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A volta ao primeiro amor como r - Alexandre Miglioranza (1)

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A volta ao primeiro amor como
resistência ao mundo
Alexandre Miglioranza
Brasília
Editora 371
2018
© Alexandre Miglioranza, 2018
Edição: João Guilherme
Revisão de texto: Adalberto Nunes
Diagramação e capa: Le Magicien
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
M634v
Miglioranza, Alexandre
A volta ao primeiro amor como resistência ao mundo / Alexandre
Miglioranza. — Brasília: Editora 371, 2018.
40 p. ; 23x16 cm.
Inclui bibliografias
ISBN: 978-85-52900-11-5
1.Bíblia – Apocalipse. 2.Teologia bíblica. 3. Espiritualidade
I.Título. 
CDU 27-249 
Índice para Catálogo Sistemático:
1. Cristandade: Bíblia: Apocalipse 27-249 
Bibliotecário responsável:
Jônathas Rafael Camacho Teixeira dos Santos (CRB-1/2951)
Nenhum trecho desta obra poderá ser reproduzido ou transmitido por
quaisquer meios existentes sem autorização prévia, por escrito, da editora.
Todos os direitos reservados e protegidos conforme Lei 9.610/98. 
 Sumário
Introdução
Os fundamentos do primeiro amor
O primeiro amor em risco
A comunidade cristã como centro de resistência aos valores do mundo
A prática do amor como resistência ao mundo
Conclusão: a resistência ao mundo e a glória de Deus
Notas
Bibliografia
Bibotalk
Editora 371
Introdução
Crer em Cristo é permanecer em seus ensinos. Permanecer nos ensinos de
Cristo é resistir à forma de agir e de pensar do mundo. Essa resistência não se
trata, portanto, de uma ação reativa, mas uma atitude intencional de não ser
como o mundo é. Isto é, além de seguir os ensinos de Cristo a qualquer custo,
o cristão decide conscientemente não seguir o modelo de vida proposto pelo
sistema de valores do mundo.
A resistência da igreja ao sistema de valores do mundo acaba quando ela
perde de vista a esperança do retorno de Jesus. Quando já não existe mais a
certeza desse retorno, a igreja tem a tendência de agir por conta própria,
considerando apenas seus próprios meios. Essa tendência é mostrada no livro
de Apocalipse quando cada uma das igrejas da Ásia Menor é advertida contra
a descrença no retorno de Jesus.
Neste ponto, chegamos ao problema proposto neste breve ensaio. No capítulo
2 de Apocalipse, conforme revelado a João, Jesus censura a igreja de Éfeso,
pois ela havia abandonado o seu primeiro amor. De fato, Jesus repreende
cada uma dessas igrejas para que elas respondam com obediência ativa e as
adverte das terríveis consequências se elas falharem no propósito de
permanecer em seus ensinos1. Esta repreensão adquire um ar muito mais
severo quando observamos, no texto original, que o verbo “abandonar”
significa deixar algo ir embora propositadamente. Isto quer dizer que, num
determinado momento, todas essas igrejas quiseram deixar os ensinos de
Jesus para seguirem seus próprios caminhos.
Por isso, o chamado ao arrependimento. Na verdade, Jesus chama essas
igrejas a uma mudança de mentalidade2. Como os judeus possuíam uma
visão concreta do mundo, a questão de mudar a mentalidade não fica restrita
apenas ao campo das ideias, mas envolve também as ações. Daí a
continuação do seu apelo: “pratique as obras que você praticava no início”. E
ele para por aí. João assume que a igreja de Éfeso sabia do que se tratavam
“as obras que você praticava no início”.
Portanto, apresentamos agora o percurso que realizaremos ao longo deste
texto. Num primeiro momento, veremos quais são os fundamentos do
primeiro amor. O que foi que Jesus ensinou sobre o amor vivido no dia a dia?
Em seguida, analisaremos como foi que o primeiro amor, não somente da
igreja de Éfeso, mas de todas as igrejas da Ásia Menor, foi abandonado. Em
seguida, estudaremos alguns aspectos teológicos da igreja como um centro de
ações de amor, para depois observarmos algumas práticas de amor
propriamente ditas.
Finalmente, como essas práticas de amor da igreja se tornam ações de
resistência ao modo de pensar e de agir do mundo, ao mesmo tempo que
encorajam a certeza do retorno de Jesus e a glorificação do seu nome.
Os fundamentos do primeiro amor
A compreensão sobre a volta da igreja ao primeiro amor passa primeiro pelo
entendimento sobre a tarefa dela na terra. A tarefa da igreja, porém, está
intimamente ligada à mensagem de Jesus. Essa mensagem diz respeito à
inauguração do Reino de Deus, isto é, o domínio de Deus3 sobre o mundo e
sobre toda a criação. Desta forma, a igreja é formada por pessoas que
entenderam a mensagem de Jesus, que se comprometem e se dedicam a ele e
à sua mensagem. Assim, a união dessas pessoas forma a igreja4. Isso quer
dizer que elas compreendem a ação e o domínio de Deus. Elas vivem sob a
autoridade de Deus, pois já vivem a realidade do seu Reino. Por isso, a igreja
composta por essas pessoas testemunha5 o domínio de Deus, isto é, o Reino
de Deus. De fato, a mensagem de Jesus sobre o Reino de Deus proclama o
perdão divino e a vida de comunhão dos cidadãos que pertencem a esse
Reino. A tarefa da igreja, assim, é proclamar o perdão de Deus e viver a
comunhão do seu Reino.
Este testemunho, entretanto, deve ser realizado de uma certa maneira. Para
que entendamos a forma e o conteúdo deste testemunho, devemos analisar o
discurso fundante de Jesus sobre o Reino de Deus conhecido como o
“Sermão da Montanha6”. A primeira coisa que devemos compreender é que
Jesus proclamou esta mensagem aos seus discípulos (Mt 5.1-2). Por isso,
num primeiro momento, seu conteúdo é dirigido apenas àqueles que já estão
comprometidos, mesmo que de uma maneira ainda incipiente, com a
mensagem de Jesus. O Sermão da Montanha, portanto, trata-se de um manual
para aqueles que já fazem parte do Reino de Deus. O conteúdo da mensagem
de Jesus, e por conseguinte o da igreja igualmente, não é o Sermão da
Montanha em si mesmo. O Sermão da Montanha é a maneira pela qual a
igreja mostra e testemunha do perdão de Deus à humanidade. Este
testemunho é realizado por meio da ação do Espírito Santo. Se a igreja,
entretanto, tomar o conteúdo do Sermão da Montanha como o conteúdo da
mensagem de Jesus sobre o Reino de Deus, ela pregará, na verdade, uma
espécie de moralismo. Aqueles que ainda não estão comprometidos com o
Reino de Deus terão sérias dificuldades em viver dessa forma, pois não
contam com a ação do Espírito Santo. Sem o poder do Espírito Santo, as
ações propostas no Sermão da Montanha serão vazias de propósito. O
resultado seria uma ação artificial para tentar melhorar a ética numa
determinada sociedade sem, contudo, mostrar o perdão de Deus e a
comunhão do seu Reino. A artificialidade dessas ações decorre de uma
tentativa de transformar o trabalho do Espírito Santo em força de lei. O
Sermão da Montanha, consequentemente, não é um tipo de lei civil para a
sociedade hoje.
Para proclamar a mensagem de Jesus sobre o Reino de Deus, o seu perdão e a
sua comunhão, as pessoas que formam a igreja devem passar por uma
transformação de caráter. Essa transformação é descrita em Mateus 5.3-12.
As bem-aventuranças, como este trecho é popularmente conhecido, descreve
a maneira de pensar e de agir daquele que já faz parte do Reino de Deus. As
bem-aventuranças não descrevem as qualidades de um bom cidadão do Reino
de Deus; na verdade, elas atestam a transformação daqueles que já fazem
parte deste Reino de perdão e de comunhão. Assim, o cidadão desse Reino
mostra o seu pertencimento ao Reino de Deus exteriorizando as
características que Jesus descreve nesse trecho. O Reino de Deus, desta
forma, torna-se uma realidade, pois o seu cidadão aplica desde agora o seu
padrão de vida. As bem-aventuranças são, por isso, uma manifestação
esperada daqueles que já participam do Reino de Deus. Esta manifestação do
caráter transformado vai além de uma moralidade artificial ou de um
comportamento político, pois se trata do testemunho do perdão e da
comunhão do Reino de Deus. Dizemos que se trata de uma moralidade
artificial, pois, antes mesmo de qualquer manifestação externa do Reino de
Deus, o seu cidadão passa por uma transformação interna. Isto é, o
testemunho do Reino de Deus é inútil se o seu proclamador não passou pela
transformaçãodo seu caráter.
Essa transformação começa com uma conscientização: “bem-aventurados os
pobres de espírito” (Mt 5.3). A conscientização da pobreza espiritual está
diretamente ligada ao fato de que os que pertencem ao Reino de Deus estão
perto de Jesus, conforme os versos 1 e 2 de Mateus 5. A proximidade com
Jesus faz com que constatemos sua perfeição e sua santidade, bem como
nossa enorme distância deste padrão. Em seguida, pela ação do Espírito
Santo, somos levados à conscientização de nossa miséria espiritual, cujo
resultado está expresso no verso 4: “bem-aventurados os que choram”. A
tomada de consciência é um processo doloroso, e a transformação do caráter
do cidadão do Reino de Deus passa pela tensão da dor experimentada quando
se está diante de Jesus. Aqueles que não estão diante de Jesus não passam
pela tensão de constatar a sua ruptura no relacionamento com Deus. Pois
quem não pertence ao Reino de Deus não se torna consciente de sua pobreza
e também não pode chorar sua miséria espiritual e sua separação de Deus. A
tensão e a dor de chorar a própria miséria espiritual nos tornam humildes (Mt
5.5), pois reconhecemos a nossa fraqueza e passamos o controle da nossa
vida para Deus. Assim, quando reconhecemos as nossas fraquezas,
procuraremos nos fortalecer, mas dessa vez não mais em nós mesmos. Esta
busca pelo fortalecimento espiritual nos dará fome e sede de justiça (Mt 5.6).
Contudo, fome e sede nos remetem à ideia das necessidades mais básicas do
ser humano, enquanto justiça, neste contexto, nos remete à vida de retidão,
cuja fonte é a Palavra de Deus, da qual estávamos separados. Por isso, após a
conscientização da nossa pobreza espiritual, recorreremos à Palavra de Deus
para nos fortalecer e sermos satisfeitos. A Palavra de Deus, contudo, nos
mostrará que a vontade de Deus, necessariamente, choca-se com a vontade do
ser humano. Dito de outra forma, a retidão de vida, como resultado da fome e
sede de justiça, manifesta-se no afastamento do pecado e na reconciliação
com Deus. Este processo, por consequência, é repleto de tensões que
influenciam na vivência do testemunho do Reino de Deus7.
Em razão das tensões entre a vontade de Deus e a nossa, contamos com a
misericórdia de Deus, pois Ele conhece nossas fraquezas, que foram
confessadas, a propósito, no começo das bem-aventuranças.
Consequentemente, somos conscientes das nossas fraquezas, mas também da
compaixão de Deus. Logo, a consciência da compaixão de Deus por nós nos
leva a mudar o nosso olhar para o próximo. Da mesma forma que Deus nos
mostra a sua misericórdia, devemos agir do mesmo modo com o próximo (Mt
5.7). Notamos que o Sermão da Montanha muda de direção a partir daqui.
Até o versículo 6, Jesus utiliza um olhar interno, voltado ao nosso próprio
coração; agora ele se serve de um olhar externo, em direção ao coração do
próximo. E a primeira atitude tomada em relação ao próximo, após a
conscientização do nosso estado interior, é a misericórdia. Nós oferecemos
misericórdia, porque compreendemos a nossa própria miséria bem como a
misericórdia que Deus nos concedeu. Quando compreendemos a razão pela
qual Deus nos concedeu sua misericórdia é porque nosso coração foi
purificado da nossa própria justiça, da nossa fraqueza e da nossa miséria (Mt
5.8). Este é o resultado da consciência de que, em nós, não há nenhum
mérito, mas é o resultado da ação do Espírito Santo na vida do cidadão do
Reino de Deus. Em seguida, com o coração destituído de sua própria justiça,
fraqueza e miséria, o cidadão do Reino de Deus pode proclamar a paz (Mt
5.9). Esta paz, todavia, não significa necessariamente ausência de guerras ou
conflitos. No sentido bíblico, a paz indica um estado no qual todas as coisas
estão unidas. Esta união, entretanto, é permeada de tensões, pois ela é
resultado da nossa paz com Deus. Como dito anteriormente, nosso
relacionamento com Deus foi restabelecido, e, de acordo com Paulo (Rm
5.1), nós temos paz com Deus. Portanto, o cidadão do Reino de Deus
proclama a paz que ele mesmo já recebeu. Assim, o último estágio da
transformação do cidadão do Reino de Deus é a reação do mundo em relação
à mudança do seu caráter. Essa reação se manifesta na perseguição (Mt 5.10).
Porém, se o cidadão do Reino de Deus tem o seu caráter transformado e
proclama a paz com Deus, por que ele seria perseguido? Não esqueçamos que
o fundamento da mudança de caráter do cidadão do Reino é a sua
conscientização sobre o seu estado natural diante de Deus. Todas as demais
características desenvolvidas por Jesus decorrem disso. Assim, quando o
cidadão do Reino de Deus proclama a paz, evidentemente isso inclui a
mesma tomada de consciência daquele que ouve a proclamação deste
testemunho do Reino. Entretanto, as pessoas não gostam de ser confrontadas
desta maneira a propósito da sua condição natural diante de Deus. É
precisamente por isso que a reação espontânea do mundo é a perseguição
daquele que proclama o Reino de Deus8.
Dessa forma, o cidadão do Reino de Deus testemunha o perdão e a comunhão
do Reino, com a consequente mudança de caráter daquele que ouviu e foi
transformado por este testemunho mediante a ação do Espírito Santo. O
primeiro amor é, portanto, a concretização deste testemunho do Reino de
Deus e a conscientização de quem nós éramos antes e quem nós somos agora.
Não se trata simplesmente de um sentimento sobre algo que tenhamos
experimentado. Desta maneira, o amor, como testemunho do Reino de Deus,
é uma obrigação e uma tomada de posição daqueles que já fazem parte desse
Reino.
O primeiro amor em risco
A compreensão sobre a volta da igreja ao primeiro amor continua com a
análise da crise9 pela qual passavam as igrejas mencionadas no livro de
Apocalipse. Desde a época de Irineu (130 – 200 d.C.), bispo de Lyon, a
composição do Apocalipse foi datada da época do Imperador Domiciano (81
– 96 d.C.). Policarpo (69 – 155 d.C.), bispo de Esmirna, afirma, da mesma
maneira, que não havia igrejas na região de Esmirna quando Paulo escreveu a
sua carta aos filipenses em meados dos anos 50 d.C. Ora, as igrejas para as
quais João escreve estão em uma situação muito grave. Por isso, é necessário
que haja um tempo entre o estabelecimento dessas igrejas e o seu estado
espiritual precário na época da redação do Apocalipse10. Isso nos leva a
concluir que provavelmente o Apocalipse foi escrito após o reinado de
Nero11 (54 – 68 d.C.). Ademais, João afirma que a cidade de Laodicéia é rica
(Ap 3:17), e o historiador romano Tácito, por sua vez, menciona que essa
cidade fora destruída por um terremoto por volta de 60 – 61 d.C. (Anais, 14,
27, 1). Dessa forma, entendemos que o Apocalipse foi escrito também após o
ano 70, no reinado de Domiciano, pois apenas 9 anos não bastariam para
reconstruí-la a ponto de ficar abastada12.
Uma vez que a data de composição esteja definida, podemos analisar qual era
a crise enfrentada pelas igrejas em meados dos anos 90 d.C. A tradição
historiográfica cristã aponta a perseguição aos cristãos como a causa principal
da composição do livro de Apocalipse. Isto é, o apóstolo João escreve às
igrejas da Ásia Menor para consolá-las em meio ao sofrimento causado pela
perseguição em razão da fé cristã. É dito, igualmente, que João, na verdade,
denuncia a idolatria e a opressão do culto ao imperador13. Dentro desta
hipótese, os cristãos eram mortos por não prestarem culto ao imperador.
Pesquisas recentes, entretanto, nos levam a questionar a amplidão da
perseguição aos cristãos na época de Domiciano. Quando Irineu determina a
composição do Apocalipse na época de Domiciano, ele não menciona
nenhum tipo de perseguição aos cristãos por aquele imperador. Além disso,
devemos reconsiderar os testemunhos negativos de Suetônio (Domiciano, 3),
de Tácito (História Natural, 4, 68) e de Plínio (Panegírico de Trajano, 48, 3)
sobre a personalidade de Domiciano. Segundo alguns autores, eles faziam
uma defesa do reinado de Trajano (98 - 107), pois interpretavam-no como
uma nova era em relação ao reinado precedente14. Embora houvesse uma
certa pressão do impériosobre os cristãos da Bitínia e do Ponto, não há
evidências que comprovem uma perseguição sistemática na Ásia Menor sob
o reinado de Domiciano15.
Assim, se o Império Romano não promovia uma perseguição sistemática aos
cristãos da Ásia Menor no fim do primeiro século, o que levou João a
escrever o Apocalipse? Para responder a essa pergunta, precisamos
compreender um pouco mais sobre o gênero de literatura chamada
“apocalíptica”. Não pretendemos aqui discutir as características deste gênero
literário, mas averiguar as razões pelas quais este tipo de literatura foi escrito.
Pode-se afirmar que o apocalipcismo inclui a esperança de um reinado
messiânico na terra a partir de uma nova criação e o julgamento dos
mortos16. Além disso, o seu conteúdo inclui a denúncia das falhas e erros
deste mundo com um apelo à revolução17 e à resistência18. Devemos ter em
mente que as primeiras comunidades cristãs esperavam a volta de Jesus para
aqueles mesmos dias. Encontramos um bom exemplo disso em uma das
primeiras cartas de Paulo: 1 Tessalonicenses. Essa igreja, fundada em 49
d.C.19, estava preocupada com o falecimento de alguns de seus membros
antes da iminente parusia de Cristo, pois esta comunidade não esperava que
isso acontecesse20. Por isso, o apóstolo Paulo esclarece que haverá uma
ressurreição para aqueles que morreram crendo em Jesus (1 Ts 4.14). Mas o
que fazer e como viver a fé cristã no ambiente imperial romano enquanto
Jesus não volta para buscar a sua igreja? Os primeiros cristãos são
confrontados à precariedade do cotidiano, às pressões sociais - como, por
exemplo, a questão da carne oferecida aos ídolos -, ao desejo humano natural
de tentar se adaptar à situação e à fidelidade aos ensinos dos apóstolos que
poderia conduzi-los ao martírio21.
Ora, se ainda antes do ano 50 os cristãos estavam preocupados com o retorno
de Jesus que não chegava, quanto mais no ano 90 d.C. quando o Apocalipse
foi escrito. Mais de 40 anos se passaram desde as primeiras comunidades
plantadas por Paulo, e agora já havia uma segunda geração de igrejas que
começava a se perguntar quando Jesus voltaria e como agir no mundo
enquanto ele não vem. Por isso, talvez o livro de Apocalipse mostre que João
esteja em conflito com o Império Romano e não necessariamente o Império
Romano que esteja em conflito com os cristãos. Pois, do ponto de vista
externo, João descreve um olhar crítico do poder humano na sociedade; e, do
ponto de vista interno, o apóstolo critica a igreja quando ela começa a se
instalar no mundo22, isto é, os cristãos estavam pensando e agindo da mesma
forma que a sociedade criticada por João. Nas falas de Jesus às igrejas,
reveladas a João, Ele descreve essas duas forças em oposição. Do ponto de
vista externo, Jesus afirma que existem sinagogas de Satanás na região (Ap
2.9); ele também declara que o trono de Satanás está estabelecido ali (Ap
2.13) e que Jezabel exerce influência sobre os membros das igrejas (Ap 2.20).
Sob a ótica interna, Jesus alerta que é necessário voltar ao primeiro amor (Ap
2.5), exorta que os cristãos permaneçam firmes até a morte (2.10-11), ordena
que os falsos ensinos e a imoralidade sexual sejam abandonados (2.16; 20-
23), encoraja para que não deixem morrer o pouco que ainda resta (3.2), e
que retenham firmemente o que eles ainda têm (3.11) e finalmente afirma que
as riquezas que a igreja possui não valem nada (3.17-18).
Dessa forma, vemos que todas as igrejas, de uma maneira ou de outra,
perdiam a esperança no retorno de Jesus e, por isso, estavam se adaptando ao
padrão de pensar e de agir da sociedade daquela época. Portanto, ao invés de
consolar essas igrejas face à perseguição, o apóstolo João as exorta a
permanecerem firmes nos ensinos de Jesus, apesar da grande tentação de
acomodação ao sistema de valores do mundo. Neste caso, os valores do
mundo são representados: 1) pelo poder do conhecimento, por isso o alerta
para o abandono dos falsos ensinos; 2) pela imoralidade sexual; e 3) pelas
riquezas como fonte de recursos e não mais Deus em si mesmo. Já não havia
mais nenhuma resistência dessas igrejas ao sistema de valores do mundo. Os
cristãos dessa geração não compreendiam mais que o testemunho de Jesus
envolve a oposição ao modo de pensar e de agir do mundo. Os cristãos não
choravam mais pelos seus pecados nem se sentiam mais diante de Jesus.
No caso da igreja de Éfeso, embora tivesse um bom conhecimento para por à
prova os falsos apóstolos, ela havia abandonado a prática do amor cristão que
Paulo havia ensinado cerca de 30 anos antes. Por isso, Jesus apresenta um
caminho em três fases para a restauração do amor dessa igreja (Ap 2.5): 1) a
lembrança das práticas anteriores para uma reavaliação do caminho que
seguiam; 2) após a sua reavaliação, a igreja deveria mudar a sua forma de
pensar e de agir; e, finalmente, 3) voltar à prática do comportamento justo e
aprovado por Deus23.
A comunidade cristã como centro de
resistência aos valores do mundo
Uma vez que Jesus, através da revelação de João, afirma que é necessário
lembrar-se das práticas anteriores, a melhor maneira de voltar ao primeiro
amor é verificar o que Paulo ensinou aos efésios. Já vimos que a igreja de
Éfeso provavelmente tinha uma boa teoria teológica, entretanto faltava-lhe a
conscientização dos privilégios que lhe foram concedidos por Cristo. Ou seja,
o conhecimento intelectual da fé deve ser seguido pelo conhecimento íntimo
da pessoa, do plano e do poder de Deus conforme foram revelados em Jesus
Cristo. Paulo sabia disso, por isso ele ora com esperança pela consciência da
fé e do amor pelos efésios (Ef 1.15-16) e também pelo conhecimento pessoal
de Deus (1.17-23)24. Portanto, a vida cristã não se trata da memorização de
dogmas, mas de um relacionamento pessoal com Deus.
Por meio desse relacionamento, os cristãos se tornam participantes ativos na
legitimação da sabedoria de Deus em todo mundo, mediante a obra
reconciliadora de Jesus. Isto quer dizer que o cristão está consciente de que
foi chamado e liberto de uma situação desesperadora, pois além dele ter sido
controlado por sua natureza pecaminosa, Satanás controla o sistema de
pensamento deste mundo (2.1-3)25. João vai ilustrar o domínio de Satanás,
mais de 30 anos depois, utilizando a imagem do seu trono estabelecido na
mesma região da igreja de Éfeso (Ap 2.13). Portanto, a participação daquele
que crê em Cristo acontece em meio a uma forte oposição. De fato, não há
testemunho cristão fora de um ambiente marcado pelo conflito entre a
consciência de ser transformado por Cristo e a realidade de viver em um
mundo que se opõe a Cristo.
Assim, o cristão é chamado para viver de acordo com a vontade de Deus,
com o objetivo de mostrar a sua misericórdia26 em um mundo que procura o
poder para subjugar o seu próximo. Por isso, Paulo desenvolve o sujeito da
superação do antagonismo entre judeus e cristãos27 baseada na reconciliação
que todos encontram em Jesus Cristo28 (Ef 2.11-22). Dessa forma, Efésios
mostra que Cristo reconciliou dois grupos completamente diferentes para
criar um só grupo, ou, na linguagem de Paulo, um só corpo. Como resultado,
o cristão vive em uma comunidade que, em si mesma, resiste ao sistema de
pensamento do mundo, já que a igreja reúne grupos heterogêneos para uma
mesma finalidade: mostrar a sabedoria multiforme e universal de Deus para
nos aproximar dEle com toda a confiança (Ef 3:7-12). É por esta razão que
Paulo pede que os efésios experimentem coletivamente a plenitude do amor
de Cristo para desfrutar do relacionamento com Deus em sua
totalidade29 (3.19).
Portanto, de acordo com Paulo, a experiência de viver na comunidade cristã é
também um testemunho contra a maneira de pensar e de agir do mundo.
Contudo, após desenvolver os aspectos dogmáticos da existência da igreja,
Paulo, a partir do capítulo quatro de Efésios, descreverá os aspectos práticos
de como viver o testemunho de Cristo e o relacionamento com Deus na
comunidade cristã.
A prática do amor como resistência ao
mundo
A volta ao primeiro amor é caracterizada pela realizaçãodas ações que o
apóstolo Paulo explica na segunda parte de sua carta aos efésios. De fato, esta
é a atitude demandada por Jesus em Ap 2.5. É preciso estar consciente de que
essas ações estão em oposição direta ao sistema de valores do mundo. Dessa
maneira, a volta ao primeiro amor pode ser definida como o testemunho
cristão, por meio de atitudes, que resiste ao modo de pensar e de agir do
mundo, que resultará na glorificação de Deus. Assim, a partir de agora,
vamos analisar os aspectos práticos da oposição que o cristão causa no
sistema de valores do mundo a partir da comunidade cristã. Como o
comportamento do cristão faz resistência à forma de pensar e de agir do
mundo?
Devemos enfatizar que a aplicação das ações descritas a partir de agora não
implica necessariamente em um tipo de vida legalista. Ao contrário. O cristão
não fará nada para tentar ganhar algum favor de Deus, pois, uma vez que o
cristão entende o seu chamado, entende a transformação pela qual ele passou
e ainda passa, entende que está subordinado a um estilo de vida que
manifeste a plenitude de Cristo e que cause, efetivamente, uma resistência ao
modo de viver do mundo.
a. A unidade na diversidade
A primeira prática do amor que Paulo determina para a igreja é que os irmãos
estejam unidos (Ef 4.1-16). Esta união causa oposição ao sistema de valores
do mundo, pois não se trata de uma unidade mecânica imposta por alguma
força externa que obrigue o cristão a viver nessa condição30. Uma vez que o
cristão tem a consciência de ter sido transformado por Cristo, ele desejará
estar em união com outras pessoas que passaram pelo mesmo processo.
Dessa forma, a união entre as pessoas na igreja é o fruto de um desejo
natural. Por desejo natural, não estamos dizendo que isso seja algo natural do
ser humano em si mesmo. Entretanto, Paulo adverte veementemente que os
cristãos devam andar de modo digno da vocação para a qual eles foram
chamados. Isso envolve a tomada de consciência de que aquele que foi
chamado vive um relacionamento com Deus31. Por isso, a união cristã não
está baseada na observância de um conjunto de regras institucionais em um
primeiro momento, mas nas atitudes naturais do ser humano pertinentes ao
seu relacionamento com Deus.
A atitude humana mais comum em casos de um não acordo com qualquer
outra instituição é abandoná-la. Seja um clube, uma empresa, um condomínio
e até mesmo o casamento, as instituições humanas são marcadas pela
desistência quando não há mais concordância entre as partes que a
constituem. Contudo, a igreja supera as discordâncias pessoais, uma vez que
o cristão deve “fazer todo esforço para preservar a unidade que foi efetuada
pelo Espírito, por meio do vínculo que consiste na paz” (Ef 4.3). Este esforço
vem da consciência de que o cristão é alguém que recebeu tudo de Deus por
meio de Cristo32 (capítulos 1 a 3). Porém a unidade entre os cristãos não é
um fim em si mesmo nem os cristãos são uma peça a mais no sistema. A
união dos cristãos deve ser bênção para o mundo33 por mostrar a presença de
Deus no mundo.
Vale enfatizar que a oposição que a igreja coloca contra o sistema de valores
do mundo é a sua unidade e não uma pretensa uniformidade. A
uniformização é resultado de um sistema de pressão externa34, enquanto que
a unidade é o fruto interior da conscientização de quem somos e de onde
estamos em Cristo. A unidade surge como um fruto interno em razão da
transformação de caráter do cristão, como vimos na primeira parte desta obra.
O caráter transformado do cristão permitirá que ele aja com humildade,
mansidão e paciência para viver sua individualidade em unidade com outros
seres individuais. Paulo não diz que todos devem ser a mesma coisa; ao
contrário, ele afirma que somos todos diferentes e todos com diferentes dons
(4.7-11). Assim, a igreja deve se beneficiar da sua diversidade, e cada um, de
acordo com o dom que recebeu de Deus, deve agir com o próximo de forma a
desejar ardentemente a unidade em Cristo. As atitudes em favor do próximo,
dentro do contexto das necessidades específicas da comunidade, ajudarão o
cristão a descobrir e a desenvolver os dons que ele recebeu de Deus35.
b. A ruptura com o modo de agir e de
pensar do mundo
A segunda prática do amor que se opõe ao sistema de valores do mundo é a
ruptura total com o modo de agir do mundo (4.17-32). Assim, em
consequência da transformação do seu caráter, o cristão deve se revestir do
novo ser, isto é, a consciência de pertencer a Cristo deve levá-lo a mudar suas
ações. Paulo é enfático quando dá exemplos do antigo modo de vida que deve
ser abandonado para dar lugar ao novo padrão de comportamento. Mas, antes
de dizer qualquer coisa sobre o novo padrão de vida, Paulo enfatiza as razões
pelas quais o testemunho cristão se opõe ao sistema do mundo. O testemunho
cristão causa resistência ao padrão do mundo, pois a humanidade se deixa
conduzir pela falta de sentido da sua vida (v. 17-19). Isto é, aquele que não
foi transformado por Cristo não tem consciência crítica sobre o verdadeiro
sentido da vida, pois Paulo vai afirmar que os que vivem fora de Cristo 1)
têm a sua mentalidade obscurecida; 2) estão alienados de Deus; e 3) o seu
julgamento sobre eles mesmos está cego (4.18).
De acordo com Paulo, aqueles que não vivem em Cristo não têm capacidade
cognitiva para avaliarem a gravidade da sua situação atual. Dessa forma,
Paulo afirma que a ignorância é a razão pela qual a humanidade se afasta de
Deus. Paulo acusa os que vivem fora do relacionamento com Cristo de serem
insensíveis (v. 19), ou seja, eles perderam a capacidade de ponderar sobre o
que é bom e o que é mau. Mas, ao contrário, aqueles que estão em Cristo
possuem todas as condições de analisar se o seu comportamento condiz com
aquilo que eles aprenderam com o Mestre (v. 20-21). Por isso, uma das
formas de resistência da igreja, que mostra o seu testemunho ao mundo, é a
possibilidade de raciocinar entre duas formas de agir diferentes. Essas duas
formas de agir estão orientadas em direções opostas. Ou agimos de forma a
satisfazer nossos próprios prazeres enganosos (v. 22) ou agimos pela
renovação da nossa mente para a glória de Deus (v. 23). Em um mundo de
atitudes viciadas pela cegueira espiritual e mental, o cristão tem a
oportunidade de mostrar que existem outras opções de vida. Isso é resistência
e testemunho!
c. As ações do amor de Cristo
Uma vez que o cristão está mental e espiritualmente capacitado para analisar
as duas formas opostas de vida, Paulo explica como a terceira prática do
amor acontece no cotidiano em Ef 5.1–6. A ação daquele que vive em Cristo
deve ultrapassar o simples fato de seguir a Cristo. Paulo pede aos cristãos,
efetivamente, uma tomada de posição. A ação do cristão deve estar
fundamentada na ação de Cristo. Por isso, ele afirma vigorosamente que
aquele que vive em Cristo deve reproduzir da maneira mais fiel possível o
que ele fez (v. 1). Evidentemente, Paulo não tem em mente a capacidade
infinita de Deus como criador de todas as coisas. Paulo propõe algo mais
tangível ao ser humano, pois uma vez que a capacidade intelectual do cristão
não vem dele mesmo, mas da renovação da sua mente por Cristo, sua ação é
muito mais imanente, muito mais concreta do que algo abstrato. Isto quer
dizer que alguém poderia objetar que, devido à nossa renovação espiritual
como algo transcendente, todas as nossas ações deveriam ser também
transcendentes, como a oração, por exemplo. Entretanto, Paulo mostra que
nossa ligação transcendente com Deus se manifesta de forma concreta aqui
na terra.
A resistência dessas ações reside no fato de que agimos para a glória de Deus
e não para nós mesmos. Por isso, o resultado prático de não vivermos mais
para nós mesmos é o abandono do comportamento centrado em nosso próprio
prazer. A resistência dessas ações se torna ainda mais evidente quando
analisamos autores como Nietzsche. Na obra “Além do Bem e do Mal”, ele
diz que aquele que a si mesmo se sacrifica espera em última análise louvor
por sua atitude “desinteressada”. Na verdade, a intençãodessa pessoa era
sentir mais do que os outros que nada fizeram36. Evidentemente o cristão
terá de lidar com as tensões entre a exigência de Cristo e a sua própria
natureza pecaminosa. É por isso que, antes de descrever o abandono do
antigo comportamento, Paulo apela ao amor de Cristo e ao nosso sacrifício
como oferta a Deus: não vivemos mais para nós mesmos.
d. A transparência de vida
Um dos efeitos da imitação de Cristo, na quarta prática do amor, é a
transparência da vida do cristão, de acordo com Ef 5.7-14. Isto é, o cristão
que vive no amor de Cristo está na luz e, por conseguinte, não poderá estar ao
mesmo tempo nas trevas. Paulo faz um apelo à consciência daquele que teve
o seu caráter transformado por Cristo, pois o caráter transformado está apto a
discernir as trevas da luz. Paulo começa este trecho afirmando que o cristão
não deve ter absolutamente nada em comum com aqueles que vivem na
imoralidade. Além disso, o apóstolo usa um argumento personalizado quando
afirma que os cristãos de Éfeso já pertenceram a este mesmo grupo antes da
sua transformação. Assim, lembrar-se da vida antiga e compará-la com a
nova vida em Cristo é o método de Paulo para impulsionar a ação requerida
no verso 10: aprendam o que agrada ao Senhor. Mais uma vez, Paulo se serve
da inteligência transformada por Cristo como instrumento de resistência ao
mundo. Apenas a inteligência transformada poderá observar com clareza
(afinal, o cristão está na luz) a diferença entre o antigo e o novo modo de
vida.
Como um bom judeu, Paulo torna concretos alguns conceitos abstratos, tais
como a bondade, a justiça e a verdade. Nessa passagem, Paulo faz referência
à bondade muito mais como uma característica intrínseca do que
propriamente os atos bons. Pois uma inteligência transformada pressupõe um
caráter transformado. Assim, o ser bom é muito mais importante do que fazer
o que é bom, pois quem apenas faz o que é bom em uma ocasião não vai
necessariamente continuar fazendo o que é bom o tempo todo. Porém, quem
é intrinsecamente bom procurará fazer o que é bom em todas as ocasiões
mesmo que não o consiga. Isso vai além de um mero moralismo externo. Da
mesma forma, quando Paulo menciona a justiça, ele se refere à inteligência
transformada que é capaz de ter plena consciência da culpa que o pecado e a
vida nas trevas trazem. O veredito de culpa do pecador está anunciado. O
termo justiça (dikaiosuné em grego) tem sua raiz em díkē37, castigo. Assim,
pelo fato de viver na luz, aquele que teve seu caráter transformado por Cristo
admite sua culpa pelo pecado já que não se pode escondê-lo. Este é um
verdadeiro ato de resistência em um mundo que tenta se livrar da sua culpa a
qualquer custo ao invés de encará-la e tratá-la. Assim, o último conceito
abstrato que Paulo torna concreto é a verdade. A inteligência transformada é
capaz de perceber a verdade cuja origem se encontra na palavra aléthés38 em
grego, que quer dizer “o que não pode ser escondido”. Depois o seu uso foi
estendido para descrever a realidade em oposição ao que era ilusório. Isso é
significativo, pois Paulo afirma que o cristão está na luz, da qual nada pode
estar oculto. Além disso, o cristão tem plena consciência da realidade da vida,
pois Paulo já havia exposto o antigo modo de viver em oposição ao novo.
Por isso, Paulo afirma que a resistência que o cristão oferece ao mundo vai
além de não participar do que o mundo faz. O que Paulo diz é que o cristão
resiste ao sistema de valores do mundo não sendo o que o mundo é.
e. A responsabilidade
A quinta prática do amor de Cristo, que resiste ao sistema de valores do
mundo, é a responsabilidade, de acordo com o texto de Efésios 5.15-20.
Agora Paulo pode falar em responsabilidade, pois neste ponto os seus leitores
já estão conscientes de quem eles eram e de quem eles são.
Por isso, ele começa esta nova seção com a expressão: “Portanto, olhem
bem...”. Paulo solicita aos seus leitores que arquem com as consequências da
sua mudança de mentalidade39. Agora, o apóstolo junta à mudança de
mentalidade a vontade de Deus. Assim, a responsabilidade do cristão não está
apenas vinculada com aquilo que ele acha certo, mas suas ideias e suas ações
devem necessariamente estar de acordo com a vontade de Deus. É a vontade
de Deus que o capacita a praticar todas as coisas que temos visto até aqui.
Senão, de outra forma, não haveria um balizador comum das ações cristãs, e
cada um faria o que achasse certo. Por isso, Paulo insiste por meio do termo
“cuidadosamente”, que traz, além da ideia de atenção, o conceito de exatidão
e regularidade. Assim, aquele que teve sua mentalidade transformada é
desafiado a buscar com precisão e regularidade a vontade de Deus, pois todas
as nossas ações provocam efeitos em outras pessoas, e precisamos agir com
responsabilidade. Portanto, o sábio é aquela pessoa que avalia todas as
possibilidades antes de agir. Além disso, todas as suas ações estarão em
concordância com a transformação que aconteceu em sua mentalidade
evidentemente.
A primeira prova da responsabilidade cristã está relacionada ao
aproveitamento do tempo em um mundo mau. Isso quer dizer que o cristão
não ignora o mundo onde ele vive, mas está consciente do seu sistema de
valores, especialmente pelo fato de ter vivido nele antes da sua
transformação. O versículo 17 reforça que o ato de resistência do cristão
diante da maldade do mundo é buscar a vontade de Deus e agir com
responsabilidade. Esta é a segunda prova da responsabilidade cristã. Alguém
não responsável irá, via de regra, tomar ações imediatas que muitas vezes
visam apenas ao seu próprio bem-estar em detrimento dos demais. O termo
traduzido por insensato aqui, diferente do verso 15 como vimos acima, quer
dizer uma loucura pelo fato de não ter considerado todos os elementos antes
de agir. Assim, o cristão com a mentalidade transformada vai buscar a
vontade de Deus antes de qualquer ação, pois compreende a sua
responsabilidade no mundo. Em seguida, Paulo compara as ações irrefletidas,
fruto de uma mente não transformada, com o ato de estar bêbado. Paulo apela
a essa imagem, pois o fato de alguém se embebedar sugere, entre outras
coisas, uma atitude de fuga pela intoxicação alcoólica. Isto é, alguém que
fugiu das suas responsabilidades. A terceira prova da responsabilidade cristã
é a contraposição à intoxicação alcoólica, ou seja, o enchimento pelo Espírito
Santo, que elucida nosso entendimento acerca de todas as coisas. Esse
enchimento pelo Espírito Santo é derivado da leitura e da prática da Palavra
de Deus de acordo com a continuação do pensamento de Paulo nos versículos
19 e 20. Assim, o estar cheio do Espírito, ou o “deixar-se encher pelo
Espírito”, é o ato de ler e meditar na Palavra de Deus. Algo prático, sem
segredos e que todos podem fazer.
f. O suporte aos irmãos
O último ato de resistência aos valores do mundo é o amor transformado em
ações práticas para sustentar nossos irmãos e irmãs em Cristo, de acordo com
Efésios 5.21-33. Para explicar como o suporte aos irmãos da fé é importante,
Paulo utiliza a imagem da família, pois - em última instância - todos aqueles
que tiveram suas mentalidades transformadas pertencem à mesma família.
Este ato de resistência também se manifesta contra todo individualismo, pois,
por meio da mentalidade transformada, e agora cheios da Palavra de Deus,
podemos superar o egoísmo natural do ser humano.
A chave para a compreensão deste texto está no termo “suportar” ou
“sujeitar”. O verbo traduzido por suportar tem uma conotação de decidir a
disposição de alguma coisa sob o comando de alguém40. Inclusive, este é o
uso que a tradução grega do Antigo Testamento (Septuaginta) faz desse
verbo. Ou seja, os judeus de fala grega utilizavam o verbo hypotássō dessa
maneira. A ordem de Paulo aos efésios fica ainda mais evidente quando
observamos o significado da segunda metade do verbo hypotássō: arrumar
alguma coisa de modo ordenado. Assim, o que Paulo diz aos efésios é que
eles deveriam se colocar abaixo uns dos outros de maneira ordenada. Mas o
que issoquer dizer?
A ação de suportar uns aos outros vai além de um respeito social mútuo.
Paulo pede para que eles abram mão de algumas coisas para,
intencionalmente, apoiar seus irmãos. Não se trata de uma ação simplesmente
reativa, mas completamente ativa. Isso é exemplificado pela união conjugal.
Não há na terra uma união que seja tão íntima quanto a de um marido e uma
mulher. Neste ponto, Paulo afirma que a mulher deve apoiar o seu marido e,
por sua vez, o marido deve amar sua esposa da mesma forma como Cristo
amou a sua igreja, isto é, dando sua vida por ela. Isso é extremamente
revolucionário, pois a mulher jamais poderia ser vista como o suporte de
quem quer que seja. Da mesma forma, Paulo pede que o homem morra em
favor de alguém que não tinha nenhum valor para a sociedade! Assim, a
razão das ações de resistência do cristão não está fundamentada naquilo que a
sociedade define, mas sim na obra de Cristo. O que a sociedade define como
valores pode mudar com o passar dos anos, mas a obra de Cristo é eterna. Por
isso, Paulo insiste na relação de Cristo com a igreja.
Por essa razão, o ato de resistência que a igreja causa no mundo é visto
quando o cristão se coloca como um suporte para proteger o seu irmão e
gerar um corpo comunitário ordenado. Isso é um ato de resistência ao sistema
de valores do mundo, pois, de forma geral, todos buscam a sua própria
relevância e destaque. O cristão abre mão da glória do mundo para servir ao
corpo de Cristo para a glória de Deus.
Conclusão: a resistência ao mundo e a
glória de Deus
Assim, ao final deste breve ensaio, podemos afirmar que a volta ao primeiro
amor é viver na resistência, sempre contra os valores do mundo. É
conscientemente se opor ao mesmo modo de agir e de pensar do mundo. A
resistência ao mundo é intencional, o cristão deseja ser como Cristo, não
deseja pensar e agir como o mundo.
Por essa razão, não podemos perder de vista o fato de que Jesus vai retornar,
pois, a partir do momento que perdermos a esperança no retorno de Jesus, nós
começaremos a assumir a mesma maneira de pensar e de agir do sistema de
valores do mundo. Assim, se o retorno de Jesus não é mais uma realidade
para aqueles que nele creem, só nos resta o aspecto institucional da igreja
como uma reunião de pessoas igual a qualquer outra agremiação social.
Suas ações não refletirão mais a glória de Deus no mundo. Se o retorno de
Jesus não é mais uma realidade para a igreja, suas ações se resumirão a ações
institucionais que poderão até mudar um pouco da realidade política da
comunidade, mas jamais poderão mudar o caráter de alguém. O cristão que é
consciente da sua mudança de caráter sabe que o poder não está nas suas
ações propriamente ditas, pois, no fundo, ele sabe quem é. As ações do
cristão não são fruto de uma esperança de um agir político na sociedade, mas
a certeza de que Deus está presente neste mundo, no qual a igreja é chamada
para mostrar sua presença por meio de suas ações.
Dessa forma, chegamos ao conceito do que é aquilo que chamamos de
glorificar o nome de Deus. De fato, quando analisamos o termo “glória” na
Bíblia, ele está sempre ligado ao significado de alguma coisa que está
presente. No hebraico, a palavra “glória” possui a mesma raiz para palavras
que significam peso, presença e essência41. Assim, quando dizemos que a
igreja deve glorificar o nome de Deus, isso significa que ela deve mostrar que
Deus está presente neste mundo. E como mostrar que Deus está presente
neste mundo? Simplesmente realizando as ações de amor que vimos acima.
Quando o cristão age, ele não realiza simplesmente ações políticas na
sociedade, mas participa da essência de Deus, pois o seu caráter foi
transformado por Deus. Por isso, a glória de Deus e a volta ao primeiro amor
são duas coisas indissociáveis.
A realização das ações de amor da igreja mostrará a presença de Deus neste
mundo. Neste ponto, voltamos exatamente ao início deste breve tratado, pois
realizar ações de amor que mostrem que Deus está presente neste mundo é
justamente testemunhar o Reino de Deus. Essa ideia fica clara no prefácio do
livro de Apocalipse, quando o apóstolo João afirma que todo olho verá Jesus
(Ap 1.7). Portanto, desde o início da sua carta, João suplica aos seus leitores
que resistam no testemunho de Cristo apesar da demora do seu retorno (Ap
1.9).
Testemunhar do Cristo é viver em constante tensão, mostrando a presença de
Deus neste mundo, como vemos na bela oração atribuída a Francisco de
Assis:
Senhor, fazei-me instrumento de vossa paz.
Onde houver ódio, que eu leve o amor;
Onde houver ofensa, que eu leve o perdão;
Onde houver discórdia, que eu leve a união;
Onde houver dúvida, que eu leve a fé;
Onde houver erro, que eu leve a verdade;
Onde houver desespero, que eu leve a esperança;
Onde houver tristeza, que eu leve a alegria;
Onde houver trevas, que eu leve a luz.
Ó Mestre, fazei que eu procure mais
Consolar que ser consolado;
compreender que ser compreendido;
amar que ser amado.
Pois é dando que se recebe,
é perdoando que se é perdoado,
e é morrendo que se vive para a vida eterna.
Amém.
NOTAS
1 Bandy, Alan S. “PATTERNS OF PROPHETIC LAWSUITS IN THE
ORACLES TO THE SEVEN CHURCHES.” Neotestamentica, vol. 45, no. 2,
2011, pp. 178–205. JSTOR, JSTOR, www.jstor.org/stable/43048805.
2 THE COMPLETE WORD STUDY DICTIONARY : NEW TESTAMENT,
metanoéō, AMG International, Inc., 1993, p. 968.
3 LADD, 2003, p. 149.
4 Ibid, p. 149.
5 Atos 1: 8.
6 Tomamos como base o texto de Mateus capítulos 5, 6 e 7.
7 Martin Lloyde Jones trabalha com mais profundidade estes temas em sua
obra “Estudos no sermão do monte”.
8 Ibid.
9 HOLLADAY, 2011, p. 782.
10 PINTO, 2006, p. 591.
11 HOLLADAY, p. 782.
12 MAUERHOFER, 2010, p. 576.
13 CUVILLIER in “Introduction au Nouveau Testament: son histoire, son
écriture, sa théologie.”, p. 396.
14 Ibid, p. 396.
15 HOLLADAY, 2011, p. 784.
16 COLLINS, 1984, p. 281.
17 Ibid, p. 283.
18 CUVILLIER, p. 390.
19 VIELHAUER, Philipp. História da literatura cristã primitiva: introdução
ao Novo Testamento, aos apócrifos e aos pais apostólicos. Santo André:
Academia Cristã, 2005, p. 112.
20 Ibid, p. 117.
21 CUVILLIER, p. 397.
22 Ibid, p. 397.
23 COSTA, Jease. Comentário pastoral da Bíblia King james Atualizada:
Apocalipse. São Paulo: Abba Press, 2015, p. 48. 
24 PINTO, 2006, p. 346.
25 Ibid, p. 346.
26 Ibid, p. 347.
27 Andreas DETTWILER in “Introduction au Nouveau Testament: son
histoire, son écriture, sa théologie.”, p. 287.
28 PINTO, 2006, p. 347.
29 Ibid, p. 349.
30 HENDRIKSEN, William. Comentário do Novo Testamento: Efésios e
Filipenses. Cultura Cristã, 2005, p. 215.
31 HAHN, Eberhard. Carta aos efésios: comentário esperança. Curitiba:
Esperança, 1998, p. 44.
32 FOULKES, Francis. Efésios: introdução e comentário. Sociedade
Religiosa. Edições Vida Nova, 1983.
33 HENDRIKSEN, 2005, p. 215.
34 LOPES, Hernandes Dias. Efésios: igreja, a noiva gloriosa de Cristo. São
Paulo: Hagnos, 2009, p. 101.
35 Ibid, p. 107.
36 NIETZSCHE, Friedrich. Além do bem e do mal. Editora Companhia das
Letras, 2005.
37 BROWN, Colin. Geral. Dicionário Internacional de Teologia do Novo
Testamento. Volume I. São Paulo: Vida Nova, p. 1117.
38 BROWN, Colin. Geral. Dicionário Internacional de Teologia do Novo
Testamento. Volume II. São Paulo: Vida Nova, p. 2601.
39 Hahn, Eberhard. Carta aos Efésios: Comentário Esperança. Curitiba:
Editora Evangélica Esperança, 1998. p. 68.
40 Geoffrey W. Bromiley. Theological dictionary of the New Testament.
William B. Eerdmans Publishing Company p. 1156.
41 HARRIS, R. Laird, ARCHER JR, Gleason L., et WALTKE, Bruce
K. Dicionário internacional de teologia do Antigo Testamento. São Paulo:
Vida Nova, 1998, p. 943. 
Bibliografia
BANDY, Alan S. “PATTERNS OF PROPHETIC LAWSUITS IN THE
ORACLES TO THE SEVEN CHURCHES.” Neotestamentica, vol. 45, no. 2,
2011, pp. 178–205. JSTOR, JSTOR, www.jstor.org/stable/43048805.
BROWN, Colin. Geral. Dicionário Internacional de Teologia do Novo
Testamento.Volume I. São Paulo, 2000.
COLLINS, John Joseph. The apocalyptic imagination: An introduction to the
Jewish matrix of Christianity. Crossroad, 1984.
COSTA, Jease. Comentário pastoral da Bíblia King James Atualizada:
Apocalipse. São Paulo: Abba Press, 2015.
FOULKES, Francis. Efésios: introdução e comentário. Sociedade Religiosa
Edições Vida Nova, 1983.
HAHN, Eberhard. Carta aos efésios: comentário esperança. Curitiba:
Esperança, 1998.
HARRIS, R. Laird, ARCHER JR, Gleason L., et WALTKE, Bruce K.
Dicionário internacional de teologia do Antigo Testamento. São Paulo: Vida
Nova, 1998.
HENDRIKSEN, William. Comentário do Novo Testamento: Efésios e
Filipenses. Cultura Cristã, 2005.
HOLLADAY, Carl R. A critical introduction to the New Testament:
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LADD, George Eldon. Teologia do novo testamento. Editora Hagnos, 2003.
LOPES, Hernandes Dias. Efésios: igreja, a noiva gloriosa de Cristo. São
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LLOYD-JONES, Martyn. Estudos no sermão do monte. São Paulo: Fiel,
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MAUERHOFER, Erich. Uma introdução aos escritos do Novo Testamento.
São Paulo: Vida, 2010.
MARGUERAT, Daniel (ed.). Introduction au Nouveau Testament: son
histoire, son écriture, sa théologie. Labor et Fides, 2008.
PINTO, Carlos Osvaldo Cardoso. Foco e desenvolvimento no antigo
testamento. Editora Hagnos, 2006.
THE COMPLETE WORD STUDY DICTIONARY: NEW TESTAMENT,
metanoéō, AMG International, Inc., 1993.
VIELHAUER, Philipp. História da literatura cristã primitiva: introdução ao
Novo Testamento, aos apócrifos e aos pais apostólicos. Santo André:
Academia Cristã, 2005. 
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Table of Contents
Sumário
Introdução
Os fundamentos do primeiro amor
O primeiro amor em risco
A comunidade cristã como centro de resistência aos valores do mundo
A prática do amor como resistência ao mundo
Conclusão: a resistência ao mundo e a glória de Deus
Bibliografia
Bibotalk
	Sumário
	Introdução
	Os fundamentos do primeiro amor
	O primeiro amor em risco
	A comunidade cristã como centro de resistência aos valores do mundo
	A prática do amor como resistência ao mundo
	Conclusão: a resistência ao mundo e a glória de Deus
	Bibliografia
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