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Bakhtin - Teoria Enunciado

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USP – UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO
Reitor: Prof. Dr. Adolpho José Melfi
Vice-Reitor: Prof. Dr. Hélio Nogueira da Cruz
FFLCH – FACULDADE DE FILOSOFIA,
LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS
Diretor: Prof. Dr. Francis Henrik Aubert
Vice-Diretor: Prof. Dr. Renato da Silva Queiroz
CONSELHO EDITORIAL ASSESSOR DA HUMANITAS
Presidente: Prof. Dr. Milton Meira do Nascimento (Filosofia)
Membros:Profª. Drª. Lourdes Sola (Ciências Sociais)
Prof. Dr. Carlos Alberto Ribeiro de Moura (Filosofia)
Profª. Drª. Sueli Angelo Furlan (Geografia)
Prof. Dr. Elias Thomé Saliba (História)
Profª. Drª. Beth Brait (Letras)
DEPARTAMENTO DE LINGÜÍSTICA
Chefe: Profª. Drª. Diana Luz Pessoa de Barros
Suplente: Profª. Drª. Esmeralda Vailati Negrão
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LINGÜÍSTICA
Coordenadora: Profª. Drª. Margarida Maria Taddoni Petter
Vice-Coordenadora: Profª. Drª. Ana Lúcia de Paula Müller
Vendas
LIVRARIA HUMANITAS-DISCURSO
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05508-900 – São Paulo – SP – Brasil
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HUMANITAS – DISTRIBUIÇÃO
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Humanitas FFLCH/USP – abril 2002
FFLCH/USP
2002
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ISBN 85-7506-060-0
UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO • FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS
Copyright 2002 da Humanitas FFLCH/USP
É proibida a reprodução parcial ou integral,
sem autorização prévia dos detentores do copyright
Serviço de Biblioteca e Documentação da FFLCH/USP
Ficha catalográfica: Márcia Elisa Garcia de Grandi CRB 3608
S715 Souza, Geraldo Tadeu
Introdução à teoria do enunciado concreto do círculo Bakhtin/
Volochinov/Medvedev / Geraldo Tadeu Souza.- 2. ed. - São Paulo :
Humanitas/FFLCH/USP, 2002.
149 p.
Originalmente apresentado como dissertação (mestrado) do
autor – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas/USP.
 ISBN �������������
1. Lingüística 2. Metalingüística 3. Bakhtin, Mikhail
Mikhailovich 4. Enunciados 5. Gêneros narrativos I. Título
 CDD 410
CDD 320.1
Editor Responsável
Prof. Dr. Milton Meira do Nascimento
Coordenação editorial e capa
Mª. Helena G. Rodrigues – MTb n. 28.840
Projeto Gráfico e Diagramação
Selma M. Consoli Jacintho – MTb n. 28.839
Revisão
do autor
HUMANITAS FFLCH/USP
e-mail: editflch@edu.usp. br
Telefax.: 3091-4593
A meus pais
A Vera
A Kim e ao Caíque

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Este trabalho foi apresentado como dissertação de mes-
trado ao Departamento de Lingüística da Faculdade de Filoso-
fia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo,
em abril de 1997.
Gostaríamos de agradecer aos Professores Doutores Irene
Machado e José Luiz Fiorin pelas contribuições e apreciação crí-
tica enquanto membros da banca examinadora e, ainda, ao Prof.
Dr. Boris Schnaiderman pela ajuda no cotejo com a edição russa
de algumas obras do Círculo e pela prosa sempre enriquecedora.
Agradecemos também à CAPES (Coordenação de Aperfei-
çoamento de Pessoal de Nível Superior) pela bolsa de estudos que
nos possibilitou executar esta dissertação e, especialmente, à Prof.
Dra. Elisabeth Brait que nos iniciou e orientou nas trilhas do
pensamento do Círculo.
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Introdução -------------------------------------------------------- 13
I - O Círculo Bakhtin/Volochinov/Medvedev ----------------- 19
1. Os textos disputados ------------------------------------- 24
2. O percurso teórico ---------------------------------------- 28
3. O problema da tradução --------------------------------- 42
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1. O subjetivismo idealista, o objetivismo abstrato
e o enunciado concreto ----------------------------------- 58
2. A frase e o enunciado concreto -------------------------- 68
3. O enunciado concreto como base material da
Metalingüística: o dialogismo ---------------------------- 73
III - A Teoria do Enunciado Concreto -------------------------- 85
1. Gêneros do Discurso ------------------------------------- 97
2. Tema ------------------------------------------------------ 108
3. Expressividade ------------------------------------------ 116
4. Estilos ---------------------------------------------------- 123
5. Entonações ---------------------------------------------- 129
Considerações Finais ------------------------------------------ 137
Bibliografia do Círculo Bakhtin/Volochinov/Medvedev --- 143
Bibliografia Geral----------------------------------------------- 147
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Em meio às vozes que assediam Bakhtin, uma pes-
quisa teórica pertinente e original
Beth Brait
(USP/PUC-SP)
A obra do pensador russo Mikhail Bakhtin tem sido, desde
há alguns anos, objeto da atenção em várias áreas do conheci-
mento. Esse interesse, gradativo e multifacetado, advém da ri-
queza de uma concepção de linguagem que pouco a pouco deixa
ver sua amplitude e suas aberturas para o contato com as infini-
tas nervuras que constituem as relações homem-mundo. E é nesse
conjunto que é preciso localizar a importância do trabalho de
Geraldo Tadeu Souza, inicialmente uma tese de mestrado que
agora, merecidamente, se transforma em livro, um objeto cultu-
ral cujas formas de circulação possibilitam uma repercussão mais
compatível com a profundidade da pesquisa.
É preciso, antes de falar do trabalho em si, e aí todos sabem
que o prefácio é uma pretensiosa antecipação do que está muito
melhor no texto, dizer que o interesse de Geraldo por Bakhtin e por
seu círculo começa bem antes do mestrado e está tendo continui-
dade no doutorado, o que pode dimensionar a motivação para esse
olhar com lupa sobre uma obra que, na maioria das vezes, serve,
especialmente num mestrado, como a simples pretexto para leitu-
ras de diversos objetos. Já na graduação, que tendo sido feita em
Lingüística possibilitou a passagem por várias teorias da lingua-
gem, por várias tendências dos estudos lingüísticos, o então estu-
dante optou por Bakhtin e por um maior conhecimento de sua
obra e das intrigantes assinaturas que aí surgiam.
No mestrado, integrado ao projeto maior “História dos Es-
tudos Enunciativos no Brasil: o papel de Bakhtin e Benveniste”
(CNPq/CAPES-COFECUB), por mim coordenado, passa a desen-
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volver pesquisas cujo objetivo principal era discutir a obra do
Círculo Bakhtin/Volochinov/Medvedev a partir do núcleo comum
que une esses teóricos russos em torno de uma mesma concep-
ção de linguagem e do seu produto: a obra verbal. De imediato a
tarefa mostrou as suas dificuldades, reveladas na questão das
traduções e da maneira como chegaram ao Ocidente e especial-
mente ao Brasil, no enigma da autoria, e mesmo na especifici-
dade conceitual apresentada por termos como sentido, significa-
ção, enunciado, enunciação, metalingüística ou translingüística.
A cada problema, Geraldo incluía, como bom pesquisador, um
item a seu trabalho, cada vez mais convencido de que realmente
um olhar com lupa se fazia necessário para uma melhor com-
preensão da concepção de linguagem, das propostas e das pers-
pectivas de análise abertas por Bakhtin e por seu círculo.
E é a partir desse mergulho reflexivo que Geraldo chega à
hipótese, central em sua pesquisa, de que o núcleo bakhtiniano se
empenha na elaboração de uma “Teoria do Enunciado Concreto e
de sua arquitetônica conceitual, a qual funciona como uma engre-
nagem dinâmica onde interagem, entre outros, os conceitos de
gêneros do discurso, tema, expressividade, estilo e entonação”. Para
atingir seu objetivo, o trabalho, em meio a muitos aspectos polêmi-
cos e difíceis de serem elucidados, discute a questãoda autoria,
considerando a individualidade intelectual de cada um dos mem-
bros, persegue a trajetória teórica do Círculo, levanta alguns pro-
blemas de tradução, incluindo as formas de participação de dife-
rentes pontos de vista científico com os quais o círculo vai dialogar,
como é o caso da Lingüística, do Formalismo, da Estilística, da
Fenomenologia, da História, do Marxismo e da Estética.
Como conseqüência dessa perseguição teórica, desse verda-
deiro trabalho de detetive que tanto pode colaborar para a discus-
são dos trabalhos assinados por Bakhtin e por outros componen-
tes do círculo, a reflexão sobre a metalingüística ou translingüística
aparece como uma espécie de análise dialógica do discurso, sem
que essa expressão tenha sido mencionada, nem pelos pensado-
res estudados e nem por Geraldo, para caracterizar a natureza da
investigação e a construção dos princípios conceituais que hoje,
das mais diferentes maneiras, tem penetrado os estudos sobre a
linguagem.

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“Quando estudamos o homem, buscamos e encontra-
mos o signo em toda parte e devemos tentar compreen-
der a sua significação” (23, 341).
“a scientific work never ends: one work takes up where
the others leaves off. Science is an endless unity. It cannot
be broken down into a series of finished and self-sufficient
works. The same is true of others spheres of ideology”
(7, 129-130).
“Life can be consciously comprehended only in concrete
answerability. A philosophy of life can be only a moral
philosophy. Life can be consciously comprehended only as
an ongoing event, and not as Being qua a given” (2, 56)
Um estudo aprofundado das obras do Círculo Bakhtin/
Volochinov/Medvedev nos leva ao encontro de uma série de trans-
formações sociais, científicas e culturais que tiveram curso na
Rússia no período em que elas foram elaboradas – anos 20 aos
anos 70 deste século. Se tomarmos algumas observações cons-
tantes na extensa obra desse Círculo e concordarmos com elas,
perceberemos que “cada época e cada grupo social têm seu re-
pertório de formas de discurso na comunicação sócio-ideológica”
(10, 43), e nosso intuito aqui, é de tentar observar o repertório de
discursos científicos com os quais o Círculo dialogava.
Nosso objetivo é tentar descobrir como um grupo de inte-
lectuais, cujo líder Mikhail Bakhtin foi exilado durante o expur-
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go de 1928, promovido por Stalin, conseguiu manter viva a in-
vestigação da heterogeneidade discursiva numa época de
homogeneidade1 , e penetrando nesse sistema como um vírus,
metamorfoseando-se em caráter marxista, construir uma obra
de tal qualidade que, ainda hoje, seus parâmetros teóricos per-
manecem novos.
Para desenvolver essa dissertação tivemos que escolher
um tema, dentre muitos, para perseguir o fio que leva a uma
reflexão em torno do todo concreto da obra do círculo. Nos deti-
vemos, então, no percurso de elaboração de uma Teoria do Enun-
ciado Concreto. Não devemos esquecer que a base de investiga-
ção do círculo é o pensamento concreto. Nesse sentido, o enun-
ciado que será a base deste texto é o enunciado concreto, dialógico
– interior e exterior, cotidiano, artístico, o enunciado enquanto
um acontecimento na existência, um acontecimento social.
Essa investigação dialógica nos incita a pensar o todo do
objeto de análise como um objeto vivo. Então, a sua natureza,
além de dialógica, deve ser tridimensional obedecendo aos se-
guintes aspectos que compreendem um todo orgânico:
1) o micro-diálogo, ou seja, o diálogo interior a cada uma
das obras do Círculo;
2) o diálogo exterior, o diálogo com o outro composicio-
nalmente expresso e que é inseparável do diálogo inte-
rior;
3) o grande diálogo das obras como um todo.
Essa metodologia de análise vai nos ajudar a acompanhar
as características imanentes à cada obra; as relações que unem
uma obra a outra, e, finalmente, a compreender as relações que,
1 Nos referimos aqui ao período posterior às manifestações concretas
da heterogeneidade discursiva que dava o tom ao período revolucio-
nário até o início dos expurgos stalinistas de 1928.
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existentes entre as obras, não foram objetificadas, e que se tor-
naram um dos fortes argumentos para atribuir o todo das obras,
ou como preferem outros, todas as obras, a Mikhail Bakhtin.
Mas a intenção de elaborar uma investigação concreta dos
fatos da linguagem, ou seja, da vida verbal, traz no seu bojo a
crítica a outras construções científicas, que se norteiam pelo
pensamento abstrato ou idealista na análise dos fatos da lin-
guagem como: a lingüística, a psicologia, a estética e a estilística.
Essas críticas têm uma característica importante: não retirar a
legitimidade dessas ciências no interior de um pensamento abs-
trato ou idealista, mas de complementá-las com uma aborda-
gem de outra natureza – fenomenológica, histórica, sociológica,
dialógica – no âmago da realização concreta da palavra, do sig-
no, do discurso, enfim, do enunciado concreto.
A abordagem dos fatos concretos da linguagem implica
uma série de dificuldades, visto que é preciso um mínimo de
estabilidade para que o investigador encontre uma base para
apoiar sua interpretação desses fatos. Por outro lado, nós, en-
quanto participantes de uma comunidade discursiva determi-
nada, desenvolvemos uma capacidade de compreender os enun-
ciados dos outros membros dessa comunidade, e sabemos como
respondê-los, ou seja, entendemos, em um certo nível, o funci-
onamento dinâmico dessa comunidade e nos comunicamos com
ela, não passivamente, mas como um membro ativo.
O que as obras do Círculo nos mostram é o esforço de des-
cobrir qual é o papel da linguagem em cada acontecimento da
existência humana: na vida cotidiana, na arte, na ciência, na
religião de uma época determinada. Essa compreensão sincrônica
da linguagem nos permite identificar numa série diacrônica, pelo
conhecimento de fatos anteriores dessa sociedade, a evolução
dessa sociedade, do ponto de vista econômico à realidade lingüís-
tica, das relações sociais aos gêneros do discurso.
Embora a maioria das obras tratem do enunciado literário,
os enunciados concretos que servem como base para as investi-
gações do Círculo, que compõem os gêneros primários, são os
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enunciados cotidianos, tomadas as ressalvas feitas por Volochinov
no ensaio “A estrutura do Enunciado”2 devido a recorrência ao
enunciado cotidiano em sua representação literária: “o procedi-
mento que consiste em analisar um enunciado como se ele fosse
um enunciado cotidiano e atestado na história é, evidentemente,
perigoso de um ponto de vista científico, e ele não pode ser utili-
zado senão excepcionalmente. Mas na ausência de um registro
no gramofone, que nos forneça um documento autêntico sobre
as conversas de personagens vivos, se deve recorrer ao material
literário, levando em conta, naturalmente sua natureza específi-
ca” (16, 309). Atualmente, esse problema pode ser contornado
com a utilização de materiais gravados como os do projeto NURC/
USP por exemplo, ou numa perspectiva mais contemporânea, os
enunciados cotidianos virtuais, desenvolvidos concretamente por
intermédio de INTERNET, telefones, etc.
Na hora de escrever a monografia que trata da obra desses
excepcionais teóricos russos, alguma coisa ainda nos impede de
iniciar a tarefa. Buscamos maiores referências, tornamos a ler
algumas coisas, e mesmo assim, não nos damos por satisfeitos.
Muito vai ficar de fora, pois o trabalho de pesquisador não encon-
tra, ainda, um eco estável na escrita, não assumiu um gênero,
um tom, um estilo, enfim, um enunciado concreto.
A hora da criatividade, de remexer o “dado” e transformá-lo
no criado, no ato fenomenológico, único, que tornará forma a
seguir, reflete uma preocupação: levantar questões para discus-
são da obra, primeiro no interior do Círculo (de uma maneira um
tanto monológica,mas que se justifica para tentar perceber no
seu mais alto grau a dimensão das idéias desses teóricos), e de-
pois, deixar a impressão dialógica que modifica, transforma e
retransmite idéias que, nos anos 20 deste século, principiaram
no interior da União Soviética, e que se renovam agora na “grande
temporalidade” onde nada está morto.
2 Ou “A construção do Enunciado” [Constrúctzia viskázivania]
(33, 19).
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Nossa proposta, então, é de discutir no interior do todo da
obra do Círculo Bakhtin/Volochinov/Medvedev as seguintes
abordagens:
1) a polêmica em torno da autoria das obras;
2) os pontos de vista que eles utilizam para investigar o
enunciado concreto;
3) quais os conceitos que permitem uma interpretação do
enunciado concreto.
A princípio, discutiremos o “Círculo Bakhtin/Volochinov/
Medvedev” e alguns pontos de vista de estudiosos franceses, ame-
ricanos e brasileiros sobre esse tema, bem como os problemas de
autoria dos textos, o percurso teórico e os problemas de tradu-
ção. Na segunda parte, abordaremos o problema da linguagem e
algumas dificuldades conceituais em relação a esse estudo. E por
fim, na terceira parte, trataremos da Teoria do Enunciado Con-
creto que se articula, na obra desses teóricos, em torno dos con-
ceitos Gêneros do Discurso, Tema, Expressividade, Estilos e
Entonações, numa perspectiva ética, fenomenológica, histórica,
sociológica e dialógica.
 Não temos o intuito de apresentar aqui uma investigação
aprofundada dos fatos que encontramos, e sim, dar uma intro-
dução ao pensamento do Círculo nos limites de uma Teoria do
Enunciado Concreto. Acreditamos ser essa uma forma de cha-
mar a atenção para o todo da obra, ao invés de permanecer em
investigações onde essa mesma obra tem um valor periférico –
seja no estruturalismo francês ou na Análise do discurso de li-
nha francesa, com o aproveitamento legítimo de uma ou outra
obra do círculo. Nosso intuito é mesmo de provocar discussões,
de dialogar, de polemizar, e se conseguirmos esse feito, essa
monografia terá cumprido sua finalidade.
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“Nosso estudo poderá ser classificado de filosófico so-
bretudo por razões negativas. Na verdade, não se trata
de uma análise lingüística, nem filológica, nem literária,
ou de alguma outra especialização. No tocante às razões
positivas, são as seguintes: nossa investigação se situa
nas zonas limítrofes, nas fronteiras de todas as discipli-
nas mencionadas, em sua junção, em seu cruzamento”
(23,329).
O encontro de Bakhtin, Volochinov e Medvedev ocorreu,
provavelmente, na Universidade de Petrogrado, ou São Peters-
burgo3 . Nessa universidade, Bakhtin estudou no Departamento
de Letras Clássicas, no período 1914-1918, e Volochinov e Med-
vedev se formaram na Faculdade de Direito.
Era muito comum na Rússia, nessa época, a cultura dos
Círculos. Bakhtin e Volochinov participaram do Círculo de Nevel
(1918-1920), e Medvedev se juntou ao grupo no Círculo de Vitebsk
(1921-1924), onde foi ser reitor da Universidade Proletária, de-
pois de ter sido voluntário do Exército Russo na I Guerra Mun-
dial. São dessa época as publicações da fase fenomenológica de
Bakhtin – “Arte e Responsabilidade” (1919) e “Sobre a Filosofia
3 A cidade de São Petersburgo teve seu nome alterado durante a
Revolução Russa para Petrogrado, e posteriormente para Leningrado.
Hoje, ela voltou a ser chamada pelo nome anterior a revolução.
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do Ato” (1919-1921)- os quais, numa abordagem ético-fenome-
nológica, tratam das relações da vida cotidiana e da vida da arte
na unidade da pessoa responsável por seus atos.
Em 1922, Medvedev retorna a Petrogrado para trabalhar
na Editora do Estado. Mais ou menos no mesmo período,
Volochinov volta a Universidade de Petrogrado para se graduar
na Faculdade de Filologia. Bakhtin consegue ir para Petrogrado,
em 1924, após receber uma pensão do estado devido às compli-
cações de sua saúde, não sem antes terminar os ensaios “O
autor e o herói” (1922-1924) e “O Problema do conteúdo, do
Material e da Forma na Criação Literária” (1924).
É em Leningrado, ou no Círculo de Leningrado (1924-1929)
conforme aponta a biografia de Michael Holquist e Katerina Clark,
que o Círculo Bakhtin/Volochinov/Medvedev publica a maioria
de seus livros e ensaios. E são, também, essas publicações que
se tornaram, posteriormente, alvo da polêmica em torno da au-
toria.
Algumas observações sobre Volochinov nessa biografia,
levam-nos a duvidar de que ele não seja o autor dos ensaios e
obras publicados com seu nome. Durante esse período do Cír-
culo de Leningrado, ele se graduou na Faculdade de Filologia da
Universidade de Petrogrado, em 1927, e desenvolveu trabalhos
de metodologia dos estudos literários no Instituto de História
Comparada de Literatura e Línguas do Oeste e do Leste. Esse
Instituto “representava uma “aproximação marxista nova” aos
estudos lingüísticos, que contestava outras formas de aborda-
gem como a Formalista” (34, 110). Há, ainda, a informação de
que Volochinov se tornou marxista no mesmo ano, embora nunca
tenha sido membro do partido comunista, e que o tema de sua
dissertação tenha sido, provavelmente, o problema do discurso
citado4 .
4 O problema do discurso citado – enunciado de outrem – é um dos
eixos fundamentais na articulação da Teoria do Enunciado Concreto
desenvolvida pelo Círculo.
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As obras assinadas por Volochinov e Medvedev nesse pe-
ríodo caracterizam-se, realmente, por uma aproximação marxis-
ta nova dos estudos da linguagem, acrescentando aos estudos
histórico-fenomenológicos de Bakhtin – se pensarmos no todo da
obra do Círculo – uma abordagem sociológica – o método socioló-
gico- e ideológica – o marxismo- e também um aprofundamento
das críticas à psicologia, à lingüística e ao formalismo, como tam-
bém, à aplicação da metodologia dessas disciplinas aos estudos
literários.
É no interior desse projeto que podemos compreender os
livros assinados por Volochinov – Freudianism. A critical Sketch
(1927) e Marxismo e Filosofia da Linguagem (1929), bem como o
livro assinado por Medvedev – The Formal Method in Literary
Scholarship. A Critical Introduction to Sociological Poetics (1928),
sem nos esquecermos de que essa abordagem já se prenunciava
no ensaio “Le discours dans la vie et le discours dans la poésie”
(1926), o qual também era assinado por Volochinov. Todos esses
textos, além dos outros ensaios de Volochinov – “Beyond the So-
cial” (1925) e “The Latest Trends in Linguistic Thought in the
West” (1928) – formam o todo dos textos cuja autoria é atribuída
a Bakhtin, embora nunca tenha havido uma confirmação de sua
parte quando indagado sobre esse problema5 .
Essa aplicação do método sociológico, no seu viés marxis-
ta, presente nas obras de Volochinov e Medvedev, não aparece na
obra de Bakhtin, caracterizada em interação com o marxismo.
Ele reconhece a importância do método sociológico e sua aplica-
ção à análise da obra literária – e é o que ele faz em Problemas da
Obra de Dostoievski (1929) e em “Rabelais na História do Realis-
mo” (1940), mas não se encontram nessas obras, com sua assi-
natura, referências ao marxismo. Talvez tenha sido esse um dos
motivos de sua prisão em 1929 e seu exílio para Kustanai em
1930, por quatro anos. E também, o fato de, ao final do exílio, ele
5 No Prefácio de Marxismo e Filosofia da Linguagem, Jakobson inclui
o ensaio de 1930 – “A estrutura do enunciado” – entre as obras em
disputa (28, 9).
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ter que pedir permissão e obter autorização para qualquer movi-
mentação no interior do país, no que contava com a ajuda de
Medvedev para interceder em seu favor junto às autoridades.
Durante o período de exílio de Bakhtin, Volochinov de-
senvolveu carreira acadêmica como professordo Instituto Peda-
gógico Herzen, e como pesquisador senior do Instituto Estatal
para Dialetos Culturais. Com o agravamento da tuberculose,
que o acompanhava desde 1914, ele veio a falecer em 1936.
Medvedev se tornou professor titular do Instituto Históri-
co e Filológico de Leningrado, do Instituto Pedagógico Herzen –
o mesmo onde Volochinov lecionou –, e da Academia Militar
Tolmachev, onde foi chefe do Departamento de Literatura. Em
1937, ele foi preso durante um expurgo, provavelmente, na Fa-
culdade da Academia Militar e veio a falecer em 1941 em local
desconhecido (34, 264-265).
Bakhtin lecionou, a partir de 1936, no Instituto Pedagógi-
co da Mordóvia, em Saransk, no Departamento de Literatura
Mundial, onde era o único professor. Apesar do seu passado
político, Bakhtin conseguiu fazer conferências sobre Shakespeare
na Casa da Literatura, em Moscou (1940), e sobre “O Discurso
no Romance” (1940)6 e “O romance como gênero literário (1941)7
no Departamento de Teoria Literária e Estética do Instituto Gorki
da Literatura Mundial, também em Moscou (34, 262).
Em setembro de 1941, quando já era o único sobrevivente
do Círculo a que se refere nossa pesquisa, Bakhtin começou a
lecionar alemão em Savelovo, sendo autorizado a lecionar russo,
a partir de setembro de 1945. É nesse período – II Guerra Mun-
6 O ensaio sobre esse tema, com o mesmo nome, tinha sido escrito por
Bakhtin entre 1934 e 1935 (17).
7 Segundo a biografia de Holquist e Clark, esta conferência foi desdo-
brada em dois artigos: “Da Pré-história do discurso romanesco” (1940)
e “Epos e Romance (Sobre a metodologia do estudo do romance)”
(1941), que estão incluídos em Questões de Literatura e de Estética. A
teoria do Romance (1993) (20).
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dial – que ele escreve, entre outros ensaios, a sua dissertação de
doutorado para o Instituto Gorki de Literatura, com o título
“Rabelais na História do Realismo”8. Holquist e Clark dizem:
“Bakhtin nunca foi, formalmente, um estudante graduado pelo
instituto, mas ele se beneficiou do direito que tinha de apresentar
um trabalho para a pós-graduação, mesmo sem ter feito os estu-
dos formais de graduação” (34, 263). Esse fato talvez tenha leva-
do a banca examinadora a conceder-lhe o título de “candidato a
doutor” (34, 324) quando da apresentação da referida disserta-
ção.
Bakhtin retorna a suas funções de professor do Instituto
Pedagógico da Mordóvia, em Sarank, no departamento de Litera-
tura Geral, aí permanecendo de 1945 a 1961, quando se aposen-
ta por problemas de saúde. É dessa época o ensaio “Os gêneros
do Discurso” (1952-1953).
A partir de 1960, um grupo de estudantes do Instituto Gorki,
que tinham redescoberto o livro de Dostoievski e a dissertação
sobre Rabelais nos arquivos deste instituto, começa a fazer es-
forços para sua republicação. Ao descobrirem que Bakhtin ainda
vivia, entram em contato com ele e discutem a possibilidade de
republicação dessas obras. Bakhtin inicia, então, uma revisão do
livro sobre Dostoievski entre 1961 e 1962, o qual é publicado
com sucesso, em 1963, como Problemas da Poética de Dostoiévski.
O mesmo ocorre com a sua dissertação sobre Rabelais, publica-
da em 1965 com o título A cultura popular na Idade Média e no
Renascimento: o contexto de François Rabelais.
Bakthin dedica seus últimos anos à revisão de seus textos
que acabam sendo publicados postumamente em Questões de
Literatura e de Estética. A teoria do Romance (1975) e Estética da
Criação Verbal (1979), vindo a falecer em 07 de março de 1975
após sérias complicações de seu estado de saúde.
8 Uma versão revisada dessa dissertação foi publicada em 1965, com o
título A cultura popular na Idade Média e no Renascimento. O contexto
de François Rabelais (19)
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Há um assunto que permanece obscuro na história das
obras do Círculo Bakhtin/Volochinov/Medvedev: a questão da
autoria de algumas das obras. Intricados caminhos, que mais
parecem uma empreitada para Sherlock Holmes, levam à ques-
tão do “inacabamento”, deixando o “diálogo inconcluso” pela
impossibilidade mesma da assinatura do autor para dar fim à
polêmica.
De um lado pesquisadores como Michael Holquist e Katerina
Clark, que em sua biografia de Bakhtin – Mikhail Bakhtin (1984)
– assumem que todas os textos disputados são de Bakhtin. Eles
apresentam “provas” que confirmam essa hipótese, chegando a
dizer que não podem revelar certas fontes. Por outro lado pesqui-
sadores como I. R. Titunik, Gary S. Morson e Caryl Emerson, que
questionam todas as argumentações de Holquist e Clark, referin-
do-se à biografia deles como uma espécie de “hagiografia” e não
uma simples “biografia”, considerando que as obras “disputa-
das” são de Volochinov e Medvedev, conforme publicadas na pri-
meira edição das obras e artigos em disputa.
Assim, por exemplo, Marxismo e Filosofia da Linguagem é
atribuída apenas a Volochinov no original russo (8) e na versão
inglesa (11), e nas edições francesa (9) e brasileira (10) apare-
cem com as duas assinaturas – Bakhtin (Volochinov). No prefá-
cio dessa obra, Roman Jakobson diz: “Acabou-se descobrindo
que o livro em questão e várias outras obras publicadas no final
dos anos vinte e começo dos anos trinta com o nome de
Volochinov – como, por exemplo, um volume sobre a doutrina
do freudismo (1927)9 e alguns ensaios sobre a linguagem na
vida e na poesia, assim como sobre a estrutura do enunciado10
9 Ver Volosinov, V. N. (1927) Freudianism. A Critical Sketch (6).
10 Estes ensaios estão publicados em Todorov, T. Mikhaïl Bakhtine. Le
principe dialogique. Suivi de écrits du cercle de Bakhtine: “Le discours
dans la vie e le discours dans la poésie” (5, 181-215); e “La structure
de l’énoncé” (16, 287-316) com a assinatura de Volochinov.
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– foram na verdade, escritos por Bakhtin (1895-1975) […] Ao
que parece, Bakhtin recusava-se a fazer concessões à fraseologia
da época e certos dogmas impostos aos autores” (28,9)11 .
Na introdução do mesmo livro, Marina Yaguello trata essa
questão como fonte de um desejo de Volochinov e Medvedev,
discípulos de Bakhtin, em ajudá-lo, pois devido à oesteomielite,
ele estava impossibilitado de trabalhar regularmente (29,11)12 .
Valendo-se de argumentos do professor V.V. Ivánov, Yaguelo
divulga dois motivos pelos quais Bakhtin aceitara a publicação
de suas obras sob o nome de seus discípulos: “em primeiro lu-
gar, Bakhtin teria recusado as modificações impostas pelo edi-
tor; de caráter intransigente, ele teria preferido não publicar do
que mudar uma vírgula; Volochínov e Medviédiev ter-se-iam,
então, proposto a endossar as modificações. A outra ordem de
motivos seria mais pessoal e ligada ao caráter de Bakhtin, ao
seu gosto pela máscara e pelo desdobramento e também, pare-
ce, à sua profunda modéstia científica” (29,12). De qualquer
maneira, “é difícil afirmar com exatidão quais as partes do texto
que se devem a Volochínov. Sempre segundo o professor Ivánov,
que deve a informação ao próprio Bakhtin, o título e certas par-
tes do texto ligadas à escolha deste título são de Volochínov”
(29,13).
Vejamos como alguns pesquisadores brasileiros têm se
posicionado sobre essa questão polêmica. O professor Boris
Schnaiderman conta que em sua viagem a Rússia, em 1972, teve
oportunidade de visitar Bakhtin, acompanhado do semioticista
russo V. V. Ivanov – o mesmo citado por Jakobson e Yaguello.
Após esse encontro, Ivanov transmitiu a ele “com muita convic-
ção, a versão de que vários livros assinados por membros do
11 Jakobson não faz referência a obra The Formal Method in Literary
Scholarship que também é alvo de disputa. A edição americana a
atribui a Bakhtin e Medvedev (7).
12 Os dados constantes da biografia revelam o contrário, Bakhtin sempre,
apesar das condições políticas desfavoráveis, conseguiu continuar o
seu trabalho.
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grupo de Bakhtin, seriam, na realidade,da autoria deste […] se-
gundo Ivanov, no período em que Bakhtin caiu em desgraça13 , os
livros assinados pelos seus amigos propiciaram-lhe alguns re-
cursos para a manutenção” (33, 10-11). Para o professor Boris,
“esta tese encontrou também alguns opositores. Em todo caso,
na minha opinião, torna-se difícil para nós outros, com a nossa
indigência bibliográfica, o nosso desconhecimento das circuns-
tâncias em que os fatos ocorreram, emitir opinião categórica so-
bre este assunto, por mais que simpatizemos com esta ou aquela
versão” (33,20).
Flavio R. Kothe (1977), em “A não-circularidade do Círculo
de Bakhtine”, critica em nota a atribuição de Marxismo e Filosofia
da Linguagem a Bakhtin na edição francesa. Segundo esse pes-
quisador, “mesmo que tenha havido uma forte influência de Bakh-
tine, há diferenças entre este e Volosinov, diferenças que seriam
incoerências caso a tese francesa prevalecesse” (27,19)14 .
Em “Bakhtin e a sabedoria” (1988), Luiz Roncari apresenta
a questão da autoria da seguinte maneira: “… creio que uma
consideração de princípio aqui também se faz necessária: é a da
relatividade da autoria individual na concepção dialógica de
Bakhtin. Ele mesmo não se preocupa muito em enclausurar en-
tre aspas todas suas citações […] Assume muitas delas, que de-
pois encontramos em outros autores, principalmente entre críti-
cos e teóricos russos da época, como “idéias do tempo”, idéias
difundidas e comentadas e que já não se ligam mais a fontes e
autores originais” (35,41).
Para Beth Brait (1994), “se restam pouquíssimas dúvidas
sobre a atribuição das obras a Bakhtin, especialmente por ele
ser o pensador do grupo, não há como negar que, mesmo a
13 Bakhtin foi preso, em 1929, por motivos religiosos, acusado de cons-
pirar contra a revolução (34, 141).
14 O pesquisador se orienta pela edição alemã – Marxismus und
Sprachphilosophie – que, assim como a edição inglesa – atribui esse
livro apenas a Volochinov (27,19)
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circunstância biográfica especial faz retornar, e de forma bas-
tante concreta, a questão das vozes que estão disseminadas na
configuração de um discurso” (41,14). Irene Machado (1995) no
mapeamento das obras de Bakhtin revela: “além disso, há os
escritos polêmicos que, embora tenham sido publicados com os
nomes de V. N. Volochinov e P. N. Miedviediév, acredita-se se-
rem de Bakhtin” (43,26).
A polêmica em torno da autoria consegue um feito que
merece destaque: tornar-se um exemplo concreto da própria
teoria dialógica que envolve o todo da obra do Círculo Bakhtin/
Volochinov/Medvedev. Nesse sentido, é importante considerar
o que se chama hoje de Dialogismo como uma obra de várias
vozes – Mikhail Mikhailovich Bakhtin, Valentin Nikolaevich
Volochinov e Pavel Nikolaevich Medvedev, preservando a auto-
ria sob a qual cada obra foi originalmente publicada, ou mesmo
editá-las como fruto do diálogo desses três pensadores como
tem ocorrido com algumas dessas obras em edição francesa,
inglesa e brasileira.
Embora essa polêmica nunca tenha sido definitivamente
resolvida, não há dúvida do prestígio de Bakhtin, hoje, como um
dos mais importantes pensadores do século XX. É em torno de
sua personalidade que são publicadas biografias e estudos valio-
sos sobre a obra do Círculo, buscando ora um princípio dialógico
(Todorov), ora uma arquitetônica da respondibilidade ou respon-
sabilidade (Holquist), ou, ainda, uma criação da prosaica (Morson),
uma teoria da cultura, uma teoria da ideologia etc… enfim, um
número infinito de aproximações que só se tornam possíveis quan-
do estamos diante da obra dos grandes filósofos.
De qualquer forma, não podemos esquecer da interação
orgânica que une Bakhtin, Volochinov e Medvedev, que para nós
está articulada no interior de uma Teoria do Enunciado Concre-
to. Nesse sentido, não podemos apagar os nomes de Volochinov e
de Medvedev do todo da obra, sob o risco de estarmos sendo
precipitados. Em primeiro lugar, porque eles continuam a apare-
cer na capa das obras disputadas, nem que seja entre parênte-
28
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ses, bem como em outros ensaios de Volochinov que, mesmo não
sendo alvo de disputa, conservam, em grande parte, como todos
os escritos do Círculo, uma relação dialógica com a evolução do
pensamento teórico do grupo e com suas propostas básicas. E
em segundo lugar, se formos coerentes com a teoria da lingua-
gem desenvolvida por esses três pensadores, devemos concordar
que o nosso próprio enunciado é um enunciado citado de ou-
trem, e a cada momento único em que criamos um enunciado,
uma obra, mesmo que repetindo as mesmas palavras do outro,
estamos assinando um ato responsável e renovando, não o prin-
cípio adâmico da autoria, mas a palavra do outro numa relação
dialógica de concordância e de evolução.
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O projeto do Círculo encontra suas primeiras formulações
em Toward a Philosophy of the Act (1919-1921). Nesse ensaio,
Bakhtin investiga a natureza do ato ou da ação em sua realização
efetiva, concreta e apreciativa, por um ato consciente, na realida-
de única, concreta e irrepetível, ou seja, a compreensão do ato no
seu sentido completo. Essa perspectiva, ética e histórico-
fenomenológica, se opõe à divisão entre duas correntes de pensa-
mento: a primeira – pensamento abstrato – que propõe uma in-
vestigação do sentido objetivo, e a segunda – pensamento idealis-
ta – que investiga o processo subjetivo que engendra um ato con-
creto.
A interação orgânica entre essas duas correntes de pensa-
mento vai encontrar eco no que Bakhtin chama de Arquitetônica.
Para ele, o mundo é dividido em uma arquitetônica apreciativa
entre o “eu” – o contemplador, que se situa fora da arquitetônica
e – e os outros – fundados por esse “eu”, e que se encontram no
interior da arquitetônica. Nesse sentido, Bakhtin define o seu
projeto, que mais tarde será incorporado pelo Círculo, da seguin-
te maneira:
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“Não é nossa intenção construir um sistema de valores logica-
mente unificado com o valor fundamental – minha participação
no ser – situada na cabeça, ou, em outras palavras, construir
um sistema ideal de vários valores possíveis. Nem propomos
fornecer uma transcrição de valores que têm sido realmente, e
historicamente reconhecidos pela humanidade, com intuito de
estabelecer tais relações lógicas entre eles como subordinação,
co-subordinação, etc., isto é, com intuito de sistematizá-las. O
que pretendemos fornecer não é um sistema, e nem um inven-
tário sistemático de valores, onde conceitos puros (idênticos em
conteúdo) estão interconectados na base de uma correlação ló-
gica. O que pretendemos fornecer é uma representação, uma
descrição da arquitetônica concreta e real do mundo experien-
ciado, governado por valores – não com uma base analítica na
cabeça, mas com esse centro concreto, real (espacial e tempo-
ral) no qual os valores, as asserções, e os atos acontecem ou se
dão, e onde os membros constituintes são objetos reais,
interconectados por relações de eventos concretos na única ocor-
rência do evento do ser (nesse contexto as relações lógicas cons-
tituem apenas um momento junto aos momentos concreto, es-
pacial, temporal, e emotivo-volitivo)” (2, 61).
Esse projeto de buscar no acontecimento real os funda-
mentos de sua teoria já embute uma reflexão em torno da rela-
ção eu/outro na esfera de uma arquitetônica do valor, ou
“arquitetônica apreciativa”. Nessa arquitetônica, o homem, a sua
consciência, é um centro concreto de valores. Sendo assim, o
estético se complementa com o extra-estético, o verbal com o
extra-verbal, na unidade do homem que experiencia a vida, a
ciência e a arte. Para Bakhtin, “tudo neste mundo adquire sig-
nificação, sentido e valor somente em correlação com o homem
– com isso que é humano” (2, 61). A arquitetônica de um acon-
tecimento, por exemplo, um enunciado concreto, não é acabada
nem rígida; ela possui estabilidade apenas nacriação e na
respondibilidade do meu ato.
Essa forma de se relacionar com o mundo, essa estética
arquitetônica da relação eu/outro se desenvolve na obra do Cír-
30
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culo como uma Estética da Criação Verbal. A dimensão do criado
reside na esfera do enunciado único e concreto, que tem um au-
tor – um criador que se utiliza do dado (a língua, os outros enun-
ciados) –, um destinatário – real ou virtual, um gênero do discur-
so relacionado com alguma atividade humana, um estilo e uma
entonação determinadas no interior de um tema e em interação
orgânica com esse gênero do discurso.
Essa representação da arquitetônica real, que Michael
Holquist chama de Arquitetônica da Respondibilidade ou da
Responsabilidade, nos fornece a natureza do projeto que será
desenvolvido pelo Círculo: a investigação do enunciado concre-
to. É essa visão do particular, do evento único criado – estético
– como um acontecimento ético, fenomenológico, histórico, so-
ciológico, psicológico, dialógico, etc. que compõe, em linhas ge-
rais, o projeto do Círculo e seus desdobramentos.
O eixo que nos permite aprofundar no percurso teórico do
Círculo é a investigação do enunciado artístico concreto como
um acontecimento sociológico. É nesse sentido que, durante a
leitura das obras do Círculo Bakhtin/Volochinov/Medvedev,
percebemos a presença de um “método sociológico” aplicado à
literatura – poética sociológica, à psicologia – psicologia objeti-
va, e à ciência da linguagem – metalingüística. Esse método,
anterior a Revolução de 1917, foi desenvolvido por, entre ou-
tros, G. V. Plekhanov (1856-1918), com intuito de “fundar uma
nova ciência da literatura baseada nos estudos contemporâ-
neos em sociologia” (1,322-323). Participavam do grupo de
Plekhanov os seguintes críticos: V. M. Friche (1870-1929), P. N.
Sakulin (1868-1930), e V. F. Pereverzev (1882-1958).
Em 1924, no ensaio “O Problema do Conteúdo, do Mate-
rial e da Forma na Criação Literária”, Bakhtin reconhece a im-
portância de tal método, embora pense que seu significado cien-
tífico ultrapasse os limites de uma análise estética: “mas tanto o
elemento ético como também o cognitivo podem ser isolados e
transformados em objeto de uma investigação independente,
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ético-filosófica ou sociológica, o qual pode também tornar-se
objeto de apreciações atuais, morais ou políticas (apreciações
secundárias e não primárias, também indispensáveis para a con-
templação estética)” (4,43).
Ainda nesse ensaio, começam a aparecer referências ao
Método sociológico. Podemos dizer que esse ensaio se situa na
fronteira entre as discussões fenomenológicas e éticas da obra
de arte, isto é, do enunciado artístico concreto, e um enfoque
sociológico do acontecimento ético que transcende os limites da
estética, ou seja, extra-estético. Esse método, na concepção de
Bakhtin, teria as seguintes tarefas:
a) transcrever o acontecimento ético no seu aspecto so-
cial, já vivido e avaliado empaticamente na contempla-
ção estética;
b) sair dos limites do objeto e introduzir o acontecimento
em ligações sociais e históricas mais amplas; e
c) ultrapassar os limites da análise propriamente estéti-
ca. (4, 43).
Esse embrião de aplicação do método sociológico à poéti-
ca, ou seja, ao enunciado artístico concreto, será retomado e
detalhado nas obras posteriores do círculo, no desenvolvimento
de uma poética sociológica, de uma estilística sociológica, de
uma psicologia social objetiva, enfim, de uma Sociologia do Dis-
curso. Esse ponto de vista exterior ao objeto será utilizado, tam-
bém, na problematização de sua aplicação à ciência da lingua-
gem.
Discutiremos a seguir alguns aspectos importantes da
aplicação do método sociológico, como aparecem na obra de
Bakhtin, Volochinov e Medvedev, retomando o lugar de uma
Teoria do Enunciado Concreto nesse ponto de vista de investi-
gação da linguagem artística, científica e cotidiana.
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O ensaio de Volochinov, “Le discours dans la vie et le
discours dans la poésie” (1926) tem por subtítulo “Contribution
à une poétique sociologique” e trata das possibilidades de apli-
cação desse método aos problemas colocados pela “Poética his-
tórica”, ou seja, ao “conjunto de problemas que tratam da forma
artística vista sob seus diferentes aspectos (o estilo, etc.)” (5,181).
Volochinov critica opinião partilhada por alguns marxistas, de
que “o método sociológico é verdadeiramente legítimo quando a
forma poética artística, enriquecida pelo aspecto ideológico –
isto é, pelo conteúdo –, começa a se desenvolver historicamente
no quadro da realidade social exterior; quanto à forma, tomada
nela mesma, ela possui sua natureza própria e se determina
segundo leis específicas, que são artísticas e não sociológicas”
(5,181). Essa ruptura entre forma e conteúdo provoca, segundo
Volochinov, uma ruptura entre teoria e história, que contraria o
próprio fundamento do método marxista – o seu monismo, ou
seja, o que se aplica ao todo pode ser aplicado às suas unida-
des, e o seu historicismo. A forma e o conteúdo estão, na pers-
pectiva do Círculo, sempre em interação orgânica.
Nesse mesmo ensaio, Volochinov analisa uma obra do pro-
fessor Sakulin15 – O método sociológico nos estudos literários –
de 1925, na qual Sakulin distingue dois pontos de vista para
estudar a literatura e sua história: 1) a série imanente (interior)
– que possui uma estrutura e uma determinação específicas e
próprias, e que evoluem de forma autônoma, segundo sua na-
tureza; e 2) a série causal – ação do meio social extra-artístico. O
primeiro deve ser estudado pelo método formal, e o segundo,
que considera a literatura como um fenômeno social, deve ter a
sua causalidade estudada pelo método sociológico.
Volochinov propõe, então, um outro viés marxista para o
método sociológico, no sentido de dotar a estrutura “imanente”
do enunciado artístico de uma orientação sociológica. Para ele,
“a ciência da ideologia, de acordo com a essência do objeto que
15 Como já informamos anteriormente, P. N. Sakulin fazia parte do
grupo de Plekhanov.
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ela estuda, não pode pretender o rigor e a precisão das ciências
naturais. Mas, voltada ao método sociológico, entendido segundo
sua acepção marxista, ela permite, pela primeira vez, que nos
aproximemos bem perto de um estudo verdadeiramente cientí-
fico das produções ideológicas… As formações ideológicas são
de natureza sociológica de maneira intrínseca e imanente. (5, 184).
Começa a se instaurar no percurso teórico do Círculo uma
Sociologia do Discurso, entendendo-se aqui “formações ideoló-
gicas” como uma semente do que, mais tarde, será chamado de
Gêneros do discurso. A estética, entendida como uma formação
ideológica, é para Volochinov, uma variedade do social. Assim, a
teoria da arte só pode ser uma sociologia da arte (5, 185). Para
uma aplicação correta e fecunda da análise sociológica na teo-
ria da arte, Volochinov propõe que se renuncie a duas concep-
ções redutoras da estética:
a) a fetichização da obra de arte como coisa; o criador e
os receptores estão fora do campo de estudo, redução
ao estudo do material;
b) o psiquismo individual do criador e do receptor.
No caso da primeira concepção estaríamos no interior do
pensamento abstrato e de suas análises formalistas e lingüísti-
cas; e na segunda, encontraríamos a abordagem estilística tra-
dicional do pensamento idealista, as quais serão criticadas em
quase todas as obras do Círculo.
Para se contrapor a essas duas concepções, que tentam
descobrir o todo na parte, Volochinov descreve, assim, a natu-
reza da poética sociológica:
1) na realidade, o fato “artístico” considerado na sua to-
talidade não reside nem na coisa nem no psiquismo do
criador, tomado isoladamente, nem no psiquismo do
receptor, mas ele contém esses três aspectos. O fato
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artístico é uma forma particulare fixada na obra de
arte por uma relação recíproca entre o criador e os re-
ceptores;
2) a “comunicação artística” se enraíza na infraestrutura
que ela reparte com as outras formas sociais, mas ela
conserva, não menos do que essas outras formas, um
caráter próprio: ela é um tipo particular de comunica-
ção que possui uma forma que lhe é própria e bem es-
pecífica. Assim, a tarefa da poética sociológica é compre-
ender esta forma particular de comunicação social que
se encontra realizada e fixada no material da obra de
arte.(5,187).
Toda essa problematização, visando compreender a obra
de arte enquanto objeto de comunicação, enquanto um deter-
minado gênero do discurso, aparecerá em toda a obra do Círcu-
lo em torno de uma Teoria do Enunciado Concreto, na qual
podemos compreender o fato artístico como um enunciado ar-
tístico concreto.
Ao inserir a obra de arte numa relação de comunicação
“artística” – o todo da obra, Volochinov a define, sociologica-
mente, pelas seguintes características:
� produto da interação criador/receptor;
� momento essencial do acontecimento que constitui essa
interação;
� não é uma obra isolada, participa enquanto unidade
do fluxo da vida verbal;
� reflete a infraestrutura econômica geral;
� participa, juntamente com as outras formas de comu-
nicação, de um processo de interação e de trocas de
formas.16
16 Essas mesmas características estarão presentes na articulação dos
conceitos Gêneros do Discurso, Tema, Expressividade, Estilos e
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Essa perspectiva de análise do todo, pelo método sociológi-
co em seu viés volochinoviano, orienta a evolução do pensamento
ético-fenomenológico desenvolvido anteriormente por Bakhtin e,
também, as críticas formuladas pelo Círculo ao formalismo lin-
güístico e às concepções psicológicas abstratas: “a essência con-
creta, sociológica do discurso, que sozinha determina sua verda-
de ou sua falsidade, sua baixeza ou sua grandeza, sua utilidade
ou inutilidade, resta, ainda que abordada de uma ou outra ma-
neira, incompreensível e inacessível” (5, 198). E é em busca da
compreensão dessa essência que os pensadores russos irão
despender esforços no sentido de encontrar formulações teóricas
adequadas à investigação desse fenômeno.
Ainda nesse ensaio de 1926, começa a se definir o aspecto
extralingüístico do enunciado concreto. O enunciado comporta,
por um lado, um aspecto verbal – a língua, a palavra, e, por outro
lado, um aspecto extra-verbal – o horizonte espacial comum (de
um determinado grupo social); o conhecimento e a compreensão
da situação, e o valor comum. O aspecto extra-verbal, ou seja, a
situação de produção do enunciado “se integra ao enunciado como
um elemento indispensável à sua constituição semântica” (5, 191).
Aparece aqui, também, a distinção entre enunciado cotidi-
ano e enunciado artístico, fundamental para o desenvolvimento
de uma poética sociológica e a articulação posterior entre gê-
neros do discurso primários e secundários no interior de uma
Sociologia do Discurso e de uma Arquitetônica da Representação.
Um outro tema importante de uma Teoria do Enunciado
Concreto é a que trata desse enunciado como um acontecimento
subjetivo, ou seja, um enunciado interior. Isso implica num certo
ponto de vista em relação à psicologia. Esse viés da teoria orien-
ta-se por uma crítica à teoria freudiana, realizada por Volochinov
no livro Freudianism. A Critical Sketch (1927), cujo objetivo é apli-
car um “ponto de vista dialético e sociológico” à psicologia, bus-
cando compreender o comportamento humano a partir de um
Entonações, os quais, em conjunto, formam o alicerce do Enunciado
Concreto, seja ele artístico, científico ou cotidiano.
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viés sociológico objetivo, o que redunda numa “psicologia objeti-
va”.
Para Volochinov , a psicologia freudiana orienta-se por
um tipo especial de interpretação dos enunciados, que pretende
penetrar nos níveis profundos da alma. Ele faz as seguintes crí-
ticas à psicologia freudiana:
1) não toma os enunciados no seu aspecto objetivo;
2) não procura raízes fisiológicas17 ou sociais nesses enun-
ciados; e
3) procura encontrar os motivos do comportamento no
interior dos enunciados (o paciente dá informação so-
bre o inconsciente). (6, 76)
Ele justifica da seguinte forma as suas críticas: “qualquer
produto da atividade do discurso humano – do simples enuncia-
do cotidiano aos trabalhos elaborados da arte literária – deriva
em forma e significação, em todos os seus aspectos essenciais,
não das experiências subjetivas do falante, mas da situação so-
cial na qual o enunciado aparece. A língua e suas formas são
produtos de uma prolongada comunicação social entre os mem-
bros de uma dada comunidade discursiva” (6, 79).
Analisando a sessão psicanalítica como um tipo de rela-
ção de comunicação entre um médico e um paciente, ou seja,
um gênero de discurso determinado, Volochinov formula a se-
guinte crítica ao produto dessa relação: “o que é refletido nesses
enunciados não é a dinâmica da psique individual mas a dinâ-
mica social das inter-relações entre o doutor e o paciente. Aqui
está a origem para o drama da construção freudiana” (6, 79-80).
Ele propõe, então, que se atinja as raízes das reações verbais,
ou seja, do comportamento, “com a ajuda de métodos objetivos-
17 Eles se referem aqui ao processos fisiológicos no sistema nervoso e
nos órgãos de fala e de percepção que compõem, no interior da
psicologia, as reações verbais. (6, 21).
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sociológicos que o marxismo criou para a análise de vários sis-
temas ideológicos: lei, moral, ciência, mundo exterior, arte e re-
ligião” (6,87). A concepção de psicologia que norteia as formula-
ções teóricas do Círculo, traz no seu bojo, então, uma perspec-
tiva sociológica.
Após essa crítica à psicologia, um outro livro do Círculo,
The Formal Method in Literary Scholarship (1928), assinado por
Bakhtin/Medvedev, vai centrar suas críticas no formalismo e sua
aplicação nos estudos literários. Como sempre que o Círculo vai
discutir um enunciado secundário, ou como nesse caso, um enun-
ciado literário, a base concreta da reflexão é o enunciado cotidia-
no, aqui chamado enunciado prático. Para os teóricos russos, “a
literatura se funda na interação real e ativa com outras esferas
da ideologia, no mínimo com todos os enunciados práticos” (7,
103).
Essa outra obra tem por subtítulo “A Critical Introduction to
Sociological Poetics”. Aqui, Bakhtin/Medvedev reclama da falta
de “uma doutrina sociológica desenvolvida das características
distintas do material, da forma, e propósitos de cada área da
criação ideológica” (7, 3).
A partir de uma base marxista, ele propõe o desenvolvi-
mento de “um método sociológico específico que pode ser adapta-
do às características de diferente áreas ideológicas, no sentido de
dar acesso a todos os detalhes e sutilezas das estruturas ideoló-
gicas” (7, 4). Esse também era o objetivo de Volochinov: cada área
da criação ideológica deve ser entendida, do ponto de vista de
uma Sociologia do Discurso, como um gênero do discurso deter-
minado, e a sua compreensão e análise deve levar em conta essa
especificidade.
Esse método sociológico, que já apresentamos anteriormente
na concepção do professor Sakulin, o qual distingue duas con-
cepções autônomas – a série imanente e a série causal –, se ca-
racteriza aqui, como em Volochinov, pela interação entre a histó-
ria da literatura e a poética sociológica. Essa formulação é im-
possível para o professor Sakulin. Já para Medvedev, “a poética
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fornece direções à história da literatura na especificação da pes-
quisa material e nas definições básicas de suas formas e tipos. A
história da literatura completa as definições da poética, tornan-
do-as mais flexíveis, dinâmicas e adequadas à diversidade do
material histórico” (7,30).
Esse caráter complementar entre pontos de vista,um utili-
zando os resultados das análises do outro é uma característica
constante das obras do Círculo e de sua articulação em torno de
um pensamento concreto que leva em consideração as contribui-
ções dos pensamentos abstrato e idealista.
As tarefas da poética sociológica, para Bakhtin/Medvedev,
são as seguintes:
1) especificação: isolar a obra literária e revelar sua es-
trutura;
2) descrição: determinar as formas possíveis e variações
dessa estrutura;
3) análise: definir seus elementos e suas funções. (7,33)18
Até aqui, o Círculo já direcionou suas críticas, sempre a
partir de uma concepção específica do método sociológico, à esté-
tica, à psicologia e ao método formal. Agora, uma outra ciência se
torna alvo das indagações de Bakhtin/Volochinov/Medvedev: a
ciência da linguagem.
Em Marxismo e Filosofia da Linguagem (1929), Bakhtin/
Volochinov coloca um subtítulo – “Problemas fundamentais do
Método Sociológico na Ciência da Linguagem” – que provoca uma
relação dialógica com as obras anteriores. Definido o ponto de
vista – o método sociológico no seu viés marxista – os componen-
tes do Círculo vão alternando os gêneros do discurso científicos a
18 Essas tarefas são devenvolvidas, posteriormente, nas duas obras de
aplicação da poética sociológica: Problemas da Poética de Dostoiévski
e A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de
François Rabelais.
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serem criticados: ora a Estética, ora a Psicologia, agora a Filoso-
fia da Linguagem19 .
Tendo como interlocutores o Marximo e a Filosofia da Lin-
guagem, Bakhtin/Volochinov diz que “a única maneira de fazer
com que o método sociológico marxista dê conta de todas as pro-
fundidades e de todas as sutilezas das estruturas ideológicas
“imanentes” consiste em partir da filosofia da linguagem concebi-
da como filosofia do signo ideológico. E essa base de partida deve
ser traçada e elaborada pelo próprio marxismo” (10,38). Nesse
sentido, Bakhtin/Volochinov observa as seguintes regras meto-
dológicas:
1. Não separar a ideologia da realidade material do signo
(colocando-a no campo da “consciência” ou em qual-
quer outra esfera fugidia e indefinível).
2. Não dissociar o signo das formas concretas da comuni-
cação social (entendendo-se que o signo faz parte de
um sistema de comunicação social organizada e que
não tem existência fora deste sistema, a não ser como
objeto físico).
3. Não dissociar a comunicação e suas formas de sua base
material (infra-estrutura) (10, 44).
Uma outra tarefa do marxismo se refere a uma concepção
nova da psicologia, ou seja, de uma psicologia objetiva: “uma das
tarefas mais essenciais e urgentes do marxismo é constituir uma
psicologia verdadeiramente objetiva. No entanto, seus fundamen-
tos não devem ser nem fisiológicos nem biológicos, mas SOCIO-
19 Estamos levando em consideração o fato de cada um desses discursos
científicos serem o tema central de um determinado ensaio ou livro.
Mas não podemos esquecer que em todos eles há uma interação
orgânica no que se refere ao Enunciado concreto. Assim sendo, ao
falar da Filosofia da Linguagem são abordadas também, dessa
perspectiva, os outros discursos científicos como a Estética, a
Psicologia, o Formalismo, a Sociologia, o Marxismo, etc.
40
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LÓGICOS” (10, 48). É com base nessa psicologia que o Círculo
vai analisar o enunciado interior.
Nesse sentido, Bakhtin/Volochinov desenvolve nesse livro
a estrutura “sociológica” do enunciado, seja ele interior, exterior,
ou de outrem, contrapondo-a ao ponto de vista lingüístico e esti-
lístico então dominantes nos estudos da linguagem, e que repre-
sentavam as correntes de pensamento abstrato e idealista, ou
objetivismo abstrato e subjetivismo idealista, respectivamente,
como veremos mais tarde.
A coerência metodológica entre as obras do Círculo quanto
à forma de aplicação do método sociológico fica evidente na intro-
dução ao livro Problemas da obra de Dostoievski (1929). Bakhtin
define assim os propósitos de sua análise: “en la base de nuestro
análisis está la convicción de que toda obra literaria tiene interna-
mente, inmanentemente, un caráter sociológico. En ella se cruzan
las fuerzas sociales vivas, y cada elemento de su forma está im-
pregnado de valoraciones sociales vivas. Por eso también un
análisis puramente formal ha de ver en cada elemento de la es-
tructura artística el punto de refracción de las fuerzas vivas de la
sociedade, cual un cristal fabricado artificialmente cuyas facetas
se construyeron y se pulieron de tal manera que puedan refractar
los determinados rayos de las valoraciones sociales, y refractarlos
bajo un determinado ángulo” (12, 191), ou seja, um ponto de vista
consideravelmente adequado ao viés marxista adotado pelos ou-
tros dois membros do Círculo20 .
20 Em entrevistas publicadas no jornal Chelovek (1993) datadas de 1973-
74, Bakhtin rememora sua juventude, na descrição de Caryl Emerson:
“Bakhtin claims he had always wanted to be a moral philosopher, a
“myslitel” (thinker); literary scholarship was for him a safe refuge from
politics during those years when others were being harassed,
“organized,” recruited. He insists that as a young college student in
Petrograd he had been “absolutely apolitical.” He lamented not only
the October Revolution but the prior February abdication as well; he
predicted that it would end badly and “extremely”; he went to no
meetings, profoundly distrusted Kerensky, and continued to sit in
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Problematizar uma poética sociológica implica considerar
como sociológicos todos os elementos envolvidos no interior des-
sa poética. É assim que, analisando o discurso no romance, no
ensaio de mesmo nome (1934-1935), Bakhtin diz que “a única
estilística adequada para esta particularidade do gênero roma-
nesco é a estilística sociológica. A dialogicidade interna do dis-
curso romanesco exige a revelação do contexto social concreto, o
qual determina toda a sua estrutura estilística, sua “forma” e seu
“conteúdo”, sendo que os determina não a partir de fora, mas de
dentro; pois o diálogo social ressoa no seu próprio discurso, em
todos os seus elementos, sejam eles de “conteúdo” ou de “forma””
(17, 105-106).
A união orgânica de uma poética sociológica com uma
estilística sociológica permite a Bakhtin realizar um dos seus mais
ambiciosos projetos: um estudo sociológico da heterogeneidade
discursiva representada na obra literária e da heterogeneidade
real da cultura popular no seu livro A cultura popular na Idade
Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais (1940;
1965). Situando esse período histórico no limite de três línguas –
latim clássico, latim medieval e as línguas nacionais, Bakhtin
nos diz que “nos limites das três línguas, a consciência do tempo
devia tomar formas excepcionalmente agudas e originais. A cons-
ciência viu-se na fronteira das épocas e das concepções de mun-
do, pôde, pela primeira vez, abarcar largas escalas para medir o
curso do tempo, sentir com cuidado o seu “hoje” tão diferente da
véspera, as suas fronteiras e perspectivas. (20, 412).
E ainda, retomando a sua opção pelo pensamento concre-
to, ele diz: “as línguas são concepções do mundo, não abstratas,
mas concretas, sociais, atravessadas pelo sistema das aprecia-
ções, inseparáveis da prática corrente e da luta de classes. Por
isso, “cada objeto, cada noção, cada ponto de vista, cada aprecia-
libraries and read books. The image of a learned, apolitical, urbane,
witty, fastidious and aristocratic young Bakhtin that emerges from these
memoirs is in some tension, of course, with the mass-oriented Bakhtin
popular in Western radical circles” (45, 108).
42
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ção, cada entoação, encontra-se no ponto de interseção das fron-
teiras das línguas-concepções do mundo, é englobado numa luta
ideológica encarnecida. Nessas condições excepcionais, torna-se
impossível qualquer“dogmatismo lingüístico e verbal”, qualquer
“ingenuidade verbal” (20, 415).
Pelo percurso teórico aqui mencionado, podemos elaborar
uma base teórica para reflexão em torno de uma Teoria do Enun-
ciado Concreto, seja ele, cotidiano, artístico ou científico. Toda a
investigação desses gêneros de enunciado, ou gêneros do discur-
so, deve levar em conta os aspectos éticos, fenomenológicos, his-
tóricos, ideológicos, sociológicos e dialógicos em interação orgâ-
nica. Nesse percurso teórico, poderíamos dizer que se encontra o
cronotopo21 para a construção da Metalingüística, ou seja, de
uma disciplina que empreenda uma investigação verdadeiramente
científica do enunciado concreto22 .
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Um problema que se coloca para quem estuda as obras
dos teóricos russos em português é o da tradução e da falta de
uniformidade terminológica. Se estudamos a obra do interior dela
mesma, percebemos o sentido que aí adquire um determinado
conceito. Mas é na relação com as outras obras do círculo que
alguns conceitos ficam comprometidos, visto que em uma obra
21 Para Bakhtin, o cronotopo (tempo-espaço), termo emprestado das
ciências matemáticas, é “a interligação entre as relações espaciais e
as relações temporais” (19, 211).
22 A busca de uma investigação científica do enunciado, ou num sentido
largo, de um determinado domínio da cultura, já era prenunciada em
Toward a Philosophy of the Act, quando Bakhtin dizia que uma “filosofia
científica só pode ser uma filosofia particular, isto é, uma filosofia
dos vários domínios da cultura e de sua unidade na forma de uma
transcrição teórica de dentro dos objetos da criação cultural e da lei
imanente de seu desenvolvimento” (2, 19).
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ele é representado por x e em outra por y, o que de certa forma
pode dificultar a compreensão ativa do conjunto da obra.
Isso pode se dever ao fato de que cada edição brasileira tem
um tradutor diferente, além de derivar ora do original russo, ora
da tradução francesa, recorrendo, às vezes, à tradução inglesa,
conforme apresentamos a seguir, em ordem cronológica de pu-
blicação da primeira edição:
� Bakhtin, M. (Volochinov) (1979). Marxismo e Filosofia
da Linguagem. Trad. do francês (edição de 1977) com
recorrências constantes à edição americana de 1973,
por Michel Lahud e Yara Frateschi Vieira;
� Bakhtin, M. (1981). Problemas da Poética de Dostoiévski.
Trad. do original russo (edição de 1972), por Paulo Be-
zerra;
� Bakhtin, M. (1987). A cultura popular na Idade Média e
no Renascimento: o contexto de François Rabelais. Trad.
da edição de francesa de 1970, por Yara Frateschi;
� Bakhtin, M. (1988). Questões de Literatura e de Estéti-
ca. A teoria do romance. Trad. do original russo de 1975,
por uma equipe de tradutores formada por Aurora F.
Bernardini e outros; e
� Bakhtin, M. (1992) Estética da Criação Verbal. Trad.
do francês, por Maria Ermantina G. B. Gomes Pereira.
Enquanto Bakhtin se diz interessado pela “variação ter-
minológica” que abrange “um único e mesmo fenômeno”, as
edições brasileiras revelam uma “variação terminológica” para
uma única e mesma palavra russa, comprometendo a unidade
temática que orienta as formulações teóricas do Círculo, preci-
samente no que se refere a uma Teoria do Enunciado Concreto.
A importância que o pensamento do Círculo vem adqui-
rindo nos estudos lingüísticos brasileiros implica a necessidade
de iniciar um processo de discussão em torno da terminologia e
44
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dos conceitos que articulam as suas formulações teóricas. Se,
por um lado, a língua russa é inacessível para a maioria dos
pesquisadores, por outro, existe a possibilidade de comparar
traduções em outras línguas, bem como comparar os conceitos
com as outras obras do Círculo publicadas em português.
Para demonstrar o problema, escolhemos as palavras rus-
sas vyskazyvanie e rechevye zhanry – ou apenas zhanry, as quais
estão diretamente relacionadas ao tema de nossa dissertação. A
primeira palavra foi traduzida, nas edições francesa e brasileira
das obras do Círculo, ora por enunciado ora por enunciação, e a
segunda por gêneros do discurso – ou apenas gênero, além de
modos de discurso, categorias de atos de fala, fórmulas, etc.
O que acontece nas edições brasileiras das três obras onde
encontramos esse problema é uma falta de critério quanto à tra-
dução por um ou outro conceito. Isso acontece, provavelmente,
porque cada obra tem um tradutor ou equipe de tradutores dife-
rentes, o que de certa maneira dificulta um acompanhamento
aprofundado de outras obras do Círculo que não aquela que é
objeto da tradução.
A primeira obra que apresenta esse problema é Marxismo e
Filosofia da Linguagem (1979), assinadas por Bakhtin e
Volochinov. Nessa edição traduziu-se o conceito vyzkazyvanie
por enunciação, em todas as ocorrências, conforme justifica em
nota a tradutora francesa Marina Yaguello:
Rappelons que le russe jazyk désigne le langage, la langue, et la
langue-organe, le russe rec désigne la parole, la langue, le langage,
le discours. J´ai traduit jazyk tantôt par “langage” comme dans le
titre, tantôt par “langue”. Cependant, por supprimer l´ambiguité,
Bakhtine a fourgé un nom composé: jazyk-rec (le langage) qu’il
oppose à jazyk kak sistema form (la lange) et vyskazyvanje
(l’énonciation ou acte de parole) (N.d.t.) (9, 90).
Comparando as citações de Marxismo e Filosofia da Lin-
guagem que localizamos na obra de Todorov Mikhail Bakhtine. Le
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principle dialogique. (1981)23 com as da edição de Yaguello, en-
contramos no lugar de enunciação, o conceito enunciado, articu-
lado no interior de uma Teoria do Enunciado que é desenvolvida
no capítulo 4 do referido livro:
L’énoncé se construit entre deux personnes socialement
organisées, et s’il n’y a pas d’interlocuteur réel, on le présuppose
en la personne du représentant normal, pour ainsi dire, du groupe
social auquel appartient le locuteur. Le discours est orienté vers
l’interlocuteur… (30, 70)
En effet, l’énonciation est le produit de l’interaction de deux
individus socialement organisés et, même s’il n’y a pas un
interlocuteur réel, on peut substituer à celui-ci le représentant
moyen du groupe social auquel appartient le locuteur. Le mot
s’adresse à un interlocuteur… (9, 123)
Todorov reserva o conceito enunciação para se referir ao
contexto de produção do enunciado, ao “contexto de enunciação”
(30, 68), ou ainda à interação verbal24 , articulando, no interior da
obra do Círculo, uma Teoria do Enunciado e não uma Teoria da
Enunciação como aparece na tradução de Yaguello.
Na edição da obra de Bakhtin Problemas da Poética de
Dostoiévski (1981), traduzido do russo por Paulo Bezerra, encon-
tramos os dois conceitos – enunciado e enunciação – sendo que,
na comparação com a edição francesa – La Poétique de Dostoievski
(1970)- descobrimos que aí enunciação se apresenta como énoncé
23 As traduções do russo constantes no livro de Todorov foram feitas
por Georges Philippenko com a coloboração de Monique Canto. (31,
177)
24 Essa relação é apresentada no Prefácio de Estética da Criação Verbal:
“é nos mesmos anos que Bakhtin se empenha em lançar as bases de
uma nova lingüística, ou, como dirá mais tarde, “translingüística” (o
termo em uso hoje seria antes “pragmática”), cujo objeto já não é
mais o enunciado, mas a enunciação, ou seja, a interação verbal”
(39, 15)
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– enunciado – em quase todas as ocorrências, como mostra o
exemplo abaixo:
Sempre que no contexto do autor há um discurso direto, o
de um herói, por exemplo, verificamos nos limites de um con-
texto dois centros do discurso e duas unidades do discurso: a
unidade da enunciação do autor e a unidade da enunciação do
herói. (13, 162)
La où, dans le texte d’un auteur, interviént le discours direct,
celui d’un personnage par exemple, nous trouvons à l’intérieur d’un
seul contexte deux centres, deux unités dediscours: l’énoncé de
l’auteur et l’énoncé du héros. (14, 244-245)
Finalmente, no livro de Bakhtin Questões de Literatura e
de Estética. A teoria do romance (1993), traduzido do russo, loca-
lizamos no ensaio “O discurso no romance”, de 1934-1935, tam-
bém, a presença dos dois conceitos: enunciado e enunciação.
Nesse caso, comparamos com a edição francesa Esthétique et
théorie du Roman (1994) onde encontramos, também, os concei-
tos énoncé e énonciation. O problema é que na maioria das ocor-
rências não existe coincidência entre as duas traduções.
Há casos em que a ocorrência enunciação em português
aparece como énoncé na edição francesa:
O verdadeiro meio da enunciação, onde ela vive e se forma, é
um plurilinguismo dialogizado, anônimo e social como lingua-
gem, mas concreto, saturado de conteúdo e acentuado como
enunciação individual. (17, 82).
Le véritable milieu de l’énoncé, lá ou il vit et se forme, c’est le
polylinguisme dialogisé, anonyme et social comme le langage, mais
concret, mais sature de contenu, et accentué comme un énoncé
individuel. (18, 96).
Também há ocorrências em que nas duas edições encon-
tramos o conceito enunciação/énonciation, mas a ocorrência
enunciado é a que aparece mais vezes:
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A filosofia da linguagem, a lingüística e a estilística postulam
uma relação simples e espontanêa do locutor em relação à “sua
própria” linguagem, única e singular, e uma realização simples
dessa linguagem na enunciação monológica do indivíduo (17, 80).
La philosophie du langage, la linguistique et la stylistique,
postulent une relation simple et spontanée du locuteur à “son
langage à lui”, seul et unique, et une réalisation de ce langage
dans l´énonciation monologique d’un individu (18, 94).
Nas duas outras obras do círculo, assinadas por Bakhtin,
que estão publicadas no Brasil – A cultura popular na Idade
Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais (1987)
e Estética da Criação Verbal (1992) não existe esse problema,
sendo que nesta última, no ensaio “Os gêneros do discurso”,
toda a segunda parte é dedicada ao enunciado, tendo por título
“O enunciado, unidade da comunicação verbal”, não havendo aí
qualquer ocorrência de enunciação:
O estudo do enunciado, em sua qualidade de unidade real
da comunicação verbal, também deve permitir compreender
melhor a natureza das unidades da língua (da língua como sis-
tema): as palavras e as orações. (21, 287).
L’étude de l’énoncé, en sa qualité d’unité réelle de l’échange
verbal, doit permettre aussi de mieux comprendre la nature des
unités de langue (de la langue en tant que système) – les mots
et les propositions. (21a, 272).
Enquanto conceito, ou seja, enquanto um elemento do dis-
curso científico na tradição dos estudos lingüísticos a partir de
Benveniste, enunciado e enunciação tem acepções diferentes:
enquanto enunciado se refere ao produto do discurso, enuncia-
ção se refere ao processo ou “situação” de discurso. Ou mais
explicitamente, como afirma Benveniste no artigo “O aparelho
formal da enunciação”: “é o ato mesmo de produzir um enuncia-
do, e não o texto do enunciado, que é nosso objeto” (36, 82). Essa
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distinção entre produto e processo não encontra eco na obra do
Círculo, onde o todo do enunciado concreto compreende o pro-
duto – o material verbal – e o processo – a situação – em interação
orgânica. Para o Círculo, o enunciado concreto é um elo da ca-
deia de comunicação verbal, ou seja, ele é produto – um aconte-
cimento único na existência – e processo – uma unidade da ca-
deia de comunicação verbal – simultaneamente.
Embora esse contexto científico, a Teoria da Enunciação
de Benveniste, seja posterior a maioria das obras do Círculo nas
quais ocorre o problema, sem dúvida ele tem grande importância
no fluxo da obra do Círculo no Ocidente, e, principalmente, em
três dos seus divulgadores na França: Julia Kristeva25 , Marina
Yaguello e Tzvetan Todorov26 , todos eles com forte ligação e en-
volvidos com as idéias de Benveniste em relação a enunciação.
O outro problema relacionado com a tradução, trata da
palavra russa rechevye zhanry – ou apenas zhanry, as quais de-
saparecem da obra de Bakhtin/Volochinov Marxismo e Filosofia
da Linguagem (1929). Nesse obra, a interação orgânica entre os
conceitos enunciado, diálogo e gêneros do discurso se desintegra.
Logo no segundo capítulo que trata da relação entre a infra-
estrutura e as superestruturas, os teóricos russos dizem o se-
guinte: “Mais tarde, em conexão com o problema da enunciação e
do diálogo, abordaremos, também, o problema dos gêneros lin-
güísticos”(10, 43). Comparando com a tradução inglesa – “later
on, in connection with the problem of the utterance and dialogue,
we shall again touch upon the problem of speech genres” (11,
40), percebemos que enunciado – utterance – se torna enunciação
25 Foi Julia Kristeva que, em 1966, introduziu a obra de Bakhtin na
França, como demonstra François Dosse em seu História do
Estruturalismo vol. 2 (42, 74-76).
26 Todorov chega a promover uma relação dialógica entre o ensaio “Se-
miologia da Língua” (1969), de Benveniste, e os “Apontamentos 1970-
1971” (24), de Bakhtin, sugerindo que esse possa ter emprestado a
Benveniste a noção de interpretante. (30, 81).
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e gêneros do discurso – speech genres – se torna gêneros lingüísti-
cos, e mais tarde, modos de discurso, categorias de atos de fala,
discursos menores, modelagem, fórmulas, fórmulas estereotipa-
das, enfim, tantas acepções que a importância desse conceito no
contexto do interior dessa obra, e, mais ainda, na sua relação
com as outras obras do círculo se desintegram de sua interação
orgânica com o enunciado concreto.
Nesse sentido, resolvemos comparar as citações que apre-
sentam essa dificuldade de tradução, recorrendo à forma que
elas aparecem citadas em um outro ensaio de Volochinov “La
structure de l’énoncé” (1930), deixando em nota, a forma que
adquirem na edição americana:
(1) La question bien formée, l’exclamation, l’ordre, la prière, voilà
les formes les plus typiques d’énoncés de la vie quotidienne,
qui soient des totalités. Ils exigent tous – et, surtout, l’ordre et
la prière – un complément extra-verbal, mais aussi bien un
commencement de nature elle-même extra-verbale. Chacun de
ces petis genres d’énoncés, qui ont cours dans le quotidien,
suppose, pour être accompli, que le discours soit en contact
avec le milieu extra-verbal, d’une part, et le discours d’autrui,
d’autre part (16, 290).
(1a) Uma questão completa, a exclamação, a ordem, o pedido são
enunciações completas típicas da vida corrente. Todas (parti-
cularmente as ordens, os pedidos) exigem um complemento
extraverbal assim como um início não verbal. Esses tipos de
discursos menores da vida cotidiana são modelados pela frição
da palavra contra o meio extravebal e contra a palavra do
outro (10, 124)27 .
27 “The full-fledged question, exclamation, command, request – these are
the most typical forms of wholes in behavioral utterances. All of them
(especially the command and request) require an extraverbal
complement and, indeed, an extraverbal commencement. The very type
of structure these little behavioral genres will achieve is determined
by the effect of its coming up against the extraverbal milieu and against
another word (i.e., the words of other people)” (11, 96).
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(2) Ainsi, la façon dont est formule un ordre est déterminée par les
éléments qui peuvent faire obstacle à la réalisation de celui-ci,
par le degré de soumission qu’il peut rencontrer, etc. Le genre
prend donc sa forme achevée dans les traits particuliers,
contingents et uniques, qui définissent chaque situation vécue
(16, 290-291).
(2a) Assim, a forma da ordem é determinada pelos obstáculos que
ela pode encontrar, o grau de submissão do receptor, etc. A
modelagem das enunciações responde aqui a particularida-

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