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Álvaro Eduardo Eiras A família Culicidae (latim culex = mosquitos) apresenta grande interesse em parasitologia médica, em vista de nela encontrarmos o maior número e os mais importantes insetos hematófagos entre todos os Arthropoda, e apenas as fêmeas exercem hematofagia. As numerosas espécies de culicídeos apresentam grande adaptabilidade biológica, variabilidade genética e ampla valência ecológica. Possuem enorme dis- persão, encontrando-se espécies desde as regiões árticas, até as equatoriais. Durante o hematofagismo, o inseto per- turba o repouso do hospedeiro, espolia o sangue do mes- mo e, mais grave ainda, pode transmitir doenças, como vi- roses (dengue, febre amarela e encefalites), protozooses (ma- lária) e helmintoses (elefantíase). Popularmente são conhecidos por mosquitos, pernilon- gos, muriçocas, mossorongos, sovelas, mosquitos-prego, carapanãs etc. Em alguns estados brasileiros, a Musca domestica é erroneamente denominada mosquito; essa é mosca; mosquito são os dípteros nematóceros, especialmen- te os Culicidae. Os mosquitos estão na Terra antes que o homem, cerca de 30-54 milhões de anos atrás e a maioria dos fósseis de mosquitos encontrados é do período Oligoceno (26-38 mi- lhões de anos) e pertencentes aos gêneros Aedes, Culex e Mansonia. É uma família com grande número de espécies (cerca de 3.600), distribuídas por todas as regiões do globo. No Bra- sil, existem cerca de 500 espécies descritas, das quais pou- co mais de 20 têm importância médico-veterinária; dessas, ci- taremos as dez principais. Deve-se salientar que a partir de 1967, quando houve a reintrodução do Aedes aegypti, e 1986, quando foi detecta- do o Aedes albopictus pela primeira vez no Brasil (Minas Gerais, Rio de Janeiro e Espírito Santo, simultaneamente) o estudo dos Culicidae tomou-se ainda mais necessário, em vista da capacidade daquelas duas espécies de transmitir o vinis do dengue e da febre amarela. O dengue, entre 1986 e 1987, atingiu o Rio de Janeiro (93.000 casos), Ceará (2 1 .O00 casos), Pemambuco (1.300 casos), Alagoas (12.000 casos), Bahia (541 casos), Minas Gerais (527 casos) e São Paulo (46 anos), todos transmitidos pelo Aedes aegypti. Recentemen- te, o Brasil sofreu uma nova epidemia de dengue, atingindo mais de 160.000 casos regisirados em 1997. Em 1998, houve um aumento no número de casos (235.000) sendo preocu- pante a situação desta epidemia no Brasil. Além disso, o re- crudescimento da malária e os surtos frequentes de arbovi- roses transmitidas especialmente por mosquitos das tribos Sabethini e Culicini, evidenciaram um fato lastimável: a exis- tência de um diminuto número de entomologistas es- pecializado~, não só no Brasil, como em outros países! O desinteresse do governo brasileiro para com a saú- de pública em geral e para com as doenças transmitidas por artrópodes em particular tem desestimulado continuamente a formação de entomologistas nos últimos anos. Aliás, muitas das campanhas de controle de insetos têm apresen- tado resultados falhos em vista dessa ausência de ento- mologistas, especializados e competentes, capazes de da- rem suporte científico as atividades. Por outro lado, os ór- gãos encarregados de controle lembram-se apenas de in- seticidas químicos como forma de combate, esquecendo- se dos inseticidas biológicos, da educação sanitária e am- biental, da imprescindível participação da população e, principalmente, da falta de monitoramento dos mosquitos vetores periodicamente. MORFOLOGIA A seguir, daremos alguns caracteres morfológicos impor- tantes na diagnose dos adultos: medem cerca de 3-6mm de comprimento; antenas com 15 a 16 segmentos, plumosa no macho e pilosa na fêmea; ausência de ocelos; fêmeas apresentam aparelho bucal picador (sugador- pungitivo) e machos do tipo sifonadores-sugadores; palpos nítidos, com tamanho variável nas várias tribos e espécies; tórax, pernas, asas e abdome revestidos de escamas; pernas longas. Os caracteres que identificam esta família são: corpo e asas cobertos por escamas; possuir a terceira veia longitu- Capitulo 43 dinal (R4 + 5) reta e colocada entre duas veias forquilhadas. unidos, formando "jangada" sobre a água. Ex.: Culex Escamas de tonalidades uniformes ou diferentes, formando quinquefasciatus (Figs. 43.3 e 43.5). manchas, são importantes na diagnose específica. Nas Figs. 43.1 a 43.4 encontram-se os detalhes para identi- ficação dos sexos e das subfamílias Anophelinae e Culicinae. BIOLOGIA Os mosquitos também são holometábolos, isto é, passam pelas fases de ovo, larva (quatro estágios = LI, L2, L3 e LA), pupa e adulto (Fig. 43.6). O número de ovos é bastante variável para cada es- pécie, mas usualmente uma fêmea ovipõe de 100 a 300 ovos por postura. Esta é sempre feita após o repasto sanguíneo, variando de duas a oito posturas por fêmea. O Culex quinquefasciatus coloca, em média, 120 ovos por vez. A oviposição pode ser feita de maneiras variáveis. isolados sobre a água. Ex.: Anopheles sp (Fig. 43.3); isolados e fora d'água, na parede do recipiente. Ex.: Aedes aegvpti (Fig. 43.3); Os ovos, após um período médio de dois a quatro dias, em temperatura média de 26"C, dão origem as larvas. Estas movimentam-se ativamente e se alimentam cons- tantemente de plâncton. A respiração usual das larvas é direta, através dos espiráculos respiratórios situados no último segmento abdominal e, indireta, através do tegu- mento, quando estão submersas. Algumas espécies pos- suem larvas predadoras (achegando ao canibalismo), como so gêneros Toxorhynchites, Psorophora, Sabethes e Culex (Lutzia). Após um período variável de 10-20 dias, a larva de quarto estágio transforma-se em pupa. Esta não se alimenta, mas respira e movimenta-se ativamente. Permanece nesta fase por um período de um a três dias, dando então liberdade ao adulto. Esse emerge pelo cefalotórax da pupa, através de uma fenda em "T". O alado permanece em repouso sobre a exúvia (que faz o papel de bóia) por alguns minutos, sufi- cientes para o enrijecimento da quitina e dos músculos, permitindo ao inseto forças para voar e andar. E uma fase extremamente delicada na vida do mosquito. O mosquito re- Fig. 43.1 - Cabeças de Culicidae. A) fêmea de Culicinae; 8) macho de Culicinae; C) fêmea de Anophelinae; D) macho de Anophelinae; a, antena; pr, probóscida; pa, palpo. Capitulo 43 Fig. 43.2 - Aparelho bucal de Culicidae. A, B e C) Ib, labro; md, mandíbulas; hf, hipofaringe; mx, maxilas; I, lábio; f, palpo; ca, canal alimentar. D) Posi- ção do aparelho bucal durante a hematofagia; I, Ibbio retraído; a, demais estruturas do aparelho bucal, penetrando no capilar (b). cém-emergido voa até um abrigo (buracos, troncos de árvo- res, pontes, esgotos etc.), com pouca luz, ausência de ven- tos e umidade relativa no ar elevada. Do abrigo, os mosqui- tos dispersam-se a fim de se alimentar elou copular. A pri- meira alimentação dos adultos (macho e fêmea) é de açúca- res ou néctar de plantas. Geralmente, as fêmeas podem co- pular com poucas horas de vida, enquanto os machos so- mente após 24 horas (devido a rotação de 180" da termi- nália). Em algumas espécies (ex.: Anopheles) o acasalamen- to ocorre em enxames, onde os machos permanecem voan- do próximos a uma silhueta, como arbustos, animais, montículos etc. Noutras espécies o acasalamento ocorre sem enxame e os machos respondem aos som produzido pelo batimento das asas das fêmeas (ex.: Aedes aegypti). Após a cópula, a fêmea alimenta-se de sangue uma ou mais vezes e vai fazer a postura no mesmo tipo de criadouro em que nasceu. Os criadouros podem ser permanentes ou temporá- nos, naturais ou artificiais e, ainda, no solo ou em recipien- tes. Assim, podemos ter os mais variados tipos de coleção de água: lagoas, remansos de rios, pantanais, açudes, represas, cisternas, cacimbas etc.; buracos de árvores, internódios de bambus, cascas de frutas, axilas de Bromeliaceae, caixas d'água, latas e pneusvelhos etc. (Fig. 43.5). Os adultos vivem cerca de um a dois meses no verão e até seis meses no inverno (em diapausa). Essa sobrevida, entretanto, pode ser diminuída quando o mosquito está in- fectado (como hospedeiro intermediário) de alguma filária; já vírus e plasmódios parece que não alteram a longevida- de do mosquito transmissor. Fora do horário de atividade alimentar e sexual, os mos- quitos permanecem nos abrigos. De modo geral, os culicídeos voam bastante e apresentam boa capacidade de dispersão, que pode ser ativa (realizada pelo próprio vôo) e passiva (através de correntes aéreas e de veículos - Ôni- bus, avião, navio etc.). Na dispersão ativa, para a realização da hematofagia, as fêmeas são capazes de alcançar as se- guintes distâncias: Aedes aegypti (2.500m); Anopheles aquasalis (4.800m); A. bellator e A. cruzi (1.500m); A. darlingi: (2.000m) e Culex quinquefasciatus (22.000m). A determinação dessas distâncias é feita principalmente pela técnica de marcação com radioisótopos. Todas as fêmeas de mosquitos de importância parasito- lógica são hematófagas obrigatórias. No entanto, algumas espécies de mosquitos hematófagos têm a capacidade de produzir uma ou mais desovas iniciais sem haver a ingestão Capitulo 43 Anophelini Aedini Culicini Anopheles Aedes Culex Fig. 43.3 - As várias fases de desenvolvimento da família Culicidae e as diferenças entre as tribos Anophelini, Culicini e Aedini. de sangue (autogenia). O sangue ingerido tem função de maturação dos ovários, bem como auxilia na nutrição delas, pois sabe-se que mosquitos sem alimentação sanguínea têm uma sobrevida menor. Além do sangue, as fêmeas se ali- mentam de açúcares (glicose, frutose etc.). Os machos só possuem esse último tipo de alimento, pois não são hema- tófagos. A fonte desses açúcares para fêmeas e machos é um pouco obscura. Alguns autores sugerem que seja néc- tar e fmtos maduros. Mas, observações recentes (também notadas em flebótomos) indicam que a fonte de açúcares é a secreção açucarada de pulgões, cochonilhas ou cigarras, depositada em folhas. Assim, os mosquitos abrigados em certos vegetais estão também alimentando-se de açúcares (Fig. 43.6). De modo geral, a hematofagia é crepuscular, mas algu- mas espécies podem fazê-lo preferentemente durante a noi- te (noturnos), outros durante o dia (diurnos) ou, ainda, tan- to de dia como de noite. Há também espécies que só sugam dentro de casa (domésticos), outros fora de casa (silves- tres), ou indiferentemente. As espécies silvestres ainda po- dem picar preferentemente no nível do solo ou no nível da copa das árvores (acrodendrofilia). Os mosquitos são atraídos pelos hospedeiros vertebra- dos por meio de combinação de estímulos, como visual (si- lhueta), olfativo (ácido láctico, CO,, octenol), correntes de convecção (temperatura e umidade). No entanto, o estímulo olfativo, detectado pelas antenas e pelos palpos maxila- res, é o responsável pela atração a longa distância. Após 358 Capitulo 43 Fig. 43.4 - Mesonoto e asa de Culicidae. (A) Mesonoto de Culicini e Aedini, com estutelo trilobado; (6) asa de Culicini e Aedini, com escamas sem man- chas; (C) mesonoto de Anophelini, com escutelo simples; (O) asa de Anophelini com escamas claras e escuras formando manchas caracterís- ticas; (es = escutelo). Fig. 43.5 - Llangada" vista lateralmente, formada pelo conjunto de ovos de Culex quinquefasciatus. pousar no seu hospedeiro, as fêmeas introduzem as peças bucais no tecido graças a ação da maxila e apenas o lábio permanece fora da pele (Fig. 43.2). Durante a hematofagia, nas glândulas salivares dos mosquitos (e de todos insetos hematófagos) há produção da enzima apirase, cuja função é impedir a agregação plaquetária e aumentar a vasodilata- ção no ponto da picada, facilitando a hemorragia local e, conseqiientemente, uma alimentação mais rápida. A glân- dula salivar é também o local onde os parasitos (ex.: vírus do dengue, plasmódios) se reproduzem elou alojam para no- vamente infectar um novo hospedeiro. E durante a picada que o mosquito, injetando a saliva infectada com parasitos, transmite doenças como dengue e malária ao hospedeiro (ver Capítulo 58 - Exame de Vetores). Quanto à preferência alimentar, umas espécies são zoófilas estritas, isto é, só picam os animais (mamíferos ou aves); outras são antropofilicas, e ainda existem as espécies ecléticas, que podem picar homens e animais. Antigamente, a família Culicidae era composta por três subfamílias. Dessas, duas passaram a categoria de família - Chaoboridae e Dixidae - sem interesse médico e uma per- maneceu - Culicinae - com grande importância em para- sitologia. A subfamília Culicinae diferencia-se das demais por apresentar o aparelho bucal picador (sugador-pun- gitivo) e o corpo e as asas cobertos de escamas. Atualmen- te, apresentam apenas três subfamílias: Anophelinae, Adulto (hematofagia) Adulto Ovo b Larva Fig. 43.6 - Ciclo bioldgico dos Culicidae. Capitulo 43 359