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EDICIÓN COLECCIONISTA TUTANKAMON TU TA N K A M O N N .º 1 EDIÇÃO BIBLIOTECA LENDA Vida, morte e maldição ÉPOCA O dia-a-dia na corte do faraó TESOUROS As últimas descobertas EGIPTOLOGIA O que falta descobrir INTERESSANTE HISTÓRIA “Possa o teu espírito viver e durar milhões de anos, tu que amas Tebas, sentado com a cara ao vento norte, os olhos cheios de felicidade” INSCRIÇÃO NUMA TAÇA DE ALABASTRO DO TÚMULO DE TUTANKAMON 3 ALBUM V oltar a casa. Era o que pediam Ísis e Neftis nesta antiga litania (papiro Berlim 3008) ao seu irmão, o deus Osíris. Voltar a casa depois da sua morte. Melhor, apesar da sua morte, porque no Antigo Egito a morte não era o fim da vida. Com esta nova série de especiais SUPER História, também desejamos voltar a casa, a uma conceção da história rica em conhecimento e aventura. Desejamos ler, com os olhos curiosos e atrevidos da infância, essas histórias passadas que nos tornaram quem somos. Histórias escritas pelos melhores especialistas em cada matéria, capazes de contagiar-nos com o seu entusiasmo, de partilhar erudição sem falar de cátedra. Textos, seguindo Walter Benjamin, sempre contra o pêlo, para não ficarmos com uma única visão das coisas, para continuarmos a interrogar-nos. Começamos com o faraó menino, Tutankamon. Se Carter disse “não tenho vergonha de confessar que, ao vê-lo, fiquei com um nó na garganta”, também não nos custa afirmar que nos emocionámos mais de uma vez com estas páginas. O saber é uma paixão. C.S. “Ó, bom rei, volta à tua casa! Apazigua o teu coração, não há qualquer dos teus inimigos! Junto a ti, as tuas duas irmãs protegem o teu féretro, chamam-te em pranto! Regressa ao teu féretro! Observa as mulheres, fala-nos! Rei, nosso senhor, afasta todas as penas dos nossos corações!” 4 Conteúdos 26 O REBELDE DE AMARNA Akhenaton, pai e antecessor de Tutankamon, rompe com a ordem religiosa. 10 EGITO ETERNO De onde vem a paixão pelo país do Nilo? 38 QUEM FOI TUTANKAMON? Como era o seu dia-a-dia? Que educação recebeu? Últimas descobertas. 48 A IMPORTÂNCIA DE UM NOME Para assinalar o regresso à ordem tradicional, o faraó mudou de nome. 54 A LENDA DA MALDIÇÃO As estranhas mortes que rodearam a descoberta cobriram-na de mistério. 58 A ÉPOCA DA XVIII DINASTIA Como se vivia naquela altura? O que se passava no Egito? 18 HOWARD CARTER Quem era este arqueólogo sem formação que conseguiu transformar a sua paixão em realidade? 5 162 TESOUROS FASCINANTES Descobriram-se mais de 5000 objetos, alguns dos quais raramente são referidos. 82 144 TÚMULOS INTACTOS Uma recapitulação das descobertas mais significativas. 68 COMO VIVIAM AS MULHERES? O que sabemos sobre elas, a partir dos escritos nos túmulos e outros textos. 88 MORTE E VIAGEM AO INFRAMUNDO As crenças sobre o Além foram mudando ao longo da história do Egito. 100 O VALE DOS REIS A última morada dos faraós tutméssidas, na margem oriental do Nilo. 124 TÚMULO MISTERIOSO O que continha e o que revelou esta extraordinária descoberta que continua a surpreender-nos. O LIVRO DOS MORTOS Datado do Segundo Período Intermédio, descreve como sobreviver no Além. 6 Cronologia de uma civilização A G E 3800 a.C. Na Mesopotâmia, consolida-se a cidade suméria de Uruk. Os seus dirigentes e habitantes inventam a burocracia, a contabilidade e o comércio externo. 3500 a.C. A desertifi cação das terras interiores do Alto Egito obriga os seus reis a mudar-se para as margens do Nilo. Cultivam os campos e estabelecem as primeiras cidades. 2950 a.C. O rei Narmer unifi ca o Egito, um facto decisivo: é o primeiro estado-nação do mundo. 2500 a.C. Inicia-se a construção das grandes pirâmides de Gizé: as de Kéops, Kefrén e Miquerinos. 2080 a.C. Grandes turbulências sociais e políticas desembocam numa guerra civil que divide o Egito. 2000 a.C. O faraó Mentuhotep II reunifi ca as Duas Terras. Começa o Império Médio. 1800 a.C. Os hicsos, procedentes dos atuais Líbano e Síria, conquistam Mênfi s. Introduzem o cavalo e o carro de guerra. Começa a XV Dinastia. 1792 a.C. O rei Hammurabi dá início ao império babilónico, na Mesopotâmia. No fi nal do reinado, ordena a execução do código legal conhecido pelo seu nome. A coroa do faraó representa a união das Duas Terras. 1600 a.C. A civilização minoica de Creta atinge o apogeu. Surge a cultura micénica, no Mediterrâneo ocidental. 1539 a.C. O faraó tebano Amósis I liberta o Egito dos hicsos e trava uma invasão núbia. 1490 a.C. A rainha Hatshepsut governa as Duas Terras durante mais de 20 anos. Sucede-lhe o afi lhado, Tutmés III. 1353 a.C. Akhenaton revoluciona o Egito ao impor o culto a Aton, o disco solar. Será o pai de Tutankamon. 1278 a.C. Ramsés II conquista a Líbia, chega a um acordo de paz com os hititas e reforça o papel do Egito como potência imperial. No seu longo reinado, são construídos vários grandes templos. 1250 a.C. Moisés e os hebreus abandonam o Egito a caminho da Palestina, a Terra Prometida. G E TT Y G E TT Y Palácio minoico de Cnossos (Creta). Akhenaton presta tributo ao disco solar. 7 S H U TT E R S TO C K A LB U M 8 Péricles num quadro do século XIX. 750 a.C. Fundação da cidade de Roma, na península Itálica. 747 a.C. Os núbios assumem o poder no Egito, liderados por Piye, caudilho de Kush. É a época dos faraós negros. 680 a.C. O rei assírio Ashardon invade o Egito e arrasa Mênfis. 587 a.C. Os exércitos babilónios capturam Jerusalém, o que provoca o exílio dos hebreus. 1100 a.C. Na sua expansão comercial pelo Mediterrâneo, os fenícios fundam Gades (atual Cádis, Espanha) e Útica (perto da futura Cartago, na atual Tunísia). 945 a.C. Os líbios chegam ao poder no Egito com o rei Sheshonq I, que submete os tebanos. 814 a.C. Fundação de Cartago, cujos habitantes se expandirão pouco a pouco pelo Mediterrâneo ocidental. A G E Ruínas de Cartago (Tunes). A LB U M 525 a.C. Os exércitos persas conquistam o Egito e revitalizam o comércio e a economia do vale do Nilo. 462–429 a.C. A era de Péricles, em Atenas, é o momento de maior esplendor cultural da Grécia clássica. 336 a.C. Alexandre, o Grande, conquista extensos territórios. Funda a cidade de Alexandria, no Egito, e chega ao Indo. 305 a.C. Após a morte de Alexandre, os generais macedónios repartem entre si o império. Ptolomeu fica com o Egito. 58–44 a.C. Júlio César conquista as Gálias, reforça o poder de Roma e invade o Egito, onde manterá uma relação sentimental com a rainha Cleópatra VII. 27 a.C. Após a morte de Marco António e Cleópatra, Otávio assegura o poder no Egito e em Roma. Passará à história como Augusto, o primeiro imperador romano. A LB U M Estátua de Augusto (Prima Porta, Roma). S H U TE R S TO C K 9 1010 egitoeete rnte rnte rnete rneete rne 1111 A G E te rnte rnte rnoote rnote rnte rnote rn Foi na sequência da campanha napoleónica no Egito (aqui, a batalha das Pirâmides, em 21 de julho de 1798, num óleo de Louis-François Lejeune) que despertou o fascínio pela milenária civilização do Nilo na velha Europa. A G E 12 O linguista e historiador Jean-François Champollion e a Pedra de Rosetta. Compilação essencial Àdireita, capa da edição original francesa da Descrição do Egito, um colossal compêndio em 21 volumes que narra todas as descobertas da primeira grande missão arqueológica interdisciplinar no país do Nilo. Esta obra foi a origem da egiptomania na sociedade europeia na primeira metade do século XIX. No que toca a civilizações antigas, é possível que hoje saibamos mais sobre a egípcia do que sobre qual-quer outra, e há um par de boas razões para isso. Por um lado, estamos a falar da mais duradoura e refinada das culturas que o mundo conheceu, com cerca de quatro milénios de história, o dobro do vigente cris- tianismo. Por outro, referimo-nos ao setor mais ativo e dinâmico do nosso interessepelo passado: a egiptologia. Pode dizer-se que a arqueologia atual nasceu no Egito e que o seu primeiro impulsionador foi Napoleão Bonaparte. As pirâmides de Gizé sempre lá estiveram, como objeto de admira- ção para o mundo, mas, até ao século XIX, o Ocidente olhava o velho universo faraónico de longe. Em 1798, a expedição militar de Napo leão ao Nilo para interromper a comu- nicação do Império Britânico com as suas possessões orientais integrava uma comitiva de 170 naturalistas, filólogos, historiadores, topógrafos e artistas que levou a cabo, durante quase três anos, a primeira grande missão arqueológica interdisciplinar realizada no mundo. Os seus resultados foram recolhidos nos 21 volumes da monumental Description de l’Égypte, uma das publicações mais impor- tantes da história. A obra, muito cuidadosa e exuberante, pesava um total de meia tonelada e lançou as buscas apaixonadas das missões francesas, inglesas, alemãs e italianas no Vale dos Reis que teriam lugar nos dois séculos seguintes. Porém, o que mais se destacou de todo aquele esforço extraordinário acabou por ser fruto do acaso. Um tenente francês chamado Bou- chard ter-se-á apercebido de inscrições numa das pedras que os seus soldados estavam a remover durante as operações de fortificação na cidade de Rosetta, localizada 50 quilómetros a leste de Alexandria. Ao observá-la com mais atenção, reparou que os sinais estavam agru- pados em três blocos distintos, como se fossem três alfabetos diferentes. Tratava-se de um edital faraónico escrito em hieróglifos, demótico e grego durante a era ptolemaica. Esse monólito seria a porta pela qual se entraria no conhecimento da escrita hieroglífica 23 anos depois, quando o linguista Jean-François Champollion (1790–1832) conseguiu terminar a decifração da pedra de Rosetta, o que significava resolver, em grande parte, o problema. De repente, os grandes pai- néis cheios de sinais hieroglíficos que cobriam as paredes dos templos e túmulos faraóni- parte, o problema. De repente, os grandes pai-parte, o problema. De repente, os grandes pai- néis cheios de sinais hieroglíficos que cobriam néis cheios de sinais hieroglíficos que cobriam as paredes dos templos e túmulos faraóni-as paredes dos templos e túmulos faraóni- A G E G E TT Y G E TT Y 13 O prussiano Karl Richard Lepsius foi um destacado arqueólogo, mas destruiu materiais e “ofereceu” ao Museu de Berlim uns 15 mil objetos. Nesta litografia colorida que ilustra um dos seus livros, vemos o interior do Templo de Philae, chamado “Pérola do Nilo” e consagrado à deusa Ísis. Napoleão foi ao país do Nilo para cortar as comunicações entre Londres e as suas possessões orientais e levou 170 naturalistas, filólogos, historiadores, pintores e desenhadores A G E 14 A pedra de Rosetta contém um edital faraónico escrito em hieroglífico, demótico e grego na era ptolemaica cos podiam desvendar os mistérios da civilização do Nilo. EGIPTOMANIA O século XIX foi a época dos grandes egiptólogos espoliadores, tal o entu- siasmo que as suas des- cobertas provocavam nas ilustradas Londres, Paris e Berlim. O Egito estava na moda, tendo triunfado personagens como Giovanni Battista Belzoni (1778–1823), um jovem italiano ruivo de dois metros de altura que trabalhou no teatro londrino e mais tarde acompanhou as tropas de Wellington na península Ibérica para animar os tempos de descanso dos soldados. Belzoni visitou o Egito e caiu nas graças do então governador otomano Mehmet Ali (c. 1769–1849), pelo que foi o primeiro europeu a realizar escavações no Vale dos Reis, o grande cemitério dos faraós. A descoberta do mag- nífico túmulo do faraó Seti I tornou-o mun- dialmente famoso e, com as suas exposições e publicações, conseguiu que o Egito se enraizasse na cultura popular britânica, tendo reunido a fabulosa coleção de peças que esteve na base da criação das salas do Museu Britânico dedicadas ao país do Nilo. Belzoni foi seguido por dezenas de outros investigadores europeus, como o inglês John Gardner Wilkinson (1797–1875), que investi- gou e catalogou os túmulos do Vale dos Reis e compilou relatórios importantes sobre o estado de muitos monumentos e túmulos, dos quais entretanto alguns se deterioraram ou desapareceram totalmente. A GENEROSIDADE DO PAXÁ Estima-se que o número de peças retiradas do Egito nos últimos dois séculos pode ser maior do que o daquelas que foram lá deixadas. Não apenas pelo saque e pelo con- trabando, mas também por vontade dos Giovanni Battista Belzoni (1778–1823) foi uma das figuras da era dos espoliadores do início do século XIX. Costumava vestir-se “à turco”, para passar despercebido. A G E 15 governantes otomanos, sobre tudo Mehmet Ali, que represen tou o sultão otomano entre 1805 e 1848. Mehmet sabia que o seu país estava na moda na Europa e que os monumentos faraónicos eram muito cobiçados. Em 1829, negou o seu apoio a França na ocupação da Argélia, tendo ofere cido, à laia de compensação, os dois obeliscos de 23 metros de altura que ladeavam a entrada do Templo de Luxor. Um chegou a Paris e foi instalado na Praça da Concórdia, onde ainda hoje se mantém; o outro acabou por ficar no Egito, devido a dificuldades de transporte. Quando lhe interessava, Mehmet Ali era muito generoso. Foi o que aconteceu com o rei da Prússia, Frederico Guilherme IV (1795–1861), que, encorajado pelo geógrafo e naturalista Alexander von Humboldt (1769–1859), patrocinou uma missão arqueológica de três anos ao Egito, comandada pelo linguista Karl Richard Lepsius (1810–1884). Os prussianos tinham um grande amor pró prio, e as suas atividades no exterior nunca podiam ser inferiores às das outras nações. Assim, a excelente dotação financeira atribuída para o efeito permitiu a Lepsius recolher materiais de todo o Egito, chegando, para isso, a recorrer a explosivos. No final da missão, Mehmet disponibilizoulhe os seus melhores homens e transportes para facilitar a espoliação: a oferta consistia num conjunto de 15 mil objetos e peças de todos os tipos (nenhum deles medío cre) que foram a base do Departamento de Antiguidades Egípcias do Museu de Berlim. SANGRIA HISTÓRICA E ARTÍSTICA França, Itália e Estados Unidos foram outros dos destinos das antiguidades egípcias durante o século XIX, que incluíam não só museus como também os magníficos salões das mansões das classes altas. Por fim, o senso comum francês acabou por prevalecer perante a sangria histórica e artística que estava a assolar o Egito. Quando o quarto filho de Mehmet Ali, Said Pachá (1822–1863), que tinha estudado em Paris, chegou ao poder, o prestigiado con servador do Museu do Louvre, Auguste Mariette (1821–1881), propôslhe criar uma instituição (o Serviço de Antiguidades) para zelar pelo património egípcio e para ter onde expor as peças mais perfeitas e delicadas. Foi lhe, então, oferecido um edifício em Bulak, antecessor do atual Museu Egípcio. Hoje, é impensável retirar do Egito qualquer peça arqueológica, a não ser que seja um presente oficial, como o belo Templo de Debod, ofere Nesta ilustração, são recriados os supostos restos do Grande Labirinto. Hoje, duvida-se de que estas ruínas lhe pertençam. GETTY 16 A esfinge e as pirâmides de Gizé são algumas das maiores maravilhas da civilização egípcia. IS TO C K cido a Espanha como retribuição pela ajuda no salvamento dos templos núbios que iriam ser inundados pelas águas da grande barra- gem de Assuão. ONDE ESTÁ O LABIRINTO? Apesar de tudo o que sabemos sobre o Antigo Egito, ainda há coisas fabulosas por aparecer. Uma das mais faladas, embora sem grandes fundamentos históricos, é o Grande Labi- rinto. Devemos a sua descrição ao grego Heródoto (c. 485–c. 425 a.C.), considerado “o pai da história”. No Livro II da sua obra pioneira, precisamente chamada História, narra o seguinte: “Construíramum labirinto perto do lago Moeris e não muito longe da Cidade dos Crocodilos. Vi este monumento e achei-o superior a qualquer descrição. Nenhuma obra ou edifício grego se lhe pode comparar: todos são inferiores. Os templos de Éfeso e de Samos são admiráveis, mas as pirâmides superam-nos em muito. No entanto, o labirinto é ainda superior. É composto por doze pátios rodeados por paredes cujas portas se encontram de frente umas para as outras, seis a norte e outras seis a sul. As salas estão duplicadas: existem 1500 subterrâneas e outras 1500 na superfície, 3000 no total. Visitei as salas superiores, de modo que falo com conhe cimento de causa, como testemunha 17 ocular. Quanto às salas subterrâneas, não sei mais do que me contaram, porque servem como sepulturas dos reis que construíram o monumento e a sua visita está vedada. As que visitei na superfície são, aos meus olhos, a coisa maior que alguma vez o ser humano construiu. É impossível não ficar boquiaberto com a variedade de corredores tortuosos que, a partir dos pátios, conduzem às salas e destas, por sua vez, a outros pátios. Cada secção do monumento é composta por uma infinidade de salas que terminam em passa- gens que levam a outros edifícios cujas salas há que atravessar para desembocar em novos pátios. Os tetos são todos de pedra, bem como as paredes, decoradas com figuras em baixo- -relevo. Em torno dos pátios, há colunas de pedra branca perfeitamente ordenadas. No ângulo em que o labirinto termina, eleva-se uma pirâmide de duzentos côvados de altura com figuras de animais esculpidas, na qual se entra por um corredor subterrâneo.” Depois de Heródoto, outros cronistas e his- toriadores, como os gregos Diodoro Sículo (c. 90–60 a.C.) e Estrabão (63 a.C.–23 d.C.), considerado “o pai da geografia”, ou o romano Caio Plínio (c. 23–79 d.C.), falaram sobre esta incomparável construção labiríntica, que supostamente ainda poderia ser visitada no século II da nossa era. A partir desta data, nunca mais se soube dela: a que havia sido a obra arquitetónica maior e mais complexa da Antiguidade dilui-se no ar como se fosse fumo. Terá sido uma lenda urbana grega. Na realidade, julga-se hoje que era o templo funerário adjacente à pirâmide de Amenófis III. A.P. “Os templos de Éfeso e de Samos são admiráveis, mas as pirâmides superam-nos em muito. No entanto, o labirinto é ainda superior”, escreveu Heródoto. Atualmente, sabemos que se trata apenas de uma lenda. IS TO C K 18 Carter no seu quarto do Hotel Waldorf-Astoria, logo depois de ter chegado no navio SS Berengaria. G E TT Y Q uem era o homem que esteve por detrás do achado do túmulo de Tutankamon, essa descoberta que marcou o momento mais espeta- cular da história da arqueologia? Era o último de onze filhos de Samuel John Carter, um reconhecido ilustrador de animais, e herdou do seu pai a paixão pelo desenho. Nascido em 1874, em Kensington (Londres), desde menino que acompanhava o progenitor nas suas visitas às luxuosas casas de campo dos seus clientes. Numa delas, conheceu o deputado William Amherst, dono de uma das coleções de arte egípcia mais relevantes de Inglaterra. Aquele encontro alimentou o seu interesse pela egiptologia e mudou-lhe a vida. Um dia, casualmente, lady Amherst conhe- ceu o biólogo Percy Newberry, um professor de egiptologia da Universidade do Cairo que procurava um desenhador, e falou-lhe de Carter, o filho. O professor, seduzido pela qualidade dos seus trabalhos, não hesitou em contratá-lo para o Egypt Exploration Fund. Nem a falta de experiência (tinha apenas 17 anos), nem a nula formação científica impe- diram Carter de se lançar à aventura. No início, nem todos reconheceram o seu potencial. Entre os seus detratores, estava o egiptólogo mais destacado na época: William Flinders Petrie, que reconhecia o seu inte- resse pela pintura e pela história natural, mas não via “utilidade em torná-lo escava- dor”. Apesar das reticências e da sua falta de confiança, Carter conseguiu tornar-se arqueólogo no terreno. A CAMINHO DA FAMA Uma vez terminada a sua colaboração com Newberry em Beni Hassan, Petrie recru- tou-o de novo graças à intervenção de lady Amherst. Uma vez que era ela quem finan- ciava as suas escavações em Amarna, foi fácil convencê-lo que o contratasse como aju- dante. Longe de se arrepender, o exigente egiptólogo ficou encantado com o novo cola- borador, a quem ensinou a escavar. Entre 1893 e 1899, Carter tornou-se o dese- nhador e fotógrafo oficial do suíço Edouard Naville. As suas representações dos baixos- -relevos do templo de Mentuhotep, em Deir el-Bahari, foram muito valorizadas pelo rigor que apresentavam. Por fim, o trabalho de Carter viria a cha- mar a atenção do responsável do Serviço de Antiguidades egípcio, Gaston Maspero, que, apesar da sua juventude (tinha na altura 25 anos) e da sua falta de formação académica, o nomeou inspetor-chefe de Antiguidades para o Alto Egito. Estreou-se no cargo com uma viagem ao sul do país que marcaria o início da sua grande oportunidade e de uma amizade para a vida. VIDA DE INSPETOR Entre as múltiplas responsabilidades de Carter, estavam as tarefas de conservação, de inspeção das escavações em curso e dos monumentos abertos ao público, de con- cessão de autorizações de escavação e da instalação de luzes elétricas nos túmulos. Absorvido pelo seu trabalho, Carter, que não costumava expressar facilmente os seus sentimentos, escrevia cartas à mãe a des- crever as tarefas de que estava incumbido. “As minhas visitas de inspeção a lugares imprevistos fazem os dias parecerem sema- nas. É uma vida estranha: chega uma carta durante a manhã e tudo muda. Nunca sei onde devo acudir. Saio na direção contrá- ria à que estava previsto, a menos que me peçam para ficar onde estou. Seja como for, é a vida de inspetor.” O arqueólogo Carter 19 20 Entre as suas atividades, estava a luta contra os roubos. Os tesouros dos faraós, escon- didos sob a areia do Vale dos Reis, eram uma tentação para os habitante pobres da região, e Carter chegou a ter de fazer de detetive. Chegou à conclusão, por exemplo, que o roubo do túmulo de Amenófis II fazia parte de uma grande rede de corrupção que incluía a Polícia. Apesar de gostar do que fazia, o sonho de Carter era escavar no Vale dos Reis. Naquele tempo, o Egito estava na moda, pelo que era relativamente fácil encontrar entusiastas da arqueologia abastados que patrocinassem uma escavação. Um deles era o advogado norte-americano Theodore M. Davis, que tinha conseguido a concessão de todo o Vale dos Reis. Davis só tinha interesse em encon- trar peças espetaculares que chamassem a atenção e de se fazer fotografar com elas. EMPURRADO PARA UM POSTO MENOR Carter supervisionou os seus trabalhos entre 1902 e 1904, mas a relação entre ambos nunca foi boa. Apesar de tudo, ainda reali- zou várias escavações extraordinárias que apresentou sob a assinatura de Davis. Entre elas, destacam-se a localização dos túmulos de Tutmés IV e de Tutmés I, o maior do Vale, ampliado para servir também de sepulcro à sua filha Hatshepsut. A prometedora carreira de Carter na altura foi bruscamente interrompida devido a um incidente. Embora haja várias versões do mesmo, a mais conhecida é aquela de que o escritor francês Christian Jacq (n. 1947) dá conta no livro La Vallée des Rois – Histoire et Découverte d’une Demeure d’Éternité (1992): “Um grupo de franceses, já muito embriagados, exigiu visitar o Serapeum “Nunca sei onde devo acudir. Saio na direção contrária à que estava previsto. É a vida de inspetor” Lord Carnarvon, a sua filha, lady Evelyn Herbert, e Howard Carter, à entrada da escada que leva ao túmulo de Tutankamon, no vale dos Reis, em 1922. Ainda não sabiam exatamente o que iriam encontrar. A LB U M G E TT Y 21 após a hora de encerramento. O guarda, de acordo com as instruções recebidas, negou- -se. A confusão instalou-se,não faltando alguma pancadaria. Carter dirigiu-se ao local e tomou partido pelo seu funcionário, expul- sando os insubordinados. Porém, eles dis- punham de apoio diplomático. Houve quem interviesse junto de Maspero, que pediu a Carter que apresentasse as suas desculpas.” Tudo indica que ele se tenha negado e, embora Maspero quisesse mantê-lo a seu lado, atri- buiu-lhe uma função menor, como inspetor da zona do delta, pelo que o arqueólogo pre- feriu demitir-se. “Tenho um temperamento fogoso, e além disso possuo aquela tenacidade que as pessoas mal intencionadas descrevem às vezes como casmurrice e que os meus ini- migos, até hoje, se alegraram a assinalar como sendo um sinal de mau caráter. Pois bem, nada posso fazer a esse respeito”, escreveu. Dizia-se que ele tinha mau génio. SOBREVIVER A VENDER PINTURAS Enquanto Davis continuava a escavar no Vale dos Reis, Carter encontrava-se sem trabalho e sobrevivia a vender as suas pinturas. A sua sorte mudou quando conheceu George Edward Stanhope Molyneux Herbert (1866– –1923), quinto conde de Carnarvon, que encarnava o estereótipo do cavalheiro inglês: distinto, rico, grande colecionador, apaixo- nado por cavalos e automóveis. Depois de sofrer um grave acidente de viação, mudou- -se para o Egito à procura de um clima seco que o ajudasse a melhorar. Como se sentia aborrecido, começou a fazer escavações sem suspeitar que acabariam por se tornar a sua grande paixão. Ilustração de como terá sido o momento em que Carter viu pela primeira vez o interior do túmulo. GETTY 22 Maspero autorizou-o a escavar num pequeno terreno que tinha comprado e onde encontrou um gato mumificado que o motivou a conti- nuar. Por isso, pediu ao Serviço de Antigui- dades um arqueólogo profissional para come- çar a desenvolver um projeto mais relevante. Maspero viu ali a oportunidade de “recuperar” Carter, algo que reforçou para sempre a ami- zade criada entre ambos. AVENTURA NO VALE DOS REIS Carter e lord Carnarvon eram os parceiros per- feitos: um egiptólogo autodidata, sem qualquer ligação a museus ou universidades, e um abas- tado cavalheiro apaixonado pela egiptologia e disposto a tornar-se um mecenas de missões arqueológicas. A dupla tinha de funcionar, e assim foi. Começaram a traba- lhar juntos em 1907, enquanto Davis escavava caoticamente na necrópole sem que Maspero interviesse, por acreditar que o vale estava “esgotado”. Por fim, em 1914, o governo autónomo (o Egito era um protetorado britânico) auto- rizou Carnarvon a escavar no Vale dos Reis. Ele quis pôr logo mãos à obra, mas a eclosão da Primeira Guerra Mundial acabou com o sonho mesmo antes de ele começar: o aristo- crata regressou a Inglaterra e tentou alistar- -se, mas sem sorte, e Carter ficou no Egito a fazer pequenas escavações no Vale dos Reis, sobretudo no triângulo formado pelos túmulos de Ramsés II, Rerenptah e Ramsés VI. O seu principal objetivo era localizar o túmulo de Tutankamon, um faraó pratica- mente desconhecido mas cuja existência na zona era dada como certa, dedicando-se de corpo e alma à descoberta da sepultura do jovem rei esquecido pela história. Sondou o terreno ao longo de vários quilómetros, e um exército de operários removeu milhares de toneladas de escombros. Ao fim de cinco anos de esforços, não obteve quaisquer resultados. Carter limpa os óleos de conservação da múmia de Tutankamon, que estavam colados à máscara funerária. G E TT Y 23 Lord Carnarvon era um homem rico, mas os seus bolsos tinham limites, e pensou aban- donar o projeto. Carter, que ainda acreditava nele, convenceu-o a realizar só mais uma temporada. Era a última oportunidade e não queria perdê-la. 4 DE NOVEMBRO DE 1922 A sua intuição levou-o junto aos acessos ao túmulo de Ramsés VI e, às dez da manhã de 4 de novembro de 1922, apareceu, debaixo da entrada do mesmo, uma escada escondida a quatro metros de profundidade. Os degraus levavam a uma porta tapada e engessada, ainda com os selos intactos. “Não havia dúvi- das de que o túmulo tinha todas as caracte- rísticas próprias da XVIII Dinastia. Pertencia a um aristocrata enterrado com autorização real ou era um esconderijo real que guar- dava, por razões de segurança, a múmia e o seu mobiliário. A menos que fosse o túmulo do rei ao qual eu tinha dedicado tantos anos de busca”, escreveu Carter. Sem perder tempo, enviou um telegrama a Carnarvon: “Fizemos uma descoberta extraordinária no Vale: um túmulo luxuoso cujos selos ainda estão intactos. Voltámos a fechá-lo até à sua chegada. Felicidades.” Car- narvon chegou vinte dias depois. Desmonta- ram a porta, pedaço a pedaço, e descobriram um corredor de pedra calcária. Havia uma segunda porta, também engessada e com os selos do rei-menino. “COISAS MARAVILHOSAS” No dia 26 de novembro, teve lugar a cena mais famosa da história da arqueologia. Carter fez um pequeno orifício na segunda porta, por onde introduziu uma vela. “No início, não via nada, mas, à medida que os meus olhos se acostumavam àquela escuridão, os porme- nores foram ganhando contornos. Animais estranhos, estátuas e ouro que brilhava por toda a parte. Durante alguns segundos, que pareceram uma eternidade aos meus compa- nheiros, fiquei mudo de espanto”, recordou. Ao seu lado, estavam lord Carnarvon, a filha deste e outro egiptólogo, de nome Callender. Em baixo, primeira página do jornal que noticiou a abertura do túmulo. À esquerda, um vista da antecâmara do túmulo. G E TT Y A LA M Y Carter convenceu Carnarvon a realizar uma última temporada, e aproveitou-a bem 24 Quando lhe perguntaram o que via, respon- deu: “Coisas maravilhosas.” Naquele instante, ainda não sabia se se tratava de um túmulo ou de um esconderijo. A dúvida volatilizou- -se três dias depois, quando abriu a porta e entrou na antecâmara. Duas estátuas guarda- vam uma montanha de objetos, incluindo um trono, e havia uma terceira porta. Três anos após a descoberta do túmulo, che- gou o momento mais aguardado: o encontro com a múmia real. Foi nessa altura que Car- ter teve consciência da importância daquele achado. Quatro placas de ouro decoradas com motivos do Livro dos Mortos rodeavam um sarcófago de grandes dimensões (5,20 por 3,35 por 2,75 metros), que encerrava outros sepulcros. O quarto e último féretro, de ouro maciço e 110 quilos de peso, continha o corpo do rei, coberto com a famosa máscara com pedras incrustadas. “Foi então que nos apercebemos realmente da beleza da nossa descoberta, quando aquela peça única e maravilhosa, essa massa de ouro fabulosamente trabalhada, resplandeceu à nossa frente. A máscara tinha uma expressão triste e serena, sugerindo a juventude prema- turamente surpreendida pela morte”, diria Carter levou dez anos a extrair e catalogar todos os objetos encontrados Howard Carter demorou dez anos a catalogar tudo o que encontrou no túmulo de Tutankamon. A LA M Y 25 Homem sem estudos Carter. Segundo ele, o aspeto da múmia era ao mesmo tempo “magnífico e terrível”, e o rosto do rei “pacífico, suave, de adolescente; era nobre e de belos traços, com os lábios desenhados com linhas muito nítidas”. Ainda havia uma quarta sala repleta de mara- vilhas: o tesouro, com cofres, caixões em miniatura, joias, pérolas, arcos, flechas... Tudo o que um rei egípcio podia desejar para poder ser feliz no Além. SONHO REALIZADO A repercussão do achado foi gigantesca. Enquanto repórteres e turistas chegavam em massa para visitar o túmulo do faraó- -menino, Carter catalogava e restaurava tudo o que tinha sido tencontrado, uma tarefa colossal que apenas terminou dez anos depois. O resto da sua vida foi dedicado a fazer um relatório preliminar que apenas listava resumidamente os objetos desco- bertos, sem análise epigráfica e técnica. De acordo com muitos especialistas, o arqueó- logo não estava à altura do trabalho ao qual havia dedicado três décadas da sua vida. Ainda assim, dada a magnitudedo empreen- dimento, ninguém teria feito melhor. Fosse como fosse, Howard Carter pôde, gra- ças a Tutankamon, realizar o seu sonho: “Foi a coisa mais maravilhosa que me foi dado viver, e, a meu ver, permanecerá inigua- lável”, afirmou. Morreu em 2 de março de 1939, em Londres, convertido no arqueólogo mais famoso do mundo. L.M G E TT Y Retirada de alguns objetos do túmulo, incluindo partes de um carro. “O meu pai foi um grande pintor de animais com algu- ma fama e a minha mãe era uma pequena mas extraor- dinária mulher, que amava o luxo, o belo, a perfeição, a elegância e o bem-fazer”, escreveu Carter, que herdou as qualidades da mãe e a paixão pelo desenho do pai. Graças a elas, conseguiu prosperar e, com a ajuda da sorte, alcançar a fama, embora a sua educação tenha sido muito limitada. Esta carência, que sempre lamentou, pode explicar o seu caráter seco e a sua ten- dência para estar constante- mente à defesa. Ele próprio reconhecia o seu tempera- mento irritável e teimoso, que os inimigos apelidavam de “mau génio”. “Nunca pude ter aulas de desenho e pintura e não era esse o meu desejo”, constataria. Ainda assim, saiu-se bem como autodidata, e aos 15 anos já ganhava a vida. Num obituário. o egiptólogo Guy Brunton escreveu: “Se Car- ter tivesse podido frequentar uma boa escola, poderia ter sido realmente uma grande figura pública.” Pilar de pedra calcária com uma estátua de Amenófis IV para ser adorada no Templo de Aton, em Karnak (Museu do Cairo). Na página oposta, o mesmo rei com o ureu, numa escultura ao estilo de Amarna. A G E 26 27 A história do Antigo Egito desenro-lou-se ao longo de quatro milénios e, embora existam e se tenham escavado (e se continuem a escavar) múltiplos documentos escritos, bem como uma infindade de espaços urbanos, militares e necrópoles, na hora de reconstruir a sua história, encontramos lacunas recorrentes em diversos períodos. Isso deve-se a vários fatores: ao acaso, ao estado de conservação dos materiais e ao interesse dos egiptólogos. No que se refere ao reinado de Akhenaton, pai de Tutankamon, temos a sorte de pos- suir numerosas fontes de informação, graças aos achados extraordinários e ao indubitável interesse dos egiptólogos por este reinado excecional, que centraram os seus estudos nos principais lugares relacionados com Akhena- ton: a sua capital, Akhet-Aton, os templos e túmulos da antiga Tebas egípcia e outros locais ao longo do vale do Nilo. Quando Akhenaton nasceu, recebeu o nome de Amenófis, como o seu pai, o faraó Ame- nófis III. A sua mãe era a Grande Esposa Real Tiy. Ele era o segundo descendente masculino do rei, que provinha de uma longa dinastia de faraós que, depois de unificarem o Egito, tinham alargado as suas fronteiras por todo o Canã e a Núbia. O Egito era a primeira potência militar, económica e cultural da região. Recebia tributos de vários reinos conquistados e presentes dos vizinhos. O jovem príncipe Amenófis não estava des- tinado ao trono; o escolhido era o seu irmão mais velho, Tutmés, que entretanto morreu. O acontecimento ocorreu antes do Primeiro Festival de Heb Sed de Amenófis III, que se celebrou no seu trigésimo ano de reinado. A partir daquele ano, ou numa data posterior, o jovem príncipe Amenófis torna-se o her- deiro e, segundo alguns especialistas, corre- gente juntamente com o seu pai, se bem que haja debate entre os egiptólogos sobre se na realidade este reinado conjunto terá ou não acontecido PRIMEIROS ANOS DE REINADO O príncipe subiu ao trono como Amenófis IV e escolheu para Grande Esposa Real Nefertiti, que era filha de Ay, um alto funcionário da corte que foi adquirindo cada vez mais res- O rebelde de Amarna A G E 28 ponsabilidades até chegar a ser faraó, três décadas depois deste casamento. Durante os primeiros anos do seu reinado, Amenófis IV demonstrou a sua predileção por uma divin- dade que se foi desenvolvendo nos círculos palacianos, pelo menos desde o reinado do seu avô, Tutmés IV: Aton. Tratava-se de uma das numerosas formas do deus Rá, o deus-Sol: em concreto, o disco solar, uma das suas mais recentes representações e cujos raios termi- nam numas mãos que tocam exclusivamente no rei e na rainha, a quem concede a vida e a prosperidade. Em Karnak, o principal lugar de culto de Amon-Rá, rei dos deuses, o jovem Amenófis IV desenvolveu um ambicioso plano arquite- tónico no qual se podem apreciar as ino- vações iconográficas que foram típicas do seu reinado. Entre elas, a partir do terceiro ano, Aton passou a estar referido no cartucho real, de tal forma que ficava implícito que este deus se equiparava ao rei terreno. Por outro lado, as instituições dos deuses tradicionais ficaram economicamente subordinadas ao culto de Aton. Esta mudança, a juntar ao facto de Amon deixar de ser a principal divindade relacionada com a realeza, teve importantes consequências políticas que, com toda a probabilidade, revolucionaram a estabilidade interna do estado egípcio. PERÍODO DE AMARNA: 1349–1336 A.C. Estas e outras alterações implicaram um confronto direto com a ordem religiosa estabelecida. Nos primeiros meses do quinto ano do seu reinado, Amenófis IV deu mais um passo que afetava a figura do faraó: a mudança de nome. De Amenófis (Amenho- tep), que significava “Amon está satisfeito”, passou a chamar-se Akhenaton (“Benéfico para Aton”), eliminando desta maneira o teónimo Amon do nome real. A sua principal mulher, Nefertiti, acrescentou também ao seu nome o cartucho de Neferneferuaton (“A mais bela de Aton”). Pouco depois, Akhenaton percorreu o país para encontrar um lugar puro para a sua nova capital. Encontrou-o no Médio Egito, próximo do lugar onde estabeleceria a loca- lidade de Amarna, perto da atual cidade de Minya, e a meio caminho entre Mênfis e Tebas. Era um grande anfiteatro rochoso que ainda não tinha sido ocupado. Nos montes a leste do rio Nilo, a montanha reproduzia em cada amanhecer a elevação do Sol entre outras duas montanhas, assemelhando-se ao ideo- grama utilizado para a palavra “horizonte”. Isto tinha uma dupla leitura: por um lado, relacionava-se com o conceito egípcio de renascimento diário; por outro, vinculava a nova capital ao deus Rá e ao seu ciclo diurno. G E TT Y G E TT Y O afastamento de Amon como principal divindade, substituído por Aton, o disco solar, provocou grande instabilidade À esquerda, Akhenaton e Nefertiti com três das suas filhas (baixo-relevo amarniense de cerca de 1350 a.C.). À direita, Akhenaton em esfinge numa oferenda ao Sol como Aton (baixo-relevo amarniense, 1373 a 1357 a.C.). 29 Como não podia deixar de ser, a cidade foi chamada de Akhet-Aton (“O horizonte de Aton”). NOVA E EFÉMERA CAPITAL A nova cidade foi delimitada com 14 estelas visíveis para quem se aproximasse da capital vindo de qualquer direção. Incluía não só o anfiteatro, onde se ergueria o centro urbano e as necrópoles, como também as terras para a agricultura. No total, Akhet-Aton teria uns 160 quilómetros quadrados e nela ter-se-ão estabelecido entre 20 e 50 mil pessoas, nos seus dias de maior glória. Porém, Akhet- -Aton teve uma vida efémera, pois foi aban- donada por Tutankamon, cerca de 21 anos depois da sua fundação. A partir de então, a zona não voltou a ter grande densidade populacional, mas tornou-se um local de exceção para os arqueólogos. Amarna permite obter uma imagem clara da organização de uma capital durante a segunda metade do segundo milénio a.C. Após a delimitação do espaço, Akhenaton investiu boa parte dos recursos do estado na construção de todo um complexo urbano e funerário. No que respeita ao primeiro, a cidade carecia de um planeamento prévio; foi traçada numa franja de deserto relativamente plana, à volta de uma via já existente (o “Caminho Real”), que ligava o norte ao sul do país. Na atualidade, o sítio de Amarna divide-se em várias áreas para facilitar a sua compreensão.De norte para sul, encontram-se a Cidade Norte, o Palácio Norte, o Bairro Norte, a Cidade Central e os Bairros do Sul. A leste destas áreas, foram construídos outros centros sub- sidiários, entre os quais se destaca o povoado dos artesãos que se encarregavam da cons- trução dos túmulos reais. Este povoado, de forma quadrangular e muralhado, possuía 68 casas com dimensões idênticas, à exceção de uma, de maior tamanho, que seria ocupada pelo responsável pelos trabalhadores. Estes operários, pagos pelo estado, eram os melhores construtores e artistas de todo o Egito e foram, por certo, transferidos de um povoado seme- lhante que existia em Tebas. EDIFÍCIOS MAGNÍFICOS Para lá dos aglomerados de casas, o Caminho Real tornou-se uma avenida retilínea à volta da qual foram construídos os edifícios mais importantes de Akhet-Aton: o Grande Tem- plo de Aton, o Grande Palácio, a Casa do Rei e o Pequeno Templo de Aton. O Grande Templo de Aton deve ter sido um edifício espetacu- lar, como testemunham os seus alicerces. Infelizmente, como quase todos os edifícios construídos em pedra, este também foi des- mantelado na época de Ramsés II. Tinha uma superfície delimitada de cerca de 17 hectares, nos quais se erguiam pilones com mastros decorados, que davam acesso a uma colu- nata. À sua volta, havia centenas de altares ao ar livre, onde se realizavam as oferendas ao deus Aton. Estava propositadamente orientado segundo o eixo leste-oeste, de forma a seguir sempre o ciclo do Sol no céu. A confi- guração do templo, que ficou inacabado, era completamente inovadora e contrastava com os templos egípcios que durante milénios G E TT Y Rá, o deus Sol, foi a divindade suprema do Egito desde, pelo menos, meados do terceiro milénio a.C. Tinha muitas formas divinas: por exemplo, ao meio-dia, demonstrava todo o seu poder. 30 G E TT Y G E TT Y Apesar de ter perdido uma grande quantidade de pedra e construções inteiras, a Amarna abandonada (em cima e à direita), depois de ter sido utilizada como capital, é uma grande fonte de informação sobre a sua organização. tinham sido construídos no Egito. Enquanto os edifícios anteriores eram espaços fechados e escuros, os templos erguidos por Akhenaton procuravam que os raios solares banhassem todos os rituais. GRANDES MORADAS Lamentavelmente, do Grande Palácio também pouco sobreviveu. Estendia-se desde o Cami nho Real até às margens do Nilo e estava organizado em torno de um grande pátio rodeado por estátuas colossais do rei, hoje desaparecidas. As salas mostravam chãos pintados com cores vivas e cenas do mundo natural, bem como os principais inimigos do Egito, de tal forma que eram pisados por todos aqueles que visitavam o palácio, incluindo os embaixadores estrangeiros. Este edifício monumental estava ligado a um palacete (a Casa do Rei) através de uma ponte que atravessava o Caminho Real. Era a partir deste edifício menor que Akhenaton fazia os despachos e governava o país, em conjunto com os seus oficiais. Junto à Casa do Rei, foi construída a chamada “Mansão de Aton”, que, na realidade, era uma versão mais 31 pequena do Grande Templo. É muito pro- vável que a função deste templo fosse a de um lugar onde o faraó celebrava os rituais religiosos e as oferendas a Aton diante de um público escolhido. Uma vez que o eixo do templo estava alinhado com o túmulo real, julga-se que tenha sido desenhado como um templo funerário para o faraó. Como nova capital do Egito, Akhet-Aton transformou-se na residência oficial dos mais altos funcionários do estado, os quais construíram grandes moradas compostas por um casarão de dois pisos, jardim, cozi- nhas, capela, cavalariças, armazéns e casas mais modestas para os serviçais. Nos salões mais nobres do edifício principal, situados no piso térreo, sobreviveram restos de deco rações figurativas pintadas com muitas representações de vegetais e de animais, refle tindo a paisagem fértil do vale do Nilo. Um dos grandes artesãos do palácio, Tutmés, tinha a oficina na sua própria casa e, em 1912, foi descoberto nela um grande número de peças de gesso e bustos da família real, incluindo o famosíssimo busto policromado da rainha Nefertiti que hoje se encontra em Berlim. SEM SEPARAÇÕES POR CLASSES A cidade não estava dividida socialmente, e mesmo as casas mais ricas podiam estar rodeadas de outras muito mais modestas. As moradas estavam organizadas em quar- teirões com ruas mais ou menos largas, dispostas em paralelo ao Nilo. A partir dos diferentes achados arqueoló- gicos e das cenas que resistiram, é possível afirmar que a atual planície de Amarna era muito diferente da capital no seu pleno apo- geu. Assim, os edifícios e as casas mais nobres estavam ornamentadas com inúmeras árvores que proporcionavam a necessária sombra aos seus residentes, e tinham os seus próprios poços de abastecimento de água. No entanto, havia poços espalhados por toda a cidade, destinados à população em geral. Este gene- roso abastecimento de água não era comum nas cidades egípcias, pelo que, sem dúvida, Akhet-Aton oferecia maior bem-estar aos seus habitantes. Akhet-Aton também dispunha de uma necrópole. A zona escolhida para o descanso eterno da família real encontrava-se num wadi principal, a cerca de onze quilómetros da cidade. Foi lá que se escavou um túmulo para Akhenaton e outros membros da sua família, embora conste que apenas uma das suas filhas, Meketaton, tenha sido ali enter- rada, para além do rei. O facto de Akhenaton ter planeado ficar enterrado com outros membros da sua família no mesmo hipogeu era uma novidade, já que tanto antes como depois os faraós do Império Novo eram enter rados sozinhos, enquanto os seus fami- liares mais próximos ficavam em túmulos individuais ou coletivos. Alguns dos altos funcionários também pre- pararam o seu túmulo em Amarna, concre- tamente em duas áreas das falésias rochosas que compunham o anfiteatro que delimitava a cidade. Ambas as zonas estavam situadas a norte e a sul da entrada do wadi que conduzia à necrópole real. Atualmente, conhecem-se 25 túmulos, alguns dos quais não chegaram a ser terminados. Como nova capital do Egito, Akhet-Aton passou a ser residência de altos oficiais, que construíram nela grandes moradas B R IT IS H M U S E U M O Heb Sed Erradamente conhecido também como “Festival do Jubileu”, o Heb Sed era na realidade um festival que os antigos reis do Egito celebravam (nesta época, por volta do 30.º ano de reinado), no qual o faraó, através de rituais, morria e renas- cia magicamente para renovar os seus poderes cósmicos e a sua relação divina com os restantes deuses. 32 NOS BRAÇOS DE ATON Durante a construção da nova capital, Akhe naton mandou eliminar, em todos os monu mentos, os nomes do deus Amon e da sua mulher, a deusa Mut. Este damnatio memoriae significou, sem dúvida, a imposição da religião real sobre a tradicional. Estas ações, levadas a cabo muitas vezes por indivíduos que mal sabiam reconhecer os hieróglifos que compunham ambos os nomes, não pro vocaram confrontos violentos no país. A nova fé situava Aton como o criador uni versal sem ter uma forma humana ou animal, o que o distinguia das crenças ancestrais. Era representado como um disco solar com raios que terminavam em forma de mãos. A sua universalidade implicava o seu reconheci mento por todos os países e povos. Nesta nova ordem religiosa, o faraó desem penhava um papel primordial, já que era a única figura à qual havia que obedecer, pois era o mais amado de Aton. O faraó e a sua família nuclear (a Grande Esposa Real Nefer titi e as suas filhas) também tiveram um papel fundamental nas representações religiosas. Antes do período de Amarna, as represen tações públicas estavam centradas no faraó e nos deuses. Raramente apareciam outras personagens (as esposas principais eram as grandes exceções). Os príncipes e as princesas quase nunca eram representadosou sequer mencionados. No entanto, agora as novas temáticas artís ticas centravamse na família real, e nelas as princesas apareciam ao lado dos seus proge nitores. Desenvolviamse no âmbito privado, sempre beneficiadas pelo deus Aton. Estas novas composições têm um objetivo religioso evidente, de modo a identificar a família real com os conceitos sintetizados pelo deus Aton: criação, fertilidade, abundância e vida. Neste sentido, Akhenaton e Nefertiti encarnavam todos estes aspetos abençoados por Aton. PRIMEIRO MONOTEÍSMO? À parte o debate existente sobre se a religião de Aton foi ou não a primeira fé monoteísta, o que parece claro é que o principal benefi ciado foi o faraó, em quem se concentrava todo o poder por vontade divina. No entanto, o desenvolvimento desta fé não foi muito mais além do que as esferas relacionadas com ASC Foi neste reinado que apareceram as primeiras representações das princesas, filhas do faraó 33 o palácio. No próprio sítio de Amarna, foram encontrados numerosos vestígios que provam que a população continuava a praticar a religião tradicional, como menções, em várias capelas domésticas, a diversos deuses, incluindo o proscrito Amon e divindades mais populares como Bes ou Taweret. Durante as duas guerras mundiais, escre- veu-se muito sobre o suposto pacifismo de Akhenaton na sua política externa, mas este pensamento não podia estar mais longe da realidade. Este rei não só mandou os seus exércitos para o exterior, como comprova a campanha na Núbia durante o seu 12.º ou 13.º ano de reinado, como era habitualmente representado como um faraó triunfante. O principal problema externo que Akhenaton teve de enfrentar foi a inconstante situação que se vivia no Médio Oriente, pois o reino hitita tornou-se uma potência militar deter- minante na região. No entanto, não há dúvida de que o Egito se manteve como ator principal no panorama internacional da zona, como mostram as representações do seu festival Sed, durante o qual era homenageado por todos os territórios sob a sua alçada, bem como pelos restantes grandes reinos. FAMÍLIA REAL Graças a um grande número de represen- tações de Akhenaton e da sua família, foi possível reconstituir cronologicamente como ela foi aumentando. A Grande Esposa Real, Nefertiti, foi mãe de seis princesas: Meritaton, nascida durante o primeiro ou segundo ano de reinado; Meketaton, nascida no ano seguinte ao da sua irmã, faleceu por volta do 14.º ano de reinado; Ankesenpaaton, nascida no quarto ou quinto ano de reinado; Neferneferuaton- Tasherit, nascida no sétimo ou oitavo ano de reinado e falecida nos últimos três anos do reinado; Neferneferure, nascida entre o oitavo e o décimo ano de reinado e falecida antes do final do reinado; Setepenre, nascida entre o 10.º e o 12.º do reinado e falecida pouco depois. Assim, do 12.º ano até ao final do reinado de Akhenaton, morreram Meketaton, Nefer- neferuaton-Tasherit, Neferneferure e Seten- penre. Estas mortes podem estar relacionadas com a reduzida esperança de vida de todas as sociedades pré-industriais, mas também G E TT Y A rainha Nefertiti beija uma filha, provavelmente Meritaton, neste baixo-relevo encontrado em Amarna e datado dos anos 1352 a 1336 a.C. que o casamento tenha sido consumado e que o título não fosse meramente simbólico. No caso de Meketaton, a representação de uma menina no colo da princesa poderia ser a revelação do ka desta após a sua morte. Igualmente de difícil interpretação é o caso de Ankesenpaaton-Tasherit, filha da terceira filha. Akhenaton teve igualmente mulheres se- cundárias: entre elas, uma tal Kiya, cujo no- me pode ter sido uma forma “egipcianizada” de Tadukhepa,princesa de Mitani, que fora mulher do pai de Akhenaton, Amenófis III. Embora haja poucas referências a Kiya, sabe- com a peste que assolou boa parte do Médio Oriente naqueles anos, como mencionam várias fontes. FILHAS, MÃES, NETOS Há várias referências e representações de algumas das filhas de Akhenaton e Nefertiti, como Meritaton, Meketaton e Ankesenpaaton, que podem ter sido mães de outras tantas filhas do seu próprio pai, mas infelizmente estas informações carecem de confirmação. O que se sabe é que Meritaton chegou a ser Grande Esposa Real durante os últimos três do reinado do seu pai, mas isso não indica Apesar da sua fama de pacifista, Akhenaton foi representado como um rei vitorioso. 3434 35 mos que foi a mãe de Tutankaton (mais tarde Tutankamon), nascido no oitavo ou nono ano do reinado do pai. FINAL DO REINADO A morte da princesa Meketaton no 14.º ano do reinado de Akhenaton pode ser considerada um ponto de inflexão. Um ano mais tarde, o faraó escolheu como corregente um desco nhecido, Semenkhkare, talvez um meio irmão ou um filho de uma mulher secundária. A legitimidade ao trono, ganhoua através de Meritaton, que se tornou a sua consorte. Akhenaton morreu durante o 17.º ano do seu reinado, devido a causas desconhecidas, muito provavelmente antes dos 40 anos de idade. Foi enterrado no seu túmulo, próximo de AkhetAton, mas é possível que o seu corpo tenha sido trasladado pouco depois, talvez para Tebas. De facto, terá sido identificado com os restos encontrados no túmulo 55 do Vale dos Reis, embora isso não esteja cem por cento confirmado. A razão é que o seu túmulo original, no Vale Real de Amarna, foi atacado e o seu sarcófago destruído (hoje, pode verse reconstruído no Museu do Cairo). GRAFITO ESCLARECEDOR Em 2004, descobriuse um grafito em Deir Abu Hinnis (Médio Egito) que ajudou a reconstruir o final do reinado de Akhenaton. Nesta inscrição, o faraó encontrase ao lado de Nefertiti no 16.º ano do reinado, um dado que demonstra que a esposa principal con tinuava viva naquela época, facto que se desconhecia. O que se sabia de Nefertiti não ia muito além da morte de Meketaton, e havia várias expli cações, algumas romanceadas, sobre o destino da rainha depois da morte da princesa. Além disso, esta inscrição permitiu determinar que Semenkhkare morreu pouco antes de Akhenaton e não lhe sucedeu, de tal forma que Akhenaton escolheu um desconhecido, Ankh(et)kheperure Nefereneferuaton, para o acompanhar na direção do estado. Segundo a egiptóloga belga Athena van der Perre, Ankh(et)kheperure Nefereneferuaton não é outra pessoa senão a própria Nefertiti, que teria sucedido ao seu marido e reinado durante três anos sozinha após a morte daquele. A partir desta reconstrução, uma das cartas descobertas em Amarna faz mais sentido: uma rainha solicita ao rei hitita Suppiluliuma que lhe envie um filho para, ao seu lado, ocupar o trono do Egito. Este príncipe foi assassinado antes de chegar à corte, o que terá possivel mente mudado o destino de Nefertiti à frente do Egito. Pouco depois, Tutankaton tornar seia o rei Tutankamon. A.J.S G E TT Y Após a sua morte, Akhenaton foi praticamente apagado da história T u t a n k a m O n 36 37 Genealogia do faraó-menino Amenófis III (1390–1353 a.C) Avô de Tutankamon e pai de Akhenaton. Governou um reino imenso. Tiye Esposa principal de Amenófis III e mãe de Akhenaton. Akhenaton (1353–1336 a.C.) Também conhecido como Amenófis IV. Promoveu a deus único o disco solar e construiu uma nova capital: Amarna. Nefertiti Grande Esposa Real de Akhenaton, deu à luz seis meninas. Kiya, princesa de Mitani e esposa secundária, foi, provavelmente, a mãe de Tutankamon. Ankhesenamon Terceira filha de Akhenaton e Nefertiti, meia-irmã de Tutankamon e sua mulher. Tutankamon (1332–1323 a.C.) Também conhecido como Tutankaton. No Antigo Egito, a tradição ditava que a Grande Esposa Real, que coexistia com outras mulheres e concubinas, tinha de ser de linhagem real, pois eram as princesas nascidas das esposas principais quem fazia a transmissão da realeza faraónica. A consanguinidade era muito comum. O faraó-meninofoi o último des-cendente por linhagem sanguí-nea da poderosa XVIII Dinastia de reis do Antigo Egito, os tut- méssidas, que governaram durante o período conhecido como Império Novo. A sua coroa- ção ocorreu por volta de 1334 a.C., altura em que adotou o nome de reinado de Nebkhepe- rure. Dado que subiu ao trono quando contava cerca de oito anos e viveu apenas até aos 19, o seu reinado foi breve. Reconstruir a sua existência continua a ser um desafio para os historiadores, a começar logo desde o seu nascimento. Tutankamon veio ao mundo entre o nono e o 12.º ano de reinado de Akhenaton. Era descendente de uma segunda esposa real, não da famosa rainha Nefertiti, com a qual, segundo parece, Akhenaton só teve filhas, o que explica o motivo pelo qual Tutankamon não aparece representado juntamente com o resto da família real em numerosas cenas em que os monarcas surgem ao lado das princesas. Na verdade, há várias teorias sobre a identi- dade dos progenitores de Tutankamon, ainda que todas defendam que ele tinha sangue real. Durante décadas, a mais plausível argumen- tava que ele era filho de Akhenaton e de Kiya, provavelmente a princesa mitânia Taduhepa, que se tornara esposa secundária do faraó e, provavelmente, morreu durante o parto. Por outro lado, um estudo forense que di- vulgou os seus resultados em 2010 encon- trou grandes coincidências genéticas entre Tutankamon e a múmia daquela que é conhe cida como “jovem senhora” e que, diz-se, terá sido sepultada juntamente com Akhenaton, embora não esteja comprovado. Consta que Akhenaton e a não identificada “jovem senhora” eram irmãos, ambos filhos de Amenófis III e da rainha Tiyi. Embora nenhuma das hipóteses seja con- siderada definitiva (ainda está muito por demonstrar), pelo menos ambas explicam os elevados níveis de consanguinidade entre os pais de Tutankamon e que estarão por detrás da frágil saúde do jovem monarca. INFÂNCIA POUCO SAUDÁVEL Ao nascer, chamava-se Tutankaton, “imagem viva de Aton”, nome com o qual o seu pai honrou o disco solar durante o seu reinado. Desde pequeno que as suas deformações físicas eram facilmente visíveis. Diz-se que tinha lábio leporino e fenda palatina e que padecia de síndrome de Köhler no osso escafoide do pé e de uma debilid de palpável na restante estrutura óssea, que o fez sofrer durante toda a sua existência. De facto, parece que as ben- galas como as que foram encontradas no seu túmulo foram companheiras contínuas ao longo da sua curta vida. O menino terá sido criado no berçário real, como as suas seis meias-irmãs e o seu meio- -irmão mais velho e herdeiro do trono, Semenkhkare. Alguns investigadores argu- mentam que Semenkhkare governou ao lado do pai durante os seus dois últimos anos de mandato, enquanto outros defendem que sobreviveu a Akhenaton e reinou sozinho durante um biénio. Seja como for, pode con- firmar-se que, em princípio, Tutankamon nunca esperou reinar e nos seus primeiros anos de vida recebeu formação cortesã para ser príncipe. Depois da sua passagem pelo berçário real, o jovem continuaria a sua for- mação no Kap, a escola da corte, com outros membros da família real, da nobreza e dos Quem foi Tutankamon? S H U TT E R S TO C K 38 Estátua de pedra de Tutankamon, no estilo monumental típico do Egito. 39 príncipes convidados de outros territórios sob a influência egípcia, incluindo os her- deiros da oligarquia núbia. Podemos imaginar o nosso príncipe a apren- der a ler aos quatro anos, reconhecendo e pronunciando os muitos hieróglifos egípcios que faziam parte de um idioma formado ao longo de várias centenas de anos. Dominada a gramática, também teve de assistir a lições de aritmética e aprendeu a prática da retórica necessária para o exercício político, e até mesmo a reconhecer os caracteres asiáticos de civilizações com as quais o Egito manti nha relações comerciais e políticas. Além disso, ainda em menino, descobriu a escrita sobre o caro e exclusivo papiro usado na docu- mentação oficial, bem como em óstracos, quadros de pedra calcária ou terracota, mais baratos e acessíveis e utilizados na escrita convencional. EDUCAÇÃO DE ELITE Esta preparação completava-se com exer- cícios físicos, com momentos dedicados à natação e à luta corpo-a-corpo. Como nos mostram os relevos e as pinturas de cenas de caça, o aluno também se exercitava no tiro com arco, uma prática muito apreciada pelos reis da XVIII Dinastia. Não sabemos se a saúde frágil de Tutankamon lhe permitiu realizar por completo todas estas atividades, mas de alguma forma deve ter participado em práticas deste tipo. Algumas vezes mon- taria a cavalo sobre os exemplares oferecidos aos seus pais por soberanos asiáticos, embora este fosse um costume pouco comum entre O príncipe foi criado como tal, mas não estava destinado ao trono, que cabia por direito ao seu meio-irmão mais velho Ruínas do pórtico do templo de Hermópolis, atual Ashmunein (gravura de 1817). 40 os egípcios, mais habituados ao uso do carro. O seu destino tranquilo como membro do família real, sem a responsabilidade política agregada ao líder de toda a sociedade egípcia, mudou com a morte do seu meio-irmão. Foi então que Tutankamon se tornou herdeiro e soberano do país, colocando sobre a sua cabeça as coroas do Alto e do Baixo Egito. A partir desse momento, provavelmente mani pulado por interesses cortesãos mediados pelos sacerdotes de Amon, que viram nele uma oportunidade para recuperarem o seu poder, protagonizou a primeira reversão do período extraordinário amarniense e o regresso à ordem secular egípcia. MUDANÇA ESTRATÉGICA Para promover a sua legitimidade ao trono, o ainda Tutank aton tinha casado com a sua meia-irmã Ankhesepaaton, filha de Akhena- ton e de Nefertiti, o que contribuiu para que aquele enlace tivesse uma completa ascen- dência real. Além disso, no segundo ano do Busto da rainha Nefertiti, conservado no Museu Egípcio de Berlim, que tem sido a fonte da sua lendária beleza. S H U TT E R S TO C K S H U TT E R S TO C K 41 seu reinado, os reis mudaram os seus nomes de nascimento. Assim, Tutankaton tornou-se Tutank amon, “imagem viva de Amon”, e a sua mulher passou a chamar-se Ankhe- senamon. Isto pode parecer meramente simbó lico, mas, para os egípcios, o rei era a reencarnação do deus Hórus, filho de Ísis e de Osíris, pelo que qualquer mudança de nomenclatura implicava também uma modi- ficação das crenças de todo o país. Com esta estratégia, a administração de Tutankamon estava simplesmente a reativar o culto milenar egípcio para se apoiar na tradição. No seu governo, Tutankamon foi acompa- nhado pelo antigo servidor da corte amar- niense, Ay, seu sucessor no trono. Ao seu lado, esteve também o general Horem heb (é possível que seja o oficial mencionado no reinado de Akhenaton chamado Remheb) que reinou depois de Ay, terminando assim a XVIII Dinastia e dando lugar à XIX Dinastia, a dos raméssidas. Horemheb tinha iniciado a sua carreira durante o novo reinado e foi o porta-voz do rei em matéria de política externa, com des- tacadas ações na Núbia e na Palestina. Por seu lado, Ay é referido em algumas inscrições do reinado de Akhenaton como “o pai divino”, marido da ama-de-leite de Nefertiti, embora algumas interpretações considerem que ele era o pai da rainha. Isto explicaria a sua posição como intendente do cavalo real, tenente- -general do carro do faraó e seu escriba pessoal, além de detentor do privilégio de abaná-lo com o leque. Com todos estes cargos, que lhe permitiram ter a máxima proximi- dade à realeza, nos primeiros anos do novo reinado gozou de grande influência política, Pormenor de um batalha contra núbios, pintada no túmulo de Tutankamon, por volta de 350 a.C. Os carros egípcios foram projetados para serem uma força de ataque rápido, com uma estrutura de madeira muito leve e partes de lona ou couro. No lado esquerdo, veem-se osinimigos núbios mortos em combate, espezinhados pelo carro do faraó. Ao centro, Tutankamon lança flechas sobre os inimigos. No lado direito, estão representados a comitiva e os guerreiros que acompanhavam o faraó. 42 através da qual liderou as mudanças que restituíram a primazia do culto a Amon e tiraram o faraó de Amarna. REINADO CURTO E MENOR A espetacular descoberta do túmulo de Tutankamon tornou-o um ícone do mundo egípcio, mas o seu reinado foi certamente de pouca importância comparado com os grandes reis da XVIII Dinastia. Entre outras questões, apesar das tentativas da adminis- tração de Tutankamon para acabar com as práticas corruptas do período anterior, a sua morte precoce tornaria quase impossível completar a tarefa, de modo que a venali- dade e a arbitrariedade do serviço público e do sacerdócio egípcio só seriam seriamente extirpadas no governo de Horemheb. Ainda assim, há que assinalar conquistas impor- tantes, como o fim do isolamento provocado pelo regresso da chancelaria real à inter- venção ativa na política externa, descuidada durante o reinado de Akhenaton ao ponto de se perder toda a influência alcançada nos tempos de Amenófis III. Para romper com o período anterior, Tutankamon abandonou Amarna (Akhet- -Aton, “o Horizonte do Disco Solar”), fundada Tutankamon foi acompanhado pelo servidor da corte amarniense Ay, seu sucessor no trono, e pelo general Horemheb, que reinou depois de Ay, encerrando a XVIII Dinastia e dando lugar à XIX, a dos raméssidas 43 44 A G E Parte do conjunto monumental do Templo de Amon-Rá em Luxor. A G E 44 por Akhenaton. Após a morte deste, o ainda Tutank aton viveu durante algum tempo no bairro norte de Amarna, mas trocou a capital do seu pai por Mênfis e pelo palácio de Malkata, transformado em residência temporária durante as suas estadas em Tebas. Além disso, para tornar o regresso ao estado anterior mais forte, ordenou que lhe cons- truíssem um túmulo perto do do seu avô, Amenófis III. TEMPO DE RECONSTRUIR Face ao período de destruição que implicou o devaneio amarniense do seu pai, o tempo de Tutankamon foi de tentativa de reconstrução. As intervenções arquitetónicas levadas a cabo em seu nome são em maior número do que se tinha pensado até agora, já que, depois do seu breve reinado, os seus sucessores usurparam muitas das suas iniciativas, des- virtuando a sua memória. Como restaurou o culto de vários deuses egípcios, privilegiando Amon, as esculturas representavam um faraó de regresso ao Templo de Karnak, santuário tebano de Amon. Por exemplo, Tutankamon ao lado daquele deus e da sua mulher, a deusa Mut. Há outros exemplos, como o de uma estátua colossal de Amon esculpida em Karnak com o rosto do nosso protagonista. Assim, com ele não só terminou o período monoteísta do reinado de Akhenaton como criou o seu próprio, com traços estilísticos de arte figurativa oficial. Se no reinado do seu pai a aposta recaiu em formas curvas e sensuais inéditas na representação de figuras humanas, com um grande número de cenas familiares da monarquia surpreendentemente íntimas, nas quais as personagens apresen- tavam deformações físicas curiosas (alonga- mento do crânio ou grandes abdómenes), no reinado de Tutankamon regressa-se a uma representação rígida do poder hierático. São dadas poucas concessões ao naturalismo e ao retrato, e os faraós são representados como seres que não pertencem a este mundo. Além disso, a conclusão da Colunata Pro- cessional de Amenófis III, em Luxor, com a inclusão da sua efígie na porta da parede norte, é igualmente uma declaração explícita da vontade de se sobrepor ao reinado do pai e de retomar a imagem dinástica do avô através das artes plásticas. A descendência que não chegou Tutankamon e Ankhese- namon não tiveram filhos. Assim, extinguiu-se com eles a linhagem sanguínea da dinastia iniciada com o rei Amósis I. O casal real ainda esperou um herdeiro (na realidade, seriam duas gé- meas), mas Ankhesenamon sofreu um aborto espontâ- neo que deitou por terra os seus desejos. Esta teoria apoia-se no achado de fetos mumificados junto dos restos mortais do faraó que corres- pondiam a duas meninas (a diferença de tamanho não impediu que os egiptólogos os considerassem fruto de uma gravidez única). Atual- mente, está a ser procurado o túmulo de Ankhesenamon no Vale dos Reis, perto do de Ay, com quem Ankhesena- mon casou após a morte de Tutankamon. A sua possível descoberta foi anunciada pelo egiptólogo Zahi Hawass em 2018, depois de detetar, numa escavação, restos de cerâmicas, alimentos e ferramentas compatíveis com a proximidade de um enterro real. Com a ajuda de radares, a expedição encontrou uma anomalia no subsolo que pode corresponder à entrada da sepultura. A G E Tutankamon sentado com a mulher, Ankhesenamon, num suporte de madeira dourada da antecâmara do seu túmulo. Sabemos que sofreu de inúmeras enfermidades, pelo que deverá ter usado bengalas desde muito cedo 45 O MISTÉRIO DA SUA MORTE De qualquer forma, embora na Estela de Res- tauração de Cultos se descreva o estado mise- rável em que o país se encontrava devido aos erros de Akhenaton, é importante destacar que Tutankamon respeitou a memória do pai, que só mais tarde foi considerado um inimigo do país. Podemos afirmá-lo porque a múmia de Akhenaton só foi ultrajada algumas décadas após a sua morte, momento em que a sua memória começou oficialmente a ser denegrida. Na verdade, a transição política de pai para filho foi pacífica, até porque ambos os reinados foram considerados, no seu tempo, como parte da revolução amarniense, tal como o de Ay, sucessor de Tutankamon. Pode, pois, concluir-se que a mudança foi mais gradual do que inicialmente se pensava. A LA M Y Uma dinastia a querer transcender-se Quando Tutankamon morreu, a rainha Ankhe- senamon fez uma tentativa desesperada de impedir o fim da sua linhagem. Com esse obje- tivo, endereçou uma carta ao rei dos hititas, Suppiluliuma, a solicitar o envio de um dos seus filhos para o Egito de modo a casar com ele e torná-lo faraó. Nela, a rainha confessava, inclusivamente, o horror que sentia face à ideia de poder vir a unir-se a um servidor da corte para evitar a perda de poder. Suppiluliuma demorou a convencer-se da veracidade desta oferta e só enviou o seu filho Zennanza depois de receber a confirmação de um embaixador que tinha passado pela corte tebana. No en- tanto, todos os seus receios estavam certos, porque o príncipe foi assassinado durante a viagem, outra morte que se junta às acu- sações por assassínio formuladas contra Ay. Alguns investigadores apontam, contudo, que a responsável por esta proposta ao rei hitita tenha sido Nefertiti, para, à morte de Akhena- ton, ter hipótese de reinar. Daqui surgiu a ideia de que Semenkhkare nunca existiu e que, na verdade, foi o nome que Nefertiti adotou para, travestida de homem, aceder ao trono após a morte do marido. A colunata do Templo de Karnak é um dos monumentos que mais informação oferecem sobre a época. Escultura de pedra, provavelmente hitita, do rei Suppiluliuma, com mais de 3000 anos de antiguidade. 46 A morte repentina de Tutankamon deu lugar a várias suposições sobre as possíveis causas. Alguns investigadores apostaram num assassínio, uma vez que a múmia apresentava um buraco no crânio, tendo sido interpretado como o resultado de um golpe com um objeto contundente. Nos últimos anos, tam- bém tem ganhado força a suspeita de um acidente de carro, que pode ter sido provocado ou não. O certo é que a rapidez com que o seu túmulo foi arranjado indica que não era uma morte esperada, talvez determinada por algum usurpador de poder. Além disso, as pinturas da sua sepultura, que parece ter sido um reaproveitamento de outra, foram reali- zadas à pressa e os objetos não eram os mais adequados ao enterro deum rei. A pergunta que continua no ar é se não terá sido Ay o causador da sua morte, a fim de aceder à coroa e ao poder absoluto do Egito, se foi um acidente de caça ou outro ou se, pelo contrário, o jovem faraó Tutankamon morreu em resultado das suas inúmeras doenças. S.R.R. A G E A colunata de Luxor mostra a vontade de Tutankamon de colocar um ponto final na deriva religiosa do pai 47 G E TT Y 48 Os reis egípcios não tinham um, mas cinco nomes, que os definiam como o único soberano do país do Nilo e confirmavam a sua dupla natureza entre a humana e a divina. Entre os mais importantes, vale a pena destacar o nome de coroação (prenomen) e o nome de nascimento (nomen). Ambos são facilmente distinguíveis porque eram escritos dentro do cartucho, termo dado ao círculo protetor que emoldurava os nomes reais, pela sua seme- lhança com as munições usadas pelos solda- dos franceses durante as campanhas militares de Napoleão no final do século XVIII. O nomen era o que recebia especial atenção da parte dos reis egípcios e aquele que estava intimamente relacionado com as mudanças e a situação política do país. O paradigma deste facto está em Tutankamon, que teria inicialmente nascido com outro nome. Tanto ele como a sua irmã Ankhesenamon receberam um “nome de nascimento” que homenageava claramente Aton, um aspeto menor do deus Rá transformado em divin- dade única quando o seu antecessor, o rei Akhenaton (Amenófis IV), decidiu instau- rar a sua ideia de religião monoteísta no Egito. REGRESSO À ORDEM TRADICIONAL Assim, o nome de ambos era na verdade Tutankaton e Ankhesenpaaton. Uma vez restabelecida a ordem, foi aplicada uma damnatio memoriae que também envolvia a transferência da residência e da necrópole real para Tebas, antiga capital do país, a recuperação dos cânones artísticos tradi- cionais e o regresso a uma religião politeísta, a qual privilegiava o deus Amon, divindade que, aos poucos, tinha alcançado um lugar relevante no panteão egípcio. Este claro desejo de rutura com o estado anterior, que se tinha totalmente oposto à ideia cosmogónica tradicional do Egito, foi materializado pelo próprio rei através de uma mudança de nome: agora honrava Amon, e o Egito seguia, mais uma vez, a ordem natural das coisas. M.L.G.G.T A importância de um nome “Oh, seja outro nome! o que há num nome? Aquilo a que chamamos rosa com qualquer outro nome teria o mesmo doce aroma.” William Shakespeare (“Romeu e Julieta”) 49 A G E Após a restauração da ordem Após a restauração da ordem Nome de nascimento original Nome de nascimento original = Tutankaton “A viva imagem de Aton” =Tutankamon “A viva imagem de Amon, governador de Tebas” =Ankhesenamon “Ela vive para Amon” = Ankhesenpaaton “Ela vive para Aton” 50 Tutankamon Ankhesenamon 51 Otúmulo de Tutankamon continha um dote funerário composto por 5398 objetos, entre os quais vários pertences pessoais e íntimos, que nos dão uma imagem mais humana e próxima do faraó.Foram encontrados cerca de 40 baús de madeira que continham joias, roupas e outros utensílios pessoais. A coleção de tecidos, ainda muito pouco estudada, é considerada a mais importante da arqueologia egípcia. Entre as diferentes peças, estão as cuecas do faraó, a primeira roupa interior historicamente documentada. É uma espécie de fralda de linho, de forma triangular, que se colocava por baixo da túnica. Há também mais de 40 pares de sandálias, de vários tamanhos. Algumas foram claramente usadas pelo monarca, devido às marcas de desgaste que apresentam; outras são novas, para estrear no Além. Algumas das sandálias eram feitas com papiro e junco, enquanto outras eram de couro e lâminas de ouro, bor- dadas com contas. Entre todas, destacam-se as sandálias em que, na base, podemos ver representados os seus inimigos, núbios de pele escura e asiáticos de barba pontiaguda, amarrados, simbolizando os adversários do rei, esmagados a cada passo sob os seus pés e a sua força divina. PROBLEMAS DE SAÚDE Dos estudos clínicos que foram sendo realizados ao longo do tempo à múmia do jovem faraó, sabemos que, entre os vários problemas de saúde que o seu corpo de 19 anos apresentava, estava um pé de equino- varo, ou pé torto (o esquerdo). Trata-se de uma deformação congénita que lhe deverá ter causado grandes dificuldades em andar ou manter-se de pé, pelo que necessitava de calçado adaptado e de bengalas, das quais foram encontradas 130 exemplares de vários tamanhos e materiais. Entre as diferentes sandálias, Carter também encontrou algumas que apresentavam uma estrutura curiosa que garantia melhor aderência do pé esquerdo quando pousado no chão. Tutankamon terá tido, sem dúvida, o que podemos considerar o primeiro sapato ortopédico da história. Todos estes objetos pessoais do monarca revelam uma imagem invulgar: a de uma criança frágil, incapacitada, com sapatos adaptados e que precisava de bengalas para poder manter-se de pé, o que deve ter sido muito difícil para um dos faraós mais conhe- cidos da história do Egito. V.B.T Objetos pessoais 52 As peças dão muita informação sobre a vida de Tutankamon No túmulo, havia mais de 40 pares de sandálias, todas muito ornamentadas, em cuja base se podem observar representações dos seus inimigos. Algumas estavam adaptadas ao seu problema dos pés. O cabo de uma das bengalas do faraó que o ajudavam a manter-se de pé representa dois dos seus escravos ou prisioneiros. Este frasco cosmético continha uma mistura de gorduras vegetais e animais. O leão representa Tutankamon por cima dos seus inimigos tradicionais, da Núbia e da Ásia. O trono real de Tutankamon é feito de madeira, folha de ouro, prata, gemas de vidro e pedras preciosas. A sua elaboração é de uma complexidade extraordinária. G E TT Y G E TT Y A G E G E TT Y 53 Após sete anos a escavar no Vale dos Reis, a longa e até então infrutífera expedição de Howard Carter estava prestes a fazer perder a paciência ao seu mecenas, lord Carnarvon. Porém, o milagre aconteceu, e aquela associação de talento e dinheiro que começara em 1908 deu frutos em 4 de novembro de 1922, quando o arqueólogo inglês descobriu o túmulo de Tutankamon, o mausoléu faraónico mais bem preservado e intacto jamais encontrado. O achado viria a desencadear a febre da egip- tologia no início do século XX e fez correr rios de tinta. Por essas águas da imprensa, navegou também a notícia sensacionalista de que o túmulo carregava uma terrível maldição que se abateria sobre quem ousasse profaná-lo. Sobre o achado, Carter ficou com todas as honras, mas a verdade é que o túmulo foi des- coberto por um rapaz de dez anos, chamado Hussein. Aguadeiro oficial da missão, foi ele que, naquele dia, ao escavar com as mãos a areia para acomodar os seus potes de barro, encontrou acidentalmente o primeiro degrau de uma escada esculpida na pedra, quatro metros abaixo da entrada do túmulo de Ram sés VI. Quando isto aconteceu, o teimoso e solitário Carter tinha 47 anos e andava há 30 à procura de algo assim nas areias do Egito, mas sem sucesso. Retirada a areia da escada, esta conduzia a uma porta decorada e trancada. Carter introduziu uma lanterna elétrica por um pequeno buraco e avistou uma passagem. “Precisei de auto- controlo para evitar derrubar a porta”, disse. Carter ordenou que o achado fosse coberto e guardado, enquanto atravessava o Nilo para enviar um telegrama a Carnarvon, que chegou à cidade no final daquele mês. Em 16 de feve- reiro de 1923, a câmara funerária foi aberta, na presença do próprio Carter, de Carnarvon, de Arthur Callender, amigo de Carter e antigo funcionário egípcio, de lady Evelyn Herbert, filha de Carnarvon, do químico Alfred Lucas e do fotógrafo Harry Burton. As portas exteriores das câmaras tinham sido abertas e saqueadas duas vezes na Antiguidade, mas as da terceira, coberta de ouro, que continha o sarcófago
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