos os objetos comuns do túmulo de Tutankamon, como roupas, artefactos de toucador, de escrita, jogos, bengalas, cetros, joias, carros, tronos, encostos, cadeiras, bancos, mesas, camas, baús, grinaldas, coroas... • Elementos relacionados com a passagem do defunto para o Além. Esta secção inclui os sar- cófagos, a máscara funerária, amuletos prote- tores, estátuas de divindades, shabtis e vasos canópicos. Todos estes elementos estavam dotados de uma característica mágica cujo propósito era proteger o falecido dos perigos que iria enfrentar na viagem até ao Além, para assim poder viver para toda a eternidade. • Alimentos e seus recipientes. Neste grupo, estão abrangidos todos os recipientes cerâmicos ou de cestaria com fruta, pão, cevada, cerveja, ânforas de vinho e tudo o que era necessário para abastecer o falecido na outra vida. Apesar de se terem encontrado mais de 5000 objetos na sepultura de Tutankamon, quase todos ficam eclipsados pela impressionante máscara funerária de onze quilos de peso. Feita com ouro, lápis-lazúli, cornalina, amazonite, quartzo, obsidiana, faiança e vidro, cobria a cabeça do defunto até aos ombros. PARA O LAZER E PARA A GUERRA Os elementos mais marcantes (máscara e sar- cófagos) que compunham o enxoval funerário de Tutankamon chamaram sempre a atenção, pelo que dos outros não se fala tanto. No AGE Dois dos seis carros encontrados poderiam ter sido de uso cerimonial, mas os outros eram destinados a atividades recreativas Uma das pinturas murais do túmulo de Tutankamon. 169 entanto, pertenciam ao quotidiano do faraó. Quais eram? Entre os objetos da vida quotidiana, foram encontrados elementos relacionados com diferentes atividades de lazer, como a caça, e outras ocupações, como a guerra. Ligados a estas atividades, foram documentados seis carros desmontados no túmulo: quatro na parte sueste do antecâmara e dois na parte norte da sala do tesouro. O carro foi um ele- mento introduzido no Egito pelos hicsos no século XVI a.C., e só se conheciam dois até à descoberta deste túmulo: um deles encontra- va-se no túmulo de Yuya e Tuya e o outro está exposto no Museu Egípcio de Florença, desco- nhecendo-se a quem pertenceu. A decoração da grande maioria inclui cenas de prisioneiros asiáticos, além do emblema da união das duas terras, conhecido pelo nome de sma-tawy, representações de divindades e motivos protetores, como o sinal ankh, o pilar djed ou o olho wdjat. A decoração incluía o nome de Tutankamon gravado num serekh (uma representação da fachada do palácio). Segundo Carter, dois dos seis carros encontra- dos poderiam ser considerados de uso formal, ou seja, eram usados em desfiles e cerimónias. Os restantes, de estrutura mais leve, seriam usados para atividades de tipo recreativo, como a caça. A G E A G E Carros como esta réplica foram encontrados na antecâmara. O Além não foi dotado apenas de carros, mas também de defesa com armas brancas, como estas adagas. 170 BENGALAS, ESPADAS, BOOMERANGS Outros objetos descobertos na sepultura do faraó-menino eram armas e bengalas. Segundo Carter, provavelmente algumas delas terão sido usadas por Tutankamon em vida. A lista de armamento encontrado na antecâmara e no anexo inclui armaduras, adagas, espadas, arcos e flechas, martelos, paus e fundas, além de exemplares daquilo a que hoje chamamos boomerang. Curiosamen- te, não se encontraram machados de guerra entre todos estes objetos. Destaca-se a presença de duas espadas khepesh, cuja introdução também foi feita pelos hicsos no final do Segundo Período Inter médio (c. 1530 a.C.). Estas espadas caracterizam-se pela sua lâmina curva e acredita-se que seriam usadas mais para esma- gar do que para cortar, dado que o fio da lâmina não estava totalmente desenvol- vido. Uma das espadas contrasta com a outra pelo seu tamanho menor. Acredita-se que foi feita para Tutankamon quando era criança. Quanto aos boomerangs, é possível ver repre- sentações em túmulos em que o falecido apa- rece a caçar com este objeto, como nos frescos do túmulo de Nebamun, hoje no Museu Britâ- nico (Londres). No caso de Tutankamon, con- sidera-se igualmente que os terá usado para a caça, embora não haja representações do rei a caçar com eles. Por outro lado, na antecâmara, no anexo e na própria câmara funerária também se encon- traram bastões e bengalas, paus para a luta e leques.Devido à grande quantidade de bastões e bengalas que foram encontrados no túmulo de Tutankamon, Carter concluiu que se tratava de uma coleção, uma vez que eram cerca de 130 exemplares completos e mais uns quantos fragmentos. Alguns conservam evidências de terem sido usados, enquanto outros eram para A G E A G E A G E A G E Os mais de 5000 objetos descobertos foram eclipsados pela beleza da impressionante máscara funerária: onze quilos de ouro Representação de um escravo, provavelmente núbio, num dos cabos das bengalas pessoais do faraó. Leque real entre os vários encontrados nos objetos do monarca, com as plumas em muito bom estado. 171171171 A G E Lazer faraónico Os jogos de mesa eram muito populares no Antigo Egito. Temos testemunho deste facto nos enxovais descobertos nas sepultu- ras. Na de Tutankamon, foram encontrados quatro tabuleiros de Senet, um dos jogos mais conhecidos da sua época, e possíveis fragmentos de outros dois. Também havia seis conjun- tos das peças para o jogo. Os tabuleiros de Senet eram feitos com ébano e marfim. Um deles tinha uma pequena mesa com pés de leão sobre uma espécie de trenó, para se jogar mais confortavelmente. O jogo Senet desenrolava-se sobre um tabuleiro retangular com 30 quadrados. Alguns destes quadrados tinham muito significado, porque o jogo em si estava rela- cionado com a viagem ao submundo. Por exemplo, nele podemos encontrar a casa que representava as águas do caos ou a casa de rejuvenescimento, a das três verdades, ou, inclusivamen- te, algumas relacionados com divindades funerárias tão importantes como Amon-Rá e Rá-Horakhty. Outros objetos de lazer en- contrados no túmulo foram instrumentos musicais: um par de sistros, dois aplaudi- dores e duas trombetas. Os aplaudidores apresentavam a forma de uma mão com antebraço. Quando se en- trechocavam, produziam um som. Eram feitos de marfim. Segundo Carter, tratava-se mais de um objeto do tipo ritual do que de um instru- mento musical destinado ao ócio. O sistro é, tal como o anterior, um instrumento musical para rituais. Este tipo de elementos não era comum nos enterros, pois utilizava-se em cerimónias. Acredita-se que aqueles que foram encontrados no túmulo devem ter sido ali abandonados depois de usados durante o enterro do monarca. A prova da sua utilização são as marcas de desgaste verificadas no interior do arco de metal. O caso das duas trombetas é especial. Foram descober- tas na antecâmara, envolvi- das em juncos. A primeira era de prata, com o bordo em forma de campânula e a boquilha envolvida em ouro. A decoração lotiforme apresenta dois cartuchos verticais com o nomen e o prenomen de Tutanka- mon. Depois, tinha uma moldura retangular sobre a decoração com a flor de lótus, que continha cenas das divindades Amon-Rá e Rá-Horakhty perante Ptah, como uma representação de todo o panteão egíp- cio. A segunda trombeta é composta por uma chapa de liga de cobre ou bronze e ouro (electro) e revestida de folha dourada em algumas partes. Tem a mesma forma de campânula da anterior e um desenho simples que re- presenta Tutankamon com a coroa azul a receber o ankh, símbolo da vida, da mão de Amon-Rá, com Rá-Horakhty atrás dele. Nas costas de Tutankamon, encontra-se o deus Ptah. Esta trombeta é menor do que a anterior. Um dado interessante? Em 1939, num evento transmiti- do pela BBC, foram tocadas pelo trompetista James Tappern, após o que a trom- beta de prata se partiu em pedaços. A G EA música era algo quotidiano e, como tal, levavam-na para o Além. 172 rituais. O seu material era variado (do ébano ao marfim, alguns com incrustações de ouro ou prata) e as suas formas diversas. Entre eles, destaca-se uma bengala com o cabo encurvado e em que se veem representações dos inimigos do Egito: líbios, asiáticos e núbios. Outro elemento da vida quotidiana muito apreciado no Egito, devido ao calor, era o leque. Destes, conservam-se, pelo menos, oito exemplares. Entre todos, destaca-se o encon- trado na câmara do tesouro. Este belo exemplar é um leque de mão, giratório, feito de marfim com plumas brancas que ainda estavam intactas no momento da sua descoberta. JOGOS, MÚSICA E ESCRITA O túmulo guardava igualmente objetos des- tinados ao lazer, à música e à escrita, muito importantes no Antigo Egito. Neste âmbito, foram encontrados vários jogos destinados ao prazer lúdico do faraó no Além, tal como acontecia na sua vida terrena. Por exemplo, jogos como o Senet (encontraram-se quatro), o Mehen ou jogo da serpente, ou o dos sabujos e chacais que tanto davam para crianças como para adultos. Havia instrumentos musicais, como o sistro, e também duas trombetas, uma de prata, e aplaudidores, uma espécie de castanholas. O que se pode dizer sobre a escrita? Sabe- -se que apenas uma percentagem ínfima da população, circunscrita a escribas, sacerdotes e, possivelmente, à família real, sabia escrever e ler. No entanto, no túmulo de Tutankamon, foram encontrados vários elementos de escrita, concretamente paletas, um apoio de pincéis e um brunidor de papiro, todos de excelente qualidade. Entre as paletas de escrita, uma apresentava, em vez de pigmentos naturais, incrustações de vidro e calcite, o que indica o seu caráter emi- nentemente funerário (elaborada de propósito para fazer parte do enxoval); as outras eram de uso quotidiano, ou seja, elementos da vida diária que alguém decidiu incluir no enterro. Y.T.R. A G E O jogo Senet estava relacionado com a viagem ao submundo Mesa e peças do jogo Senet, em madeira de ébano, com patas de leão. A G E A G E 173 G E TT Y Carter a trabalhar no túmulo do faraó Horemheb. G E TT Y Carter a trabalhar no túmulo do faraó Horemheb. G E TT Y Segundo os Textos das Pirâmides, o rei, ao morrer, tornava-se o escriba do deus-Sol. Daí a grande quantidade de elementos relacionados com a escrita que foram encontrados no túmulo: paletas, uma caixa para “lápis” (na verdade, canas e juncos eram os instrumentos usados para escrever), dois chifres, um brunidor de papiro e pigmentos em recipientes de concha, bem como um fragmento de pedra are- nosa que provavel mente serviria como borracha para apagar. As paletas estavam emolduradas por um retângulo de madeira com um espaço na parte superior para os pincéis e as plumas. Ainda na parte superior, havia dois peque- nos recipientes circulares destinados aos pigmentos. Embora algumas das pale- tas do enxoval funerário de Tutankamon sejam clara- mente objetos simbólicos, e não para serem usados, outras fariam parte dos pertences mais pessoais do jovem rei. Estas peças foram encontradas na câmara do tesouro e incluíam uma pequena paleta com o nome de Tutankaton, designação usada durante o seu período de Amarna, bem como outra de dimensões semelhantes, de marfim, já com o nome de Tutanka- mon. Ambas as paletas possuem evidências de terem sido utilizadas. O conjunto de escrita incluía um estojo de madeira dourada com incrustações, um brunidor de papiro de marfim e ouro, e um prato de marfim destinado à água para a elaboração dos pigmentos. Tudo isto acompanhado de um belo baú ou caixa retangular de papiros, decorado com cenas já conhecidas por aparecerem em outros objetos funerários: o rei na presença de Amon-Rá e Rá-Horakhty, e também perante Ptah e Sekhmet. Presumivelmente, esta caixa estaria destinada a conter rolos de papiro, mas foi encontrada vazia. Escrita para a eternidade S H U TT E R S TO C K Madeira, o luxo dos faraós S H U TT E R S TO C K Desenhos e hieróglifos numa caixa de madeira dourada encontrada no sarcófago de Tutankamon. 175 Madeira, o luxo dos faraós 176 A S C Pormenor do túmulo de Tutankamon, feito com talha dourada e colorida. 177 N ão são só os objetos preciosos que importam. Devido à sua diver-sidade e amplitude,a coleção de madeiras descoberta no túmulo de Tutankamon em 1922 é a mais importante coleção arqueobotânica encontrada em todo o Egito. Este tesouro botânico, composto por colares de grinaldas vegetais e peças de mobiliário funerário feitas com madeira local e importada, foi um dos primeiros a submeter- -se a análises anatómicas para identificação de espécies vegetais do Antigo Egito. O túmulo real, cujo mobiliário foi preservado do ar e da luz durante milhares de anos, destaca-se pela variedade e pela qualidade dos produtos locais e importados a que o rei tinha acesso. No entanto, embora a coleção de plantas e leguminosas descoberta tenha sido alvo de múltiplos estudos, a maioria das madeiras do mobiliário funerário ainda está por identificar. ESTUDOS DE PRECISÃO O botânico inglês Percy Newberry (1869–1949), contratado por Howard Carter, enviou algumas amostras para o Laboratório Jodrell dos Reais Jardins Botânicos de Kew, em Londres, para serem estudadas, tendo sido o botânico Leonard Alfred Boodle (1865–1941) quem analisou primeiro ao microscópio esses fragmentos de madeira. Após a sua morte, os botânicos Charles Russell Metcalfe (1904–1991) e L. Chalk continuaram os seus trabalhos na Universidade de Oxford, e depois foi A. Lucas, um químico londrino que havia colaborado com Carter durante nove mis- sões arqueológicas, quem analisou diferentes pedaços de madeira do túmulo real, em parti- cular cavilhas e tacos usados para a montagem de vários objetos. Carter usou um código de cores para descre- ver a madeira do túmulo (objeto de “madeira branca”, de “madeira vermelha”), que ainda A S C Os objetos de uso quotidiano ajudam a estabelecer como se vivia na época de Tutankamon Uma das cadeiras de rodas que o faraó costumava utilizar, devido aos seus graves problemas nos pés. 178 hoje é usado nas investigações. Estas defi- nições de cor, como o vermelho, podem corresponder a várias espécies de conífe- ras, como o cipreste (Cupressus sempervirens) ou o zimbro (Juniperus sp.), o que dificul- ta que se conheça verdadei- ramente os tipos de madeira usados no fabrico de objetos. Porque é que a madeira é tão importante? O Egito, um país desértico, era desprovido de florestas e, portanto, de madeira, pelo que esta era uma mercadoria preciosa, um objeto de luxo que chegou ao vale do Nilo ao longo da história do Egito graças às diferentes rotas comerciais. CORRENTES E PRECIOSOS O que podemos observar? As prin- cipais madeiras locais usadas são a A S C As diferentes peças de madeira do enxoval mostram a riqueza das redes comerciais e a destreza técnica e artística dos artesãos Entre o seu mobiliário, destaca-se este baú, no qual se pode observar madeira vermelha, que provavelmente serviu para armazenar as roupas que o faraó usava ou queria levar para o Além. A S C 179179 figueira-sicômoro (Ficus sycomorus L.), a acácia (Acacia sp.), o tamarindo (Tamarix aphylla, T. nilotica) e o azufaifo (Ziziphus spina christi), principalmente utilizado no fabrico de cavilhas e mobiliário secundário. As madeiras preciosas, como o zimbro (Dal- bergia melanoxylon) e o cedro do Líbano (Cedrus libani), estavam reservadas para o fabrico de artigos de luxo: cofres, tronos, camas, apoios para a cabeça, cetros, sarcó- fagos, etc. A madeira de ébano, também chamada “ébano dos faraós”, proveniente do Corno de África, e o cedro do Líbano foram identi- ficados em vários cofres e móveis do túmulo de Tutankamon. Da mesma forma, as madei- ras do Médio Oriente foram identificadas como olmo (Ulmus minor), usado nos carros do rei, e casca de bétula (Betula pendula) e madeira de amendoeira (Prunus dulcis), estas últimas utilizadas para o fabrico dos cetros do faraó. As espécies locais e importadas localizadas no túmulo de Tutankamon ilustram a variedade de rotas económicas criadas pelos artesãos da madeira. O estudo do mobiliário funerário devolve-nos uma imagem fantástica das diferentes redes económicas e comerciais durante a XVIII Dinastia. Quando se exa- minam estes objetos, fica-se absolutamente espantado com o incrível conhecimento dos artesãos, a sua destreza técnica e estética. Este foi o requinte artístico colocado ao serviço do jovem rei para a sua viagem ao Além. G.E.D. A S C As diferentes peças de madeira do enxoval mostram a riqueza das redes comerciais e a destreza técnica e artística dos artesãos Na página oposta e aqui, exemplos de camas luxuosas decoradas com formas de animais e talhas douradas de diferentes madeiras. 180 Glossário AARU: o paraíso onde Osíris governava e onde jaziam os defuntos. É descrito como uma região muito luminosa que poderia ser o destino da “alma” do falecido depois de passadas todas as provas e o julgamento de Osíris. ALABASTRO OU CALCITE: tipo de rocha amarelada translúcida ou castanha-clara que se extraía de diferentes minas, como Hatnub, no Médio Egito, no deserto ocidental. Usava-se para fabricar elementos de enxoval, como vasos, esculturas e até elementos decorativos arquitetónicos. ALTO EGITO: território compreendido entre a primeira catarata do Nilo, atual Assuão, até à região de El-Ayait, atual Cairo. AMDUAT: texto que descreve as 12 horas da passagem do Sol através da noite no submundo. AMULETOS: acreditava-se que tinham propriedades mágicas, protetoras e regenerativas. Usavam-se tanto no dia-a-dia como nos rituais fúnebres. Dependendo do tipo (forma, decoração, cor e material), cada um tinha uma fi nalidade. Muitos eram perfurados e usavam-se como pendentes, mas também podiam fazer parte de anéis ou, simplesmente, transportar-se. Durante a mumifi cação, colocavam-se sobre a múmia ou entre as ligaduras para proteger o falecido. ANHK: termo egípcio para designar “vida”. O hieróglifo é o laço de uma sandália com forma de T encabeçada por um círculo. Era um símbolo importante entre os egípcios e aparece muito frequentemente representado na iconografi a. Os coptas adotaram-no como a cruz ansata. APOTROPAICO: quando algo tem um caráter mágico para afastar ou prevenir o mal e propiciar o bem. ATON: deus egípcio que representava o deus-Sol no fi rmamento, sendo também conhecido por deus Rá. Tomou a forma do disco solar, personifi cação simbólica do deus imperial e fonte de toda a vida durante o período de Amarna. BAIXO EGITO: era o território compreendido entre o sul de Mênfi s, perto da atual cidade do Cairo, até ao delta do Nilo. Denominava-se TA-mehu, literalmente, “terra do papiro”. Chamava-se Baixo Egito porque era onde desembocava e corria o Nilo. CAIXÃO: devido à necessidade de proteger o corpo do defunto, os egípcios colocavam os restos mortais mumifi cados em caixões, que eram considerados a habitação eterna do falecido. Tinham funções religiosas e simbólicas, além de serem um elemento essencial do enxoval funerário. Usaram-se a partir do período pré-dinástico até ao greco- -romano. Inicialmente, eram retangulares, mas, no fi nal do Império Médio, começaram a ser substituídos por caixões antropomórfi cos, ou seja, com forma humana. DUAT: o reino dos mortos ou o submundo na mitologia egípcia, para onde a alma dos defuntos viajava para ser julgada no tribunal de Osíris, além de ser a morada deste e de outros deuses. Nesta região, Rá viajava de oeste para leste todas as noites e durante a sua jornada lutava contra Apófi s, que encarnava o caos primordial que tinha de superar para se levantar todas as manhãs e devolver a ordem à Terra. CARTONAGEM: material composto por várias camadas de linho (estucado) ou papiro endurecido com gesso, e que se decorava com tinta ou ouro. Empregava-se para fazer máscaras funerárias que se colocavam sobre a múmia do defunto, mas também para caixões e carcaças de múmia. Começou a utilizar-se no Primeiro Período Intermédio, tendo-se generalizado durante a XXII Dinastia. CARTUCHO: provém do francês cartouche.Representa-se esquematicamente como o laço de corda do hieróglifo shen mas de forma alongada. Usava-se para escrever dentro dele o nome dos faraós. COPTA: egípcio que professa o cristianismo. Usa-se também para designar uma fase da história do Egito que vai desde o fi m do período romano até à conquista islâmica (ano 641) e para se referir à língua copta, descendente direta do demótico que era falado no Egito da Antiguidade Tardia. COROA BRANCA: simbolizava o controlo do faraó sobre o Alto Egito. Era usada nas ocasiões que envolviam apenas este território. COROA VERMELHA: simbolizava o controlo do faraó sobre o Baixo Egito. Era usada nas ocasiões que envolviam apenas este território. COROA DUPLA: era a usada pelos faraós. Trata-se de uma combinação da Coroa Vermelha do Baixo Egito e da Coroa Branca do Alto Egito. A união de ambas representava o poder e o controlo do faraó sobre todo o Egito unifi cado, além da união das Duas Terras. DELTA: Baixo Egito, o norte do país. Nesta zona, havia cinco ramais do Nilo na Antiguidade; atualmente, só restam dois. DEMÓTICO: escrita cursiva; é também uma etapa 181 da linguagem egípcia escrita. Foi inicialmente adotado em documentos administrativos e comerciais. Substituiu a escrita hierática e, durante o período ptolemaico, também foi usado para textos religiosos, científi cos e literários. DYED: sinal de escrita hieroglífi ca que simboliza estabilidade. Embora o seu signifi cado exato seja controverso, pensa-se que representa um pilar de plantas entrelaçadas ou um conjunto de caules. Está associado à coluna vertebral de Osíris, deus do submundo. ÉPOCA BAIXA: período histórico que abrange várias dinastias: a XXVI ou Saíta (664 a.C.) e as dinastias XXVII a XXI. Perdura até à conquista de Alexandre, o Grande, em 332 a.C. ESCARAVELHO: amuleto muito popular, frequentemente com inscrições. Usou-se principalmente como pequeno amuleto de pedra, mas também para a criação de grandes esculturas de pedra para os templos. O comportamento do escaravelho que rola bolas de estrume estava associado a Rá e à sua viagem pelo céu. ESFINGE: a palavra provém do grego antigo. É uma besta mítica normalmente retratada como um leão deitado com uma cabeça humana e que, muitas vezes, usa o toucado real nemes. Era um símbolo da realeza, já que representava a força e o poder do faraó, além de servir de guardiã às entradas dos templos. ESTELA: lousa de pedra ou madeira, inscrita, talhada ou pintada. Era construída como um monumento para fi ns funerários, de marcação territorial ou comemorativos. FAIANÇA: material com o qual se faziam tanto amuletos como joias, shabtis e recipientes. Era composta por quartzo moído, lodo e cinzas vegetais ou natrão. Era introduzida numa panela e cozida a alta temperatura, dando origem a uma pasta vítrea. FILHOS DE HÓRUS: grupo de quatro deuses, Imsety, Hapy, Qebeshnuef e Duamutef. Eram os fi lhos de Hórus e Ísis e protegiam os órgãos do falecido no embalsamamento. Cada um deles está associado a um vaso canópico com o seu conteúdo e um ponto cardeal. HICSOS: pessoas de origem sírio-palestiniana que emigraram para o Egito no fi m do Império Médio e se instalaram no delta. Controlaram a metade norte do Egito no Segundo Período Intermédio. Literalmente, poderia traduzir-se o termo como “soberanos de países estrangeiros” ou “governantes de países montanhosos”. HIERÁTICO: tipo de escrita cursiva usado pelos antigos egípcios no início do período dinástico. Escrevia-se da direita para esquerda e era uma forma simplifi cada de hieróglifos que permitia que os escribas escrevessem mais depressa em papiro ou óstracos. HIPOGEU: túmulo subterrâneo e escavado na rocha. HIERÓGLIFOS: sistema de escrita usado para transmitir a língua do Antigo Egito. Trata-se de pictogramas usados desde a era pré-dinástica até ao século IV. Representam seres vivos, animais, plantas, pessoas e objetos. Havia três tipos de sinais: fonogramas, logogramas e determinantes. JULGAMENTO OU TRIBUNAL DE OSÍRIS: todos os defuntos tinham de submeter-se a um juízo perante Osíris, no qual o coração daqueles era pesado numa balança contra uma pena da deusa Maat. KA: a força vital do indivíduo, isto é, o seu caráter particular, natureza e temperamento. Nascia com cada pessoa e podia unir-se ao ba, formando o akh. É retratado como um par de mãos levantadas. Podia sobreviver após a morte do sujeito; para isso, era necessária a realização de cultos funerários e oferendas de alimentos. A sepultura era a sua casa. KEMET: antigo termo egípcio para o país. A tradução literal é “terra negra” e refere-se aos solos férteis compostos pelos lodos depositados após as inundações anuais do Nilo no vale e no delta. O termo oposto a kemet era deshret (literalmente, “terra vermelha”), que denominava o deserto e as terras áridas fora do vale do Nilo. Na Antiguidade, o Egito estava dividido em Alto e Baixo Egito, e estes, por sua vez, em 22 distritos, os nomos. KOHL: cosmético usado tanto por homens como mulheres. Era composto por estibina moída e usava-se para delinear os olhos; protegia de doenças oculares e dos raios solares. LÁPIS-LAZÚLI: rocha azul-escura muito importante e apreciada, importada do norte do Afeganistão e usada para decorar máscaras funerárias e em joias e amuletos. LIVRO DOS MORTOS: coleção de feitiços mágicos, alguns novos e outros retirados dos Textos dos Caixões. Data do Segundo Período Intermédio. Era colocado no caixão ou na câmara funerária do falecido para ajudá-lo na sua viagem através do submundo. Inicialmente, foi usado nos enterros reais e privados. MAAT: deusa que personifi cava a verdade, a justiça, a harmonia, a ordem natural e o equilíbrio. Representava-se sentada com uma pena de avestruz. MASTABA: túmulo retangular, de paredes baixas em altura e inclinadas. O nome vem do árabe e signifi ca “banco, assento”, devido à semelhança 182 com estes elementos de adobe das casas árabes. As pirâmides substituíram-nos na III Dinastia e deixaram de ser utilizados no fi nal do Império Médio. MÉDIO EGITO: compreende a área entre Sohag e El-Ayait. NATRÃO: mineral composto por carbonato de sódio e bicarbonato de sódio. Usava-se em rituais de purifi cação, especialmente para embalsamar e mumifi car. NECRÓPOLE: palavra do grego antigo que signifi ca “cidade dos mortos”. Usava-se com referência a cemitério ou lugar destinado a enterros. NEMES: toucado plissado usado pelos faraós. Era um pedaço de pano que tapava a testa e se apertava numa espécie de cauda atrás, enquanto de cada lado do rosto pendiam dois triângulos. Simbolizava o poder do faraó. NÓ DE ÍSIS: amuleto de signifi cado desconhecido. No Império Novo, foi associado à deusa Ísis e ao seu sangue. OBELISCO: monumento de pedra, em forma de pilar muito alto, com quatro lados ligeiramente convergentes mas iguais e cuja ponta era esculpida em forma de pirâmide. Era um símbolo solar. OLHO DE HÓRUS OU UDJAT: um dos amuletos mais comuns do Antigo Egito. Tinha poderes curativos, regenerativos e protetores. ÓSTRACO: fragmento de cerâmica ou pedra utilizado como suporte para a escrita. O custo do papiro fez com que fosse muito usado, especialmente para assuntos não ofi ciais. PAPIRO: era obtido a partir da planta Cyperus papyrus. Assemelhava-se a um papel grosso que se fazia com tiras unidas do caule daquela planta. Também foi usado para fabricar vários objetos do quotidiano, como sandálias, ramos, etc. PORTA FALSA: elemento arquitetónico de pedra ou madeira que imitava uma porta orientada a oeste. Encontra-se em muitos túmulos egípcios e templos mortuários, sobretudo do Império Antigo. As oferendas funerárias eram colocadas à frente destas portas que serviam de ligação entre o mundo dos mortos e o dos vivos. RITUAL DA ABERTURA DA BOCA: cerimónia atravésda qual a múmia do defunto ou a sua estátua funerária eram trazidas de novo à vida (de forma simbólica), devolvendo-lhe o uso da boca e dos olhos. O ritual encontra-se descrito no Livro dos Mortos e em algumas pinturas dos túmulos. No Império Novo, tinha 75 passos. SARCÓFAGO: trata-se de um caixão comummente esculpido em pedra. SHABTI OU USHEBTI: literalmente, “aqueles que respondem”; no entanto, desconhece-se a sua etimologia. Eram servos em forma de pequenas fi guras, equipadas com enxadas e outras ferramentas. Encarregavam-se de servir os defuntos no aaru, através de atividades agrícolas para produzir os alimentos, libertando assim os mortos da realização de tais tarefas. TEXTOS DAS PIRÂMIDES: os primeiros textos funerários egípcios. Sequência de “feitiços” esculpidos ou escritos em colunas nas paredes dos corredores e das câmaras funerárias de algumas pirâmides do Império Antigo. TEXTOS DOS CAIXÕES: conjunto de “feitiços” escritos nos caixões do Império Médio. Ajudavam o defunto na sua viagem para o submundo e garantiam a sobrevivência no Além. Muitos derivam dos Textos das Pirâmides. A Super Interessante é uma publicação mensal registada na Entidade Reguladora para a Comunicação Social com o n.º 118 348. Todos os direitos reservados © Zinet Media Global, S.L. Esta publicação é propriedade exclusiva da Zinet Media Global, S.L., e a sua re- produção total ou parcial, não autorizada, é totalmente proibida, de acordo com os termos da legislação em vigor. Os contra- ventores serão perseguidos legalmente, tanto a nível nacional como internacio- nal. O uso, cópia, reprodução ou venda desta revista só poderá realizar-se com autorização expressa e por escrito da Zinet Media Global, S.L. 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