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0 Livro do
Exodo
Um comentário exegético-teológico
Pablo R. Andinach
Editora
SiNODAL jíbEST
o Livro do
yy
Exodo
Um comentário exegético-teológico
Pablo R. Andinach
o presente livro tem sua razão de ser na constante necessidade 
de ler de forma sempre nova os antigos textos fundantes de nossa 
fé. Curiosamente, o tempo percorrido pelos textos desde a sua reda­
ção não os prejudicou. Ao contrário, eles se tornaram mais ricos em 
significado, confirmando, assim, que, apesar das muitas mudanças 
que ocorreram no decorrer dos anos, há perguntas e situações pro­
fundas que permanecem, revelando que a aventura humana e os tex­
tos que ela produz são tão fascinantes quanto insondãveis. Cada 
vez que nos aproximamos do testemunho milenar dos textos bíbli­
cos, descobrimos que eles têm algo novo a nos dizer.
A narrativa bíblica, apesar de insondável, é bela. Sabemos que 
se entende melhor um texto quando desfrutamos de sua leitura. 
Esperamos que, ao abordarmos o Êxodo, também possa 
o prazer de estar diante de uma narrativa bonita.
ISBN 9 7 8 -8 5 -6 2 8 6 5 -2 8 -2
^ Editora
S iN O D A L
d FACULDADES
788562 865282
o Livro do
Êxodo
Um comentário exegético-teológico
Pablo R. Andinach
Editora
biNODAL
-!<!>
F A C U L D A D E S
EST
2010
Traduzido do original El Libro dei Êxodo - © Ediciones Sígueme S. A. U., Sa- 
lamanca/Espanha, 2006.
Direitos para a lingua portuguesa pertencem à
Editora Sinodal, 2010
Rua Amadeo Rossi, 467
Caixa Postal 11
93001-970 São Leopoldo/RS
Tel./Fax; (51) 3037 2366
editora@editorasinodal.com.br
www.editorasinodal.com.br
Produção editorial e gráfica: Editora Sinodal 
Tradução: Nelson Kilpp 
Revisão: Rui Bender
Publicado sob a coordenação do Fundo de Publicações Teológicas/Pro­
grama de Pós-Graduação em Teologia da Faculdades EST.
TeL: (51) 2111 1400 
Fax: (51) 2111 1411
est@est.edu.br
www.est.edu.br
A5731 Andinach, Pablo R.
O Livro do Êxodo: um comentário exegético-teológico 
/ Pablo R. Andinach. [Tradução de] Nelson Kilpp. - São 
Leopoldo : Sinodal/EST, 2010.
16x23 cm. ; 398p.
ISBN 978-85-62865-28-2
1. Biblia. 2. Antigo Testamento. 3. Êxodo. I. Kilpp, 
Nelson. II. Título.
CDU 222.1
Catalogação na pubUcação: Leandro Augusto dos Santos Lima - CRB 10/1273
mailto:editora@editorasinodal.com.br
http://www.editorasinodal.com.br
mailto:est@est.edu.br
http://www.est.edu.br
ÍNDICE
Prefacio........................................................................................................7
Siglas e abreviaturas....................................................................................9
Introdução..................................................................................................11
I. ISRAEL NO EGITO (1.1-12.36).............................................................15
A. Israel é oprimido no Egito (1.1-22)....................................................... 17
1. Prólogo (1.1-7)................................................................................... 17
Aspectos teológicos: O cumprimento como tragédia (sobre Êx 1.6-7)...... 21
2. A escravidão de Israel (1.8-14)......................................................... 22
Aspectos teológicos: Israel é submetido à escravidão............................... 24
3. As parteiras hebreias (1.15-22)........................................................ 26
B. O nascimento de Moisés e o período em Midiã (2.1-4.31) ....................33
1. O nascimento de Moisés (2.1-10)..................................................... 33
Aspectos teológicos: A ironia como recurso literário..................................37
As narrativas da infância de Moisés e de outros heróis da antiguidade....38
2. Moisés foge para Midiã (2.11-25)......................................................41
Aspectos teológicos: Moisés como fugitivo político....................................47
Estrutura literária das unidades 2.11-15; 2.16-22 e 2.23-25................... 48
Visão de conjunto...................................................................................... 51
3. Deus se revela a Moisés (3.1-4.17)...................................................51
a) A sarça ardente (3.1-10).........................................................................52
Aspectos teológicos: A terra que mana leite e mel.................................... 59
b) O nome de Deus? (3.11-15)...................................................................61
Aspectos teológicos: O sinal de Êx 3.12.................................................... 65
Aspectos teológicos: O nome de Deus em 3.13-14................................... 66
c) O projeto de libertação (3.16-22)........................................................... 69
d) Não crerão em mim (4.1-9)....................................................................76
e) Não sei falar bem (4.10-12)....................................................................80
f) Envia outro (4.13-17)..............................................................................82
Aspectos teológicos: Deus e nós................................................................ 84
4. Regresso ao Egito (4.18-31) .............................................................. 85
C. Moisés no Egito (5.1-12.36).................................................................. 93
1. Moisés e Arão diante do faraó (5.1-7.7)............................................93
a) Encontro com o faraó (5.1-5).................................................................93
b) Endurecimento do tratamento dado a Israel (5.6-21)........................... 96
c) Moisés clama a Deus (5.22-6.13)........................................................ 101
d) Genealogia de Moisés e Arão (6.14-27)...............................................107
e) Continuação do envio ao faraó (6.28-7.7)............................................113
2. As pragas contra o Egito e a primeira Páscoa (7.8-12.36)..............116
a) As nove primeiras pragas (7.8-10.29)............................................... 116
1) o bastão transforma-se em serpente (7.8-13)................................ 116
2) A praga do sangue (7.14-25) .......................................................... 119
3) A praga das rãs (7.26-8.11)............................................................ 123
4) A praga dos piolhos (8.12-15)......................................................... 126
5) A praga das moscas (8.16-28).........................................................128
6) A praga da peste do gado (9.1-7)....................................................132
7) A praga das úlceras (9.8-12)........................................................... 134
8) A praga do granizo (9.13-35).......................................................... 136
9) A praga dos gafanhotos (10.1-20)...................................................140
10) A praga das trevas (10.21-29)....................................................... 144
b) Anúncio da décima praga (11.1-10)....................................................148
c) Preparação da Páscoa (12.1-13).......................................................... 152
d) Os pães ázimos (12.14-20)................................................................. 157
e) A Páscoa da libertação (12.21-28)....................................................... 160
f) A décima praga e o anúncio da saída do Egito (12.29-36)...................163
Aspectos teológicos: A dinâmica literária das dez pragas do Egito 
(7.8-13.16)................................................................................................166
II. DO EGITO AO SINAI (12.37-18.27)................................................... 171
A. De Ramsés a Sucote (12.37-13.19)......................................................175
1. O início da marcha (12.37-42)........................................................ 175
2. Prescrições sobre a Páscoa (12.43-51).............................................178
3. Os primogênitos e os pães ázimos (13.1-10)...................................181
4. Os primogênitos (13.11-16) ............................................................ 184
5. Conclusão (13.17-19)......................................................................186
B. De Sucote a Etã (13.20-22)................................................................. 189
C. De Etã ao mar (14.1-15.21)................................................................ 191
1. Perseguição dos israelitas (14.1-14)................................................191
2. A travessia do mar (14.15-31)......................................................... 197
3. Canto triunfal de Moisés (15.1-19)................................................. 203
4. Canto triunfal de Miriã (15.20-21)..................................................209
D. Do mar até Mara e Elim (15.22-27)....................................................211
E. De Elim a Sin (16.1-36)...................................................................... 215
1. As murmurações do povo (16.1-12).................................................215
2. Deus manda codomizes e maná (16.13-21).................................... 218
3. A instituição do sábado (16.22-30)................................................. 221
4. O maná como testemunho (16.31-36)............................................ 223
Aspectos teológicos: O maná e o sábado.................................................225
F. De Sin a Refidim (17.1-18.27)............................................................ 229
1. A água da rocha (17.1-7).............................................................. 230
2. A batalha contra Amaleque (17.8-16).............................................232
3. Jetro visita Moisés (18.1-12).......................................................... 236
4. A instituição dos juizes (18.13-27).................................................242
III. A ALIANÇA NO SINAI (19.1-40.38).................................................. 249
A. A aHança (19.1-20.21)..........................................................................253
1. De Refidim ao Sinai (19.1-2)........................................................... 254
2. Preparação da aliança (19.3-15)......................................................254
3. Deus se manifesta no monte (19.16-25)......................................... 260
4. Os Dez Mandamentos (20.1-17)......................................................264
5. Temor a Deus (20.18-21)................................................................ 278
B. O Código da Aliança (20.22-23.33)......................................................281
1. O altar (20.22-26)............................................................................282
2. Sobre os escravos hebreus (21.1-11).............................................. 284
3. Sobre casos graves de violência (21.12-17)..................................... 287
4. Sobre brigas e ferimentos (21.18-27)...............................................288
5. Sobre o boi (21.28-36).................................................................... 291
6. Sobre o furto (21.37-22.3)............................................................... 293
7. Sobre outros delitos (22.4-14).........................................................294
8. Sobre a sedução de uma jovem (22.15-16)..................................... 297
9. Leis diversas (22.17-30).................................................................. 298
10. Sobre a justiça (23.1-9)................................................................. 302
11. Sobre o ano sabático e o sábado (23.10-13)................................ 305
12. Sobre as três festas anuais (23.14-19).........................................307
13. Antecipação da entrada em Canaã (23.20-33)............................. 309
C. Ratificação da aliança (24.1-18)..........................................................315
1. Confirmação da aliança (24.1-11)...................................................316
2. Moisés sobe ao monte (24.12-18)................................................... 321
D. Instruções sobre a Morada e os serviços religiosos (25.1-31.18)....... 325
Nota sobre a tradução..............................................................................326
Aspectos teológicos: Para ler Êx 25-31 e 35-40. Sobre a Morada
e o templo................................................................................................ 326
Aspectos históricos..................................................................................327
Aspectos literários...................................................................................329
Aspectos teológicos..................................................................................331
1. Material para a construção (25.1-9)............................................... 332
2. A arca (25.10-22) // (Êx37.1-9).....................................................333
3. A mesa dos pães (25.23-30) // (Êx 37.10-16)................................335
4. O candelabro de sete lâmpadas (25.31-40) // (Êx 37.17-24).........336
5. A Morada: as cortinas, a estrutura, o véu (26.1-37).......................338
6. O altar de sacrifícios, o átrio, o azeite para as lâmpadas
(27.1-21)//(Êx 38.1-7; 38.9-20; Lv 24.1-4)........................................ 341
7. As vestes dos sacerdotes (28.1-43) // (Êx 39.1-31).......................343
8. Consagração de Arão e seus filhos (29.1-46) //
(Lv 8.1-36; Nm 28.1-8)....................................................................... 347
9. O altar do incenso, a bacia, o óleo, o incenso (30.1-38).................352
10. Os artesãos (31.1-11) ................................................................... 355
11. Descanso sabático e entrega das tábuas (31.12-18)....................356
E. A idolatria de Israel (32.1-34.35)........................................................ 359
1. O povo rompe a aliança (32.1-35)..................................................360
a) O bezerro de ouro (32.1-6)................................................................... 360
b) A ira de Deus (32.7-14)....................................................................... 362
c) As tábuas quebradas (32.15-20)..........................................................364
d) A ira de Moisés (32.21-29)................................................................... 366
e) Moisés intercede pelo povo (32.30-35).................................................367
2. Deus promete renovar a aliança (33.1-23)..................................... 368
a) Deus ordena continuar com a marcha (33.1-6).................................. 369
b) A Tenda do Encontro (33.7-11)........................................................... 370
c) Diálogo de Moisés com Deus (33.12-23)..............................................371
3. Deus renova a aliança (34.1-35)....................................................374
a) As novas tábuas (34.1-4)..................................................................... 374
b) Deus se apresenta a Moisés (34.5-9)...................................................375
c) Sobre a idolatria (34.10-17)................................................................. 376
d) Sobre as festas anuais (34.18-26) // (Êx 23.14-19; Dt 16.1-17)........378
e) Moisés desce do monte (34.27-35).......................................................379
F. A construção da Morada (35.1-40.33).................................................381
1. Descanso sabático, materiais, lista de objetos, doações (35.1-29) ..382
2. Os artesãos e a oferta abundante (35.30-36.7).............................. 384
3. A Morada: a estrutura, o véu, a cortina (36.8-38).......................... 385
4. Os móveis: a arca, a mesa do pão, o candelabro de sete 
lâmpadas, o altar do incenso e o óleo, altar dos sacrifícios,
a bacia (37.1-38.8).............................................................................387
5. O átrio, os metais (38.9-31)............................................................ 389
6.As vestes dos sacerdotes (39.1-31).................................................391
7. Entrega da obra e construção da Morada (39.32-40.33)................393
G. Javé entra na Morada (40.34-38)....................................................... 397
PREFACIO
O presente livro tem sua razão de ser na constante necessidade de 
ler de forma sempre nova os antigos textos fundantes de nossa fé. Curiosa­
mente, o tempo percorrido pelos textos desde a sua redação não os preju­
dicou; ao contrário, eles se tornaram mais ricos em significado, confirman­
do, assim, que, apesar das muitas mudanças que ocorrem nas culturas no 
decorrer dos anos, há perguntas e situações profundas que permanecem, 
revelando que a aventura humana e os textos que ela produz são tão fasci­
nantes quanto insondáveis. Cada vez que nos aproximamos do testemunho 
milenar dos textos bíblicos, descobrimos que eles têm algo novo a nos dizer. 
Uma compreensão estreita das Escrituras diría que a mensagem do livro do 
Êxodo já está definitivamente concluída e fechada, uma vez que esse livro 
faz parte do que nós crentes chamamos de “palavra de Deus”. Porém a ex­
periência mostra que a relação entre a Palavra e o leitor é sempre dinâmica 
e que uma determinada leitura não esgota o sentido, mas atualiza apenas 
uma parte da mensagem. De fato, ninguém se aproxima de um texto a partir 
de uma redoma de vidro; ao contrário, cada pessoa lé o texto inevitavelmen­
te a partir de uma época e de um lugar bem determinados. Em vez de limitar 
a compreensão do texto, essa contextualidade a potência, agregando-lhe o 
sal da vida e convidando-nos a utilizar o melhor de nossa experiência para 
desvendar a mensagem do texto para nós e nossa gente.
A narrativa bíblica, apesar de insondãvel, é bela. Não se quer apenas 
chegar ao destino final; quer-se também poder desfrutar do caminho que 
nos permite alcançá-lo. Pois o sentido que desejamos encontrar no texto não 
é um produto acabado que se encontra no final do relato, mas uma relação 
que se constrói a partir da primeira palavra que lemos e que se desenvolve 
ã medida que entram em cena todas as dimensões do texto. A narrativa do 
feito da libertação dos escravos ou da fundição do ídolo de ouro no deserto 
tem um impacto sobre o leitor pelo conteúdo narrado, mas também por cau­
sa do dramatismo e da retórica com que é narrada. Sabemos que se entende 
melhor um texto quando desfrutamos de sua leitura. Esperamos que, em 
nossa aproximação ao Êxodo, também possamos sentir o prazer de estar 
diante de uma narrativa bonita.
Agradecimentos
Desejo expressar minha gratidão a duas instituições; ao Instituto Uni­
versitário ISEDET, que me deu, através da concessão de um ano sabãtico, a 
oportunidade de põr em ordem e por escrito a pesquisa de vários anos. Essa
casa é uma permanente fábrica de pensamentos teológicos; as constantes 
leituras e debates que nela ocorrem - tanto com os colegas docentes como 
com os estudantes nas aulas - têm sido terra fértil para que as primeiras 
intuições alcançassem a maturidade necessária e tomassem a forma dessas 
reflexões. Desejo que este livro possa refletir, pelo menos em parte, a valiosa 
experiência acadêmica que me proporcionou essa comunidade acadêmica.
A segunda instituição é a Perkins School of Theology, Southern Me- 
thodist University, por me ter convidado como professor visitante, oferecen­
do, assim, o espaço para combinar docência com pesquisa durante o ano 
sabático. Os dois cursos sobre Êxodo que ali ofereci permitiram-me discutir 
e repensar, juntamente com os estudantes, vários aspectos deste trabalho. 
Em muitos casos, suas perguntas e observações alimentaram as reflexões 
que se encontram nestas páginas; estão, portanto, nelas presentes de forma 
anônima. A excelente biblioteca Bridwell permitiu o acesso a um imenso 
acervo bibliográfico. Além disso, seus recursos tecnológicos foram funda­
mentais na produção desta obra. Porém, mais do que todo esse necessário 
auxilio material, gostaria de destacar o calor das pessoas - professores, es­
tudantes e funcionários - que, a todo momento, me ofereciam sua amizade e 
ajuda, imprescindiveis para que minha estadia nessa casa de estudos fosse 
uma experiência enriquecedora não só do ponto de vista intelectual, mas 
também existencial e humano.
Gostaria de acrescentar uma palavra de gratidão à Editora Sinodal, 
por tornar esta obra acessível ao leitor brasileiro, e ao Dr. Nelson Kilpp, 
que, graças a seus profundos conhecimentos bíblicos, fez uma excelente e 
meticulosa tradução, atenta a todos os detalhes do texto bíblico.
8
SIGLAS E ABREVIATURAS
ABD
ANET
BAR
BASOR
BDB
BHS
Bib
BJ
BTB
BZAW
cap.
CBQ
CoS
CuadTeol
EB
EI
Hen
HUCA
JAOS
JBL
JNES
JNSL
JOLAH
JQR
JSOT
LXX
OTS
OrArg
PEQ
RB
RevBibl
RIBLA
RdQ
RV
Anchor Bible Dictionary
Ancient Near Eastem Texts Relating to the Old 
Testament
Biblical Archaeologist
Bulletin of the American School of Oriental Research 
Brown; Driver; Briggs. Gesenius: Hebrew and English 
Lexicon
Biblia Hebraica Stuttgartensia
Biblica, Roma
Bíblia de Jerusalém
Biblical Theological Bulletin, New York
Beihefte zur Zeitschrift für die alttestamentliche
Wissenschaft
capítulo (s)
Catholic Biblical Quarterly 
The Context of Scriptures I-III 
Cuadernos de Teologia, Buenos Aires 
Estúdios Bíblicos 
Eretz Israel, Jerusalém 
Henoch, Roma
Hebrew Union College Annual
Journal of the American Oriental Society
Journal of Biblical Literature
Journal of Near Eastem Studies
Journal of Northwest Semitic Languages
Journal of Latin America Hermeneutics (www.isedet.
edu), Buenos Aires
Jewish Quarterly Review
Journal for the Study of the Old Testament
Septuaginta
Oudtestamentische Studiên, Leiden 
Orientalia Argentina 
Palestine Exploration Quarterly 
Revue Biblique, Paris 
Revista Bíblica, Buenos Aires
Revista de Interpretação Bíblica Latino-Americana 
Revue de Qumran
Santa Bíblia (versão de Reina-Valera, 1995)
http://www.isedet
s (ss)
Salm
SJOT
TDOT
TM
TNF
TO
TPsJ
TLOT
V.
VT
Vulg
ZA
ZAW
seguinte (seguintes)
Salmanticensis, Salamanca
Scandinavian Journal of the Old Testament
Theological Dictionaiy of the Old Testament
Texto Massorético
Targum Neofiti
Targum Onkelos
Targum Pseudo-Jônatas
Theological Lexicon of the Old Testament
versículo (s)
Vetus Testamentum 
Vulgata
Zeitschrift für Assyriologie
Zeitschrift für die alttestamentliche Wissenschaft
10
INTRODUÇÃO
Cada texto é um enigma a ser decifrado. E quando o texto a ser lido 
tem a riqueza e a complexidade do livro do Êxodo, o empreendimento não 
apenas se toma fascinante e sedutor, mas também exige, de nossa parte, 
um esforço supremo para revelar seus sentidos e vasculhar seus recantos. 
Pretendemos, nas páginas a seguir, realizar uma exploração do sentido des­
ses textos, para que nos possam ajudar - desde que estejamos abertos ã 
sua mensagem — a entender os nossos próprios desafios e perguntas. Pois o 
Êxodo - como a Bíblia em geral - não é como a luz de um farol, que ilumina 
o cmzamento de mas, mesmo que ninguém passe por ele durante toda a 
noite. Ler um texto assim requer nossa participação ativa e exige que faça­
mos a parte que nos cabe. O enigma quer ser decifrado. Mas ele não será se 
não contribuirmos com o que somos e não nos arriscarmos a interpretá-lo.
Para escrever este comentário, foram feitas várias opções prévias, que 
lhe dão a forma e a personalidade. Essas opções têm a ver com os aspectos 
teológicos e metodológicos utilizados para abrir o texto, observã-lo a partir 
de vários ângulos e tentar contribuir para uma compreensão de sua men­
sagem, que fosse relevante para a nossa época e situação. Nesse sentido, o 
presente livro é, em primeiro lugar, um livro teológico. Nossa preocupação 
não é determinar o que, em suas páginas, é histórico e o que é legendário. 
Tampouco investimos esforços em encontrar explicações racionais para os 
frequentes acontecimentos maravilhosos e incompreensíveis narrados em 
suas páginas. O leitor perceberá que a relação entre história e texto, assim 
como é entendida nestecomentário, não é a habitual. Por isso podemos 
admitir que raramente se encontra história nas páginas do livro do Êxo­
do - se é que existe - e, ainda assim, considerã-lo um livro que causou 
impacto como poucos na história. Isso se deve ao fato de que o livro do 
Êxodo não pretende ser um livro de história, no sentido estrito do termo, 
mas antes uma obra que faz crescer a história ao narrar um novo capítulo 
do encontro de Deus com a humanidade e ao dar um sentido, a partir de 
suas páginas, ãs lutas por libertação, á paixão pela justiça e á busca por 
dignidade para os povos oprimidos dentro de uma profunda relação espiri­
tual e existencial que abarca todos os âmbitos da vida. Isso o livro alcança 
colocando em cena uma série de acontecimentos e situações que refletem, 
com um realismo insofismável, nossa condição humana. Seus personagens 
são capazes de realizar as crueldades mais terríveis, como o genocídio e o 
assassinato de bebês, mas também feitos heroicos, como o de desobedecer 
ao homem mais poderoso da Terra. Encontramos desde o clamor que brota 
da angústia da opressão até a ternura de quem se comove com o choro de
11
uma criança abandonada. Em suas páginas, a fé e a idolatria disputam a 
hegemonia; o chamado de Deus é questionado e rejeitado numa intensida­
de que nos surpreendería. Percorrer suas histórias leva-nos do voo livre de 
belíssimas narrativas à nitidez precisa das leis, da minuciosa descrição da 
Tenda à não menos minuciosa narrativa da construção desse santuário. E 
tudo isso acontece no contexto de uma obra que inicia com um Deus quase 
desconhecido aos personagens e que termina com o Deus que se revela a 
si mesmo, identifica-se, decide habitar no meio de seu povo e, por fim, des­
creve e promove um projeto de libertação para os escravos, que somente se 
concretizará com a posse da terra já além do Pentateuco.
O texto como literatura
No intuito de contribuir para uma leitura mais proveitosa deste co­
mentário, queremos compartilhar com o leitor edguns dos aspectos mais 
destacados de nosso método, bem como nossas opções teológicas e herme­
nêuticas.
1 - Neste comentário, lemos o texto como obra literária. A peilavra de 
Deus apresenta-se em forma de literatura e requer que assim a leiamos. 
Isso tem profundas consequências para a relação entre o texto e a história 
que ele narra. Aqueles que supõem que o narrado efetivamente aconteceu 
tal qual foi narrado ou, então, os que creem que desvendar a história por 
trás dos textos é a melhor maneira de entendê-los na verdade perdem a ri­
queza maior da obra. Não é encontrando o “Moisés histórico” que melhor se 
entende a mensagem do Êxodo, mas deixando que suas histórias iluminem 
nossos atuais desafios. É importante levar em conta que o autor não se sen­
te preso ás coordenadas da realidade nem espera que seus leitores as con­
siderem em cada detalhe. Sua função é dair testemunho de uma experiência 
de fé que se originou em uma história particular. E seu texto quer promover 
a mesma fé no leitor.
2 - 0 livro do Êxodo apresenta uma unidade literária. Como parte 
do Pentateuco - um “capítulo” dessa obra maior -, ele desenvolve de modo 
coerente um argumento até concluí-lo. O que inicia nas primeiras linhas 
tem seu desfecho nas últimas. Constitui uma distorção de linguagem con­
siderar que a existência de diversas fontes (conhecidas sob as siglas J, E, P 
e D) representa uma falta de unidade literária. A análise das fontes revela 
a história da formação do texto, mas não pode aplicar-se ã leitura do texto 
final. Deve-se buscar a unidade desse texto final na coerência interna e na 
continuidade semântica, não na ideia de que um único autor tenha escrito 
a totalidade da obra. O reconhecimento das fontes explica as duplicações 
e as interpelações, mas não percebe o sentido das mesmas dentro da com­
posição final. Nosso comentário não nega a existência de fontes nem que o 
texto final seja uma obra composta por diversas mãos. Mas nossa pergunta 
é pelos motivos por que essas fontes foram organizadas justamente assim 
como hoje as temos. Em outras palavras, discernimos as fontes quando
12
contribuem para o entendimento da forma do texto, mas não as adotamos 
como princípio de leitura. Pois, em primeiro lugar, não existe concordância 
sobre a atribuição de cada passagem do texto a uma ou outra fonte e, em 
segundo lugar - o que a nosso ver é mais importante o sentido não nasce 
da dissecação do texto, mas, pelo contrário, da complementação inteligente 
realizada pelo redator final.
3 - A riqueza da obra permite várias estruturas, de modo que é neces­
sário optar. A nosso ver, a narrativa organiza-se a partir de cenários geográ­
ficos, nos quais se desenrolam os acontecimentos. A parte II, por sua vez, 
está organizada de acordo com o modelo do itinerário, que será explicado 
em seu devido lugar. Dessa forma, a estrutura geral do livro aqui utilizada 
é a seguinte;
I - Israel no Egito (1.1-12.36);
II - Do Egito ao Sinai (12.37-18.27);
III - A aliança no Sinai (19.1-40.38).
Cada parte será desenvolvida através de unidades menores, eviden­
ciando, quanto possível, as estruturas internas, que constituem a trama 
literária e o tecido de sentido. Todos os textos estão vinculados entre si, de 
modo que não se pode tratar de seu significado sem considerar o contexto 
literário em que se encontram. Isso é necessário justamente porque se trata 
aqui de um texto “composto” de fontes preexistentes. Isso significa que a 
colocação de uma unidade em um determinado lugar particular, por vezes, 
não é decorrência do desenvolvimento natural da narrativa, mas pressupõe 
uma intenção teológica ou literária; habitualmente, ambas as dimensões 
estão envolvidas.
4 - A partir dessas considerações, pode-se concluir que nossa tarefa 
se concentra em descobrir o sentido do texto dentro do próprio texto, não 
fora dele. Devemos buscar a chave do texto em suas relações internas e em 
sua capacidade simbólica de transcender o eventual contexto original para 
constituir-se em uma mensagem para todos os tempos e situações. Em de­
corrência, a narrativa deve falar para a nossa situação a partir de si mesma 
e não a partir de uma hipotética e limitada relação com a história, seja a 
história dos fatos narrados ou a história do texto que se buscou reconstruir. 
Uma vez analisadas as diversas alternativas, a abordagem final será sem­
pre semântica. Por esse motivo, quando falamos de “autor”, “redator” ou 
“editor”, referimo-nos ao redator final na qualidade de “escritor semiótico” 
e não como uma pessoa histórica ou psicológica. A mensagem bíblica não é 
o produto de uma mente extraordinária, mas resultado de muitas camadas 
de sentido, combinadas para que se alimentem, se eontradigam, se somem 
e se equilibrem até que, finalmente, produzam um texto de riqueza superior. 
Cada camada morre literalmente para doar seu sentido ã nova configuração 
literária, ou seja, o texto final.
5 - Neste comentário, privilegiamos o texto canônico. As obras para­
lelas, como os Targumim ou as traduções gregas e latinas, são ferramentas 
de trabalho fundamentais, mas elas serão utilizadas apenas para iluminar o 
texto hebraico, no qual se baseiam as traduções modernas. É preciso levar
13
em conta que trabalhamos a partir do cânone não porque lhe atribuamos 
algum poder mágico, mas porque é a narrativa tida como transmissora da 
mensagem de Deus. Apesar dos problemas de crítica textual e das variantes 
próprias de um texto antigo, pode-se afirmar que estamos diante de um ma­
terial objetivo e externo ao leitor, uma obra que nos foi dada e que, a partir 
de sua objetividade, nos desafia a que a leiamos a partir de nosso próprio 
lugar na vida e na história.
6 - Notar-se-á que apresentamos a nossa própria tradução do texto 
biblico. Isso não quer dizer que desmerecemos a qualidade das tradições 
modernas, às quais o leitor pode recorrer se assim o desejar. Mas o presen­
te comentário baseia-se na tradução apresentada, que busca dar conta da 
estruturada língua hebraica e preservar determinadas locuções idiomáticas 
que costumam perder-se em outras versões. Por isso nossa tradução deve 
ser entendida como uma tradução instrumental para a exegese. Em muitos 
casos, a fim de resgatar uma locução hebraica, ela tolera uma deficiência 
estilística na esperança de que o leitor saiba perdoar.
7 - Do ponto de vista teológico, é necessário apontar para o fato de que 
muitos comentários excelentes do Êxodo não enfatizam o feito da libertação 
como núcleo temático da obra. Isso é um lamentável equívoco, que geral­
mente é consequência de uma deficiência metodológica. A partir de certos 
ângulos, não se percebe com clareza a força semântica do tema da liber­
tação impresso nessas páginas. O próprio Antigo Testamento lê e relê, em 
dezenas de textos, o feito do êxodo como paradigma da libertação. Por isso 
o texto transcende a narrativa dos feitos realmente ocorridos com os pais 
de Israel, escravizados no Egito, e configura-se como revelação da vontade 
de Deus para todos os tempos e povos. O clamor que nasce da opressão e 
a procura por um Deus que tem respostas para a aflição humana são tão 
antigos queinto a própria humanidade e foram responsáveis pela criação dos 
primeiros textos de quase todas as culturas do mundo. O sentimento de que 
não é justo que uns se aproveitem de outros e que explorem sua força de 
trabalho, roubando-lhes a alegria, os filhos e a própria vida, tem sido o caldo 
que produziu, desde os alvores da aventura humana, rebeliões, façanhas e 
atos de heroísmo que encontraram expressão em palavras e, por fim, logra­
ram cristalizar-se em textos. No âmbito desses sentimentos, o nosso Êxodo 
bíblico é o testemunho de que o Deus de Israel se compadece e se comove 
com o sofrimento e as injustiças aos quais foram submetidos seus filhos e 
suas filhas e sai para resgatá-los através de um projeto de libertação que 
suplanta todas as expectativas.
Por fim, o leitor perceberá que, neste comentário, escrevemos Deus, 
Deusa, Deuses e Deusas com inicial maiuscula em respeito ãs divindades 
mencionadas e também porque, a partir de uma teologia monoteísta como a 
nossa, deve-se pressupor que toda expressão religiosa honesta e sincera se 
refira ao Deus único. Criador e Senhor do universo, revelado nas Escrituras.
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ISRAEL NO EGITO 
(1.1-12.36)
ISRAEL Ê OPRIMIDO NO EGITO (1.1-22)
1. Prólogo (1.1-7)
1) Estes são os nomes dos filhos de Israel que vieram ao Egito com Jacó. 
Cada um veio com sua família.
2) Rúben, Simeão, Levi e Judá;
3) Issacar, Zebulom e Benjamim;
4) Dá e Nafiáli; Gade e Aser.
5) Todas essas pessoas, descendentes de Jacó, eram setenta, e José já 
estava no Egito.
6) Morreu José, todos os seus irmãos e toda aquela geração,
7) mas os filhos de Israel foram fecundos e cresceram, multiplicaram-se 
e se fortaleceram muito. E o país se encheu deles.
Introdução ao texto
Esta unidade serve de prólogo ao livro e, ao mesmo tempo, vincula-o 
com a narrativa anterior. Os vínculos com as histórias de Gênesis encon­
tram-se na menção de que “vieram ao Egito”, na lista dos filhos de Jacó 
- José é mencionado à parte - e na primeira indicação de que a promessa 
dada a Abraão - de que se tomaria pai de uma numerosa nação - estava 
sendo cumprida. Também a informação de que eram setenta os descenden­
tes de Jacó vincula o texto com a narrativa precedente. Simultaneamente, 
este prólogo cumpre a função de iniciar uma nova etapa ao assinalar que 
todos morreram e que os israelitas, das setenta pessoas que eram, passa­
ram a ser uma multidão.^ “Encher o país” é uma expressão que provoca 
sentimentos desencontrados, pois ela evoca o cumprimento das promessas, 
mas também prenuncia as iminentes turbulências sociais em decorrência 
do fato de que essa multidão reside em terra estrangeira.
Em seu importante estudo, G. DAVIES {Israel in Egypt: Reading Exodus 1-2. Sheffleld, 1992. 
p. 24] considera essa passagem uma transição entre Gênesis e Êxodo.
17
Análise detalhada
1 ► A continuidade entre a narrativa de Gênesis e o livro do Êxodo ma­
nifesta-se de várias formas. A primeira não é visível na tradução; ela se en­
contra bem no início da narrativa: “E estes são os nomes[...]”. A conjunção 
aditiva “e” pressupõe, no hebraico, que a narrativa esteja dando continuida­
de ao texto anterior.2 Essa forma de começar um livro repete-se em Levítico 
e Números, mas não em Deuteronômio, realçando a unidade narrativa dos 
quatro primeiros livros (Gênesis a Números) e o início de uma narrativa nova 
no quinto livro. ̂A segunda forma é mais evidente: a lista dos filhos de Jacó 
arrola apenas onze, uma vez que omite José, do qual se afirma, logo a se­
guir, que já estava no Egito. Isso pressupõe que o leitor já conhece a história 
anterior, de modo que não mais é necessário recontá-la. O v. 8 mencionará 
que o novo rei do Egito “não conhecia José”, o que é um outro indício de que 
o leitor está familiarizado com as histórias de Gênesis.'*
Ainda que possa parecer óbvio, é necessário ressaltar que esse primei­
ro versículo deixa claro que os israelitas são estrangeiros no Egito. Afirma 
que vieram de fora para o Egito e que não pertencem a essa terra. Não se 
trata de um dado secundário se considerarmos que o prólogo mui provavel­
mente foi incorporado ã narrativa na época pós-exílica, quando pelo menos 
três aspectos influenciavam o pensamento dos judeus: em primeiro lugar, 
uma crescente diáspora, que exercia uma pressão cultural cada vez maior 
sobre as formas tradicionais, desafiando a autoridade religiosa e social da 
terra de Israel; em segundo lugar, sabe-se que a vida em Canaã não era 
uma experiência gratificante, havendo uma certa desilusão quanto à efetiva 
posse da terra. Em decorrência disso, deve ter sido grande a tentação de mi­
grar para uma das colônias que podiam oferecer a prosperidade negada na 
própria terra. Sendo assim, o texto pode ser também lido eomo uma alusão 
ã importante colônia judaica de Alexandria no Egito. Por fim, uma vez que 
o livro do Êxodo inicia com o cumprimento, no Egito, da promessa “de vir a 
ser um povo numeroso”, o narrador quer deixar claro que a outra promessa.
o início com “E[...]” encontxa-se no TM e no Pentateuco Samaritano, mas não na LXX nem 
nos manuscritos agrupados por Kenicott. A nosso ver, isso não põe em cheque o texto he­
braico, mas relativiza, neste caso, a LXX. Para a discussão, cf. PROPP, W. Bxodus 1-18. New 
York, 1998. p. 119-120.
A ideia do teírateuco (Gênesis-Números), em vez de um pentateuco, pode apoiar-se na estru­
tura literária, mas tem alguns problemas do ponto de vista hermenêutico. Basicamente se 
deve observar que, no plano da redação final, Dt 34 marca a conclusão de toda a vida de Moi­
sés, inclusive de sua época no Egito (cf. 34.10-12). Nesse sentido, J. VAN SETERS [The Life 
o f Moses: The Jahwist as Historian in Exodus-Numbers. Louisville, 1994 (Kampen, 1994)] 
considera Êxodo-Deuteronômio uma “biografia” de Moisés.
Contra essa posição se manifesta E.T. MULLEN [Ethnic Myths and Pentateuch Foundations: 
A New Approach to the Formation of the Pentateuch. Atlanta, 1007. p. 103-165], que aponta 
para a ausência de vínculos entre Êxodo e Gênesis, baseando, no entanto, sua afirmação 
numa análise histórica e não literária. Isso enfraquece seu argumento, porque é dificil aceitar 
que uma narrativa que se toma por contínua e linear tenha que fazer referências explícitas às 
histórias já narradas.
18
a posse da terra, não se cumprirá no Egito. Pode ser que algumas pessoas 
pensassem assim a partir de Gn 13.10, onde se compara uma boa terra com 
as terras do Egito. Porém as terras férteis em tomo do delta do Nilo não se­
rão a terra prometida.
2-4 A lista de nomes é significativa. Nossas traduções geralmente não 
conseguem reproduzir a cadência dos nomes, que, no hebraico, estão reuni­
dos em quatro gmpos, pois colocam um “e” antes dos terceiro, sétimo, nono 
e undécimo nomes. Os nomes são apresentados de acordo com a linhagem 
materna, seguindo uma tradição presenteem Gn 35.22ss. A ordem é a se­
guinte: a) filhos de Lia (6); b) filhos de Raquel (1); c) filhos de Bila (2) e d) 
filhos de Zilpa (2).
Agmpar os nomes dessa maneira demonstra um interesse especial 
em destacar o papel das mães. Já que as mulheres costumam estar ocultas 
nas narrativas biblicas, não se deve menosprezar esse recurso estilístico 
singular, especialmente sabendo que, numa sociedade poligámica, quem 
dá a unidade biológica a uma família é o pai, e não as mães. Se considerar­
mos que o texto combina a informação de Gn 35 com a estrutura geral de 
Gn 46.8-26 - onde se segue a ordem dos nascimentos, não das mães fica 
evidente que ele quis destacar algo especial ao apresentar a sua lista dessa 
forma. Ainda que não as mencione pelo nome, o texto evoca a memória das 
mães. Esse dado se agrega à abundância de papéis femininos nos cap. 1-2.
5 ► A menção de setenta descendentes de Jacó é tomada de Gn 46.27.
O número é uma forma superlativa de sete, que, por sua vez, é um número 
que representa plenitude, algo completo, referindo-se, nesse caso, ao cum­
primento de uma promessa de Deus. Deve-se evitar a ideia de que o sete 
representa a perfeição, pois esse conceito não corresponde à simbologia bí­
blica nem interessa a seus relatos. = De qualquer forma, setenta também é 
um número redondo com conotação positiva. Dessa forma é utilizado, entre 
outros, em relação aos descendentes de Sem, Cam e Jafé, que juntos so­
mam setenta nomes para representar a totalidade dos habitantes da terra 
(Gn 10); às setenta palmeiras em Elim (Êx 15.27); aos setenta anciãos que 
sobem com Moisés até a presença de Deus (Êx 24.1,9) e aos setenta homens 
aos quais é concedido o espírito de Deus (Nm 11.16,24).
É verdade que Gn 46.26 fala de sessenta e seis descendentes de Jacó, 
aos quais se somam José e seus filhos (v. 27). Isso perfaz um total de ses­
senta e nove, de modo que se torna necessário incluir o próprio Jacó para 
fechar o número de setenta. Note-se que essa última passagem não fala 
de descendentes, mas, de modo ambíguo, de “todas as pessoas da casa de
Não há, no hebraico bíblico, uma palavra que corresponda ao termo “perfeito”; o número sete 
e palavras como tob ou tamim - costumeiramente traduzidas como “perfeito” - expressam 
uma ideia mais densa e dinâmica, relacionada com o que é completo, pleno, cabal, o que 
alcançou seu pleno desenvolvimento, inclusive estético (“belo”) ou ético (“o que está/é bom”).
19
Jacó”, o que permite incluir o próprio patriarca para chegar ao número de­
sejado. Há muito se percebeu um problema nessa passagem, o que fica claro 
na tradução da LXX, que afirma terem sido setenta e cinco os descendentes, 
incluindo três netos e três bisnetos de Josê (69 + 6 = 75; omite-se Jacó). 
Assim, ao citar a tradução grega, At 7.14 fala de setenta e cinco pessoas 
quando se refere à familia de Jacó.
A expressão “descendentes” de Jacó traduz o que, no hebraico, se diz 
literalmente: “os que saíram do lado {yerek) de Jacó”. Trata-se de uma figura 
eliptica que alude aos genitais de Jacó, ou seja, ao lugar da força sexual e 
da vontade reprodutiva. Em Gn 24.2, Abraão pede a seu criado que coloque 
a mão por baixo de sua coxa (yerek) como garantia de que vai cumprir o 
juramento que lhe irã fazer. Na verdade, o texto fala dos órgãos sexuais que 
devem ser tocados. Desse modo, busca-se vincular ao juramento uma parte 
do corpo considerada essencial. Por falar em descendência, o nosso texto 
evidentemente se refere aos genitais, ajudando, assim, também a entender 
Gn 24. Nos últimos momentos da vida de Jacó (Gn 47.29), encontramos o 
mesmo gesto para selar uma promessa.
6 ► Os comentários concordam em atribuir este versiculo à fonte literá­
ria javista, sendo uma inserção no texto sacerdotal. Porém as consequên­
cias disso para a interpretação não parecem ser muito significativas. Mais 
frutífera é a constatação de que, do ponto de vista narrativo, este versículo 
marca claramente que estamos agora em um novo período da história. A 
expressão “irmãos”, empregada para designar os filhos de Jacó, não mais 
se ouvirá no restante da narrativa, sugerindo que a morte de toda aquela 
geração não é um mero dado biológico e natural, mas também cultural e 
político, já que antecipa a tragédia que será relatada no próximo trecho. 
Acabou a época em que os israelitas eram um povo respeitado e prestigiado, 
que gozava da benevolência do rei e tinha a vantagem de que um dos seus 
fora um alto funcionário da corte. Se houve uma “idade do ouro”, ela já 
passou; novos ventos sopram sobre o povo de Israel. Nada restara dela, e os 
louros que José conquistara no passado em nada poderão contribuir para a 
construção do futuro do povo. Percebeu-se que a expressão “e toda aquela 
geração” tem a intenção de incluir os egípcios, a fim de assegurar que essa 
época está encerrada, iniciando-se, no nível da narrativa, um novo período. 
Contudo a passagem de um relato a outro ainda não responde a questão do 
tempo que transcorreu entre um período e outro. Somente em Êx 12.40 se 
afirmará que “o tempo no Egito foi de quatrocentos e trinta anos”. Na crono­
logia literária, portanto, os acontecimentos dos quais nos ocupamos agora 
sucederam aproximadamente quatrocentos anos após a morte de Jacó.
7 ► A tradução “mas [...]” pretende sublinhar o contraste entre o fim 
de um tempo venturoso e o começo de uma outra forma de bênção; a mul­
tiplicação da descendência. As promessas feitas a Abraão em Gn 12ss - e, 
antes, já a Adão (Gn 1.28) e Noé (9.1) - cumpriram-se. Ainda assim, há
20
nuvens escuras no horizonte. O que deveria ser uma bênção parece que vai 
transformar-se em tragédia, já que o fato de ser numeroso representa uma 
alegria para um povo que luta por um lugar ao sol na história, mas é visto 
como ameaça por aqueles que o subjugam. A expressão “o país se encheu 
deles” deve ser entendida como uma afirmação literária e não literal. Não só 
porque o termo hebraico “terra” se refere unicamente ao território do Egito, 
mas também porque o pais certamente não estava todo ocupado pelos israe­
litas. O autor quer nos dar uma ideia da magnitude da bênção divina para, 
logo a seguir, apresentar-nos suas nefastas consequências.
Devemos notar, por fim, que os “filhos de Israel”, neste versiculo, re­
metem a uma realidade distinta daquela a que se refere a mesma expressão 
no V. 1. Neste versículo ainda são uma família, todos descendentes de um 
mesmo pai (Jacó) e identificados como chefes das diferentes tribos. No v. 7, 
são um povo; doravante, a expressão não mais será usada no sentido de 
família. A divisão em tribos - tão destacada nas narrativas de Gênesis - não 
tem a mesma importância no Êxodo.®
Aspectos teológicos: O cumprimento como tragédia (sobre Êx 1.6-7)
A relação entre os v. 6 e 7 deve estar preocupando o leitor. Quando 
um povo se toma numeroso numa terra estrangeira e aquilo que o havia 
protegido deixou de existir, pode-se prever, no mínimo, uma época de pro­
blemas. A partir de Gn 12, pode-se ler que Deus promete uma descendência 
numerosa a todos os patriarcas, inclusive àqueles filhos que não se encon­
tram na linha sucessória herdeira das promessas, como Ismael e Esaú. Mas 
essa promessa ê considerada uma bênção e por ela se espera como se fora 
uma prova de que Deus é fiel à sua palavra e conduz os acontecimentos 
de modo que revelem a sua boa vontade para com seu povo. No pleino da 
narrativa, produz-se, assim, uma espécie de contradição, pois Deus fez com 
que se cumprisse a promessa, mas parece que o fez no contexto errado; no 
estrangeiro, a grande quantidade de descendentes é fonte de problemas e 
não de bênçãos. Evidentemente, o leitor sabe que são duas as promessas 
- a descendência numerosa e a posse da terra de Canaã - e que elas não 
podem ser separadas, pois, do contrário, o efeito da bênção volta-se contra o 
abençoado. O texto quer produzir no leitor o sentimento de que, ao cumprir 
apenas uma parte da promessa. Deus está colocando Israel numa situação 
de grande dificuldade.Outra questão que tem inquietado certos exegetas ê como, a partir 
de setenta pessoas, pôde constituir-se um povo numeroso?’ ̂Essa pergunta 
levou a especulações tais como aquela que afirmava que o clima do Egito 
aumentava a fertilidade das mulheres. Houve quem sugerisse que as mu­
lheres israelitas davam à luz seis filhos a cada parto, outros, que eram doze
® A divisão do povo em doze tribos é mencionada em apenas três ocasiões: Êx 24.4; 28.21; 
39.14.
 ̂ Cf. Êx 12.37; Nm 1.46.
21
ou mais.® Independentemente de ter sido, de fato, assim, o clima teria in­
fluenciado tanto as mulheres egípcias como as israelitas, de modo que não 
se produziría um desequilíbrio populacional. Verdade é que o texto não está 
interessado nessa questão; por isso fazer ao texto essa pergunta de ordem 
prática e mecânica desvirtua o seu sentido. Do ponto de vista textual e lite­
rário, há dois aspectos que devem ser considerados no tocante ao aumento 
dos israelitas. Em primeiro lugar, o v. 7 está em sintonia com a antiga pro­
messa de que os israelitas se transformariam em uma nação numerosa (Gn 
17.2,6; 22.17; 26.4,24; 28.3; 35.11; 48.4). Em segundo lugar, a fertilidade é 
sinal de bênção (Gn 16.10; 17.20); e, quando ela é constante e generalizada, 
expressa ao máximo o compromisso de Deus com o seu povo.
A ameaça vislumbrada na situação proposta pelo prólogo concretizar- 
se-á no resto do cap. 1 e se desenvolverá até que a ação das parteiras he- 
breias (v. 17ss) indique como começar a fugir desse tenebroso destino.
2. A escravidão de Israel (1.8-14)
8J Levantou-se um novo rei sobre o Egito, que não conhecera José.
9) E disse a seu povo: O povo dos filhos de Israel ê mais numeroso e 
mais forte do que nós.
10) Ajamos sabiamente com ele, para que não aumente e, em caso de 
guerra, se una a nossos inimigos, lute contra nós efuja do país.
11) Puseram sobre eles capatazes de trabalhos forçados a fim de opri­
mi-los com seus trabalhos pesados. E construíram cidades-armazéns para o 
Faraó: Pitom e Ramsés.
12) Mas, quanto mais os oprimiam, tanto mais cresciam e se espalha­
vam. E alarmaram-se por causa dos filhos de Israel.
13) Os egípcios escravizaram os filhos de Israel com crueldade
14) e amargaram suas indas com pesados trabalhos na produção de 
barro e tijolos e com todo o trabalho no campo. E, em todo o trabalho com que 
os escravizavam, tratavam-nos com crueldade.
Introdução ao texto
A narrativa continua introduzindo-nos num outro cenário. Agora, esse 
novo faraó, que nada sabia dos serviços que José havia prestado ã sua co­
roa, aparece em todo o seu poder. E o autor permite que seu pensamento e 
sua ideologia se expressem sem rodeios: o faraó tem medo dos pobres escra­
vos, porque são muitos e porque continuam crescendo. Assim, o opressor 
percebe que, em pouco tempo, será impossível mantê-los submissos pelo
A literatura midráxica afirma que, a cada parto, as israelitas davam à luz seis crianças, 
enquanto outras tradições dizem que eram doze ou mais filhos por vez [cf. Midrás Êxodo 
Rabbahl. Tradução e comentários de Luis Fernando Girón Blanc. Valencia, 1989,1,8].
22
simples fato de que excederão o número de escravos capazes de ser contro­
lados socialmente. Decide, portanto, deter a sua proliferação.^
Análise detalhada
8 ^ “Conhecer” ou “não conhecer” não são meros exercícios intelectuais,
mas atitudes diante da vida. Nesse caso, a expressão alude a um vínculo 
que envolve não somente sentimentos, mas sobretudo a vontade. O verbo 
aparecerá vinte vezes nos cap. 1-14, o que evideneia quão importante é estar 
ao par da situação para poder reagir contra ela. °̂
9-10 ► A maneira como o texto apresenta a ideologia do faraó é singular.
Esse tem que convencer o seu próprio povo de que os escravos representam 
uma ameaça. Para tanto recorre a um argumento clássico: provoca o medo 
ao sugerir que, em caso de guerra, os escravos podem rebelar-se e aliar-se 
aos inimigos contra o próprio povo egípcio. O faraó fala no plural (“ajamos 
sabiamente”), incluindo os egípcios, para que se sintam partícipes de seu 
projeto. No fundo, a única diferença entre oprimidos israelitas e oprimidos 
egípcios era a nacionalidade. Por isso o faraó apela à identidade nacional. 
Uma vez que, nas guerras, morriam principalmente os filhos dos mais po­
bres, esse argumento mexia com os brios do povo egípcio.
11 ► A menção da construção das cidades de Pitom e Ramsés auxilia a
determinar a época da qual trata a narrativa. É muito provãvel que esteja­
mos no período do faraó Ramsés II (1290-1224)''. Como era praxe entre os 
antigos monarcas, também esse novo rei ordena construir, no início de seu 
reinado, uma cidade que será batizada com seu nome.'= Mas o que aqui se 
realça é que os israelitas foram reduzidos ã escravidão. Aqueles que, até há 
pouco, tiveram boas condições de vida (cf. Gn 47.5-6) experimentam uma 
mudança em seu destino ao ser submetidos a “trabalhos forçados” ([sarey] 
missim) e a “pesados trabalhos” (sebalah), referindo-se essa última expres­
são ao trabalho escravo. A narrativa mostra que, em sua qualidade de es­
trangeiros, os israelitas estavam sujeitos aos caprichos e às necessidades
 ̂ J. PIXLEY [Êxodo, una lectura evangélica y popular. México, 1983. p. 20] destaca que a nar­
rativa apresenta o faraó como sendo o primeiro a intuir o risco de que os escravos fujam do 
pais, buscando libertar-se da escravidão.
N. SARNA [Exodus: The Traditional Hebrew Text with the New Jewish Publication Sociely 
Translation. Philadelphia, 1991. p. 5] destaca o emprego recorrente desse verbo, outorgando- 
lhe um valor especial na estmturação dos cap. 1-15 do livro do Êxodo.
" Ramsés II pertence à 19*' dinastia egípcia. O êxodo pode ter ocorrido sob o seu reinado ou 
durainte o reinado de seu sucessor, o faraó Merenptah (1224-1204). Para uma avaliação das 
possíveis datas desses acontecimentos, cf. HOUTMAN, C. Exodus I. Kampen, 1993. p. 173- 
175.
Para a localização dessas cidades, cf. UPHILL, E. Pithom amd Ramsés: Their Location and 
Significance. JNES 27, p. 291-316, 1968; JNES 28, p. 15-39, 1969.
23
políticas dos governantes do momento. Essa debilidade social do estrangeiro 
será evocada, várias vezes, pelas leis israelitas com o intuito de reivindicar a 
sua proteção. Essas leis também lembram Israel de sua trágica experiência: 
de ter sido livre, mas ter perdido a sua liberdade.*^
12 ► A estratégia adotada pelo faraó supunha que o esgotamento produ­
zido pelo trabalho forçado reduzisse a população israelita. De fato, as gran­
des obras pesavam sobre os ombros dos israelitas e levavam à deterioração 
da vida dos operéirios, expostos a condições de trabalho desumanas. Sobre 
condições de trabalho semelhantes temos o testemunho do historiador Heró- 
doto, o qual relata que, por ocasião da reconstrução do canal que unia o rio 
Nilo ao mar Vermelho, na época do faraó Neco, morreram 120 mil homens. 
Por isso a primeira estratégia consiste em reduzir a população através do 
esgotamento físico e da desmoralização. A combinação de ambas as coisas 
tomá-los-ia menos fecundos. Mas não aconteceu assim. O texto destaca que, 
quanto maiores a angústia e a opressão, tanto mais cresciam os israelitas.
13-14 ► Nestes dois versículos encontramos, em cinco oportunidades,
palavras formadas a partir da raiz hebraica ‘abad. Essa raiz evoca um uni­
verso de conceitos como: servo, escravidão, trabalhos forçados. A tradução 
não consegue reproduzir esse efeito, pois provocaria redundâncias inaceitá­
veis. A intenção do texto, no entanto, é comunicar que há uma sobrecarga 
de opressão e angústia no tratamento recebido pelos israelitas. Traduzimos 
as palavras mencionadas da seguinte maneira:
(13) Os egípcios escravizaram os filhos de Israel com crueldade e (14) amarga­
ram suas vidas com pesados trabalhos na produção de barro e tijolos e com 
todo o trabalho no campo. E em todo o trabalho com que os escravizavam 
tratavam-nos com crueldade.
“Amargar a vida” é uma expressão contundente, que expressa clara­
mente qual era o projetodo faraó para com os escravos.
Aspectos teológicos: Israel é submetido à escravidão
Muito se tem discutido se a escravidão descrita no Êxodo difere da­
quela existente em outros povos ou se nos deparamos eom a forma habitual 
que se impõe às nações submetidas.” O tema leva-nos a relembrar a dis-
Cf. Dt 10.19; SI 146.9.
” J. N. Postgate apresenta o modo de trabalho no período pós-exílico, do qual se pode inferir 
que a descrição da opressão de Israel no Egito corresponde aos modelos de exploração da 
época [POSTGATE, J.N. Employs, Employees and Employment in the Neo-Assyrian Empire. 
In; POWELL, M. Labor in Ancient Israel. New Haven, 1987. p. 263]. J. Pixley afirma: “Não há 
nada de novo na servidão sob a qual padeciam os israelitas” [PIXLEY, J. Êxodo, una lectura 
evangélica y popular, 1983, p. 22].
24
tância existente entre o acontecimento histórico, assim como pode ter acon­
tecido, e o autor bíblico, que dele se apropriou para transformá-lo em um 
aspecto da mensagem de Deus. A linha divisória entre a realidade histórica 
e a narrativa com seus interesses teológicos e querigmáticos é quase sempre 
imprecisa, o que se nota, em especial, quando queremos delimitar um dado 
social concreto.
No presente caso, as coisas estão colocadas de tal forma que não há 
como fugir do dilema. Por um lado, o sistema egípcio de apropriação de mão 
de obra estendia-se a todos os habitantes. Estudos sobre a administração 
do trabalho durante o período do Novo Império (1550-1070) mostram que, 
na época, a carga de trabalho ficou tão pesada, que levou a greves e rei­
vindicações. *= Como por ironia da história, o texto bíblico atribui a José a 
implementação desse sistema no Egito, quando era administrador dos bens 
do faraó (Gn 47.13-26). O mesmo sistema é usado agora para a desgraça de 
seus descendentes. Entre as colheitas de abril e a inundação anual causada 
pelas cheias do rio Nilo, em outubro ou novembro, havia um longo período 
em que a população estava virtualmente desocupada. A coroa aproveitava 
esse tempo para utilizar essa mão de obra nas gigantescas construções ca­
racterísticas de sua cultura. Os operários trabalhavam sob um regime muito 
severo, recebendo apenas a ração necessária para continuar a labuta. Nada 
indica objetivamente que o trabalho atribuído aos israelitas era diferente do 
exigido de todos os demais habitantes. Mas, por outro lado, nota-se que a 
intenção da narrativa é mostrar que a opressão que sofriam era intensa e 
baseava-se num sistema de crescente pressão sobre os trabalhadores. Não 
se trata de um sistema estável de exploração. Não se deve desconsiderar 
uma construção estilística; a narrativa coloca o v. 12 entre o anunciado no 
V. 11 e o que se dirá nos v. 13-14. No v. 11, fala-se da construção de duas 
cidades como sendo um plano para reduzir a população israelita e mantê-la 
submissa. Mas o v. 12 afirma que esse plano falhou, de modo que aumenta 
o temor dos egípcios. Em consequência disso, os versículos que seguem 
(v. 13-14) descrevem uma intensificação do plano de servidão, uma vez que 
agora os operários recebem tarefas adicionais: fabricar tijolos e trabalhar no 
campo. O que se descreve, portanto, não é tanto um sistema de exploração, 
mas uma política sustentada pela sanha contra um povo estrangeiro que se 
quer manter submetido através do aumento de trabalho sufocante. Isso se 
comprova pelo fato de que ambos os motivos não se esgotam nesse trecho; a 
sanha receberã um reforço na passagem seguinte com a matança dos meni­
nos recém-nascidos (1.15-24), e o aumento do trabalho serã reforçado pelos 
acontecimentos de 5.6-23, analisados mais adiante, que, no entanto, estão 
sintonizados com o presente capítulo. Em todo caso, as tarefas concretas 
não são diferentes do que em outras situações.
A evidência textual e a informação histórica confirmam que a servidão 
a que estão submetidos os israelitas não é maior do que a sofrida pelos egíp-
Cf. EYRE, C. Work and the Organization of Work in the New Kingdom. In: POWELL, M. Labor 
in Ancient Israel, 1987, p. 189-190.
25
cios ou por outros povos da época. Mas isso torna a denúncia teologicamen­
te mais profunda: não se trata do clamor daqueles que estão sendo tratados 
com especial dureza, mas o texto reflete a dor e a angústia dos escravos da 
época, que, no caso, eram israelitas, mas que bem poderíam ter sido egíp­
cios, cananeus ou assírios. Questiona-se a desumanidade da escravidão e 
exploração, que submetem as pessoas a um sistema que suga delas toda a 
sua força e sua vida, a flm de que outros desfrutem dos resultados desse 
trabalho.'® Se a opressão sofrida pelos israelitas fosse específica, ter-se-ia 
esperado um clamor dirigido contra o monarca, para que reconsiderasse 
sua decisão e abrandasse sua política em relação a eles. Isso também não 
é o caso - embora pareça - em 5.15-18, em que os escritas se queixam de 
não poder cumprir o solicitado, colocando-os em situação de conflito com 
seus próprios irmãos israelitas, os quais eles tém que estimular ao trabalho. 
A queixa ao faraó justificar-se-ia se se tratasse de uma política particular, 
que poderia ser substituída por uma menos agressiva e mais benigna. Mas 
o texto não deixa espaço para que se considere útil pedir clemência ao fa­
raó. De certa forma, a leitura do conjunto de Êx 1-15 deixa entrever que o 
faraó não pode modificar a opressão imposta a Israel, pois isso implicaria o 
julgamento do sistema que sustenta seu poder, através do qual ele também 
submete outros povos, inclusive o seu.'^
3. As parteiras hebreias (1.15-22)
15) Disse o rei do Egito às parteiras hebreias, cujos nomes eram Sifrá
e Puá:
16) “Quando ajudais as hebreias, observai os genitais. Se for filho, ma­
tai-o, mas se for filha, que uiva”.
17) As parteiras temeram a Deus e não fizeram como lhes havia dito o 
faraó. E deixaram os filhos com vida.
18) O rei do Egito chamou as parteiras e lhes disse: “Por que fizestes 
isso e deixastes com vida os filhos?”.
19) Disseram as parteiras ao faraó que não eram as mulheres egípcias 
como as hebreias; que estas são como animais selvagens e dão ã luz antes 
que alguém as assista.
É difícil determinar se essa critica é direta ou indireta no relato. Tende-se a pensar que os po­
vos da antiguidade tinham uma visão local da realidade e não conseguiam ver a universalida­
de dos fenômenos. De fato, haverá escravidão em Israel, mas isso não será considerado uma 
contradição com o que ocorreu com o povo, no passado, no Egito. Contudo é vãhdo realizar 
uma releitura nesse sentido a partir de nosso contexto, já que a narrativa oferece caminhos 
semânticos que “abrem" o sentido a uma interpretação que excede o primeiro contexto de sua 
redação.
J. Pixley mostra que o Êxodo questiona o modo de produção asiático em vigor na sociedade 
cananeia - que era similar ao existente no Egito onde o Estado vivia às custas do tributo 
imposto às aldeias camponesas. Dessa forma, a narrativa do Êxodo era lida pelas tribos 
israelitas já sedentarizadas em Canaã como uma proeza revolucionária contra o poder opres­
sor cananeu [PIXLEY, J. Êxodo, una lectura evangélica y popular, 1983, p. 22).
26
20) Favoreceu Deus às parteiras e o povo tomou-se numeroso e muito
forte.
21) B sucedeu que, por as parteiras terem temido a Deus, ele lhes con­
cedeu uma família.
22) Então ordenou o faraó a todo o seu povo: “Todo filho que nascer será 
lançado ao Nilo; e toda filha permanecerá uiva”.
Introdução ao texto
O fracasso das primeiras ações leva o faraó a aperfeiçoar a sua estra­
tégia de exterminar os israelitas. Se não pode impedir a gravidez através do 
enfraquecimento dos homens, tentará matar os meninos no momento em 
que nascem. Por isso as parteiras recebem instruções precisas para exter­
minar as crianças do sexo masculino logo que nascerem. É digno de nota 
como as parteiras desobedecem a ordem do homem mais poderoso da terra 
e como lhe contam mentiras sobre o motivo por que não podem executar a 
ordem. Elas dão início ao processo de libertaçãoao rebelar-se contra uma 
ordem injusta e cruel. Elas o fazem sem ter um poder igual ou superior para 
opor ao faraó - isso teria sido impossível ou até suicida mas através da 
astúcia, com o argumento de que as mulheres hebreias são mais selvagens e 
dão à luz como os animais, sem necessitar de parteiras. Ao desejo de morte 
dos poderosos as mulheres contrapõem sua vocação à vida e sua vontade de 
proteger as crianças.
Pode-se descobrir uma estrutura quiástica nesse trecho.'**
A O faraó ordena às parteiras que assassinem as crianças do
sexo masculino (v. 15-16)
B As parteiras temem a Deus e desobedecem (v. 17)
C Reação do faraó à desobediência (v. 18-19)
C’ Reação de Deus à desobediência (v. 20)
B’ As parteiras temem a Deus e são recompensadas (v. 21)
A’ O faraó ordena a todo o seu povo que assassine as crianças do
sexo masculino (v. 22).
A próxima cena mostra um faraó que não mais tolera fracassos e re­
corre a uma estratégia definitiva. A ordem é dada agora a todo e qualquer 
egípcio; ela consiste em jogar cada bebê hebreu do sexo masculino no rio 
Nilo. Desde a estratégia inicial de endurecer as condições de trabalho dos 
pais até a ordem de lançar os filhos no rio percorreu-se um caminho que 
vai desde o medo do estrangeiro e o desejo de impedir seu crescimento até a 
vontade de cometer o genocídio. A narrativa revela uma realidade profunda 
do espírito humano ao trazer à tona a contradição entre uma crueldade sem
Cf. G. DAVIES [Israel in Egypt. Reading Exodus 1-2, 1992, p. 73], que adapta um esquema 
de J.C. Exum.
27
limites, que se mostra quando a questão é defender a estrutura que permite 
dominar e tirar o máximo proveito do trabalho do próximo, e a solidariedade 
de pessoas que arriscam sua própria vida para defender a alheia.
Análise detalhada
15 ► A profissão de parteira é antiga e sempre foi exercida por mulhe­
res. O texto bíblico fornece alguns exemplos de mulheres que ajudam uma 
parturiente no momento do parto (Gn 35.17; 38.28; ISm 4.20; esse último 
texto menciona uma mulher que ajuda no parto sem, no entanto, designá-la 
parteira). No texto que estamos analisando, trata-se de parteiras hebreias. 
Esse termo exige algumas considerações. “Hebreu” é um gentílico usado 
para designar os israelitas em textos onde esses são contrapostos a outras 
nações. É considerada uma forma antiga e não mais utilizada na época pós- 
exílica.'^ Ainda assim, sobreviveu como expressão alternativa aos termos 
mais restritos “israelita” e “judeu”, que, em diferentes momentos da história, 
designaram o povo todo ou somente uma parte dele. °̂ O uso de “hebreu” 
nessa narrativa é um recurso estilístico do autor para conferir ao relato um 
sabor antigo e para permitir a ambientação da cena em tempos passados.
Ainda que a pontuação massorética seja inequívoca, o texto consonan- 
tal permite entender “hebreias”, neste versículo, como as mulheres hebreias 
assistidas pelas parteiras (nesse caso, as parteiras poderíam ser egípcias) ou 
como as próprias parteiras, que seriam hebreias de nacionalidade. Em favor 
de que as parteiras tenham sido egípcias utilizou-se o argumento de que di­
ficilmente o faraó teria confiado a mulheres hebreias a tarefa de assassinar 
os filhos do próprio povo hebreu na intimidade dos lares. Mas isso não é um 
argumento muito convincente, jã que a experiência histórica mostra que, 
em todos os povos e em todos os tempos, houve quem traísse seus próprios 
compatriotas por dinheiro ou privilégios. Ainda assim, tanto Flávio Josefo 
como a LXX adotaram essa visão de que as parteiras seriam egípcias, inter­
pretando, portanto, a sua conduta virtuosa como a de gentios que reconhe­
ceram o poder do Deus de Israel e tiveram respeito por seu povo. Optaram 
por temer ao Deus de Israel em vez de ser leais a uma ordem injusta, ainda
' Tentou-se ver na palavra “hebreu” uma forma afim ao termo acádico hapiru, que designa, 
em fontes do antigo Oriente Próximo, gmpos à margem da sociedade que desafiavam o poder 
dos reis locais. Porém essa assimilação tem dificuldades linguísticas e sociológicas. Para 
uma avaliação, cf. o importante trabalho de N.P. LEMCHE [Early Israel. Anthropological and 
Historical Studies on the IsraeUte Society before the Monarchy, Leiden, 1985]; cf. a forma 
condensada da opinião do autor em seu artigo [LEMCHE. N.P. Hapiru. In: FREEDMAN, D.N. 
et al. (eds.) Anchor Bibte Dictionary. New York, 1982].
' “Israelitas” designou todo o povo de Israel, com exceção do período da divisão do reino (928­
722 a.C.). Nessa época, tornou-se termo gentílico do Reino do Norte, de modo que “Israel” era 
denominação somente dessa parte do povo. Com a queda de Samaría, volta-se a usar o termo 
peira todo o povo de Israel. Mas há muita literatura, em especial profética, em que o termo 
preservou esse sentido restrito. “Judeus” é uma denominação pós-exílica, gerada no seio da 
comunidade restaurada, que se limita ao território original da província de Judá.
28
que proveniente de seu próprio rei. Por outro lado, argumentou-se que a 
tarefa das parteiras não era tanto uma profissão como uma atividade eoti- 
diana exercida entre as mulheres que viviam na proximidade e com quem se 
tinha uma relação afetiva e de confiança. Além disso, a comunidade hebreia 
era muito numerosa e os partos ocorriam todos os dias, de modo que não 
há nenhum motivo para postular que ela tivesse que recorrer a parteiras 
egípcias. Em nossa opinião, deve-se seguir a leitura dos massoretas e con­
siderar as parteiras como israelitas, o que também se enquadra melhor no 
contexto narrativo.^'
Um elemento que ajuda a consolidar a hipótese adotada são os nomes 
de ambas as parteiras. Não é comum, nas narrativas bíblicas, dar nomes 
a personagens passageiras. Que eles existem é sinal da importância que o 
narrador atribui à ação de Sifrá e Puá. Ambos são nomes hebreus; embo­
ra haja tentativas de mostrar que teriam sido nomes egípcios hebraizados, 
essa hipótese não pôde ser comprovada. Sifrá significa “bela”; o nome tam­
bém é conhecido em textos aramaicos.“ O nome Puá significa “menina” ou 
“jovem” e é atestado na Kngua ugaritica.^^
16 ► A ordem do faraó é tão precisa, que parece ter sido pronunciada
por um obstetra e não por um governante. Em vez de nos confundir, ela nos 
ajuda a ter em mente que estamos diante de uma narrativa literária e não 
diante da crônica de um jornal. Ele as instrui com cuidado, ordenando-lhes 
que observem os genitais do bebê para, então, decidir se vai viver ou não. A 
expressão hebraica vertida por “genitais” diz literalmente “as duas pedras”, 
o que deu origem a uma multiplicidade de especulações e a diversas manei­
ras de traduzir o texto.2“ A principal dessas especulações é aquela que pres­
supõe que a expressão se refira a um objeto de pedra lavrada, utilizado pelas 
egípcias para dar ã luz, uma espécie de cadeira para realizar os partos. O 
problema principal dessa interpretação é que não temos nenhuma evidência 
de que tal objeto tenha existido. Não há textos nem desenhos do antigo Egito 
que atestem esse artefato.Além disso, as tentativas de encontrar termos 
alternativos mais recatados para referir-se ao sexo são comuns na Bíblia. Já 
no V. 5 encontramos um recurso parecido (cf. Gn 24.2,9; 47.29).
J. KUGEL [Traditions o f the Bible. London, 1998. p. 522] fornece exemplos de fontes antigas 
(Filo, Midrash, Flávio Josefo etc.) relacionadas com parteiras.
Como substantivo encontra-se em Gn 49.21 e Jó 26.13; como verbo aparece em SI 16.6 e Dn 
4.24.
“ Cf. GORDON, C. Ugaritic Texlbook. Roma, 1967, 19, n° 2081.
LXX e Vulgata traduzem, com pequenas diferenças entre si, “quando se aproxima o momento 
de dar à luz”, omitindo as pedras.
Uma alternativa nos é oferecida por S. MORSCHAUSER [Potter’s Wheels and Pregnancies: A 
Note on Exodus 1:16. JBL 122, p. 731-733, 2003], que postula que o versículo remete a um 
dispositivo egípcio para determinar a gravidez, sendo que, nesse caso, a ordem do faraó seria 
convencer a mãe a abortar. Todavia, parece que não há suficiente basetextual para essa 
hipótese.
29
A morte dos meninos resultaria num decréscimo da população e num 
enfraquecimento das forças de combate israelitas numa eventual revolta. As 
meninas foram deixadas com vida, provavelmente porque as mulheres iriam 
incorporar-se com maior facilidade à população egipcia, basicamente atra­
vés de casamentos com os egípcios por causa da gradativa falta de homens 
israelitas.
17 ► Nessa oportunidade, o temor de Deus combina-se com a sensi­
bilidade natural para com uma criança recém-nascida. Nessa narrativa, a 
crueldade está com o faraó; as parteiras defendem a vida desobedecendo as 
suas ordens. Elas “temerem a Deus” significa que souberam discernir qual 
era a vontade de Deus nessa situação. Note-se que o narrador não diz que 
Deus se comunicou com elas para informar-lhes qual seria a sua vontade. 
A cena não se desenrola como um conflito entre a ordem do faraó e a voz 
de Deus. As parteiras decidiram que temer a Deus significava, nesse caso, 
rebelar-se contra o rei.
18-19 ► O narrador não nos informa o tempo transcorrido, mas se pode
inferir que foi o tempo necessário para que o faraó se inteirasse do fato 
de que sua ordem não havia sido cumprida, ou seja, provavelmente algu­
mas poucas semanas. As palavras que o faraó dirige ãs parteiras consti­
tuem uma acusação direta em forma de pergunta. A resposta das parteiras 
é uma demonstração de astúcia e criatividade para superar uma situação 
crítica e sair com vida da presença do rei. A expressão que traduzimos por 
“como animais selvagens” (kihayot) é uma forma hebraica que ainda hoje é 
controvertida. Existem pelo menos três diferentes tentativas de traduzi-la e 
interpretã-la. A primeira considera o termo um hapax legomenon (vocábulo 
único): seria um substantivo feminino plural significando “cheias de vida” 
ou “vigorosas”. Essa tradução é adotada pela maioria das versões moder­
nas .Essa interpretação também foi adotada pelos massoretas ao vocalizar 
a palavra. O problema dessa interpretação é que ela não corresponde lite­
ralmente ao que está escrito. A segunda possibilidade é considerar a palavra 
uma forma de um verbo que significa “parir”, atestado no hebraico tardio 
e no aramaico. Seguindo essa linha de interpretação, a explicação das par­
teiras seria que, quando chegam ao lugar, as mulheres hebreias já teriam 
parido sem ter necessitado de sua ajuda. Nesse caso, deveriamos traduzir: 
“[...] as hebreias pariram e, quando chegam para assisti-las, jã deram ã luz”. 
Essa alternativa tem o apoio da LXX, que traduz: “elas parem”, e da Vulgata, 
que lê: “porque elas próprias conhecem o ofício de dar à luz”. Nessa linha, 
o Targum Onkelos diz: “elas são fortes e capazes”. Porém outros Targumim 
traduzem: “são fortes” ou “são vigorosas”, seguindo a primeira alternativa. A 
terceira alternativa é a que segue o Midrash Êxodo Rabbah (I, 16), que ado-
Bíblia de Jerusalém, Tradução Ecumênica da Bíblia, Edição Pastoral (“cheias de vida”), Al­
meida (“vigorosas”), Bíblia Sagrada Vozes, Tradução da CNBB (“robustas”).
30
ta a leitura literal do texto, que também foi aceita em nossa tradução. Ela 
considera a palavra um simples plural do substantivo hayah, que significa 
“animais selvagens”. É o termo que se eneontra no relato da criação para 
d e s ig n a r os animais (G n 1.20,21,25 passini). O sentido das palavras das 
parteiras é que as mulheres hebreias são como os animais selvagens, pois 
não necessitam da ajuda de parteiras para dar ã luz. Em favor dessa inter­
pretação depõe o fato de que se adota o significado normal de hayot, não ha­
vendo necessidade de nenhuma correção nem conjetura; simplesmente se lê 
0 que está escrito. A essa leitura se opõe o aparente problema de que seria 
ofensivo referir-se às mulheres hebreias desse modo. Esse foi o motivo pelo 
qual os massoretas não aceitaram a leitura natural do texto e buscaram 
alternativas mais aceitáveis socialmente. Também se observou que esse es­
crúpulo se justificaria na hipótese de as parteiras terem sido hebreias, mas 
não no caso de se admitir que fossem egípcias. Porém ocorre justamente o 
contrário: as parteiras hebreias salvariam as suas vidas e causariam uma 
boa impressão ao rei se dissessem que as mulheres egípcias eram normais 
e sãs enquanto que as hebreias pariam indignamente, como os animais.^^
Mas essas considerações não contemplam o caráter literário da obra, 
que não apresenta essas palavras como opinião das parteiras sobre as mu­
lheres hebreias, mas como argumento que expõe diante do faraó para ocul­
tar a sua desobediência e justificar o fato de os meninos terem sobrevivido. 
Dessa forma, não se pretende ofender as hebreias, mas comprovar a inteli­
gência das parteiras, uma vez que se usa um argumento que procura não 
contrariar o faraó, convencendo-o de que elas não desobedeceram ãs suas 
ordens, mas tinham que lidar com pessoas de pouca cultura e baixo nível de 
humanidade, ou seja, praticamente selvagens. De forma magistral, elas lhe 
dizem; “não são como as egípcias”.
Fica claro que as parteiras agem com surpreendente astúcia. O faraó, 
que havia convocado o povo para agir com sabedoria (v.lO), é enganado sem 
se dar conta. E a vontade de Deus cumpre-se apesar do faraó. Mas o episó­
dio ainda dá alguns passos a mais.
20-21 ► Estes versículos representam um descanso no curso da nar­
rativa e uma reflexão sobre o papel das parteiras. Graças à sua astúcia, 
o povo continua crescendo e se multiplicando. A frase “ele lhes concedeu 
uma família” é problemática. Parece que o texto quer dizer que as pairteiras 
foram abençoadas com uma família venturosa, que não conheceu nenhuma 
desgraça.
22 ► A nova frustração do faraó leva-o a optar por uma resposta final e
definitiva sobre o crescimento dos israelitas. A ordem é dada a “todo o povo” 
e consiste em lançar no rio Nilo toda criança do sexo masculino, mencionan­
do especificamente que as meninas devem ser preservadas. A observação - e
Cf. acima a discussão sobre a nacionalidade das parteiras (v. 5).
31
as longas páginas escritas a respeito - de que o versiculo não especifica que 
se trata unicamente de meninos hebreus levou à hipótese de que também 
os meninos egípcios estariam incluídos na matança; mas essa hipótese não 
pode ser sustentada. Essa hipótese revela o quanto uma interpretação pode 
equivocar-se quando não lê a narrativa como um todo e prende-se a um úni­
co versículo, isolando-o do contexto literário em que se encontra e dentro do 
qual se espera que o leitor o interprete.
J.C. EXUM [You Shall Let Every Daughter Live: A Study of Ex 1;8-2;10. Semeia 28, p. 63-82, 
1993] analisa o protagonismo das mulheres na narrativa.
32
o NASCIMENTO DE MOISES 
E O PERÍODO EM MIDIÃ (2.1-4.31)
1. O nascimento de Moisés (2.1-10)
1) E aconteceu que um homem da família de Levi tomou por esposa uma 
filha da família de Leui.
2) E a mulher concebeu e deu à luz um filho. Viu que ele era formoso e 
escondeu-o durante três meses.
3) Mas, quando não mais pôde escondé-lo, tomou uma arca de junco e 
cobriu-a com betume e breu; colocou dentro dela a criança e a depôs entre os 
juncos à beira do Nilo.
4) Sua irmã manteve-se à distância para saber o que lhe aconteceria.
5) E a filha do faraó desceu para banhar-se no Nilo e suas criadas an­
davam à beira do Nilo. Ela viu a arca no meio dos juncos e enviou uma serva 
para apanhá-la.
6) E abriu-a e viu a criança, um menino que chorava. E teve compaixão 
dele e disse: “Esta é uma criança dos hebreus”.
7) E a irmã disse à filha do faraó: “Queres que vá e chame uma mulher 
dentre as hebreias que amamente e crie a criança para ti?”
8) E a filha do faraó disse para ela: “Vai!” A moça foi e chamou a mãe 
da criança.
9) E a filha do faraó disse a ela: “Leva esta criança e cria-a para mim! 
Eu te darei a tua paga”. A mulher tomou a criança e a criou.
10) E o menino cresceu e ela o levou à filha do faraó. E ele foi para ela 
como um filho; e chamou-o de Moisés, porque ela disse: “Das águas o tirei”.
Introdução ao texto
Depois daangústia que se abateu sobre o leitor devido à condenação 
definitiva de toda criança hebreia do sexo masculino em Êx 1.22, ocorre o 
incrível anúncio de que um casal pretende contrair matrimônio. O gênero 
literário continua sendo a lenda; mas, nesse caso, as suas características e 
ênfase são mais claras, pois o motivo do herói ê colocado no centro; em tor­
no dele circulam os outros personagens, que têm papéis secundários. Essa 
perspectiva de leitura permite ir logo ao tema central do trecho e evita que 
o leitor se perca em questões que não interessam ao relato. Assim as apa­
rentes ingenuidades da narrativa se explicam pelo gênero literário ao qual 
pertencem. Que a mãe deixe seu bebê justamente no lugar onde a filha do
33
faraó costuma banhar-se, que sua irmã possa falar com a princesa e dar-lhe 
sugestões sobre como proceder, que a princesa aceite de imediato o meni­
no e busque uma mulher hebreia para criá-lo e, finalmente, que ela se nos 
apresente falando hebraico, a língua dos escravos - esses são alguns dos 
detalhes que mostram que a narrativa não pretende convencer-nos da his- 
toricidade dos fatos. Sua intenção é, ao contrário, dizer algo essencial sobre 
o personagem central, ou seja, Moisés, que de ameaçado de morte passa à 
condição de protegido da casa real (cf. abaixo a seção “Aspectos Teológicos”). 
A condição de criança exposta à morte é compartilhada por outros persona­
gens importantes da narrativa bíblica; Ismael (Gn 21); Isaque (Gn 22), José 
(Gn 37) e a belíssima narrativa de Ez 14, em especial os v. 1-7.
Houve diversas especulações sobre a relação existente entre o cap. 1 
e a presente narrativa. Uma das propostas apresentadas é que a história do 
nascimento de Moisés é a geradora das narrativas de escravidão do povo e 
de rebeldia das parteiras. Quem defende essa ideia argumenta que o tema 
da escravidão como modo de produção não combina com o tema do genocí­
dio, pois vai contra o bom senso de que um povo busque eliminar aqueles 
que trabalham para ele.‘ Assim sendo, as histórias do cap. 1 explicar-se-iam 
como resultado de uma lenda criada a partir de uma narrativa prévia sobre 
o nascimento de Moisés, que teria justificado a exposição da criança por sua 
mãe e sua posterior adoção pela filha do faraó. Essa hipótese, no entanto, 
esquece que as histórias de nascimento de heróis sempre são posteriores 
ao contexto literário no qual se encontram e que elas são construídas de tal 
forma que sua mensagem se adapta às narrativas e informações prévias, 
e não o inverso. A memória histórica de uma época de opressão e escravi­
dão é, sem dúvida, bem mais marcante na consciência de um povo do que 
qualquer narrativa adicional. Ela é a força geradora de lendas e tradições. 
Pode-se, sem dúvida, inventar heróis antepassados, mas dificilmente se in­
venta a desonra da escravidão. Além disso, a construção social de lendas 
sempre inicia num estágio em que existe uma ampla flexibilidade literária e 
disposição para recorrer a tradições de povos com os quais se compartilha 
um contexto cultural mais ou menos comum. É o que acontece nesse caso. 
Tratamos do tema no excurso que se encontra no final da presente seção. 
Em sua superfície, o texto mostra claramente que existe uma continuidade 
temática e narrativa entre a história anterior e aquela que abre o cap. 2.̂
B. Childs resume e avalia essa e outras alternativas tais como a que supõe que, num primei­
ro estágio, o texto só continha a narrativa da ameaça aos meninos israelitas e que, somente 
num segundo momento, foi acrescentada a história da exposição de Moisés, seguindo o mo­
delo da lenda de Sargão [CHILDS, B. The Book ofExodus. Louisville, 1976. p. 8 -ll[. 
D.W.Wicke defende, com fundamento, a unidade literária dessa narrativa [WICKE, D.W. The 
Literaty Structure ofExodus 1:2-2:10. JSOT24, p. 99-107, 1982].
34
Análise detalhada
1 ► O V. 1 afirma que os pais de Moisés pertencem à família de Levi,
embora não se mencionem nomes. Só mais adiante (Êx 6.20; Nm 26.59) é 
que se informa que o pai Anrão tomou por esposa sua tia Joquebede (cf. Êx 
6.20). Esse tipo de matrimônio será proibido posteriormente pela lei israelita 
(Lv 18.14; 20.20). A procedência levítica de Moisés e de sua família tem valor 
simbólico, pois o vinculam à Linhagem sacerdotal.
2-3 ► No contexto da repressão ordenada pelo faraó, o pior que podia
acontecer a uma família era o recém-nascido ser do sexo masculino. Inver- 
te-se, por um momento, toda uma tradição semitica de festejar o nascimen­
to de um menino e, de certa forma, lamentar o de uma menina.
Duas expressões fazem lembrar a criação. A primeira encontra-se nas 
palavras da mãe ao dizer: “Viu que era formoso”. É a mesma expressão usa­
da sete vezes em Gn 1 (“viu que era bom”) para caracterizar a obra criadora 
de Deus. A segunda é a palavra utilizada para designar a cesta (hebraico te- 
bah, traduzido comumente por “arca”) em que se coloca a criança. O mesmo 
termo é utilizado, em Gn 6.14ss, para designar a arca que Noé deve cons­
truir. Pode-se constatar nisso um símbolo: a arca que salvaria da morte um 
resto da criação é identificada com a arca (cesta), que também salvará da 
morte nas águas um menino que será o libertador do povo. Esses elementos 
da criação ambientam-nos narrativamente num novo começo. Em Gênesis, 
deu-se o início da história da humanidade; agora começa a história de um 
povo: o povo de Deus. Atê o momento continuava pendente a promessa dada 
a Abraão de ser uma nação. Agora, uma família passa a ser um povo; e com 
Moisés inicia uma nova etapa na relação entre Deus e os seres humanos.
Alguns elementos estilísticos desse trecho devem ser destacados. O 
faraó ordenou que se lançassem os meninos ao rio; contudo, a mãe o de­
pôs na água. São dois verbos diferentes, que expressam atitudes distintas: 
a crueldade, no primeiro, e a ternura, no segundo caso. O fato de a mãe 
ter colocado a cesta (arca) entre os juncos também é um indício de que ela 
esperava que ela ficasse presa nas plantas, na expectativa de que alguém 
encontrasse o filho e salvasse sua vida, ainda que fosse através da adoção 
por uma família egípcia.
4 ► A história surpreende-nos com a entrada em cena de uma irmã de
Moisés. Em 2.1, a narrativa dava a entender que Moisés era o primeiro filho 
do casal. Pela forma como se comporta, a irmã já deve ter em tomo de seis 
ou sete anos. Teremos que esperar até Êx 15.20 para saber que ela se cha­
ma Miriã e que também se tomaria uma heroína da libertação. Esse último 
texto identifica-a como “irmã de Arão”; em Nm 26.59, ela é mencionada, no 
contexto do censo de todo o povo, em terceiro lugar, depois de Arão e Moisés; 
desse texto se depreende que Arão era o primogênito (cf. também Êx 6.20; 
7.7). Essas ambiguidades cronológicas revelam o carãter literãrio e lendário
35
da narrativa, que não se prende a esses detalhes, mas vai logo ao centro da 
questão.
5-6 ► A filha do faraó certamente não se banharia em qualquer parte da
margem do rio, mas num lugar protegido, inacessível a animais e pessoas. 
Mas é justeimente ali que ela vislumbra a cesta (pequena arca) e envia uma 
criada para ver do que se trata. Ao abrir a cesta, encontra a criança cho­
rando. Observemos três detalhes estilísticos magistrais: o primeiro é que 
a criança chora. É a única vez em que se diz, em toda a Bíblia, que uma 
criança chora. O choro é comunicação; revela que a criança está viva, que é 
um ser que quer viver. O choro é a única maneira que um bebê de três me­
ses tem para implorar que o ajudem. O segundo traço estilístico ê destacar 
que a filha teve compaixão da criança. O verbo utilizado pode significar “ter 
compaixão” ou “perdoar, poupar”. Nesse último sentido o encontramos em 
ISm 15.3,9,15, onde fica claro que “ter compaixão” tem o sentido de “pou- 
pcir” a vida. Nesse caso, a compaixão surge como um sentimento espontâneo 
diante de uma criança indefesa que reclama proteção. Pouco importam a 
origem da criança nem a ordem de assassinar os meninos expedida pelo pai. 
Oterceiro recurso estilístico estã em colocar na boca da filha do faraó a afir­
mação da nacionalidade do menino. Não hã dúvidas nem especulação. Ela 
sabe, desde o princípio, que a criança ê hebreia e que se encontra ali porque 
as mães hebreias preferem abandonar seus bebês a testemunhar sua morte.
7-9 ► Agora a irmã entra em cena. De repente, ela está junto ã filha do
faraó e se oferece para ajudar a encontrar uma ama de leite (hebraico me- 
neket) hebreia para criar o bebê.^ Aventou-se a hipótese de que a ama de 
leite tinha que necessariamente ser hebreia, pois a filha do faraó não podia 
levar a criança ao palácio para não afrontar abertamente a ordem do pai. 
Porém o fato de que a princesa não titubeou em proteger e, posteriormente, 
adotar o menino põe em xeque a eficácia da estratégia do faraó. A ausência 
de qualquer menção sobre a sorte das outras crianças hebreias do sexo 
masculino parece indicar que a medida jã estava tão debilitada, que quase 
jã não surtia efeito. Por outro lado, é impensável que a mãe de Moisés o 
levasse para casa, recebesse dinheiro para alimentá-lo e o criasse aberta­
mente enquanto os meninos de suas compatriotas e amigas eram lançados 
ao rio ou assassinados por um egípcio qualquer. Porém, se nos colocarmos 
no lugar do narrador, é mais lógico pensar que, ao providenciar uma ama de 
leite hebreia, pretende-se dizer algo sobre Moisés. Embora tenha sido criado 
na corte egípcia, Moisés recebeu de sua própria mãe hebreia toda a proteção 
materna - seu leite e seu carinho - enquanto necessitava dela. Esse dado 
reforça a identidade hebreia de Moisés, o que terá seus aspectos problemá­
ticos, como veremos mais tarde.
 ̂ As amas de leite gozavam de grande estima e realizavam tarefas educativas com as crianças; 
cf. a informação sobre a ama de leite de Rebeca em Gn 24.59; 35.8.
36
10 ► o menino é criado por sua mãe e entregue depois à filha do faraó,
para que continue sua vida com ela. O texto afirma que ela o adota como seu 
filho. Isso se confirma no fato de ser ela quem lhe dá o nome. Há uma suti­
leza n a exp licação do n om e, que se deve destacar. As etimologias nos textos 
bíblicos não costumam ater-se à realidade linguística. O presente caso não 
é uma exceção. O nome Moisés é de origem egípcia e significa “um filho 
nasceu”-*. Entretanto, na perspectiva do relato, a explicação válida é aquela 
que aparece no texto; o sentido é dado pela narrativa através de um jogo 
semântico: “das águas o tirei”. Embora incorreta etimologicamente, essa 
explicação do nome não deve ser considerada ingênua. Ela tem uma função 
semântica muito clara e prática, já que indica que, enquanto crescer na cor­
te do faraó, no aconchego do ambiente palaciano, Moisés será lembrado por 
seu próprio nome de que não pertence a esse lugar, que foi adotado e que 
as circunstâncias de sua adoção - ter sido resgatado das águas - apontam 
para sua origem hebreia.
Aspectos teológicos: A ironia como recurso literário
Na história do nascimento de Moisés são combinados diversos ele­
mentos estilísticos que configuram a mensagem e o sentido do relato. Já 
mencionamos alguns antes, no estudo pormenorizado dos versículos. Agora 
queremos deter-nos no recurso ã ironia, presente nesse texto.^ Podemos 
destacar, no mínimo, os seguintes elementos de ironia:
- o rio que devia ser a tumba das crianças do sexo masculino é a salvação 
de Moisés;
- o faraó ordena que as meninas recém-nascidas sejam preservadas, e são 
precisamente as mulheres que salvam o pequeno Moisés;
- o choro do menino conseguiu mais do que o decreto do faraó;
- o fracasso da política de extermínio expressa-se no comportamento da 
própria filha de quem a determina;
- a pessoa que vai liderar o processo de libertação do povo contra o qual o 
faraó implementou sua política é salva por um membro da família real;
- uma escrava hebreia organiza, para a filha do faraó, a rede de proteção do 
menino;
- a mãe receberá dos cofres do faraó o dinheiro para criar seu filho;
- Moisés conhecerá a corte do faraó a partir de dentro do palácio, o que o 
capacitará depois a negociar melhor a saída de seu povo.
Observem-se os nomes teofóricos dos faraós egípcios construídos com a forma Moisés (em 
egípcio, mósis ou més ou msés provêm da raiz msi) e o elemento: Amósis, Ramsés, Tutmés 
ou Tutmósis. Com isso os nomes adquirem importância [cf. GRIFFITHS, J.G. The Egyptian 
Derivation of the Name of Moses. JNES 12, p. 225-231, 1953].
O tema foi apresentado de maneira excelente por T. FRETHEIM [Exodus. Louisvüle, 1991. p. 
36-38]; aqui seguimos e ampliamos o seu argumento.
37
Qual é o significado da ironia como recurso literário? Deve-se ler a 
ironia levando em conta que o significado surge por causa da oposição ao 
que é dito ou pelo contraste com o exposto. É uma forma de destacar algo 
sem mencioná-lo ou sem que haja necessidade de explicitar sua presença. A 
ironia sempre tem traço de humor e algo de ridicularização do personagem 
ou da situação que é objeto da ironia. Quem crê ser muito poderoso tem sua 
fraqueza exposta; quem pretende ser o senhor mostra que está sujeito a for­
ças que aparentemente lhe devem reverência. Já mencionamos que, apesar 
da ordem de lançar os meninos recém-nascidos na água, o relato segue com 
a apresentação de um casal que deseja ter filhos. Esse dado representa um 
desafio ao rei e evidencia, através do recurso á ironia, que o poder do faraó 
é excessivamente enaltecido, pois não corresponde á sua força real. O fato 
de mulheres serem as responsáveis pelo fracasso de todo o plano (a começar 
pelas parteiras em 1.15-22) também faz parte da ironia da narrativa. Não 
só por serem, como já foi destacado, as pessoas que foram poupadas do 
extermínio por ordem do próprio faraó, mas também porque essa apcirente 
bondade do faraó despreza, na verdade, a capacidade das mulheres de as­
sumir sua condição de agentes sociais e assim modificar o curso da história.
Há um aspecto curioso: quem coloca em xeque o poder do faraó são 
as mulheres, mas o relato entende que elas agem sob o desígnio de Deus. A 
ação protetora de Deus está por trás da narrativa; sua presença silenciosa 
perpassa toda a história. Por isso a ironia maior é que aquele que não foi 
mencionado é quem, no fundo, decide silenciosamente o rumo dos aconte­
cimentos.
As narrativas da infância de Moisés e de outros heróis da antiguidade
Era muito conhecido, na antiguidade, o motivo literário de que, na 
origem de muitos heróis, líderes e benfeitores, estava uma criança abando­
nada. Os exemplos mais conhecidos do mundo greco-romano são as histó­
rias de infância de Édipo, Hércules e Rômulo e Remo.® Também no Oriente 
Próximo circulavam essas histórias, sendo as mais conhecidas as de Ciro 
e Sargão, o Grande. No Mahabharata, uma narrativa épica da índia antiga, 
também se encontram histórias com essas características. Depois de a prin­
cesa ficar grávida sem estar casada, narra-se o seguinte sobre o nascimento 
de Karna^:
A princesa Kunti e sua enfermeira decidiram desfazer-se do menino imedia­
tamente após o parto. Puseram-no num cesto calafetado com cera e repleto
® Para um estudo da lenda do nascimento de Rômulo e Remo, cf. GRANT, M. Roman Myths. 
New York, 1972. p. 98-116.
 ̂ Vana Paxna 304, VIII. Um resumo da história em LEWIS, B. The Sargon Legend: A Study of 
the Akkadian Text and the Tale of the Hero Who was Exposed at Birth. Cambridge, 1980. p. 
176-177.
38
de almofadas e panos. Deixaram o cesto no rio Ganges após ter orado por sua 
segurança [...].
O cesto será resgatado rio abaixo por um casal de trabalhadores qtie 
criará o menino, o qual se tomará rei quando adulto.
O fato de o motivo ser recorrente levou a pensar que se trata de um re­
curso para assinalar certas características de um herói e, assim, legitimá-lo 
na posição social que conseguiu alcançar quando adulto. Ê notório que, em 
todos os casos mencionados, o herói é criado num ambiente rústico, longe 
do centro de poder, para ocupar depois uma posição privüegiada.Essa posi­
ção se evidencia como sendo legítima somente após ser descoberta a origem 
do herói tal qual narrada na lenda. Essa lenda transforma-se, então, em sua 
biografia oficial.
Os evidentes pontos de contato com a história da infância de Moi­
sés motivaram estudos que ressaltaram essas analogias, em especial com 
a lenda de Sargão.® Contudo, quando comparadas com a narrativa bíblica, 
essas histórias também apresentam grandes diferenças. Curiosamente, as 
semelhanças se encontram no plano da narrativa, na anedota, enquanto 
as diferenças estão relacionadas com o significado e o valor social das his­
tórias. Três das narrativas citadas (Rômulo e Remo, Sargão e a história 
hindu) contam que a criança foi abandonada num cesto colocado no rio. A 
narrativa bíblica parece ter tomado o enredo de um motivo popular muito 
difundido para colocá-lo no marco de uma teologia totalmente distinta com 
uma finalidade diferente das outras histórias. De qualquer modo, o sutil 
jogo de adotar e deixar de lado, de reproduzir e modificar um motivo antigo 
resulta em um novo relato com um significado próprio. A análise do mesmo 
nos ajudará a entender melhor um aspecto central da fé bíblica.
O quadro a seguir agrupa as histórias mencionadas e compara-as com 
a de Moisés:
Elementos Êx 2.1-10 Outras
Anúncios divinos, sonhos, premonições etc. Não Sim
Elementos sobrenaturais Não Sim
Relação ilegal ou obscura dos pais Não Sim
Hostilidade dos pais para com a criança Não Sim
Prova de legitimidade Sim Sim
Agressão externa contra a criança Sim Não
Esforço da mãe para salvar ou reter a criança Sim Não
Crescer no palãcio Sim Não
Para uma análise detalhada, cf. ANDINACH, P. Estúdio de la leyenda acádica de Sargón. 
Orientalia Argentina XI, p. 67-84, 1994; também em Revue Biblique 55, p. 103-114, 1993; 
LEWIS, B. The Sargon Legend, 1980, p. 176-177; WESTENHOLY, J.G. Legends ofthe Kings of 
Akkaá. Winona Lake, 1997. p. 33-50; HALLO, W.; LAWSON YOUNGER, K. (eds.) The Context 
ofthe Scriptures. V. I. Leiden, 1997. p. 461.
39
Esse quadro deve ser analisado com cautela. Cabe advertir que a se­
gunda coluna representa uma simplificação; o leitor poderá verificar deta­
lhes recorrendo à leitura das próprias fontes ali agrupadas.
Nas narrativas populares, encontramos um anúncio divino - às vezes, 
por meio de um sonho ou pressentimento - de que vai nascer alguém que 
questionará o poder constituído (como Herodes em Mt 2.1-8). Esse anúncio 
sempre é pessoal; relaciona-se a uma criança em particular, que deve ser 
eliminada. Na história bíblica, esse tema específico está ausente, mas pos­
sui um equivalente político; a ameaça consiste no crescimento de um povo 
que, se não for impedido, poderá colocar em risco o poder da coroa. Teme-se 
um povo, não uma pessoa. Decide-se, então, promover um genocídio em vez 
de tentar eliminar um homem em particular.
Os elementos míticos próprios das narrativas indicadas não aparecem 
no relato bíblico, o que mostra a grande austeridade com que se trata a ma­
téria. Não há Deuses ou Deusas em ação nem resgates milagrosos tampouco 
animais em forma humana que salvam e alimentam as criaturas expostas, 
como no caso de Rômulo e Remo. Ao contrário, tudo acontece num plano 
meramente histórico, no qual nenhum personagem extrapola sua condição 
humana.
Nas histórias mencionadas, o menino é fruto de uma relação ilegal 
ou socialmente desonrosa. A mãe de Sargão era uma sacerdotisa que se 
acreditava ser virgem e que deveria continuar a sê-lo para continuar em seu 
ofício. Rômulo e Remo são concebidos através de um estupro. Na história de 
Karna, a mãe é solteira e a família não pode aceitar a sua situação. O caso 
de Moisés, no entanto, não é esse. No próprio relato de Êx 2.1-10, não há 
indícios de uma relação indevida; somente uma tradição posterior e inde­
pendente afirma que Anrão tomou sua tia por esposa (cf. 6.20).
Nas tradições extrabíblicas mencionadas, torna-se evidente a hosti­
lidade dos pais ou familiares envolvidos para com a criança exposta. Seu 
plano consiste em fazer desaparecer um filho incômodo ou que supostamen­
te representa uma ameaça futura. No caso de Moisés, a atitude da mãe é 
justamente oposta: coloca-o no rio, exatamente num lugar na margem onde 
possa ficar preso entre os juncos com o objetivo de salvar sua vida; enquan­
to isso, tece uma trama para recebê-lo de volta e criá-lo como ama de leite.
O elemento conceituai que coincide em todas as diferentes narrativas 
ê a função de provar a legitimidade da atual posição social do personagem 
central da história. Em todos os casos, o menino transforma-se num grande 
líder, e a narrativa serve para fundamentar que o adulto de origem duvidosa 
ê legitimado pelo fato de ter vivido as peripécias narradas, que fizeram com 
que sua oculta origem famosa viesse ã tona de vários modos. A questão é 
que assim se apaga a ideia de usurpação do poder vinculada a esses perso­
nagens ou a ideia de que teriam ocupado uma posição de reconhecimento 
social que aparentemente não teriam merecido devido ã sua origem. Apesar 
disso, no caso de Moisés, a legitimidade tem um traço distinto, pois não se 
reivindica uma linhagem real para ele, mas apenas a pertença a um povo. A 
narrativa quer assegurar que Moisés é israelita de nascimento.
40
Os três últimos elementos da tabela acima são características pró­
prias da narrativa de 2.1-10. Nas outras histórias, a agressão contra a 
criança provém de dentro da própria família; em nenhum caso se narra que 
a ctmeaça provém de fora desse círculo. No caso de Moisés, por outro lado, 
a agressão é exclusivamente externa, já que o motivo pelo qual a criança é 
colocada no rio é a ordem do faraó de assassinar todas as crianças hebreias 
do sexo masculino. Há um evidente esforço da mãe para salvar a criança e 
não de desfazer-se dela em definitivo. Por fim, uma diferença notável é o fato 
de Moisés ter sido criado no palácio peira depois abandoná-lo para viver uma 
vida comum. Os personagens das outras narrativas criam-se em ambientes 
simples para depois chegar ao palácio ou alcançar prestígio social. Isso evi­
dencia uma valoraçáo distinta dos lugares sociais e, por conseguinte, uma 
forma de conceber a dinâmica social a partir de outro ângulo. O texto bíblico 
exalta o valor de pertencer ao povo e considera o espaço do palácio um lugar 
de oposição ao plano de Deus. Por isso o relato valoriza Moisés ao mostrar 
que ele não pertence ao palácio, mas a uma família de escravos hebreus. O 
brilho da corte não é um valor positivo para a narrativa bíblica, mas antes 
um elemento negativo que deve ser superado. De fato, o relato bíblico não 
mais voltará a mencionar o período em que Moisés viveu na corte.
Ainda cabe perguntar quais foram os motivos teológicos que levaram 
o autor biblico a recorrer a esse motivo literário e aplicá-lo a Moisés. Nova­
mente, as razões têm mais a ver com a semântica do que com a história. O 
texto bíblico foi gestado num contexto social em que as religiões dos povos 
circundantes exerciam uma forte pressão social e psicológica sobre os israe­
litas. O esplendor do panteão assírio e posteriormente persa levava a pensar 
na força desses Deuses e, às vezes, na fraqueza do próprio Deus, que, após 
ter feito grandes prodígios no passado, agora os condenava à escravidão e à 
assimilação. Histórias como a de Sargão, o Grande, maravilhavam os povos 
por sua força, seu impacto e seu poder. Os autores bíblicos queriam mostrar 
que seus heróis e suas tradições tinham uma força superior à daqueles. Com 
esse objetivo lançaram mão das narrativas populares, mas as refundiram ao 
molde da fé de Israel, o que significa que, em muitos aspectos, mantiveram a 
forma externa ao mesmo tempo em que modificaram sua teologia e mensa­
gem. Às histórias dos Deuses estrangeiros eles contrapunham a história de 
seus patriarcas com suas vicissitudes, anunciando que o Deus dos escravos 
israelitas tinha um poder superior, com traços distintos dos demais.
2. Moisés foge para Midiã (2.11-25)
11) Aconteceu,naqueles dias, que Moisés cresceu. E foi ter com seus 
irmãos e viu seus trabalhos pesados. E viu um homem egípcio espancando 
um hebreu, um de seus irmãos.
12) Olhou para todos os lados, comprovou que não havia ninguém e 
espancou o egípcio e o enterrou na areia.
13) Saiu no segundo dia e eis que havia dois homens hebreus brigando. 
E disse àquele que o maltratava: “Por que espancas teu companheiro?”
41
14) Respondeu-lhe: “Quem te pôs por chefe e juiz sobre nós? Pensas 
poder matar-me como mataste o egípcio?” E Moisés temeu, dizendo: “Certa­
mente se tomou conhecido o fato”.
15) E o faraó ouviu sobre o ocorrido e procurou matar Moisés. Moisés 
fugiu do faraó e habitou na terra de Midiã. E sentou-se junto a um poço.
16) O sacerdote de Midiã tinha sete filhas; e vieram para tirar água 
para encher os bebedouros e dar de beber ao rebanho de seu pai.
17) Vieram alguns pastores e as expulsaram dali. Moisés se levantou e 
defendeu-as e deu de beber ao rebanho.
18) E elas foram a Reuel, seu pai, e este lhes disse: “Por que viestes, 
hoje, mais cedo?”
19) Elas lhe responderam: “Um homem egípcio nos livrou da mão dos 
pastores e também tirou água para nós e deu de beber ao rebanho”.
20) O pai disse a suas filhas: “Onde ele está? Por que abandonastes 
esse homem? Chamai-o para que coma pão!”
21) E Moisés aceitou morar com o homem; e este deu Zípora, sua filha, 
por esposa a Moisés.
22) E ela deu à luz um filho e o chamou de Gérson, porque disse: “Fui 
estrangeiro em terra estranha”.
23) E aconteceu que, depois de muitos dias, morreu o rei do Egito. Os 
filhos de Israel gemiam por causa do trabalho e clamaram, e o seu pranto 
subiu a Deus por causa do trabalho.
24) E Deus ouviu o seu lamento e Deus se lembrou de sua aliança com 
Abraão, Isaque e Jacó.
25) E viu Deus os filhos de Israel. E Deus soube deles.
Introdução ao texto
Nesse texto, distinguem-se três cenas, delimitadas pelos lugares geo­
gráficos em que se desenrolam. O relato promoverá um deslocamento do 
Egito (v. ll-15a) para Midiã (v. 15b-22), onde Moisés iniciará uma nova 
etapa de sua vida, para, em seguida, novamente dirigir os olhares para o 
Egito (v. 23-25). A primeira cena mostra-nos Moisés saindo do palácio e 
dirigindo-se a seus irmãos, os israelitas. Ao ver seu sofrimento e como eram 
maltratados, fica com raiva e mata um egipcio. No dia seguinte, volta a ser 
testemunha de uma briga, dessa vez entre hebreus, e ao querer mediar 
entre ambos, sua proposta é rejeitada por parte de um deles, que lhe diz; 
“Vais matar-me como fizeste com o egípcio?”. Aqui Moisés é rejeitado pela 
primeira vez por seu próprio povo; essa situação irã repetir-se com frequên­
cia ao longo de sua vida. Não apenas o israelita, mas também o faraó sabia 
do assassinato. Agora esse está procurando Moisés para vingar a morte de 
um egípcio. Percebe-se, nesse fato, que o relato volta ao estágio anterior: no­
vamente o faraó ordena a morte de Moisés como quando esse fora criança.
O assassinato do egípcio tornou-se fonte de debate entre os comen­
taristas. Há aqueles que o defendem como um ato de justiça, uma vez que 
Moisés procurou defender um inocente. Outros, no entanto, o rejeitam, afir-
42
mando que foi fruto de um arroubo de cólera de Moisés e não uma decisão 
induzida pela vontade de Deus. É digno de nota que a atitude do narrador 
diante desse assassinato é completamente diferente daquela que ele tem 
diante do assassinato de Abel, cometido por seu irmão Caim (Gn 4.1-8). A 
comparação é proveitosa porque, em ambos os casos, se trata de textos ar- 
quetípicos, que querem estabelecer padrões de conduta e justificá-los para o 
futuro. A diferença entre ambos é que o texto de Gênesis é mítico, portanto 
atemporal, e refere-se a uma experiência universal; seu interesse é testemu­
nhar qual é a origem do fratricídio, como se chegou à situação trágica em 
que uns assassinam outros. O texto de Êxodo, por outro lado, é lendário, 
portanto menos universal. Busca-se estabelecer um padrão de conduta para 
Moisés e esboçar um estilo de vida, nesse caso sua vocação de buscar a jus­
tiça e sua paixão de defender os fracos e desprotegidos. Essas diferenças se 
confirmam quando observamos que, num caso, o assassinato é claramente 
repudiado e o assassino é humilhado e chamado ao arrependimento quan­
do reconhece que está longe da presença de Deus (Gn 4.13s). Caim sofre as 
consequências de seu ato. Na história de Moisés, não se encontra nenhum 
desses elementos. Não há arrependimento nem consciência de estar afas­
tado de Deus. O narrador não apresenta o assassinato eomo uma distorção 
da vontade de Deus. Moisés foge porque é perseguido pelo mesmo opressor 
que antes organizara o genocídio e que agora procura vingar um dos seus. ̂
É um erro perguntar ao texto se Deus estava a favor desse assassi­
nato, justificando, portanto, a morte de um inimigo, ou era contra o delito, 
sendo esse de responsabilidade exclusiva de Moisés.“ O texto não busca 
justificar um assassinato, mas mostrar a violência que os israelitas sofrem 
e como esse hebreu criado na corte se solidariza com os seus e age em sua 
defesa. A narrativa revela a brutalidade da opressão e a humilhação a que 
eram submetidos os israelitas. Essa humilhação e opressão provocam uma 
reação teimbém irracional e extrema, a ponto de querer inclusive matar. 
Moisés não fez outra coisa senão responder no mesmo nível de agressão 
que sentiu seus irmãos padecerem. Portanto a morte do egípcio servirá de 
pretexto para introduzir a perseguição a Moisés e sua ida a Midiã em busca 
de proteção."
H. Cassuto entende que esse ato mostra a vocação de Moisés para a justiça e sua disposição 
de apoiar os oprimidos em sua luta de libertação, recorrendo inclusive a atos violentos, como 
acontecerá com as dez pragas [cf. CASSUTO, H. A Commentary on the Book ofExodus. Jeru­
salém, 1967. p. 22].
' De acordo com J. van Seters, entendemos que o autor compôs a narrativa com a finalidade 
de oferecer um relato coerente das origens de Israel e em função “das preocupações e do des­
tino do povo”. Por isso todo e qualquer dado remete àquela intenção primária e não deve ser 
analisado à parte da mesma [cf. VAN SETERS, J. The Life ofMoses. The Yahwist as Historian 
in Exodus-Numbers, 1994, p. 2sj.
Há, no antigo Oriente Próximo, narrativas semelhantes sobre refugiados políticos, o que 
sugere a existência de um subgênero ou modelo literário. Uma emalogia digna de nota é a 
história de Sinué [cf. ANET, p. 18-22; KING, J.R. The Joseph Stoiy and Divine Politics. JBL 
106, p. 577-594, 1987[.
43
Em Midiã, Moisés será o protagonista de outro ato inesperado em fa­
vor da justiça para com os fracos. Defende as mulheres enxotadas pelos 
pastores malvados e dá de beber ao rebanho delas. A noticia chega rapida­
mente à casa do pai dessas mulheres, de modo que Moisés é logo convidado 
a integrar a família. A correspondência dessas duas cenas mostra o caráter 
justiceiro de sua atuação e ajuda a consolidar nossa interpretação da cena 
anterior. Agora Moisés recebe um prêmio por sua atuação; somos informa­
dos de que ele recebeu uma esposa, com quem teve um filho. A sua vida não 
podia ir melhor.
Por fim, encontramos o terceiro cenário, novamente no Egito. Ele nos 
informa que o faraó acima referido morreu e que o clamor dos oprimidos 
chegou até Deus, que se lembrou da aliança feita com os pais Abraão, Isa- 
que e Jacó. O narrador não está querendo dizer que, em todo esse tempo. 
Deus se havia esquecido de seu povo. Recorre a uma forma literária para ex­
pressar que está prestes a iniciar uma nova etapa na relação de Deus com o 
Israel que está no Egito. Está afirmando que aquelas antigas promessas não 
morreram; elas apenas ainda não se cumpriram. Ao serem mencionadas, no 
entanto, insinua-se que logo hã de acontecer algo que as colocará entre os 
primeiros assuntos da agenda de Deus.
Análise detalhada
11 ► Deu-se um salto no tempo. Agora Moisés é uma pessoa adulta; 
o verbo indica que hã uma atitude deliberada de dirigir-se aosisraelitas. 
Essa aproximação aos que sofrem será tão decisiva, que Moisés não mais 
pode ficar no palácio. Aqui ele comprova a crueldade do regime ao qual os 
israelitas estão sujeitos e a humilhação que os egípcios lhes impõem. Nada 
se modificou desde os acontecimentos da infância de Moisés. Um egípcio 
está espancando um hebreu. O mesmo verbo nakah também será utilizado, 
no versículo seguinte, para descrever a ação de Moisés. Pode significar “es­
pancar” ou “matar”, deixando entrever que os golpes do egípcio têm como 
consequência última a morte do hebreu. Isso explica a reação de Moisés no 
próximo versículo.
12 ► A sua ação não foi um ataque de loucura. Ele olhou cuidadosa­
mente para os lados para assegurar-se de que ninguém o via. Aí espancou o 
egípcio até matá-lo. Para ocultar seu crime, escondeu o cadáver na areia. A 
única testemunha foi o hebreu maltratado; dele se esperaria que guardasse 
segredo para não comprometer Moisés, que vivia no palácio. Mas a narrativa 
mostra que não foi assim que aconteceu.
13-14 ► No dia seguinte, Moisés retornou aonde estavam os seus ir­
mãos. Dessa vez, ele observa que um israelita briga com outro e tenta parar 
a contenda, dirigindo-se a um deles. Nesse momento, o texto nos surpreen­
de como teria surpreendido Moisés; o israelita opõe-se à atitude de Moisés e
44
acusa-o de ter assassinado um egípcio. No nível da narrativa, somente nos 
resta pensar que quem deu com a língua nos dentes foi o hebreu salvo por 
Moisés. A ironia é que justamente quem foi salvo da morte coloca agora seu 
próprio salvador a perigo. As palavras do hebreu são muito duras ao acusar 
Moisés de querer matar também a ele (em ambos os casos, usa-se o verbo 
harag, “matar”). Do ponto de vista teológico, o hebreu não conseguiu enten­
der a ação de Moisés e não viu por trás dela um agir de Deus. Considera-o 
um simples assassino. Se matou um egípcio, também pode matar a ele.
A pergunta retórica “Quem te pôs por chefe e juiz sobre nós?”'̂ revela 
um israelita porta-voz da comunidade, que destaca que Moisés ainda não é 
considerado um deles, tcilvez nem seja tido como hebreu (cf. 2.18). Em seu 
discurso, antecipa as duas funções (chefe e juiz), que depois Moisés exerce­
rá ao longo de sua vida. O narrador não dá a resposta, que, para o leitor, é 
óbvia; foi Deus que o pôs como chefe e juiz. Mas, a partir da leitura linear, 
essa informação ainda não está disponível.
15 ► À notícia de que o faraó procura matar Moisés segue a informação
de que ele foge para Midiã. Geograficamente, a região abrange uma vasta 
extensão de deserto, que se estende desde os limites orientais do Egito até 
a Arabá e a Transjordânia. Nesse caso, deve-se supor que Moisés não se 
afastou muito; deve ter morado na região contígua ao Egito: na península 
do Sinai. Os midianitas consideram-se descendentes de um filho de Abraão 
com Quetura (Gn 25.1-2), que teria dado origem a esse povo, que se caracte­
riza por sua vida seminômade e por sua dedicação ao comércio. Geralmente 
são mencionados em conexão com caravanas que, com suas mercadorias, 
atravessavam o deserto (Gn 37.28). Esse tronco familiar comum pressupõe 
uma época antiga, em que havia boas relações entre midianitas e israelitas. 
Já no tempo dos juizes, ambos transformaram-se em povos inimigos, que se 
combatiam mutuamente (cf. Jz 6-8). Em Êx 2, no entanto, não há vestígios 
dessa agressividade nem do parentesco. Mas, para Moisés, Midiã é um lugar 
de refúgio e de excelentes relações.
Sua estada em Midiã tem principalmente um valor semântico. Midiã 
encontra-se no deserto; é a terra onde se lhe manifestará Deus e para a 
qual retornará acompanhado de um povo em fuga do Egito. De certa forma, 
antecipa-se aqui (nos dois próximos capítulos) o encontro com Javé, que se 
dará mais tarde no monte Sinai, com o propósito de estabelecer uma aliança 
e de promulgar a lei que orientará a vida do povo. Moisés vai a Midiã para 
fugir da morte; mas ali Deus se manifestará a ele e o enviará de volta ao 
Egito para resgatar os que sofrem sob a escravidão.
16-17 ► A narrativa continua trazendo personagens femininas. Agora
são as sete filhas do sacerdote de Midiã. Nada se diz de seus filhos, se é que
A expressão que traduzimos por “chefe e juiz” tem uma sintaxe complexa no hebraico; cf. a 
discussão em DAVIES, G. Israel in Egypt. Reading Exodus 1-2, 1992, p. 119s.
45
os tinha; em cena entram somente as mulheres. Devem ser mulheres fortes, 
já que estão encarregadas de uma tarefa nada simples. Mas os pastores pa­
recem ser ainda mais fortes do que elas, pois as enxotam da fonte de água. 
Essas desavenças em torno da água potável eram comuns entre os povos da 
regiáo (cf. Gn 13.7).
18-19 ► A narrativa é breve e nao fornece detalhes do ocorrido. Sabe­
mos o que aconteceu através das palavras que as filhas disseram ao pai. 
A resposta é surpreendente: “um egipcio [...]”. Precisamos deter-nos nesse 
detalhe. Tudo indica que o aspecto de Moisés era de um egipcio: suas vestes, 
seus modos, seu nome, com certeza também a lingua que normalmente fala­
va (cf. Êx 4.10 sobre as dificuldades de fala de Moisés).’ ̂Tedvez isso explique 
a reação forte do israelita em 2.14. No versiculo em análise, o pai é chamado 
de Reuel; posteriormente se chamará Jetro (3.1; 18.1) e, em Jz 4.11, Hoba- 
be.*'* Esse tipo de inconsistência reflete a existência de mais de uma tradição 
sobre essa história e a vitalidade de cada uma. Isso impediu a assimilação 
de todos os nomes num só.
20-22 ► O pai insiste que as filhas deveriam ter convidado o homem
para sua casa. Rapidamente nos é dito que Moisés é convidado a comer e 
ficar na casa, que aceita o convite e que o dono da casa lhe dá uma filha por 
esposa. De imediato também somos informados de que ela deu à luz um me­
nino, ao qual deram o nome de Gérson, evocando a peregrinação em “terra 
estranha” (cf. abaixo, sob “Estrutura literária”, o significado hermenêutico 
desse nome). Não nos deve surpreender o fato de que Reuel deu a Moisés 
uma filha por esposa, já que, na antiguidade, não se podia conceber uma 
pessoa adulta solteira. Portanto, se iria permanecer na casa, o normal era 
ter uma esposa.
23-25 ► Esta subunidade dirige o olhar de novo ao Egito. A história da
treinquilidade de Moisés em Midiã não fez o narrador esquecer que os israe­
litas ainda estão na terra da escravidão. Passou basteinte tempo; os ventos 
que agora sopram no Egito são outros.
Os V. 24 e 25 mencionam Deus quatro vezes. Essa abundância con­
trasta com a escassez das páginas anteriores, onde só há uma única menção 
explicita. Ao mesmo tempo, ela tem sentido, pois marca a reversão do clima 
bastante adverso que se formou ao longo de toda a unidade de Êx 2.11-25.
Uma observação interessante é a de H. Zlotnick-Sivan, que levanta a hipótese de um Moisés 
persa, não quanto à sua nacionalidade, mas quanto à sua “representação” da cultura persa, 
tão benigna nos assuntos relativos à restauração pós-exílica e simultaneamente inimiga do 
Egito. O autor coloca a redação do texto entre 530 e 430 a.C., quando os persas conquistam o 
Egito [cf. ZLOTNICK-SIVAN, H. Moses the Persian? Exodus 2, The Other and Biblical Mnemo 
History. ZAIV116, p. 189-205, 2004).
Reuel provavelmente significa “Deus é seu guia” ou “Deus é seu pastor”; cf. o estudo detalha­
do de PROPP, W. Exodus 1-18, 1998, p. 172-173.
46
No começo da unidade, há violência, ameaças e morte em abundância. O 
texto insiste, portanto, em retratar uma situação de opressão sem preceden­
tes e aparentemente sem fim. A própria comunidade israelita está confusa e 
não reconhece seu futuro líder. Será que Deus esqueceu seu povo?‘= Mencio­
nar Deus é uma forma de responder essa pergunta, especialmente quando 
se observa que cada referência está acompanhada de um verbo que mostra 
Deus recebendo a informação sobre aquilo que sucede ao povo; em um caso, 
Deus até reage. Não é por necessidade linguística que o texto massorético 
coloca o seu nome quatro vezes, mas por interesse semântico. Essa unidade 
também menciona,pela primeira vez no livro do Êxodo, a aliança com os 
pais, fazendo referência a Gn 17.4-8; essa é uma maneira de afirmar que, 
nessa época, a promessa começa a se cumprir.
Aspectos teológicos: Moisés como fugitivo político
O Antigo Testamento contém vários casos de fugitivos políticos no Egi­
to. Com as intrigas políticas da época de Salomão estão relacionados os 
casos de Hadade (IRs 11.14-22) e Jeroboão (IRs 11.26-40), que têm seme­
lhanças significativas com a fuga de Moisés a Midiâ.'® Vemos os seguintes 
pontos comuns, especialmente no primeiro caso citado:
- a fuga ocorre num contexto de morticínio;
- ambos os personagens pertencem a uma família de prestígio;
- a região de Midiã está vinculada ã narrativa;
- em ambos os casos, uma casa recebe os personagens;
- em ambos os casos, ocorre o casamento com a filha do protetor;
- ambos têm um filho;
- ambos pedem permissão para regressar à sua terra.
É provável que o autor tenha levado em consideração as tradições 
da época salomõnica para ambientar sua narrativa e dar-lhe um enredo 
semelhante ao das histórias antigas. Porém também o inverso é possível, 
ou seja, que o autor do livro dos Reis tenha conhecido a história de Moisés 
e combinado os dois enredos. Em todo caso, a partir do texto fica claro que 
existe um modelo narrativo que o vincula ã figura do fugitivo político. Esse 
modelo é compartilhado por diversas narrativas, inclusive pela história de 
Moisés.* ̂Por trás dessa história encontra-se a experiência da perseguição
Numa lenda de Canaã, conhecida como a epopeia de Kirta, a Deusa Atiratu “lembra” o voto 
de Kirta [cf. OLMO LETE, G. DEL. Mitos e leyendas de Canaán según la tradición de Ugarit. 
Madri, 1981. p. 261].
Em Damasco também se refugiou Rezom, filho de Eliada (IRs 11.23-25). Sobre esse interes­
sante capitulo, cf. GRAY, J. 1-2 Kings. Philadelphia, 1970. p. 283-285; WALSH, J. Berit Olam: 
1 Kings. Collegeville, 1996. p. 139-140; COGUN, M. 1 Kings. New York, 2001. p. 330-335. 
Na opinião de J. van Seters, o autor de Êxodo construiu a narrativa preenchendo os “bran­
cos” da história com elementos de sua própria imaginação, modelando-a com elementos 
literários de histórias passadas. Dessa forma, teria construido uma história assim como ele 
pensava que os fatos teriam acontecido [cf. VAN SETERS, J. The Life ofMoses. The Yahwist
47
política e da necessidade de fugir e tornar-se refugiado, fato esse que deve 
ter sido uma situação frequente na época pós-exílica. Em nenhuma época, 
a estada no estrangeiro é prazerosa quando oeorre por motivos alheios à 
própria vontade.
Na literatura extrabíblica, também se encontram paralelos, como a 
história de Sinuhe, o egípcio.*® Trata-se de uma novela egípcia composta du­
rante a 12̂ dinastia (século XX a.C.), que, no entanto, ainda era conhecida 
no período da 19̂ dinastia (1295-1186 a.C.). Destacamos quatro aspectos 
dessa história:
- Sinuhe foge do Egito, ameaçado de morte pelo faraó e acusado de ter 
assassinado o faraó anterior;
- refugia-se no deserto e vive como beduíno na região da Síria e de 
Canaã;
- é recebido por um chefe local;
- por fim, retorna ao Egito e é recebido em seu país.
Em tonalidades diferentes, esses elementos também se encontram na 
história de Moisés, o que sugere uma estrutura literária recorrente nas his­
tórias de refugiados políticos.
Estrutura literária das unidades 2.11-15; 2.16-22 e 2.23-25
É interessante observar como se constrói o sentido de toda a unidade 
maior (Êx 2.1-4.3), que narra a estada de Moisés em Midiã. Após finalizar a 
análise pormenorizada, voltaremos a falar sobre a estrutura de toda a uni­
dade. Agora enfocaremos as três subunidades desse trecho. Cada uma pos­
sui sua própria dinâmica, mas, ao mesmo tempo, se articula com as outras. 
Primeiramente, cada parte do texto será vista de forma separada.
2.11-15 Característico deste texto é o altíssimo nível de violência. A ex­
pressão “matar” aparece cinco vezes (incluem-se aqui os usos de “golpear, 
ferir”). Podem-se ainda acrescentar os termos “brigar”, “maltratar”, “espan­
car” e “fugir”. A sequência pode ser observada no seguinte esquema:
Moisés sai e constata os trabalhos pesados, depois disso...
um egípcio 
um hebreu (Moisés) 
um hebreu 
um hebreu 
um egípcio (faraó)
(busca) mata(r)
mata
briga
acusa
busca matar
um hebreu 
um egipcio 
com um hebreu 
um hebreu (Moisés) 
um hebreu (Moisés)
as Historian in Exodus-Numbers, 1994, p. 29-34; IDEM. Abraham in History and Tradition. 
New Haven, 1995, em especial, o capítulo 2, p. 24-44].
*® Tradução em ANET, p. 18-22; cf. KING, J.R. The Joseph Story and Divine Politics. JBL 106, 
p. 577-594, 1987. Versão portuguesa em BRIEND, J. (ed.) Israel e Judá: Textos do Antigo 
Oriente Médio. São Paulo: Paulinas, 1985. p. 10-13. (Série Documentos da Bíblia 2)
48
Moisés foge para outro lugar ...
É digno de nota como a sequência revela que a visão inicial que Moi­
sés tem da opressão do seu povo é corroborada, a seguir, através de casos 
específicos de violência pessoal. Moisés sai para a realidade e dá-se conta de 
que a paz do palácio, onde fora criado, não é a realidade da vida cotidiana 
dos israelitas. Nessa, a morte e a agressão estão na ordem do dia, inclusive 
entre eles próprios, o que parece surpreender Moisés. Em poucas linhas, 
Moisés deixa de ser um düeto filho da coroa egípcia para tornar-se um fugi­
tivo ameaçado de morte, que precisa fugir para salvar sua vida.
Observe-se que Moisés sai, primeiro, em direção a seus irmãos, para, 
depois, sair na direção de Midiã. A fuga é consequência de sua primeira saí­
da, quando entra em contato com a realidade. Por um lado, portanto, Moisés 
aprende com a realidade de seu povo, mas, por outro, experimenta as con­
sequências da oposição ao poder da coroa, que os mantém na escravidão. 
Agora Moisés sabe o que não sabia antes; e isso permite que voltemos à pri­
meira linha desta unidade: “Aconteceu, naqueles dias, que Moisés cresceu”.
A partir do todo da unidade, portanto, é evidente que o crescimento de 
Moisés não se refere somente ã sua idade ou estatura, mas muito mais ao 
conhecimento amadurecido do que estava acontecendo. Nesse caso, crescer 
significa tomar consciência da realidade e experimentar na própria carne as 
consequências dessa realidade. Isso o prepara para o papel que desempe­
nhará no restante da história.
2.16-22 Também esta segunda unidade tem seu próprio jogo de senti­
dos. Ao contrário da anterior, prevalecem aqui palavras que evocam a tran­
quilidade, com exceção do incidente com os pastores. Três vezes são empre­
gados termos derivados da raiz hebradca yashab, que tem vários significados 
e por isso foi traduzida por três palavras distintas: “habitou”, “sentou-se” 
(v. 15) e “morar” (v. 21). Em todos os casos, tem um valor positivo, de en­
contro e descanso. Nesta unidade, o fugitivo Moisés encontra um lar e tem 
um filho. A sucessão de sentido pode ser vista no quadro ahaixo. A primeira 
coluna mostra as coisas que Moisés faz; a segunda, o que lhe sucede como 
resultado de sua ação. Em último lugar, colocamos o nome do filho, o único 
elemento aparentemente dissonante, mesmo que coerente com o todo da 
narrativa no nível maior do relato (2.1-4.31):
Moisés... A Moisés sucede que...
Foge Habita em Midiã
Sentou-se junto a um poço Conhece as filhas de Reuel
Defende as filhas Convidam-no a comer
Habita com Reuel Contrai matrimônio
Tem um filho
Gérson, porque disse: “fui estrangeiro em 
terra estranha”
49
Notamos que a cada ação corresponde uma consequência positiva. 
Moisés tem que fugir, mas encontra uma terra onde pode habitar. Senta-se 
para descansar e conhece as pessoas que o conduzirão à sua nova casa, e 
assim por diante. O conflito com os pastores não altera esse clima, já que 
pode ser considerado como que uma desculpa para permitir que Moisés 
entre na casa de Reuel. A sua vocação de defensor da justiça é, dessa vez, 
compreendida plenamente tanto pelas mulheres como por seu pai; esse é 
mais um elemento que distingue essa cenada anterior. A estadia em Midiã 
demonstra ser muito favorável e benéfica para Moisés. Contrair matrimônio 
e ter um filho homem é o máximo que um homem errante pode desejar; e 
isso ele consegue.
A seguir, Moisés dá um nome a seu filho; “Gérson, porque disse: fui 
estrangeiro em terra estranha”. O nome do filho afirma que Moisés está de 
passagem por aquele lugax. Poder-se-ia dizer que esse nome contradiz o res­
tante da unidade, mas não é o caso. Se fixasse raízes em Midiã, a história 
terminaria nesse instante; não havería esperança nem futuro. Por mais que 
tenha encontrado a paz que procurava ao fugir da violência no Egito, Moisés 
entende que sua permanência nesse lugar é algo provisório. A lembrança 
do que está acontecendo com seu povo não permite que se fixe num lugar.
2.23-25 A terceira cena combina vários eixos de sentido. Nela encontra­
mos três verbos que descrevem a angústia dos israelitas e quatro verbos 
que descrevem a resposta de Deus, que é mencionada pela primeira vez 
nesse capítulo. Duas vezes se mencionam os “filhos de Israel” e cinco vezes, 
“Deus”. A causa do sofrimento é descrita com a expressão “por causa do 
trabalho”, uma expressão já vista, que alude ao trabalho escravo, sob o qual 
os trabalhadores são tratados de forma desumana.
Dessa forma, o principal sujeito no v. 23 são os filhos de Israel, en­
quanto que nos v. 24-25 o sujeito é Deus. A unidade é introduzida por uma 
informação sobre o rei. Podemos visualizã-la na tabela abaixo:
A Morreu o rei
B Gemiam
os filhos de Israel
por causa do trabalho
Clamaram
Choraram
a Deus
por causa do trabalho
C Ouviu Deus o lamento
Lembrou-se Deus da aliança com Abraão
Viu Deus os filhos de Israel
Soube Deus deles
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No início, informa-se que o rei morreu (A). Isso parece sugerir uma 
mudança para melhor, mas não é esse o caso. O texto não fala nada do novo 
monarca. Novamente se manifesta aqui o anonimato ao qual nosso texto 
submete os faraós; o faraó não tem identidade nem merece um comentário. 
Mudou o rei, mas a situação permanece a mesma.
A seguir, vêm dois blocos. No primeiro (B), os israelitas são o sujeito; 
nele aparecem três verbos que expressam a situação angustiante vivida por 
eles: gemem, clamam e choram por causa da escravidão a que estão sub­
metidos. O fato de se repetir “por causa do trabalho” indica que o motivo da 
tragédia está claro; não há o que discutir. O destino do clamor é Deus, que 
até aqui não havia aparecido na narrativa, dando a impressão de que não 
ouvia o que se passava com as pessoas.
O segundo bloco (C) traz a resposta. O sujeito dos verbos é Deus; esses 
estão acompanhados de complementos que determinam a que se referem; 
ouviu o lamento; lembrou-se da aliança; viu os filhos de Israel; soube deles. 
Nada escapa à percepção de Deus sobre a situação de seu povo. Coloca-se a 
ênfase no fato de que Deus toma consciência do que sucede com os israelitas.
O que parecia trazer uma mudança - a morte do rei — não deu em nada. 
Todavia, no final da unidade. Deus se faz presente; até aí ele estava em se­
gundo plano, mas agora sua presença cria uma expectativa de mudança pela 
qual se clama. Esse final introduz o que virá: uma intervenção concreta de 
Deus na história em resposta ao clamor por causa das injustiças.
Visão de conjunto
É necessário mostrar a articulação entre essas três unidades. A pri­
meira apresenta uma situação de violência generalizada e desenfreada. Moi­
sés constata que existem conflitos em cada esfera da realidade. A segunda 
mostra que Moisés está a salvo, organizando sua própria vida. A terceira 
volta a enfocar as injustiças. Dessa vez, no entanto, essas não são descritas 
(como na primeira unidade), mas se expressam em forma de clamor e grito 
de ajuda. Diante disso. Deus decide quebrar o silêncio; o texto diz-nos que 
ele ouviu o clamor do povo. O texto prepara o leitor para o que vem a seguir. 
Realizou-se um translado semântico de uma situação de angústia sem es­
perança (primeira cena) para uma expectativa, não mais motivada pela troca 
do monarca, mas pela intervenção de Deus (terceira cena).
3. Deus se revela a Moisés (3.1-4.17)
Esta unidade relata a primeira revelação de Deus a Moisés, iniciando 
uma relação que o acompanhará por toda a vida. Deus chama-o para uma 
missão; mas Moisés coloca cinco objeções, às quais se justapõem outras 
tantas respostas de Deus. No início, Moisés não entende por que justamente 
ele foi o eleito (“Quem sou eu[...]?”, v. 11). Logo a seguir, busca evasivas, que
51
lembram os relatos de vocação de profetas.Nesses relatos, narra-se um 
diálogo entre Deus, que convoca para uma missão, e o profeta, que tenta 
esquivar-se da missão com desculpas. Por fim, o profeta aceita a missão e 
dedica-se a ela. No caso de Moisés, esse tipo de relato foi ampliado de modo 
a conter cinco objeções. Tal ampliação é única no Antigo Testamento. Che­
gou-se a pensar, por isso, que a figura de Moisés estaria vinculada a uma 
outra função da antiguidade, a que poderiamos chamar de “proclamador 
da lei” ou “mediador da aliança” “̂. Dessa forma se legitimaria a função de 
Moisés tanto de profeta como de promulgador da lei. O esquema que segue 
ajuda a visualizar a articulação do diálogo. Mais adiante, analisaremos cada 
subunidade separadamente.
3.1-10
Objeção de Moisés Resposta de Deus
Revelação de Deus e chamado de Moisés
3.11-12 Não tenho autoridade
3.13-15 Quem és tu?
Eu estarei contigo 
Eu sou aquele que está
3.16-22 Projeto de libertação e de posse da terra
4.1-9 Não acreditarão em mim
4.10-12 Não sei falar
4.13-17 Envia alguém outro
Eu te darei sinais 
Eu te direi o que falar 
Arão te ajudará
Cabe observar que o projeto de Deus em favor do povo encontra-se no 
centro do diálogo, ressaltando, assim, que a intenção da vocação e decisão 
divinas é nitideunente a libertação da opressão. Quando acabam todas as 
objeções e respostas, Moisés aceitará sua missão e por-se-á a caminho para 
0 lugar onde ninguém o espera nem estima.
a) A sarça ardente (3.1-10)
1) Moisés pastoreava o rebanho de Jetro, seu sogro, sacerdote de Midiã, 
e levou o rebanho para além do deserto. E chegou ao monte de Deus, Horebe.
2) E apareceu-lhe um anjo de Javé em uma chama de fogo no meio de 
uma sarça. E mu que a sarça estava ardendo no fogo, mas a sarça não se 
queimava.
Veja os casos de Isaias (6.1-13) e Jeremias (1.4-10). Para nm estudo minucioso, cf. OLMO 
LETE, G. DEL. La vocación dei líder en el Antiguo Israel. Salamanca, 1973. p. 53-100.
™ Cf. GARCIA LÓPEZ, F. El Moisés histórico y el Moisés de la fe. Salmanticensis 36, p. 7-21, 
1989. Observe-se que Dt 18.15-22 é uma releitura da personalidade de Moisés a partir da 
chave de interpretação profética e que, em um contexto distinto. Os 12.13 fala de Moisés 
como sendo um profeta por ocasião da Libertação do Egito.
52
3) E disse Moisés: Irei e verei esta grande visão, por que a sarça não se 
queima.
4) E viu Javé que se aproximava para olhar e Deus o chamou do meio 
da sarça dizendo: Moisés! Moisés! E ele respondeu: Estou aqui.
5) E disse: Não te aproximes! Tira as tuas sandálias dos teus pés, por­
que o lugar em que estãs parado é terra santa.
6) E disse: Eu sou o Deus de teu pai, o Deus de Abraão, o Deus de 
Isaque e o Deus de Jacó. E Moisés cobriu seu rosto porque temeu olhar para 
Deus.
7) Disse depois Javé: Eu vi a aflição de meu povo que estã no Egito, e o 
seu clamor ouvi na presença daqueles que o oprimem, pois conheço as suas 
angústias.
8) E eu desci para livrá-los das mãos dos egípcios para fazê-los subir 
daquela terra para uma terra boa e ampla, uma terra que mana leite e mel, o 
lugar do cananeu, do heteu, do amorreu, do ferezeu, do heveu e do jebuseu.
9) O clamor dos filhos de Israel chegou até mim, e também vi a opressão 
com que os egípcios os oprimem.
10) Agora vem, eu te enmarei ao faraó, para que tires meu povo - os 
filhos de Israel - do Egito.
Introdução ao texto
O texto dá uma nova guinada ao apresentar Moisés, agora não como 
um fugitivo, mas como um pastor deovelhas e cabras realizando o seu tra­
balho. Embora tenha sido criado na corte egípcia e tenha gozado de bem-es­
tar e riquezas, essa nova cena apresenta-o levando o rebanho de uma outra 
pessoa e realizando uma tarefa circunstancial e secundária, que não visava 
ao benefício próprio.Dessa forma, Moisés aproxima-se, em certo sentido, 
da situação de seus irmãos no Egito. Não é acaso que justamente esse con­
texto narrativo vai introduzir o primeiro encontro de Moisés com o Deus de 
seu povo. Esse homem sensível à dor de sua gente, que teve que fugir por 
ter vingado o assassinato de um escravo hebreu, começará a compreender 
por que teve de chegar a esse ponto e qued é o plano concreto de Deus. Até 
agora, a presença de Deus não fora direta, mas antes se dera através de 
uma voz que confirmara que ele havia tomado conhecimento do clamor do 
povo. A partir dessa cena, no entanto. Deus toma as rédeas da narrativa, 
constituindo-se em ator principal e visível da história, dando instruções e 
ordens do que deve ser feito para tirar os israelitas da escravidão.
A imagem de um arbusto que arde sem consumir-se não é comum nas 
antigas teofanias. Mas o fato de que aqui se fala “da sarça” provavelmente 
pressupõe que o fenômeno seja conhecido pelo leitor da antiguidade, se não 
por experiência própria, pelo menos como algo que podia acontecer, sendo.
o rebanho pertence a seu sogro, que aqui é chamado de Jetro (como em 18.1; embora tenha 
sido Reuel em 2.18). Isso pode refletir duas tradições ou fontes diferentes a respeito de um 
mesmo personagem [cf. PROPP, W. Exodus 1-18, 1998, p. 197].
53
portanto, algo previsível. A ideia de que Deus se manifesta em fogo era mais 
comum; e ela continuou sendo utilizada como imagem da presença divina 
(cf. At 2.3) por eausa de seu caráter indóeil e por sua capacidade de trans­
formar o que toca, trazendo benefícios (como cozinhar alimentos, transfor­
mar o barro em cerâmica, esquentar os corpos) ou provocando a destruição 
ou purificação ao reduzir a matéria a pó. Todavia, o que surpreende Moisés é 
que, nesse caso, o fogo não consumia o arbusto; por isso tem curiosidade de 
averiguar do que se trata. Esse gesto quer marcar uma diferença: enquanto 
Moisés se mostra surpreso com o que ocorre. Deus tem o domínio total da 
situação e consciência do sentido daquele encontro. Sua voz começará a 
falar e a dialogar com Moisés, dando-lhe instruções até o fim da unidade 
em Êx 4.26.
O encontro acontece no monte Horebe, a montanha de Deus, onde 
posteriormente sucederá o encontro de Moisés com Deus para o recebimen­
to da Lei. A identificação do lugar da outorga da Lei - o monte Sinai - com o 
monte Horebe é problemática; mais do que um dado histórico, ela atende a 
uma intenção hermenêutica, que analisaremos a seguir. Vemos, assim, que 
a presente cena representa uma antecipação do que virá, mostrando Moi­
sés num primeiro encontro pessoal e surpreendente com Deus, que, mais 
adiante, se repetirá em um contexto mais estruturado e formal.
Os V. 7-10 apresentarão o projeto de Deus para seu povo. Eles estão 
dispostos em uma estrutura tão sutil, que permite descobrir a intenção de 
Deus e a mensagem que Moisés deverá levar para o faraó.
Análise detalhada
1 ► Midiã é uma região desértica, que se estende pela Península do Si­
nai até Arabã, ao sul do Mar Morto. O lugar mencionado encontra-se prova­
velmente entre o delta do Nilo e as primeiras ramificações do deserto, jã que 
deveria ser um lugar com algum vestígio de pasto. A expressão “para além 
de” pode também ser entendida como “a oeste de”. Nesse caso, ela estaria 
indicando a região que mencionamos, considerando que o autor do texto se 
encontraria em Midiã, onde morava Moisés na ocasião. Mas o lugar exato é 
muito difícil de determinar; o texto parece não querer ser meticuloso nesse 
ponto.
O texto tem o cuidado de identifiear o lugar como o “monte de Deus”. 
É nesse lugar que, mais tarde, serão entregues as tábuas da lei a Moisés 
(24.13). Mas não se trata de um lugar específico. Sabemos que, no deserto, 
existiam diversos pequenos santuários, onde os pastores de transumância 
costumavam prestar culto ao Deus do lugar.^ ̂ Mas não parece ser esse o 
easo em nosso texto, uma vez que a manifestação de Deus causa surpresa
■ Essa sugestão é de J. NEWSOME [Exodus. Louisville, 1998. p. 17], mas o contexto literário e 
a ambiguidade na definição do lugar parecem indicar o contrário.
54
a Moisés e Deus necessita informá-lo de que está em lugar sagrado. Embo­
ra se tenha tentado fundamentar essa hipótese, não há base histórica ou 
textual p a ra su sp e ita r de que se tratava de um santuário estabelecido e co­
nhecido pelos habitantes da região ou, pelo menos, pela população nômade 
que a frequentava.
Acrescente-se a isso que o monte é chamado Horebe.^ ̂Já observamos 
que a terminologia da própria Bíblia confunde monte Sinai e monte Horebe. 
Contudo, o mais provável é que ambos os nomes designem lugares distintos. 
Em 17.1-7, conta-se que água brota da rocha; esse feito se deu em Horebe 
(v. 6); a esse lugar os israelitas chegaram a partir de Refidim; era a última 
estação antes do Sinai. Por causa desse milagre, Moisés batiza o lugar de 
Meribá, que assim passa a ter três nomes diferentes. Tudo indica que os 
textos não se referem ao mesmo lugar. A tradição posterior reforçou a iden­
tificação de ambos os lugares, mas a evidência textual não é inequívoca. Há 
duas possíveis explicações para essa confusão. A primeira é que estejamos 
diante de duas diferentes fontes literárias, que utilizam nomes distintos ou 
localizam os acontecimentos em lugares distintos. Em geral, as fontes javis- 
ta e sacerdotal usam o nome Sinai para referir-se ao monte onde Deus deu 
as tábuas da Lei, ao passo que as fontes eloísta e deuteronomista costumam 
utilizar o nome Horebe. Uma combinação de fontes no texto analisado teria 
provocado uma inconsistência de nomes e de identificação geográfica. A ou­
tra possibilidade é que o Sinai foi, antigamente, um monte particular, que, 
ao adquirir prestígio, estendeu seu nome a toda a região, incorporando um 
outro monte (chamado Horebe) dentro de seu domínio; isso propiciou certa 
ambiguidade na terminologia. A primeira possibilidade é a mais plausível.
O mais importante, em todo caso, é analisar a dimensão hermenêutica 
dessa identificação. Em primeiro lugar, ela estabelece um lugar sagrado de 
referência para a façanha da libertação. A proposta que Moisés fará ao povo 
é que esse deve sair para prestar culto nesse lugar. Isso fechava as portas ã 
objeção óbvia que iria surgir: “por que não o adoramos aqui no Egito?”. Em 
segundo lugar, é preciso observar que esse lugar - agora reconhecido como 
“monte de Deus” — não se encontra nem no Egito, a terra da escravidão, 
tampouco em Canaã, a terra prometida. Estã situado justamente no cami­
nho em direção a ela. Isso é significativo, pois ressalta que o povo deve atra- 
vesscir o deserto; e será no deserto que ele receberá a Lei que o guiará em 
sua vida. Com a identificação do lugeir da revelação de Deus a Moisés como 
o local da posterior outorga da Lei, a narrativa adquire o sentido de que 
Deus estã á espera da chegada dos fugitivos. Isso se reforça no v. 12, con­
forme o qual a chegada a esse lugar ê sinal da veracidade das promessas.
^ Horebe é uma palavra semítica formada da raiz harab (seco, aridez), que significa “desolado, 
seco, calcinante”, o que se adapta à região do deserto de Midiã [cf. BDB, p. 351. BOOIJ, T. 
Mountain and Theophanie in the Sinai Narrative. Bib 65, p. 1-26, 1984].
55
2 ► Neste versículo aparece, pela primeira vez no livro de Êxodo, o nome
de Deus: Javé. O nome está vinculado a seu mensageiro, que, na narrativa, 
é prontamente identificado com o próprio Javé, de modo que não chega mais 
a ser mencionado. Cabe aqui a reflexão se devemos atribuir ao “mensageiro 
de Javé” uma identidade própria, de modo que, toda vez que o Antigo Testa­
mento o menciona, devamos entender que seja o mesmo ser ou se se tratade mensageiros distintos. '̂* Na Idade Média, a tendência era conceber essa 
figura como uma única, como um emissário permanente de Deus, algo como 
um chanceler de Deus que atuava em todos os casos. Quem cruzava o ca­
minho da gente era sempre “o” mesmo emissário de Deus, que possuía atri­
butos particulares somente outorgados a ele. Hoje é difícil encontrar quem o 
entenda assim; chegou-se ao consenso de que cada passagem que menciona 
“o mensageiro” remete a um enviado de Deus com uma tarefa pontual, não- 
cumulativa, que não se sustém nem sobrevive além da missão concreta que 
lhe foi ordenada. Em nosso caso (Êx 3.1-6), essa tarefa é quase nula.==
A palavra “sarça” parece ter dado o nome ã região. A forma hebraica é 
senéh; provavelmente é a origem do nome Sinai. Atualmente, esse arbusto é 
conhecido pelo nome árabe de sene e cresce graças à umidade residual que 
se preserva entre as rochas após as chuvas.
3-5 ► Novamente se designa Deus por seu nome Javé, o que será rele­
vante quando se ler 3.14. No trecho sob análise, introduz-se, pela primeira 
vez no Antigo Testamento, a concepção de espaço sagrado. Até agora existia 
o sábado como mainifestação do tempo sagrado. Mas, diferentemente do 
sábado, o espaço, assim como é apresentado aqui, é um espaço eventual e 
refere-se a um acontecimento pontual. Deus manifesta-se num lugar, mas 
não permanece nele. É necessário esperar até a construção do templo de 
Jerusalém para que a presença divina encontre um espaço em que se fixe.
No Antigo Testamento, a prática de tirar o calçado ao pisar um lugar 
sagrado encontra-se somente aqui e em Js 5.15, onde são utilizadas quase 
as mesmas palavras. É um gesto muito antigo, que se preservou até os dias 
de hoje no budismo, no islã e na comunidade samaritana da moderna Na- 
blus, bem como em algumas comunidades cristãs orientais. Seu sentido ori­
ginal é controvertido. Alguns tendem a pensar que essa prática permite um 
contato direto do corpo da pessoa com o solo sagrado. Outros creem que se 
trata de um gesto de humildade do crente. Também foi aventada a hipótese 
de que, por ser de couro (restos de um cadáver), o calçado poderia ser con­
siderado impuro ou um objeto capaz de transmitir impureza à pessoa ou ao 
solo. É provável que, em diferentes momentos da história, essas explicações
A expressão “anjo de Javé” ou “anjo de Deus” encontra-se em Gn 16; 22; Êx 3.2; 14.19; 
23.20; 32.34; 33.2 e, com frequência, em Jz. Além desses textos, a expressão tem pouca 
importância, encontrando-se em 1 e 2Rs, 1 e 2Cr, Ez e esporadicamente em outros livros.
A ambiguidade bíblica dessa figura é produto do monoteísmo de Israel, que não podia contar 
com Deuses menores que fizessem as tarefas “secundárias” [cf. PROPP, W. Exodus 1-18, 
p. 198-199].
56
tenham sido combinadas ou uma tenha substituído a outra. Mas, indepen­
dentemente delas, a primeira consequência de tirar o calçado é marcar a 
diferença entre o espaço profano e o sagrado. Indica um reconhecimento por 
parte da pessoa de que está num lugar distinto dos outros espaços. Já que 
o calçado protege os pés da dureza do solo, o fato de tirá-lo dos pés significa 
afirmar que esse solo, por ser sagrado, não agride o corpo, mas concede algo 
positivo á pessoa que o pisa.
6 ► No Hvro de Gênesis (31.5,29; 46.1,3 passim), encontra-se a fórmula
“o Deus de teu pai”. A partir do presente texto, ela será substituída pelo 
plural: “Deus de teus pais”. Note-se que a expressão no singular não é algo 
próprio do Antigo Testamento, mas é encontrada, com frequência, em textos 
antigos referentes a Ashur, Shemesh e outros Deuses do Oriente Próximo. 
Isso mostra que esteimos diante de uma linguagem estereotipada.
O ato de cobrir o rosto apoia-se numa antiga tradição, conforme a qucd 
ver Deus constituía um problema. Em Êx 33.20, institui-se a proibição de 
ver o rosto de Deus e se estabelece que uma transgressão dessa proibição 
levÊirá o infrator ã morte. Mas é dificil entender como alguém pode trans­
gredir uma norma dessas sem que Deus o permita. Não se busca Deus para 
vê-lo; é ele que se revela o quanto quiser e a quem desejar. Por outro lado, 
há casos (como Jz 6.22; 13.22) em que se vê o “anjo do Senhor”; nesse caso, 
as pessoas não morrem, mas temem morrer (em especial, 13.22), como se a 
norma também se aplicasse ao mensageiro de Deus, já que o “anjo” pode ser 
compreendido como referência ao próprio Deus. Parece que Deus é ocultado 
sob a designação “anjo” para esquivar-se das consequências da proibição de 
ver Deus em pessoa. Em Êx 20.19, todo o povo está reunido; nesse contexto, 
a morte está vinculada não ao ver a Deus, mas ao ouvir de sua voz, esta­
belecendo, assim, uma nova esfera de proibição, ainda que essa situação 
não se repita no resto do Antigo Testamento. Em 24.10-11, é dito que os 
anciãos “viram o Deus de Israel”, sem que seja mencionado nenhum risco 
de vida. Pelo contrário, diz-se que continuaram celebrando essa visão com 
um beinquete.
Também Elias “cobriu o seu rosto” ao sentir que estaria na presença 
de Deus (IRs 19.13). Tanto Moisés como Elias expressam mais respeito 
do que medo de morrer devido ã presença de Deus. Essas duas narrativas 
mostram personagens dispostos a aproximar-se de Deus e a ouvir o que 
esse tem a lhes dizer, e não pessoas atemorizadas com um possível destino 
trágico por ter visto Deus. É evidente que a tradição de castigar alguém com 
a pena de morte por ter visto Deus não conseguiu permear todos os textos.
7-10 ► Observou-se que o conteúdo básico do v. 7 repete-se no v. 9,
evidenciemdo que estamos diante de duas fontes diferentes. As diferenças 
de vocabulário e estilo entre os dois versículos ajudam a consolidar essa
57
hipótese.̂ *̂ É provável que assim seja; mas essa constatação não deveria 
levar-nos a perder a construção de sentido que o redator elaborou com todo 
o cuidado; essa construção parece passar desapercebida para a maioria dos 
comentaristas. Hã uma estrutura inclusiva e uma resolução que coloca em 
evidência o cuidadoso trabalho do autor, que não se limitou a juntar duas 
fontes, mas que as organizou em função de sua teologia e mensagem. A se­
guir, encontra-se a estrutura literéiria:
A via opressão do meu povo no Egito (7a)
B ouvi o clamor (7b)
C desci para fazê-los subir (8)
B’ o clamor dos filhos de Israel chegou a mim (9a)
A’ td a opressão com que os egipcios os oprimem (9b)
Portanto, vai... (10)
São vários os elementos a ser analisados nessa estrutura. Nos extre­
mos (A-A”), encontramos a afirmação de que Deus viu a opressão de seu 
povo. O verbo ra’ah (“ver”) tem um sentido muito físico nesse caso; impli­
ca perceber, sentir. É a moldura geral, na qual será inscrita a mensagem 
central. Hã um Deus que toma consciência da sorte de seu povo. No nível 
seguinte (B-B’), o verbo utilizado ê sham'a (“ouvir”). Deus ouve o clamor; 
isso provavelmente ê uma resposta àqueles que argumentam que o Deus 
de Israel se esqueceu deles e não mais os escutava. Esse “clamor” ê a voz 
do oprimido, que brota da situação de opressão; não deve ser entendido 
como um simples canto triste e passivo, mas como uma palavra ativa que, 
ao expressar-se, manifesta que está em busca de um caminho que leve à 
libertação.
O centro do quiasmo oferece-nos a mensagem principal da unidade. 
Refere-se ã ação concreta de Deus após ter visto e ouvido o que acontece 
com o povo. Trata-se de um versículo magistral do ponto de vista estilístico 
e inclui diversos elementos que devemos ter em conta. Ele inicia com o ver­
bo “descer” {yarad), com referência a Deus, e continua com o verbo “subir”
2® No V . 7a, “opressão” é ‘oni, enquanto que, em 9b, se usa lahas; no v. 7, a descrição da situa­
ção é mais extensa e envolve outros conceitos, enquanto que, no v. 9, a forma é mais seca e 
breve.
27 S. CROATTO [Liberación y Libertad. Pautas hermenêuticas. Buenos Aires, 1973. p. 41] com­
para esse “clamor” com o mesmo fenômeno nos mitos mesopotâmicos de Atraftasis e Enuma 
Elish, onde o lamento conduz a formas simbóUcas de libertaçãoou ao fracasso do projeto 
humano, sem, no entanto, extinguir a perseverança da vontade de rebelião dos povos.
58
{‘alah), com referência a Israel. Esse movimento de descer e subir corres­
ponde a duas realidades totalmente distintas. No primeiro caso, é Deus que 
se movimenta para chegar aonde se encontra seu povo. No segundo caso, 
usa-se a terminologia poética comum do Antigo Testamento para designar a 
entrada na terra de Canaâ: “subir”. Isso se explica porque a terra de Canaã 
é normalmente mais alta do que os seus arredores. Mas esse descer e subir 
implica um encontro na metade do caminho, entre a realidade da divindade, 
que era sentida como distante ou ausente, e a do povo deprimido e desespe­
rado. Também é um símbolo do que acabou de acontecer: Deus desceu para 
encontrcLT-se com Moisés, que teve que subir ao monte Horebe. Ao colocar a 
ação de Deus em primeiro lugar, quer-se afirmar que é Deus que está colo­
cando em movimento a história.
A seguir, sucedem-se três descrições da terra para a qual Deus vai 
conduzir o seu povo. Afirma-se que ela é boa e ampla, que mana leite e mel 
e que é a terra onde habitam vários povos. É a primeira vez que se mencio­
nam os termos que se tornarão clássicos para descrever a terra prometida. 
Do ponto de vista narrativo, os três elementos pretendem dar uma imagem 
positiva da terra que os aguarda. A generosidade e a amplitude da terra e 
a abundância de alimentos contrastam com a experiência no Egito. Não se 
deve entender que no Egito não houvesse alimentos. Pelo contrário, alimen­
tos havia e eram excelentes. O texto refere-se à realidade da falta de acesso a 
esses alimentos essenciais, que os próprios israelitas ajudavam a produzir. 
A libertação para a qual Deus convoca incluirá a possibilidade de usufruir 
das dádivas e dos frutos da terra. Ao mesmo tempo, é notável que se men­
cionem os povos que, na época, habitavam a terra de Canaã, sem acrescen­
tar que serão expulsos. Não há indícios de guerra nem da necessidade de 
uma posse exclusiva da terra. Ao arrolar os seis povos que a habitam, sem 
fazer menção a nenhum conflito com eles, pode-se pensar que o texto queira 
transmitir a mensagem de que Israel poderia ser um povo a mais - o sétimo 
- em seu meio. A tradição da conquista e da expulsão das outras nações não 
aparece nesses versículos.
Uma leitura conjunta dos v. 7-10 mostra que o texto está interessado 
em ressaltar a autonomia de Deus, que decide agir em resposta à situação 
de opressão de seu povo. Mostra-se um Deus sensível ã sua dor e angústia, 
que aceita descer e interferir na histõria humana, assumindo as limitações 
que esse gesto implica. É aí que seu projeto será abraçado ou rejeitado.
Aspectos teológicos: A terra que mana leite e mel
A expressão “que mana leite e mel” (hebraico; zabat hálab udebash) 
tornou-se uma forma clássica de descrever a terra prometida. As palavras 
encontram-se vinte vezes no Antigo Testamento, quinze das quais no Penta- 
teuco, uma em Josué e quatro em textos proféticos. Em Jó 20.17, também
Textos que expressam claramente a conquista só vamos encontrar em 23.23,28; 33.2; 34.11.
59
encontramos a expressão “mel e coalhada” para descrever a terra de Canaã. 
Há ainda outras formas para referir-se à abundância de alimentos na terra 
prometida (cf. Lv 26.4; Dt 8.7-10). Verdade é que, para quem atualmente 
visita Israel, é difícil descrever essa terra como tendo abundância de frutos. 
A impressão é que estamos num território extremamente árido e seco. Essa 
impressão moderna certamente deve ser amenizada, já que foi o corte de 
árvores das primeiras décadas do século XX que agravou a situação. Na 
antiguidade, a realidade ainda não era tão grave quanto hoje. Mas é fun­
damental ter em conta que quem cunhou essa expressão foram pessoas do 
deserto, acostumadas a peregrinar em busca de água e pastagens e que não 
dispunham de terra cultivável da qual pudessem tirar os frutos. Para essas 
pessoas, a terra de Canaã era excelente.
Duas coisas devemos considerar a respeito dos produtos leite e mel. 
Em primeiro lugar, o mel não é o mel de abelhas que conhecemos hoje, 
mas um produto extraído das tâmaras ou das uvas, que, após processado, 
se transformava em melaço. O produto era utilizado como adoçante e era 
muito apreciado por suas capacidades alimentícias. Em segundo lugar, é 
surpreendente que nenhum dos dois produtos eleitos tem um valor ritual. 
Nem leite tampouco mel serão mencionados entre os produtos a serem en­
tregues como oferendas a Deus. Tampouco fazem parte dos elementos da 
Tenda do Encontro no deserto nem do templo de Jerusalém. Esse dado não 
é secundário, considerando que o Êxodo experimentou uma redação final no 
círculo sacerdotal. Talvez a explicação seja a seguinte: justamente a abun­
dância desses produtos tornou-os demasiadamente vulgares para servir de 
oferendas. Porém o mesmo se podería dizer de outros produtos, que, no en­
tanto, não sofreram essa restrição. De qualquer modo, a interpretação dessa 
expressão sempre foi complicada, como atestam as seguintes tentativas de 
dar conta de seu sentido. Sintetizamo-las em quatro posições.^^
A primeira considera que “terra que mana leite e mel” significa um 
lugar com abundantes pastagens. Elas permitiríam a criação de gado e, 
por conseguinte, a produção de bastante leite. Enquanto isso, o mel seria 
obtido das tamareiras e vinhas que vicejariam no solo úmido. A segunda 
possibilidade entende a expressão simbolicamente: é um modo de dizer que 
os diversos frutos extraídos da terra são tão bons quanto o leite e tão doces 
quanto o mel. É uma forma poética e indireta de compreender o sentido da 
frase. Já na narrativa de Sinuhe, o egípcio, proveniente do século XX a.C., 
encontramos a seguinte descrição da terra de Canaã: “Figueiras e vinhas 
crescem nela. Existe nela mais vinho do que água. Abundante é o seu mel, 
e abundantes são seus olivais. Toda sorte de frutas cresce em suas árvores. 
Há cevada e trigo e gado sem limite” .̂ Também autores da antiguidade, 
como o historiador romano Tácito e o judeu Flávio Josefo, descrevem em 
suas obras essa terra como sendo repleta de frutas e vitalidade.
Para uma avaliação ampla, cf. HOUTMAN, C. Exodus. V. I, 1993-1996. p. 356-358. 
3° Cf. ANET, p. 19.
60
A terceira interpretação é mais teológica. Supõe-se que leite e mel eram 
alimentos dos Deuses ou oferendas típicas dos Deuses cananeus. Israel teria 
adotado dessas religiões a imagem do leite e do mel e adaptado o conceito à 
sua teologia. Nesse caso, a expressão é uma forma de comparar a terra pro­
metida com o jardim primordial, o lugar onde Deus mora e onde tudo está 
de acordo com a sua vontade, mas também com a promessa messiânica dos 
últimos tempos. Há, no Antigo Testamento, alguns indícios que apontam 
para essa leitura, por exemplo o fato de que o futuro Messias se alimentará 
de leite e mel (Is 7.15,22; aqui se usa, no entanto, o termo hebraico hem’ah, 
que significa “coalhada”); o leite também é mencionado no contexto da fu­
tura bênção de Deus aos povos (Is 55.1). Também J1 4.18 [3.18] menciona o 
leite entre os elementos presentes nos últimos dias, quando Deus haverá de 
redimir a terra. Dessa forma, a era messiânica está relacionada com o mel 
e o leite, entendidos como produtos seletos e significativos da generosida­
de de Deus. Na literatura judaica tardia, essa ideia aparece e reflete-se em 
obras como Enoque (8.5ss) e os Oráculos Sibilinos (III, 744; V, 281). Ainda 
que essa interpretação seja interessante, não há, nos textos bíhlicos, dados 
consistentes que apontem nessa direção. Uma vez que há vinte referências 
dessa frase, esperar-se-ia por uma informação qualquer que corroborasse, 
a partir dos próprios textos, essa leitura; mas aparentemente ela não existe. 
Se na origem, de fato, houve essa relação, ela se perdeu em nossos textos 
ou então foi sepultada pela redação, de forma que dela não restam mais 
vestígios significativos.
Em quarto lugar, queremos oferecer a nossa própria abordagem do 
problema.Deve-se entender a referida terra como um lugar onde, com es­
forço e dedicação ao trabalho, se podem produzir os alimentos necessários 
para a vida. Não seria, portanto, um lugar em que a abundância prescindi­
ría da necessidade de trabalho. Pelo contrário, a natureza convida a cultivar 
e a criar o gado necessário para a obtenção de leite e a produção de mel, bem 
como de todos os outros alimentos necessários para a vida. Leite e mel são 
produtos do esforço humano e, como tais, evocam a vontade de Deus de que 
as pessoas se realizem num ambiente de trabalho e de interação sadia com 
a natureza.^' Em Lv 26.3-4, é mencionada a tarefa de cultivar a terra prome­
tida com a naturalidade de quem nunca esperou algo diferente nesse lugar.
b) O nome de Deus? (3.11-15)
11) Moisés disse a Deus: Quem sou eu para que vá ao faraó e tire do 
Egito os filhos de Israel?
12) Deus lhe respondeu: Eu estarei contigo; e este será para ti o sinal 
de que eu te enviei: quando tiveres tirado o povo do Egito, servireis a Deus 
sobre este monte.
Essa é a teologia de Gênesis, expressa na narrativa da criação; cf. ANDINACH, P. Gênesis. 
Estella, 2004. p. 372-373. (Comentário Bíblico Latinoamericano, editado por Armando Levo- 
ratti, V.I)
61
13) Disse Moisés a Deus: Quando eu for aos filhos de Israel e lhes dis­
ser: o Deus de vossos pais me enviou a vós, eles dirão: Qual é o seu nome? 
Que lhes responderei?
14) Respondeu Deus a Moisés: “Eu sou o que está”. E lhe disse: Assim 
dirás aos filhos de Israel: “aquele que está” me enviou a vós.
15) E aerescentou Deus a Moisés: Assim dirás aos filhos de Israel: Javé, 
o Deus de vossos pais, o Deus de Abraão, o Deus de Isaque e o Deus de Jacó, 
me enviou a vós. Este é o meu nome para sempre; através dele serei lembrado 
por todos os séculos.
Introdução ao texto
Esta unidade inclui as duas primeiras objeções de Moisés ao chamado 
de Deus. Ambas têm a ver com a identidade tanto de Moisés como de Deus. 
A primeira (v. 11-12) refere-se à sua própria capacidade de encarar a mis­
são. Note-se que, para Moisés, tudo deve ser muito estranho: um Deus que 
recém chegou a conhecer, que até o momento não havia sido significativo 
em sua vida, que, por assim dizer, era bem distante - justamente esse Deus 
chama-o de repente e pede-lhe para retornar ã terra de onde saíra fugido. 
A sua pergunta é, portanto, compreensível e sincera: “Quem sou eu...?”. 
Deve-se entendê-la como: “Com que autoridade irei ao faraó...?”. A resposta 
consiste de duas partes: uma afirmação e um sinal. A afirmação é que a au­
toridade emanairá da constante companhia de Deus. O sinal aponta para as 
consequências da aceitação da missão para a qual é chamado.
A segunda objeção tem a ver com a pergunta pela identidade de Deus. 
Não se refere a seu nome próprio - uma vez que esse já era conhecido desde 
o livro de Gênesis -, mas ã sua natureza, ao que Deus é enquanto vontade. 
A resposta mostra que Deus revela a sua decisão de estar junto a seu povo 
e acompanhar Moisés no ato da libertação.
Análise detalhada
11 ► A dificuldade de Moisés é compreensível, e não podia ser de outro
modo. Os próprios compatriotas o haviam rejeitado (Êx 2.14); e a corte que 
o apadrinhou buscava assassiná-lo. A pergunta “Quem sou eu para que vá 
ao faraó...?” deve ser entendida como um clamor por esclarecimento. Uma 
formulação em consonância com o sentido do texto seria: “Que autoridade 
tenho eu para ir ao faraó e pedir-lhe nada menos do que a libertação de seus 
escravos?”
12 ► A resposta de Deus é significativa: eu estarei contigo (hebraico
’eheyeh). Trata-se da mesma resposta dada a Gideão em Jz 6.16. Note-se 
que a pergunta se referia ã identidade do próprio Moisés; contudo, a res­
posta fala de Deus. Tem-se a impressão de que Deus lhe responde que não 
se trata de saber quem é Moisés, mas quem é o Deus que o envia. Subjaz
62
à pergunta a ideia de que Moisés foi eleito e separado por Deus para essa 
missão desde a sua infância; agora recebe o respaldo de que necessita para 
realizá-la.
A segunda parte do versículo fala de um sinal. Usa-se o termo hebrai­
co ’ot (sinal, maravilha), também utilizado para designar a marca de Caim 
(Gn 4.15) e o pacto com Noé (Gn 9.12). O texto hebraico é claro. O problema 
está em compreender o que é um sinal e como, nesse caso, ele se relaciona 
com o restante do relato. Digamos que aqui o sinal não é visível, mas pres­
supõe uma promessa, o que o transformaria em sinal inútil, uma vez que 
um sinal quer ser uma marca visível e física que garante a veracidade do que 
é dito. Voltaremos a esse tema na seção “Aspectos Teológicos”.
13 ► A segunda objeção de Moisés também é uma pergunta. Ele repete 
a única coisa que ele sabe sobre esse Deus que se revela nesse momento. 
De acordo com o v. 6, é o Deus dos pais; por isso diz: “o Deus de vossos pais 
me enviou...”; essa formulação, no entanto, parece não ser suficiente para 
Moisés.Ele prevê que os israelitas pedirão mais explicações. Não fica cla­
ro por que fariam isso. Não se deve pensar que eles tenham esquecido seu 
Deus. Possível seria que os israelitas quisessem comprovar se Moisés fora, 
de fato, enviado pelo próprio Deus ou se era tão-somente um visionário que 
recebera uma mensagem de um dos muitos Deuses do Egito ou do deserto. 
Dessa forma, a pergunta não teria o objetivo de saber se eles conhecem o 
nome de Deus - um dado que não era nenhum segredo. Já que sabiam de 
qual Deus se tratava, faltava saber agora se a sua proposta era digna de 
crédito. Em todo caso, Moisés não pergunta pelo nome por si mesmo, mas 
afirma que, no Egito, perguntarão pela identidade do Deus que o envia: “Me 
perguntarão: qual é o seu nome?”. Moisés diz que não tem resposta para 
essa questão. Mas é lícito perguntar se Moisés está somente pedindo uma 
informação sobre Deus - seu nome - ou se a pergunta pretende sondar a 
personalidade desse Deus que o chama. A segunda opção é mais plausível.
14 ► A resposta ã pergunta do versículo anterior forneceu material de 
discussão para muitas gerações de crentes. Costuma-se traduzir a expres­
são hebraica 'eheyeh asher ’eheyeh por “eu sou o que sou”, mesmo que seu 
sentido literal seja mais complexo.^ ̂A frase é constituída de uma repetição 
da forma do imperfeito {geralmente com sentido de futuro) do verbo ser, na
32 Note-se que algumas traduções castelhanas inserem o nome Javé no início da frase (“Javé, o 
Deus de vossos pais...”), o que é um erro, pois esse nome não se encontra no texto hebraico. 
A intenção é esclarecer o texto, mas o efeito é exatamente o contrário, pois se perde a relação 
existente com o v. 15 (cf., abaixo, o comentário sobre Êx 3.15). Além disso, do ponto de vista 
retórico, a inserção invalidaria a pergunta, já que antecipa a resposta.
33 A forma hebraica é dinâmica, enquanto a tradução clássica é rígida. Isso advém da posterior 
leitura “metafísica” formulada pela LXX, conforme a qual Deus é “aquele que é”, em contra­
posição aos ídolos que “não são” [cf. CROATTO, S. Liberación y Libertad. Pautas hermenêuti­
cas, p. 43],
63
qual se intercala a partícula relativa. A tradução podería estar no futuro: 
“serei o que serei” ou “sou o que serei”. Outras alternativas aventadas não 
conseguiram lograr muito êx ito .O problema com a tradução clássica é que 
não se entende o significado; “sou o que sou” não é uma resposta adequada 
à pergunta pelo nome.̂ '̂ por outro lado, a relação com o v. 12 é clara e deve­
ría ser considerada na hora de explorar o sentido da frase.
Uma outra pergunta que devemos faxer é sobre a relação existente 
entre o v. 14a e o v. 14b. Pois a forma clássica “eu sou me enviou a vós” 
tampouco satisfax a necessidade de entender o tex toM esm o que tenha 
havido tentativas de separar ambas as metades do versículo, atribuindo- 
as a fontes distintas, ou, inclusive, de eliminar uma delas por considerá-la 
uma glosa explicativa recente, a narrativa tem sentido na forma como está e 
a sintaxe não revela nenhum problema. Também outras questões surgem a 
partir daleitura: de que maneira conhecer o nome de Deus ajudaria Moisés 
em sua missão? Dito de outro modo: não se entende por que Moisés neces­
sitaria saber o nome se ele era desconhecido para os demais. Também cabe 
perguntar se a forma “eu sou o que sou” é, de fato, uma resposta ou, antes, 
uma tentativa de fugir à pergunta.
Nossa opinião é que, uma vez entendido o problema linguístico, a 
questão deve ser abordada a partir da perspectiva hermenêutica. O pró­
prio contexto literário dá-nos pistas para interpretar - e consequentemente 
traduzir - esse trecho. Por isso preferimos uma tradução que, eom base no 
texto hebraico, tenha sustentação nas considerações teológicas que brotam 
do próprio texto. Propomos traduzir “eu sou aquele que está” e “aquele que 
está me enviou a vós”. O assunto será discutido mais adiante na seção “O 
nome de Deus”.
 ̂A opinião de W.F. ALBRIGHT [De la edad depiedra ál Cristianismo. Santander, 1959. p. 205] 
merece ser mencionada. Ele entende que o sentido é “eu sou o que faz ser”, ou seja, “o criador 
da vida”. Essa opinião foi criticada por parecer abstrata e distante do pensamento biblico. 
Contudo, Huesmann defendeu a coerência dessa opinião, mostrando que há fontes egípcias 
e acádicas, anteriores a Moisés, com expressões análogas [cf. HUESMANN, J. Êxodo. Madrid, 
1971. p. 157-207. (Comentário Bíblico San Jerônimo, editado por R. Brown)]. Para uma dis­
cussão exaustiva dos aspectos linguísticos, c f DE VAUX, R. Historia Antigua de Israel. V.I. 
Madrid, 1975. p. 330-347.
’ A LXX traduz “eu sou aquele que é”; a Vulgata diz literahnente “eu sou o que sou” {ego sum 
qui sum). Essas versões, com certeza, influenciaram as traduções para as línguas modernas. 
Mas o fato de que várias versões antigas deixaram de traduzir a expressão é um indicio de 
que, já naqueles tempos, sua interpretação era problemática. Enquadram-se nessa situação 
o Targum Onkelos, o Targum Pseudo-Jònatas, o Targum Samaritano e a tradução siriaca 
Peshita. Por outro lado, as versões de Âquila e Teodócio fornecem a mesma tradução: “eu 
serei o que serei”.
 ̂C. DEN HERZOG [The Prophetic Dimension of the Divine Name; On Exodus 3:14a and its 
Context. Catholic Biblical Quarterly 64, p. 213-228, 2002] conclui que essa forma (“eu sou”) 
é um segundo nome de Deus, que relativiza a denominação Javé, uma vez que essa última 
perdera, com o tempo, seu significado. Essa opinião não chega a convencer, já que se pode 
constatar que a forma não se impôs como novo nome da divindade.
64
15 ► Este versículo foi considerado uma segunda resposta à pergunta
de Moisés do v. 13. Se fosse eliminado o v. 14, a resposta de Deus soaria 
mais simples e direta. À pergunta “Qual é o seu nome?” responde-se; “Javé, 
o Deus de vossos pais...” . Também se observou que essa resposta poderia 
denotar uma retificação das palavras que Moisés diz no v. 13; “Quando eu 
for a Israel e lhes disser; o Deus de vossos pais...”. Moisés deve dizer o que se 
encontra no v. 15: “Javé, o Deus de vossos pais...”. Dessa maneira, o nome 
de Deus ficaria bem claro e, ao mesmo tempo, seria mantida a relação espe­
cifica com o Deus dos pais. Do ponto de vista formal, pode-se dizer também 
que este versículo é suscetível de eliminação, porque estaria aí meramente 
para clarear a ambiguidade do v. 14. Entretanto, eliminar um texto não é o 
melhor meio de interpretá-lo; é melhor esforçar-se para entender o seu sen­
tido, ainda que tenhamos que admitir que a redação teve que lidar com um 
par de fontes difíceis de compatibilizar.
Nossa posição é a seguinte: depois da afirmação do v. 14 sobre a na­
tureza de Deus e seu compromisso de acompanhar o povo em todos os mo­
mentos, faz-se agora uma declaração complementar. Moisés é ordenado a 
dizer aos israelitas que o Deus que o está enviando não é outro senão o Deus 
que eles conhecem: “Javé”, aquele que era e é o Deus de seus pais. A afir­
mação que encerra o versiculo não é insignificante e está em consonância 
com essa explicação. Diz-se que esse é o nome e não um outro - talvez uma 
alusão ã forma ambígua do v. 14 e uma tentativa de evitar a confusão - e é 
através desse nome que Deus será lembrado para sempre. Deve-se ter em 
conta que, no decorrer da argumentação, Moisés nunca duvida do caráter 
do Deus que o chama. Pelo contrário, ele faz a pergunta tendo em vista as 
dúvidas que os outros poderíam ter. Q texto não tenta convencer Moisés a 
respeito de quem é o Deus que o chama, mas quer convencé-lo a assumir a 
responsabilidade que está ã sua frente. A explicação do nome é dada para 
que Moisés a transmita a quem duvidar de seu envio.
Aspectos teológicos: O sinal de Êx 3.12
A menção de um sinal (hebraico ’ot) no v. 12 é problemática. Geral- 
mente, esse termo hebraico designa um sinal que antecede o fato, um tipo 
de lembrete de uma promessa ou aliança. A circuncisão é um sinal (Gn 
17.11); as colunas de fumaça e de fogo são sinais (Êx 13.21-22). Em Êx 
3.12, contudo, afirma-se que o fato de Moisés voltar, depois de certo tempo, 
com o povo para servir a Deus nesse monte comprovará que as palavras do 
Senhor eram verdadeiras. Nesse caso, o sinal mais parece uma promessa 
do que uma garantia da palavra empenhada. Por esse motivo, buscaram- 
se alternativas para compreender a que se refere o mencionado sinal. Nas 
narrativas bíblicas, encontram-se dois modelos de sinais dados a determi­
nados personagens.^’’ Por um lado, temos os casos em que os sinais confir-
Cf. CHILDS, B. The Book ofBxodus, p. 56-60.
65
mam a palavra dada por um profeta sobre algo que se realizará no futuro 
(cf. ISm 2.34; IRs 13.3). Segundo esse modelo, o sinal é um acontecimento 
histórico que sucederá antes do cumprimento da palavra para confirmá-lo 
e antecipá-lo. Utiliza-se a fórmula “isso te será por sinal”. O outro modelo é 
menos frequente e consiste num sinal que respalda o envio de um profeta e 
está vinculado à aceitação do chamado. Nesse caso, o sinal confirma o ofi­
cio do profeta ou do enviado de Deus. É o caso de Gideão em Jz 6.17, onde 
ele solicita um sinal que confirme sua vocação - não de que sua tarefa será 
cumprida. Esse sinal deveria ser um evento grande ou um prodígio verifi­
cável no mesmo instante. Uma leitura cuidadosa de Êx 3.12 mostra que a 
narrativa não coincide com nenhum dos dois modelos. O mais provável é 
que estejamos diante de um texto que perdeu alguns elementos durante o 
processo de redação. Essa hipótese levou a sugerir que o sinal teria sido a 
própria sarça ardente; as palavras do texto que deixavam isso claro se te- 
riam perdido.^» Contudo, essa hipótese não explica o atual texto, que teve e 
tem sentido por si mesmo.
Se for esse o caso, faz-se necessária uma abordagem mais hermenêu­
tica do problema: perguntamo-nos como o texto foi lido por aqueles que lhe 
deram a forma final. Do ponto de vista narrativo e gramatical, não restam 
dúvidas de que o texto afirma que o retorno do povo a esse lugar para ado­
rar a Deus será o sinal que confirma o chamado. Mas esse mesmo contexto 
narrativo (3.1-4.17) fornece outros sinais da veracidade do chamado e da 
missão para a qual Moisés é convocado (basicamente os prodígios de 4.1-9). 
Portanto esse sinal não é o único; não se pode pedir que ele preencha todos 
os requisitos de um modelo. Assim, 12b pode ser interpretado não como 
um sinal para confirmar a vocação ou a missão de Moisés, mas como anún­
cio do que acontecerã como consequência desse chamado. Devemos ter em 
mente que essa é a primeira vez que se menciona que os israelitas adorarão 
Deus nesse lugar. Trata-se de uma novidade da narrativa, e por isso não se 
deve supor que Moisés soubesse que isso fazia parte de sua tarefa. Deus lhe 
está dizendo: “Se aceitares, acontecerá isso”. Também merece ser conside­
rado que essa frase deve ser lida no contexto da promessa dada (“eu estarei 
contigo”) - uma afirmação válida para todo o processo para o qual é chama- 
do.35 A presença de Deus é o sinal visível diáirio; a chegada ao monte Horebe 
com o povo será consequência e confirmaçãodessa presença.
Aspectos teológicos: O nome de Deus em Êx 3.13-14
A segunda objeção de Moisés (v. 13-15) é a pergunta pela identidade 
de Deus. É um erro falar do “nome de Deus”, uma vez que não somente
‘ Essa é a conclusão a que chega B. CHILDS [The Book ofExodus, p. 60]. De modo semelhan­
te, também Rashi (3,2ss), que entende que, assim como a sarça que arde e não se consome 
expressa o cumprimento da missão de Deus, também Moisés cumprirá a sua missão sem 
sofrer danos.
' Cf. HOUTMAN, C. Exodus 1, p. 304-305.
66
0 nome próprio (Javé) já era conhecido desde os relatos de Gênesis, mas 
também a resposta de Deus no v. 14 não inclui seu nome. Já no iníeio afir­
mamos que a frase “eu sou o que sou” não é um nome, não podendo ser, 
portanto, resposta a essa pergunta."» Por outro lado, o nome de Deus já é 
conhecido, pois é mencionado em Êx 3.2,4,7, nesta mesma unidade, de 
modo que a pergunta fiea sem sentido. Por tudo isso, é difícil aceitar que se 
trate de uma simples pergunta pelo nome e uma resposta ã mesma. Ainda 
há outras incoerências, como, por exemplo, a tradução “eu sou me enviou a 
vós” (v. 14b) não tem sentido ou a afirmação do v. 15 de que o nome eterno é 
Javé, o que contradiz flagrantemente o enunciado no v. 14."" Uma explicação 
possivel é que a expressão 'eheyeh asher 'eheyehé, na realidade, uma forma 
de evitar de revelar o nome. Como se Deus respondesse a Moisés que não faz 
parte de sua função conhecer o nome de Deus. “Eu sou o que sou” significa­
ria, então, algo como: “eu sou quem tiver vontade de ser e a ti não cabe fazer 
essa pergunta”. Deve-se levar a sério essa opção, porque ela explica de for­
ma simples a aparente singularidade do texto e da resposta. Entretanto, ela 
apresenta um problema básico: não corresponde ao contexto de 3.1-4.17, 
no qual Moisés coloca perguntas e Deus responde-as pacientemente. Dian­
te das perguntas de Moisés, Deus não fica ofendido por esse não aceitar, de 
forma submissa, a sua palavra, mas ele se evidencia, pelo contrário, como 
um Deus interessado em revelar seus planos e seu próprio caráter. Todo o 
texto é uma teofania espontânea de Deus, que tem por objetivo manifestar- 
se e anunciar o seu plano em favor dos escravos. Uma resposta negativa no 
V. 14 estaria fora de lugar no todo do contexto literário em que o versículo 
se encontra e pressuporia uma teologia distinta da que nos apresenta esta 
unidade.Deus revela-se através das perguntas de Moisés e não apesar de­
las. Poder-se-iam mencionar ainda outras anomalias. Em nossa opinião, o 
problema consiste em tentar interpretar o texto do v. 14 sem ter presente o 
contexto narrativo em que se encontra. Nossa argumentação é a que segue.
Comeeemos a considerar a relação com o v. 12. Nesse versículo, a per­
gunta “quem sou eu ou que autoridade tenho eu para ir ao faraó?” recebe a 
resposta: “eu estarei contigo” (hebraico 'eheyeh Hmak). Note-se que o verbo
Contudo, T.C.Vriezen aponta para o fato de que idem est idem é familiar ao Antigo Testa­
mento; por exemplo, Êx 16.23: “o que quiseres cozer, cozei-o”; 2Sm 15.20; “irei para onde 
for”; ISm 23.13; “andarem de um lugar a outro”; 2Rs 8.1: “vai viver onde puderes”. Em todos 
esses casos, o texto hebraico tem uma repetição de palavras semelhante à de Êx 3.14 [VRIE- 
ZEN, T.C. 'eheyeh asher 'eheyeh. In: BAUMGARTNER et al. (eds.) Festschrift Alfred Bertholet. 
Tübingen, 1950. p. 498-552].
H. Kosmala afirma que, nesse caso, “eu sou” significa que Moisés não deve falar de Deus, em 
sua ausência, na terceira pessoa, como outros o fazem, pois seria uma forma de transformá- 
lo em coisa [KOSMALA, H. The Name of the Lord (YHWH and HU). In: IDEM. Studies, Bssays 
and Reviews I. Leiden, 1978. p. 1-4]. C. HOUTMAN [Exodus I, p. 94-100] oferece a mais com­
pleta apresentação de hipóteses e alternativas.
T. Fretheim interpreta essa passagem de forma maravilhosa ao dizer: “As perguntas hu­
manas conduzem a uma maior revelação de Deus. Deus não se revela somente por sua 
divina iniciativa, mas na interação com as perguntas que vêm dos seres humanos”. Ao final, 
conclui; “A revelação de Deus está, portanto, vinculada diretamente ã situação humana” 
[FRETHEIM, T. Exodus, p. 62[.
67
é exatamente o mesmo do v. 14 ( ’eheyeh asher ’eheyeh ,̂ inclusive com a 
mesma forma verbal. Por que não considerar a tradução do v. 12 também 
para o v. 14? Do ponto de vista hermenêutico, essa afirmação é fundamen­
tal para o restante do relato. Ela deve, portanto, também ser significativa 
para descrever o Deus que se revela nessa cena. A expressão 'eheyeh asher 
’eheyeh seria, então, uma radicalização daquela outra, como a dizer: “eu 
estarei contigo sempre”.
No V. 15, estamos diante de um outro problema, já comentado breve­
mente. Nesse versículo, efetivamente se menciona o nome próprio de Deus 
(Javé), que não é o mesmo - nem poderia ser - do que o suposto nome do 
V. 14. Se o V. 14 tivesse revelado o nome de Deus, estaríamos agora diante 
de um nome novo, que deveria substituir o anterior, um nome utilizado des­
de o início de Gênesis. Mas esse não é o caso, pois, no restante da narrativa, 
se continua utilizando o nome próprio de Deus, tal como antes.
No contexto dessas reflexões, propomos que tanto a pergunta do v. 13 
como a resposta do v. 14 não se referem ao nome próprio de Deus, mas à 
sua identidade, àquilo que caracteriza esse Deus.'' ̂Nos tempos bíblicos, os 
nomes próprios expressavam a identidade mais profunda da pessoa e, de 
alguma forma, determinavam seu destino. Ao dar nome a um filho, assina­
lava-se um destino, mesmo que, em muitos casos, isso não se confirmas­
se posteriormente.Não é de estranhar que perguntar pelo nome também 
podia significar perguntar pela natureza e identidade de Deus. Por isso é 
melhor traduzir a resposta em consonância com a teologia do trecho e o 
contexto literário em que se insere. Propomos traduzir “eu sou aquele que 
estará”, ou seja, aquele que acompanha, que não te abandona.'*® Nesse caso, 
fica mais compreensível a relação com o v. 14b: “aquele que está” enviou- 
me a vós. Manifesta-se um Deus vivo, atento a seu povo, que não abandona 
a tarefa, que acompanha aos que chama e que será um apoio para Moisés. 
Essa descrição de Deus afina-se com todo o contexto e é compatível com o 
sinal do V. 12 e também com o nome próprio dado no v. 15.
Cabe uma reflexão final sobre um aspecto que está indiretamente re­
lacionado ao tema. Em muitas traduções modernas, coloca-se “o Senhor” 
quando no texto hebraico se encontra Javé. Elas estão em continuidade 
com a tradição da LXX e da Vulgata, que, por sua vez, seguem a tradição ju­
daica de não mencionar o nome de Deus, substituindo-o por Adonay (“meu 
Senhor”). A substituição de Javé por Senhor traz à tona vários problemas 
hermenêuticos. A forma “Senhor” pode ser criticada a partir da perspectiva 
feminista, já que acentua uma versão masculina de Deus; a partir da pers­
pectiva cultural, porque representa um ranço de estruturas sociais em que o 
“senhor” era o proprietário feudal que dominava os súditos; a partir da pers-
■*® Cf. Sl 23.3 “[...] guia-me por veredas da justiça, por causa (hebraico lema’an) do seu nome”;
aqui o nome de Deus é interpretado como significando “justiça”.
'*'* Cf. Eva (Gn 3.20), Abraão (Gn 17.5), Moisés (Êx 2.10), os filhos de Oseias (Os 1.4,5,8) etc.
'*5 Essa é a interpretação de S. Croatto; para detalhes, cf. seu artigo: CROATTO, S. Yavé, el Dios 
de la “presencia” salvífica: Ex 3:14. Revue Biblique 43, p. 153-163, 1981.
68
pectiva política, porque distancia Deus dos humildes ao identificá-lo com 
uma pessoa rica; e a partir da perspectiva teológica, porque se nega ao Deus 
da Bíblia um nome próprio para designá-lo com um substantivo comum. A 
origem dessa tradição parece estar vinculada a certos círculos piedosos ju­
daicos dos séculos IV-III a.C., que, por temor de mencioneir o nome de Deus, 
optaram em vão por erradicá-lo de seu vocabulário. Ainda que essa intenção 
seja digna de louvor, essa não é, a nosso ver, a única - provavelmentenem 
a melhor — maneira de evitar o uso indevido de seu nome. Em todo caso, o 
preço a ser pago por essa delicadeza tem sido muito alto.
A tradução castelhana de Casiodoro de Reina, do século XVI, usou o 
nome Jeová, uma forma que surge da simples transliteração do texto mas- 
sorético. Embora saibamos hoje que essa forma não corresponde à pronún­
cia original do nome, devemos respeitar a intenção do tradutor, que não 
titubeou em utilizar o que, em sua opinião, era o nome próprio do Deus 
bíblico. A pesquisa moderna chegou à conclusão de que a forma Javé (tam­
bém escrita Yahweh) é a que mais se aproxima da pronúncia original, que 
hoje está perdida. Consideramos que utilizar o nome próprio de Deus é fazer 
justiça à sua palavra, ainda que o façamos na forma reconstituída do nome 
original.'"*
c) O projeto de libertação (3.16-22)
16) Vai, reúne os anciãos de Israel e dize-lhes: “Javé, o Deus de vossos 
pais, o Deus de Abraão, Isaque e Jacó me apareceu e me disse: Visitei-vos e 
vi o que vos fazem no Egito.
17) E disse: Tirar-vos-ei da aflição do Egito para a terra do cananeu, do 
heteu, do amorreu, do ferezeu, do heveu e do jebuseu, a uma terra que mana 
leite e mel”.
18) Eles ouvirão a tua voz; tu irás com os anciãos de Israel ao rei do 
Egito e lhe dirás: “Javé, o Deus dos hebreus, se manifestou a nós; agora, por 
favor, deixa-nos ir três dias de caminho pelo deserto para oferecer sacrifícios 
a Javé, nosso Deus”.
19) Eu sei que o rei do Egito não vos deixará ir a não ser pela força.
20) Mas eu estenderei a minha mão e ferirei o Egito com todos os prodí­
gios que farei no país, e ele vos deixará ir.
21) Eu farei com que esse povo ache graça aos olhos dos egípcios, para 
que, quando sairdes, não seja de mãos vazias,
22) mas cada mulher pedirá à sua vizinha e ao hóspede de sua casa 
objetos de prata, objetos de ouro e vestidos, os quais poreis em vossos filhos 
e vossas filhas. Assim despojareis os egípcios.
' Da imensa bibliografia sobre o nome de Deus destacamos dois artigos, que apresentam, 
de maneira atualizada, a situação com indicação bibliográfica: KNAUF, E.A. Yahwe. Vetus 
Testamentum 34, 1984, p. 467-472, e o artigo coletivo de FREEDMAN, D.N.; 0 ’C0NN0R, M.; 
RINGGREN, H. Yahwe. In: BOTTERWECK, G.; RINGGREN, H.; FABRY, H. (eds.) Theological 
Dictionary ofthe Old Testament. Grand Rapids, 1974.
69
Introdução ao texto
Do ponto de vista formal, esse texto encontra-se no centro da narra­
tiva do diálogo entre Deus e Moisés (3.1-4.17). É, portanto, um texto privi­
legiado, que merece atenção especial. Seu conteúdo traz uma ampliação do 
que foi dito em 3.7-10. Acrescentam-se informações sobre o projeto de Deus 
e, ao mesmo tempo, se esboça a estratégia a ser seguida. Nesse último tex­
to, Deus dera-se a conhecer e manifestara estar atento aos sofrimentos de 
seu povo no Egito. Agora explica a Moisés como terã que agir para realizar 
seu propósito. Note-se que se trata de um projeto de Deus, que ele compar­
tilha com os humanos. Na primeira vez em que foi apresentado o projeto, 
poder-se-ia ter a impressão de que Deus faria tudo. Agora fica claro que sua 
ação se realizará através daquelas pessoas que ele chama. A estratégia é a 
seguinte: Moisés não deve comparecer sozinho diante do faraó. Por isso ele 
deve exphcar, em primeiro lugar, o plano aos chefes dos israelitas, repetin­
do o que já conhecemos de 3.7-10. Depois disso, como porta-voz de todos, 
Moisés pedirá ao faraó que os deixe sair para adorar seu Deus no deserto. 
Nesse momento. Deus antecipa que o faraó não os deixará sair; será ne­
cessário que aconteçam prodígios e que os egípcios sejam feridos para que 
deixem parti-los. Por fim, num versículo enigmático por diversas razões, 
acrescenta-se que sairão enriquecidos porque os egípcios lhes entregarão 
joias e vestes.
Esse parágrafo realizou um salto narrativo bem grande. Ele nos infor­
ma como Deus levará adiante o projeto de libertação apresentado no início. 
É difícil saber em que tipo de sacrifício se pensa no v. 18. Não há preceden­
tes desse tipo de adoração, além dos casos quase pessoais narrados em Gê- 
nesis.^^Mas esses não servem de exemplo para essa nova situação, porque, 
desde Êx 1, se insiste em que esse é um novo período da história e que as 
gerações passadas morreram. Tampouco sabemos de srmtuários no deser­
to - nem da literatura antiga tampouco da arqueologia -, para os quais os 
povos da região peregrinavam. Por outro lado, quando efetivamente saíram 
do Egito, demoraram três meses (19.1) e não três dias para chegar ao Sinai. 
Também não se menciona que ali foram oferecidos sacrifícios, mas se fala da 
outorga da Lei. Essa diferença entre o anúncio do projeto e a efetiva realiza­
ção do mesmo parece não perturbar o redator, que, em nenhum momento, 
busca compatibilizar ambas as narrativas.
A menção de que o Egito será ferido pelos prodígios de Deus é algo 
novo no texto. Nada previa que isso aconteceria. Mas Deus o anuncia como 
algo inevitável e decidido. Os prodígios terão a finalidade de convencer o fa­
raó a deixar os israelitas saírem e, além disso, convencer os israelitas de que 
devem aceitar a proposta de seu Deus. Eles serão uma comprovação para 
ambos, ainda que com significados diferentes.
Cf. Gn 12.8; 13.18; 26.25 etc.
70
Análise detalhada
16-17 ► Deus diz a Moisés o que deve anunciar aos anciãos de Israel.
Trata-se basicamente do conteúdo já revelado nos v. 7-10. O termo “an­
ciãos” (zeqenim) refere-se a um papel social e não deve ser vinculado a uma 
determinada idade. Era empregado para designar as pessoas que tinham 
propriedade e eram economicamente independentes. Por essa razão, eram 
consideradas responsáveis pela vida social do povo. Hoje as chamaríamos 
de chefes ou dirigentes. Antes da instituição da monarquia em Israel, os an­
ciãos tinham um papel importante como representantes do povo e adminis­
tradores da justiça (ef. Dt 19.1-2; 21.1-2 etc.). Mas há muitas dúvidas se, na 
época do êxodo, os anciãos já constituíam uma instituição estabelecida, já 
que essa pressupõe um grau de desenvolvimento cultural e social dos israe­
litas bem maior do que o refletido nos textos que retratam essa época. Cos­
tuma-se dizer, com justa razão, que, nesse texto, o redator se permitiu uma 
retroprojeção ao passado de uma estrutura social bem posterior. A menção 
de uma instituição similar tanto no Egito (Gn 50.7) como em Moabe (Nm 
22.7) corrobora essa hipótese; o autor parece transferir o modelo israelita 
ás demais nações. No livro do Êxodo, parece que os anciãos não exerceram 
uma função social significativa. Formam antes um grupo que, em ocasiões 
especiais, é convocado por Moisés ou Arão para servir de testemunha de um 
acontecimento relevante: são os primeiros a tomar conhecimento da missão 
de Moisés (Êx 4.29), recebem a instrução para celebrar a Páscoa (12.21), 
presenciam o milagre da água que brota da rocha (17.6), comem junto com 
o sogro de Moisés (18.12). Não consta que tenham tido responsabilidades 
sociais na condução do povo.
18 ► Deus afirma que os anciaos ouvirão a mensagem de Moisés, o que,
no contexto, equivale a dizer que o aceitarão, reconhecendo nele um en­
viado de Deus. Descreve-se, então, de forma menos dramática a missão de 
Moisés. Enquanto, no v. 10, ele recebera a incumbência de ir ã presença do 
faraó, agora a instrução é que os anciãos o acompanhem.
Moisés apresenta Deus ao faraó de modo diferente do que o havia 
apresentado aos anciãos. Diante do faraó, ele o denomina “o Deus dos he- 
breus”; a expressão adapta-se ã imagem que o faraó tem das divindades. Na 
visão egípcia - compartilhada por muitos povos da antiguidade -, entendia- 
se que cada povo possuía um ou mais Deuses, que lhe eram próprios e in­
transferíveis. Geralmente, esses Deuses se vinculavam ao território no qual 
habitava o respectivo povo; eram, portanto. Deuses “do lugar”, que não se 
transferiam juntamente com seu povo. Por isso, ao designá-lo Deus “dos 
hebreus”, Moisés também está dizendo ao rei que é impossível adorar esseDeus em território que não lhe pertença. Há uma formulação lógica nas 
palavras que Moisés deve repetir: o faraó saberá que aquilo que lhe pedem 
é correto e necessário. Se antes foi diferente, isso se deve ao fato de que o
71
Deus dos hebreus ainda não se havia revelado. Diante dessa nova situação, 
o faraó saberá, em seu íntimo, que aquilo que lhe solicitam é algo razoável.
A partir das fontes de que dispomos, nada conhecemos de um “cami­
nho do deserto”. É provável que se deva pensar num “caminho na direção 
do deserto” ou “através do deserto”. Mas com isso ainda não se explica por 
que se pedem três dias se o caminho pelo deserto que leva ao Horebe é de 
três meses, como se menciona em 19.1. Pensou-se que se tratasse de uma 
forma de pedir o mínimo para testar a boa vontade do faraó; se ele aceitasse 
esse pedido, poder-se-ia insistir para conseguir mais tempo. Essa reflexão 
entende que o texto é uma crônica narrativa e não um relato querigmáti- 
co. Nossa proposta é considerar esse pedido dentro do contexto literário da 
estratégia de libertação, da qual faz parte (3.8,10,17). Pede-se que o faraó 
os deixe sair por três dias, pois esse deveria ser um tempo breve e aceitável 
para o rei. Mas o texto acrescenta, no versículo seguinte, que o faraó rejei­
tará o pedido e colocará em evidência sua atitude negativa, que não conce­
derá nenhum favor, por menor que seja, indicando, assim, a necessidade 
de recorrer ã força da atuação divina para a realização do pedido. Pode-se 
levantar a hipótese de que o rei suspeitaria que, se os deixasse ir, não mais 
voltariam, mas isso, em todo caso, ainda não se encontra no texto. Do ponto 
de vista narrativo, essa hipótese ainda não pode ser considerada, já que o 
texto se apresenta como instrução a Moisés e não como narrativa de eventos 
que efetivamente ocorreram. Trata-se aqui, portanto, de seguir os passos da 
instrução até que o povo de Israel testemunhe a dureza do coração do faraó 
e possa experimentar a verdadeira vontade de Deus não de liberá-los por 
três dias, mas libertá-los de forma definitiva.
Também não está claro de que tipo de sacrifícios se trata. Os sacrifícios 
sobre os quais se legislará mais adiante ainda não estavam em vigor naquele 
momento. Do ponto de vista narrativo, ainda não haviam sido instituídos. 
Somente por ocasião da teofania no Sinai é que serão descritos (29.38-46; 
Lv 23; Nm 28). As histórias de Gênesis relatam a construção de altares para 
adoração, mas não mencionam sacrifícios (Gn 12.8; 13.18; 28.18, onde a 
unção com azeite não parece ser uma oferenda, mas um rito de purificação, 
ainda que o v. 22 já mencione o dízimo, provavelmente um dado inserido 
posteriormente). Essa incoerência deve ser entendida no contexto do pro­
cesso redacional do relato do Pentateuco. A forma final do texto foi redigida 
numa época em que os sacrifícios eram o meio natural de comunicar-se com 
Deus e de agradecer-lhe por sua bênção e proteção. Por isso não se deve es­
tranhar que esse detalhe foi introduzido no texto por influência da posterior 
cultura religiosa do período do primeiro ou segundo templos.
19-20 ► Tanto o conhecimento de Deus de que o faraó não os deixará
sair como o recurso a prodígios (hebraico nifL’eot) para finalmente obrigar o 
faraó a deixá-los partir são um passo novo na revelação de Deus. A expres­
são “estender a mão” alude ao poder e ã força de Deus. O termo nifla’ot (da 
raiz pala’, ser maravilhoso, surpreendente, referindo-se a algo inesperado 
ou extraordinéirio) é abundante nos Salmos; encontramo-lo novamente em
72
Êx 34.10, quando Deus anuncia que irá à frente do povo para que esse pos­
sa entrar na terra prometida e ali habitar. No presente texto, o termo é uma 
alusão às pragas que precederão a saída do Egito e com as quais pressiona­
rá o faraó para que deixe o povo sair. A nossa tendência de entendê-las como 
milagres deturpa o sentido do texto hebraico. Esse coloca a ênfase naquilo 
que Deus faz e que ninguém espera; ê uma ação que deslumbra os que a 
presenciam, mas que não necessariamente pressupõe a ruptura das leis 
naturais.'*® Levando isso em consideração, ê compreensível que a primeira 
coisa que se diz a Moisés é que o processo de libertação será lento e penoso, 
mas com a ajuda de Deus ele estã destinado a ser levado adiante. Não se 
promete nada além da atuação decidida de Deus para que sua decisão seja 
cumprida.
21 ► Achar graça (hebraico ben) aos olhos dos egípcios é uma atitude
difícil de entender. Por que os egípcios veriam com bons olhos a fuga dos 
israelitas? Hã várias formas de entender essa expressão. Apresentamos as 
três mais significativas. A primeira é pressupor que a expressão “os egíp­
cios” não se refere a todos eles, mas aos setores desfavorecidos, ou seja, 
aos pobres e explorados pelo mesmo faraó. Esses se solidarizam com os 
escravos em sua façanha libertadora e estariam dispostos a ajudã-los. A 
observação de que juntamente com os israelitas partiram outras pessoas 
(Êx 12.38) - egípcios pobres? - pode reforçar essa interpretação. Entretanto, 
é difícil compatibilizá-la com o versículo seguinte, no qual se diz que rece­
berão ouro e prata dos egípcios - isso seria improvável se fossem pobres e 
marginalizados - e que ao mesmo tempo os despojarão, o que não pode ser 
entendido como uma troca de favores entre setores solidários.
A segunda alternativa é entender a frase “achar graça” não em termos 
éticos, mas práticos. Seria uma forma de dizer que, devido aos prodígios rea­
lizados por Deus diante deles, os egípcios querem que os israelitas partam, 
vão alegrar-se com sua saída, irão até ajudã-los para que saiam o quanto 
antes, colaborarão com eles doando até parte de seus bens."® Esse modo de 
entender a passagem é compatível com Êx 12.31, onde o faraó exausto con­
vida os israelitas a partir e permite que levem seus bens. Essa também é a 
visão de Êx 12.35-36; mas esse último texto é uma forma de harmonizar os 
dados com 3.21. Não é por isso que se deve descartá-lo, mas a espontânea 
generosidade dos egípcios continua sem explicação.
"® Cf. o artigo pala’ no Theological Lexikon of the Old Testament, V. II, no qual se destaca que o 
AT não define o maravilhoso em termos de violação das leis naturais. Também o Theological 
Dictionary o f the Old Testament, V. XI, p. 540, descreve as pragas como atos de Deus que 
são humanamente inexplicáveis, mas que são experimentados como eventos extremamente 
eficazes.
"® J. Pixley entende que a frase “achar graça” oculta o motivo da entrega dos bens. Esse motivo 
seria “uma combinação de respeito religioso por aqueles que farão uma peregrinação [...] e 
temor pelas medidas aterradoras de Deus e dos hebreus”, que afetaram tanto o rei como a 
população egípcia [cf. PIXLEY, J. Êxodo, una lectura evangélica y popular, p. 52].
73
A terceira é a mais cinica das interpretações. O texto estaria dizendo 
que Deus confundirá os egípcios, de modo que eles ajudarão os israelitas 
sem saber que seu objetivo é fugir de forma definitiva. Segundo essa leitura, 
os egípcios poderíam solidarizar-se com os que buscam adorar a Deus e ver 
com clemência o pedido de afastamento de três dias para realizar o desejo. 
Para temto colaborariam com donativos, deixá-los-iam partir à espera de seu 
retorno. Quando, mais tarde, compreenderam o que realmente ocorrera, se­
ria tarde para recuperar os bens entregues. O cinismo reside no fato de que 
o mentor de toda essa mentira seria o próprio Deus. Isso fez com que muitos 
comentaristas procurassem uma resposta alternativa. O versículo seguinte 
continua com o mesmo problema.
22 ► Este ê um desses versículos estranhos. O que aqui se conta sur­
preendeu gerações de comentaristas; e não temos a pretensão de encerrar 
as refiexões seculares. Entretanto, cremos que é possível superar o dilema 
em que se encontra a interpretação do texto. Em primeiro lugar, chama a 
atenção que os sujeitos do despojamento dos egípcios são as mulheres. O 
Pentateuco Samaritano percebe o problema e afirma; “Cadahomem pedirá 
ao seu amigo e cada mulher ã sua amiga [...]”. Mas não devemos supor que, 
nesse caso, o texto samaritano seja uma recensão mais confiável do que o 
texto massorético. Em segundo lugar, ê surpreendente que os israelitas con­
vivessem com os egípcios na mesma vizinhança. Ainda que se admita que 
o período em que Israel esteve no Egito tenha sido longo e que pudesse ter 
havido miscigenação através de matrimônios mistos, a narrativa como um 
todo dã a entender que a comunidade hebraica estava unida e coesa e que a 
relação com os egípcios não era cotidiana nem de igual para igual.
Ainda mais surpreendente é ouvir que havia mulheres egípcias viven­
do na casa de uma israelita. Essa informação levou a diversas especulações, 
tais como: trata-se de mulheres israelitas que trabalhavam e viviam nas 
casas de egípcias. É verdade, o texto diz algo diferente; mas a formulação 
do texto poderia ser explicada a partir do lugar onde se encontra o redator. 
A narrativa é construída a partir da mulher israelita que vivia nessa casa, 
podendo-se dizer, então, que era a sua casa, mesmo que não lhe pertences­
se, e que a verdadeira dona da casa seria hóspede. Mas essa possibilidade ê 
muito complexa e enredada, de modo que dificilmente poderá ser adotada. 
Também não se entende qual é o sentido de mencionar as vestes entregues 
pelos egípcios, que seriam colocadas nos filhos e nas filhas dos israelitas. 
Pelo menos para a gente simples daquela época, a vestimenta era pouco 
significativa e bastante simples. Não se entende qual teria sido a utilidade 
de vestir os filhos dessa maneira. Observou-se que, desse modo, os jovens 
israelitas vestir-se-iam à moda egípcia como uma demonstração de triunfo
^ A décima praga, entretanto, diferentemente das outras, pressupõe que egípcios e israelitas 
viviam na mesma vizinhança (cf. 12.12).
74
diante dos opressores. Mas não é provável que entre os pobres de ambos os 
lados houvesse indumentária diferente.
Porém, bem mais do que essas considerações, foi a questão ética que 
mexeu com a sensibilidade de muitas pessoas ao longo dos séculos. Pois, no 
texto, Deus manda despojar os egípcios de um modo dificilmente compatível 
com uma atitude direta e honesta. Tudo indica que ordena os israelitas a 
mentir e enganar os seus vizinhos.^* Já a partir dos primeiros séculos houve 
tentativas de explicar esse dado. Alguns afirmaram que, uma vez que todos 
os bens pertencem a Deus, tirá-los dos egípcios não implicava nenhum deli­
to moral. Outros entendiam que, depois das pragas, os egípcios sabiam que 
os israelitas partiríam definitivamente e que, ao entregarem seus pertences, 
fizeram-no de forma consciente, não tendo sido, portanto, vítimas de em­
buste. Outros supõem que os israelitas pediram emprestados os objetos de 
ouro e prata e as vestes em um ambiente de paz, mas, com o desenrolar dos 
acontecimentos, a situação transformou-se radicalmente num clima hostil e 
bélico, que impediu a devolução; além disso, de acordo com as leis de guer­
ra, os objetos não mais precisariam ser devolvidos.
Essas são algumas tentativas apresentadas por diversos autores. A 
nossa proposta é esta que segue. Nas hipóteses acima, busca-se justificar 
Deus de ter supostamente induzido o povo a mentir. Em nossa opinião, por 
mais esforços interpretativos que se façam, não há como fugir do fato de 
que, de acordo com a narrativa, Moisés e os israelitas estão, desde o iní­
cio, conscientes de que estão sendo convocados para sair definitivamente 
da terra da escravidão. Além disso, o v. 22 fala em despojar os egípcios, 
de forma que não restam dúvidas de que aqui se trata de causar-lhes um 
prejuízo econômico através de um ardil. A dificuldade do texto é objetiva; 
mas também se pode abordar o texto de outra perspectiva. É difícil enca­
rar o problema a partir de um ângulo estritamente moral, que, ademais, 
é estranho à narrativa. O texto não pretende fazer considerações morais 
nem estabelecer padrões de comportamento, como fará, mais adiante, com 
os mandamentos e o chamado Código da Aliança (Êx 20-23). Não se trata 
de um texto legal, mas de uma narrativa que tem o objetivo de mostrar o 
alcance do apoio de Deus a seu povo e o tamanho da bênção com que aben­
çoará os israelitas nesse grande evento. Nesse contexto, praticamente não 
há limites para exaltar as dádivas de Deus. Os inimigos serão enganados, 
os pobres vestirão suas roupas, os famintos tomarão posse de seu ouro e 
sua prata. Os que foram despojados até a morte agora despojarão aqueles 
que os trataram com violência. Aos nossos ouvidos, isso pode soar como mo­
ralmente reprovável, por ser vingativo e cruel, mas é assim que se expressa 
boa parte do antigo pensamento semita e assim ficou registrado também em
N. Sarna destaca que a exegese judaica (Jubileus 48.18; Filo de Alexandria e o Talmude) 
considera esse fato uma merecida compensação pelos anos de trabalhos forçados [cf. SARNA, 
N. Exodus. The Traditional Hebrew Text with the New Jewish Publication Society Translation, 
1991, p. 19].
75
nosso texto bíblico.“ A ação bondosa de Deus para com seu povo podia ser 
constatada em feitos como esse. Talvez se deva acrescentar que esse tipo de 
acontecimento dificilmente é histórico; sua função é mais literária do que 
sociológica. Expressa os desejos naturais de um povo que passou por lon­
ga humilhação: ver seus opressores experimentarem a mesma angústia da 
qual eles próprios padeceram.
d) Não crerão em mim (4.1-9)
1) Respondeu Moisés e disse: Eles não crerão em mim nem ouinrão mi­
nha voz e dirão: Javé não te apareceu.
2) Perguntou-lhe Javé: Que é isso que tens na mão? E respondeu: Um 
bastão.
3) Lança-o ao solo [disse Javé]! Ele o lançou ao solo e se transformou em 
serpente; e Moisés fugia dela.
4) Javé disse a Moisés: Estende tua mão e pega-a pela cauda! Ele es­
tendeu sua mão e a pegou, e voltou a ser um bastão em sua mão.
5) Por isso crerão que te apareceu Javé, o Deus dos teus pais, o Deus de 
Abraão, o Deus de Isaque e o Deus de Jacó.
6) E ainda lhe disse Javé: Mete a tua mão no peito. Ele meteu a mão 
em seu peito e, quando a tirou, mu que sua mão estava leprosa como a neve.
7) Disse-lhe Javé: Mete de novo a mão em teu peito! Ele meteu de novo 
a mão em seu peito e, ao tirá-la do peito, mu que estava como o resto de sua 
carne.
8) Se não te crerem nem escutarem a voz do primeiro sinal, crerão na 
voz do último sinal.
9) E se ainda não crerem nesses dois sinais nem outnrem a tua voz, to­
marás das águas do rio e as derramarás na terra; e as águas que tirares do 
rio tomar-se-ão sangue sobre a terra.
Introdução ao texto
Após a apresentação do projeto de Deus nos versículos precedentes, 
Moisés insiste com suas perguntas e desculpas. Dessa vez, elas não têm a 
ver com sua capacidade pessoal, mas com a dificuldade que ele imagina que 
os anciãos de seu povo tenham em crer nele e aceitar sua mensagem. Para 
esse caso, Deus mostra a Moisés dois sinais e anuncia um terceiro. A dife­
rença entre o primeiro e o segundo sinais é que nesse último o próprio corpo 
de Moisés é tomado por uma doença que tornava a pessoa impura. Embora, 
dentro do fluxo narrativo, as leis de pureza sejam posteriores, o simples fato
Eis alguns exemplos; SI 137.8-9; 139.21-22; Ob 8-9; Na 3.5-7.
76
de a lepra cobrir sua pele já aterrorizava qualquer pessoa.“ Esse último si­
nal era tão poderoso justamente porque afetava seu próprio coipo.
O texto acrescenta antecipadamente uma das pragas para o caso de os 
anciãos não se convencerem. Apesar de esses sinais serem destinados aos 
israelitas, no desenrolar dos acontecimentos eles não serão utilizados senão 
diante do faraó e somente no caso da transformação do bastão em serpente 
(7.8-13). Ainda assim, as diferenças entre ambas as passagens são notáveis:
0 bastão pertencerá a Arão e terá a função de convencer o faraó e não os 
anciãos israelitas. Esse fato reflete uma complexa história da redação, que 
combina diversas fontes que transmitem uma tradição similar.^ Contudo, é 
importantedestacar a cuidadosa escolha dos sinais e o lugar preciso em que 
são apresentados. Os três sinais colocam em movimento forças vinculadas à 
vida e ã morte. A serpente, a lepra e o sangue eram considerados, cada qual 
por motivos diferentes, realidades conectadas com a divindade e, portanto, 
com poderes sobre a vida. Através desses elementos, Moisés é apresentado 
como uma pessoa a quem Deus concedeu capacidades excepcionais. O pri­
meiro sinal tem nexo simbólico com a coroa egípcia (cf. v. 2-5); o segundo 
está relacionado a valores muito profundos a respeito de alguém ser ou não 
apto para ser aceito por Deus; o terceiro estabelecerá uma conexão com a 
primeira praga. Além disso, os sinais têm a função de antecipar narrativa­
mente a discussão com o faraó.
Análise detalhada
1 ► A terceira objeção de Moisés inicia com palavras que desafiam aqui­
lo que Deus havia afirmado. Em 3.18, é anunciado a ele que os anciãos 
“ouvirão tua voz”; mas aqui Moisés nega essa possibilidade. Houve esforços 
para interpretar o texto no sentido de evitar a conclusão de que Moisés esta­
ria contradizendo as palavras de Deus. A nosso ver, no entanto, essa atitude 
mostra quão humana e compreensiva é a atitude de Deus de acordo com a 
descrição do redator.
2-4 ► O sinal (hebraico ’ot, que também significa “signo” ou “maravilha”;
cf. 3.12) de transformar o bastão de Moisés em serpente tem um forte valor 
simbólico. A monarquia egípcia tinha como símbolos principais o bastão real 
e a serpente. Em gravuras e desenhos antigos, o faraó costuma ser repre­
sentado seguraindo um bastão na mão e usando um barrete adornado com 
uma serpente. Esse animal é expressão de mistério e está, simultaneamen­
te, relacionado a determinados Deuses, além de aterrorizar as pessoas por
Lv 13-14; note-se que o espaço maior na legislação sobre pureza é dedicado às doenças de 
pele; é mais do que o dobro do espaço dedicado à mulher parturiente (Lv 12.1-8) ou à impu­
reza procedente da atividade sexual (Lv 15).
M. NOTH [Exodus. London, 1962. p. 45-46] reconhece a diversidade de fontes, mas não ana­
lisa o contexto literário dessa passagem.
77
causa de sua mordida mortal. Nesse caso, o símbolo significa que Moisés 
domina, com o auxílio de Deus, o bastão e a serpente. O objetivo é ressaltar 
a superioridade do Deus de Israel sobre os poderes egípcios, representados 
por esses símbolos, e não tanto o aspecto milagroso, apesar de esse ser o 
aspecto que mais nos impressiona hoje. O fato de o sinal ser apresentado, 
a seguir, ao faraó e não diante dos anciãos é indício de que sua força reside 
no impacto que causa na corte egípcia. Não se deve ver aqui uma alusão ã 
prática de encantamento de serpentes, uma vez aquilo que se mostra é algo 
diferente. Pois não se trata, nesse texto, de dominar uma serpente, mas de 
transformar um símbolo do poder em outro igualmente forte e de demons­
trar domínio sobre ambos. Não é, portanto, um ato de magia nem de habili­
dade hipnótica; é um sinal de que aqui está em jogo o poder político.
5 ► Deus denomina a si próprio com as mesmas palavras que aparece­
ram em 3.15. Em 3.13, Moisés usa a mesma formulação numa versão abre­
viada. Isso é indício da habilidade refinada do redator, que, ao mostrar esses 
detalhes, aponta para o processo pelo qual Moisés ainda tem que passar.
6-7 ► O segundo símbolo está relacionado com a saúde e envolve o pró­
prio corpo de Moisés. Por isso representa uma forte afirmação de sua lide­
rança e de seu envio por Deus. Ao cobri-lo de lepra. Deus torna-o impuro 
e desprezível e, portanto, incapaz de relacionar-se com Deus. Mas, logo a 
seguir, restitui-lhe a saúde e a capacidade de relacionar-se. As narrativas 
antigas não mais mencionam esse sinal, ao contrário do anterior. Ou não 
houve necessidade de fazê-lo, ou então o relato não foi preservado. Em todo 
caso, é bastante semelhante - ainda que não idêntico - a uma das pragas 
(9.8-12) e, de certo modo, serve de presságio da mesma.
Ao longo da história, os comentaristas ficaram surpresos com essa 
narrativa e deram-lhe várias interpretações.Alguns pensaram que o re­
lato tem por objetivo mostrar a coragem de Moisés e seu compromisso de 
seguir em frente apesar das adversidades, como essa que se lhe apresenta. 
De acordo com essa leitura, o texto fala mais de Moisés do que de Deus. O 
mesmo ocorre quando se interpretam a mão leprosa e a mão sadia como re­
presentações do velho homem, que é restaurado por Deus paira levar adiante 
sua missão. Durante a Idade Média, surgiram várias leituras alegóricas. A 
mais conhecida é aquela que entende a mão que Moisés leva ao peito como 
representação do povo de Israel. Moisés leva o povo ao coração, mas esse 
povo é pecador; e o pecado expressa-se na lepra. A seguir. Deus purifica o 
povo, e a mão torna-se sadia. Também existe a interpretação espiritual, de 
acordo com a qual a mão enferma representa a morte do orgulho e da ambi­
ção de Moisés e a mão pura simboliza o renascimento interior na fidelidade 
e no compromisso com o plano de Deus. Por fim, não faltam os que afirmam 
que a história mostra um castigo e uma advertência a Moisés por esse ha-
Para um resumo das principais interpretações, cf. HOUTMAN, C. Exodus, V. I, p. 398-399.
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ver dito: “Não crerão em mim” (4.1), contradizendo a palavra de Deus dita 
um pouco antes (3.18). Em geral, essas interpretações não levam muito em 
conta as relações internas do texto. Busca-se muito rapidamente o “pensa­
mento do autor”, sem antes analisar o próprio texto. Surge, dessa forma, 
um tipo de conjetura sobre o que o autor quis dizer e postulam-se diversas 
concepções teológicas ou morais como inerentes à narrativa. São criativas, 
mas pecam por não se ater suficientemente ao próprio texto.
Em nossa opinião, a busca pelo sentido deve seguir outro caminho. O 
contexto literário indica que a intenção geral do trecho é prover Moisés de 
subsídios apropriados para enfrentar a possível rejeição dos anciãos. A pri­
meira prova é forte e convincente, de modo que o próprio Deus diz: “Por isso 
crerão que te apareceu Javé”. Mas, por julgar que essa sua afirmação talvez 
possa ser exagerada, ele acrescenta um segundo e, a seguir, um terceiro 
sinais para o caso de os anciãos não crerem. O segundo sinal mostrará aos 
anciãos a soberania de Deus sobre aquilo que é importante em sua relação 
com Deus: é ele que envia a lepra e a cura, quem envia a doença e tem poder 
para restabelecer a saúde. Esse sinal confirma o anterior; enquanto o pri­
meiro evidencia que o poder do Deus de Israel é superior às forças políticas 
e religiosas do Egito, o segundo mostra que Deus é Senhor das situações 
mais dolorosas dos israelitas. Obviamente, o autor apresenta Deus de forma 
tão antropomórfica, que chega a admitir uma aparente contradição em suas 
próprias palavras. De acordo com o texto, as demonstrações consecutivas 
de poder não pretendem suprir uma debilidade do sinal precedente, mas 
dar confiança a Moisés para que possa ir tranquilo em sua missão. Deus 
não duvida do efeito do primeiro sinal, mas ele sabe que Moisés pode estar 
duvidando de sua eficácia; por isso ele dá três sinais em vez de um só.
8-9 ► A formulação do v. 8 confirma nossa interpretação de que Deus
está providenciando sinais suficientes para satisfazer a natural inquieta­
ção de Moisés. A expressão “a voz do [...] sinal” (hebraico: qol ha’ot) é uma 
construção hebraica que se deve entender como “o que o sinal diz”, ou seja, 
sua mensagem e consequência. Não se refere ao aspecto externo do sinal, 
mas ao que está comunicando; portanto não ao bastão feito serpente, mas 
ao desafio do poder político nele implícito; não ã lepra que foi curada, mas 
ã certeza de que Moisés realmente tem o respaldo de Deus. Na antiguidade, 
as pessoas eram mais suscetíveis a essa maneira de aproximar-se de um 
evento estranho ou deslumbrante. Elas não estranhavam uma ruptura da 
ordem natural, mas tentavam ver nela um sentido mais profundo. Hoje em 
dia, não aceitamos com naturalidade essas rupturas, demodo que o próprio 
fato nos deslumbra e temos a tendência a ver o milagre como um fim em si 
mesmo. Mas isso mostra somente a superfície do acontecimento.
O terceiro sinal não é realizado, mas somente anunciado. É a última 
garantia de que os anciãos creem, caso aconteça a remota possibilidade de 
eles não crerem nos dois primeiros sinais. Os intérpretes recorreram, tam­
bém nesse caso, a todas as formas possíveis de entender o sentido desse úl­
timo sinal. Há sugestões muito interessantes, como aquela que lembra que
79
o Nilo era considerado pelos egípcios um rio vinculado a divindades. Nesse 
contexto, o anúncio desse sinal deve ser entendido como mais uma demons­
tração - certamente mais convincente do que as anteriores - do domínio do 
Deus de Israel sobre as forças celestiais egípcias.® ̂ Sabe-se que, também 
para os egípcios, o contato com o sangue torna impuro. Nesse caso, a men­
sagem do sinal seria que o Deus de Israel não só domina os egípcios, mas 
também os condena ã impureza, tomando-os abomináveis. Isso explicaria 
por que a transformação do Nilo em sangue será a primeira praga (7.20s). 
Como em outros trechos, também aqui não se deve tentar explicar o sinal 
ou o milagre racionalmente, pois sua força narrativa consiste justamente 
em mostrar o domínio de Deus sobre as leis da natureza. Tentou-se explicar 
esse milagre a partir do fato de que, em determinadas épocas do ano, as 
águas do Nilo enchiam-se de uma areia de cor avermelhada, de modo que, 
quando elas atingiam um certo grau de concentração e eram jogadas em 
terra seca, davam a impressão de ser sangue. Mas, nesse caso, perder-se- 
ia a força de sinal; tudo não passaria de um truque vulgar; Moisés e Deus 
tornar-se-iam farsantes. O valor literário e teológico desse tipo de texto não 
reside exatamente no seu aspecto mecânico - representado na pergunta: 
Como pode acontecer isso? -, mas no seu aspecto profundo, que se revela 
na pergunta: Que significa isso?
A transformação da água em sangue também tem um significado es­
pecial e marcante para os israelitas, aos quais se dirige o texto em primeiro 
lugar. Pressupõe o domínio dado a Moisés sobre o sangue, que é um ele­
mento essencial vinculado à vida e à morte, à pureza e à impureza. Para os 
anciãos de Israel, não podia haver uma prova maior do apoio de Deus a esse 
jovem israelita que retoma do deserto.
e) Não sei falar bem (4.10-12)
10) Disse Moisés a Javé: Desculpa, meu Senhor! Não sou homem de 
palavra fácil, nem ontem nem no passado nem desde que estás falando com 
o teu servo, porque tenho a boca pesada e a língua pesada.
11) Javé lhe respondeu: Quem deu a boca ao homem? Ou quem fez o 
mudo, ou o surdo, ou o que vê, ou o cego? Por acaso não sou eu, Javé?
12) Agora vai, eu estarei em tua boca e conduzirei o que deves falar.
Introdução ao texto
A quarta desculpa de Moisés tem a ver com sua falta de eloquência. 
Ele tenta esquivar-se alegando incapacidade de falar bem e que isso é as­
sim hã muito tempo. Está preocupado em deixar claro que o problema não 
é novo, mas o carrega consigo desde muito antes de Deus ter se revelado 
a ele. A expressão é curiosa, uma vez que Deus acaba de se revelar. Talvez
Essa é a interpretação de U. CASSUTO [A Commentary on the Book o f Exodus, p. 48].
80
seja uma forma de mostrar que não se trata de uma invenção ou de um 
problema eventual e transitório, que facilmente se pode superar. Também 
fica evidente que não é apenas fruto da emoção do momento. Em todo caso, 
para Moisés parece crucial que sua comunicação com os demais israelitas 
não será tão fluente quanto a missão o requer. A resposta de Deus não nega 
0 problema; ao contrário, indica que, de fato, era assim.
Análise detalhada
10 ► Moisés mudou seu estilo. Nesta e na próxima seção, vamos vé-lo
mais cauteloso e cortês com Deus. Note-se que introduz seu discurso com 
um pedido de desculpas; chama Deus de “meu Senhor” e, em seguida, a 
si próprio de “teu servo”. O texto dá a impressão de que Moisés pressente 
o final e tenta atenuar a reação de Deus. Afirmou-se, com razão, que essa 
cortesia esconde uma forte crítica de Moisés a Deus. Ao dizer-lhe que não é 
um orador eloquente nem antes tampouco “desde que estás falando comi­
go”, está insinuando, pelo menos, duas coisas. Em primeiro lugar, o contato 
com ele não serviu para melhorar sua eloquência. Promete-lhe transformar 
a água em sangue e o bastão em serpente, mas não lhe dá a capacidade de 
falar bem, requisito necessário para sua missão. Quem pretende convencer 
os anciãos e o faraó necessita de uma pessoa especializada em oratória - e 
Moisés não é nada d i s so .A segunda coisa que se insinua é consequência 
da primeira: Deus escolheu a pessoa errada.
O sentido da expressão “a boca pesada e a língua pesada” não está 
totalmente claro. O adjetivo “pesado” (hebraico kabed), aplicado ã boca e ã 
língua, aparece somente nesse texto; encontra-se uma única vez vinculado 
a um outro órgão vital: o coração do faraó (7.14). Em outros contextos, o vo­
cábulo está relacionado com algo volumoso, grande, desmedido. Tudo indica 
que, relacionado com a boca e a língua, designa um funcionamento defi­
ciente. Por esse motivo, muitos comentaristas antigos pensaram que Moisés 
fosse gago, o que foi aceito como uma interpretação natural do texto. Porém 
não há razão para interpretar o texto desse modo. É mais lógico pensar que 
o problema de Moisés era de outro tipo, também real: falava mal a língua 
de seu povo, talvez com um acento egípcio inaceitável. Moisés fora criado 
na corte do faraó, onde se falava egípcio, e num ambiente em que a língua 
dos escravos não era utilizada e talvez nem permitida. Somente depois de 
grande (2.11), Moisés foi ter com seu povo; talvez tenha começado então a 
falar sua língua, pelo menos com alguma regularidade. Talvez o fato de falar 
como os egípcios tenha sido um dos motivos de ter sido rejeitado por ocasião 
desses primeiros contatos com israelitas (2.14; note-se que o interlocutor
o dom da palavra é muito importante na tradição profética, na qual se inscrevem essas 
páginas (cf. Is 6.7; 55.10s; Jr 1.9). J. Newsome mostra que é comum aludir à boca do pro­
feta e à palavra de Deus que ela deve anunciar e aponta para Ez 3.1-4, onde o profeta deve 
literalmente comer um rolo para então levar essa palavra à casa de Israel [cf. NEWSOME, J. 
Exodus, p. 24].
81
não o reconhece como um dos seus). Quando Moisés chega ao poço de Midiã 
e as filhas de Jetro falam dele ao pai, elas o descrevem como “um homem 
egipcio” (2.19), sem que a narrativa corrigisse o equívoco. A pertença a um 
grupo étnico evidencia-se, tanto hoje como no passado, na indumentária, 
em determinados costumes e formas externas, mas fundamentalmente na 
língua ou eventualmente no acento com que se fala uma segunda ou terceira 
línguas (cf. a narrativa de Jz 12.5-6). Dessa forma, o problema com sua lín­
gua é que ele fala hebraico com o acento dos opressores; isso praticamente 
o torna incapaz, diante de seu povo, de ser líder num processo de libertação.
11 ► A resposta de Deus possui um inconfundível viés sapiencial. Lem­
bra as perguntas de Jó 38-41 ou SI 18.32 [18.31]. O sentido é óbvio: Deus 
afirma que tanto a pessoa que sabe falar bem como a pessoa com deficiên­
cia encontram-se sob a sua soberania. A pergunta final - “por acaso, não 
sou eu, Javé?” - surpreende o leitor, pois dá a entender que Moisés deveria 
conhecer as qualidades de Javé como Senhor da criação. Mas Moisés recém 
tomou conhecimento da identidade desse Deus, basicamente através das 
respostas às suas perguntas. A partir da constatação de que tanto a LXX 
como a Vulgata fazem uso de uma partícula interrogativa que pressupõe 
uma resposta afirmativa, somos levados a pensar que, na perspectiva da 
narrativa, Moisés já conhece Deus. Parece que, desde o momento em que 
Deus se revela na sarça, Moisés já foi introduzido no conhecimento integral 
desse Deus que o chama.
12 ► Para Deus, não há mais espaço para outras perguntas. O impera­
tivo éclaro: “vai (hebraico Ze/c) que eu estarei ( ’eheyeh)^ em tua boca”. Se 
Moisés tem problemas eom sua fala. Deus o conduzirá. A palavra traduzida 
acima por “conduzirei” (hebraico wehoreytika) inclui o sentido de “arremes­
sar, expulsar, derramar”; somente numa quarta ou quinta acepção significa 
“ensinar”, como traduzem algumas versões (cf., por exemplo, a tradução de 
João F. de Almeida ou a Bíblia Sagrada Vozes). As características do verbo e 
o contexto literário, no entanto, requerem uma tradução que evidencie uma 
atitude mais ativa por parte de Deus.
f) Envia outro (4.13-17)
13) E ele disse: Desculpa, meu Senhor, envia, por favor, outra pessoa.
14) Javé ficou irritado com Moisés e disse: Por acaso não conheço Arão, 
teu irmão, o levita? Ele fala muito bem. Ele sairá ao teu encontro e, ao ver-te, 
se alegrará em seu coração.
15) Tu falarás a ele e colocarás as palavras em sua boca, e eu estarei 
em tua boca e na dele, e vos conduzirei no que deveis fazer.
'• Cf. o uso do termo em 3.12,14.
82
16) Ele falará por ti ao povo; ele será como se fora tua boca, e tu lhe 
serás como um Deus.
17) Toma este bastão em tua mão; com ele farás os sinais.
Introdução ao texto
A formulação da última objeção de Moisés já expressa a consciência 
de que está irritando Deus. Por isso as sucessivas desculpas e delicadezas 
no discurso de Moisés; elas pretendem amenizair a temida reação divina. 
Exprimem sua íntima convicção de que essa missão não é para ele; ele não 
quer aceitá-la. Aqui não se mencionam os motivos dessa atitude, mas da 
narrativa se pode inferir que o próprio Moisés não está convencido da efi­
cácia dos métodos e do poder de Deus de seus pais para enfrentar o faraó 
e seus Deuses. A resposta de Deus - pelo menos no nível narrativo - é con- 
elusiva. A desistência não é uma opção. Aí está seu irmão, Arão, que servi­
rá de porta-voz para Moisés. Arão ficará feliz em realizar essa tarefa. Essa 
informação não é secundária, uma vez que Moisés certamente não sabia 
como seria recebido por sua família ao retornar para o Egito. Será que se 
lembrariam dele? Em caso positivo, estariam contentes por vê-lo regressar 
ou o rejeitariam como alguém que desertou e abandonou os seus? Deus dá 
uma resposta a essas perguntas.
Análise detalhada
13 ► Das seis palavras hebraicas que compõem a fala de Moisés neste 
versículo três expressam escusas ou gentilezas. São elas: “desculpa” (he­
braico biy), o tratamento “meu senhor” ['adonay) e, por fim, a partícula final 
acrescentada à forma verbal “envia, por favof’ (shelah-na’), que exprime o 
máximo da delicadeza para irritar o menos possível alguém que certamente 
vai ficar furioso com essas palavras. Moisés pronuncia-as com temor; mas, 
do ponto de vista teológico, é importante que elas sejam ditas. O ser huma­
no não aceita uma missão cegamente, mas em diálogo com Deus, no qual 
expressa o que pensa. Deus terá a última palavra, mas não sem antes ouvir 
aquilo que preocupa a pessoa que está chamando.
14 ► Deus irrita-se com Moisés e simplesmente passa a dizer-lhe qual 
é sua tarefa. Tudo está programado. Deus surpreende Moisés, dando-lhe 
informações sobre sua família, que esse possivelmente desconhecia. Fala 
que conhece seu irmão, Arão, um levita, que sahe falar com eloquência e que 
ficará contente em ser seu porta-voz. Implicitamente lhe transmite que Arão 
vai aceitar suas palavras. Não se pode descartar uma certa ironia nessas pa­
lavras de Deus, já que menciona que o irmão se alegrará em vê-lo e realizará 
a tarefa que lhe é solicitada sem fazer tantas perguntas...
83
15-17 ► Depois de expressar sua irritação, Deus dirige-se a Moisés não
para dar ordens, mas para instruí-lo. O plano consiste em que Arão fale ao 
povo em nome de Moisés, dizendo tudo o que esse disser. Ou seja: Deus se 
comunicará com Moisés, e esse com Arão, para fazer as palavras chegarem 
ao povo.^ ̂Nesse caso, o povo (hebraico ha‘am) deve ser identificado com os 
anciãos e os israelitas, mas também com os egípcios e o faraó.
A comparação final é surpreendente. A relação entre os irmãos é com­
parada à relação dos profetas com Deus (cf. 7.1). Faz-se uso da designação 
genérica e regular para Deus (hebraico 'elohim) e estabelece-se que a boca 
de Arão reproduzirá o que Moisés disser, ou seja, aceitará plenamente suas 
palavras assim como um profeta aceita as palavras de Deus. Esse tipo de 
comparação não é comum no Antigo Testamento, apesar de ser usado nova­
mente em 7.1, para descrever a relação entre Moisés e o fa raó .A expressão 
exalta o papel de Moisés, colocando-o num nível distinto do resto dos israe­
litas. Depois disso, Deus ordena a Moisés que tome seu bastão, pois com ele 
realizará sinais. O bastão de Moisés - em determinadas ocasiões também de 
Arão - será um instrumento destacado na realização dos sinais (cf. 7.10,19; 
8.1; 9.22; 17.5; Nm 20.8 etc.).
Aspectos teológicos: Deus e nós
O diálogo entre Deus e Moisés colocou em cena vários aspectos teo­
lógicos. Além do que já foi comentado acima, queremos acrescentar as re­
flexões que seguem para consolidar algumas idéias sobre o projeto de liber­
tação que inicia aqui. Ficou evidente que Deus decidiu ter um papel ativo 
na história humana. Ainda que se deva destacar a continuidade entre as 
narrativas de Gênesis e de Êxodo, também é necessário ressaltar algumas 
diferenças. A mais palpável é que, no Êxodo, Deus entra na história humana 
de forma diferente. Revela-se a Moisés e propõe um plano para libertar seu 
povo da escravidão. A iniciativa é de Deus; é ele que expõe os motivos de 
sua decisão para intervir: ele ouviu o clamor dos oprimidos (2.23-25; 3.7­
10). Diferentemente dos conceitos que a filosofia grega nos legou sobre Deus 
- um Deus infinito, onipotente, onipresente -, que o definem em oposição 
ao humano, aqui Deus se manifesta como um Deus sensível, com carac­
terísticas próprias da experiência humana. Deus discute, argumenta, fica 
irritado, propõe e, finalmente, capacita para a tarefa para a qual convoca. 
Foi sensível ao clamor de quem já não tem a quem reeorrer, de pessoas para 
quem todas as portas jã se fecharam. Aqueles que clamavam provavelmente 
esperavam uma resposta direta e definitiva de Deus, uma ação conduzida 
a partir do céu, que livrasse o povo da opressão que sofria. As coisas, no 
entanto, não aconteceram bem assim como imaginaram. A distância entre
Para evitar ambiguidades e dar um sentido mais preciso ao texto, a LXX e a Vulgata tradu­
zem “minhas palavras”.
“ Em Zc 12.8, afirma-se que a casa de Davi será “como um Deus” (ke’elohim) para as nações, 
no sentido de que dominará sobre elas e as vencerá.
84
a expectativa e a concretização está no valor que Deus atribui à atuação 
humana. Ao contrário dos que entendem que, para enaltecer Deus, deve-se 
minimizar o ser humano. Deus mostra que quer elevar a vida e a vocação 
humana até que se transforme em instrumento de seu plano de libertação. 
É através de pessoas concretas que Deus conduzirá, “a partir do céu”, seu 
projeto em favor do povo.
Por isso escolhe as pessoas que o representarão. No início, foram um 
jovem casal levita, duas simples parteiras, uma irmã ainda pequena e a filha 
de um rei, sensível diante do milagre da vida. Agora são um homem tímido 
e incapaz de falar com eloquência, seu irmão, que ainda não sabe nada do 
projeto, e alguns anciãos, que estarão cheios de dúvidas. Nenhum deles pa­
rece ser suficientemente apto para tamanha tarefa. Mas não será a última 
vez que Deus escolherá os pequenos e fracos para realizar suas grandes 
obras. Também a escolha de Moisés tem essa característica, pois Deus elege 
um fugitivo que havia encontrado um lugar bom para viver e constituir uma 
família. Não foi Moisés que se mostrou saudoso de seu povo e desejoso de 
livrã-lo de seu sofrimento. Na realidade, foi o contrário; Moisés conhece suas 
angústias, mas acha que nada pode fazer para evitã-las e adota sua nova 
casa e sua nova terra como definitivas. Sua reiterada rejeição à proposta de 
Deus mostra quãobem estava em Midiã e quão pouca confiança tinha na 
possibilidade de superar a opressão do Egito. É nesse momento que Deus 
lhe diz para tomar seu bastão e ir aonde precisam dele.
4. Regresso ao Egito (4.18-31)
18) Moisés partiu e voltou para Jetro, seu sogro, e lhe disse: Deixa-me 
sair e regressar para onde estão meus irmãos, no Egito, para ver se ainda 
vivem. E disse Jetro a Moisés: Vai-te em paz!
19) Javé disse a Moisés em Midiã: Regressa ao Egito, porque morreram 
todos os homens que ameaçavam a tua vida.
20) Moisés tomou sua mulher e seus filhos, fê-los montar num jumento e 
voltou ã terra do Egito. Moisés também tomou o bastão de Deus em sua mão.
21) E Javé lhe disse: Quando tiveres voltado ao Egito, cuida defazeres 
diante do faraó todos os prodígios que coloquei em tuas mãos. Mas endurece­
rei o seu coração de modo que não deixará o povo sair.
22) E dirãs ao faraó: Assim diz Javé: Israel é meu filho, meu primogênito.
23) Eu te disse que deixasses partir meu filho para que me sirva; mas 
se te recusares a deixã-lo partir, eu assassinarei teu filho, teu primogênito.
24) Aconteceu que, no caminho, numa pousada, Javé o encontrou e ten­
tou matá-lo.
25) E Zípora tomou uma pedra afiada, cortou o prepúcio de seu filho e o 
lançou em seus pés [de Moisés] e disse: És meu esposo de sangue!
26) E Javé deixou-o ir. Antes ela havia dito “esposo de sangue” por 
causa da circuncisão.
27) Javé disse a Arão: Vai ao encontro de Moisés no deserto. E ele foi e 
o encontrou no monte de Deus e o beijou.
85
28) E Moisés relatou a Arão todas as palavras que Javé lhe dissera e 
todos os sinais que lhe havia ordenado.
29) Moisés e Arão foram e reuniram todos os anciãos dos filhos de Is­
rael.
30) Arão contou-lhes todas as coisas que Javé havia dito a Moisés e 
realizou os sinais diante dos olhos do povo.
31) E o povo creu, e ouviram que Javé visitara os filhos de Israel porque 
havia visto a sua angústia, e inclinaram-se e adoraram.
Introdução ao texto
Neste trecho, distinguem-se três unidades. A primeira (v. 18-23) relata 
que, logo após o fim do diálogo entre Deus e Moisés, esse retorna á sua casa 
e fala com seu sogro, solicitando-lhe que o deixe partir. É curioso que, depois 
de ter discutido tão veementemente com Deus, agora peça permissão a Jetro 
para voltar ao Egito. O fato de não mencionar sua experiência no deserto 
mostra que Moisés tem certas reservas. Na verdade, pede permissão para 
ver se seus irmãos ainda estão vivos, o que dá a entender que logo retornará 
a Midiã. A repetição da ordem de Deus no v. 19 só pode ser entendida como 
reação ã ambiguidade do versículo anterior. A seguir, fica claro que Moisés 
parte em definitivo, como demonstra o fato de ele tomar sua mulher e seus 
filhos para acompanhá-lo na viagem. O pedido de permissão pode ser tanto 
uma expressão de cortesia como uma estratégia inicial de dissimular sua 
partida definitiva. Esse problema da narrativa já foi percebido pelos antigos 
comentaristas judeus. Conforme esses, Moisés havia prometido a seu sogro 
não deixar Midiã sem antes informá-lo, talvez porque sua partida envolvia 
a filha e os netos de Jetro.“ De qualquer modo, Moisés toma sua esposa e 
seus filhos (chama atenção o plural) e parte em direção ao Egito.
A segunda unidade (v. 24-26) é enigmática e difícil de interpretar. Mui­
to se escreveu sobre ela, sobre seu significado e sua razão de ser. O texto é 
claro do ponto de vista da sintaxe; mas seu conteúdo não é tão claro assim. 
A caminho para o Egito, Deus cruza com Moisés em uma pousada e tenta 
matá-lo. Então sua esposa circuncida o filho e realiza um rito desconhecido 
para nós, que consiste em tocar alguém com o prepúcio cortado do filho. 
Através desse gesto, ela o declara “esposo de sangue”, uma expressão au­
sente no resto do Antigo Testamento, mas que parece ter salvo a vida de 
Moisés.
Finalmente, é relatado o encontro de Moisés com seu irmão, Arão, no 
“monte de Deus”, presumivelmente o monte Horebe (v. 27-31). O fato de 
novamente ser mencionado o monte de Deus como lugar de encontro é sim­
bólico; existe a possibilidade de ver aqui não uma referência a um monte em 
particular, mas ao lugar eventual do encontro dos irmãos, ao qual se confere 
o sentido de que Deus também está nesse lugar. Arão recebe-o sem rancores
Midrash Êxodo Rabá I, IV.
86
e ouve as suas palavras. Sem perguntas e sem discussão, ambos dirigem-se 
de imediato aos anciãos, e Arâo conta-lhes o que Moisés disse. Além disso, 
realiza diante deles os sinais que Deus lhe mostrara. Surpreendem a brevi­
dade da narrativa e a ausência de detalhes sobre as dúvidas que tanto Arâo 
como os anciãos pudessem ter. A mensagem para o leitor é a seguinte; as 
objeções de Moisés no deserto evidenciam-se agora como infundadas. Seu 
irmão recebe-o e colabora com ele; os anciãos aceitam sua mensagem. Os 
fatos sucedem como Deus previra. A reação dos anciãos também é signifi­
cativa. Creem em suas palavras; mas é dito que se maravilharam ao saber 
que Deus ouvira o elamor e sentira a angústia dos oprimidos. Isso mostra 
que não esperavam que Deus os escutasse, que se lembrasse de alguns 
escravos em terra estrangeira. Surpresos, incünaram-se diante de Deus e o 
adoraram.
Análise detalhada
18 ► Moisés deixa o lugar da teofania e volta para sua casa. Solicita 
permissão a seu sogro para ir ao Egito com o intuito de ver se seus irmãos 
ainda estão vivos. A razão apresentada não corresponde à realidade de sua 
missão. Cabe perguntar por que Moisés não eonta nada a Jetro de sua 
experiência no deserto. Respondeu-se essa questão com a especulação de 
que teria sido demasiadamente forte - talvez até incrível - para Jetro saber 
que Deus se havia manifestado a esse forasteiro errante, filho de escravos, 
adotado por ele para salvar sua vida. Ou então que, devido ã sua condição 
de estrangeiro e sacerdote de outro Deus, o sogro não estaria em condições 
de entender a mensagem do Deus de Israel. Nenhum dos comentários con­
sultados afirma que o difícil não era comunicar a Jetro a experiência do 
encontro com Deus, mas o conteúdo singular da mensagem e do projeto 
para o qual Deus o convocava. É mais difícil aceitar o projeto de libertação 
do que o fato de um arbusto brilhar intensamente sem consumir-se. A razão 
pela qual Moisés tenta dissimular seus próximos passos é o risco inerente 
ao plano de libertação para o qual foi chamado. Ele teme, portanto, uma 
reação adversa de seu sogro. Visto dessa maneira, entendem-se melhor as 
palavras de despedida de Jetro. “Vai” (hebraico lek) é um imperativo; indica 
que é Jetro, o chefe de família, que em sua autoridade envia Moisés a seus 
parentes. E lhe deseja “paz” (hebraico shalom), o que não é uma simples 
saudação, mas um desejo de que o melhor lhe aconteça durante a viagem, 
a ele e também aos seus.
19 ► Deus não concorda com a forma como Moisés conduz os assuntos 
em sua casa. Este versículo é uma obra-prima no que diz respeito ao estüo 
literário. Uma vez que aquilo que foi dito antes não deixa claro se Moisés 
estã indo por causa do projeto de Deus ou somente para visitar sua família, 
faz-se necessária essa intervenção. Para muitos comentaristas, o v. 19 é 
uma interpelação que interrompe o fluxo narrativo e representa uma repeti-
87
ção desnecessária.“ Contudo, a partir de uma leitura narrativa, o tecido da 
redação não só é coerente, mas também significativo. Deus afirma que deve 
ir e que aqueles que o procuravam estão mortos. Não acrescenta nenhuma 
informação que não fora dada anteriormente. Apenas lembra Moisés do pro­
jeto acordado.
20 ► Até o momento, tínhamos conhecimento de apenas um filho de
Moisés (2.22). Agora se utiliza um plural, denotando que tinha mais filhos, 
o que concorda com 18.3, onde também se menciona Eliezer. Essa incon­
gruência fez surgir muitas especulações. Mas o fato não afeta a narrativa. 
No episódio dos v. 24-26, serã mencionado somente um filho.
21-23 ► São palavras de Deus dirigidas a Moisés com a incumbência
de realizar todos os prodígios(hebraico mo/ef); mas agora fica claro que eles 
devem ser realizados diante do faraó e não, como fora dito antes, diante dos 
anciãos com o intuito de convencê-los. Também se menciona algo que deve 
ter soado estranho a Moisés: “Endurecerei (hebraico 'ahazeq) seu coração de 
modo que não deixará o povo sair”. Como se deve entender essa afirmação? 
Jã em 3.19, informou-se sobre a tolice do faraó. Mas aqui se diz que o pró­
prio Deus produzirá sua teimosia. Cabe perguntar por que Deus endurece o 
coração do faraó em vez de amolecê-lo e tornã-lo mais receptivo à reivindi­
cação dos israelitas. Para entender isso, devemos levar em conta o contexto 
geral e mais amplo da narrativa. Deus está fazendo todo o possível para 
animar Moisés a assumir com entusiasmo seu plano de libertação e para 
dar-lhe a certeza de que esse plano serã eficaz, de modo que serã realizado 
até o final. Por isso o interesse do relato é que Moisés se convença de que, 
mesmo na oposição e nos empecilhos com os quais se defrontar, mesmo nos 
momentos em que achar que tudo vai terminar mal, mesmo aí Deus estará 
por trás dos acontecimentos.“ A essa reflexão queremos acrescentar dois 
aspectos. Em primeiro lugar, dizer que Deus endurecerá o coração do faraó 
não significa que Deus deseja que a luta seja mais cruenta e a angústia se 
prolongue. Ao contrário, significa que a adversidade não é sinal da ausên­
cia de Deus, mas parte de seu plano. Em segundo lugar, em cada processo 
de libertação, em vez de debilitar-se e buscar a negociação para satisfazer 
ambas as partes, o opressor tende a fechar-se e a radicalizar sua postura 
contra os oprimidos. É o que efetivamente acontecerá no cap. 5. Por isso 
Deus estã antecipando a Moisés o que vai suceder, mas também o informa 
de que estará por trás de tudo.
A denominação “meu primogênito” (hebraico bekori) é atribuída uma 
única vez a Israel em todo o Antigo Testamento. Tanto para Israel como
Costuma-se atribuir os v. 18 e 20b à tradição eloísta e os v. 19 e 20a à tradição javista. 
Assim, conforme a primeira tradição, ele voltaria sozinho ao Egito, enquanto que, de acordo 
com a segunda, retomaria acompanhado de sua família [cf. NOTH, M. Exodus, p. 33, 47],
“ C. Houtman afirma que a intenção do texto é mostrar que o faraó “atua dentro dos limites 
que Javé lhe coloca” [cf. HOUTMAN, C. Exodus I, p. 432].
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para os egípcios, o primeiro filho homem do esposo era o filho principal, 
o próximo chefe de família, o herdeiro das propriedades do pai. Gozava de 
privilégios e da confiança de seu pai bem mais do que seus irmãos. A partir 
desse texto e em combinação com 19.5, poder-se-ia especular que estamos 
diante de um conceito universalista de Deus, que teria muitos filhos (povos), 
dentre os quais elegera seu primogênito Israel como menina dos seus olhos. 
Se o texto que estamos estudando surgiu em tempos pós-exílicos - como 
pensamos que tenha sido -, essa interpretação certamente poderia estar 
por trás dessas palavras. A ideia de que os outros povos são filhos de Deus 
e estão, por conseguinte, sob sua tutela e domínio pressupõe uma teologia 
elaborada num contexto internacional, como o que existiu a partir do século 
V nos períodos persa e helenístico.
A menção da primogenitura de Israel tem o propósito de fazer uma 
comparação com o que vai ser a décima praga. O modelo que aqui se aplica 
é um tipo de lei do talião: se não me concedes isso, castigar-te-ei com aqui­
lo. Deve-se observar a expressão “se te recusares [...]” (hebraico ma’an) e 
confrontã-la com a expressão do v. 21: “endurecerei [...]”. A contradição fica 
clara quando se adota a explicação aqui reproduzida e ampliada do v. 21.
24-26 ► Muito se refletiu sobre o sentido desse breve relato.^ É evidente
que, literariamente, o relato interrompe o fluxo narrativo; ele foi, portanto, 
inserido aqui por algum motivo, que, no entanto, não nos é conhecido. A 
menção do rito da circuncisão levou a que se pensasse tratar-se do segundo 
filho de Moisés (v. 20), que, por não ser circuncidado, teria provocado a ira 
de Deus. Também se poderia pensar que Moisés não fosse circuncidado; 
nesse caso, o relato escondería essa realidade transferindo a condição de 
incircunciso ao filho. Ainda outras explicações foram dadas no decorrer da 
história da interpretação. Sob o ponto de vista narrativo, é interessante ob­
servar que, ainda que os v. 24-26 sejam uma unidade independente, eles 
foram colocados nesse lugar com uma intenção; eles também têm certas 
conexões com os textos ao redor. O v. 23 fala em assassinar o primogênito 
do faraó; nos v. 24-26, também se trata do tema do assassinato, embora a 
pessoa ameaçada seja Moisés; mesmo assim, a narrativa estã vinculada a 
algo que falta em um filho ou no primogênito. O v. 24 utiliza o verbo “en­
contrar” (hebraico pagash), também usado no v. 27. Existem, portanto, vín­
culos literários, ainda que não sejam suficientemente fortes para dar uma 
fluência de sentido.
É comum considerar essa história uma narrativa etiológica do rito 
da circuncisão. Contudo, na forma atual, não estabelece o início de nada.
' As sínteses mais completas sobre esse texto encontramos em C. HOUTMAN [Exodus I, p. 
432-449) e B. CHILDS [The Book o f Exodus. Louisville, 1976. p. 95-101). Deve-se acrescentar 
a interessante opinião de J. Pixley, que afirma que o texto mostra que “não era inconcebível, 
em Israel, atribuir a Deus um lado demoníaco” e lembra a luta com Jacó (Gn 32.22-32) e a 
ordem a Abraão para sacrificar seu filho (Gn 22) [cf. PIXLEY, J. Êxodo, una lectura evangélica 
ypopular, p. 51-62).
89
muito menos do rito da circuncisão. O fato de afirmar-se, no v. 26b, que a 
expressão “esposo de sangue” está vinculada à circuncisão mostra que o 
rito descrito já não meds era conhecido dos leitores do texto em sua forma 
final; parece que ele não era mais realizado e havia caído no esquecimento, 
assim como o vocabulário vinculado ao mesmo. Nesse caso, não pode ser 
um relato etiológico. O que quer que tenha sido o rito, é evidente que o re­
dator quis estabelecer uma relação com a circuncisão. Está dizendo que, se 
alguma coisa do relato for incompreensível, em todo caso sabemos que está 
relacionado com esse rito e não com outra coisa.'' ̂Isso é importante, já que 
está em jogo a vida de Moisés e, por extensão, o projeto de libertação. Moisés 
e o plano de libertação estão tão intimamente ligados no texto, que temos a 
impressão de que, se algo acontecesse a Moisés, o projeto não se realizaria. 
Assim, se a falta fosse de outra ordem, a consequência poderia ser um novo 
ataque de Deus ou um castigo, assim como mostra o relato.
Desde cedo, pensou-se que essa história continha elementos inveros­
símeis. A LXX substitui Javé por seu anjo, de modo que consegue evitar a 
ideia de que o próprio Deus tenta matar Moisés. O mesmo ocorre com vários 
targumim. Todavia, a nosso ver, o sentido da unidade deve ser procurado na 
sua localização dentro do relato mais amplo. Podemos aceitar que a unidade 
possuía um sentido antes de ser colocada no lugar onde hoje se encontra 
na Escritura e que talvez tenha sido um texto muito antigo. Tudo o que 
se puder coneluir disso somente será útil à pesquisa histórica, mas será 
pouco aproveitável semanticamente para a leitura do texto na atualidade. 
Por outro lado, é necessário lembrar que o texto final integra essa tradição 
num novo contexto literário, que corresponde ã época pós-exílica. Nessa 
época, algumas das coordenadas que fizeram surgir a unidade parece que 
já desapareceram - isso explicaria o v. 26b -, outras, no entanto, as suce­
deram, no caso a convicção de que a circuncisão é um rito indispensável e 
crucial para pertencer ao povo de Deus e a ideia de que os homens judeus 
deveríam contrair matrimônio com mulheres judias e afastar-se das estran­
geiras. Nessa história, é Zípora quem circuncida seu filho; isso pode servir 
como prova de que, apesar de sua origem midianita, ela adotou a fé de seu 
marido e quis submeter sua família ãs normas israelitas.Nesse caso, o rela­
to teria a função de ser um testemunho de sua integração no povo de Israel. 
Ao mesmo tempo, daria uma resposta à preocupação sobre a eventual falta 
de circuncisão do filho de Moisés, que nasceu em terra estranha e fora do 
âmbito israelita. Ao nosso ver, o redator utilizou um antigo fragmento para 
responder a duas perguntas de sua própria época; Zípora adorava Javé ou 
outros Deuses? O filho de Moisés era circuncidado?
' o relato contém muitos elementos de peso na tradição israelita, como o sangue, a circun­
cisão, a descendência, o corpo (os pés de Moisés; talvez uma alusão aos genitais) num con­
texto de muita ambiguidade literária; isso possibilita várias interpretações. O autor bíblico 
procurou limitEir esse espectro. A. Herbst explora os vinculos com o posterior batismo cristão 
em HERBST, A. Bautismo y circuncisión judia. Nueva luz desde un análisis de Ex 4:24-25. 
RevBibl66, p. 157-172, 2004.
90
27-28 ► A palavra de Deus dirige-se agora a Arão. A narrativa apresenta
o fato sem dramatizá-lo e sem nos dar nenhum detalhe sobre como foi essa 
revelação. O narrador não está interessado, nesse momento, em concentrar 
seu discurso em Arão. Conforme o relato, o encontro ocorre no mesmo lugar 
da revelação a Moisés, no chamado monte de Deus. Já mencionamos que 
0 texto pode referir-se náo a um lugar específico, mas a uma indicação da 
presença divina: aí estava Deus! O fato de Arão ter beijado (hebraico yishaq) 
seu irmão evidencia que ele não guarda rancor e recebe-o com alegria. Então 
Moisés relata sua experiência e mostra os sinais. Ê interessante observar 
que, na revelação a Arão, não se mencionaram esses detalhes; Deus reser­
vou a Moisés a tarefa de transmiti-los.
29-31 ► Em conformidade com o que foi dito anteriormente, Arão atua
como porta-voz de seu irmão. Ele não só relata o sucedido aos anciãos, 
mas também realiza os sinais diante deles. O que parecia estar reservado a 
Moisés, de fato não é (cf. 7.10; 8.2 etc.). Após ouvirem e verem os sinais, os 
anciãos creem. A dupla atividade é importante; eles não se limitam a relatar 
um fato, mas também mostram os sinais concretos que Deus lhes dera. A 
palavra de Deus é respaldada por atos visíveis que revelam o poder e a von­
tade de libertar o povo.
Surpreendem-se ao constatar que Deus “havia visto a sua angústia” 
(hebraico ‘onij, talvez porque não esperassem que algo semelhante pudesse 
realmente acontecer. Sua resposta fica clara nos diferentes verbos utilizados 
no final do v. 31, para indicar que se prostraram e adoraram. O verbo qadad 
(prostrar-se) e o verbo hawah^ (prostrar-se em adoração) encontram-se lado 
alado em diversas oportunidades (Gn 43.28; ICr 29.20,30; Ne 8.6), sempre 
no sentido de “prostrar-se e adorar”. Quando aparecem em dupla, eviden­
cia-se um alto grau de convicção de que Deus está por trás da missão. Dessa 
forma, a resposta do povo ao anúncio de Moisés representa um grande apoio 
à sua missão, talvez maior do que ele esperava.
“ A forma também pode derivar da raiz shahaw, com o mesmo significado.
91
MOISÉS NO EGITO (5.1-12.36)
As etapas transcorridas até o momento prepararam o cenário para o 
confronto com o faraó no Egito. Para tanto Moisés foi capacitado; ele tam­
bém conta com o apoio de seu irmão e dos anciãos. Curiosamente, os capí­
tulos a seguir não mais falam de sua família, nem daquela que permanecera 
no Egito tampouco da que constituira com Zípora em Midiã. Também não 
encontramos vestígios de sua condenação à morte pelo faraó anterior nem 
se menciona seu conhecimento da vida na corte e do idioma egípcio. A nar­
rativa vai eliminando alguns aspectos do cenário e abrindo novos; deixa de 
lado alguns personagens e põe em cena outros. No intuito de organizar a 
apresentação do texto, distinguimos duas cenas: a primeira (5.1-7.7) apre­
senta os eventos que levairão ãs pragas; a segunda (7.8-12.36) relata as 
pragas e a saída do Egito.
1. Moisés e Arão diante do faraó (5.1-7.7)
a) Encontro com o faraó (5.1-5)
1) Depois, Moisés e Arão foram ter com o faraó e lhe disseram: Assim 
diz Javé, Deus de Israel: Deixa o meu povo ir para que celebre uma festa para 
mim no deserto.
2) Mas o faraó respondeu: Quem ê Javé para que ouça a sua voz e deixe 
Israel partir? Eu não conheço Javé, tampouco deixarei Israel partir.
3) Eles disseram: O Deus dos hebreus veio até nós; deixa-nos ir três 
dias de caminho no deserto e sacrificaremos a Javé, nosso Deus, para que 
não venha sobre nós com peste ou com espada.
4) O rei do Egito lhes disse: Por que vós, Moisés e Arão, desviais o povo 
de suas tarefas? Voltai a vossos trabalhos!
5) O faraó também disse: O povo da terra agora é numeroso e vós o 
apartais de suas tarefas.
Introdução ao texto
O primeiro encontro de Moisés e Arão com o faraó confirma que rea­
lizar a libertação não será nada fácil. Ambos pedem para deixá-los ir ao 
deserto para adorar seu Deus na expectativa de que o faraó dê a permissão, 
uma vez que o fato não representaria nenhum risco a seu patrimônio. Mas o 
faraó não está disposto a fazer acordos nem a conceder favores aos escravos.
93
Ele diz a verdade ao afirmar que não conhece esse Deus e que, portanto, 
não levará em consideração a sua palavra. Por trás dessa atitude está a 
convicção de que cada Deus tinha um poder equivalente ao de seu povo. Ao 
Deus dos egípcios era atribuído um poder equivalente ao da coroa; o Deus 
dos escravos tinha o poder equivalente ao de escravos. Diante desse pano 
de fundo, a resposta do faraó torna-se compreensível. Ele não pode ter medo 
das represálias do Deus dos escravos, porque a proteção oferecida por seus 
próprios Deuses é bem maior.
Num segundo momento, Moisés e Arão tentam uma estratégia dife­
rente. São mais diplomáticos e precisos: Javé é o Deus dos hebreus; querem 
partir com a devida permissão - falam de tal maneira que fica difícil negar 
a permissão; são apenas trés dias e, afinal, partirão para evitar represálias 
como uma peste ou a morte pela espada. O possível perigo das represálias 
prenuncia, de forma elíptica, as pragas. Nesse caso, no entanto, as pragas 
viriam sobre Israel e não sobre os egípcios. Todavia, a mensagem que fica 
para o faraó é que esse Deus que eles pretendem adorar tem poder para 
realizar essas coisas. Como Deus previra, o faraó não vai acreditar neles. 
Sua reação não é de temor, mas de desafio e rejeição. Ele acusa Moisés e 
Arão de levar o povo a rebelar-se e manda-os de volta ao trabalho. O diéilogo 
levou aparentemente o faraó a uma maior consciência do perigo que esses 
escravos - que continuavam crescendo em seu país - representavam. Suas 
ordens evidenciam o medo que tinha deles. Ele teme os escravos, mas não 
teme seu Deus.
Observou-se que há repetições nesta unidade. O v. 3 parece ser uma 
repetição do v. 1; o v. 5 dá a impressão de repetir o conteúdo do v. 4. Não há 
consenso entre os comentaristas sobre como distribuir os versículos entre 
possíveis fontes. Mas a história da redação não consegue explicar o efeito 
literário dessa composição, que combina magistralmente as reivindicações 
de Moisés e Arão com a negativa do faraó. O v. 3 não repete o v. 1, mas pre­
tende, de forma diferente, causar o mesmo efeito após a rejeição inicial. O 
V. 5 reafirma e amplia a primeira crítica do faraó.
Análise detalhada
1 ► Este versículo inaugura o tão esperado encontro. A mensagem é
simples e contundente; ela se concentra numa oração que se transforma em 
Leitmotiv: “deixa meu povo ir” (7.16,26; 8.16; 19.1,13). O pedido vincula-se à 
celebração de uma festa para Javé no deserto, que pode ser uma referência 
ao lugar da teofania, onde a sarça ardia sem consumir-se. Em todo caso, 
trata-se de uma adoração fora da terra da opressão, onde os Deuses locais 
não são sensíveis e não ouvem o clamor dos escravos.' O verbo hebraico tra­
duzido por “celebrar uma festa” [hagag) indica a ação de festejar e aplica-se
' Cf. CROATTO, S. Historia de Salvación: La experiencia religiosa dei pueblo de Dios. Estella, 
1995. p. 61-62.
94a festas religiosas. O que se diz aqui não é idêntico à mensagem ordenada 
em 3.18. Isso deu origem a especulações da seguinte espécie; Moisés teve 
muita pressa em ir ao faraó, e a recusa desse deve-se ao fato de Moisés não 
ter pedido exatamente aquilo que Deus lhe ordenara.^ Porém o texto não se 
detém nesses detalhes; ao contrário, ele os destacará ao apresentá-los com 
a máxima clareza no v. 3.
2 ► Para entender a resposta do faraó, devemos lembrar que o narrador 
encontra-se ao lado dos israelitas. Ele não é um cronista que busca a objeti­
vidade histórica, ideológica ou teológica, mas um teólogo que conta a histó­
ria da libertação realizada por Javé. Seria uma blasfêmia se um israelita não 
conhecesse seu Deus; o fato de o faraó não o conhecer é um ato de arrogân­
cia e presunção. O narrador está assim dizendo que o rei não sabe contra 
quem se coloca nem quais serão as consequências de sua postura de negar 
o plano de Deus. Esse mesmo faraó considerava a si próprio um semideus; 
portanto não tinha motivos para temer o Deus dos escravos, considerado 
um Deus fraco. Sem dúvida, o faraó sabia que seus escravos adoravam seu 
Deus, Javé. Não se deve entender literalmente a afirmação do faraó de que 
não o conhece; ela quer indicar que o faraó não atenderá a sua voz.
3 ► Diante da recusa do faraó, Moisés e Arão aperfeiçoam seu argumen­
to. Querem convencê-lo agora, mostrando-se amistosos e inofensivos, a fim 
de conquistar a confiança do faraó. Respondem a sua pergunta, de aeordo 
com 3.18, esclarecendo que foi o Deus dos hebreus que os convocou. Para 
identificá-lo perante o faraó, fazem uso do gentílico e não da fórmula “o Deus 
de nossos pais”, já que essa não teria feito nenhum sentido para o faraó. De­
pois de terem mostrado, de diversas formas, a sua cortesia, apostam agora 
em argumentos fortes: se não forem ao deserto, doenças (hebraico deber) e 
morte certamente virão sobre eles.̂ * A observação é estrainha, pois, se o pro­
jeto do faraó era exterminar ou reduzir a população israelita, apresentava-se 
aqui uma excelente oportunidade para realizã-lo. O próprio Deus dos es­
cravos se encarregaria de dizimá-los. Mas o relato não funciona dessa ma­
neira; nesse momento, a narrativa tem outros objetivos. A recusa do faraó 
não deve ser entendida como retomada dessa estratégia. Isso exigiria algum 
indício no texto que mostrasse nessa direção; mas tal indício não existe. As 
represálias provavelmente devem ser entendidas como advertência ao faraó 
de quão grandes são as forças que ele está desafiando. Como se Moisés e
U. Cassuto entende que Moisés extrapolou suas funções; todavia, pensamos que Cassuto 
confunde o sentido do texto ao colocar a responsabilidade sobre Moisés quando o texto busca 
destacar a insensibilidade do faraó [cf CASSUTO, U. A Commentary on the Book ofExodus,
p. 66],
Não fica claro a que tipo de doença a palavra hebraica deber se refere. Ela é usada com 
referência a animais, na quinta praga (p. 3), e para designar epidemias e doenças fateds; 
encontramo-la na tríade “espada, fome e peste” (Jr 21.7; Ez 6.12; 12.6) [cf. HOUTMAN, C. 
Exodus I, p. 464].
95
Arão dissessem: dessa vez elas se voltarão contra nós, mas na próxima vez 
poderá ser contra a tua casa. Mas, mesmo assim, a ameaça não causa ne­
nhum efeito no faraó. Ele se volta contra Moisés e seu irmão e acusa-os de 
sublevar o povo. Eles devem retomar a seu trabalho.
4-5 ► A resposta do rei do Egito é paradigmática e típica de quem de­
tém o poder que oprime os outros. Ele acusa Moisés e Arão de sublevar 
as pessoas, distraindo-as (hebraico para‘ - “conduzir”, “apartar”) de suas 
obrigações como trabalhadores. A seguir, também dirá - de forma um tan­
to incoerente - que o povo se tomara numeroso e que Moisés e seu irmão 
desviam-no de seus trabalhos. Não se sabe exateimente qual o nexo entre 
ambos os elementos. Talvez se queira dizer que apartar os israelitas de seu 
trabalho justamente agora quando são numerosos causaria um dano muito 
grande ã economia do faraó ou então - isto é, a nosso ver, mais apropriado - 
que uma eventual greve ou revolta, por causa da multidão de trabalhadores 
envolvidos, resultaria num total descontrole não apenas da economia, mas 
de todo o sistema baseado na exploração. A essa rebelião poderíam juntar- 
se outros povos escravizados (cf. 12.38).
b) Endurecimento do tratamento dado a Israel (5.6-21)
6) E, nesse dia, o faraó ordenou aos inspetores do povo e a seus capa­
tazes:
7) Não continueis a fornecer palha ao povo para fazer tijolos, como se 
fez até agora; eles mesmos que vão e recolham a palha.
8) Mas exigi deles a mesma quantidade de tijolos que faziam antes, e 
não a diminuireis, pois estão ociosos. Por isso clamam, dizendo: “Vamos e 
ofereçamos sacrifícios a nosso Deus”.
9) E que seja mais pesado o trabalho dos homens, para que estejam 
ocupados e não deem ouindos a palavras mentirosas.
10) Saíram os inspetores do povo e seus capatazes e disseram ao povo: 
Assim disse o faraó: “Não vos darei palha.
11) Ide vós mesmos e recolhei a palha onde a achardes, porque a vossa 
tarefa não será diminuída”.
12) O povo se espalhou por toda a terra do Egito para recolher restolho 
em vez de palha.
13) E os inspetores os pressionavam, dizendo: Terminai a vossa tarefa, 
o de cada dia em seu próprio dia, como quando se vos dava a palha.
14) E os capatazes dos filhos de Israel eram açoitados, aqueles que ha- 
inam sido colocados sobre eles pelos inspetores do faraó; e estes lhes diziam: 
Por que não cumpristes nem ontem nem hoje a vossa quota de tijolos como 
antes?
15) E os capatazes dos filhos de Israel foram queixar-se ao faraó e lhe 
disseram: Por que tratas assim teus servos?
96
16} Não se fornece palha aos teus servos, mas nos dizem: Fazei tijolos! 
Além disso, somos açoitados, mas o culpado é o teu povo.
17) Ble respondeu: Estais ociosos, sim, ociosos; por isso dizeis: “Vamos 
e ofereçamos sacrifícios a Javé”.
18) Ide agora e trabalhai! Palha não se vos dará, contudo, tereis que 
entregar a mesma quantidade de tijolos.
19) E os capatazes dos filhos de Israel viram que tudo ia mal quando 
lhes disseram: “Não será diminuída a quota de tijolos de cada dia”.
20) E encontraram Moisés e Arão parados, ã sua espera, quando saí­
ram da presença do faraó;
21) e lhes disseram: Que Javé vos olhe e julgue, pois vós nos tomastes 
odiosos diante dos olhos do faraó e de seus servos; e lhes pusestes a espada 
em sua mão para que nos matem.
Introdução ao texto
Nesta unidade, distinguem-se três partes. A primeira relata a reação 
do faraó diante do pedido de Moisés e Arão e as consequências para o povo 
(v. 6-14). É a primeira vez que ele tem notícia de que os escravos pretendem 
sair do Egito para adorar seu Deus; mas ele não está disposto a permiti-lo. É 
normal que aqueles que detêm o poder sobre outros não queiram consentir 
nas reivindicações básicas e humanitárias. O temor que sentem está basea­
do na crença de que, se cederem no pouco, logo requererão também o resto; 
e nisso o faraó não se enganara. A resposta podería ter sido simplesmente 
a negação do pedido. Ele crê, no entanto, ser necessária uma demonstra­
ção de sua força e poder. Por isso aumenta adicionalmente a pressão sobre 
os escravos. Trata-se de um castigo por ousar pedir alguns dias livres de 
trabalho. Agora eles próprios terão que prover o material necessário para 
fabricar tijolos, sem, no entanto, poder diminuir a cota. A medida cria, ao 
mesmo tempo, inimizade entre os escravos e sua liderança, pois aqueles a 
responsabilizarão pelo endurecimento das condições de trabalho. Provocar 
a divisão entre os pobres é uma antiga e eficaz estratégia dos opressores.
A segunda cena mostra que os capatazes foram queixar-se ao faraó 
(v. 15-19). Esses capatazes são israelitas (cf. 5.6); eles expressam o sofri­
mento dos trabalhadores por causa da dureza do tratamento recebido. Sua 
reação é de incompreensão pelo que está acontecendo. Por que se pede algo 
impossível de nós? E por que somos maltratados quandonão cumprimos o 
que nos é solicitado? A resposta do faraó deve ter soado muito mal, pois sua 
explicação simplesmente não correspondia aos fatos. Eles sabiam que não 
estavam ociosos; pelo contrário, não tinham nenhuma folga no trabalho. 
Do ponto de vista teológico, estamos aqui diante de um momento especial 
do relato, pois se questiona o sistema escravagista como tal. Isso se dá de 
forma indireta, pois o que se pede do faraó, se levado ás últimas consequên­
cias, conduzirá á libertação definitiva e não somente a alguns dias de folga 
dedicados à devoção. O projeto de Deus não é humanizar a escravidão atra­
vés da eliminação dos excessos, mas erradicá-la de seu povo. Contudo, o
97
Antigo Testamento não contém uma crítica radical à escravidão, a ponto de 
condenar explicitamente o sistema escravagista. Aqui se denuncia apenas a 
opressão dos israelitas. Mas uma leitura atual nos permite, hermeneutica- 
mente, estender essa denúncia a toda e qualquer forma de opressão e explo­
ração humanas."' Os capatazes não veem essa dimensão; isso se evidencia 
na próxima cena.
Ao sair, os capatazes encontram-se com Moisés e Arão, que estavam 
esperando para saber a resposta do faraó (terceira cena: v. 20-22). Os capa­
tazes aproveitam a oportunidade para lançar-lhes na cara que sua pregação 
libertadora somente levara ao recrudescimento da opressão. Além disso, 
eles se tornaram mcds odiosos aos olhos do faraó e até de seus servos. Os 
capatazes não entendem que, ao solicitar uma folga de três dias para adorar 
a Deus, colocaram em evidência a desumanidade do sistema e a crueldade 
do poderoso rei. O rei deu-se conta do que está em jogo; por isso não lhes 
concede esse favor e aumenta a opressão; é sua estratégia para evitar rei­
vindicações maiores. Mas também Moisés entende o clamor dos capatazes, 
o que motiva o trecho seguinte, no qual ele expressa sua própria incompre­
ensão e contrariedade com o projeto de Deus (5.22-23).
Dois elementos estruturais devem ser destacados. O primeiro é a re­
petição do vocabulário que expressa servidão e opressão, que sempre é colo­
cado na boca do faraó. Em 4.23, aíirmou-se que Israel devería servir a Javé. 
Agora o faraó exige que sirvam mais a ele, colocando, assim, os israelitas 
numa encruzilhada. O autor procura descrever a situação mostrando o con­
traste entre a atitude insensivel do faraó e a realidade da vida dos escravos. 
Mas não se trata de uma redação ingênua; existe a consciência de que o 
processo iniciado conduzirá ã desarticulação do sistema de opressão, ape­
sar das contradições que surgem entre os próprios oprimidos no decorrer 
da caminhada.
O segundo elemento reside no fato de que, nessa passagem, os meca­
nismos de opressão são apresentados em sua forma mais realista e cruel. É 
comum encontrar nos comentários biblicos que esse treeho tem grande va­
lor histórico, pois ê um testemunho do sistema escravagista da antiguidade. 
Sem dúvida, isso está correto; mas o narrador não tem a intenção de ser um 
cronista isento; ele quer deixar uma mensagem teológica. Isso geralmente 
passa despercebido ao leitor moderno. A rejeição total da opressão daqueles 
dias mostra uma faceta central da vontade de Deus, que continua em vigor 
hoje em cada situação de opressão e angústia.
Análise detalhada
6-9 ► Estes versículos nos dão uma ideia da estrutura social instala­
da para dominar os escravos hebreus. Há dois níveis de comando; os ins-
Para um estudo histórico, cf. FONTENLA, C.A. La esclavitud a través de la Bíblia. EB 43, 
89-124, 237-274, 1985; DE VAUX, R. Instituciones delAntiguo Testamento, p. 124-137.
98
petores (hebraico nog^sim], termo formado de uma raiz com o significado 
de “pressionar” e “açodar (animal)”, e os capatazes (hebraico shotfrirn.), da 
raiz shatar (“escrever”), ou seja, pessoas que aparentemente também man­
tinham o controle da produção e faziam relatórios escritos. Note-se que os 
inspetores eram egípcios, enquanto os capatazes eram hebreus. Dessa for­
ma, os escravos não entravam em contato direto com os egípcios, mas re­
cebiam as instruções e os castigos de seus chefes israelitas. Também desse 
modo se causava uma divisão entre os escravos, pois se criava um escalão 
de israelitas privilegiados e isentos dos trabalhos mais pesados.=
A estratégia do faraó é absurda, tendo em vista seu próprio interesse; 
reflete o desespero que se oculta por trás de sua arrogância. Dessa manei­
ra, não alcançará outra coisa senão o desaparecimento de seus escravos 
por morte ou deserção. Ao mesmo tempo, o relato mostra que o autor sabia 
muito bem que o opressor não tinha dúvidas de que estava em jogo a pró­
pria existência de seu poder e de seus privilégios econômicos. O faraó não 
crê que os hebreus realmente estejam ociosos e que as palavras de Moisés 
tenham sido mentirosas. Mas ele apresenta a situação dessa forma para 
desarticular o processo de libertação. Interpretar o desejo de oferecer sacri­
fícios a Deus como produto da preguiça é uma atitude típica de opressores 
que vislumbram em tudo o que os escravos fazem uma ameaça a seu poder. 
Endurecer as condições de trabalho como estratégia de distanciá-los do dis­
curso de Moisés pode parecer um erro, mas funcionou muito bem, de acordo 
com os V. 20-21.
10-14 ► Os capatazes transmitem ao povo a ordem do faraó e mandam
cumpri-la, apesar de saber que é impossível fazê-lo. As pessoas espalham-se 
em busca da matéria-prima necessária para a produção de tijolos; por esse 
motivo produzem menos do que antes. Esse fato leva os inspetores egípcios 
a açoitar (hebraico yuku, da raiz nakah, “bater com raiva”; é a mesma que 
aparece em 2.11-12), em represália, os capatazes hebreus. Os inspetores 
egípcios devem prestar contas ao faraó; o fato de a produção ter diminuído 
provavelmente também trará problemas para eles. Eles são responsáveis 
para levar adiante a estratégia de exigir mais do que é possível realizar, para 
depois acusar os envolvidos de não ter cumprido sua obrigação. Essa estra­
tégia é própria dos sistemas de exploração que entram em crise, mas não o 
notam a não ser quando o processo de libertação já está bastante avançado. 
Na prática, os pobres não têm alternativas; mas chega o momento em que 
tampouco o opressor tem alternativas, uma vez que será obrigado a encarce­
rar o infrator - que, portanto, deixará de produzir para ele - ou a abandonar 
a sua política, o que poderia denotar perda de poder diante dos súditos. É 
uma estratégia desesperada, ainda que seja levada a cabo como se o opres­
sor tivesse total controle da situação.
J. Pixley caracteriza esses israelitas de “vendidos” ao poder do faraó em troca de benefícios 
pessoais [cf. PIXLEY, J. Êxodo, una lectura evangélica y popular, p. 66).
99
15-19 ► Curioso é que os capatazes tenham acesso direto ao faraó. 
Levam sua queixa a ele e autodenominam-se de “teus servos” (hebraico 
‘abadeka)] isso não parece ser uma estratégia, mas a forma protocolar de 
dirigir-se ao rei. Eles vão e acusam os inspetores de açoitá-los e enfatizam 
que a ordem é impossível de cumprir: sem palha não podem fazer tijolos. A 
resposta do faraó é confusa, de um lado, mas nítida, de outro. Em vista do 
que fora dito a Moisés e Arão em 5.4-5, está claro que o faraó não pensa que 
o povo esteja ocioso ou que não queira trabalhar. Pois então acusou Moisés 
e Arão de desviar o povo de seu trabalho. Ao culpar o povo de ociosidade, 
lança, portanto, mão de um argumento tendencioso, que busca responsa­
bilizar os escravos pela queda na produção. Como já mencionamos, é um 
argumento sem base nem futuro; a médio prazo, solapará o próprio poder 
do faraó. No momento, entretanto, o argumento serve para acusá-los e peira 
atribuir o pedido de adorar Deus à disponibilidade de tempo livre. Chama a 
atenção que a religião, que serviu, muitas vezes ao longo da história, para 
legitimar sistemas opressores, é denunciada aqui pelo próprio opressor. O 
faraó construía o seu poder sobre a fé do povo, que acreditava ser ele um 
semideus na terra; dessa forma,o religioso consolidava o político. Mas aqui 
se defronta com um povo que não aceita essa identificação e para o qual 
o religioso não legitima o político; pelo contréirio, questiona-o. Nesse caso, 
o rei vé com clareza que a religião não serve a seus interesses; por isso a 
despreza e busca tirar-lhe toda a sustentação social. Para o faraó, a religião 
israelita não é uma fé genuína, mas uma doença social produzida pelo ócio 
e pela preguiça.
O V. 19 apresenta os capatazes muito preocupados com o que ouvi­
ram. O texto parece indicar que tomaram consciência de que o plano do 
faraó não é nada racional; nasce, ao contrário, do desespero. O problema é 
que, geralmente, são os mais pobres que pagam o preço dos desvarios dos 
poderosos. Eles esperavam que o rei compreendesse as razões de sua queixa 
e mudasse a decisão. Talvez até pensassem que o endurecimento se devesse 
ao fato de ele estar mal assessorado e desconhecer a real situação. Agora 
percebem que ele não tem ouvidos para argumentos e que tudo se encami­
nha para a radicailização do conflito. Para eles, “tudo ia mal”.
20-21 ► A terceira cena surpreende o leitor. Acontece que Moisés e Arão
estavam esperando na porta do palácio para saber o resultado da negociação 
dos capatazes com o faraó. A narrativa não esclarece se a presença de Moi­
sés e seu irmão nesse lugar fazem parte de uma estratégia combinada com 
os capatazes ou se estão agindo por conta própria. O que fica claro é que as 
palavras dos capatazes não são as que Moisés e Arão esperavam. Dizem-lhes 
que o Deus que invocam para conduzir as negociações com o faraó no intuito 
de libertá-los deveria julgá-los a eles próprios por ter colocado o povo à beira 
do extermínio por parte dos governantes. Com seu discurso libertador pro­
vocaram a ira do faraó e até de seus servos; com suas atitudes criaram as 
condições sociais perfeitas para justificar um genocídio por parte do faraó.
100
A estratégia do faraó deu bons resultados. Os próprios israelitas co­
meçam a questionar a liderança de Moisés e a posicionar-se contra o plano 
de libertação. Os capatazes entendem que um plano que coloca em risco 
a sua própria existência não pode vir de Deus. Como Moisés (cf. v. 22-23), 
também eles ainda não creem que o Deus que se autodefine como “aquele 
que está” (3.14) não os abandonará e lhes mostrará o caminho para a liber­
dade. Quando o texto insiste que devem sair do Egito para servi-lo, coloca-se 
em jogo a identidade do povo e a pertença ao Deus de seus pais. O faraó exi­
ge ser servido; também Deus o requer. Os israelitas devem escolher a quem 
querem servir. Em todo caso, é uma opção retórica, pois Deus já decidiu que 
libertará seu povo de qualquer forma. A próxima unidade reafirmará isso 
com a suficiente clareza.
c) Moisés clama a Deus (5.22-6.13)
22) Moisés voltou-se a Javé e perguntou: Meu Senhor, por que tratas 
mal esse povo? Para que me enviaste?
23) Pois, desde que fui ao faraó para falar-lhe em teu nome, ele fez mal 
a esse povo e tu não libertaste o teu povo.
6.1) Javé respondeu a Moisés: Agora verás o que farei ao faraó, pois 
com mão poderosa os deixará ir e, com mão poderosa, os lançará fora de sua 
terra.
2) E Deus falou a Moisés e lhe disse: Eu sou Javé.
3) Aparecí a Abraão, Isaque e Jacó como Deus forte, mas a eles não me 
dei a conhecer pelo meu nome Javé.
4) Também estabelecí com eles minha aliança, para dar-lhes a terra de 
Canaã, a terra em que foram estrangeiros e onde habitaram.
5) Também ouvi o lamento dos filhos de Israel, que os egípcios mantêm 
como escravos, e lembrei-me da minha aliança.
6) Portanto, dirás aos filhos de Israel: “Eu sou Javé e vos tirarei de 
debaixo dos pesados trabalhos do Egito, vos libertarei de vossa escravidão e 
vos resgatarei com braço estendido e com grande justiça.
7) Tomar-vos-ei por meu povo e serei vosso Deus. Assim sabereis que eu 
sou Javé, vosso Deus, que vos tirou de debaixo dos duros trabalhos do Egito.
8) Levar-vos-ei ã terra, pela qual ergui a minha mão para dá-la a Abraão, 
Isaque e Jacó. Eu vo-la darei por herança. Eu sou Javé”.
9) E Moisés falou desse modo aos filhos de Israel; mas eles não escuta­
ram Moisés, por causa da angústia que havia em sua alma, provocada pela 
dureza da escravidão.
10) Javé disse a Moisés:
11) Entra e dize ao faraó, o rei do Egito, que deixe os filhos de Israel 
partirem de sua terra.
12) Moisés respondeu diante de Javé: Se os filhos de Israel não me es­
cutam, por que me escutaria o faraó, a mim que sou impuro de lábios?
101
13) Javé falou a Moisés e a Arão e lhes deu ordens para os filhos de 
Israel e para o faraó, o rei do Egito, a fim de que tirassem os filhos de Israel 
da terra do Egito.
Introdução ao texto
Nesta unidade, o protagonista principal é o próprio Javé. Inicia com 
uma reclamação de Moisés, que se sente responsável pelo aumento do so­
frimento do povo. Foi disso que o acusaram; e ele entende que está correto 
o que disseram. Busca agora uma explicação de Deus para o que considera 
uma tragédia causada por sua fidelidade à missão. Ao mesmo tempo, deixa 
transparecer uma repreensão quando diz que Deus, na verdade, não liber­
tou o povo. Talvez Moisés esperasse uma libertação instantânea ou fácil. A 
resposta de Deus será contundente.
A aparente nova introdução ao discurso de Javé, no v. 2, parece in­
dicar que estamos diante de um texto compósito. Afirmou-se que se trata 
de uma nova apresentação de Deus a Moisés, de seu nome e de seu pro­
jeto para Israel. Por isso deve-se perguntar pela relação existente entre o 
presente texto e Êxodo 3.1-4.17. Ao mesmo tempo, o vínculo entre o texto 
analisado e a genealogia que o segue (6.14-27) evidencia a continuidade da 
narrativa e sua unidade semântica. No lugar onde se encontra, a genealogia 
é uma unidade que interrompe o fio condutor da narrativa, mas não sem dar 
ao texto um significado particular. De fato, a pergunta de Moisés, em 6.12, é 
respondida por Javé em 7.1, evidenciando o corte causado pela genealogia. 
Esses temas serão abordados na análise detalhada. Agora interessa desta­
car o caráter da resposta de Deus nos v. 2-8. Deus não tenta justificar a sua 
ação nem explicar de novo o que tem feito em favor de seu povo. A resposta 
consiste em revelar seu nome e mostrar-se como aquele que cumpre a pro­
messa feita aos pais, a promessa que esses não chegaram a ver realizada. 
Como também em outras ocasiões, o nome de Deus é problemático e até 
enigmático; porém o próprio texto mostra pelas repetições (v. 2, 6, 7, 8) que 
a mensagem de libertação está intimamente ligada ao nome de Deus. Ao 
dizer que Deus não deu a conhecer seu nome aos pais, o texto convida-nos 
a fazer uma especulação hermenêutica - não tanto linguística ou histórica 
-, uma vez que Deus é designado com esse nome no livro de Gênesis, com 
certa regularidade nas narrativas dos patriarcas (cf. 6.1-4).
A seguir, o narrador relata-nos que Moisés se dirigiu aos israelitas com 
essa mensagem; esses, no entanto, não conseguiram escutá-lo por causa da 
angústia e do pesar que os dominavam (v. 9). A opressão era tanta, que im­
pedia os ouvidos de perceber a palavra da libertação. Desse modo, Moisés 
apresenta novamente a desculpa de que não é suficientemente eloquente e 
que, se não é capaz de convencer os israelitas, que dirá convencer o próprio 
faraó! Depois disso. Deus parece perder a paciência e, em vez de mostrar 
o que Moisés deve fazer, dá-lhe ordens para transmitir tanto aos israelitas 
como ao faraó. As ordens têm a finalidade de libertar Israel da escravidão.
102
Análise detalhada
22-23 ► O íio narrativo dá continuidade ao relato anterior sem inter­
rompê-lo. Agora Moisés se dirige a Deus, assumindo as queixas feitas pelos 
capatazes (v. 21). Suas palavras refletem uma profunda crise de identida­
de e vocação. Para que me enviaste? Por que fazes mal a esse povo? São 
perguntas que remetem ao chamado inicial, mas que também traduzem a 
frustração de ter crido no projeto de Deus e agora perceber que, em vez de 
ajudar seu povo,ele o está levando à ruína. O que mais confunde Moisés 
é 0 fato de ter ido ao faraó em nome de Deus (hebraico bisYfmeka, “em teu 
nome”), mas ser obrigado a reconhecer que a fórmula que deveria abrir por­
tas não deu o resultado esperado; ao contrário, fez com que a situação do 
povo continuasse piorando, enquanto a promessa de libertação é adiada; 
parece até que não mais se realizará (3.17).
1-4 ► Deus reafirma a Moisés que a libertação é iminente. Diz-lhe que,
na próxima vez, o faraó os deixará partir. Pela primeira vez, menciona-se 
que não apenas os deixará partir, mas os expulsará (hebraico y^gar^shem), 
o que se concretizará posteriormente (12.31-32). Abre-se, a seguir, um novo 
tema, quando se afirma que a aparição de Deus aos pais Abraão, Isaque e 
Jacó ocorreu sob o nome de El Shaday^ e não sob o nome pelo qual Moisés o 
conhece; esse nome não foi revelado aos pais. Essa afirmação já deu muito 
o que falar e requer nossa análise. Em primeiro lugar, constatamos que o 
nome de Javé vem sendo utilizado desde os primeiros capítulos de Gênesis. 
No nível do relato, portanto, ele era conhecido pelos patriarcas.’ A seguir, 
altema-se com El Shaday, em Gn 17.1, Deus revela-se a Abraão sob esse 
nome; em 28.3 e 35.11, revela-se a Jacó sob o nome de El Shaday. Em ne­
nhum caso, esse nome é contraposto a outro; por esse motivo, é provável 
que estejamos diante de um tecido de tradiçóes muito antigo, que, por oca­
sião da redação, não mais eram incompatíveis. Todavia, deve-se observar 
que o texto final aceita que o nome era Javé e que era assim que Deus se 
chamava desde antigamente.
A exegese que considera a divisão em fontes uma das principais cha­
ves para interpretar os textos afirma que, enquanto a revelação a Moisés que 
consta em 3.1-4.17 corresponde à combinação de fontes javistas e eloístas, 
em 6.2ss encontra-se um texto da fonte sacerdotal. As características lite­
rárias evidenciam-no de forma incontestável.® As conclusões que se tiram 
dessa afirmação, no entanto, são vãrias. Costuma-se falar em “outro cha-
Algumas versões traduzem o sentido de ambas as palavras; “Deus forte” ou “Deus todo-po- 
deroso”. Mas o contexto mostra que se quer dar simplesmente um nome, não seu significado, 
para, logo a seguir, confrontá-lo com o “novo” nome: Javé. Traduzir de outra forma implicaria 
perder a relação entre os dois nomes.
A primeira referência aparece em Gn 2.4; em 4.26, afirma-se que, desde esse momento, 
começou-se a invocar seu nome. Em 12.8, menciona-se que Abraão invocou o nome de Javé. 
Cf. NOTH, M. Exodus, p. 58-59.
103
mado” ou “segundo chamado” de Moisés ou, então, de uma segunda versão 
do mesmo chamado. Em todo caso, na perspectiva da narrativa, não se pode 
aceitar uma repetição sem mais nem menos. A retomada de um tema já se 
dá num estágio narrativo diferente do primeiro momento, implicando con­
sequências semânticas distintas. Estaremos dentro de um mesmo universo 
temático, mas, por já termos percorrido um certo trecho, vamos ler essa 
nova página não como um paralelo nem como uma alternativa â anterior, 
mas como a segunda página.O leitor já conhece a primeira, e esse conhe­
cimento faz parte da bagagem com a qual se aproxima da segunda página.
Nessa perspectiva, é interessante observar não apenas as semelhan­
ças, mas também as diferenças entre 3.1-4.17 e 6.2-13. As principais seme­
lhanças são que, em ambos os casos. Deus revela-se espontaneamente a 
Moisés, com o argumento de que ouvira os gemidos de seu povo.‘“ Nas duas 
narrativas está em jogo o nome de Deus; ambas têm a finalidade de enviar 
Moisés com a missão especial de libertar o povo da escravidão. Em ambos 
os casos, Moisés faz objeções, e Deus refuta-as e segue adiante com sua 
proposta. A promessa da terra é central em ambas as narrativas. Quanto ás 
diferenças, pode-se ver que a primeira narrativa está ambientada em Midiã, 
a segunda no Egito. A primeira mostra uma continuidade natural com os 
pais Abraáo, Isaque e Jacó, enquanto a segunda estabelece uma radical di­
ferença entre os pais e a geração presente devido ao conhecimento do nome 
de Deus. Além disso, no primeiro relato, não se enfatiza o nome próprio de 
Deus (“Javé”); ele é adotado enquanto parte do discurso; no segundo texto, 
há quatro menções do nome próprio (v. 2, 6, 7, 8), às quais o relato atribui 
um valor intrínseco, como se fosse dito: “Se sabes que meu nome é Javé, 
como podes esperar outra coisa de mim?”. Essas diferenças fazem com que 
o relato avance para um novo estágio, que consiste basicamente no fato de 
que o anunciado e prometido aos pais agora se cumpre. Entendido desse 
modo, o V. 3 evidentemente não deve ser entendido no sentido de que antes 
não conheciam o nome próprio Javé, mas no sentido de que para eles esse 
nome não significava que Deus estava operando, nesse exato momento, a 
libertação anunciada. A geração de Moisés agora sabe que o nome de seu 
Deus quer dizer que a libertação prometida foi colocada em movimento. 
Trata-se aqui de uma abordagem hermenêutica e não etimológica do nome.”
O V. 4 menciona a aliança com os pais. Faz-se referência especialmen­
te a Gn 17.4-8. Já houve uma alusão a esse texto em 2.24. Agora, ela quer
® O mesmo acontece com os (mal) denominados primeiro e segundo relatos da criação de Gn 
1-2; cf. ANDINACH, P. Gênesis. In; LEVORATTI, A. (ed.) Comentário Bíblico Latinoamericano, 
p. 369-372.
Paira tanto é necessário aceitar que 6.2 constitui o início de uma nova unidade literária; 
numa leitura diacrônica, isso é evidente, pois contém a expressão “Deus falou a Moisés [...]”, 
que inicia um novo discurso, distinto de 6.1.
' ■ Para que o sentido etimológico das palavras adquira valor semântico em uma narrativa par­
ticular, deve-se avaliar o contexto literário em que se encontra e buscar indícios que aludam 
a esse sentido. Às vezes, não se observa o sentido etimológico como referente do discurso; 
outras vezes, cria-se uma etimologia artificial e circunstancial (cf. 2.10).
104
reafirmar a vontade divina por libertação. Se Moisés tinha dúvidas sobre o 
projeto, agora ele recebe essa nova palavra de Deus. De qualquer forma, terá 
que crer nela.
5-8 ► A expressão “lembrei-me (hebraico ’ezkor) da minha aliança”‘= pa­
rece deixar entrever que Deus a tinha esquecido entre a época dos pais e a 
época de Moisés. De acordo com 12.40, o período de permanência no Egito 
foi de 430 anos; assim o relato demarca os anos entre a liderança de Jacó 
e a liderança de Moisés. O mesmo verbo é utilizado em 2.24; ele pressupõe 
uma atitude bastante típica da mentalidade bíblica; durante a “escravidão” 
Deus esquece seu povo. Em nossa sensibilidade moderna, essa visão pode 
parecer um tanto estranha e até injusta para com Deus. Mas, de acordo com 
a forma de perceber a relação com Deus naquela época, essa expressão era 
normal e clara'^, ainda mais quando havia bastante liberdade na atribuição 
de qualidades humanas a Deus.
As sucessivas menções de “Eu sou Javé” (hebraico ’ani yhwh) pode- 
riam pressupor que o povo identificasse o nome com o ato de libertação. 
Tudo indica que não era assim até esse momento. Mas também não se pode 
descartar a possibilidade de estarmos diante de um vaticinium ex eventu: 
apõs os israelitas se estabelecerem em Canaã, releem a história e identifi­
cam o nome de Deus com a promessa já realizada. Não nos deve surpreen­
der o fato de o redator vincular ao nome de Javé um conteúdo que ainda não 
tinha quando o relatado supostEimente aconteceu. Em geral, isso é a regra e 
não a exceção na evolução hermenêutica. O texto apresenta-se como antigo 
- o ocorrido até pode sê-lo -, mas ê refundido numa teologia posterior, que 
também incorpora elementos linguísticos e literários novos.
Para convencer Moisés, o restante do texto insiste nas promessas já 
feitas. As formas verbais no futuro “tomar-vos-ei por meu povo e serei vosso 
Deus” (v. 7) levantam novamente a pergunta pela relação entre Deus e o 
povo durante o período de permanência no Egito. A narrativa supõe, bem 
tranquilamente,que agora Deus estã propondo criar essa relação que pa­
rece não ter existido até o momento. Quanto a isso, devem-se observar dois 
aspectos. Em primeiro lugar, na passagem das narrativas de Gênesis para o 
livro do Êxodo, ocorreu uma mudança de ator: os israelitas deixaram de ser 
uma família para tomar-se um povo (cf.1.7); as relações devem, portanto, 
acomodar-se a essa nova realidade. O autor pode estar querendo indicar 
que agora o vínculo é diferente, sendo, por isso, necessãria uma afirmação 
que o atualize. Em segundo lugar, a expressão pode ter um conteúdo teoló­
gico e não histórico, ou seja, não se pensa numa situação histórica em que 
os israelitas foram ou não foram o povo de Deus, mas em uma atitude ou 
relação que pode variar de acordo com as circunstâncias. Nesse sentido.
É uma expressão típica da literatura de Canaã; refere-se a que os deuses “se lembram” de 
suas promessas; cf. DEL OLMO LEH'E, G. Mitos e leyendas de Canaán según la tradición de 
Ugarit, p. 261.
Cf. as narrativas de Gn 1-4, Is 1.2, Jr 23.20, entre outras.
105
deve-se entender a mesma expressão em Jr 31.33 e Os 2.26 [2.23], onde 
não se quer afirmar que antes Israel não era povo de Deus, mas que a rela­
ção de fidelidade mútua estã por ser restabelecida. Assim também deve ser 
entendida a expressão “e sabereis (hebraico wiydatem] que eu sou Javé”. 
Encontramo-la algumas vezes mais no livro de Êxodo; trata-se, no entanto, 
de uma frase típica do livro de Ezequiel, onde ela aparece umas vinte vezes.''' 
Cá e lá ela indica que, em um novo contexto, abre-se a possibilidade de res­
tabelecer a relação que antes estava deteriorada.
9 ► Este versículo revela uma profunda sensibilidade sociológica e psi­
cológica do autor. Sem dúvida, ele conhecia a experiência da escravidão, 
seja a do Egito ou a de sua própria época."' Talvez se deva dizer que, como 
bom autor, soube colocar em sua narrativa a experiência de vida em sua 
própria época e, assim, transmitir uma mensagem crível aos homens e ãs 
mulheres de seu tempo. Tocante é a postura de não julgar moralmente 
aqueles que não escutaram as palavras de Moisés. Não se afirma que eles 
tenham sido duros de coração ou desprovidos de fé. Tampouco se diz que 
eles fugiam de suas responsabilidades religiosas ou sociais por não fazer 
caso das palavras de Moisés. Diz-se, pelo contrário, que não escutavsim 
Moisés, porque a opressão que pesava em suas vidas era tão forte, que os 
impedia de reconhecer Deus por trás das palavras ditas por seu enviado. A 
opressão chega a anular o desejo de libertação ou a desumanizar as pessoas 
a ponto de perder as esperanças por transformação. A condição de oprimido 
foi introjetada ao ponto de a pessoa perder a capacidade de imaginar uma 
situação diferente, de liberdade.'" Trata-se de um texto rico e profundo, que 
cala fundo nos povos que sofreram opressão prolongada; por isso pode agir 
como antídoto poderoso contra toda forma de acomodação à situação de 
pobreza e opressão.
10-13 ► Como se tivesse participado da reflexão anterior, em vez de
dirigir-se aos israelitas. Deus ordena a Moisés para ir e dizer ao faraó que 
deixe seus escravos saírem. A narrativa soa um tanto ingênua, mas essa é a 
maneira como escreve o autor bíblico; essa era a forma que o leitor da época 
aceitava e compreendia. Mas isso não nos deve confundir nem levar a pen­
sar que o autor era, de fato, um ingênuo no tocante às coordenadas políticas 
e sociais que estavam em jogo. Ainda que em perspectivas distintas, tanto 
5.21 como 6.9 evidenciam uma percepção sutil do jogo social e político por 
trás dessa trama. Por trás do texto está a busca por provas. A reivindicação
‘ Ez 6.7,13; 7.4,9; 11.10 etc.
‘ Supõe-se que o redator final seja pós-exílico e que o texto reflita essa época; cf. a descrição 
da situação do povo de então em Ne 9.36-37.
' Depois de analisar os aspectos econômicos e sociais desse texto, S. Croatto enfoca também 
a situação religiosa por trás dele ao dizer que “o alienado não só não tem consciência do 
que pode ser ou fazer, mas também aceita que as coisas não podem ser diferentes. Pode até 
entender que sua situação é boa senão a melhor”, desde que tenha uma fé religiosa que o 
“ampare” [CROATTO, S. Liberadón y libertad. Pautas hermenêuticas, p. 35[.
106
tem que ser feita ao faraó, para que se possa, então, constatar que sua res­
posta não satisfaz.
As palavras de Moisés ecoam Êx 4.10, onde ele também manifestara 
sua dificuldade de comunicação oral. Os termos utilizados no texto anedi- 
sado são diferentes (hebraico ‘arai sefatayim, literalmente “incircunciso de 
lábios”) e não parecem ter vínculos literários — somente semânticos - com 
aquele outro. Reencontraremos a expressão no v. 30 após o parêntese da ge­
nealogia. Que significa, afinal, essa expressão? No sentido simbólico, encon­
tramo-la em numerosos textos, o que mostra que a imagem podia ser em­
pregada de modo flexível e não somente no sentido literal.'^ Em nosso caso, 
indica a inaptidão para a tarefa; mas acrescenta um elemento que não está 
presente em 4.10: parece que Moisés não tem a devida bênção para exercer 
a tarefa (não está “puro”). Moisés duvida de que Deus o tenha capacitado 
suficientemente para desempenhar a função que lhe foi confiada; por isso 
o autor recorre a uma expressão que reflete a distância entre o projeto e a 
bênção divina necessária para executá-lo. Aqui o argumento de Moisés não 
provocou a irritação de Deus; pelo contrário, levou a entender que o próprio 
Deus conduziría os acontecimentos. Consequentemente, o v. 13 apresente 
uma mudança; agora Deus inclui Arão em seu discurso e dá-lhes ordens, a 
ser transmitidas tanto para os israelitas como para o faraó. Parece que Deus 
chegou ã conclusão de que deve agir com clareza e firmeza; do contrário, o 
projeto não será executado.
d) Genealogia de Moisés e Arão (6.14-27)
14) Estes são os chefes de suas casas paternas: os filhos de Rúben, o 
primogênito de Israel: Enoque e Palu, Hezrom e Carmi. Estas são as famílias 
de Rúben.
15) Os filhos de Simeão: Jemuel, Jamim, Oade, Jaquim, Zoar e Saul, 
filho de uma cananeia. Estas são as famílias de Simeão.
16) Estes são os nomes dos filhos de Levi, segundo suas gerações: Gér­
son, Coate e Merari. Os anos da vida de Letri foram cento e trinta e sete anos.
17) Os filhos de Gérson: Libni e Simei, segundo suas famílias.
18) Os filhos de Coate: Anrão, Isar, Hebrom e Uziel. Os anos da vida de 
Coate foram cento e trinta e três anos.
19) Os filhos de Merari: Mali e Musi. Estas são as famílias dos levitas, 
segundo as suas gerações.
20) E Anrão tomou por mulher Joquebede, sua tia, que deu à luz a Arão 
e Moisés. Os anos da vida de Anrão foram cento e trinta e sete anos.
21) Os filhos de Isar: Corá, Nefegue e Zicri.
22) Os filhos de Uziel: Misael, Elzafã e Sitri.
23) E Arão tomou por mulher Eliseba, filha de Aminadabe, irmã de Naa- 
som; ela deu à luz a Nadabe, Abiú, Eleazar e Itamar.
Cf. Lv 19.23, Jr 4.4, 6.10, Ez 44.7,9, entre outros.
107
24) Os filhos de Corá: Assir, Elcana e Abiasafe. Estas são as famílias 
dos coraítas.
25} E Eleazar, filho de Arão, tomou por mulher, para si, uma das filhas 
de Putiel; ela deu à luz Fineias. Estes são os chefes dos pais dos lemtas, se­
gundo as suas famílias.
26) Estes são Arão e Moisés, a quem Javé disse: Tirai os filhos de Israel 
da terra do Egito, por batalhões.
27) Estes foram aqueles que falaram ao faraó, rei do Egito, para tirar os 
filhos de Israel do Egito. São estes Moisés e Arão.
Introdução ao texto
De certa forma, essa genealogia quebra a continuidade da narrativa. 
Mas o narrador do Êxodo certamente não comungaria dessa opinião. Acon­
tece que os fatos começam a precipitar-se; a partir de 6.13, não há mais 
volta. Nesse exato momento, o autor introduz essa informação (e também o 
trecho seguinte: 6.28-7.7) no intuito de colocar claramente a situação final 
antes de encarar os próximos passos. O texto mostra ao leitor quais são as 
pessoas que Deus designou para a tarefa. Busca-se assegurar a linhagemlevítica de Arão e Moisés. Essa informação era crucial para o leitor pós- 
exílico, pois dava legitimidade a toda a narrativa.
Na leitura de cada genealogia, é importante estar atento a três ele­
mentos, que, estando presentes, comportam um significado particular. Em 
primeiro lugar, dentro da estrutura repetitiva própria do gênero, devem- 
se procurar as diferenças. Quando o autor, em um determinado momento, 
afasta-se do padrão estabelecido, ele quer destacar algo. Em segundo lugar, 
deve-se observar o ramo genealógico que se segue. Normalmente, opta-se 
por determinados ramos, enquanto outros são esquecidos. Esses, ãs vezes, 
também são significativos, justamente por ter sido omitidos. Em terceiro 
lugar, deve-se observar se foram introduzidas interpolações ou comentários 
que interrompem o fluxo regular das informações genealógicas. Em cada 
caso, deve-se buscar desvendar a intenção desses elementos.
Análise detalhada
14-25 ► A genealogia inclui somente os três primeiros filhos de Jacó.
Segue-se Gn 46.8-11 e mencionam-se Rúben e Simeão com os nomes dos 
filhos. Copia-se o texto de Gênesis ao afirmar que Rúben era o primogêni­
to, e o último filho de Simeão era filho de uma mulher cemaneia. Disso se 
podería deduzir que, para essa missão, não foi escolhida a linha sucessó­
ria do primogênito e que Deus, portanto, considera outras características 
quando procura alguém que o represente.^» O filho cananeu de Simeão foi 
provavelmente mencionado a fim de mostrar que os levitas não são a única
Cf. 4.22.
108
tribo que apresenta lacunas em sua ascendência, justificando, assim, im­
purezas como, por exemplo, o caseimento de Anrão com sua tia ou a esposa 
midianita de Moisés. Não fica clauro por que se mencionam apenas Rúben 
e Simeão e não a lista completa de Jacó. Mas evidentemente se seguiu a 
ordem cronológica; a relação para então justamente no momento em que se 
apresenta o ramo que interessa ao narrador. A genealogia de Levi pode ser 
melhor visualizada no seguinte esquema:
Rúben Simeão Levi
(com Joquebede)
Arão Moisés
/
(com Eliseba)
Nadabe Abiú Eleazar Itamar Assir Elcana Abiasafe 
\
(com uma filha de Putiel)
Fineias
Cabe chamar a atenção para o fato de que a ramificação só avança 
numa direção, desprezando as outras. Isso mostra a intenção do narrador 
e demonstra novamente que as genealogias não são mera exposição de su­
cessivos nomes, mas têm um interesse particular em ressaltar ou atenuar 
determinadas informações. Mencionam-se os três filhos de Levi e, depois, os 
filhos de cada um desses. Aqui se opera a primeira seleção, pois se continua 
somente com a linha sucessória de Coate, o segundo filho de Levi. Coate teve 
quatro filhos; os sucessores de apenas três deles são apresentados, sem que 
sedbamos por que se abandona o ramo de Hebrom. Desses três filhos eleitos, 
abandona-se, a seguir, a linhagem de Uziel para continuar com a sucessão 
dos outros dois, Anrão e Isar. Nesse ponto, a lista afasta-se do padrão ao 
fornecer o nome da esposa de Anrão, o que ainda não havia ocorrido atê
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agora. Também se diz que Joquebede era sua tia' ,̂ o que coloca o matri­
mônio numa situação difícil, porque, conforme a lei de Israel, esse tipo de 
união era proibido e considerado incestuoso. Em Lv 18.12-13, proíbem-se 
relações sexuais com a irmã do pai ou da mãe. Embora se possa argumentar 
que essas leis “vieram depois”, por ocasião da revelação no Sinai - esse é o 
argumento responsável para que a mácula não excedesse os limites social­
mente aceitáveis aos ouvidos dos redatores de então -, o problema não era 
de pouca monta aos olhos do narrador pós-exílico. Nesse caso, cabe a per­
gunta: se o redator mostra tanta liberdade, em outros textos, de cortar ou 
acomodar certas informações ã sua teologia ou moral, por que não eliminou 
aqui a informação que desabonava os passados de Moisés e de seu irmão? 
Em nossa opinião, a resposta é teológica e aplica-se também a outros casos 
no Antigo Testamento: a narrativa biblica busca mostrar, em toda a pleni­
tude, a humanidade dos homens e das mulheres de Deus. Não existe nada 
mais estranho ãs histórias bíblicas do que um herói sem mácula ou sem 
limitações. Deus chama pessoas que se entregam a seu projeto, mas que 
não deixam de ser humanos falíveis nem de cometer deslizes sociais. Nossa 
sensibilidade moderna enfatiza a responsabilidade pessoal, por isso não é 
fácil entender por que as falhas dos antepassados eram contadas na épo­
ca de seus descendentes. Apesar disso, devemos lembrar que, nos tempos 
bíblicos, a família era uma instituição muito estável e, além disso, exten­
sa; nela agregavam-se e conviviam, de modo contínuo, sucessivas gerações 
na mesma terra. Assim, uma falta grave de um antepassado “maculava” o 
nome da família de forma duradoura e profunda.^"
Mencionam-se, então, os filhos de Isar (v. 21) e de Uziel (v. 22) e pros­
segue-se com a linhagem de Anrão e Joquebede através do ramo de Arão, 
omitindo Moisés e sua irmã. Novamente o texto modifica a estrutura básica 
ao informar o nome da esposa de Arão. Com Eliseba ele terá quatro filhos. 
Também ficamos sabendo o nome do pai e do irmão de Eliseba: Aminadabe 
e Naasom. Esses nomes também são mencionados na lista de ascendentes 
de Davi (Rt 4.19; ICr 2.10). Isso levou ã hipótese de que, com Eliseba, a li­
nhagem levítica se une com a judaíta e, portanto, real. Essa união deve ter 
sido muito festejada na época pós-exílica, quando já não havia monarquia 
em Israel e especulava-se com a vinda de um broto da casa de Davi, que 
iniciaria uma nova etapa da história do povo.
O V. 24 fornece a descendência de Corá, mencionando os nomes dos 
três filhos, mas não vai adiante com esse ramo da árvore genealógica. O 
versículo seguinte continua a linha sucessória de Arão através de Eleazar, 
porque esse foi o filho que assumiu a liderança dos levitas (Nm 3.32) após a 
morte de seus irmãos Nadabe e Abiú (Lv 10.1-2). Diz-se que Eleazar tomou
Ela é designada dodah, que significa “tia” ou “amada”. A tradução “tia” tem o apoio da LXX, 
Vulgata e Peschita; o Targum Onkelos e o Targum Pseudo-Jônatas confirmam essa acepção. 
2“ Esse é o sentido da expressão bíblica que diz que Deus castiga o pecador “até a terceira e 
quarta gerações” (cf. Êx 20.5; 34.7), ou seja, a dimensão do pecado de uma pessoa chega a 
macular os descendentes ao legar-lhes um nome desprestigiado por uma determinada ação.
110
uma esposa da família de Putiel e que ambos tiveram um filho chamado 
Fineias. Esse neto de Arão é lembrado por seu zelo em preservar a fé de 
Israel livre de idolatrias, quando o povo foi tentado pelos moabitas a adorar 
seus Deuses (Nm 25.1-11). Com ele se encerra a genealogia, colocando em 
evidência a intenção anti-idolátrica do texto. Queremos fazer as seguintes 
observações:
1 - Em quatro oportunidades, utiliza-se a expressão “essas são as 
famílias” (hebraico ’eleh mishpehot), para encerrar uma linha sucessória. 
Entendemos a expressão no sentido de: “essa é a soma dos descendentes”. 
Nas duas primeiras vezes, elas correspondem ã linhagem de Rúben e Si- 
meão; nas duas últimas, a Corã (v. 24) e Levi (v. 25). Note-se que, quando 
aplicada a Levi, a fórmula é diferente das outras três vezes: é mais extensa e 
tem elementos em comum com a fórmula introdutória da genealogia (v.l4): 
“esses são os chefes dos pais”. Cria-se, assim, uma inclusão que indica o 
início e o fim da unidade. Simultaneamente, a linhagem de Levi é destacada 
das demais.
2 - Em três oportunidades, somos informados sobre os anos de vida 
das pessoas. Isso acontece com Levi, Coate e Anrão, todos os três perten­
centes ao ramo que conduz a Arão e Moisés. De Coate se afirma que viveu 
133 anos, enquanto os outros dois alcançaram 137 anos. É difícil saber o 
que está por trás desses números, embora saibamos que não são fortuitos.^' 
Uma possibilidade é entender que os dados querem harmonizar os anos das 
gerações com os 430 anos da permanência no Egito, que constam em 12.40. 
Assim, considerando-se que Levi teriavivido 80 anos no Egito, poder-se- 
iam somar a esses os 133 anos de Coate, os 137 de Anrão e, além disso, os 
80 anos que Moisés tinha no início do êxodo (Êx 7.7), o que totalizaria 430 
anos. Os 80 anos de Levi - em substituição a seus 137 anos - surgem em 
analogia aos 80 anos de Moisés e por causa do uso da estrutura da inclusão 
(80, 133, 137, 80). Através da mera leitura percebe-se o caráter artificial 
dessa conta, pois as idades de pais e filhos não podem ser simplesmente 
somadas, porque, em grande parte, os anos de suas vidas se sobrepõem. 
Mas o autor talvez não estivesse pensando numa sequência histórica, mas 
semântica. Nesse sentido, poder-se-ia aceitar essa explicação. A artificiali­
dade também se observa no fato de que se estabelecem cinco gerações entre 
Jacó e Moisés (Jacó, Levi, Coate, Anrão e Moisés) para cobrir um período 
de quatro séculos. Isso mostra que, na realidade, mencionam-se as figuras 
principais de cada período da história da família e não a sucessão natural 
de pais e filhos.
Outra possibilidade de interpretar os números é considerar que es­
tão relacionados com a idade de Jacó, que viveu 147 anos (Gn 47.28). Em 
virtude da decrescente importância na sucessão familiar, houve uma dimi­
nuição da idade do filho, Levi (137 anos), e do neto, Coate (133 anos). Anrão 
teria vivido mais tempo por ser pai de Arão e Moisés. Ambas as alternativas 
evidentemente não se excluem; é até provável que ambas as possibilidades 
estivessem no pensamento do autor bíblico.
Para uma análise das diferentes interpretações, cf. HOUTMAN, C. Exoãus I, p. 508-516.
111
3 - Chama a atenção a posição secundária que Moisés ocupa nessa 
genealogia. Não se mencionam sua esposa, Zipora, nem seus filhos, tam­
pouco sua irmã, que teve importante papel na preservação de sua vida, em 
2.4ss. Levando em consideração o lugar que ocupa em todo o livro, cabe a 
pergunta: Por que Moisés é colocado em segundo plano? Deve-se, pelo me­
nos, comentar os dados do texto que podem ajudar a compreender o fato. 
Em primeiro lugar, a escola sacerdotal responsãvel pela edição do livro do 
Êxodo identifica-se com a linhagem do sacerdócio aronita. Por esse motivo, 
opta por destacar a figura que, até o momento, desempenhou um papel 
acessório na narrativa, colocando-a no centro da cena. Em 40.12-15, Moisés 
unge Arão e seus filhos como sacerdotes de Javé, mas não se afirma que o 
próprio Moisés era sacerdote. De fato, ele não é considerado sacerdote pela 
literatura biblica posterior. Em virtude disso, o texto destaca a figura de 
Arão, outorgando-lhe uma posição que ainda não lhe fora dada. Na época 
pós-exílica, seu protagonismo crescerá sob a infiuência dos sacerdotes do 
segundo templo.
Em segundo lugar, temos que considerar que a figura de Moisés apre­
senta alguns aspectos obscuros que, ainda que não diminuam seu prota­
gonismo e talvez nem alcancem relativizar sua liderança, não deixavam de 
preocupar os sacerdotes pós-exilicos. Seu casamento com uma midianita e 
seu filho Gérson, nascido fora da comunidade israelita, eram dois dados que 
complicavam sua biografia. Lembremos a grande ênfase dada ã proibição 
pós-exilica de matrimônios com estrangeiros^^ e a preocupação em dar deta­
lhes sobre a procedência de Eliseba, a esposa de Arão (v. 23), para assegurar 
a pureza do sangue tanto do pai como da mãe. Isso contrasta com a falta de 
pureza na familia de Moisés.
4 - De acordo com o v. 10, Arão é o primogênito, seguido por Moisés. 
Isso se confirma em 7.7, onde são fornecidas as respectivas idades.
26-27 ► No final da genealogia, o autor deixa entrever a razão por que
ela foi incluida no relato. Afirma-se que essas pessoas que Deus chamou 
têm uma ascendência israelita e levitica indiscutível. No período pós-exilico, 
a reputação era confirmada por genealogias. No caso em apreço, ela é com­
provada com detalhes. Os dois versiculos formam uma estrutura de inclu­
são ou um diptico:
A Esses são Arão e Moisés
B tirar os filhos de Israel do Egito 
C falaram ao faraó
B’ tirar os filhos de Israel do Egito 
A ’ Esses são Moisés e Arão
’■ Em Ed 10, chega-se a expulsar as esposas de matrimônios já constituídos juntamente com 
seus filhos (cf. especialmente os v. 3-4, 10).
112
Nos extremos (A-A’), destacam-se os dois personagens (observe-se a 
inversão da ordem dos nomes); B-B’ estabelecem a missão de ambos; o cen­
tro (C) ressalta o que realizaram.
e) Continuação do enAno ao faraó (6.28-7.7)
28) Quando Javé falou a Moisés na terra do Egito,
29) disse-lhe: Eu sou Javê; dize ao faraó, rei do Egito, tudo o que eu te
digo.
30) Moisés respondeu a Javé: Sou impuro de lábios, como o faraó me 
ouvirá?
7.1) Javé disse a Moisés: Eu te constituí como um Deus para o faraó, e 
Arão, teu irmão, será teu profeta.
2) Tu dirás todas as coisas que te ordeno e Arão, teu irmão, falará ao 
faraó para que deixe ir os filhos de Israel de sua terra.
3) Porém endurecerei o coração do faraó e multiplicarei os meus sinais 
e os meus prodígios na terra do Egito.
4) O faraó não vos escutará; e eu porei minha mão sobre o Egito e tira­
rei os meus batalhões, meu povo, os filhos de Israel, da terra do Egito, com 
grande justiça.
5) E saberão os egípcios que eu sou Javé quando estender minha mão 
sobre o Egito e tirar os filhos de Israel do meio deles.
6) Moisés e Arão fizeram como lhes ordenara Javé; assim o fizeram.
7) E Moisés tinha oitenta anos de idade e Arão, oitenta e três anos, 
quando falaram ao faraó.
Introdução ao texto
Esta unidade retoma a narrativa após a genealogia. Uma técnica co­
mum no Antigo Testamento para vincular dois textos é repetir as últimas 
palavras ou os últimos versículos.^^ Por isso os v. 28-30 repetem, com pa­
lavras diferentes, o mesmo conteúdo de 6.11-13. A objeção de Moisés de 
que tem dificuldades com a fala (pela terceira vez, cf. 4.10; 6.12) não recebe 
nenhuma resposta de Javé; esse somente descreve seu plano de ação. Num 
esquema bastante simplificado, afirma-se que Moisés decidirá as coisas e 
Arão as executará. Nessa direção indica a imagem de que Moisés será como 
um Deus e seu irmão será como seu profeta (7.1). Ela também consagra o 
modelo de Deus falar a Moisés e esse transmitir as instruções recebidas a 
seu irmão e aos demais (cf. 7.19; 8.5 etc.).
Cf. 2Cr 36.22-23 e Ed 1.1-3.
113
Análise detalhada
28-30 ► Especifica-se que agora Deus está falando a Moisés na terra
do Egito. Essa informação pode parecer desnecessária, uma vez que já se 
dirigira a ele em 6.1,10,13. Busca-se, no entanto, ressaltar a continuidade 
entre a comunicação no deserto e a nova realidade no Egito. Ao mesmo tem­
po, mostra-se que a mesma dificuldade de comunicação aduzida então volta 
a ser apresentada agora. Utilizam-se as mesmas palavras de 6.12, revelando 
que a intenção do relato é confirmar a continuidade do desenvolvimento da 
narrativa após a genealogia. Insiste-se, assim, que a falta de eloquência é a 
objeção principal de Moisés, contrastando com a figura caracterizada, mais 
tarde, por longos discursos e explicações da Lei (cf. o livro do Deuteronômio).
1-5 ► É importante ter em mente que esse é o último discurso de Javé
no Egito, no qual defende e explica seu projeto antes das dez pragas. Com 
ele encerra-se uma etapa da estratégia de Deus e dá-se inicio a uma outra 
etapa, em que não mais é necessário convencer Moisés de sua missão. Moi­
sés expressou sua queixa e preocupação nos versiculos anteriores; agora 
não mais voltará a falar do projeto de Deus até 14.13, no qual o defende 
diante dos atemorizados israelitas. O que se diz aqui é muito importante, 
porque é a última coisa antes de passar para a ação concreta. Da leitura de­
preendemos que o texto contém muitos elementos de unidades anteriores. 
Reproduz-se, em boa medida, o que foi dito em 3.18-20; 4.22-23 e 6.6-8; por 
esse motivo, as diferenças entre esse texto e aqueles que o antecedem é de 
suma relevância hermenêutica. Elas são sutis, por isso significativas.
1 - É a segunda vez em que se compara o papel de Moisés com opapel 
de Deus em relação ãs pessoas. Em 4.16, falou-se do papel de Moisés em 
relação a Arão, fazendo uso da mesma imagem. Javé diz agora que Moisés 
dará as ordens ao faraó - e não as receberã dele. Também diz que Arão será 
como os profetas de Deus, que reproduzem com a máxima fidelidade a men­
sagem que recebem. Afirmar que Moisés será como um Deus para o faraó 
não apenas soava como um despropósito politico, mas também parecia ser 
uma falta de compreensão teológica. Por um lado, Moisés não podia dar 
ordens ao rei; por outro, nenhuma pessoa humana pode ser comparada a 
Deus.̂ '̂ Mas o Deus de Israel quer com isso dar confiança a Moisés e a seu 
povo. O narrador pode mostrar Deus falando coisas que não atrevería colo­
car na boca de nenhum humano.
2 - Nesse texto, já se deixou para trás a ideia de “ir três dias ao deser­
to”. Ela vai aparecer novamente em 8.27, mas de modo pouco convincente. 
A mensagem é clara e contundente: ele deve dizer ao fairaó que os deixe sair; 
mas, como esse não o permitirá, já antecipa a Moisés que ele, o próprio
Note-se que o Salmo 8.5 [8.5] afirma em relação ao ser humano; “Tu o fizeste quase [me‘afj 
como um Deus” ou “tu o fizeste como um pequeno Deus”. A tradução “como os anjos” está 
incorreta.
114
Deus, vai conduzi-los para fora do Egito. Para qualificar essa saída, utiliza- 
se uma expressão difícil de traduzir: “grandes juízos” (hebraico bishfpatim 
g^dolim, também em 6.6), no sentido de um ato de profunda Justiça. Isso 
significa que a ação a ser levada a cabo é justa, e o que nela acontece faz 
parte da justiça que Deus está promovendo e que o povo merece. O projeto 
de libertação é apresentado sem ambiguidades.
3 - Além dos israelitas, também o faraó conhecerá Deus. A frase do 
V. 5 é antes uma ameaça ao Egito do que um convite para conhecer Deus. 
Deve-se entender, nesse contexto, que o discurso pretende realçar que aca­
baram os prazos e que agora não resta outra alternativa senão o uso da 
força contra o faraó. Observou-se que os prodígios e milagres que se mani­
festarão no decorrer da saída do Egito evidenciarão que Deus não é somente 
a divindade dos israelitas, mas aquele que domina a terra e os fenômenos 
com a maestria do Criador.^ ̂Somente quem domina as forças da natureza é 
capaz de realizar essas maravilhas.
4 - No V. 4, diz-se “meus batalhões” (tsib’otay, cf. também 6.26), uma 
expressão que coloca em cena o elemento bélico. Na verdade, não vai haver 
um confronto bélico por ocasião da fuga do Egito, embora o canto do cap. 
15 celebre a saída como um triunfo militar de Javé sobre as forças egíp­
cias. Isso nos leva a perguntar se a expressão “meus batalhões” refere-se 
aos israelitas (alguns traduzem, nesse sentido, “minhas tribos”) ou às hos­
tes celestiais, ao exército de Javé. O texto de 7.4 inclina-se na direção da 
primeira, enquanto 15.1-18,21 na direção da segunda alternativa. Cremos 
que, nesse caso, refere-se aos israelitas, sendo que a expressão é usada me­
taforicamente e que contém, de certa forma, rasgos de ironia: os batalhões 
com os quais Deus vencerá o poderoso exército egípcio são as fracas tribos 
escravizadas de Israel.
5 - Finalmente, chama a atenção o fato de que o conhecimento de 
Deus se dará quando seu ato de libertação for visto. Não se trata de um 
conhecimento intelectual ou filosófico nem de uma percepção mística ou 
espiritual. Conhecé-lo-ão porque libertou os escravos. A identidade de Deus 
revela-se no feito de libertar os oprimidos.
6-7 ► O verbo “fazer” (hebraico ‘asah) abre e fecha o v. 6, evidenciando a
ênfase da frase. Ambos os irmãos cumpriram aquilo que lhes foi ordenado. 
Segue a informação a respeito de sua idade. Essa informação não é secun­
dária. Já falamos que o versículo mostra que Arão é o primogênito, algo 
ambíguo até o momento (cf. 6.20). O dado é de grande interesse para a es­
cola sacerdotal responsável pela edição desses textos. Mas fornecer a idade 
também tem um significado particular, pois, em tempos bíblicos, a grande 
quantidade de anos indicava maturidade e aptidão para uma determinada 
tarefa. Observe-se que é comum mencionar a idade em momentos cruciais 
da história de um personagem; isso ocorre nos casos de Noé (Gn 7.11) e
■ Cf. FRETHEIM, T. Bxoãus, p. 95.
115
Abraão (Gn 12.4). Mais próximos de nosso texto estão os exemplos de José 
(Gn 41.46) e Jacó (Gn 47.8-9), cujas idades são dadas no contexto de seu 
encontro com o faraó. O fato de Moisés ter 80 anos e seu irmão trés anos 
mais - e considerando que muito provavelmente os números não são dados 
precisos, mas significam “muitos anos” - quer dar a entender que ambos se 
encontravam na plenitude de sua vida, capazes de liderar o projeto para o 
qual foram convocados.
2. As pragas contra o Egito e a primeira Páscoa (7.8-12.36)
a) As nove primeiras pragas (7.8-10.29)
As primeiras nove pragas^ têm uma estrutura que as distingue da 
décima, aiinda que estejam estreitamente unidas na redação final. Para fa­
cilitar a leitura, vamos lé-las e analisá-las uma a uma. Para entender a sua 
mensagem e dinâmica, no entanto, é imprescindivel fazer, no final, um es­
tudo do conjunto das nove primeiras pragas e uma análise de sua relação 
com a décima. Essa síntese e análise realizaremos mais adiante: na seção 
“As dez pragas do Egito”.
1) O bastão transforma-se em serpente (7.8-13)
8) Falou Javé a Moisés e Arão e lhes disse:
9) Quando o faraó dirigir-se a vós dizendo: mostrai um prodígio!, dirás 
a Arão: toma teu bastão e lança-o diante do faraó, para que se transforme em 
serpente.
10) Moisés e Arão foram até diante do faraó e fizeram como lhes havia 
indicado Javé. E Arão lançou seu bastão diante do faraó e de seus servos e 
ele se transformou em uma serpente.
11) O faraó chamou os sábios que praticam a feitiçaria, e eles fizeram o 
mesmo - os magos do Egito - com seus encantamentos;
12) cada um lançou o seu bastão e se transformaram em serpentes; 
mas o bastão de Arão devorou os bastões deles.
13) Todavia, o coração do faraó se endureceu e não os escutou, como 
havia dito Javé.
Introdução ao texto
Esse trecho foi considerado o final do diálogo entre Deus e Moisés (que 
inicia em 5.22) ou o início da seção das pragas, que vêm em seguida.^ ̂Não
A palavra “praga” (hebraico magepah) somente é utilizada em 9.14; nos outros casos, faz-se 
uso das palavras ’otot (sinais) e mofetim (sinais ou prodígios). Usamos aqui o termo praga por 
ele ter se imposto para designar esses eventos.
Também foi entendido como a primeira das dez pragas, considerando a atual décima praga 
como acrescentada à série inicial. Contudo, a estrutura literária e sua brevidade não corres­
pondem às outras nove [cf. FRETHEIM, T. Exodus, p. 112-113).
116
é uma questão crucial, e ambas as possibilidades podem ser aceitas. O im­
portante é observar que a narrativa apresenta uma prova inicial ao faraó do 
poder de Deus. A refutação dessa prova (v. 13) dará inicio á sucessão de dez 
pragas. O texto parece querer oferecer uma última oportunidade ao faraó 
para evitar que seu povo sofra as calamidades que se avizinham. A frieza 
com que esse interpreta o fato de a serpente de Arão devorar as cobras dos 
magos prova que não há outra alternativa senão continuar com demonstra­
ções mais fortes.
Já apontamos para o vínculo que o bastão e a serpente têm com a 
coroa egípcia (cf. 4.2-4). Naquela oportunidade, o prodígio tinha a finalidade 
de convencer os anciãos israelitas. Agora o milagre se realiza na presença do 
faraó. O fato de o faraó não se admirar com o sucedido pode refletir o pro­
pósito do autor de apresentá-lo em suas limitações e ignorância. Conforme 
a narrativa, ele parece não se dar conta do símbolo por trás do fato de que 
suas serpentes foram vencidas por aquela de Arão.^» Ao contrário, sua ati­
tude de negar-se a escutar (“escutar” significa aqui “aceitar” e “reconhecer”) 
é utilizada pelo texto como justificativa para o início das pragas (cf. 7.14). 
Essa intenção é tão clara, que o texto esquece de mencionar o que ocorreucom o bastão de Arão depois do confronto com as demais serpentes. Em 4.4, 
relata-se que voltou a seu estado anterior, mas aqui não se diz nada. De 
7.15 depreendemos que isso também aconteceu aqui.
O fato de que os sábios egípcios podem realizar o mesmo sinal que 
Arão é um efeito literário de grande qualidade. O leitor recém foi surpreen­
dido com o fato de que o bastão de Arão se convertera numa serpente. Isso, 
por si só, já é um feito impressionante, aparentemente incontestável. Con­
tudo, a transformação da realidade e a realização de sinais surpreendentes 
não são dons exclusivos dos servos de Deus. Quem faz a opção social em 
defesa da opressão e da escravidão também dispõe de poderes admiráveis. 
Seus bastões transformam-se em serpentes para demonstrar aos líderes dos 
escravos que, de fato, não possuem nenhuma força superior a respaldá-los. 
Se podeis fazer isso, nós também podemos. O leitor passou do entusiasmo 
ã inquietação. A seguir, ehega-se ao auge do relato: as serpentes não são 
iguais nem possuem a mesma força. A serpente de Deus engole as demais.
Análise detalhada
8-9 ► Deus antecipa a Moisés que o faraó lhe fará um pedido com a
intenção de ridicularizar Moisés e Arão diante de seu povo. O rei acredita 
que, já no primeiro teste, fieará patente a debilidade dos líderes dos escra­
vos e desmoralizado o seu projeto. A estratégia do faraó - como em outros 
casos já vistos - é brilhante. Mas a resposta indicada também é; o prodígio
' J. van der Palm, um autor do século XIX, citado por C. HOUTMAN [Exodus I, p. 537], apre­
senta a opinião perspicaz de que o faraó manteve a sua atitude porque entendeu que Moisés 
e Arão não demonstraram nada senão ser melhores feiticeiros do que os egípcios.
117
consistirá que o bastão se transformará numa serpente. Isso evoca no leitor 
um feito semelhante, ocorrido em 4.2-4, que tinha, naquela oportunidade, o 
propósito de convencer os anciãos israelitas. Mas também coloca em cena - 
e isso é ainda mais importante - simbolos centrais do poder politico e social 
da coroa. O que está em jogo não são meras habilidades de feitiçaria, mas 
a própria natureza do poder para oprimir ou libertar. Contudo, há uma di­
ferença essencial, pois agora se usa o termo tannin para designar o animal 
que surgirá dos bastões. Não se trata exatamente de uma serpente; o termo 
refere-se a um monstro e designa a criatura que representa os poderes caó­
ticos e destrutivos.^® Em SI 74.13 e Is 51.9, trata-se de uma criatura vincu­
lada às escuras profundezas do mar, a qual Deus subjuga e domina.
De acordo com o texto, o bastão mencionado é de Arão; mas se obser­
vou que também poderia ter sido de Moisés. Essa hipótese advém da frase 
de 7.15, dita a Moisés; “levando em tua mão o bastão que se transformou em 
serpente”. Apesar disso, logo a seguir, será Arão que realizará o sinal com 
seu bastão (7.19). Assim, não restam dúvidas a respeito. Mas essa ambigui­
dade alimentou a criação de hipóteses, tais como: em virtude da santidade 
de Moisés, seu bastão não podia entrar em contato com as serpentes egíp­
cias.Contudo, essas hipóteses carecem de fundamento textual e teológico. 
É algo estranho para o texto outorgar santidade a algumas pessoas, ainda 
que se reconheça a santidade do projeto histórico que conduzem.
10 ► O texto presume que o faraó desafiou os irmãos ao solicitar um 
milagre. O teste realiza-se diante do rei e de seus criados. A menção dos 
criados é uma forma sutil de deixar entrever que, se a intenção do faraó era 
ridicularizar Moisés e Arão diante de seu povo, agora ele próprio será expos­
to ao ridículo na presença de seus serviçais.
11 ► O faraó convoca seus “sábios que praticam a feitiçaria”. A forma 
hebraica é ambígua, porque a primeira palavra é um adjetivo e a segunda 
o particípio de um verbo. Poder-se-ia também verter por “sábios” e “feiticei­
ros”, como várias traduções modernas fazem. Contudo, isso levaria a pensar 
em dois grupos distintos de convocados, mas não é esse o sentido do texto.
12 ► Os bastões egípcios transformam-se em serpentes monstruosas 
para orgulho do faraó e de todos os servos que presenciavam a cena. Faz-se 
uso do plural, mas não se diz quantas serpentes eram. A alegria do triunfo, 
no entanto, durou apenas até que a serpente de Arão devorasse as de seus
No relato, ecoam elementos míticos do imaginário do antigo Oriente Próximo, muito aprecia­
dos para descrever a origem do mundo através do combate do bem contra o monstro do caos. 
F. Garcia López afirma que esse episódio antecipa a vitória de Javé sobre o monstruoso Nilo 
[cf. GARCÍA LÓPEZ, F. El Pentateuco. Introducción a la lectura de los cinco primeros libros 
de la Bíblia. Estella, 2003. p. 158-159].
Cf. Zohar Êxodo, 28a.
118
adversários. O verbo “devorar” (hebraico bala) será utilizado mais uma úni­
ca vez no livro de Êxodo, a saber, no momento de atravessar o mar dos Jun­
cos, quando o mar devorou os egípcios (15.12: “A terra devorou os egípcios”). 
O texto permite que um monstro do caos, agora sob a soberania de Deus, 
destrua outros monstros com tendências destrutivas. Somente no final da 
façanha da saída da escravidão e quando Deus expressa a opção por seu 
povo oprimido é que se ouvirá novamente esse verbo, indicando a destruição 
das forças do faraó. Essas serão tragadas pelo mar, símbolo dos poderes do 
mal e das trevas.
Há também um simbolismo muito forte no fato de se usarem, para 
o desafio, bastões e serpentes. Ambos simbolizavam a coroa egípcia; eles 
representavam o faraó nos baixos-relevos e nos murais. Que o bastão dos 
escravos tenha sido capaz de produzir um monstro superior ao dos magos 
oficiais do faraó é um recurso literário de ótima qualidade para transferir ao 
terreno político a batalha travada. Não apenas se antecipa a morte sob as 
águas do mar, mas também se evidencia que a luta será pelo poder político; 
quem for vencido deverá ceder ao outro o controle de sua vida.
13 ► A postura obcecada do faraó pode surpreender, mas é coerente
com a cena descrita. Está cercado de súditos; não é o melhor ambiente para 
reconhecer erros e mudar de atitude. Diante deles não pode mostrar-se fra­
co e derrotado. Como Deus havia antecipado, sua reação será endurecer e 
rejeitar a mensagem implícita nesses prodígios. A intervenção dos magos 
não trouxe benefícios para ele; ao contrário, revelou sua incapacidade de 
sobrepujar o Deus dos escravos. Depois de sucessivos fracassos, os magos 
egípcios perderão seu prestígio - a partir da sexta praga - e ficarão à mar­
gem da contenda.
2) A praga do sangue (7.14-25)
14) Disse Javé a Moisés: O coração do faraó endureceu e não quer dei­
xar o povo partir.
15) Vai até o faraó pela manhã, quando ele descer até as águas. Sairás 
ao seu encontro na beira do rio. O bastão que se transformou em serpente 
terás na tua mão.
16) E lhe dirás: Javé, o Deus dos hebreus, enviou-me a ti para dizer-te: 
Deixa meu povo ir para que me sirva no deserto, mas até agora não me qui­
seste ouvir.
17) Assim disse Javé: Nisso saberás que sou Javé: Com o bastão que 
tenho na minha mão ferirei a água do Nilo e ela se converterá em sangue.
18) Os peixes que estão no Nilo morrerão; o Nilo ficará pestilento e os 
egípcios sentirão nojo de beber dele.
19) Javé disse a Moisés: Dize a Arão: Toma teu bastão e estende tua 
mão sobre as águas do Egito, sobre os seus rios, sobre os seus canais, sobre 
os seus pântanos e sobre todos os seus reservatórios de água para que se
119
transformem em sangue de modo que haja sangue em todo o Egito, nos reci­
pientes de madeira e de pedra.
20) Moisés e Arão fizeram como lhes ordenara Javé. E ele ergueu o bas­
tão e feriu as águas do rio à vista do faraó e de seus servos, e todas as águas 
do rio se tomaram em sangue.
21) Os peixes do rio morreram, o rio tomou-se pestilento e os egípcios 
não podiam beber dele. E hama sangue por todo o Egito.
22) Mas os magos do Egito fizeram o mesmo com os seus encantamen­
tos, e o coração do faraó endureceu e não os escutou, assim como Javéhama 
dito.
23) O faraó virou-se e retomou para casa sem dar atenção ao caso.
24) E cavaram poços em todo o Egito, perto do Nilo, ã busca de água 
para beber, pois não podiam beber das águas do Nilo.
25) E passaram-se sete dias após Javé ter ferido o rio.
Introdução ao texto
A primeira praga apresenta a mesma estrutura literária da quarta e 
sétima pragas (cf. a seção “As dez pragas do Egito”). Não por acaso encon­
tra-se no início a transformação das águas do país em sangue. O sangue 
era considerado um elemento sagrado e, ao mesmo tempo, temido. Nele 
se encontravam a vida e a morte. Por isso o contato com o sangue, tanto o 
próprio como o de outro, tornava a pessoa impura, tanto em Israel como no 
Egito. Desse modo, a transformação de um elemento vital como a água em 
um elemento que transmitia impureza e maldição era um sinal do rigor com 
que Deus estava disposto a ferir o Egito. Existem antecedentes na literatura 
mítica suméria. Aqui se narra que um jardineiro teve relações sexuais com a 
Deusa Innana enquanto ela dormia; ao despertar, ela ficou furiosa e enviou 
três pragas sobre a terra. A terceira praga fez com que todas as águas se 
convertessem em sangue.Um segundo mito, conhecido por “exaltação de 
Innana”, relata que “os rios se transformaram em sangue e as pessoas não 
têm o que beber”; por isso não podem aproximar-se para adorá-la.^^
A cena desenrola-se diante do faraó e de seus criados no momento 
em que esse se preparava para tomar banho no rio. Assim, o milagre não 
somente interfere em sua vida privada, mas novamente ocorre diante de 
seus servos (7.10). A partir dessa cena, o faraó não mais terá o controle total 
sobre sua própria vida; seus atos serão uma reação aos atos de Deus. Seus 
magos realizarão a mesma prova e converterão a água em sangue, agravan­
do, assim, a situação do povo, que se vê obrigado a cavar poços alternativos 
em busca de água potável. Surge a pergunta por que os magos não rever­
teram a situação, transformando o sangue em água, em vez de insistir em 
reproduzir o que Arão fizera. A resposta é literária e não histórica: os magos
KRAMER, S.H. History Begins at Sumer. Philadelphia, 1981. p. 73. 
ANET, p. 580.
120
devem mostrar que conseguem ir na mesma direção e não que estão com­
petindo com escravos.
Como no caso das outras pragas, também aqui se tentou dar uma 
explicação racional ao fenômeno.^ ̂Em nossa perspectiva, isso é desneces­
sário, uma vez que não consideramos que elas se refiram a dados históricos, 
mas tenham caráter lendário, interessadas em transmitir uma mensagem 
e não em registrar fatos. Se a intenção fosse escrever história, encontraría­
mos mais informações sobre dados cruciais relacionados ao que se narra, 
como, por exemplo, se a transformação de água em sangue também afetou 
os israelitas ou quais foram as águas que os magos egípcios converteram em 
sangue, se toda a água já havia sido transformada anteriormente.
Análise detalhada
14-16 ► A cena está ambientada nas margens do rio Nilo, um local que
evoca o resgate de Moisés das águas. O resgate da criança ameaçada e o 
começo dos eventos libertadores localizam-se no mesmo ambiente e lugar. 
O faraó desce para banhar-se, como também fizera a filha de um de seus 
antecessores. Como naquela história, também essa narrativa mudará o cur­
so dos acontecimentos, dando origem a uma situação nova e inesperada. 
Moisés apresenta-se com o bastão e anuncia ao faraó a ordem de Deus; que 
deixe seu povo sair a fim de que o sirva no deserto. Duas coisas ficam claras 
aqui: Moisés age por mandato divino (16a), e a ordem consiste em liberar o 
povo para que deixe de servir ao faraó e passe a servir a seu Deus (16b). A 
frase shalah ’et ‘ami (“deixa ir meu povo”) tomar-se-á um Leitmotiv, ao qual 
se recorrerá com frequência para descrever a vontade divina. O faraó não 
compreendeu que está em jogo um fenômeno cósmico de reconhecimento do 
poder e do direito de Deus sobre um povo (14). A questão é: O povo é pro­
priedade de quem? De Deus, que lhe oferece a liberdade, ou do faraó, que o 
condena à escravidão?
17-18 ► O rio Nilo é um lugar sagrado para os egípcios. Atribuía-se-
Ihe qualidade divina e era tido como doador da vida. O faraó, no entanto, 
elevava-se acima dessa condição divina do Nilo, como atesta Êx 29.3, que 
reproduz a fala do faraó: “Meu é o Nilo, pois eu o fiz”. Por isso a primeira
Entre elas se encontram as seguintes: a água “adquiriu a cor do sangue” (Flávio Josefo) ou 
ela apenas “se tomou mais espessa” (Gregório de Nissa); no início das enchentes, a água 
arrasta terra vermelha da região da Etiópia e permanece vermelha durante alguns dias; G. 
Hort supõe que a água continha certas substâncias orgânicas que alimentavam bactérias 
que tinham a cor vermelha [cf. HORT, G. The Plagues of Egypt. ZAW 69, p. 84-103, 1957; 
ZAtV70, p. 48-59, 1958]. Esse tipo de interpretação empobrece o sentido do texto, que, por 
ser literatura, não exige ser comprovado ou explicado como fenômeno natural.
J. NEWSOME [Exodus, p. 31] acrescenta que Moisés desce levando na mão o bastão que 
se havia transformado em serpente (4.3), estabelecendo, assim, uma continuidade literária 
entre os capítulos anteriores e as pragas.
121
praga atinge o lugair onde mais dói, pois fere não somente o rio sagrado, mas 
a própria obra do faraó. Nesse sentido, a primeira praga - que abre - e a dé­
cima praga - que fecha o ciclo - são as que mais afetam o intimo da vida do 
faraó: sua dimensão divina e seu filho primogênito. Esse rio era, portanto, 
um presente do faraó a seu povo, a fim de conceder-lhe vida através de suas 
ãguas, que irrigavam suas plantações e saciavam sua sede. Esse mesmo rio 
converte-se numa maldição para todos por causa da obstinação e cegueira 
do faraó. Jã não existem nem peixes tampouco ãgua potãvel no pais.
19 ► O sangue está em todo lugar. Nao apenas o rio se transforma, mas
todas as águas do Egito, inclusive as que se encontram nos recipientes. 
Essa última expressão é contestada, pois não hã informações se, no Egito, 
se utilizavam recipientes de madeira, uma vez que a madeira era rara. Suge­
riu-se que talvez se tratasse de ídolos feitos de madeira ou pedra, aos quais 
periodicamente se oferecia água. Também se pensou que pudesse tratar-se 
da ãgua que nasce nos oásis, onde existem árvores, e das fontes que brotam 
de rochas. Não se pode chegar a uma conclusão definitiva com o que sabe­
mos até agora em termos de idioma e de costumes no antigo Egito.
20-22 ► A ação realiza-se tal qual fora anunciada; o rio transforma-se
em sangue e os peixes morrem; o rio que antes dava vida agora apodrece 
e exala mau cheiro, sentido por todos os habitantes. A seguir, o texto diz 
que os magos do faraó realizaram a mesma prova. Não se explica em que 
consistiu especificamente essa prova; se foi converter em sangue água ain­
da não transformada ou, então, demonstrar, por algum outro meio, que os 
magos tinham o poder de realizar o mesmo prodígio. De certo modo, trata-se 
de uma contraofensiva absurda, pois, em vez de minimizar a tragédia, vem 
agravar a situação do país.
23-25 ► O faraó retorna ã sua casa confiante de que ganhara uma ba­
talha.®"̂ Pensa que Moisés e seu irmão não fizeram nada além de um ato de 
feitiçaria, igual ao de seus próprios magos. Supõe, assim como os magos, 
que sejam truques passageiros ou ilusões de ótica sem real poder sobre as 
coisas. Segundo o v. 25, o fenômeno durou sete dias. Não tem, portanto, o 
que temer.
Menciona-se que foram cavados poços em busca de água. Isso mostra 
que as consequências da praga alcançaram toda a população. O texto não 
tem a intenção de indicar um método de encontrar água nessas condições 
nem de mostrar que, com perseverança, era possível encontrar água potá-
C. HOUTMAN [Exodus, II, p. 37] sugere que a expressão significa que a força do bastão de 
madeira é capaz de atravessar as paredes dos edifícios de pedra e de madeira (dos palácios e 
das fortalezas).
A expressão que traduzimos por “dar atenção” signi&ca literalmente,em hebraico, “colocar o 
seu coração” (shat libo], o que se relaciona com 9.14, onde se atacará o “coração” do faraó.
122
vel. Não se capta o sentido do texto e perde-se tempo quando se pergunta se, 
de fato, encontraram água nesses poços. Alguns dizem que sim e ressaltam 
a misericórdia de Deus por concedê-la; outros dizem que não, pois a água 
dos poços também proviría do Nilo e estaria, portanto, contaminada. O au­
tor bíblico não tem interesse em responder essas questões.
3) A praga das rãs (7.26-8.11 [8.1-15])
26) Javé disse a Moisés: Apresenta-te diante do faraó e dize-lhe: Assim 
disse Javé: Deixa meu povo partir para que me sirva;
27) se não o deixares partir, castigarei todos os teus territórios com rãs.
28) O rio produzirá rãs, que subirão e entrarão na tua casa, no quarto 
onde dormes e na tua cama, e nas casas dos teus servos, em teu povo, nos 
teus fomos e nas tuas amassadeiras.
29) As rãs virão sobre ti, sobre teu povo e sobre todos os teus servos.
8.1) E Javé disse a Moisés: Dize a Arão: Estende a tua mão com teu
bastão sobre os rios, canais e pântanos efaze subir rãs sobre a terra do Egito.
2) Arão estendeu a sua mão sobre as ãguas do Egito, e subiram rãs que 
cobriram a terra do Egito.
3) Mas os magos fizeram o mesmo com os seus encantamentos e vieram 
rãs sobre a terra do Egito.
4) O faraó chamou Moisés e Arão e lhes disse: Orai a Javé para que 
retire as rãs de mim e do meu povo, e deixarei teu povo ir para que sacrifique 
a Javé.
5) Respondeu Moisés ao faraó: Digna-te indicar-me quando devo orar 
por ti, por teus servos e teu povo, para que as rãs se retirem de ti e de tuas 
casas e permaneçam somente no rio.
6) Ele disse: Amanhã. Moisés respondeu: Serã como pedes, para que 
saibas que não há ninguém como Javé, nosso Deus.
7) As rãs se retirarão de ti e de tuas casas, de teus servos e de teu povo 
e somente permanecerão no rio.
8) E saíram Moisés e Arão da presença do faraó. Então Moisés clamou 
a Javé por causa das rãs que havia enviado ao Faraó.
9) E Javé fez como dissera Moisés: morreram as rãs das casas, dos 
pátios e dos campos.
10) Ajuntaram-nas em montões e toda a terra ficou empestada.
11) Mas, quando o faraó viu que lhe haviam dado descanso, endureceu 
seu coração e não os escutou, assim como Javé havia dito.
Introdução ao texto
Para entender a gravidade dessa praga, devemos ter presente que as 
rãs pertenciam ao grupo de animais impuros; sua impureza contagiava as 
pessoas que as tocavam. Lv 11.9-12 determina que os animais aquáticos
123
que não têm escamas ou barbatanas são impuros.® ̂Observou-se que isso 
não é necessariamente válido para os egipcios. Mas relevante é o que os is­
raelitas pensavam sobre o assunto, não os egípcios. A narrativa foi escrita 
a partir de Israel, na época pós-exílica, assim que o modo como os egípcios 
experimentaram esses acontecimentos é uma construção do autor israelita 
a partir do que ele considerava ser a visão egípcia. Por isso os parâmetros 
do autor definem o que é puro e impuro; ele então projeta essa visão sobre 
os outros povos.
A imagem da invasão das rãs, que se instalam em todos os lugares e 
dependências (casa, quartos, camas etc.), tem aspectos humorísticos e, ao 
mesmo tempo, um sabor trágico. Tudo torna-se impuro e abominável. Os 
magos egípcios contribuem para piorar a situação, imitando a ação de Arão 
e, por conseguinte, multiplicando ainda mais as rãs.®® Aqui se torna eviden­
te que conseguem realizar o fenômeno, mas não anulá-lo, já que o faraó não 
os convoca para combater a praga, mas chama Moisés e Arão e pede-lhes 
para interceder junto a Javé pelo fim da praga.
A tragédia parece concentrar-se, nesse caso, na pessoa do faraó. Em­
bora se mencionem “teus servos e teu povo”, a ênfase recai sobre o rei. Ele 
é o primeiro a sofrer com a presença dos animais dentro de seu palácio. A 
menção do forno é bastante sutil; os animais evitam naturalmente lugares 
quentes, mas, nesse caso, as rãs encontram-se até nos fornos. Não há como 
escapar da impureza e do horror de viver rodeado por essas criaturas desa­
gradáveis.
Análise detalhada
26-29 [8.1-4] ► Deus envia Moisés, pela segunda vez, à presença do fa­
raó para que lhe repita a ordem dada por ocasião da primeira praga: shelah 
’et ‘ami (“deixa o meu povo partir”; 7.16). A sequência narrativa mostra que 
não se espera uma resposta favorável, pois imediatamente se expressa a 
ameaça de enviar rãs. Elas estarão “em todo o teu território” e serão produ­
zidas pelo rio. Desde o início, prevê-se uma inundação maciça de rãs, que 
invadirão tudo, inclusive os lugares mais inesperados, como as C6tmas e os 
fornos. Já mencionamos o caráter impuro desses animais. Deve-se acres­
centar que um predador das rãs é a serpente; e a serpente é um dos sím­
bolos da coroa egípcia. O diadema do faraó era adornado com a imagem de
B. CHILDS [TTie Book ofExodus, p. 155] afirma que essa é a mais inofensiva das pragas, já 
que as rãs “não mordem nem destroem a propriedade”; mas o autor não percebe a gravidade 
da tragédia ritual que produz a impureza inerente a essa praga.
Perguntou-se, em relação a essa praga, como os magos conseguiram realizar o fenômeno e 
como se podia distinguir entre as rãs “de Arão” e as rãs dos magos. Outros pensaram que os 
magos somente produziram uma quantidade muito pequena de rãs nas águas dos pântanos 
(stcj. Paira G. HORT [The Plagues of Egypt. ZAW 69, p. 94-96, 1957], as rãs são uma conse­
quência da inundação e do transbordamento do NUo durante a praga anterior. Felizmente, 
esse tipo de preocupação não prosperou entre os comentaristas.
124
uma serpente com a cabeça erguida. Dessa forma, as rãs não são apenas 
meros animaizinhos em expansão, mas o símbolo das forças contrárias à 
coroa.
1-3 [5-7] ► Arão segue a ordem de Moisés e, ao estender seu bastão, as
rãs se multiplicam. A terra fica coberta desses pequenos animais. Outra vez, 
os magos egípcios repetem a prova. O texto apresenta-os agindo de forma 
mecânica, sem pensar nas consequências. Parecem interessados unicamen­
te em demonstrar que conseguem fazer o mesmo, não se importando com 
o tipo de ação nem como ela afetará o povo. Além disso, chama a atenção 
que o faraó não os menciona nem os procura para pedir proteção; tem-se a 
sensação de que os ignora.
4 [8] ► Pela primeira vez, o faraó chama Deus por seu nome. O mais
notável é que pede a Moisés e Arão para que orem a Deus para que afaste as 
rãs dele e de seu povo. Pode-se dizer que, neste versículo, o faraó reconhe­
ceu de onde vem a força desses escravos. Uma vez que ele não pertencia ao 
povo desse Deus, necessita — de acordo com a antiga ideia de que cada Deus 
era de um determinado povo - de um membro desse povo para que se dirija 
à divindade e se faça ouvir.='̂ Mas falta muito para que exprima verdadeiro 
temor e respeito pelo Deus de Israel. Na verdade, aqui promete algo que logo 
vai esquecer e deixar de cumprir.
5-7 [9-11] ► As palavras iniciais de Moisés são mais do que uma mera
fórmula de cortesia; parecem carregadas de ironia. Ao pedir quando deve 
orar por ele, está oferecendo ao faraó a possibilidade de determinar o mo­
mento em que a praga terminará. Em ambos os casos, parece que o faraó 
detém o poder de decisão; mas, na verdade, isso não confere em nenhum 
dos casos. Nesse diálogo, percebe-se a crescente identidade entre a vontade 
de Deus e Moisés. Esse último supõe que sua oração será ouvida por Deus e 
conseguirá deter a praga, não havendo necessidade de uma consulta prévia.
A resposta do faraó era previsível: amanhã, ou seja, imediatamente. 
Moisés continua com a sua ironia ao dizer ao faraó que honrará seu pedido 
e fará o que solicita, mas isso será motivo para que ele veja a grandeza de 
Javé. Aquele que se negou a reconhecé-lo e mantém na escravidão seu povo 
será beneficiado pelo Deus de seus escravos.
8-10 [12-14] ► Moisés e Arão saem juntos, mas somente Moisés se diri­
ge a Deus, que lhe concede o solicitado. Aqui, o realismo do autor não pode 
deixar de mencionar que os cadáveresdas rãs empestaram a terra. Chama
Com os marinheiros que estão com Jonas acontece o contrário (Jn 1.14): eles se dirigem 
diretamente a Deus. Mas se deve ter em mente que não havia rivalidade entre eles e Jonas, 
como existe nesse caso.
125
a atenção esse detalhe numa narrativa em que muitos outros pormenores 
não são lembrados. A nosso ver, a inclusão desse detalhe tem a finalidade 
de ressaltar a magnitude da praga e, por conseguinte, do perdão de Deus, 
para, logo no versiculo seguinte, contrastar a generosidade divina com o 
esquecimento do faraó.
11 [15] ► Imediatamente após o fim da praga, o faraó esquece sua pro­
messa. O opressor não é sensível ã dor alheia nem à palavra de quem sofre. 
Ele fica obstinado tanto quando é ameaçado como quando é perdoado e re­
cebe uma nova oportunidade; não é capaz de ver no outro um próximo nem 
consegue solidarizar-se com ele."*" O texto destaca que tudo aconteceu “as­
sim como Javé havia dito”, confirmando a tendência do relato de que o fim 
está distante e uma última praga bem mais contundente ainda está por vir.
4) A praga dos piolhos (8.12-15 [8.16-19])
12) Javé disse a Moisés: Dize a Arão: Estende teu bastão e golpeia o pó 
da terra, e haverá piolhos por todo o país do Egito.
13) Eles assim o fizeram; Arão estendeu a sua mão com o bastão e gol­
peou o pó da terra, e houve muitos piolhos nas pessoas e no gado. Todo o pó 
da terra converteu-se em piolhos em todo o país do Egito.
14) Os magos também tentaram tirar piolhos com seus encantamentos, 
mas não foram capazes. Havia, portanto, piolhos tanto nas pessoas como no 
gado.
15) E os magos disseram ao faraó: É o dedo de Deus. Porém o coração 
do faraó se endureceu e não os ouviu tal como Javé o havia dito.
Introdução ao texto
A terceira praga é mais breve e apresenta um desenvolvimento lite­
rário menor (cf. a seção “As dez pragas do Egito”). Aqui não encontramos a 
reivindicação de deixar o povo sair nem há uma ameaça direta. Essa praga 
aparece como se fosse consequência do fato de o faraó ter esquecido sua 
promessa após ficar livre das rãs. Porém encontramos nela vários elemen­
tos importantes, com informações adicionais, que alimentarão o sentido do 
relato global das dez pragas.
Diferentemente das duas primeiras pragas, que tiveram origem nas 
águas, esta surge do pó da terra. No Egito, a expressão certamente lembra 
a areia do deserto; a imagem adquire, assim, um sentido de amplitude infi­
nita. Pode-se imaginar a magnitude do desastre se os piolhos ou mosquitos 
picarem e produzirem irritação na pele. Afirmou-se que ambos os insetos
“ S. CROATTO [Liberación y Libertad. Pautas hermenêuticas, p. 46] assinala que a palavra do 
opressor diante dos emissários de Deus é de rejeição ou astúcia ou, então, é falsa, mas nunca 
soHdária, porque em sua reivindicação os escravos questionam o poder.
126
sugam o sangue e, portanto, provocam a impureza do próprio inseto e da­
quele que foi picado, pois inevitavelmente rasga sua pele ao coçar-se. Quan­
do são muitas, as picadas podem ocasionar infecções e reações alérgicas, a 
p o n t o de colocar em risco a própria vida. Pela terceira vez, a praga consiste 
de um fenômeno vinculado às regras de impureza e abominação.
Análise detalhada
12 [16] ► A ordem consiste em golpear o solo com o bastão, para que
os piolhos surjam do pó da terra. Como na praga anterior, o mal está no 
incômodo causado por uma quantidade exorbitante de insetos. Não se pode 
precisar de que inseto se trata. A palavra hebraica ken designa um tipo de 
inseto, mas não sabemos exatamente qual. A tendência é traduzi-la por pio­
lhos ou mosquitos. Em ambos os casos, a abundância dos insetos provoca 
mal-estar. Podemos imaginar-nos o tamanho do incômodo quando esses 
insetos se multiplicam e se tornam “como o pó da terra”.
Também a menção do pó (hebraico ‘afar) é significativa. É a substân­
cia da qual se fez o ser humano (Gn 3.19) e ã qual retomará (Ec 3.20). Em 
alguns textos, o termo é usado em conexão com as tumbas e o mundo do 
além, habitado pelos mortos (Jó 17.16; 21.26; SI 22.30(22.29]; Is 26.19). A 
imagem do pó que se transforma em insetos sugere, portanto, o poder de 
Deus sobre a própria essência da vida e da morte, utilizada de acordo com 
sua vontade. Se Deus pode fazer pessoas do pó, também pode transformá- 
lo em insetos que ameaçam o poder do faraó e sua vontade de oprimir os 
escravos.
13-14 [17-18] ► A ação de Arão causa a invasão dos piolhos ou mos­
quitos. O texto diz: “todo o pó da terra”; isso significa uma intervenção em 
grande escala. No caso de o pó referir-se ã areia do deserto egípcio, somente 
uma leitura literal preocupar-se-ia em imaginar como seria a terra sem pó 
(ou areia) depois de se ter convertido totalmente em insetos. Melhor é en­
tender a expressão como uma forma de designar a incomensurabilidade do 
fenômeno. Os insetos atacam tanto os seres humanos como os animais. Sua 
sede de sangue não conhece limites. A disseminação da impureza alcança 
toda criatura.
Também os magos egípcios tentaram reproduzir o fenômeno, mas, 
nesse caso, conforme o texto, não conseguiram. Não se explica o fato; sim­
plesmente nos é informado. Eles não voltarão a entrar em cena até a sexta 
praga (9.11).
15 [19] ► Os magos dão uma explicação sutil de sua incapacidade,
mas também indicam o motivo da magnitude do fenômeno: reconhecem 
que é ação divina. É interessante observar que, seguindo esse raciocínio, 
poder-se-ia dizer que as duas pragas anteriores - que os magos consegui­
ram reproduzir - não foram atribuidas ã ação divina. Isso é coerente com a
127
compreensão que se tinha de magia e feitiçaria na antiguidade. Os fenôme­
nos que hoje consideraríamos sobrenaturais nem sempre eram atribuídos 
a uma intervenção divina; eles também podiam ser fruto da habilidade do 
feiticeiro de dominar os elementos. As coisas que diziam respeito a Deus 
eram reservadas aos sacerdotes, não aos magos e feiticeiros.
A expressão “é o dedo de Deus” é literal; encontramo-la em outros 
textos (31.18; Dt 9.10; SI 8.4[8.3]). Significa que algo foi feito por vontade 
de Deus e com seu apoio. Dessa forma, os feiticeiros, por um lado, dão-se 
conta de sua incapacidade de realizar o mesmo que Arão; e isso lhes serve 
de desculpa, já que não interagem com a dimensão divina. Por outro lado, 
é a primeira vez que reconhecem que o que está acontecendo é mais do que 
uma simples competição entre magos. Há dúvidas se os magos reconhecem 
que esse prodígio vem do Deus dos israelitas, Javé, ou se querem apenas di­
zer que ele transcende a dimensão humana e que, portanto, não é realizado 
por pessoas como eles.'*! p)g qualquer forma, ao reconhecer a natureza divina 
dos fenômenos, estão, ao mesmo tempo, aceitando a interferência do Deus 
de Israel. Na praga anterior, o faraó havia reconhecido que Javé estava por 
trás dos portentos. Agora também os magos o reconhecem.
5) A praga das moscas (8.16-28[8.20-32])
16) CHsse Javé a Moisés: Levanta-te pela manhã e vai até o faraó, quan­
do ele sair para o rio, e dize-lhe: Assim diz Javé: Deixa meu povo ir para que 
me sirva,
17) porque, se não deixares meu povo ir, enviarei moscas sobre ti, sobre 
teus servos, sobre teu povo e sobre tuas casas; as casas dos egípcios se en­
cherão de moscas e também a terra onde eles estiverem.
18) Naquele dia, separarei a terra de Gósen, onde habita o meu povo, 
para que nela não haja moscas, afim de que saibas que eu sou Javé no meio 
da terra.
19) Farei distinção entre o meu povo e o teu povo. Amanhã acontecerá 
este sinal.
20) Javé assim o fez. E vieram nuvens de moscas sobre a casa do fa­
raó, sobre as casas de seus servos e sobre todo o país do Egito; a terra ficou 
arruinada por causa delas.
21) O faraó chamou Moisés e Arão e lhes disse: Ide, oferecei sacrificio a 
vosso Deus dentro do país.
22) Moisés respondeu: Não convém fazer assim, porque ofereceriamos 
a Javé, nosso Deus, o que é abominação para os egípcios. Se sacrificarmos 
coisas abomináveis aos egípcios à sua insta, não nos apedrejariam?23) Iremos três dias de caminho no deserto e ofereceremos sacrifícios a 
Javé, nosso Deus, assim como nos disser.
Esse problema foi percebido pelo Targum Pseudo-Jônatas, que coloca na boca dos magos o 
seguinte; “Isso é obra de YHWH; não é obra de Moisés e Arão” .
128
24j E o faraó disse: Deixar-vos-ei ir para que ofereçais sacrifícios a Javé, 
vosso Deus, no deserto; mas não vos afastais muito; orai por mim.
25) E Moisés respondeu: Ao sair de tua presença, orarei a Javé, para 
que as moscas amanhã se afastem do faraó, de seus servos e de seu povo; 
mas que o faraó não tome a enganar-nos, não deixando o povo sair para ofe­
recer sacrifícios a Javé.
26) Moisés saiu da presença do faraó e orou a Javé.
27) Javé fez de acordo com a palavra de Moisés e retirou as moscas do 
faraó, de seus servos e de seu povo; não ficou uma só.
28) Mas o faraó endureceu, mais uma vez, o seu coração e não deixou 
o povo partir.
Introdução ao texto
Essa é a primeira praga da segunda série (cf. a seção “Dinâmica lite­
rária das dez pragas do Egito”) e corresponde a um modelo mais completo 
e desenvolvido do que as últimas duas. As moscas trarão enfermidades e 
morte. Ao mesmo tempo, elas são impuras e transmitem essa impureza por 
onde vão (Lv 11.20,23). A dimensão cósmica, que se expressa na perda da 
pureza, novamente é central. O mesmo Deus que criou a harmonia na terra 
e na natureza pode agora redirecionar a natureza para colocá-la em sintonia 
com seu projeto de libertação.
Ocorre nesta praga, pela primeira vez, uma clara distinção entre Egito 
e Israel. As moscas cobrirão toda a terra do Egito, com exceção da região de 
Gósen, onde habitam os israelitas: Até aqui não se mencionou o que acon­
tecia com os israelitas, se eles também sofriam ou não as consequências 
das pragas. Essa distinção antecipa o que irá acontecer também em outras 
pragas, especialmente a décima praga, a mais terrível de todas elas, quando 
a distinção será crucial para preservar a vida de uns e condenar a de outros. 
Vemos agora que Deus distingue opressores de oprimidos e cuida desses; 
isso ele também fará em várias das pragas que seguem (9.6,26; 10.23), in­
clusive na décima.
O texto expõe uma extensa negociação entre o faraó e Moisés. No diã- 
logo que ambos mantêm, chegam a um acordo que será, logo a seguir, rom­
pido pelo faraó. Isso contribui para a criação de um clima crescentemente 
hostil contra o monarca, que culminará com a décima praga. A conversa 
com o faraó conduz a que esse novamente promete deixar o povo sair para 
adorar Javé. Limita-se, no entanto, a oferta: o povo deve adorá-lo dentro do 
Egito. Isso revela que, mesmo em seu próprio sofrimento, o faraó pode ser 
frio e calculista, atento a seus próprios interesses econômicos e políticos. 
Moisés argumenta que realizar o culto no próprio país ofendería os egípcios.
' Existem analogias a essa praga nas mitologias do antigo Oriente Próximo. Na epopeia de 
Enuma Elish, do exército de Tiamat também faz parte uma “mosca monstruosa” [ANET, p. 
62]; em 2Rs 1.2, o Deus da cidade de Ecrom é denominado de Baal Zebub: “Deus (ou Senhor) 
das moscas”.
129
mas não fica claro qual seria o rito ofensivo. De qualquer forma, a contra­
proposta de Moisés é ir três dias de caminho no deserto. Em sentido estrito, 
essa proposta não é idêntica ao que Deus está propondo nem tampouco 
parece aquilo que o próprio Moisés entende que deva ser. Contudo, é pro­
vável que o narrador esteja convencido de que a dureza do coração do faraó 
nunca deixará os israelitas irem; assim, as palavras de Moisés não são, na 
verdade, uma mentira, mas somente uma forma de provar que até mesmo 
essa solicitação menor - que não implica a libertação da escravidão - será 
rejeitada pelo rei.
Análise detalhada
16-20 [20-24] ► Após a ameaça, encontramos o anúncio da praga. As
moscas (hebraico ‘arob; a tradução “mutuca” também é correta'' )̂ atacarão 
toda a terra; entrarão até nas casas, tanto de ricos como de pobres; atacarão 
inclusive o solo, o que talvez queira dizer que o tornarão improdutivo. Mas 
também se determina que a praga não afetará a terra de Gósen, onde vivem 
os israelitas. Essa distinção é feita para comprovar a soberania de Deus 
sobre o fenômeno, uma forma de confirmar o que os magos anunciaram no 
final da praga anterior (8.15). Nesse sentido, a distinção não pretende ser 
uma mensagem para Israel, já que esse sabe que Deus está por trás dos 
acontecimentos, mas aos egípcios, em especial ao faraó, que ainda resistem 
em reconhecer a soberania de Javé sobre os fenômenos. Não é necessário 
perguntar como se deu, na prática, essa delimitação de uma região livre do 
ataque das moscas. Alguns imaginaram que pudesse ter havido um tipo de 
muro transparente que impediu a passagem das moscas, sendo, portanto, 
outro milagre diante dos olhos dos egípcios. O sentido do texto não se des­
cobre por esse caminho; ele se encontra no nível mais simbólico; o texto 
pretende destacar a opção de Deus pelos oprimidos e escravizados. Do fato 
de ser essa a primeira vez que se faz essa distinção não se deve deduzir que, 
nas pragas anteriores, os israelitas sofreram juntamente com os egípcios. 
Essa maneira de entender o acontecimento é fütil e empobrece a mensagem. 
Ainda que se pudesse imaginar que tudo acontecia em torno das cidades 
egípcias e não na terra de Gósen, seria necessário perguntar o que acon­
teceu com Moisés e Arão, que, de acordo com a narrativa, encontravam-se 
junto ao faraó nesses dias. Verdade é que estamos diante de efeitos literários 
e não de uma crônica histórica; esses têm a intenção de ressaltar que Deus 
está fazendo todo o possível para que seu povo seja libertado da opressão.
No final, afirma-se que a presença das moscas arruinou a terra, o que 
deve ser entendido tanto no sentido natural - perda da fecundidade do solo 
- como no sentido social - início de um caos social no país.
' A LXX utiliza uma expressão que pode ser traduzida como “moscas agressivas”.
130
21-22 [25-26] ► O faraó chama Moisés e Arão para comunicar-lhes que
aceita, em parte, a reivindicação (v. 21); propõe-lhes que sirvam a Deus, 
mas que o façam no próprio país. Moisés responde que essa alternativa não 
é conveniente, pois seus sacrifícios ofenderíam os egípcios, uma vez que se­
riam uma abominação (hebraico to‘ebah) para eles. Os egípcios seriam obri­
gados a apedrejá-los por causa do sacrifício. Não fica claro em que consiste a 
ofensa; os diversos comentaristas concordam que não é possível determiná- 
la com certeza.Também não está claro se o autor estava realmente preocu­
pado com o que os egípcios poderiam considerar uma ofensa para seus sen­
timentos, uma vez que o plano de abandonar o país era bem mais grave do 
que a oferta esporádica de um sacrifício religioso. Possíveis respostas são: 
seriam sacrificados animais sagrados para os egípcios (bois ou cordeiros) ou 
o próprio derramamento de sangue seria ofensivo aos egípcios.
O diálogo é enigmático. Por um lado, o faraó sabe, a essa altura dos 
acontecimentos, que não se trata somente de sair para cumprir certos ritos 
religiosos no deserto, mas de partir para não mais retornar à escravidão. 
Por esse motivo, oferece a alternativa de adorar Deus no próprio país. Por 
outro lado, Moisés também o sabe, mas não o menciona; traz uma desculpa 
como argumento - mesmo que a desculpa corresponda à verdade, não deixa 
de ser uma desculpa, pois Moisés não deixa claro que partirão para a liber­
dade e não somente para adorar e então regressar. Trata-se de um típico 
exercício de diplomacia política, em que se pressupõem coisas que não se 
mencionam.
23-24 [27-28] ► A proposta de Moisés consiste em caminhar três dias
para dentro do deserto e adorar ali, num lugar fora do país. O faraó aceita 
agora que partam, mas adverte que não devem ir “mais longe” do que o ca­
minho de três dias. O importante desse diálogo é a mudança de atitude do 
faraó. Nesse ponto, o faraó tem que humilhar-se para negociar com seus 
escravos. Ele não mais vé a situaçãocomo resultado de uma ação de alguns 
escravos rebeldes sem respaldo e com escassas possibilidades de êxito. As 
pragas têm sido contundentes; ele entendeu que elas provêm de uma divin­
dade real e poderosa. Bem ao estilo dos monarcas poderosos, sente que ain­
da pode negociar com o representante desse Deus uma saída que contemple 
o interesse de ambos os lados. Se querem simplesmente adorar seu Deus, 
que o façam num lugar onde possam ser controlados e onde não se precise 
ter medo de que fujam.
O faraó termina seu discurso pedindo aos escravos que orem por ele. 
Já havia feito esse pedido em 8.4, mas aí solicitara que orassem para que as 
rãs se retirassem. Agora pede que orem por sua pessoa. O relato mostra que 
o faraó não tem outra alternativa senão aceitar sua condição de fragilidade.
 ̂N. SARNA [Exodus. The Traditional Hebrew Text with the New Jewish Publicatíon Society 
Translatíon, p. 43] entende que os israelitas não sabiam que tipo de animal Deus requerería 
para o sacrifício; no caso de ser um dos animais sagrados para os egípcios, isso representaria 
uma provocação e um sacrilégio. Por isso deveríam prestar culto no deserto, longe do Egito.
131
25-28 [29-32] ► As palavras do feiraó foram as que Moisés queria ouvir.
Moisés responde que, depois de sair de sua presença, pedirá a Deus que 
pare com a praga. Mas impôs a condição de que o faraó não tentasse enga­
nar novamente os israelitas, que, dessa vez, deixe, de fato, o povo sair para 
adorar a Deus. Essas palavras mostram que o diálogo náo é táo ingênuo 
quanto aparentam os v. 21-22 e que ambos sabem de que estão falando. 
Em todo caso, a condição é meramente retórica, pois só se poderá verificar 
a honestidade das palavras do faraó após o desaparecimento das moscas. 
Ela serve para mostrar uma vez mais a falsidade do faraó e sua convicção de 
que escravos não devem ser libertados.
A resposta de Deus á oração de Moisés não demora. Antes foi dito que 
as moscas eram tantas, que chegaram a arruinar a terra; agora se diz que 
não restou nenhuma delas. A um milagre grandioso corresponde uma solu­
ção igualmente magnífica. A resposta do faraó, no entanto, será negar aos 
israelitas a possibilidade de sair do país.
6) A praga da peste do gado (9.1-7)
1) Disse Javê a Moisés: Vai ao faraó e dize-lhe: Assim diz Javé, o Deus 
dos hebreus: Deixa ir o meu povo para que me sirva,
2) porque, se não o deixares ir e continuares a detê-lo,
3) a mão de Javé estará sobre o teu gado, que está nos campos, sobre 
os teus cavalos, jumentos, camelos, bois e ovelhas com uma terrível peste.
4) E Javé fará distinção entre os rebanhos de Israel e os rebanhos do 
Egito, e não morrerá nada do que pertence aos filhos de Israel.
5) E Javé fixou um prazo, dizendo: Amanhã Javé fará isso na terra.
6) E Javé o fez no dia seguinte, e morreu todo o rebanho do Egito, mas 
do rebanho dos filhos de Israel não morreu um animal sequer.
7) E o faraó enviou [observadores] e, de fato, do rebanho dos filhos de 
Israel não morrera nenhum animal. E o coração do faraó se endureceu e não 
deixou o povo ir.
Introdução ao texto
A quinta praga atingirá o rebanho do Egito; anuncia-se seu exter­
mínio caso o faraó não deixe Israel partir. A narrativa é breve e pressupõe 
vários elementos, que estão explícitos em outras pragas. Por exemplo, não 
se fornece a resposta do faraó; prossegue-se diretamente com a morte dos 
animais. Também não há nenhuma intervenção de Moisés ou Arão; tudo é 
apresentado como ação exclusiva de Deus. De qualquer forma, essas omis­
sões parecem não ter uma finalidade específica; elas abrem espaço para 
outros elementos próprios dessa praga. Referimo-nos à distinção entre gado 
e pessoas - a peste afetará apenas os animais - e o envio de investigadores, 
por parte do faraó, para colher informações sobre o efeito da praga nos ani-
132
mais dos israelitas. Ele quer saber se o que foi anunciado realmente aconte­
ceu e se ocorreu o mesmo que na praga anterior.
Observou-se que a morte de “todo o rebanho do Egito” é uma frase 
que deve ser relativizada, já que, logo a seguir, encontraremos outra vez 
o gado sendo vítima de outras pragas (9.9,19; 11.5; 13.15).“*= Alguns auto­
res buscam interpretações alternativas para evitar a contradição, como por 
exemplo: trata-se de uma hipérbole que não deve ser entendida literalmente 
ou, então, afirma-se, baseado na frase “que está nos campos” (v. 3), que 
somente os animais selvagens morreram, mas não os que estavam nos cur­
rais. Entendemos que essas considerações são desnecessárias. O sentido do 
texto é mostrar que a morte é maciça e total, expressando, assim, que a ação 
de Deus é contundente. Como nas outras pragas, os detalhes “técnicos” não 
interessam ao relato e tampouco parecem afetar a solidez da argumentação. 
Devemos lembrar que estamos diante de uma narrativa literária e não dian­
te de uma crônica histórica; isso nos ajudará a compreender a magnitude da 
ação divina, sem necessidade de recorrer a racionalizações que justifiquem 
os detalhes do texto.
Análise detalhada
1-5 ► Como em 7.26, também agora Moisés deve “entrar” até onde se
encontra o faraó. O texto provavelmente se refere ao palácio ou ao salão de 
audiências. O anúncio é o mesmo das outras vezes: deixa meu povo ir para 
que me sirva. A ameaça dirige-se agora contra o gado. Anuncia-se a sua 
morte devido a uma misteriosa peste. A expressão deber significa “peste, 
pestilência, enfermidade”. O termo já foi usado em 5.3, referindo-se aos pró­
prios israelitas.Designa uma calamidade que se pode abater sobre pessoas 
e animais e que geralmente é fatal.
Há algo misterioso na narrativa quando se diz que “a mão de Javé” en- 
vieirá a peste. Trata-se de uma expressão usada para indicar tanto bênçãos 
como maldições; denota a ação exclusiva de Deus. Ela se encaixa bem no 
relato dessa peste, na qual a intervenção humana é diminuída, pois dá uma 
certa ambiguidade ã doença, não podendo ser definida com precisão. Em­
bora já enunciado nas pragas anteriores, reforça-se também aqui, diante do 
faraó, que o poder do Deus dos escravos também se estende sobre suas pro­
priedades mais caras, no caso sobre as riquezas que sustentam a sua coroa.
A enumeração dos animais tem o objetivo de determinar a grande am­
plitude da praga; o reverso dessa mesma magnitude mostra-se no fato de 
o texto assinalar que a peste não afetará os rebanhos dos israelitas. Essa
“*= W. PROPP [Exodus 1-18, p. 347] destaca que a hipérbole é recorrente em todo o relato, o 
que geralmente nos incomoda; usam-se, amiúde, imagens de totalidade como: “sobre todo o 
Egito”, “todo ser humano e todo animal”, “todas as águas do Egito” etc. Em nossa opinião, 
trata-se de um recurso literário para exaltar a atuação divina.
A palavra exprime algo muito nocivo; a LXX sempre a traduz por thanatos, “morte” [cf. TDOT, 
111, p. 125],
133
indicação quer ser, como na praga anterior, uma mensagem ao faraó e não 
aos israelitas. A narrativa não pretende impressionar os israelitas, mas pôr 
à mostra a dureza do faraó e sua insistência em não reconhecer que é in­
justo tratar escravos dessa maneira; a única ação que pode satisfazer Deus 
é que o faraó abandone a opressão que impõe aos israelitas. A fixação do 
prazo obriga o faraó a tomar decisões ou conformar-se com as consequên­
cias. Nesse caso, o faraó não acredita que Deus possa realizar a matança 
anunciada.
6-7 ► Cumprido o prazo, executa-se a ordem. O texto enfatiza que é
Javé quem realiza o extermínio - note-se que não se menciona a peste - e 
que salva os animais dos israelitas. A matança maciça de animais expõe o 
Egito a uma situação de impureza ritual. Já o mero contato com o cadáver 
de um animal transmitia impureza; tampouco se podia consumir a carne (Lv 
11.39-40). Para os israelitas, o mais grave ê, como nas pragas anteriores, 
a condição de impureza e abominação em que se encontram os egípcios. A 
continuidade da escravidão afasta o faraó de Deus; essa distância se expres­
sa na impureza rituail. Por isso é necessárioexplicitar que, no território dos 
israelitas, não havia animais mortos.
De acordo com a narrativa, o faraó não acredita na efetiva realização 
do cinunciado. Essa atitude não parece razoável depois das quatro expe­
riências anteriores; mas o texto não tem interesse na lógica; ele pretende 
demonstrar que, apesar das evidências, o opressor resiste em acreditar que 
haja uma força capaz de dobrá-lo.
7) A praga das úlceras (9.8-12)
8) E disse Javé a Moisés e a Arão: Tomai punhados de cinza de um for­
no, e Moisés a espalhará ao céu diante do faraó.
9) Ela se transformará em pó sobre toda a terra do Egito e provocará, 
nas pessoas e nos animais, irritação, eczemas e úlceras por todo o país do 
Egito.
10) Eles tomaram cinza do forno e se puseram diante do faraó. Moisés 
a espalhou ao céu e houve irritação, úlceras e eczemas nas pessoas e nos 
animais.
11) Os magos não podiam permanecer diante de Moisés por causa da 
irritação, pois os magos tinham irritação assim como todos os egípcios.
12) E Javé endureceu o coração do faraó, e esse não os ouviu, assim 
como Javé havia dito a Moisés.
Introdução ao texto
Esta praga é a terceira da segunda série; caracteriza-se por sua bre­
vidade e contundência (cf. a seção “Dinâmica literária das dez pragas do 
Egito”). Não se menciona o pedido ao faraó de deixar o povo sair, talvez por
134
causa das experiências anteriores, que mostraram que o faraó não se impor­
ta com palavras. O gesto de lançar cinza para o céu é um rito desconhecido, 
pelo menos no sentido de espalhar uma doença. A nosso ver, utiliza-se uma 
imagem bastante familiar: a leveza das cinzas. O fato de ela cobrir tudo ao 
cair aponta para a contundência da enfermidade que está sendo descrita. 
Ao mesmo tempo, a cinza deixa a pele esbranquiçada ao pousar nela, seme­
lhante á cor da lepra ou de pele doente.
A praga é descrita com três palavras, que traduzimos por “irritação, 
eczemas e úlceras”, sem ter condições de ser mais precisos, mesmo sabendo 
que o autor certamente se referiu a males concretos. Em todo caso, esses 
males também causam impureza ritual (Lv 13) e deixam as pessoas distan­
tes da bênção divina. Pela primeira vez, a praga atinge diretamente o corpo 
dos seres humanos. Entre eles também estão os magos, que voltam a apa­
recer. Deles se diz que sofreram as mesmas irritações que todos os outros 
egípcios. Depois disso, não mais serão mencionados na narrativa do Êxodo.
Análise detalhada
8-9 ► Esta é a única praga em que Moisés e Arão devem fazer algo mais
do que “estender o seu bastão” ou “a sua mão” no momento indicado. Aqui 
devem recolher cinza de um forno e levá-la até a presença do faraó, onde 
se multiplicará para cobrir o território de todo o país. Lançar cinzas ao céu 
e observar como caem pousando sobre tudo deve ser um símbolo de que 
a enfermidade iminente virá do céu e cairá sobre toda a terra. A imagem 
não pode ser mais terrível, uma vez que as ínfimas partículas da fuligem 
conseguem penetrar em todos os lugares sem que possam ser controladas. 
Não concordamos com os que afirmam que esse gesto equipara Moisés aos 
magos, como se exercesse aqui a função de feiticeiro de Deus (em oposição 
aos feiticeiros egípcios).A narrativa não fornece outros indícios de que se 
quisesse fazer essa comparação nem de que o ato de lançar as cinzas ao céu 
tivesse um efeito mágico. Trata-se, antes, de um símbolo da difusão impla­
cável da doença iminente.
Já mencionamos que não se pode determinar com certeza a que do­
ença se refere o texto. Especialmente a primeira das três palavras (hebraico 
shehin) parece remeter a uma doença típica do Egito (Dt 28.27 denomina-a 
“shehin do Egito”); outros textos consideram-na precursora de outras enfer­
midades (assim Lv IS-IS)."*® Em todo caso, trata-se de uma doença de pele, 
que aqui traduzimos por “irritação” por falta de precisão maior.
Assim HOUTMAN, C. Exodus II, p. 74.
Para uma análise detalhada, cf. PROPP, W. Exodus 1-18, p. 332, 350.
135
10-12 ► Na descrição da doença inverte-se a ordem das palavras: agora
se fala de “úlceras e eczemas”. Isso pode não ser muito significativo; indica, 
no entanto, que já na antiguidade havia problemas para identificar essas 
doenças. Também não fica claro por que aparecem agora os magos. Aven­
tou-se a hipótese de que, por causa de suas capacidades, também eram os 
médicos da época; esperava-se, portanto, que soubessem como evitar uma 
doença ou, pelo menos, como curar-se dela. Nesse caso, o que se diz deles 
desacredita-os diante do faraó e do povo, desmascarando-os em sua fra­
queza. Isso explica por que se afirma que sofreram a mesma irritação que 
todos os demais. Mas também se diz que “não podiam permanecer diante de 
Moisés” por causa da doença: era uma vergonha mostrar a fraqueza diante 
dos escravos.
A praga é executada por Moisés, mas não se utiliza a fórmula: “esten­
de a tua mão sobre a terra” (9.22; 10.12,21), encontrada nas trés pragas 
seguintes. Provavelmente, segue-se aqui uma tradição diferente, que foi in­
corporada ao conjunto das pragas. A praga finaliza mencionando que, dessa 
vez, é Javé quem endurece o coração do faraó, não deixando que o ouça.
8) A praga do granizo (9.13-35)
13) Então Javé disse a Moisés: Levanta-te de manhã cedo, apresenta-te 
ao faraó e dize-lhe: Assim disse Javé, o Deus dos hebreus: Deixa meu povo 
ir, para que me sirva.
14) Pois desta vez entnarei todas as minhas pragas sobre o teu coração, 
sobre os teus servos e sobre o teu povo, para que saibas que não há ninguém 
como eu em toda a terra.
15) Portanto, agora, estenderei a minha mão para ferir-te a ti e a teu 
povo com uma praga, e serás eliminado da terra.
16) Contudo, eu te mantive a fim de mostrar em ti o meu poder e para 
que meu nome seja anunciado em toda a terra.
17) Ainda te opões a meu povo e não o deixas ir?
18) Amanhã, a esta hora, choverá granizo, tão pesado como nunca hou­
ve no Egito, desde o dia em que foi fundado até agora.
19) Manda, portanto, proteger o teu gado e tudo o que tens no campo, 
porque toda pessoa ou animal que estiver no campo e não esteja em casa 
morrerá quando o granizo cair sobre eles.
20) Os servos do faraó temeram a palavra de Javé e fizeram com que 
seus criados e seu gado se reunissem em casa,
21) mas quem não colocou em seu coração a palavra de Javé deixou 
seus criados e seu gado no campo.
22) Javé disse a Moisés: Estende a tua mão para o céu e haverá granizo 
em toda a terra do Egito sobre as pessoas, sobre os animais e sobre toda a 
erva do campo no país do Egito.
136
23) Moisés estendeu o seu bastão para o céu, e Javé fez trovejar e cair 
granizo; o fogo descarregou-se sobre a terra e Javé fez chover granizo sobre 
a terra do Egito.
24) Houve, portanto, granizo e fogo, e o granizo era tão grande como 
nunca antes houvera em toda a terra do Egito desde a sua fundação.
25) Aquele granizo feriu toda a terra do Egito, tudo o que estava no 
campo, tanto pessoas como animais; o granizo também destruiu toda a erva 
do campo e despedaçou todas as árvores do país.
26) Somente na terra de Gósen, onde viinam os filhos de Israel, não 
houve granizo.
27) O faraó mandou chamar Moisés e Arão e lhes disse: Desta vez eu 
pequei; Javé é justo, mas eu e meu povo somos ímpios.
28) Orai a Javé para que parem os trovões de Deus e o granizo. Eu vos 
deixarei partir e não vos deterei.
29) Moisés lhe respondeu: Quando sair da cidade, estenderei as mi­
nhas mãos a Javé, os trovões cessarão e não haverá mais granizo, para que 
saibas que a terra é de Javé.
30) Mas eu sei que nem tu nem teus servos temeis a presença de Javé
Deus.
31) O linho e a cevada foram destruídos, porque a cevada já estava na 
espiga e o linho, em flor.
32) Mas o trigo e o centeio não foram destruídos, porque eram tardios.
33) Moisés saiu da presença do faraó e, fora da cidade, estendeu as 
suas mãos a Javé, e cessaram os trovões e o granizo, e a chuva não mais 
caiu sobre a terra.
34) Quando o faraó viu que a chuva, o granizo e os trovões hainam ces­
sado, voltou a pecar eendureceu o seu coração, ele e seus servos.
35) Endureceu-se o coração do faraó e não deixou ir os filhos de Israel, 
assim como Javé havia dito por meio de Moisés.
Introdução ao texto
A primeira praga da terceira e última série é a mais longa de todas e 
caracteriza-se por sua grande intensidade, sem dúvida superior à das pra­
gas já narradas. O fato de ser a sétima praga explica a sua escolha para ser 
a mais poderosa das nove.'*® De fato, nessa praga foram combinados trovões 
(v. 23), granizo (v. 18), relâmpagos (v. 23: “fogo”) e chuva (v. 33); nenhuma 
outra praga conta com tantos fenômenos ao mesmo tempo.Soma-se a
o número sete e seus derivados têm o valor simbólico do completo e acabado, mas também 
do eleito e separado para um determinado fim (cf. 1.5 para o número setenta). No artigo 
“Numbers”, do IDB, menciona-se que “a razão de alguns números sagrados terem uma im­
portância particular não é simples nem óbvia”, ao que acrescentamos “nem arbitrária”, já 
que envolve profundas experiências culturais e sociais.
C. HOUTMAN [Bxodus II, p. 80] descreve a praga como algo que traz morte e destruição sobre 
todos e tudo o que estiver ao ar livre no Egito.
137
isso que serão atingidas pessoas, animais e a vegetação, tanto as plantas 
de cultivo como as árvores. Na linguagem simbólica típica de todas essas 
narrativas, diz-se: “tudo foi destruído”. Simultaneamente, anuncia-se que 
a praga será enviada sobre o “coração” do faraó. Essa expressão designa o 
entendimento, a consciência e a sabedoria da pessoa, o que pode significar 
a sua estrutura ideológica e sua compreensão particular da realidade, que 
dã sentido ã sua práxis social.^ ̂A escravidão como sistema estava em seu 
coração. Jã em 7.23, fora dito que o faraó “não colocou o seu coração” nas 
palavras de Javé, que foi traduzido por “não prestou atenção”. Agora Deus 
coloca o dedo no lugar onde mais dói para o opressor: ele questiona seu 
sistema ideológico e sua base simbólica, destacando não apenas que ele é 
injusto e desumano, mas que também esse aspecto da vida se encontra sob 
a soberania divina.
Anáilíse detalhada
13-14 ► Como as outras primeiras pragas de cada série (7.15; 8.16), a
narrativa inicia de manhã cedo e na presença do faraó com a reivindicação 
de deixar o povo sair. Anuncia-se, então, a praga (hebraico magepah? )̂, mas 
somente dessa vez no plural. O contexto dá a entender que se refere ãs pra­
gas que ainda virão; mas isso pressuporia que o faraó não irá arrepender-se. 
Ê importante lembrar que estamos aqui diante de uma composição literária 
que pretende chegar ã décima praga, em que se manifestará o imenso poder 
de Deus. As nove primeiras procuram mostrar a dureza do faraó, que irá, 
por fim, justificar a última. Se fosse um registro histórico, o plural não teria 
nenhum sentido ou então seria um preconeeito inaceitável.
A finalidade da praga define-se como “para que saibas que não há nin­
guém como eu na terra”. Esse objetivo já se encontra em 7.17; 8.6,18, o que 
evidencia que se pretende mudar o penseimento do faraó. Nos quatro casos, 
o interesse é mostrar que Javé é o Senhor de toda a terra e que tudo está su­
jeito a ele.=̂ Isso não era somente uma novidade para o faraó, mas também 
um absurdo, dado que, para ele, os Deuses mais poderosos eram os seus. 
Ninguém podia questionar sua supremacia, muito menos se podia tolerar 
que o Deus dos escravos proferisse tais palavras. A terra e seus habitantes 
pertenciam a ele, o faraó, e não ao Deus dos hebreus.
Na simbologia antiga, o coração não era o lugar dos sentimentos, mas da razão e das idéias. 
Atacar o coração é questionar o pensamento e a base intelectual e ideológica de um projeto. 
Essa é a palavra hebraica específica para designar uma praga; na história das pragas do 
Egito, ela é utilizada somente nessa ocasião (cf. ISm 4.17; 6.6; SI 106.29-30).
T. FRETHEIM [Exodus, p. 124] afirma que o texto mostra um Deus de “proporções univer­
sais”, o que, no contexto da antiga concepção dos Deuses “do lugar”, representaria uma 
afirmação revolucionária.
138
15-21 ► O anúncio da praga é combinado com a ameaça de destruir o
poder do faraó. É a primeira vez que se diz que o próprio faraó será eliminado 
(hebraico kayad), o que mostra uma crescente intensidade das pragas. Até 
agora, elas haviam provocado incômodo para as pessoas e o faraó. Agora, 
no entanto, anuncia-se a sua morte, eintecipando a décima praga, que cairá 
sobre seu filho. A seguir, o anúncio é suavizado com a lembrança de que o 
faraó ainda vive, mas apenas para que, por via de contraste, seja exaltado 
o nome de Deus. Para o leitor, isso significa que a narrativa vai continuar.
Duas coisas surpreendem nestes versículos. Em primeiro lugar, o gra­
nizo é um fenômeno meteorológico próprio de Canaã, mas não do Egito. É 
verdade que, em narrativas lendárias, as coordenadas geográficas são im­
precisas - como todos os demais elementos das pragas -, mas, dessa vez, 
parece evidente que o redator está localizado em Canaã e seu texto reflete 
as condições climáticas do lugar. Um anúncio desses deve ter sido mais im­
pressionante para o leitor ou ouvinte de Canaã do que para os egípcios, aos 
quais ter-se-ia que explicar o que é granizo.Em segundo lugar, chama a 
atenção que se dá ao faraó a fórmula para evitar ser atingido pela praga. A 
fórmula não é; “se deixares meu povo sair, não enviarei o granizo”. Além dis­
so, ele recebe o conselho: se recolheres o gado e as pessoas, eles não serão 
atingidos pelas pedras. Parece uma praga direcionada contra as plantações, 
que afetará as pessoas e os animais apenas como consequência inevitável 
caso eles não creiam na palavra de Deus e se exponham ao fenômeno.
A narrativa indica que houve quem temesse a Javé (v. 20-21) e prote­
gesse as pessoas e o gado, enquanto também houve muitos outros que não 
o fizeram. A menção de que há egípcios sensíveis à palavra de Deus também 
é uma modificação significativa nessa intensificação do poder das pragas. 
Por outro lado, radicaliza-se o evento contra o faraó; começam a manifestar- 
se sinais de que há pessoas que escutam o que lhes é dito. Isso também 
se mostra na reclamação que os servos trazem ao faraó na praga seguinte 
(10.7). Talvez teimbém haja uma relação com a multidão que se somou aos 
israelitas por ocasião de sua saída do Egito (12.38).
22-26 ► Ao gesto do bastão de Moisés descarregam-se sobre a terra tro­
voadas, granizo e relâmpagos, que destroem a vegetação, as árvores, as pes­
soas e os animais que estavam ao ar livre. Já mencionamos que o granizo 
deve ter causado uma impressão maior nos ouvintes de Canaã do que nos 
egípcios, que o desconheciam. A frase que caracteriza o fenômeno como 
sendo de magnitude nunca antes vista na terra do Egito - “desde a sua fun­
dação” - faz parte do clima criacional que perpassa essa praga. Deus afirma 
sua identidade como senhor da terra e criador de portentos nunca vistos. 
Parte dessa identidade expressa-se no fato de que, também dessa vez, como 
em 8.18; 9.4, foi poupada a terra de Gósen, onde habitavam os israelitas.
' C. HOUTMAN [Exodus II, p. 84] comenta que essa praga coincide com características climá­
ticas de Canaã e foi redigida pensando no impacto sobre o leitor e não os atores do relato.
139
27-32 ► As palavras do faraó a Moisés e Arão são inesperadas: ele con­
fessa seu pecado e reconhece que a justiça está ao lado de Javé. Como era 
de se esperar de um tirano, afirma que todo o seu povo pecou juntamente 
com ele, mesmo quando, no v. 20, se mencionaram servos egípcios que te­
meram a Deus e fizeram de acordo com sua palavra. Pede que intercedam a 
Deus para que pare o granizo. Mas esse pedido não soa aos ouvidos de Moi­
sés como da primeira vez (8.4); agora ele não acredita em sua sinceridade e 
expressa-o claramente. As pragas tém a finalidade de fazer o faraó reconhe­
cer o poder de Deus; por esse motivo, pedirá a Javé que suspenda a praga. 
Desse modo ficará demonstrado que o dono da terra não é o faraó, mas 
Deus. Moisés, no entanto,acrescentarã que sabe que o faraó não é sincero 
em suas palavras, que nem ele nem seus servos temem, de fato, a Deus. 
Os V. 31-32 parecem indicar que, já que algumas colheitas se salvaram, ao 
faraó ainda restaram recursos materiais para poder continuar negando o 
direito dos israelitas de ser libertados da escravidão.==
33-35 ► O final repete a descrição da situação já conhecida das outras
pragas. Uma vez detida a calamidade, o faraó esquece suas palavras e tor­
na a negar o direito dos israelitas à liberdade. Essa insistência literária em 
mostrar a promessa do faraó e, logo a seguir, o seu esquecimento reflete a 
atitude recorrente dos opressores, que não vacüam em mentir para preser­
var seus direitos e privilégios. Por mentirem a escravos, entendem que não 
estão fazendo isso a ninguém; escravos não merecem receber uma palavra 
verdadeira; mentir a um escravo é algo natural. Mas, do ponto de vista do 
narrador, cria-se o clima apropriado para apresentar a praga final.
9) A praga dos gafanhotos (10.1-20)
1) Javé disse a Moisés: Vai ao faraó, porque endurecí o seu coração e o 
coração de seus servos, para mostrar meus sinais no meio deles,
2) para que contes no ouvido de teu filho e do filho de teu filho os mila­
gres que fiz no Egito e os sinais que realizei entre eles, e assim saibas que eu 
sou Javé.
3) Moisés e Arão foram ao faraó e lhe disseram: Assim diz Javé, o Deus 
dos hebreus: Até quando recusarás humilhar-te diante de mim? Deixa meu 
povo ir para que me sirva.
4) Se, pelo contrário, te recusares deixá-lo sair, trarei amanhã o gafa­
nhoto sobre o teu território.
Defendeu-se a ideia de que esses versículos foram acrescentados para deixar sobrar algumas 
culturas para a praga seguinte, a dos gafanhotos (cf. 10.5). Também se aventou a hipótese 
de que os v. 31-32 se encontravam, originalmente, logo após o v. 24, onde sua presença seria 
mais lógica [cf. DURHAM, J.I. Exodus. Waco, 1987. p. 126-129).
O episódio de Amós com o sacerdote Amazias (Am 7.10-17) desmascara as mentiras do rei e 
seu sacerdote; Jeremias afirma que, por causa das mentiras dos falsos profetas, os sacerdo­
tes dominam o povo (5.31).
140
5) que cobrirá a face da terra, de modo que não mais se poderá ver a 
terra. Comerá o que escapou do granizo; comerá toda árvore que cresce no 
campo.
6) Encherá as tuas casas, as casas de todos os teus servos e todas as 
casas do Egito, como nunca viram teus pais nem os pais de teus pais desde 
que eles estão na terra até hoje. Virou-se e saiu da presença do faraó.
7) Os servos do faraó lhe disseram: Até quando esse homem será uma 
ameaça para nós? Deixa ir esses homens, para que sirvam a Javé, seu Deus. 
Acaso não sabes que o Egito está arruinado?
8) Então fizeram Moisés e Arão retomar à presença do faraó, e lhes 
disse: Ide, servi a Javé, vosso Deus. Quais são os que irão?
9) Moisés respondeu: Havemos de ir com nossas crianças e com nossos 
velhos, com nossos filhos e com nossas filhas; com nossas ovelhas e com nos­
sos bois iremos, pois é nossa festa para Javé.
10) Ele lhes disse: Então, Javé seja convosco! Como vos deixaria ir com 
as vossas crianças? Vede a maldade em vosso rosto!
11) Não será assim; ide somente vós homens e servi a Javé; é isso que 
pedistes. E os expulsaram da presença do faraó.
12) E Javé disse a Moisés: Estende a tua mão sobre a terra do Egito, 
para que os gafanhotos subam sobre o país do Egito e consumam tudo que o 
granizo deixou.
13) Moisés estendeu o seu bastão sobre a terra do Egito, e Javé trouxe 
sobre o país um vento oriental todo aquele dia e toda aquela noite; e pela ma­
nhã o vento oriental trouxe os gafanhotos.
14) Os gafanhotos subiram sobre todo o território do Egito e pousaram 
em todo o país do Egito em tão grande quantidade como nunca antes houve 
nem haverá depois.
15) Cobriram a superfície de todo o país e a terra escureceu. Devoraram 
toda a erva da terra e todo fruto das árvores que o granizo haina deixado. 
Não restou nada verde nas árvores nem na erva do campo em toda a terra 
do Egito.
16) E o faraó se apressou a chamar Moisés e Arão e disse: Pequei contra 
Javé, vosso Deus, e contra vós.
17) Agora, rogo-vos que perdoeis desta vez o meu pecado e que supli­
queis a Javé, vosso Deus, que afaste de mim pelo menos essa praga mortal.
18) Moisés saiu da presença do faraó e suplicou a Javé.
19) E trouxe Javé um forte vento do mar, que levou os gafanhotos e os 
lançou no Mar dos Juncos; nem um só gafanhoto restou em todo o território 
do Egito.
20) Mas Javé endureceu o coração do faraó, e ele não deixou os filhos 
de Israel partir.
Introdução ao texto
Como a anterior, também esta - oitava - praga é extensamente desen­
volvida e mostra uma complexidade literária que a destaca das precedentes.
141
Em certo sentido, pode-se considerá-la um complemento à anterior, uma 
vez que se apresenta como uma praga que destrói a vegetação “que o gra­
nizo havia deixado” (cf. v. 5,9,3Is). Apesar desse vínculo, ela certamente 
tem autonomia literária e incorpora novos elementos á narrativa. Três são 
importantes.
O primeiro é a discussão do faraó com seus servos. Não se ouviu nada 
parecido antes. Aqui os servos intercedem junto ao faraó, tentando con­
vencê-lo a deixar os israelitas sairem. Utilizam o imperativo e falam num 
tom bastante enérgico. Em determinados momentos, parecem tratar o faraó 
como um ignorante ao mencionar que desconhece o estado calamitoso em 
que se encontra seu país. A pressão de seus servos força-o, de fato, a convo­
car Moisés e a negociar com ele.
Este é o segundo elemento a ser destacado: apresenta-se uma oferta 
do faraó que se aproxima bem mais da meta de sair do Egito. Porém a ne­
gociação não leva a bom termo, porque os projetos de ambos são diferentes. 
O faraó aceita que saiam para celebrar uma festa a Javé sob a condição de 
que as crianças e as mulheres fiquem como garantia de que regressariam. 
Moisés, no entanto, quer que todos saiam, pois seu plano é continuar pelo 
caminho do deserto em direção ã terra prometida. Não se chega a um acor­
do, e a praga acontece.
Do ponto de vista narrativo, a ação do vento é significativa. O vento 
traz os gafanhotos e depois leva-os embora. O vento vem do leste e depois 
do mar - a indicação não é muito clara e será analisada, a seguir, junto com 
o versículo correspondente - para lançar os gafanhotos no mar dos Juncos. 
Isso antecipa a morte do exército egípcio (14.28). O vento é o instrumento de 
Deus que executa sua vontade. Ao longo das Escrituras, fala-se, reiteradas 
vezes, do poder de Deus, que se expressa no vento ou dele se faz valer.
Análise detalhada
1-6 ► O envio de Moisés ao faraó para realizar “meus sinais” (hebraico
’ototay) tem agora uma segunda intenção: lembrar o que Deus fez para li­
bertar o povo da eseravidão. Os pais devem contar a seus filhos, e esses aos 
seus, as maravilhas de Deus em favor dos oprimidos. Também no livro do 
profeta Joel encontramos o tema da transmissão aos filhos em conexão com 
uma praga de gafanhotos. Isso pode sugerir um vínculo literário entre am­
bos os textos. Essa hipótese é reforçada pelo fato de o v. 6 repetir a estru­
tura sintática dos pais. Note-se que essa é a primeira vez que se estabelece, 
no livro do Êxodo, a necessidade de criar uma memória. Quando se está no
Cf. Gn 8.1; Jó 1.19; SI 104.3-4; 135.7; Pv 30.4; Jn 1.4; o vento também pode ter uma função 
vivificante, como em Ez 37.1-10.
Cf. J1 1.3-4. De acordo com nossa hipótese, o texto de Joel refere-se de forma simbólica aos 
gafanhotos, que são, na realidade, uma alusão à invasão de um exército estrangeiro, prova­
velmente assírio [cf. ANDINACH, P. The Locust in the Message of Joel. VTXLII, p. 433-441, 
1992].
142
meio de um processo histórico desenfreado, normalmente não se pensa em 
registrá-lo para a posteridade. Geralmente, descobre-se a importância de 
um evento e a necessidade de preservá-lo como testemunha quando se está 
a uma certa distância do ocorrido. Nesse caso, o autor tem o propósito de 
preservar a memória deeventos que serão ressignificados posteriormente.
Essa primeira cena mostra Moisés e Arão dirigindo-se ao faraó. Sem 
nenhum preâmbulo, recriminam sua obstinação e anunciam a praga dos 
gafanhotos. Como nos outros casos em que são afetados os produtos agrá­
rios, o efeito principal faz-se sentir na área da economia, uma vez que o 
Egito obtinha seus recursos da produção de alimentos. Do ponto de vista 
teológico, indica-se que Deus tem domínio sobre os animais e que até as 
tragédias trabalham a seu favor. A pergunta de Moisés “Até quando recusas 
humühar-te diante de mim?” apoia-se no fato de que, depois de oito pragas, 
a soberania de Javé sobre os fenômenos da natureza já foi comprovada. Deus 
envia e detém toda sorte de calamidades (sangue, úlceras) e animais (rãs, 
piolhos, moscas), mas o faraó ainda toma a decisão de não os deixar sair. As 
demonstrações de poder já estão se esgotando, mas o opressor não reconhe­
ce sua falta nem o direito das outras pessoas de viver com dignidade.
7-11 ► Os servos do faraó entram em confronto com ele. Tem-se a sen­
sação de que o faraó perdeu parte de sua autoridade. Primeiramente, Moisés 
recrimina sua falta de humildade; agora os seus próprios servos dizem aber­
tamente que deve mudar de atitude. Além disso, culpam-no de desconhecer 
a realidade de seu próprio povo, como esse está sofrendo, por sua causa, 
sob as calamidades enviadas pelo Deus dos escravos. Dirigem-se a ele no 
imperativo “deixa”)...]” (hebraico shalah), uma forma aparentemente pouco 
respeitosa de tratar o faraó. A autoridade do faraó está tão debilitada, que 
ele aceita a reivindicação dos servos e manda chamar Moisés para negociar 
com ele as condições da saída.
O fato de que o faraó propõe um diálogo mostra sua fraqueza. A pos­
tura firme de Moisés corresponde ao fato de que, a essa altura dos aconteci­
mentos, os israelitas já têm prova suficiente do poder de Deus e que já não 
restam dúvidas de que o projeto de Deus não consiste em uma libertação 
parcial, com o objetivo de celebrar uma festa religiosa, mas a convocação 
para sair definitivamente da escravidão, para enfrentar os riscos da liberda­
de a caminho da terra prometida. Contudo, Moisés ainda não torna explícito 
esse projeto; ao contrário, continua utilizando uma linguagem que poderia 
ser definida como diplomática. A resposta do faraó, no entanto, revela que 
ele captou corretamente o teor do projeto de Moisés. Mas também ele não 
coloca o projeto a descoberto ao fazer a contraproposta de que apenas saiam 
os homens para adorar no deserto, a fim de assegurar que retornem a suas 
mulheres e seus bens que permanecerão no Egito. Essas suas palavras são 
ditas num tom violento, como se estivesse fora de si. Fora humilhado pri­
meiramente por Moisés, depois por seus servos e, agora, de novo por esse 
escravo que se atreveu a fazer-lhe propostas fiagrantemente contrárias a
143
seus interesses. Como Moisés não aceita essa proposta do faraó, é expulso 
de sua presença.
12-15 ► Em resposta, Moisés estende o bastão e os gafanhotos sao tra­
zidos pelo vento oriental. A multidão é enorme. Afirma-se que não haverá 
memória de algo igual, nem no passado tampouco no futuro. Toda a vegeta­
ção morreu naquele dia.
16-20 ► Em seu desequüibrio e debilidade, o faraó manda chamar com
urgência Moisés e Arão, declara seu pecado e pede que intercedam por ele 
e o livrem, assim, dos gafanhotos. Moisés não mais dialoga nem reivindica, 
pois não acredita mais na possibilidade de mudança do faraó, tampouco em 
sua palavra. Ora para deter a praga somente porque também anseia por ver 
como Deus conduzirá os acontecimentos.
O vento do mar (hebraico ruah yam) levou os gafanhotos embora. Essa 
expressão é problemática no contexto geográfico do Egito, onde o mar se 
encontra ao norte e não a oeste. Um vento que soprasse do norte não le­
varia os gafanhotos na direção do mar dos Juncos, mas para o deserto ao 
sul, onde não existe nenhum mar. Provavelmente, o redator transferiu uma 
expressão comum em Canaã (o vento ocidental sopra do mar Mediterrâneo) 
ãs condições do Egito, sem levar em conta sua geografia. Mais importante é 
o simbolismo que está por trás do ato de lançar os gafanhotos no mar dos 
Juncos (também chamado mar Vermelho), que prenuncia a morte dos egíp­
cios no mesmo mar, o mar que os israelitas conseguiram atravessar, mas 
em cujas águas o exército egípcio sucumbiu. É digno de nota que paulatina- 
mente aumenta a intensidade das pragas; a praga anterior ataca o “coração” 
do faraó; agora se prenuncia a morte de seu exército. Tudo indica que os 
acontecimentos se precipitam.
10) A praga das trevas (10.21-29)
21) Disse Javé a Moisés: Estende a tua mão ao céu e haverá trevas so­
bre a terra do Egito, trevas que se possam apalpar.
22) Moisés estendeu a sua mão ao céu e houve densas trevas sobre 
toda a terra do Egito durante três dias.
23) Ninguém podia ver o seu irmão e ninguém se levantou de seu lugar 
por três dias; mas todos os filhos de Israel tinham luz em suas habitações.
24) O faraó chamou Moisés e disse: Ide, servi a Javé; fiquem somente 
as vossas ovelhas e os vossos bois. As crianças podem ir convosco.
25) Moisés disse: Tu nos darás do que é teu para os sacrifícios e holo- 
caustos que ofereceremos a Javé, nosso Deus.
26) Mas também o nosso gado irá conosco. Não ficará um único casco, 
porque dele tomaremos para servir a Javé, nosso Deus; pois não sabemos 
como servir a Javé antes de chegar lã.
27) E endureceu Javé o coração do faraó, e ele não quis deixá-los ir.
144
28) E o faraó lhe disse: Retira-te da minha presença. Cuida para não 
veres o meu rosto, pois no dia em que irires o meu rosto morrerás.
29) E Moisés disse: Será como dizes! Não mais verei o teu rosto.
Introdução ao texto
A Última das pragas da série de nove é breve e contundente. Durante 
três dias houve trevas no Egito, uma escuridão que obrigava a mover-se às 
apalpadelas (cf. o comentário sobre o v. 21). Diversos autores levantaram a 
questão se três dias de trevas são, de fato, uma intensificação da gravidade 
das pragas ou se, pelo contrário, representam um retrocesso em relação ao 
granizo e aos gafanhotos.Esse tipo de avaliação reflete a perspectiva his- 
toricista, que busca “mensurar” as pragas por seu efeito externo (destruir 
animais e plantas cultivadas parece ser mais grave do que setenta e duas 
horas de escuridão). Mas essa não é a maneira adequada de avaliar o sen­
tido das pragas. É necessário examinar seu significado, o que está por trás 
da narrativa do evento. Há três aspectos que comprovam que esta praga ê 
mais grave do que as oito precedentes e que seu efeito devastador sobre a 
população ê maior do que o das demais.
O primeiro aspecto ê um sinal dentro do sinal. A escuridão não ê total, 
pois os israelitas têm luz “em suas habitações” (hebraico Ifmosh^botam). 
Diferentemente das outras pragas, nas quais se menciona que a região de 
Gósen escapou do castigo, aqui se fala da intimidade do lar. Em uma casa 
egípcia havia escuridão, mas na do vizinho hebreu havia luz. Não estamos 
diante de um simples eclipse do sol prolongado; à escuridão de três dias 
soma-se um elemento tenebroso e misterioso.®
Em segundo lugar, na escuridão ressoam elementos que relembram 
o momento da criação, quando a luz ainda não existia e, por conseguinte, 
tampouco a vida. O hebraico wayehi hoshek (“haja trevas”) ê exatamente o 
oposto de wayehi ’or (“haja luz”), de Gn 1.3. Pensou-se, inclusive, que aqui 
se tratava de um ato de “anticriação”, por meio do qual a realidade volta a 
seu estado caótico original, com a diferença de que agora o caos acontece 
somente para os egípcios. Também se comparou essa praga à história do 
dilúvio, na qual Deus destrói a sua própria criação.®' Deve-se dizer que o 
contexto geral do relato não parece apontar nessa direção, apesar de a in­
sistência no uso de linguagem globalizante (“todo o Egito”, “toda a terra”, 
“nenhuma casa”, pessoas e animais” etc.) depor em favor dessa ideia. Pode- 
se, no entanto, afirmar

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