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O GÊNERO NA DOSIMETRIA DA PENA: UM ESTUDO COMPARATIVO DO JULGAMENTO DE ACUSADOS DO CRIME DE TRÁFICO DE DROGAS . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Júlio Emílio Cavalcanti Paschoal1 Marcela Martins Borba2 Tarcila Maia Lopes3 1 INTRODUÇÃO "Não se pode afirmar qual será o tempo necessário para afastar a classificação da mulher da prática judicial, mas é tempo, indubitavelmente, de discuti-la para poder bani-la além da lei, e esse é, com certeza, o passo mais difícil."(MELLO, 2015, p. 60) O presente artigo pretende abordar a tripla criminalização (como mulher, mãe e infratora) da mulher autora de crimes a partir da análise de duas sentenças proferidas por um juízo criminal da Justiça Federal em Pernambuco. As duas sentenças de que trataremos demonstram que a mulher infratora sofre outro tipo de julgamento, bastante permeado por questões de gênero, reproduzindo estereótipos e desigualdades que há muito tentamos dissipar. Ambas as decisões tratam de pessoas presas em flagrante pelo cometimento do crime de tráfico internacional de drogas; havia, contudo, uma diferença entre os dois réus para além de penas discrepantes para o mesmo crime, cometido em contextos idênticos e próximos temporalmente: o fato de um deles ser homem e a outra mulher – esta cujo maior crime parece ter sido ser mãe. 1 Graduando em direito pela Universidade Federal de Pernambuco. Pesquisador do Grupo Asa Branca de Criminologia e do Grupo Robeyoncé de Pesquisa-ação. 2 Graduanda em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco. Pesquisadora do Grupo Asa Branca de Criminologia do Grupo Robeyoncé de Pesquisa-ação. 3 Mestranda em Direito pela Universidade Católica de Pernambuco. Defensora Pública Federal. Pesquisadora do Grupo Asa Branca de Criminologia. 439 IV Colóquio Internacional de Pesquisadores em Direito . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Os autores tomaram conhecimento das duas sentenças a partir de sua atuação na Defensoria Pública da União: uma como defensora pública e os outros dois como estagiários, tendo estado em contato direto com os ora tratados casos, visto que ambos os réus eram assistidos pelo órgão. O caso de Marília4, muito embora não destoe do padrão de criminalização feminina pelo tráfico de drogas – como exploraremos ao longo do trabalho – mobilizou bastante a Defensoria, ultrapassando os limites do ofício responsável pela sua defesa. Assim, não restou aos autores saída que não escrever sobre isso. Para a escrita do trabalho, primeiramente realizamos levantamento bibliográfico acerca do tema, privilegiando leituras que tratassem de questões relativas a gênero, sistema punitivo e à repressão ao tráfico de drogas. Posteriormente, procedemos ao estudo dos dois processos, centrando-nos nas sentenças proferidas e buscando analisar, na dosimetria, as circunstâncias valoradas para o estabelecimento de cada uma das penas. É preciso dizer que partimos de uma perspectiva crítica ao sistema punitivo, principalmente na sua faceta de reprodutor de estereótipos de gênero e seu despreparo em lidar com a mulher que comete crimes. Opomo-nos também à guerra às drogas, modelo de gestão do tráfico e uso de entorpecentes que cremos falido por causar mais vítimas do que avanços, resultando em mais uma forma de controle social das populações vulneráveis. E que, ademais disso, é responsável pela maior parte do encarceramento feminino no país e mundialmente. Destarte, neste trabalho, buscaremos traçar um panorama da desigual construção e valoração dos estereótipos de gênero, da repercussão desses padrões no direito e da ingrata relação entre mulher e sistema punitivo, tomando os dois casos paradigmáticos mencionados como exemplo para conduzir e ilustrar a discussão. Por fim, ao final do debate proposto, analisaremos as sentenças condenatórias e as circunstâncias valoradas 4Todos os nomes utilizados no presente artigo são fictícios. Contudo, este, em especial, foi escolhido como uma homenagem a Marília Silva Ribeiro de Lima Milfont, defensora que atuou nos dois casos de que trataremos, e a Marília Montenegro Pessoa de Mello, professora a quem devemos o despertar para um olhar crítico sobre o sistema de justiça criminal e uma das inspiradoras do encontro que resultou neste trabalho. Júlio Emílio Cavalcanti Paschoal • Marcela Martins Borba • Tarcila Maia Lopes 440 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . para a prolação da decisão, procurando traçar um paralelo com as questões propostas ao longo do artigo. 2 CONSIDERAÇÕES SOBRE ESTEREÓTIPOS DE GÊNERO E A DESVALORIZAÇÃO DO FEMININO Os estereótipos de gênero são, talvez, das mais persistentes construções sociais a influenciar a forma como nos relacionamos. Muito embora suas estruturas tenham se metamorfoseado bastante ao longo dos séculos, e estejam em constante mudança, o engendramento de uma sociedade de base patriarcal ainda reverbera sobre as experiências, os corpos e o valor que é dado às vidas dos indivíduos. E isso se manifesta em parte por via desses paradigmas. Esses estereótipos, ainda que não sejam universais, acumulam diversos papeis idealizados para as performances de gênero (DÍAZ, 2013, p. 442) e – ao menos em nossa sociedade – parecem se centrar num ideal cisnormativo e heteronormativo. Este consistiria numa expectativa de continuidade entre sexo, gênero e orientação sexual que resultaria na esperança de que os indivíduos se identificassem com o sexo biológico com que nasceram (cissexualidade), performassemseu gênero em conformidade com o sexo biológico, ou seja: se nascessem com uma vagina, que se identificassem como mulheres. E, por fim, que fossem heterossexuais. Essa expectativa, todavia, é constantemente desafiada, principalmente pela falha em reproduzir esses papeis de maneira tão ortodoxa(ARÁN, 2006, p. 50-52). Numa breve e não exaustiva definição, tomemos como referência esses três parâmetros para tratar da sexualidade humana: sexo, gênero e orientação sexual. Sexo seria algo geneticamente designado e se relacionaria à forma como são percebidos os caracteres sexuais primários de cada indivíduo. Gênero diria respeito à maneira como cada pessoa expressa sua identidade em sociedade quanto ao espectro de papeis que vão dos tidos como femininos aos tidos como masculinos. É o aspecto mais visível dentre os três, 441 IV Colóquio Internacional de Pesquisadores em Direito . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . posto que os papeis de gênero socialmente avalizados são marcados por signos e performances identificáveis à primeira vista, com as quais estamos ―familiarizados‖ enquanto grupo. A orientação sexual, a seu turno, se relaciona ao desejo sexual e tem como parâmetro o destinatário do desejo de um indivíduo. Por exemplo, os indivíduos de orientação heterossexual sentem desejo por pessoas do sexo ou gênero oposto ao seu; os de orientação homossexual, por sua vez, desejam pessoas do mesmo sexo ou gênero. Todavia, é nos papeis de gênero que centraremos nossas discussões, dada a maior plasticidade das performances que escapam a esses modelos. Isso, pois, muito embora o sexo também acarrete expectativas em demasia (potencializadas quando conjugadas ao gênero), falar de gênero nos parece atingir uma gama maior de identidades. Assim, trataremos, por ora, das implicações negativas de se identificarcomo alguém do gênero feminino. Ademais de heterocisnormativa, somos uma sociedade androcêntrica, que supervaloriza o masculino e descarta ou deslegitima as expressões daquilo que se construiu como ―feminino‖ – nas mulheres e até mesmo nos homens. O ―feminino‖ que rege essas expectativas passa por idealizações e essencializações ligadas ao papel da mulher em sociedade e impõe ao gênero feminino um catálogo de condutas, prescrições e interdições que, quando desafiadas, geram sanções sociais às mulheres. E que, quando emuladas por homens, também lhes causam sanções. Assim, o papel feminino estaria ligado ao privado, ao trabalho doméstico, à maternidade, à honestidade (de que trataremos mais detidamente adiante, principalmente quanto às suas implicações na esfera penal), à subserviência e à assunção de um plano coadjuvante em relação ao gênero masculino. Com esses paradigmas, vem uma gramática de gestos, papeis e expectativas que não devem ser frustradas pela performance feminina ideal, sob pena de retaliações. Boa parte dos estereótipos de gênero parte de uma justificativa biológica: a de que a mulher estaria naturalmente equipada, mais apta a exercer os papeis que lhe são Júlio Emílio Cavalcanti Paschoal • Marcela Martins Borba • Tarcila Maia Lopes 442 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . designados – principalmente o papel reprodutivo e o de cuidado com os filhos –, em razão de nela se materializar a gestação. As mulheres que não correspondessem a esse papel, portanto, desafiariam a natureza. Partimos, contudo, de uma perspectiva oposta a essa, que questiona esse tipo de associação necessária entre o gênero e as ―funções‖ mais correntemente desempenhadas pelas mulheres e por crermos que esse tipo de narrativa essencializa papeis que são socialmente aprendidos. Esse discurso, contudo, há muito permeia as representações do que temos como feminino. Para a historiadora Michelle Perrot, na História, ―existe uma abundância, e mesmo um excesso, de discursos sobre as mulheres; (...) na maioria das vezes obra dos homens‖. Todavia, se ignora quase sempre o que as mulheres pensam a respeito, como os veem ou sentem. ―Das mulheres, muito se fala. Sem parar, de maneira obsessiva. Para dizer o que elas são ou o que elas deveriam fazer‖ (PERROT, 2008, p. 22). Essas narrativas, ao longo dos séculos, foram utilizadas para endossar a hierarquização entre gêneros e sexos. O masculino era tido como mais racional, mais apto para negócios, trabalho produtivo, para a vida pública. O feminino, por sua vez, era feito para a vida privada, seriam, ―por natureza‖, mais ―dóceis‖, vocacionadas para o cuidado com os filhos e as funções domésticas. E, como veremos ao longo do artigo, ainda não nos livramos completamente dos discursos que endossam essa perspectiva e teimam em querer manter a mulher em ―seu devido lugar‖. Este que pode não ser mais em casa, mas certamente representa espaços de falta de poder, de falta de voz e representatividade – lugares socialmente aceitos como femininos. Essa desigualdade na ocupação de espaços se vê em diversas esferas: desde a divisão sexual do trabalho, que valoriza o trabalho produtivo feito pelos homens e invisibiliza o trabalho reprodutivo das mulheres; na carga tripla de trabalho feminino, mal remunerado e sobrecarregado de afazeres na esfera doméstica, e até mesmo quanto ao cometimento de crimes. 443 IV Colóquio Internacional de Pesquisadores em Direito . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 3 A MULHER COMO VÍTIMA NO SISTEMA DE JUSTIÇA CRIMINAL Historicamente, a mulher foi tratada pela lei brasileira como um sujeito submisso, a quem cabia a esfera privada e o cuidado dos filhos, em contraposição ao homem, que ocupava o meio público e a quem cabia o sustento da família. O Código Civil de 1916, em sua redação original, previa que a mulher casada era relativamente incapaz5. Expressava ainda que o marido era o chefe da sociedade conjugal e que lhe competia o direito de autorizar a profissão da mulher e sua residência fora do teto conjugal6. Ademais, dispunha-se que o casamento poderia ser anulado em caso de ―defloramento da mulher, ignorado pelo marido‖7. Todos esses dispositivos legais evidenciavam o lugar da mulher: a esfera privada, sob a tutela primeiro do pai e depois do esposo, cabendo-lhe o cuidado com a casa e com os filhos do casal. O Código Civil de 1916 refletia também o controle da sexualidade da mulher. Paulatinamente, houve mudanças legislativas, como a lei 4.21/1962, conhecida como Estatuto da Mulher Casada e a lei do divórcio (6.515/1977). Após a ditadura, a Constituição de 1988 previu expressamente que ―homens e mulheres são iguais em 5 Art. 6. São incapazes, relativamente a certos atos (art. 147, n. 1), ou à maneira de os exercer: (...) II. As mulheres casadas, enquanto subsistir a sociedade conjugal. 6 Art. 233. O marido é o chefe da sociedade conjugal. Compete-lhe: (...) IV. O direito de autorizar a profissão da mulher e a sua residência fora do tecto conjugal (arts. 231, nº II, 242, nº VII, 243 a 245, nº II, e 247, nº III). 7 Art. 218. É também anulável o casamento, se houve por parte de um dos nubentes, ao consentir, erro essência quanto à pessoa do outro. Art. 219. Considera-se erro essencial sobre a pessoa do outro cônjuge: (...) IV. O defloramento da mulher, ignorado pelo marido. Júlio Emílio Cavalcanti Paschoal • Marcela Martins Borba • Tarcila Maia Lopes 444 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . direitos e obrigações‖. Por fim, o Código Civil de 2002 refletiu legalmente a igualdade entre gêneros prevista na Constituição. No âmbito penal, houve uma evolução legislativa similar à da matéria cível. A mulher também era vista como um sujeito passivo, em contraposição ao ativo, que era o homem (ANDRADE, 2012, p. 143). Nesse contexto, ela ocupava naturalmente o papel de vítima. Contudo, refletindo a ideia de controle da sexualidade, não era qualquer mulher que pode ser vítima. Ela precisava corresponder às expectativas de comportamento de gênero para que seu agressor merecesse a punição estatal. Marília Montenegro faz um apanhado histórico do papel da mulher como vítima nas leis penais (MELLO, 2015, p. 38-56). Nas Ordenações do Reino, a mulher não podia ser vítima de adultério e o homem traído poderia realizar a vingança, pois se entendia lícita a morte da mulher e do amante. Ademais, traziam a distinção entre mulher virgem, viúva honesta e qualquer mulher. Para ser vítima do crime equivalente ao rapto consensual, por exemplo, a mulher deveria ser virgem ou honesta. Já do crime equivalente ao estupro poderia ser vítima qualquer mulher. No Código Criminal do Império, as mulheres também eram categorizadas em relação a alguns crimes. Havia penas diferentes para as ―mulheres honestas‖ e as prostitutas vítimas de estupro. Em relação ao crime de rapto consensual, somente as mulheres virgens ou reputadas como tais poderiam ser vítimas. Previa-se também que o casamento era causa de extinção das penas de delitos de natureza sexual. No Código Penal de 1890, manteve-se a categorização da mulher nos crimes sexuais. Também existiam penas diferentes para o estupro de uma mulher ―virgem ou não, mas honesta‖ e uma ―mulher pública‖ ou prostituta. Da mesma forma, em alguns crimes, como o rapto, apenas a mulher honesta ou virgem poderia ser vítima. Permaneceu, igualmente, o casamento como causa de extinção dapena. O Código Penal de 1940 trouxe avanços em relação ao crime de estupro, do qual poderia ser vítima qualquer mulher, sem que houvesse pena diferenciada quando ela era prostituta ou ―mulher pública‖. Contudo, a tutela penal nesse tipo de crime objetivava 445 IV Colóquio Internacional de Pesquisadores em Direito . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . proteger a moral pública sexual (JESUS, 2002. p. 91), tanto que o estupro e demais crimes sexuais estavam previstos no Título VI do Código Penal, nomeado de ―Crimes contra os costumes‖. Nesse contexto, preservou-se a ―mulher honesta‖ como vítima dos crimes de posse sexual mediante fraude e atentado violento ao pudor mediante fraude (artigos 215 e 216 do CPB em sua redação original8). Manteve-se também o casamento da vítima com o agente ou com terceiro como causa de extinção da punibilidade. Conforme exposto por Cezar Roberto Bitencourt, ―Na concepção da norma, o casamento da vítima, com a consequente constituição da família, a livra da desonra e repara-lhe o mal causado pela conduta delituosa do agente. Ademais, tratando-se, de regra, de ação privada, a convolação de núpcias entre ofensor e vítima implica o mais completo perdão aceito, além da reparação moral restabelecedora do status quo ante.‖ (BITENCOURT, 2003, p. 709) Essa causa de extinção da punibilidade só foi retirada do Código em 2005, pela lei 11.106, a mesma que excluiu a expressão ―mulher honesta‖ da lei penal. Em 2009, a lei 12.015 renomeou o Título VI para ―Crimes contra a dignidade sexual‖, revogou os crimes de rapto e posse sexual mediante fraude e modificou a redação do crime de estupro, excluindo-se a necessidade de conjunção carnal para configuração do crime. Em que pesem os avanços legislativos, até hoje o sistema de justiça criminal opera sob a chamada ―lógica da honestidade‖, a qual, nas palavras de Vera Andrade, estabelece uma grande linha divisória entre as mulheres consideradas honestas (do ponto de vista da moral dominante) e vítimas, pelo sistema, e mulheres desonestas (das quais a prostituta é o modelo radicalizado), que o sistema abandona porque não se adequam aos padrões de moralidade sexual impostos pelo patriarcado à figura feminina. (ANDRADE, 2012, p. 149-150) 8 Art. 215 - Ter conjunção carnal com mulher honesta, mediante fraude: Pena - reclusão, de um a três anos. Art. 216 - Induzir mulher honesta, mediante fraude, a praticar ou permitir que com ela se pratique ato libidinoso diverso da conjunção carnal: Pena - reclusão, de um a dois anos. Júlio Emílio Cavalcanti Paschoal • Marcela Martins Borba • Tarcila Maia Lopes 446 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . O sistema de justiça criminal continua impregnado com uma ideologia de gênero que coloca as mulheres em submissão, exigindo-lhes um comportamento sexual recatado para que os crimes contra elas praticados mereçam apuração e punição pelo aparato estatal. 4 TRATAMENTO DADO À MULHER CRIMINOSA PELO SISTEMA DE JUSTIÇA CRIMINALENQUANTO AUTORA Sendo o espaço público - atrelado ao homem - o historicamente legitimado como lugar de realização de direitos, de política, do exercício da cidadania e da economia e, acrescentamos, lugar de cometimento da maioria das infrações puníveis9, pelas lentes do senso comum é inconcebível pensar na mulher como infratora. Melhor explicando: se o lugar reservado à mulher é apenas o doméstico, não lhe cabe a dinâmica do espaço público - tanto a positiva (atividade política, reivindicação de direitos, exercício de cidadania etc.) quanto a negativa (cometimento de infrações e de violência). Além disso, vale salientar que a carga simbólica preconceituosa atribuída às atividades domésticas e às mulheres de passividade, submissão e subserviência diferem da simbologia associada preconceituosamente à criminalidade (agressividade, violência, subversão etc.).Na mesma esteira, afirma Ribeiro: "Ao passo em que os homens são incentivados a praticar atividades que valorizem a independência e fomentem a autonomia pessoal de maneira geral, às meninas são impostas diversas restrições em relação aos lugares que se frequentar, aos horários, bem como às relações interpessoais e à sexualidade. Em termos gerais, o feminino é tratado como o espaço do cuidado com o outro, da passividade, da resignação, enquanto o masculino remete ao ativo e ao autônomo, entre outras características. Enquanto os homens são educados para ―lutar‖ por suas convicções e responderem às ofensas – físicas ou verbais –, as mulheres são educadas para se calarem." (RIBEIRO, 2017, p. 82) 9 Se considerarmos que os crimes patrimoniais e os de tráfico de drogas são os principais encarceradores e, em razão disto, se considerarmos os locais de cometimento destes delitos (as ruas, os becos, as vias públicas, os aeroportos etc.), é possível associar, na visão do senso comum, a criminalidade às dinâmicas da esfera pública, predominantemente. 447 IV Colóquio Internacional de Pesquisadores em Direito . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . O sistema criminal de justiça, assim como as outras instâncias das esferas públicas e privadas da sociedade, tende a reproduzir as expectativas de papéis de gênero socialmente impostas. É por esta razão que Chernicharo e Boiteux afirmam que, quando uma mulher comete uma infração, ela é vista como se estivesse rompendo também com as normas sociais e com o seu papel cultural e social pré-estabelecidos (CHERNICHARO; BOITEUX, 2014, p. 5). De acordo com Juliana Ribeiro, a pesquisa de Karla Ishiy indica que as mulheres que se comportam mais adequadamente de acordo com as expectativas sociais sobre o seu gênero, demonstrando preocupação com os filhos ou chorando, por exemplo, tendem a ser menos criminalizadas do que aquelas que fogem a este padrão (RIBEIRO, 2017, p. 81). Dessa forma, a maternidade é vista como uma maneira da mulher desviante se aproximar da "normalidade", já que a representação da maternidade corresponde ao imaginário "feminino" (preocupação com as crianças, passividade, ausência de conduta criminosa) e distante da masculinidade(BRAGA; FRANKLIN, 2016,p. 357). No entanto, o que alguns estudos parecem revelar é que a mulher criminosa, principalmente a traficante, é punida mais severamente quando é mãe. É como se o envolvimento com o tráfico de drogas já denunciasse, por si, uma maternidade irresponsável, muito embora se discuta que justamente o que leva a maior parte das mulheres ao tráfico é a necessidade de manutenção de sua casa e família(BRAGA, FRANKLIN, 2016, p. 352). O caso analisado, como será demonstrado, não foge a estas constatações. Júlio Emílio Cavalcanti Paschoal • Marcela Martins Borba • Tarcila Maia Lopes 448 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 5 ANÁLISE DA SENTENÇA Os casos que serviram de base para este artigo foram de duas pessoas presas em flagrante portando cocaína e tentando embarcar para o exterior. As prisões de ambos ocorreram no aeroporto internacional Gilberto Freire, na cidade do Recife. Marília, 34 anos à época da sentença, primária, sem antecedentes criminais, mãe de sete filhos - o último deles contava com três meses de idade quando ela foi presa e, até a presente data, não voltaram a se encontrar. Foiflagrada no aeroporto do Recife tentando embarcar para o Cabo Verde, portando 965 gramas de cocaína, os quais estavam acondicionados em embalagens de produtos cosméticos. Luciano, 32 anos à época da sentença, primário, sem antecedentes criminais, dois filhos - um dos quais, por trabalhar em um garimpo, não viu nascer e sequer registrou. Foi flagrado no aeroporto do Recife também tentando embarcar para o Cabo Verde com 1.797 gramas encontrados em 149 cápsulas que tinham sido engolidas pelo autuado. Os dois acusados tiveram suas prisões em flagrante convertidas em preventivas nas audiências de custódia, ambas realizadas no plantão do Judiciário federal, e foram defendidos pela Defensoria Pública da União desde este primeiro ato judicial. Eles foram também julgados pelo mesmo juízo. Entre uma sentença e outra há o intervalo de 15 dias. Marília teve a pena-base fixada em oito anos. Na segunda fase da dosimetria, a pena permaneceu no mesmo patamar. Na terceira fase, foi aumentada da metade. A condenação final ficou em doze anos, em regime fechado. Luciano, por sua vez, teve pena-base fixada em seis anos. Na segunda fase da dosimetria, a pena foi reduzida em seis meses (atenuante da confissão, que não foi acolhida para Marília). Na terceira fase, foi aumentada na metade. A condenação final ficou em oito anos e três meses, em regime fechado. O que justifica tamanha diferença na pena dos acusados, considerando que os casos são bastante similares? 449 IV Colóquio Internacional de Pesquisadores em Direito . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Analisando suas sentenças, percebe-se que a diferença fundamental foi a valoração da personalidade e conduta social de Marília10. Enquanto a personalidade e conduta social de Luciano são valoradas de forma neutra, a personalidade e conduta social de Marília são consideradas desfavoráveis, pois ―A circunstância de ter se afastado de filho recém-nascido, cuja certidão de nascimento sequer apresentou, apenas pesa em seu desfavor, pois nem o filho a impediu de ir para São Paulo buscar drogas para transporte internacional. Demonstra, portanto, não ser uma pessoa disposta a trabalhar e estudar para garantir o sustento da sua família, optando pelo caminho do lucro fácil, sem esforço‖. (sem grifos no original) As referências aos filhos de Marília não se restringem apenas à dosimetria da pena. Há 14 menções aos seus filhos na sua sentença, como as que se seguem: ―Apesar de a criança estar com apenas 03 (três) meses de nascida, a ré afirmou que passou a manter um namoro com um homem que conhece apenas por "João" e que residiria em São Paulo, decidindo ir para aquele Estado passar uns dias com ele‖. (sem grifos no original) ―A despeito de a ré supostamente ter um filho em fase de amamentação, nada lhe impediu de ir para São Paulo, alegadamente "a passeio", sem previsão de retorno. Por outro lado, os problemas supostamente enfrentados com João não a impediram de ir, em seguida, cuidar dos cabelos em um salão de beleza‖. ―Não há qualquer fundamento, ainda, para a ré, que já havia deixado o filho recém-nascido para trás, concordar em fazer uma viagem de férias, desta vez para o Cabo Verde‖. (sem grifos no original) ―A denunciada, por outro lado: não comprova como adquiriu a passagem internacional e a forma de pagamento; não esclareceu o que foi fazer no Estado de São Paulo, sem a companhia dos filhosou do suposto namorado "João"‖. (sem grifos no original) Nesta senda, faz-se interessante tecer uma abordagem permeada pela ideia de secondcodes. De acordo com esta, pois, o sistema penal tende a reforçar a seletividade carcerária, permitindo que categorias distintas das jurídicas interfiram fortemente nas 10 O juízo sobre os demais elementos do artigo 59 do Código Penal foi similar. Júlio Emílio Cavalcanti Paschoal • Marcela Martins Borba • Tarcila Maia Lopes 450 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . decisões judiciais. É como se houvesse um segundo código criminal, a depender de quem é o sujeito ativo11. A partir deste viés, concepções pessoais baseadas em estereótipos permeiam os discursos jurídicos, revelando a incoerência e parcialidade do sistema de justiça e seus atores. Em relação aos trechos colhidos, resta evidente que, a despeito de que juízos de valor sobre a maternidade da acusada, sobre sua "vaidade" ou sobre seus relacionamentos não integrarem categorias jurídicas aptas a quantificar a pena, essas avaliações extrajurídicas possuíram um papel fundamental na dosimetria para o caso. Nesta perspectiva, percebe-se que "A reputação da mulher, sem dúvida, continua sendo uma forma de controle informal para defini-la como boa ou má, prostituta ou honesta" (MELLO, 2015, p. 58-59). Não restam dúvidas de que a reputação de Marília, no caso estudado, foi preponderante para a fixação de uma pena-base mais severa que a de Luciano.No mesmo sentido: "Assim, considera-se que o poder punitivo que opera sobre a mulher por meio de aspectos múltiplos, de vigilância num primeiro momento e de punição num outro, caso a ordem patriarcal venha a "falhar" e a mulher adentre à esfera reservada ao controle do homem, o sistema age direcionado a uma seletividade de gênero que fortalece o papel que a mulher deveria exercer na sociedade capitalista patriarcal."(CHERNICHARO; BOITEUX, 2014, p. 5) Dessa maneira, as categorias de mãe e criminosa parecem ser auto-excludentes. Isto não só reafirma a seletividade do sistema de justiça criminal, mas também os papéis de gênero socialmente impostos às mulheres - ainda que em nada possam contribuir para a quantificação da pena no caso concreto(BRAGA; FRANKLIN, 2016, p. 357). 11 O conceito está presente em: MACHADO, Érica Babini Lapa do Amaral; GONÇALVES, Cristhovão Fonseca. Encarceramento como política social de combate às drogas: um estudo sobre secondcodes no julgamento das adolescentes em conflito com a lei no Brasil. Revista Brasileira de Ciências Criminais. vol. 117, ano 23. p. 313-332. São Paulo: Ed. RT, nov-dez 2015. Os autores seguem afirmando que está é uma categoria utilizada na criminologia crítica por David Garland, Lola Anyar de Castro e Ela Wiecko Castilho, por exemplo. 451 IV Colóquio Internacional de Pesquisadores em Direito . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 6 CONSIDERAÇÕES FINAIS A análise comparativa dos dois casos vai ao encontro da literatura feminista e dos resultados apresentados nas pesquisas que relacionam gênero e sistema punitivo: há uma tripla criminalização da mulher. Em primeiro lugar, a penalização ocorre por conta da prática de ato definido como crime pelo sistema de justiça – destacando que essa criminalização faz parte de uma lógica seletiva. Em segundo lugar, a acusada responde por quebrar as expectativas de gênero que são concebidas em relação às mulheres. Por último, talvez a mais cruel das sanções – e no caso analisado, a que mais contribuiu para o agravamento da pena de Marília –, apenalização da ―maternidade irresponsável‖, entendida como a frustração do papel de mãe dedicada. Interessante destacar que essa última criminalização é especialmente rigorosa com as mulheres, não só pela idealização da figura da mãe, mas também por ignorar uma mazela social cada dia mais comum, a da feminizaçãoda pobreza. Este fenômeno consiste na concentração de pobreza em lares chefiados por mulheres, o queagrava o seu acúmulo de responsabilidades (pois lhes cabe o sustento da casa, os afazeres domésticos e cuidado dos filhos e idosos) e dificulta seu já desigual ingresso no mercado formal de trabalho (CHERNICHARO; BOITEUX, 2014, p. 3). No caso estudado, percebe-se que não houve qualquer cuidado na sentença de Marília de se considerar esses fatores. Pelo contrário: a prática do crime revelaria, no entender do Judiciário, que ela não estava disposta a ter um trabalho honesto para prover a subsistência dos seus filhos, tendo optado pelo lucro fácil. Em última análise, percebe-se na decisão judicial – em nada destoante dos textos que embasaram a construção deste artigo – a incidência de um julgamento extrajurídico sobre a acusada. Este julgamento, consubstanciado na fixação da pena, afastou-se de seus fins declarados para servir a uma dupla função: punir o desvio das expectativas de gênero e reforçar o lugar esperado da mulher no imaginário coletivo. Júlio Emílio Cavalcanti Paschoal • Marcela Martins Borba • Tarcila Maia Lopes 452 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . REFERÊNCIAS ANDRADE, Vera Regina Pereira de. Pelas mãos da criminologia: o controle penal para além da (des)ilusão. Rio de Janeiro, Revan; ICC, 2012. ARÁN, Márcia. 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Dissertação (Mestrado em direito) – Programa de Pós- graduação em Ciências Jurídicas, Centro de Ciências Jurídicas / Universidade Federal da Paraíba, João Pessoa, 2017. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .