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UNIDADE 1: INTRODUÇÃO AO ESTUDO DA PSICOPATOLOGIA NA INFÂNCIA E ADOLESCÊNCIA: AS FUNÇÕES PSÍQUICAS E SUAS ALTERAÇÕES TÓPICO 1 – FUNDAMENTOS DA PSICOPATOLOGIA Psicologia: estudo sistemático da vida psíquica “normal”. Psicopatologia: ramo da ciência que estuda as causas, estruturas e manifestações das doenças e dos transtornos mentais. Conjunto de conhecimentos referentes ao adoecimento mental do ser humano. É um conhecimento que se esforça por ser sistemático, elucidativo e desmistificante. Se refere às anomalias, deficiências e enfermidades da mente humana. Se baseia na psiquiatria e se configura a partir de disciplinas biológicas e neurocientíficas aliadas à psiquiatria, psicologia e sociologia. Psicopatologia não é um ramo da Psicologia (que se origina da filosofia) mas uma ciência autônoma, fruto da clínica psiquiátrica. Investiga muitos fatos, cujos correspondentes “normais” ainda não foram estabelecidos pela psicologia, e é muitas vezes a visão do anormal que ensina a explicar o normal. Perspectivas da psicopatologia • Fenomenológica: trata-se da visão mais objetiva, sem teoria preconcebidas. Define as qualidades essenciais dos transtornos mentais, registra as experiências conscientes e os comportamentos dos doentes. • Psicodinâmica: fundamenta-se na observação do comportamento do doente, além das próprias experiências descritas por ele. A perspectiva psicodinâmica propõe-se a explicar as causas dos transtornos mentais, valendo-se principalmente dos processos inconscientes. • Experimental: baseando-se na relação entre os acontecimentos anormais, a perspectiva experimental cria hipóteses a partir do estudo dos elementos associados aos transtornos, explicando as alterações a partir de testes e observações Cada patologia deve ser avaliada de forma única, visto que nada é apenas somático ou apenas psíquico, tornando as abordagens complementares entre si. O uso de medicamentos, por exemplo, pode ser um importante aliado ao tratamento Psicoterápico. Philippe Pinel (1745-1826) : Escola Francesa de Psiquiatria e a Escola Alemã de Psiquiatria Jean-Martin Charcot (1825-1893): Estudo das neuroses. Estudos da histeria e da hipnose Pierre Janet (1859-1947): Através de experimentos com hipnose, descobriu que seus pacientes poderiam relembrar de eventos traumáticos que auxiliavam no processo de cura. Sigmund Freud (1856-1939): Descarga emocional (ab-reação). Psiquiatria das neuroses. Fatores psicológicos dos indivíduos, especialmente o funcionamento inconsciente da mente. Emil Kraepelin (1856-1926: Psiquiatria das psicoses, Os psiquiatras deveriam focar mais nas observações clínicas do que na anatomopatologia. A última grande mudança na Psiquiatria ocorre a partir da década de 1960, quando surgiram os estudos sobre os psicofármacos. A partir da década de 1980, as teorias dos neurotransmissores consolidam-se e continuam sendo as mais utilizadas, partindo de pressupostos como a plasticidade neuronal e, consequentemente, a regeneração dos neurônios. Psicopatologia contemporânea • Tradição médica: fruto das pesquisas clínicas dos então chamados alienistas (nome dado aos especialistas em saúde mental). • Conhecimentos de outras ciências humanas: a Filosofia, a Literatura, a Psicologia, a Psicanálise etc. Jeremy Benthan: criação do termo psicopatologia. Psyché significa alma e Páthos, sofrimento ou doença, e Lógos, estudo ou ciência Karl Jaspers: escreveu a Psicopatologia como uma ciência básica, que serve de auxílio à psiquiatria e à psicologia clínica, a qual é, por sua vez, um conhecimento aplicado a uma prática profissional e social concreta. É preciso estudar o homem considerando sua totalidade. Não basta investigar apenas as vivências humanas em si, mas, também, as condições e causas de que dependem os nexos em que se estruturam, as relações em que se encontram, e os modos em que, de alguma maneira, se exteriorizam objetivamente. O domínio dessa ciência se estende a todo fenômeno psíquico que se possa apreender em conceitos de significação constante e com possibilidades de comunicação. É da natureza da Psicopatologia ser um campo de conhecimento que não admite uma teoria única e predominante, trata-se de uma ciência que exige debate constante e aprofundado. Diferentemente de outras ciências, o conflito de ideias não é um problema, mas uma necessidade. A evolução da Psicopatologia reside justamente nas tentativas de esclarecimento e aprofundamento das diferentes teorias. O debate sobre normalidade e anormalidade é vivo e está em constante atualização, visto que há sempre um juízo de valor e conotações políticas e filosóficas ao se categorizar algo como patológico, impactando o modo como milhares de pessoas estarão situadas em suas vidas na sociedade. Ao nos depararmos com a palavra “saúde mental”, devemos pensar não só em Psiquiatria e Neurologia, mas principalmente em Psicologia, Psicanálise, Fisiologia, História, Geografia e tantas outras áreas do conhecimento que fazem parte do conceito de saúde mental. Devemos considerar como boas práticas em saúde mental as práticas acessíveis a todos, baseadas em premissas éticas, em evidências científicas e na experiência, singular e coletiva. Para os gregos, a doença não é somente desequilíbrio ou desarmonia; ela é, também, “o esforço que a natureza exerce no homem para obter um novo equilíbrio. A doença é uma reação generalizada com intenção de cura. O organismo desenvolve uma doença para se curar” (CANGUILHEM, 2009, p. 11). Canguilhem (2009) propõe que o estado patológico é uma norma que não tolera nenhum desvio das condições na qual é válida, assim, o que caracterizaria o doente seria sua incapacidade de ser normativo. A saúde, em oposição, seria a capacidade de estar adaptado às exigências do meio, criar e seguir novas normas de vida, já que o normal é viver num meio onde flutuações e novos acontecimentos são possíveis.Por essa razão, compreende-se o motivo do debate sobre normalidade e anormalidade estar vivo e em constante atualização, visto que há sempre um juízo de valor e conotações políticas e filosóficas ao se categorizar algo como patológico, impactando o modo como milhares de pessoas serão situadas em suas vidas na sociedade (DALGALARRONDO, 2019). Aquilo que é normal, apesar de ser normativo em determinadas condições, pode se tornar patológico em outra situação, se permanecer inalterado. O indivíduo é que avalia essa transformação porque é ele que sofre suas consequências, no próprio momento em que se sente incapaz de realizar as tarefas que a nova situação lhe impõe” (CANGUILHEM, 2009, p. 59). Normalidade como ausência de doença: a saúde como a ausência de sintomas, ou seja, estamos definindo a saúde pelo seu negativo, o que parece não resolver o problema conceitual. Normalidade estatística: normalidade aplicada às situações quantitativas. Se quem está dentro da curva de distribuição normal são justamente os indivíduos “normais”, quem está fora da curva automaticamente se torna anormal ou doente. critério muitas vezes falho em saúde geral e mental, pois nem tudo o que é frequente é necessariamente ‘saudável’, assim como nem tudo que é raro ou infrequente é patológico. Normalidade como bem-estar: que mais se aproxima da apresentada anteriormente pela Organização Mundial da Saúde (OMS), que define saúde como o “completo bem-estar físico, mental e social”, e não simplesmente como ausência de doença. As críticas que são feitas a essa definição deve-se ao fato de que é difícil definir bem-estar de forma objetiva, além disso, pensar em um “completo bem-estar” faria com que poucas pessoas pudessem ser classificadas como saudáveis. Normalidade como processo: são considerados os aspectos dinâmicos do desenvolvimento psicossocial, das desestruturações e das reestruturações ao longo do tempo, de crises, de mudanças próprias para certos períodos etários. Segundo Dalgalarrondo (2019), esse conceito é particularmente útil na chamada psicopatologia do desenvolvimento, relacionada à psiquiatria e à psicologia clínica de crianças, adolescentese idosos. -Normalidade subjetiva: Ainda que se trate de uma proposta interessante, pois nessa visão a percepção subjetiva do indivíduo com relação ao seu estado de saúde é o mais importante, pode ser um critério falho, pois há pessoas que estão “se sentindo muito bem, felizes” em fases maníacas de um transtorno bipolar, por exemplo. -Normalidade operacional: O critério operacional é o mais pragmático de todos. Isso porque são definidas de forma explícita o que é o normal e o que é o patológico e busca-se trabalhar operacionalmente com esses conceitos. De certa forma, essa perspectiva da normalidade seria a mais utilizada em manuais de classificação como o CID e o DSM. -Boas práticas em saúde mental: Trata-se de práticas acessíveis a todos, baseadas em premissas éticas, em evidências científicas e na experiência, singular e coletiva. A busca da equidade e do “melhor cuidado” na dimensão da experiência, valorizando práticas terapêuticas e experiências locais ou regionais de organização da rede de serviços (THORNICROFT; TANSELLA, 2010).15 A reforma da medicina com base em quatro princípios: • A saúde da população é uma questão de interesse social direto. • As condições econômicas e sociais exercem impacto importante na saúde e na doença, e essas relações devem ser objeto de investigação científica. • As medidas adotadas para promover a saúde e conter as doenças devem ser tanto sociais como médicas. • As estatísticas médicas devem ser nosso padrão de medida ATENÇÃO BÁSICA PSICOSOCIAL Um dos objetivos da Atenção Básica é dedicar esforços à atenção à saúde, considerando o meio ambiente, o estilo de vida e a promoção da saúde como seus fundamentos básicos. Para tanto, é necessário desenvolver e utilizar tecnologias próprias à Atenção Básica à Saúde. Dentre elas, podemos destacar: • “Considerar a necessidade de atenção e cuidado para com todas as demandas dos usuários”. • Ampliar a capacidade dos profissionais para lidar com as dimensões psíquica e social (cultural, profissional, econômica etc.) dos indivíduos, inclusive as suas próprias, que interagem. • “Ampliar as capacidades comunicativas e gerenciais dos profissionais, necessárias para a atuação em comunidade e para a organização da assistência” É fundamental considerar os conhecimentos e habilidades dos profissionais, a capacidade de trabalho em equipe, os meios constituídos pela interação dos profissionais entre si e destes com os usuários e a comunidade no processo de trabalho, buscando um modelo produtor do cuidado, centrado no usuário e suas necessidades. É preciso pensar a saúde pública a partir da perspectiva da prevenção das desordens, e não apenas seu tratamento, considerando as associações existentes entre o contexto social e as doenças mentais. Isso porque a qualidade do ambiente social “está fortemente relacionada ao risco que ela tem de sofrer de uma doença mental, ao desencadeador de um episódio da doença e à probabilidade dessa doença tornar-se crônica” (THORNICROFT; TANSELLA, 2010, p. 13). Ainda segundo as autoras, a pobreza parece ser um fator crucial em muitas dessas complexas relações, visto que o impacto cumulativo da pobreza pode produzir efeitos continuados sobre o funcionamento físico, cognitivo, psicológico e social. O modelo de atenção à saúde no Brasil é representado pelo Sistema Único de Saúde (SUS) e pode ser caracterizado como um sistema integrado, organizado em rede de forma regionalizada e hierarquizada. A organização dos serviços de saúde é composta por três grandes conjuntos de ações e serviços do SUS: • A atenção básica (o programa de agentes comunitários de saúde, a estratégia da família e as unidades básicas e ambulatórios hospitalares). • A média complexidade (unidades ambulatoriais e hospitalares especializadas, públicas e privadas). • As redes de alta complexidade (referência nacional em várias especialidades médicas). Considerando a atenção psicossocial básica, Amarante (2013, s.p.) aponta que “os serviços de atenção psicossocial devem ter uma estrutura bastante flexível para que não se tornem espaços burocratizados, repetitivos, pois tais atitudes representam que deixariam de lidar com as pessoas e sim com as doenças”. Apresentaremos os principais serviços implementados no Brasil -Rede de Atenção Psicossocial (RAPS): a rede de serviços de saúde de caráter aberto e comunitário constituído por equipe multiprofissional e que atua sobre a ótica interdisciplinar e realiza prioritariamente atendimento às pessoas com sofrimento ou transtorno mental, incluindo aquelas com necessidades decorrentes do uso de álcool e outras drogas, em sua área territorial, seja em situações de crise ou nos processos de reabilitação psicossocial e são substitutivos ao modelo asilar (BRASIL, 2017). É constituída por diversos componentes como a Unidade Básica de Saúde, o Núcleo de Apoio à Saúde da Família, o programa Consultório na Rua, os Centros de Convivência e Cultura, além dos Centros de Atenção Psicossocial. -Centros de Atenção Psicossocial (CAPS): oferecem acolhimento e tratamento multiprofissional aos usuários, sem necessidade de agendamento prévio ou encaminhamento. O usuário que procura o CAPS é acolhido e participa da elaboração de um Projeto Terapêutico Singular específico para as suas necessidades e demandas. Uma equipe multiprofissional composta por médicos psiquiatras, psicólogos, assistentes sociais, enfermeiros, terapeutas ocupacionais avaliam o quadro do usuário e indicam o tratamento adequado para cada caso. O CAPS também atua no acolhimento às situações de crise, nos estados agudos da dependência química e de intenso sofrimento psíquico. Os CAPS são divididos em I, II ou III, de acordo com o número de habitantes de cada município, e também em CAPSi (atendimento de crianças e adolescentes) e CAPSad (atendimento de dependência química – álcool e drogas). -Saúde mental e Saúde da família: A Estratégia Saúde da Família (ESF) é composta por um médico generalista, um enfermeiro, um auxiliar de enfermagem e de quatro a seis agentes de saúde, esses devem ser residentes no próprio território de atuação da equipe.ESF visa à reorganização da atenção básica no país, de acordo com os preceitos do Sistema Único de Saúde, -As Cooperativas e os Centros de convivência: “constituídas com a finalidade de inserir as pessoas em desvantagem no mercado econômico, por meio do trabalho” e que “se fundamentam no interesse geral da comunidade em promover a pessoa humana e a integração social dos cidadãos” (BRASIL, 1999) e, muito embora tivesse nascido no âmbito do movimento social da saúde mental e reforma psiquiátrica, ampliou o leque de beneficiários da lei (AMARANTE, 2013). TÓPICO 2 – PSICOPATOLOGIA E PSICOSSOMÁTICA O conceito de psicossomático surge no início do século XX, inspirado na “arte de curar” da Medicina. Podemos definir psicossomático como o estudo das relações entre as emoções e os males do corpo, sendo que somatização é a “manifestação de transtornos psicológicos – conflitos e angústias – por meio de sintomas corporais. Essas tendências podem se manifestar através de respostas a estresse psicossocial” (FERREIRA, 2015, p. 40). A psicossomática evoluiu em três fases: • Inicial, ou psicanalítica, em que predominavam os estudos sobre o inconsciente e sua relação com as enfermidades. • Intermediária, ou behaviorista, o foco dessa fase era a pesquisa em homens e animais, baseando-se em princípios das ciências exatas e com ênfase nos estudos sobre estresse. • Atual ou multidisciplinar, essa perspectiva entende a psicossomática a partir de suas interações e interconexões entre os diversos profissionais de saúde (MELLO-FILHO, 2010). Atualmente, a psicossomática pode ser considerada como uma ideologia sobre a saúde, o processo de adoecimento e as práticas em saúde. Portanto, nessa concepção, a doença é vista como a impossibilidade da mente em processar os conflitos psíquicos, onde mente e corpo são considerados como partes inseparáveis. Esse processo inconsciente dispõe de reflexo psíquico e corporal que, ativados, atuamnos órgãos suscetíveis a sofrer determinadas enfermidades . AS MANIFESTAÇÕES PSICOSSOMÁTICAS Na teoria psicossomática, considera-se que os órgãos possuem significados inconscientes, adquirem linguagem e expressão sobre forma de “somatização”, que ressalta nos processos inconscientes e nos sintomas da doença orgânica sob a percepção exterior, consciente. As alterações somáticas seriam, portanto, “sinais e sensações privadas do significado afetivo, que tendem a apresentar-se como distorção da realidade e são conduzidas à interpretação como sendo enfermidades somáticas de causa interior ou influência externa” (FERREIRA, 2015, p. 41). Alguns pressupostos: • O objeto do estudo do médico é o homem doente e não a doença. • Não há doenças locais. Toda a enfermidade é geral e acomete o indivíduo como um todo. • O indivíduo isolado é uma abstração e só pode ser concebido em seu ambiente. • Os estados emocionais podem perturbar o funcionamento de qualquer órgão e são tão eficazes na produção de modificações somáticas quanto os estímulos físicos. • Não são preocupações conscientes, reais, mas conflitos inconscientes os principais responsáveis pelos sintomas somáticos. • Os distúrbios funcionais podem, pela continuidade ou intensidade, acarretar lesões estruturais. INFÂNCIA E PSICOSSOMÁTICA Os problemas considerados como “puramente psicológicos” na infância são grandes, principalmente os de natureza psicossomática, revelando desordens somáticas dependentes em grande parte de fatores emocionais ou distúrbios ligados ao terreno da “doença física”, tendo ligações com o sistema nervoso vegetativo ou com fatores psicológicos. É comum que tais desordens estejam correlacionadas com o desenvolvimento emocional da criança, o qual se processa conjuntamente com o desenvolvimento psicossexual (ARRUDA, 2015) Winnicott entende que é necessário um meio ambiente perfeito para que ocorra o desenvolvimento saudável do psicossoma, esse ambiente seria representado pelo útero, enquanto o nascimento seria uma perturbação a essa homeostase, uma espécie de trauma (BELMONT, 2010). Nesse sentido, para a teoria winnicottiana, o ser humano seria capaz de recordar tudo o que lhe acontece, tanto em nível físico quanto emocional. Por isso que o autor se dedicou tanto aos atendimentos com crianças, destacando a importância das psicoterapias nessa faixa etária. Winnicott provou que os cuidados pós-natais são essenciais na integração psicossomática e nas fundações de tempo e espaço (BELMONT, 2010). A psicossomática na infância pode ser então entendida pelo estudo das interações entre o bebê, que possui estrutura genética, capacidades e incapacidades específicas, e o meio ambiente. É a partir desse encontro que “poderá resultar integração psicossomática ou não. Mesmo potenciais genéticos particulares podem ser ativados ou não, dependendo do maior ou menor nível de estresse que ocorra durante a gestação” (BELMONT, 2010, p. 573). ADOLESCÊNCIA E PSICOSSOMÁTICA A adolescência poderia ser então encarada como um processo psicossomático e não patológico, visto que o corpo muda e passa a ter novas funções, tornando-se um novo soma. Geralmente, o psiquismo se adapta para essas novas condições, mantendo a conexão psique-soma, ou mente-corpo. Entretanto, a perda dessa conexão pode significar o adoecimento do corpo, é a saída psicossomática enquanto construção de um sintoma apontando para a impossibilidade de simbolização do novo corpo. Busca de si mesmo e de sua identidade. • Tendência a formar grupos, que há atuações de aparência psicopática, porém normais para essa etapa do desenvolvimento. • Necessidade de intelectualizar e fantasiar, que aparece na preocupação do adolescente por princípios éticos, filosóficos e sociais. • Evolução da sexualidade, desde o autoerotismo à aquisição de uma vida genital adulta. • Atitude social reivindicatória, com tendência a assumir atitudes antissociais, diretamente relacionada com o modo como é recebido pelo mundo adulto. • Instabilidade de conduta, variando do hostil ao amoroso. • Necessidade de separar-se progressivamente dos pais ou de seus substitutos. • Variações constantes do humor (irritabilidade, depressão, euforia). A origem de todo conflito psicossomático está na presença do ritmo dentro do ventre materno. A criança, nesse período, vivencia os movimentos da mãe, sua cadência, o som do coração e a sensibilidade plena desse corpo, e essas vibrações são transmitidas para o inconsciente desse feto, que elabora suas primeiras impressões da vida” (FERREIRA, 2015, p. 43). OS TRANSTORNOS MENTAIS A Organização Mundial de Saúde (OMS) e a Organização das Nações Unidas (ONU) caracterizam os transtornos mentais como alterações mórbidas do modo de pensar e/ou do humor (emoções), e/ou por alterações mórbidas do comportamento associadas a angústia expressiva e/ou deterioração do funcionamento psíquico global. Os transtornos mentais não constituem, apenas, em variações dentro da escala do normal, mas em fenômenos anormais ou patológicos (FERREIRA, 2015). As referências mais utilizadas para as classificações diagnósticas são o Manual de Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM), e a Classificação Internacional de Doenças (CID). Mesmo com essas classificações, nem sempre é possível diferenciar com clareza um transtorno mental de um comportamento normal. Acredita-se que os transtornos mentais sejam ocasionados por uma interação complexa entre fatores genéticos, biológicos, psicológicos e ambientais. Atualmente, a Psiquiatria tem valorizado o aspecto genético dos transtornos mentais, compreendendo que estes ocorrem a partir de composições genéticas vulneráveis a determinados transtornos. Ao associar essa vulnerabilidade a fatores como o estresse ou problemas relacionados ao trabalho, pode-se dar origem ao desenvolvimento de um transtorno mental. AS SÍNDROMES E OS SINTOMAS Síndrome é definida como uma reunião de sintomas e sinais que estão associados a mais de uma causa e que podem definir determinada patologia ou condição. Diferentemente do que acontece nas doenças, a sintomatologia das síndromes é inespecífica, podendo ter diversas origens. É por isso que alguns pacientes diagnosticados com síndromes podem nunca chegar a uma conclusão definitiva sobre a causa de seus sinais e sintomas. As síndromes podem apresentar-se como: ansiedade generalizada (sintomas ansiosos excessivos), crise de ansiedade (crises intermitentes), crise de pânico (crises intensas de ansiedade), síndrome do pânico (crises recorrentes com desenvolvimento de medo), síndrome mista de ansiedade e depressão (sintomas depressivos e ansiosos), ansiedade de origem orgânica (síndrome ansiosa em decorrência de doença ou condição orgânica) (FERREIRA, 2015). Quanto aos sintomas, podem ser definidos como alterações no corpo percebidas e relatadas pelo próprio sujeito, como dor de cabeça, angústia, náusea etc. Os sintomas são aspectos subjetivos e, diferentemente dos sinais, não é possível observá-los diretamente. Já os sinais são objetivos e não dependem do relato do sujeito, pois podem ser observados diretamente como a febre ou o edema. TÓPICO 3 – AS FUNÇÕES PSÍQUICAS E SUAS ALTERAÇÕES AS FUNÇÕES PSÍQUICAS ELEMENTARES Não existem funções psíquicas isoladas ou doenças que acometem exclusivamente uma função, é preciso considerar que as pessoas adoecem na sua totalidade. Nos transtornos mentais, os sintomas estão ligados estruturalmente entre si, não devemos encará-los apenas como um agrupamento. A Psicopatologia é definida a partir de um fundo mental e das relações inter-humanas, mais do que pelos sinais e sintomas apresentados pelo sujeito. A CONSCIÊNCIA E A ATENÇÃO A consciência constitui uma síntese ou integração de todos os processos mentais em determinado momento. Na definição neuropsicológica, a consciência está ligada ao estado de vigilância, de clareza. Para a psicologia, a consciência representa a soma total das experiências conscientes em determinado momento, ou seja, trata-se de um campo. A consciência psicológica pode ser consideradamais como uma qualidade subjetiva que os processos mentais, como sensopercepção, memória, imaginação, pensamento, afeto e vontade, podem ter. Algumas características da consciência são: relacionar-se com vivências internas e atuais; é central na distinção eu/não eu; é o conhecimento que os indivíduos possuem de suas vivências internas, de seu corpo e do mundo externo; possui intencionalidade além de ser reflexiva. A consciência pode sofrer alterações consideradas normais, como o sono, ou patológicas (de forma quantitativa ou qualitativa). Uma das patologias quantitativas que pode acometer a consciência são os diversos graus de rebaixamento, divididos em: obnubilação, torpor, sopor e coma. Quanto às alterações qualitativas, podemos citar os estados crepusculares, a dissociação da consciência, o transe e o estado hipnótico (DALGALARRONDO, 2019). A atenção, por sua vez, pode ser definida como o estado de concentração da atividade mental sobre determinado objeto, ou ainda como o processo pelo qual a consciência é direcionada para determinado estímulo (imagem, afeto ou pensamento). A atenção voluntária está relacionada a um esforço intencional e consciente na direção do objeto. A atenção espontânea ou involuntária consiste na reação automática, não consciente e não intencional aos estímulos. Nos últimos anos, a neuropsicologia passou a subdividir os estudos da atenção em: capacidade e foco de atenção, atenção seletiva, atenção dividida, atenção alternada, atenção sustentada e seleção de resposta e controle executivo. Dentro das possíveis alterações da atenção, destacam-se: • Hipoprosexia: é a mais comum e a menos específica, há uma perda básica da capacidade de concentração, aumento da fadiga, dificuldade para lembrar, pensar e raciocinar. • Hiperprosexia: estado exacerbado da atenção, é caracterizada pela obstinação e pela infatigabilidade. • Distração: não é uma anormalidade em si, mas um sinal de que o indivíduo está concentrado em determinado objeto e inibindo outras coisas ao seu redor. • Distraibilidade: estado patológico representado pela instabilidade e mobilidade da atenção voluntária, com dificuldade ou incapacidade para se fixar ou se ater. A ORIENTAÇÃO E AS VIVÊNCIAS DO TEMPO E DO ESPAÇO A orientação espacial significa saber exatamente onde se está e pode ser investigada perguntando ao paciente se ele sabe o lugar exato onde ele se encontra (prédio, bairro, cidade, país). Já a orientação temporal significa saber o dia da semana, mês e ano em que se está. Com relação ao desenvolvimento infantil, a orientação temporal é adquirida mais tardiamente que a espacial. São inúmeros os tipos de desorientações e variam de acordo com a alteração de base que a condiciona. A desorientação geralmente acomete primeiro questões relacionadas ao tempo, quando há agravamento do transtorno, o indivíduo desorienta-se quanto ao espaço e, por fim, quanto a si mesmo. Podemos citar alguns quadros como: desorientação por deficit intelectual, desorientação por dissociação, desorientação por redução do nível de consciência, desorientação apática, desorientação delirante etc. (DALGALARRONDO, 2019). Quanto às alterações nas vivências do tempo, em quadros depressivos graves, a passagem do tempo é percebida como lenta e vagarosa. Em contrapartida, nos estados maníacos, é percebida como rápida e acelerada. Nas intoxicações por alucinógenos ou psicoestimulantes, há uma deformação acentuada da percepção da duração temporal, enquanto no caso de pacientes com esquizofrenia, há certa passividade em relação ao fluir do tempo. Em casos graves, há uma verdadeira desintegração da sensação do tempo e do espaço (DALGALARRONDO, 2019). A SENSOPERCEPÇÃO E A MEMÓRIA Segundo Dalgalarrondo (2019), o processo de sensopercepção se dá através da imagem perceptiva real ou imagem, que possui qualidades como nitidez, estabilidade, corporeidade, extrojeção, ininfluenciabilidade voluntária e completude. Com relação às alterações quantitativas, as imagens perceptivas têm intensidade anormal e podem configurar, segundo Cheniaux (2015): • Hiperestesias: as percepções encontram-se anormalmente aumentadas em sua intensidade ou duração. Os sons são ouvidos de forma muito amplificada e as imagens visuais e as cores tornam-se mais vivas e intensas. • Hipoestesias: o mundo é percebido como mais escuro e as cores tornam-se mais pálidas e sem brilho. • Hiperpatias: sensações desagradáveis são produzidas por um leve estímulo da pele, por exemplo, uma queimação dolorosa. • Anestesias: perda da sensação tátil em determinada área da pele. • Analgesias: perda das sensações dolorosas. As alterações qualitativas da sensopercepção são representadas pela: • Ilusão: percepção falseada, deformada, de um objeto real e presente. • Alucinação: esse fenômeno ocorre quando se interpreta como estando no campo perceptual um objeto que de fato não está. • Pareidolia: trata-se de imagens criadas intencionalmente a partir de percepções reais de elementos sensoriais imprecisos, por exemplo: ver figuras humanas em nuvens ou em manchas na parede. • Sinestesia: ocorre quando o estímulo sensorial em uma modalidade é percebido como uma sensação em outra modalidade, por exemplo: ver sons, ouvir cores etc. (CHENIAUX, 2015). A memória pode ser definida como a capacidade de codificar, armazenar e evocar as experiências, impressões e fatos que ocorrem em nossas vidas. Portanto, tudo o que aprendemos depende intimamente da memória. Pesquisadores das neurociências têm atribuído papel central à memória e à identidade do ser humano, perder a memória, nessa perspectiva, significaria perder a si mesmo e a história de uma vida. A memória psicológica possui três fases, a saber: codificação (captar e codificar informações), armazenamento (reter as informações) e recuperação ou evocação (as informações são recuperadas para os devidos fins). Dentro desse processo, a neuropsicologia moderna divide a memória em quatro momentos temporais: • Memória sensorial e depósito sensorial (até 1 segundo): as memórias sensoriais são ricas em conteúdo, mas brevíssimas em tempo. São os estímulos visuais e auditivos que recebemos constantemente, mas que guardamos por menos de um segundo. • Memória imediata ou de curtíssimo prazo (de poucos segundos até 1 a 3 minutos): é a capacidade de reter algum tipo de informação imediatamente após ter recebido, como um número de telefone que discaremos logo em seguida. • Memória recente ou de curto prazo (de poucos minutos até 3 a 6 horas): refere-se à capacidade de reter a informação por curto período e com uma capacidade limitada. • Memória de longo prazo ou remota (de dias, meses até muitos anos): a memória de longo prazo representa o armazenamento permanente de informações. Mesmo sendo fixadas há alguns minutos, são informações que poderão ser evocadas por anos ou até por toda a vida. É um tipo de memória de capacidade bem mais ampla em termos de itens a serem guardados que a memória imediata e a recente. As memórias de longo prazo podem ser divididas em explícitas e implícitas. As memórias explícitas representam informações acessíveis à consciência, sendo possível evocá-las voluntariamente, podendo ser expressas em palavras. A memória implícita é um tipo de memória que adquirimos e utilizamos sem que percebamos, sem consciência e, geralmente, sem esforço. É uma forma relativamente automática e espontânea, como andar de bicicleta ou saber escovar os dentes (CHENIAUX, 2015; DALGALARRONDO, 2019). As alterações quantitativas da memória podem ocorrer com a hipermnésia, resultando na aceleração do pensamento, além de numerosas recordações pouco claras e que fluem rapidamente ou com a amnésia (anterógrada ou retrógrada), quando perdem-se elementos mnêmicos para fatos posteriores a um trauma, no caso da anterógrada, ou para fatos ocorridos antes do trauma, no caso da retrógrada. Quanto às alterações qualitativas da memória os quadros mais comuns são: • Ilusões mnêmicas: elementos falsos são acrescidos à uma lembrança verdadeira. • Alucinações mnêmicas: memóriasfantasiosas, sem dados de realidade. • Fabulação: produções de relatos, narrativas e ações que são involuntariamente incongruentes com a história passada do indivíduo. • Criptomnésias: as lembranças não são reconhecidas como memória, o indivíduo as vivenciam como um fato novo. • Pseudologia fantástica: histórias e construções fantasiosas mescladas com a realidade, o sujeito acometido responde com fluência e realmente crê no que fala. A VONTADE E A PSICOMOTRICIDADE A vontade constitui um processo psíquico de escolha de uma entre várias possibilidades de ação, uma atividade consciente de direcionamento da ação. O ato volitivo se dá, de forma geral, como um processo composto por quatro etapas: intenção, deliberação, decisão e execução (CHENIAUX, 2015). As alterações quantitativas da vontade são definidas como: hiperbulia (aumento da vontade e da iniciativa), hipobulia (diminuição da vontade, comum em quadros depressivos) e a abulia (ausência da vontade, ocorre em depressões graves e quadros neurológicos). Dentre as alterações qualitativas podemos citar os atos compulsivos, os atos impulsivos, o negativismo, a obediência automática etc. (CHENIAUX, 2015). Já as ações psicomotoras são atos voluntários e conscientes no que diz respeito à motivação e a finalidade, representando a última etapa do processo volitivo: a execução. Essas ações possuem conteúdos psicológicos, sendo a expressão final de todo evento psíquico, inclusive da fala.As alterações quantitativas da psicomotricidade são divididas em: apraxia (dificuldade ou impossibilidade de realizar atos motores voluntários), hipocinesia (diminuição acentuada e generalizada dos movimentos voluntários) e hipercinesia (aumento patológico da atividade motora voluntária). Já as alterações qualitativas da psicomotricidade manifestam-se através da ecopraxia (repetição automática de ações motoras executadas por outra pessoa, como a postura ou a fala), das estereotipias (ações motoras desprovidas de finalidade e de sentido, como gestos, movimentos ou palavras e frases) etc. (CHENIAUX, 2015). A AFETIVIDADE E O PENSAMENTO As alterações quantitativas da afetividade ocorrem através da exaltação afetiva (aumento da intensidade ou duração dos afetos) ou do embotamento afetivo (diminuição da intensidade e da excitabilidade dos afetos, sejam eles positivos ou negativos). As alterações qualitativas da afetividade podem ser divididas em distúrbios da modulação afetiva e distúrbios do conteúdo dos afetos. Entre os distúrbios da modulação afetiva estão: a labilidade afetiva, a incontinência afetiva e a rigidez afetiva. Entre os distúrbios do conteúdo dos afetos estão: a paratimia, a ambitimia e a neotimia (CHENIAUX, 2015). Definições e classificações das alterações do pensamento: • Quantitativas: curso (aceleração, alentecimento, interrupção). • Qualitativas: forma (fuga de ideias, desagregação, prolixidade, minuciosidade, perseveração) e conteúdo (concretismo; ideias delirantes, deliroides e sobrevaloradas). O JUÍZO E A LINGUAGEM Alterações patológicas do juízo: • Delírio: ideias que o indivíduo trata como verdadeiras com toda convicção, entretanto, estão distantes da realidade. • Ideia deliróide: são delírios secundários às circunstâncias de vida da pessoa; são compreensíveis pois estão baseados em evidências delirantes. Alterações da linguagem são: • Afasias: perda da linguagem falada e ouvida, por incapacidade de compreender e utilizar os símbolos verbais, decorrente de lesão neuronal. • Agrafia: incapacidade da expressão através da linguagem escrita, sem que haja qualquer déficit motor ou perda cognitiva global. • Alexia: é a perda da capacidade previamente adquirida para a leitura, decorrente de disfunção ou lesão neuronal. • Afonia: perda da voz sem danos neurológicos e musculares. Geralmente ocorre após um evento de vida estressante. • Ecolalia: repetição, como um eco, da última ou últimas palavras proferidas por alguma pessoa no ambiente. • Parafasia: deformação ou troca de palavras, podendo ser literais ou verbais. As alterações da fala são inúmeras e podem ocorrer de forma mecânica (sem a presença de transtornos mentais) ou associadas a algum tipo de transtorno mental, que são o objeto de estudo da Psicopatologia. O aprofundamento no estudo das alterações da fala pode ser feito em Dalgalarrondo (2019) ou Cheniaux (2015). AS FUNÇÕES PSÍQUICAS COMPOSTAS Diferentemente das funções psíquicas elementares, as funções psíquicas compostas resultam de agrupamentos de funções, trata-se de uma somatória de atividades e capacidades mentais e comportamentais. As principais funções psíquicas compostas apresentadas foram: o Eu e o Self, a Personalidade e a Inteligência. O EU E O SELF O Eu se desenvolve ao longo do primeiro ano de vida da criança, tornando-se mais nítido e consistente após esse período. Após o primeiro ano, a criança desenvolve a capacidade de perceber e representar objetos autônomos e estáveis em sua mente, além de elaborar uma visão de si mesma como um ser independente dos demais (DALGALARRONDO, 2019). Para a Psicanálise, é no contato com a realidade que a criança desenvolve o Eu (Ego), considerando as adaptações do aparelho psíquico. O ego seria composto a partir de quatro etapas: contato com a realidade e com o princípio de realidade; investimento amoroso dos pais sobre a criança; projeção dos desejos inconscientes dos pais sobre a criança e a assimilação desses desejos pela própria criança, e a identificação da própria criança com os modelos parentais. Skinner: um dos precursores do Behaviorismo Radical, o conceito de Eu pode ser definido como um dispositivo que representa um sistema de respostas funcionalmente unificado. O Eu representaria algo que o indivíduo faz, determinado por condições distintas ao organismo. Portanto, o termo se referiria a um modo de ação comum, determinado por estímulos e condições emocionais. Psicologia Humanista: o conceito de self, também chamado de autoconceito e de noção de Eu, é a percepção de si e da realidade pela própria pessoa. Trata-se de uma estrutura, um conjunto organizado e mutável de percepções relativas ao próprio indivíduo, podendo ser divididas em: características, atributos, qualidades e defeitos etc. A PERSONALIDADE Os construtos que mais influenciaram a visão de personalidade para a Psicopatologia são a constituição corporal, o temperamento e o caráter. A constituição corporal seria responsável pela aparência física, voz e gestos dos indivíduos, influenciando nossas experiências psicológicas ao longo da vida. O temperamento seria determinado por fatores genéticos ou constitucionais precoces, formando a base genético-neuronal da personalidade. Nessa perspectiva, os indivíduos nasceriam com certas tendências (mais ativo ou mais passivo, mais reativo ou menos reativo etc.). Por fim, o caráter se constituiria a partir dos elementos da personalidade de base psicossocial e sociocultural. O caráter, portanto, “resultaria do temperamento moldado, modificado e inserido no meio familiar e sociocultural. O termo ‘caráter’, portanto, diz respeito aos aspectos mais especificamente psicológicos da personalidade” (DALGALARRONDO, 2019, n. p). A INTELIGÊNCIA É possível que a inteligência não seja propriamente uma função psíquica específica, e sim uma medida de rendimento do pensamento, particularmente do raciocínio. Para Dalgalarrondo (2019), a inteligência é o conjunto das habilidades cognitivas da pessoa, a resultante, o vetor final dos diferentes processos intelectivos. UNIDADE 2: AVALIAÇÃO E DIAGNÓSTICO EM PSICOPATOLOGIA: INFÂNCIA E ADOLESCÊNCIA TÓPICO 1 – AVALIAÇÃO DAS FUNÇÕES PSÍQUICAS A AVALIAÇÃO CLÍNICA O processo de avaliação clínica e o diagnóstico são essenciais para o estudo da Psicopatologia. A avaliação clínica pode ser definida como a medição sistemática dos fatores psicológicos, biológicos e sociais em um indivíduo que pode, ou não, apresentar um transtorno psicológico. AVALIAÇÃO FÍSICA Segundo Dalgalarrondo (2019), são vários os motivos pelos quais as doenças físicas são subdiagnosticadasem pacientes com transtornos mentais graves, sendo eles: • O clínico geral tende a não examinar adequadamente o paciente com transtornos mentais graves, pois ele não é “seu paciente”, é “paciente apenas do psiquiatra ou do psicólogo”. • O psiquiatra não realiza o exame físico do indivíduo, pois não se considera “médico do corpo”, mas “especialista da mente”.Esses pacientes têm dificuldades em acessar os serviços gerais de saúde. • Os pacientes podem ter dificuldades em comunicar objetivamente suas queixas somáticas. • Esses indivíduos podem não ser adequadamente ouvidos pelos médicos em geral, pois o estigma de “louco” pode invalidar suas queixas somáticas. • Em muitos serviços de saúde, há um certo preconceito contra pessoas com transtornos mentais, dificultando os cuidados na saúde física. O tratamento de qualquer pessoa com transtorno mental, sobretudo grave, deve ser acompanhado da possibilidade de doenças físicas. O exame físico do paciente com transtornos mentais pode ser um excelente instrumento de aproximação afetiva. AVALIAÇÃO NEUROLÓGICA Os objetivos da avaliação neuropsicológica são, basicamente, auxiliar no diagnóstico diferencial, estabelecer a presença ou não de disfunção cognitiva e aferir o nível de funcionamento em relação ao nível ocupacional. AVALIAÇÃO PSICOLÓGICA E O PSICODIAGNÓSTICO A avaliação psicológica refere-se à coleta e interpretação de dados, obtidos por meio de um conjunto de procedimentos confiáveis como os testes, as entrevistas, observações e a análise de documentos (KRUG; TRENTINI; RUSCHEL, 2016). A avaliação psicológica ocorre a partir de três conceitos básicos: confiabilidade, validade e padronização. A confiabilidade é o grau em que uma medida é consistente e está relacionada à padronização dos diagnósticos. A validade está relacionada à constatação de que a técnica está avaliando o que deveria avaliar. A validade pode ser comprovada a partir da comparação dos resultados de uma medida de avaliação com o de outras que são mais conhecidas. A padronização é o processo pelo qual um “determinado conjunto de padrões ou normas é estabelecido para uma técnica para tornar seu uso consistente no decorrer de diversas medições. Os padrões podem ser aplicados aos procedimentos do teste, pontuação e dados de avaliação. Uma das possibilidades da avaliação psicológica é a realização de um Psicodiagnóstico. A ENTREVISTA CLÍNICA: A anamnese, o histórico dos sinais e dos sintomas; e o exame psíquico, o estado mental atual. Diferentemente da entrevista psicopatológica, a entrevista psiquiátrica, realizada por um médico, possui três objetivos básicos: a formulação de um diagnóstico, a formulação de um prognóstico e o planejamento terapêutico. É a partir da entrevista que se começa a estabelecer uma aliança terapêutica entre o paciente e o médico. Três regras entrevista: • Pacientes organizados, com inteligência normal, escolaridade ao menos razoável e fora de um “estado psicótico” devem ser entrevistados de forma mais aberta. • Pacientes desorganizados, com nível intelectual baixo, em um estado psicótico ou paranoide devem ser entrevistados de forma mais estruturada. • Nos primeiros contatos com pacientes muito tímidos, ansiosos ou paranoides, deve-se fazer primeiro perguntas neutras ou de identificação (FERREIRA, 2015). Além da organização da entrevista de forma mais estruturada ou aberta, Dalgalarrondo (2019) ressalta que algumas atitudes podem ser inadequadas e improdutivas, devendo ser evitadas pelo profissional de saúde: • Posturas rígidas e estereotipadas. Prefira atitudes flexíveis e adequadas à personalidade do paciente. • Atitude excessivamente neutra ou fria. • Reações exageradamente emotivas ou artificialmente calorosas, produzindo uma falsa intimidade. • Comentários valorativos ou julgamentos.• Reações emocionais intensas de pena ou compaixão. • Responder com hostilidade ou agressivamente. • Entrevistas excessivamente prolixas. • Fazer muitas anotações durante a entrevista, pois pode dar a impressão de que as anotações são mais importantes que a própria entrevista. Um dos elementos mais essenciais da entrevista é a paciência. ENTREVISTAS COM CRIANÇAS De acordo com Marcelli e Cohen (2010), as principais formas de se estabelecer comunicação com as crianças são: • Brincadeiras: ao brincar a criança expressa suas fantasias, identifica-se com os personagens e domina sua angústia. • Diálogo imaginário: ocorre através de brincadeiras com marionetes, com histórias inventadas ou ainda em brincadeiras em que há a escolha de papéis, como professor ou médica. • Desenho: desenhar é uma das formas que as crianças têm de comunicar afetos, funcionando como uma espécie de linguagem. • Diálogo tradicional face a face: é possível estabelecer um diálogo tradicional com uma criança geralmente a partir dos 11 anos. Naturalmente, isso varia de criança para criança, dependendo muito de seu nível de desenvolvimento. As entrevistas têm como principal objetivo estabelecer uma comunicação baseada em trocas afetivas positivas, oferecendo à criança um ambiente adequado para que essa comunicação se estabeleça São necessárias, em geral, de três a quatro entrevistas de investigação. ENTREVISTAS COM ADOLESCENTES Marcelli e Braconnier (2007) apontam os principais perigos e riscos de diagnósticos psiquiátricos na adolescência: • Dificuldades de se estabelecer correspondências entre quadros nosográficos e uma fase mutante e evolutiva da vida. • Risco de classificar uma conduta “esperada” da juventude como uma patologia, como associar uma experiência com drogas para a toxicomania, por exemplo. • Risco de proteção e de ancoragem operada pelo diagnóstico apresentado. • Flutuações frequentes dos níveis de funcionamento psíquico do adolescente. A primeira entrevista: coleta de dados e as principais queixas do paciente. A diferença, nesse caso, ocorre quando os pais estão presentes, pois se torna possível avaliar, também, o tipo de interação familiar. A segunda entrevista: mecanismos de defesa e as surpresas mobilizadas no primeiro encontro acabam por se destacar, como a banalização e a negação das dificuldades. Ao longo das entrevistas de avaliação, Marcelli e Braconnier (2007) consideram importante que o terapeuta comunique ao adolescente o interesse em se encontrar com os pais, mesmo que o adolescente resista à ideia. No entanto, o mais comum é o adolescente aceitar e se mostrar satisfeito com essa proposta. O objetivo dessas duas ou três entrevistas de avaliação é chegar a uma proposição terapêutica. A ANAMNESE: coleta de informações em que o entrevistador se interessa tanto pelos sintomas objetivos como pela vivência subjetiva do paciente em relação aos sintomas, pela cronologia dos fenômenos e pelos dados pessoais e familiares. Os aspectos comuns a todas as entrevistas de anamnese incluem: (a) evolução da queixa; (b) histórico de tratamentos de saúde atuais e pregressos; (c) uso de medicamentos; (d) efeitos do problema sobre o funcionamento psicossocial do paciente no momento atual; e (e) percepção do examinando em relação à queixa. Na anamnese com crianças, é importante registrar a história pré e perinatal, como as condições de saúde física e mental da mãe durante a gravidez e após o parto, além de possíveis intercorrências na gravidez. Informações sobre o parto como as condições emocionais e de saúde da mãe também devem ser coletadas. Na entrevista de anamnese com adolescentes, é preciso considerar todas as mudanças características desse período (físicas, hormonais etc.). É importante, ainda, identificar se problemas ocorridos na infância ainda repercutem na adolescência, além de enfocar aspectos como a socialização, relacionamentos, sexualidade e histórico escolar. O DIAGNÓSTICO PSICOPATOLÓGICO O diagnóstico é um o processo a partir do qual se determina se um problema em particular, que esteja afetando o indivíduo, pode ser classificado ou não como um transtorno psicológico, seguindo as definições do Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM) ou da ClassificaçãoEstatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados com a Saúde (CID). Há uma grande diferença entre diagnosticar uma pessoa, uma necessidade prática na medicina e na ciência, e reduzi-la a esse diagnóstico. Quando utilizado de forma positiva, o diagnóstico permite a comunicação e a previsão, ou seja, o prognóstico depende do diagnóstico, contribuindo para as medidas terapêuticas e preventivas. TESTES PSICOLÓGICOS: A avaliação da cognição é realizada, em alguns casos, através de testes de inteligência. Um dos modelos de testes que se popularizou bastante são os testes projetivos que se baseiam em princípios da Psicanálise e na ideia de que as pessoas projetam sua própria personalidade e medos inconscientes em outros objetos. Os três testes projetivos mais utilizados são o teste das manchas de tinta de Rorschach, o Teste de Apercepção Temática (TAT) e o método de completar sentenças. Por fim, os testes neuropsicológicos podem identificar com precisão o local de uma disfunção cerebral, medindo as capacidades em áreas como a linguagem, atenção, memória, habilidades motoras, capacidades perceptuais e aprendizagem. Portanto, “esse método de teste avalia a disfunção cerebral, observando seus efeitos sobre a capacidade de a pessoa desempenhar certas tarefas. Embora não se possa verificar o dano, é possível ver seus efeitos . VISÃO GERAL DA AVALIAÇÃO PSICOPATOLÓGICA O Psicodiagnóstico pode ser definido como um procedimento científico com duração limitada e com a finalidade de alcançar uma compreensão mais aprofundada da dinâmica do paciente e do grupo familiar. O exame compara a amostra do comportamento do examinando com os resultados de outros sujeitos da população geral ou de grupos específicos. • A avaliação psicopatológica é composta por diversas etapas e muitas vezes realizada de forma multiprofissional. Dalgalarrondo (2019) definiu ao menos cinco etapas: 1. Entrevista inicial: etapa em que a anamnese é realizada, obtendo todos os dados necessários para o diagnóstico. Além das informações pessoais, são coletadas informações como a queixa, a história da queixa, antecedentes psíquicos, uso de substâncias químicas, história de vida etc. 2. Exame psíquico: é o exame do estado mental atual. Se valendo de perguntas e observações, o profissional coletará informações sobre o aspecto geral do paciente, além da avaliação de funções psíquicas específicas como a consciência, atenção, memória, linguagem etc. 3. Exame físico geral e neurológico: todos os pacientes deveriam passar uma avaliação somática geral e bem-feita, entretanto, caso o profissional suspeite de doença física, deverá examinar o indivíduo somaticamente em detalhes. 4. Avaliação psicológica e neuropsicológica: realizadas por meio de testes da personalidade, da inteligência, da atenção, da memória etc. 5. Exames complementares: exames laboratoriais, de neuroimagem. TÓPICO 2 – OS PRINCIPAIS QUADROS PATOLÓGICOS DA INFÂNCIA E DA ADOLESCÊNCIA O SURGIMENTO E A CONSTITUIÇÃO DOS TRANSTORNOS MENTAIS Tanto os sintomas quanto as síndromes têm origem definida a partir de dois fatores: (1) fatores predisponentes, como a genética, experiências emocionais na infância e adolescência e as condições pregressas de vida, e os (2) fatores precipitantes, que são mais atuais ou recentes como perdas e estresses. Nesse sentido, “é preciso notar como se articula, ao longo da vida, o conjunto de fatos biológicos, psicológicos e sociais para a ocorrência ou não de sintomas, síndromes ou transtornos mentais”. Fatores predisponentes, como a constituição genética, somados a eventos como a morte de um dos pais/cuidadores ou, ainda, abusos e violências sofridas na infância tornam as pessoas mais ou menos vulneráveis para a ação dos fatores precipitantes na irrupção do transtorno mental. Fatores precipitantes (ou eventos de vida) podem ser exemplificados pelas separações, desemprego, brigas com amigos etc. É importante, também, assinalar que a resiliência, ou seja, a capacidade de absorver e lidar com os fatores precipitantes, é fundamental no processo de saúde-doença no campo da psicopatologia (DALGALARRONDO, 2019). O psiquiatra alemão Karl Birnbaum (1878-1950) propôs que se discriminem três fatores envolvidos nas manifestações das doenças mentais, os quais são apresentados a seguir: • Fator patogenético: é a manifestação dos sintomas diretamente produzidos pelo transtorno mental como, por exemplo, o desânimo e o humor triste na depressão ou as alucinações na esquizofrenia. • Fator patoplástico: trata-se de manifestações relacionadas à personalidade do paciente, à história de vida específica do indivíduo e de seus padrões culturais, familiares e religiosos. • Fator psicoplástico: relaciona-se aos eventos e às reações posteriores ao adoecer, tanto do indivíduo quanto do meio psicossocial. Os conflitos familiares e as perdas sociais e ocupacionais decorrentes do transtorno contribuem na determinação do quadro clínico. Com relação aos transtornos mentais crônicos, os cursos longitudinais são divididos em (1) processo, quando há uma transformação lenta e insidiosa da personalidade, decorrente de alterações psicologicamente incompreensíveis (processo esquizofrênico); e (2) desenvolvimento, em que há uma evolução psicologicamente compreensível de uma personalidade, podendo ser normal ou anormal. Com relação aos fenômenos agudos ou subagudos, podemos classificá-los em crises, reações vivenciais, fases e surtos. Os fenômenos se caracterizam pelo caráter episódico e podem ser definidos como: • Crises: a crise (ataque) é marcada pelo surgimento e pelo término abrupto do quadro (crise epiléptica, ataques de pânico). • Reações vivenciais: são consideradas reações vivenciais anormais quando há intensidade exagerada ou duração prolongada dos sintomas. • Fase: períodos de depressão e de mania dos transtornos afetivos. Passada a fase, o indivíduo retorna ao que era antes dela, sem alterações duradouras na personalidade. • Surto: ocorrência aguda, que se instala de forma mais ou menos repentina, fazendo eclodir uma doença de base endógena. Produz sequelas irreversíveis e danos à personalidade, cognição e afetos do indivíduo (DALGALARRONDO, 2019). TRANSTORNO DO ESPECTRO AUTISTA Transtorno do Espectro Autista (TEA): transtorno do neurodesenvolvimento que afeta o modo como a pessoa percebe e socializa com os outros. Dentre as principais características do transtorno: -desenvolvimento atípico -déficits na comunicação e na interação social -padrões de comportamentos repetitivos e estereotipados, podendo apresentar um repertório restrito de interesses e atividades. -a incapacidade de desenvolver relações sociais apropriadas à idade. Nesse sentido, as dificuldades de comunicação e interação sociais são definidas a partir de três aspectos: (1) problemas com a reciprocidade social (não conseguem estabelecer conversas normais); (2) comunicação não verbal deficitária; e (3) dificuldade em iniciar e manter relacionamentos sociais. Por mais que o TEA se torne evidente em torno de 30 a 36 meses de vida, os sinais precursores chamam a atenção desde os 12 primeiros meses, atingindo de três a quatro vezes mais meninos do que meninas. RECIPROCIDADE SOCIAL: são incapazes de se envolver na atenção compartilhada. Uma criança que não tenha TEA, geralmente, ao ver um brinquedo que gosta, olha para sua mãe, sorri e olha para o brinquedo novamente. Essa atitude indica o interesse no brinquedo e o desejo de compartilhar esse interesse com outra pessoa, algo limitado nas crianças com TEA. ETIOLOGIA -TEA tem um componente genético significativo e de hereditariedade moderada, em que famílias que têm uma criança com TEA tem cerca de 20% de chance de ter outra criança com esse transtorno. -Nesse sentido, ainda que numerosos genes já tenham sido implicados na apresentação do TEA, cada um parece ter um efeito relativamente pequeno, assim como em outros transtornos psicológicos como a esquizofrenia. -a idade dos pais parece ser outro fator importante, já que pais com 40 anos ou mais tiverammais de cinco vezes maior probabilidade de ter uma criança com TEA do que pais com idade inferior a 30 anos. -Algumas pesquisas apontam para o fato de que crianças pequenas com TEA possuem a amígdala, uma estrutura cerebral, maior do que as crianças sem o transtorno, causando ansiedade e medos excessivos . A liberação excessiva do cortisol derivada do estresse continuado danificaria a amígdala, diminuindo, assim, o número de neurônios da estrutura na idade adulta. A amígdala danificada poderia ser uma das explicações de como as pessoas com TEA respondem a situações sociais. AUTISMO DE “ALTO FUNCIONAMENTO” Síndrome de Asperger é atualmente compreendido como autismo de alto funcionamento. Assim como o autismo, a síndrome de Asperger se manifesta desde a primeira infância em perturbações graves das interações sociais e comportamentos restritos e repetitivos. Os estudos sobre o TEA ainda são recentes e carecem de teorias integrativas. Dados mostram que fatores genéticos desempenham um papel fundamental na etiologia do autismo, entretanto, os mecanismos envolvidos ainda não foram identificados. O que se sabe, atualmente, é que os fatores psicológicos e sociais aliados a certas características biológicas produzem déficits na sociabilização e na comunicação. ESQUIZOFRENIA • A esquizofrenia é a principal forma de psicose ou síndrome psicótica, sendo possível o diagnóstico quando sintomas positivos e negativos ocorrem em conjunto com perdas no funcionamento social e na ausência de sintomas proeminentes de humor. Dois aspectos característicos do transtorno: 1. A desarmonia interna do funcionamento mental; 2. A quebra radical do contato com a realidade. A esquizofrenia é um transtorno que envolve comportamentos psicóticos, termo utilizado para caracterizar comportamentos incomuns, que envolvem delírios e/ou alucinações. ETIOLOGIA: Estudos de neuroimagem identificaram consistente redução do volume cerebral total e do volume de substância cinzenta, alargamento dos ventrículos e redução de estruturas como áreas mediais dos lobos temporais, do córtex pré-frontal e do tálamo -O surgimento dos sintomas psicóticos ocorre, de modo geral, na adolescência e no início da idade adulta. -Trata-se de uma doença crônica, com surtos recorrentes de difícil remissão completa. -O curso da doença é, de modo geral, dividido em três fases: 1.fase pré-mórbida, 2.fase de sintomas psicóticos 3.fase crônica, em que há graus diversos de perdas e deteriorações. Assim, a pior evolução dos quadros da doença está associada ao sexo masculino. – Acham que não têm nenhum problema ou doença. – Os antipsicóticos são as intervenções terapêuticas com mais evidência de eficiência, sobretudo para os sintomas positivos. A clozapina, embora implique efeitos colaterais potencialmente graves, é o tratamento medicamentoso mais eficaz. ESQUIZOFRENIA NA INFÂNCIA E NA ADOLESCÊNCIA - Ainda que os critérios diagnósticos para esquizofrenia em crianças sejam os mesmos que para os adultos, é muito difícil diagnosticar uma criança com esquizofrenia. A imaturidade normal do desenvolvimento da linguagem e a separação entre realidade e fantasia tornam difícil o diagnóstico da esquizofrenia em crianças, já que, nos primeiros anos de desenvolvimento, apresenta características comuns ao autismo. - Ainda que não se saiba a causa exata para a esquizofrenia, certos fatores parecem aumentar o risco de desenvolver ou desencadear a doença, como: • Histórico familiar de esquizofrenia. • Dificuldades durante a gravidez e no nascimento, como infecções ou desnutrição. • Eventos estressantes para pessoas que já possuem predisposição (morte de alguém importante, perda de um emprego, abusos etc.). • Uso de drogas na infância e na adolescência. DEPRESSÃO • A depressão geralmente está associada a alguma perda, e isso não é diferente nas crianças e nos adolescentes: a perda repentina de um dos pais, por exemplo, torna-as vulneráveis à depressão grave. A duração de episódios depressivos é variável, podendo durar de duas semanas a vários anos. Quando o episódio dura mais de cinco anos, passa a ser considerado grave, e a taxa de recuperação de um episódio grave é de, aproximadamente, 38%. Ainda assim os episódios podem não ser inteiramente resolvidos, deixando sintomas residuais e probabilidade de episódios subsequentes. A DEPRESSÃO EM CRIANÇAS E ADOLESCENTES Os quadros depressivos estão associados a dificuldades escolares, como a piora do rendimento escolar e a comportamentos disruptivos como irritabilidade e agressividade. em relação ao ambiente familiar e aos antecedentes, alguns pontos em comum são observados por diversos pesquisadores, os quais são apresentados a seguir: • Antecedentes de depressão nos pais, em particular na mãe. • Frequência da carência parental, como o contato empobrecido entre os pais e os filhos, pouco ou nenhum estímulo afetivo, verbal ou educativo. • Mais raramente, certa severidade educativa excessiva. Dessa forma, a depressão na criança e no adolescente está muito mais relacionada a fatores ambientais e familiares do que a depressão em jovens adultos ou em adultos. TÓPICO 3 – A TERAPÊUTICA PREVENÇÃO Os cuidados mentais de crianças e adolescentes preocupam-se mais com o futuro do que com o presente propriamente dito. Ainda que a avaliação ocorra no estado presente de uma criança ou adolescente, o objetivo é a avaliação da capacidade potencial de manter um desenvolvimento satisfatório ou não. • Entende-se por prevenção o conjunto de medidas ou de ações voltadas ao indivíduo ou ao seu ambiente, suscetíveis a impedir o aparecimento de um estado patológico posterior ou de reduzir sua intensidade e suas consequências, sendo distinguidas em: prevenção primária, secundária e terciária. As formas de prevenção podem ser distinguidas em: • Prevenção primária: ação no nível ambiental ou individual para minimizar o risco do aparecimento de transtornos, conforme ilustrado pela Figura 16. • Prevenção secundária: detecção e intervenção precoce, eliminando ou atenuando os transtornos. • Prevenção terciária: ação no nível dos transtornos estabelecidos, minimizando o agravamento e as sequelas. Portanto, a prevenção primária é provavelmente utópica, sendo a prevenção secundária a mais possível de ser implementada. Ainda na tentativa de agir preventivamente, alguns fatores devem ser observados no comportamento dos jovens, pois podem ser consideradas “condutas de risco”, sendo eles: • Repetições de condutas (vários acidentes de forma repetida, absenteísmo escolar frequente, abuso de álcool de forma constante etc.). • Duração de uma mesma conduta durante um período de mais de três meses. • Acúmulo de manifestações de sofrimento. • Circunstâncias de vida negativas (mudanças de casa, doença, desemprego etc.). Quando essas condutas se repetem e perduram, não é mais correto associá-las a uma fase ou característica da adolescência, sendo necessária a busca por ajuda profissional (MARCELLI; BRACONNIER, 2007). ESCUTA E ACOLHIMENTO • A escuta e o acolhimento para as crianças são tão importantes quanto para os adolescentes, afinal, elas não relatam suas dificuldades de forma objetiva como fazem os adultos. Na maioria dos casos a criança ou não sofre ou não expressa adequadamente, o que não significa que o sofrimento psicológico não exista. A identificação dos riscos só é eficaz se for seguida de alguma resposta, portanto, Marcelli e Braconnier (2007) identificaram três grupos e as possíveis prevenções para cada um deles, sendo: • O grupo “sem problema aparente”: para esse grupo de adolescentes, a prevenção se dá através da informação. É um grupo sensível ao acúmulo de circunstância de vida, ou seja, as informações sobre saúdes mentais veiculadas pelas mídias provavelmente são úteis. • O grupo “intermediário”: por mais que se beneficiem de informações, para esse grupo elas não são suficientes. São jovens mais vulneráveis, sendo importante oferecer-lhes possibilidades de escuta e de encontro dirigidos. • O grupo“com problemas múltiplos”: para esses adolescentes a informação e a prevenção praticamente não surte efeito, pois já estão em um processo de “pré-ruptura”. É comum que esse tipo de adolescente tenha mais informação sobre determinado assunto, como o HIV, do que seus colegas, e ainda assim não se previna de forma adequada. Segundo Marcelli e Cohen (2010), o sofrimento dos pais pode derivar de três situações: (1) das dificuldades dos filhos que despertam a empatia dos pais, tentando ajudá-los da melhor forma possível, ou seja, são pais identificados com seus filhos, (2) da própria dor devido à imagem desvalorizada que a criança passa, especialmente na comparação com outras crianças da mesma idade e (3) da rejeição, visto que alguns parecem mais preocupados em “se livrar” de condutas dos filhos que lhes aborrece ou importuna. Em geral, as condutas sintomáticas da criança são traduções de desejos de relação com seus pais ou de uma renúncia a essa relação. Portanto, na criança o trabalho é realizado de forma conjunta: diagnóstico, avaliação psicodinâmica e a escolha terapêutica. O diagnóstico refere-se ao levantamento das condutas somáticas e sua classificação nosográfica, que como vimos anteriormente, é muito difícil de ser realizado em crianças, especialmente no que se refere a transtornos mentais. ESCOLHAS TERAPÊUTICAS • A decisão pelo tratamento não é simples, é preciso levar em conta a conduta sintomática, conforme apontamos no subtópico anterior, como também a estrutura psicopatológica da criança e suas relações com a problemática familiar. Nesse sentido, segundo Marcelli e Cohen (2010), é preciso compreender o grau de interiorização do conflito para determinar a origem do sintoma, podendo ser distinguido em: • Manifestações de inadequação: conflitos externos decorrentes de pressões inadequadas do ambiente, seja porque não estão adequados ao nível maturativo da criança ou porque são excessivos ou insuficientes. • Manifestações decorrentes de um conflito natural: são conflitos transitórios que geralmente desapareceriam naturalmente, mas que podem entrar em ressonância com um conflito externo, estendendo sua duração. • Manifestações de conflitos reais: são manifestações de conflitos internos que podem atrapalhar no desenvolvimento da criança/adolescente. • Manifestações “sequelares”: são hábitos ou comportamentos que permanecem após a superação de um conflito de alguma fase anterior. • Manifestações secundárias: são representadas por dificuldades desconhecidas da própria pessoa, por exemplo o mau desempenho escolar pode ser fruto de um transtorno da aprendizagem, da linguagem ou da coordenação motora. É preciso considerar a multiplicidade de técnicas disponíveis, de quadros institucionais existentes e de teorias etiopatogênicas. Portanto, antes de tomar qualquer decisão terapêutica é preciso pensar no caso específico daquela criança, considerando seu ambiente familiar e contexto social para encontrar: (1) o que seria ideal, (2) o ponto em que qualquer ação terapêutica seria inefetiva e (3) o que é possível ser feito. REEDUCAÇÕES E CORREÇÕES Algumas terapias têm como objetivo imediato a redução de certa conduta. Ao agir sobre o transtorno, elas permitem a retomada do desenvolvimento harmonioso de determinada função. Esse tipo de intervenção dura alguns meses ou no máximo um ano, com exceção aos transtornos graves. PSICOTERAPIAS INDIVIDUAIS Existem inúmeras abordagens e possibilidades dentro do universo das psicoterapias, a psicanálise, por exemplo, objetiva trazer à consciência a origem dos conflitos e das condutas sintomáticas à medida que elas aparecem e se reproduzem durante as sessões, e depois proporcionar à criança os meios para melhor elaborar, superar e/ou tolerar seus conflitos. A terapia cognitiva, por sua vez, trabalha com os esquemas cognitivos não conscientes (implícitos) que influenciam negativamente os julgamentos que as pessoas fazem sobre si. Portanto, trata-se de fazer com que o paciente reflita sobre as motivações detalhadas do comportamento visado, de desmontar os circuitos mnésicos inconscientes e de pôr em prática meios simbólicos que permitam compreender e dominar a evolução. TERAPIAS FAMILIARES Duas correntes teóricas: (1) baseadas em teorias sistêmicas e (2) inspiradas em concepções psicanalíticas PSICOTERAPIAS DE GRUPO A principal função dos grupos terapêuticos é a catarse no nível do afeto, ou seja, descarga da tensão interna na presença de outros membros do grupo. Nesse sentido, o grupo pode criar um espaço de contenção do pensamento, provedor de fantasias. Além disso, permite o deslocamento dos conflitos que o adolescente não consegue resolver com seus pais sobre os outros membros do grupo. Permite, também, a elaboração das relações com os familiares e com o mundo e o remanejamento das identidades tanto individuais como grupais. UNIDADE 3: DESCRIÇÃO DOS SISTEMAS DE CLASSIFICAÇÃO DOS DISTÚRBIOS MENTAIS: INFÂNCIA E ADOLESCÊNCIA TÓPICO 1 – OS SISTEMAS DE CLASSIFICAÇÃO DOS DISTÚRBIOS MENTAIS ETIOLOGIA - Desde a metade do século XIX, iniciou-se uma nova forma de compreender e lidar com os transtornos mentais. Ao invés de tentar compreender os sintomas como delírios, alucinações e os atos violentos, os alienistas e psiquiatras da época passaram a analisar o comportamento e as condutas dos indivíduos, com o objetivo de classificá-los em diferentes categorias. - A partir da metade do século XIX, diversos comportamentos passaram a ser considerados como desviantes, surgindo estratégias de intervenção baseadas em categorias pre-estabelecidas. A ideia principal era “substituir uma classificação sintomática por uma classificação etiológica das doenças mentais, pois somente com a determinação das causas poderiam ser elaborados um sistema classificatório de patologias e uma terapêutica apropriada” (CAPONI, 2012, p. 22). Nesse sentido, emergiu um novo campo que transformou questões como a tristeza, a sexualidade infantil e os desvios de comportamento em diagnósticos e práticas médicas. -A última classificação realizada antes da publicação do primeiro Manual de Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM) foi realizada em 1918, no Manual Estatístico para o Uso de Instituições de Insanos, compreendendo categorias, entre elas a psicose; a melancolia; a demência precoce; a paranoia; entre outras psiconeuroses e neuroses. – Após a Segunda Guerra Mundial o modelo psicopatológico proposto por Oto Fenichel se tornou a visão dominante, compreendendo que o funcionamento normal da mente é governado por um aparelho de controle que organiza, conduz e inibe forças arcaicas mais profundas e mais instintivas. – A partir da distinção entre transtornos de primeira ordem e transtornos de personalidade que os sintomas passam a ser encarados como “não relacionais” enquanto as afecções de personalidade são vistas como transtornos “relacionais”, marcando a divisão entre a psicanálise e a psiquiatria. Para Dunker (2014b, p. 83), “há uma clara separação entre o normal, a personalidade como estrutura equilibrada, e o patológico, o sintoma como expressão do desequilíbrio da estrutura”. – O distanciamento da psiquiatria e da psicanálise só aumentou na medida que os manuais classificatórios (DSM e CID) foram sendo publicados e revisados, isso porque a abordagem organicista, biológica e estatística se tornou cada vez mais dominante. Ainda que, atualmente, esses dois sistemas sejam predominantes, autores como Dalgalarrondo (2019) propõem uma perspectiva sindrômica para a abordagem clínica inicial dos quadros mentais. -Portanto, identificar as síndromes é o primeiro passo no sentido de ordenar a observação psicopatológica dos sinais e dos sintomas dos pacientes. -Para a psicanálise o campo do patológico é formado tanto pela hipótese de um objeto intrusivo, como a sexualidade ou o trauma, ao qual a personalidade reage gerando sintomas, quanto pela hipótese de uma desregulação interna ao aparelho psíquico, na qual certas disposições, fixações ou organizações pulsionais, que constituemo sujeito, diante de conflitos concorrem para a produção de respostas defensivas, causando sintomas positivos e negativos. AS PRIMEIRAS CLASSIFICAÇÕES NOSOLOGIA: A classificação de pessoas com transtornos em determinados grupos. NOSOGRAFIA: A atribuição de um nome a cada entidade específica. Um dos objetivos da nosografia é a compreensão das causas e da natureza das doenças, permitindo certo planejamento e avaliação a partir de uma comunicação padronizada entre diversos profissionais. A nosografia ou a nomenclatura de doenças pode ser entendida, portanto, como a maneira pela qual um determinado agravo à saúde que tenha determinados sintomas, sinais, bem como alterações patológicas específicas, recebe o mesmo rótulo, que pode também ser chamado diagnóstico, em qualquer lugar do mundo. -Desde a publicação da listagem de Graunt até as primeiras décadas do século XX, a frequência de doenças era observada a partir das estatísticas de mortalidade. Por isso, a história das classificações de doença. A primeira sistematização pretendia preparar uma nomenclatura uniforme de causas de morte aplicável a todos os países, apresentada em 1855, e contemplando cinco classes para as causas de morte, as quais são apresentadas a seguir: 1) doenças epidêmicas, endêmicas e contagiosas 2) doenças constitucionais, 3) doenças localizadas, 4) doenças do desenvolvimento 5) doenças ou mortes violentas (LAURENTI, 1991). ESPECIFICIDADES DA INFÂNCIA E DA ADOLESCÊNCIA • A popularização da psiquiatria na infância e na adolescência se deve ao surgimento de novas categorias nosológicas publicadas em entrevistas diagnósticas e, também, por meio de artigos e reportagens que são, por vezes, sensacionalistas. • A avaliação com crianças e adolescentes não se restringe a checklists de critérios diagnósticos, é preciso “levar em conta a experiência da criança, seu funcionamento físico e mental, suas relações com o ambiente próximo, seu lugar na família, [...] seu desenvolvimento e seu histórico de vida (ALMEIDA et al., 2019, p. 23). - A prescrição de medicamentos psiquiátricos para crianças e adolescentes é um fenômeno recente, considerando que, antes de 1980, poucas crianças ou jovens eram medicados. No início da era farmacológica da psiquiatria, as crianças não eram diagnosticadas com doenças mentais. As crianças que praticavam bullying ou que não gostavam de estudar não eram diagnosticadas com transtorno do deficit de atenção com hiperatividade (TDAH), até porque, este diagnóstico não existia. -Portanto, “doenças” que passavam despercebidas passaram a ser identificadas e, assim, a psiquiatria pediátrica passou a se basear, cada vez mais, na ideia de que as drogas psiquiátricas são úteis e necessárias, pois podem ajudar a criar “cérebros sadios”, agindo como neuroprotetores, ou seja, os tratamentos medicamentosos poderiam proteger de lesões cerebrais ou promover a neuromaturação normal. Estamos acostumados a lidar com a doença como algo objetivo, algo que a pessoa tem ou não tem. Essa lógica não pode ser aplicada à psicopatologia infantil, já que, na maioria dos quadros, não há algo que possa ser identificado objetivamente, de modo separado da criança, além dos quadros que podem ser transitórios ou limítrofes, conforme estudamos anteriormente. Nesse sentido, é preciso compreender a saúde como um valor e não como uma média. Segundo Almeida et al. (2019), há duas maneiras distintas de compreender os transtornos psiquiátricos na infância e na adolescência: • Visão categorial: relaciona-se com a ideia de “tudo ou nada”, ou há normalidade ou há patologia. Essa visão é fundamental para diversas áreas da medicina, sendo importante, por exemplo, determinar se a criança tem ou não tem uma fratura óssea. Entretanto, quando pensamos em saúde mental, tal visão pode contribuir para a ideia de que, se a criança está com alguma dificuldade de comportamento, é porque tem alguma “coisa” nela. Como vimos anteriormente, um possível diagnóstico de TDAH, por exemplo, eliminaria todas as outras variáveis psicológicas e ambientais que poderiam estar contribuindo para o comportamento inadequado da criança. • Visão dimensional: é uma visão que enxerga “linhas de continuidade” entre a normalidade e a patologia, em que a definição entre uma ou outra situação é feita de forma mais ou menos arbitrária. Como a diferenciação entre normal e patológico pode ser subjetiva e um pouco incerta, essa visão pode estimular a excessiva medicalização dos problemas infantis. TÓPICO 2 – O MANUAL DIAGNÓSTICO E ESTATÍSTICO DE TRANSTORNOS MENTAIS (DSM) A necessidade de organizar sistemas diagnósticos surgiu a partir da segunda metade do século XX. Padronizar as categorias de doença se fazia necessário para suprir necessidades terapêuticas e acadêmicas, entretanto, estabelecer um consenso não era tarefa fácil, especialmente ao considerarmos as especificidades dos limites entre o “normal” e o patológico. O TRAJETO ATÉ O DSM-III • Em 1952, a APA publicou uma variação da CID-6 intitulado Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders, dando início ao primeiro Manual de Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais, o DSM-I. - Já em 1968, ocorre a publicação da segunda versão do manual, o DSM-II. A evolução do manual se deu a partir da coleta de dados e estatísticas de hospitais psiquiátricos, bem como de um manual desenvolvido pelo exército americano que tinha como objetivo selecionar e acompanhar recrutas. A versão do 2 do DSM não agradou muito a comunidade científica, principalmente porque tentava se aproximar da CID-8, o que levou a uma revisão um ano após sua publicação. • A partir do DSM-III, os diagnósticos passaram a ser considerados como instrumentos convencionais, dispensando referencias ontológicas, ou seja, seriam puramente descritivos. Isso ocorreu, principalmente, porque havia uma confusão teórica e terminológica muito grande na psiquiatria no final dos anos 1970. -A classificação do DSM-III foi fundamentada em dados empíricos, descartando avaliações subjetivas dos psiquiatras. Para tanto, foram revisados diversos artigos e com base nos dados levantados estabeleceram-se critérios diagnósticos, mais especificamente, 16 critérios para doenças psiquiátricas. Um dos grupos responsáveis por essa nova forma de olhar para a psiquiatria considerava que, para se desenvolver uma classificação válida, era preciso respeitar cinco critérios, a saber: • Descrição clínica. • Estudos de laboratório. • Critérios de exclusão de outras doenças. • Estudo do curso da doença. • Estudos referentes à família dos doentes - Portanto, a partir do DSM-III, o estilo de entrevista na psiquiatria deixa de ser orientado pelo insight, ou seja, deixa de ser psicodinâmico, e passa a ser orientado pelo sintoma, de forma descritiva. - O sistema multiaxial presente na terceira versão objetivava traçar um quadro mais completo do paciente, baseado em uma classificação “em descrição, ao invés de pressupostos etiológicos. Então a psicodinâmica foi abandonada, em favor do modelo biomédico, com distinção entre o normal e o anormal. O DSM-IV -O objetivo dessa versão era, através da revisão da literatura, estabelecer bases empíricas que sustentassem atualizações. Nesse sentido, diversas alterações foram realizadas nas classificações, nos critérios diagnósticos e nas descrições das doenças. -Assim como o DSM-III, o DSM-IV foi desenvolvido em conjunto com a CID-10, que havia sido publicada em 1992. Segundo Ferreira (2015), o DSM-IV organizou cada diagnóstico psiquiátrico em cinco eixos e relacionando diferentes aspectos dos transtornos, a saber: • Eixo I: transtornos clínicos, incluindo os principais transtornos mentais, problemas do desenvolvimento e da aprendizagem. • Eixo II: transtornos de personalidade ou invasivos, bem como retardo mental. • Eixo III: situações clínicas agudas e doenças físicas. • Eixo IV: fatores psicossociais e ambientais que contribuem para desordens. • Eixo V: avaliação global de funcionamento ou escala de avaliação global para crianças. - O DSM-IV revisou diversoscritérios diagnósticos, acrescentou e eliminou alguns transtornos, incluiu grupos e demarcou normas de interpretação e generalização das informações. Nesse sentido, o DSM dispensa de vez o diagnóstico diferencial, ou seja, o tratamento pela palavra. Ao excluir a subjetividade, a medicina biofisiológica se afasta de vez da psicanálise e do pensamento que havia servido de base para as primeiras edições do DSM (DUNKER, 2014a). - Nesse sentido, a quarta versão do manual rompeu com a “longa tradição, em vigor desde Pinel, na qual a caracterização das formas de sofrimento, alienação ou patologia mental fazia-se acompanhar da fundamentação ou da crítica filosófica” (DUNKER, 2014a, s.p.). O autor ainda argumenta que não só foi rompido o diálogo entre a psicanálise e a psiquiatria, mas também a maneira de fundamentar e de fazer psicopatologia O DSM-V - O enfoque principal do DSM-V é a quantificação da gravidade dos sintomas e a avaliação em forma dimensional e transversal daqueles que apresentavam ampla diversidade de diagnóstico. Ainda que permaneça fundamentado no modelo categorial, essa versão do DSM possui um enfoque mais dimensional em relação às edições anteriores. -Ainda que permaneça fundamentado no modelo categorial, a quinta versão do DSM possui um enfoque mais dimensional em relação aos anteriores, permitindo analisar se o sintoma é leve, moderado ou severo em diversos quadros clínicos Assim com as outras versões do manual, o DSM-V buscou harmonizar as classificações com as apresentadas pela CID-11, justificando que: • A existência de duas classificações que não estejam harmonizadas dificulta a coleta e o uso de estatísticas, além do desenvolvimento de novos tratamentos. • A existência de duas classificações dificulta a replicação de resultados científicos entre diferentes países. • Os diagnósticos apresentados pelo DSM-IV e pela CID-10 nem sempre estavam em acordo. Ainda assim os elogios feitos ao DSM-V baseiam-se na apresentação etiológica dos transtornos mentais fundamentadas em orientações neurobiológicas, na confiabilidade e validade das classificações e nos avanços nas pesquisas básicas e clínicas, garantindo atualizações para as próximas versões do DSM. EXEMPLOS DE CLASSIFICAÇÃO A classificação dos transtornos mentais no DSM-V é realizada a partir da definição de uma série de fatores, como: • Critérios diagnósticos. • Características diagnósticas. • Prevalência. • Desenvolvimento e curso. • Fatores de risco e prognóstico. • Diagnóstico diferencial. • Comorbidade. • Entre outros. TÓPICO 3 – A CLASSIFICAÇÃO ESTATÍSTICA INTERNACIONAL DE DOENÇAS E DE PROBLEMAS RELACIONADOS À SAÚDE (CID) -William Farr (1807-1883) foi um dos primeiros médicos estatísticos a utilizar classificações de doenças disponíveis em sua época, por volta de 1837. Ainda que imperfeitas, o médico trabalhou com o objetivo de melhorá-las e padronizá-las para uso internacional. A primeira lista produzida por Farr e apresentada no Congresso Internacional de Estatística, em 1853, foi dividida em cinco grupos: doenças epidêmicas; doenças constitucionais; doenças locais organizadas de acordo com a localização anatômica; distúrbios do desenvolvimento; e doenças resultantes de violência. – Ao propor uma classificação para as causas de morte, Farr acreditava que as doenças poderiam ser classificadas de diferentes maneiras visando servir a propósitos estatísticos e quanto à finalidade de estudar causas de morte propondo uma classificação, como se verá a seguir, e que se reconhece como a base estrutural da atual classificação internacional de doenças. • Uma nova classificação, apresentada em 1893 por Bertillon, distinguia as doenças gerais das doenças localizadas em um órgão ou região específica do corpo. A Classificação Bertillon de Causas de Morte, como ficou conhecida, foi aprovada e adotada por diversos países, inclusive fora da Europa como nos Estados Unidos e no México. • Em 1948, a OMS assumiu a responsabilidade pela organização do sistema de classificação, que passou a ser desenvolvido de forma mais previsível. - A sexta revisão não só passou a ser conhecida como Manual da Classificação Estatística Internacional de Doenças, Lesões e Causas de Morte, e incluía, pela primeira vez, uma seção de transtornos psiquiátricos. A sexta versão, portanto, constituiu o princípio de uma nova era no campo internacional das estatísticas vitais e sanitárias. Além de aprovar uma longa lista para mortalidade e morbidade e estabelecer regras internacionais para seleção da causa básica de morte, recomendou a adoção de amplo programa de colaboração internacional no campo da estatística vital e sanitária, inclusive a criação de comissões nacionais especializadas que se encarregassem de coordenar o trabalho de estatística no país e de servir de enlace entre os serviços de estatísticas nacionais e a Organização Mundial de Saúde (LAURENTI, 1991, p. 412). -A sétima versão, publicada em 1955, limitou-se à correção de pequenos erros contidos na versão anterior. -A oitava versão sofreu mudanças mais radicais do que a versão anterior, ainda assim a estrutura básica e a forma de encarar a classificação das doenças permaneceu inalterada. - Diversos países pressionaram a OMS para que a classificação da oitava edição fosse mais voltada para questões da morbidade, e não apenas da mortalidade. Entretanto, isso ocorreu apenas na nona versão, que foi bastante expandida não somente “no número total de categorias mas, particularmente, nas chamadas subcategorias, muitas das quais foram criadas para possibilitar várias especificações ou manifestações de uma mesma doença (categoria)” (LAURENTI, 1991, p. 413). Nesse sentido, a partir da nona versão publicada em 1977, a classificação passou a focar aspectos da morbidade, e não mais apenas da mortalidade. -É na décima versão que o nome da classificação passou a ser Classificação Estatística Internacional de Doenças e de Problemas Relacionados à Saúde, ou apenas CID-10. Enquanto que a nona versão mencionou 30 categorias de transtornos mentais, a CID-10 apresentou 100 categorias, alterando o sistema de classificação numérico (001-009) para alfanumérico (A00-Z99), aumentando significativamente as categorias disponíveis para a classificação. Nesse sentido, a CID-10 foi criada para uma classificação relacionada à doença e à saúde, agrupadas em categorias para facilitar a sua consulta. A CID-11 • A 11ª edição da CID foi apresentada na Assembleia Mundial da Saúde, em 2019, e será implementada de forma integral a partir de janeiro de 2022. A OMS definiu a última versão da classificação como o “padrão internacional para o registro sistemático, relatório, análise, interpretação e comparação de dados de mortalidade e morbidade” (OMS, 2019, s.p.).As primeiras cinco versões do manual haviam sido publicadas em um único volume, porém, a partir da sexta versão e com a inclusão de dados estatísticos sobre mortalidade, a classificação passou a ser publicada em dois volumes. Segundo a OMS (2019), a CID-11 recebeu atualizações significativas em relação às versões anteriores, permitindo que os países contabilizem e identifiquem seus problemas de saúde usando um sistema de classificação atual e clinicamente relevante. O manual aponta que, a partir dos dados fornecidos, cada governo pode “projetar políticas de saúde pública eficazes e medir seu impacto, alocar recursos, melhorar o tratamento, melhorar a prevenção ou ser usados para registro clínico” (OMS, 2019, s.p.). Pela primeira vez na história, a 11ª edição da CID é totalmente eletrônica, fornecendo acesso a 17.000 categorias diagnósticas, com mais de 100.000 termos de índice de diagnósticos médicos. A elaboração da CID-11 se deu a partir de sua utilização ampla, o manual inclui registros clínicos, coleta e estudo de estatísticas de mortalidade e morbidade, pesquisas epidemiológicas, estudos de caso, intervenções de segurança e planejamento, atenção primária etc. A classificação alega oferecer mais do que apenas diagnósticos de doenças para fins estatísticos, permitindoa codificação de sinais, descobertas, causas de lesões e danos, doenças raras, dispositivos médicos, medicamentos, anatomia, escalas de gravidade, histopatologia, trabalho ou atividades esportivas etc. Além disso, segundo a OMS, a nova versão da classificação apresenta outras melhorias, a saber: • Conceitos contemporâneos de atenção primária. • Revisão e atualização de condutas que dizem a respeito da segurança do paciente. • Codificação sobre resistência bacteriana. • Atualização das informações sobre HIV. • Seção suplementar para avaliação funcional do paciente antes e após a intervenção. • Incorporação de diversas doenças raras. • Os códigos referentes a estresse pós-traumático foram atualizados e simplificados. • Transtornos dos jogos eletrônicos fazem parte das condições que podem gerar adição CRÍTICAS Especialmente quanto ao fato de que segue um formato “biologicista”, não apresentando propostas que favoreceram a análise mais aprofundada do processo saúde-doença. A importância clínica e em áreas administrativas da saúde da CID é inquestionável, entretanto, as críticas são feitas a partir da adoção deste instrumento como padrão para o estudo do processo saúde-doença. Alguns autores consideram a classe social como uma das categorias básicas para estabelecer uma classificação epidemiológica, enquanto que a CID se restringe à verificação de alterações biológicas ou psíquicas em uma série de indivíduos