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Neuropsicologia Responsável pelo Conteúdo: Prof.ª Dr.ª Camila Campanhã Revisão Textual: Prof.ª Esp. Kelciane da Rocha Campos Avaliação Neuropsicológica da Criança e do Adolescente Avaliação Neuropsicológica da Criança e do Adolescente • Apresentar os principais distúrbios do desenvolvimento e demandas que chegam ao Neuropsicólogo na infância e adolescência (dificuldades de aprendizagem, atraso no desenvolvimento, etc.); • Apresentar como o Neuropsicólogo investiga as queixas clínicas por meio dos testes neurop- sicológicos e anamnese; • Apresentar a importância da equipe multidisciplinar e das diferentes fontes de informação sobre a criança e o adolescentes, como a escola. OBJETIVOS DE APRENDIZADO • Introdução; • Principais Instrumentos Utilizados na Avaliação Neuropsicológica Infantil e do Adolescente; • Principais Demandas Clínicas. UNIDADE Avaliação Neuropsicológica da Criança e do Adolescente Introdução A infância é um período muito importante para o desenvolvimento humano, um período em que ocorrem muitas mudanças importantes, principalmente no cérebro. Quando falamos em desenvolvimento, estamos falando de mudanças que ocorrem ao longo do tempo, que sofrem influências das experiências ambientais, um processo que ocorre de forma contínua e de certa forma apresenta períodos de estabilidade e períodos de saltos nas mudanças que ocorrem (MIRANDA; BORGES; ROCCA, 2018). Contudo, na Neuropsicologia o foco maior é no desenvolvimento cognitivo. O cérebro passa por um processo de maturação após o nascimento, sendo mais inten- so até a adolescência, e que se finaliza no início da vida adulta. Neste período, o cérebro passa por mudanças estruturais, ocorrendo mudanças na organização funcional. Con- comitantemente, ocorre a evolução das habilidades, do conhecimento e do pensamento (MIRANDA; BORGES; ROCCA, 2018; COSTA, 2018). Segundo Costa (2018), o de- senvolvimento cerebral é multifacetado, ou seja, sofre influências das dimensões sociais, biológicas/genéticas, relativas às experiências do indivíduo, ambientais, de alimentação/ nutrição, entre outras. Estes fatores de influência podem interferir tanto de forma po- sitiva quanto de forma negativa no desenvolvimento cerebral e cognitivo. Alterações epigenéticas, que são mudanças na expressão gênica (ativação ou desativação de um determinado gene) devido à influência de fatores ambientais, podem levar a implicações negativas no desenvolvimento cerebral e das funções cognitivas (COSTA, 2018). Períodos sensíveis ou janelas do desenvolvimento de determinadas áreas cerebrais relacionadas a determinadas funções cognitivas e habilidades ocorrem ao longo do de- senvolvimento. Estudos apontam que o diagnóstico e a intervenção precoces, aprovei- tando estes períodos sensíveis, são fundamentais para a redução ou até eliminação de dificuldades cognitivas e motoras que a criança possa ter caso não ocorra nenhuma in- tervenção. Neste sentido, tem crescido o número de pesquisa para o desenvolvimento de instrumentos de mensuração para detecção precoce, ou seja, avaliação neuropsicológica em pré-escolares (MIRANDA; BORGES; ROCCA, 2018; COSTA, 2018; ANTUNES; JULIO-COSTA; MALLOY-DINIZ, 2018). Quando familiares, professores e cuidadores começam a observar que algo não está bem no desenvolvimento da criança, ou que está diferente do esperado, é o momento em que costumam procurar ajuda médica e chegam ao consultório, geralmente, por encaminhamento de médicos pediatras ou neuropediatras para avaliação neuropsicoló- gica. De acordo com Antunes, Julio-Costa e Malloy-Diniz (2018), a avaliação neuropsi- cológica em pré-escolares visa: • descrever o perfil de potencialidades e dificuldades da criança; • investigar quais habilidades já emergiram, quais estão em desenvolvi- mento e quais ainda não se desenvolveram; • compreender as estratégias de enfrentamento escolhidas pela criança para lidar com as situações estressoras e seu temperamento (presença de problemas de comportamento internalizante e externalizante); 8 Highlight Highlight 9 • entender os fatores ambientais que se relacionam às características da criança (contingências ambientais e estilo parental); • compreender a qualidade de aprendizagem da criança. (ANTUNES; JULIO-COSTA; MALLOY-DINIZ, 2018) Em relação à avaliação neuropsicológica em crianças em período escolar, a avaliação neuropsicológica tem como objetivo também compreender a relação entre cérebro e comportamento, mas geralmente parte-se de uma hipótese diagnóstica, como Distúr- bios do Desenvolvimento, Transtornos de Aprendizagem, Deficiência Intelectual, entre outras (MIRANDA; BORGES; ROCCA, 2018). Um ponto importante apontado por Miranda, Borges e Rocca (2018) na avaliação neuropsicológica infantil é a importância da equipe multidisciplinar e o papel do neu- ropsicólogo no diagnóstico diferencial, uma vez que o diagnóstico de algum quadro clínico infantil não é uma tarefa simples devido a uma série de fatores, como variações na maturação neurológica e variações sociais e ambientais, o que torna mais difícil o diagnóstico, devido à heterogeneidade das difusões neuropsicológicas na infância. Desse modo, o papel do neuropsicólogo, junto à equipe multidisciplinar, é muito impor- tante para contribuir com o diagnóstico diferencial. Pelo fato de crianças e adolescentes estarem em desenvolvimento, a avaliação neuropsicológica é pontual, ou seja, referente àquele momento do desenvolvimento. Dessa forma, as autoras pontuam que os objetivos da avaliação neuropsicológica são: • auxiliar no diagnóstico diferencial entre transtorno da aprendizagem e deficiência intelectual/mental; • proporcionar mapeamento cognitivo nos quadros psiquiátricos de início na infância e adolescência, como, por exemplo, transtorno de déficit de atenção/hiperatividade, transtorno bipolar pediátrico ou outros transtornos do desenvolvimento; • em pacientes epiléticos, auxiliar no diagnóstico “localizatório” em rela- ção à área epiletogênica, no mapeamento cognitivo pré-cirúrgico, na diferenciação quanto a disfunções cognitivas decorrentes de descargas epiléticas ou do uso de anticonvulsivantes e na diferenciação entre dé- ficits funcionais ou lesionais. (MIRANDA; BORGES; ROCCA, 2018) As demandas clínicas de crianças e adolescentes para avaliação neuropsicológica, em geral, costumam ser relacionadas a dificuldades de aprendizagem, como na aprendiza- gem da leitura e da escrita; problemas comportamentais, como agitação e impulsivida- de; e atrasos no desenvolvimento neuropsicomotor, para citar os principais (MIRANDA; BORGES; ROCCA, 2018). A seguir, serão abordados os principais quadros clínicos em crianças e adolescentes em que a avaliação neuropsicológica contribui significativamente para o diagnóstico diferencial. 9 Highlight UNIDADE Avaliação Neuropsicológica da Criança e do Adolescente Principais Instrumentos Utilizados na Avaliação Neuropsicológica Infantil e do Adolescente O principal instrumento utilizado para avaliar inteligência é o WISC IV, para avalia- ção intelectual de crianças de 6 a 16 anos, que é composto de uma bateria de 15 sub- testes para avaliação da inteligência verbal e inteligência de execução, que juntos com- põem o QI total. Também avalia o índice de compreensão verbal, índice de organização perceptual, índice de memória operacional e índice de velocidade de processamento (WECHSLER, 2013 apud MIRANDA; BORGES; ROCCA, 2018). A atenção é uma função cognitiva dividida basicamente em sustentada, alternada e concentrada. Para a avaliação da atenção sustentada, é utilizado o CPT (Teste de Desempenho Contínuo) (Miranda; Sinnes; Pompéia; Bueno, 2008 apud MIRANDA; BORGES; ROCCA, 2018); para a avaliação da atenção seletiva, é utilizado o Teste de Atenção por Cancelamento. Também é utilizado o teste BPA (Bateria para Avaliação da Atenção), que avalia a atenção alternada, concentrada e dividida para pessoas dos 6 aos 82 anos (RUEDA, 2013). O teste do Strooptambém é bastante utilizado para a avaliação da atenção e inibição de resposta automática, uma das funções executivas. Para avaliar as funções executivas, são utilizados Torre de Hanoy e o teste Wisconsin de Cartas, por exemplo. Estes avaliam estratégia; planejamento e organização; e flexibilidade cognitiva (mudar de estratégia quando uma não está funcionando). Para avaliar a memória operacional, uma das funções cognitivas que fazem parte das funções executivas, são utili- zados o Teste de Corsi e o subteste dígitos do WISC IV, por exemplo. Para avaliar as funções visuoespaciais, memória recente visual e funções executivas, é utilizado o teste Figuras Complexas de Rey. O subteste cubos do WISC IV avalia a habilidade visuoconstrutiva. Para avaliar memória de curto e longo prazo, o teste mais utilizado é o teste RAVLT (Rey Auditory Verbal Learning Test). Com relação a desempenho escolar, o TDE (Teste de Desempenho Escolar), agora na segunda edição, é o mais utilizado. Ele avalia habilidades de leitura, escrita e aritmética e pode ser aplicado em crianças e adolescentes do 1º ao 9º ano do Ensino Fundamental. É importante salientar que este não é um instrumento privativo do psicólogo, e outros profissionais, como pedagogos e psicopedagogos, podem utilizá-lo. O teste é padroniza- do de acordo com o ano letivo e o tipo de escola (pública ou privada) (STEIN; GIACOMI; FONSECA, 2019). Como é possível observar, é necessária uma ampla gama de instrumentos para realizar uma avaliação neuropsicológica que investigue amplamente as funções cognitivas e as- pectos comportamentais. A seguir, serão abordadas as principais demandas clínicas, bem como os testes, questionários e inventários mais utilizados para as demandas específicas. 10 Highlight 11 Principais Demandas Clínicas Aqui serão abordadas as principais demandas clínicas, como o Transtorno de Déficit de Atenção/Hiperatividade, Dislexia do Desenvolvimento e Transtorno do Espectro do Autismo. Transtorno de Déficit de Atenção/Hiperatividade (TDAH) Por ser um transtorno complexo e de difícil diagnóstico, requer uma equipe multidis- ciplinar no processo de avaliação (REED, 2018). Um dos fatores que leva à dificuldade de diagnóstico do TDAH é a elevada taxa de comorbidade com outros quadros psiqui- átricos. As principais comorbidades são: transtornos de humor, transtornos de ansieda- de, transtorno de oposição desafiante, transtorno de conduta, transtorno do espectro autista, deficiência intelectual e transtornos específicos de aprendizagem (MIRANDA; BORGES; ROCCA, 2018; American Psychiatric Association, 2013). O DSM-V traz que há uma ocorrência de 50% de comorbidade do Transtorno opositor desafiante em pacientes com apresentação do TDAH combinado, e 25% com apresentação do TDAH combinado apresentam como comorbidade transtorno de conduta. É importante lembrar que o TDAH é um transtorno do neurodesenvolvimento com manifestação precoce que persiste até a vida adulta, segundo DSM-V (American Psychiatric Association, 2013). Não é um quadro homogêneo e apresenta 3 formas: apresentação predominantemente desatento, apresentação predominantemente hipe- rativo/impulsivo e apresentação combinada (desatento, hiperativo /impulsivo). Além disso, o manual classifica a gravidade do quadro, que pode ser leve, moderado ou grave. Considera na avaliação da gravidade também os prejuízos funcionais (American Psychiatric Association, 2013). Por ser um quadro heterogêneo, com diagnóstico clínico, devido à falta de exames, marcadores ou medidas mais precisas, requer muito cuidado e atenção. Nesse sentido, é fundamental a realização de uma anamnese minuciosa, investigando os sintomas, em diversos ambientes, e possíveis comorbidades; a história da gestação e do desenvolvi- mento também é importante no diagnóstico diferencial. Entre os fatores de risco para o TDAH por eventos adversos gestacionais estão o uso de álcool e cigarro, que afetam o desenvolvimento fetal, bem como prematuridade e o baixo peso, para citar alguns. Além disso, é necessário verificar outros fatores atuais que possam levar a sintomas semelhantes ao TDAH, como mudanças familiares, violência doméstica, uso e abuso de álcool e drogas, bem como negligência, preferência por outro filho, excesso de exigên- cias, rejeição ou superproteção, bem como questões do ambiente escolar (REED, 2018). Com relação ao histórico do desempenho escolar, Reed (2018) pontua a importância de se investigar de forma detalhada, envolvendo não apenas questões de rendimento es- colar, repetência, questões comportamentais entre colegas e professores, mas também o espaço físico e como é o ambiente escolar. Outros fatores, como o bullying, precisam ser investigados, uma vez que a criança e o adolescente com TDAH podem ser vistos como inadequados, fracassados, podendo levar tanto a criança quanto o adolescente a apresentar quadros de ansiedade e depressão em decorrência do bullying. A autora 11 UNIDADE Avaliação Neuropsicológica da Criança e do Adolescente aponta que aplicar questionários ou conversar com os professores também é importante para auxiliar na avaliação destes aspectos. Na atualidade, é uma demanda comum na clínica e se faz necessária uma bateria de avaliação extensa e adequada à faixa etária para ajudar no diagnóstico diferencial e co- morbidades. De acordo com Reed (20018), uma série de escalas podem ser utilizadas para avaliar os sintomas comportamentais do TDAH e comorbidades. Contudo, apesar de se- rem instrumentos úteis, as escalas não são suficientes para estabelecer diagnóstico e prog- nóstico quando utilizadas de forma isolada, ou seja, sem uma avaliação neuropsicológica completa e, quando necessário, avaliação de fonoaudiólogo, psicopedagogo e psicólogo. Dentre as funções cognitivas avaliadas em crianças e adolescentes com hipótese diag- nóstica de TDAH estão não somente os tipos de atenção (sustentada, dividida e alterna- da), mas também são avaliadas as funções executivas, outro grupo de funções cognitivas importantes que costumam apresentar déficits em pacientes com TDAH (planejamento, tomada de decisão, memória de trabalho ou operacional, organização, sistema inibitório). Além disso, é importante avaliar inteligência, habilidades de leitura e escrita, habilidades matemáticas e fazer avaliação comportamental (MIRANDA; BORGES; ROCCA, 2018). O grupo do Programa de Pós-Graduação em Distúrbios do Desenvolvimento da Universidade Presbiteriana Mackenzie criou um protocolo de avaliação interdisciplinar (neuropsicológico, comportamental e clínica) para crianças e adolescentes para queixas de TDAH, pensando na importância do conhecimento multidisciplinar no diagnóstico deste quadro tão complexo (CARREIRO et al., 2014). Neste protocolo, a avaliação com- portamental é realizada na fase de triagem presencial, com a realização da anamnese, perguntas baseadas no DSM e aplicação do BPM (Brief problem monitor) e inventários comportamentais, avaliando comportamentos internalizantes e externalizantes; por exem- plo, com o responsável e com o paciente é utilizado um roteiro de observação compor- tamental baseado no DSM-V. Na avaliação neuropsicológica, é aplicado o WISC III (hoje atualizado para o WISC IV), o CPT (Conner’s continuous performance test II), testes computadorizados que avaliam atenção, Wisconsin (avaliação de funções executivas), TAC (Testes de Atenção por Cancelamento), Teste de Trilhas (atenção e funções exe- cutivas) e Testes Computadorizados de Atenção. Por último, é realizada uma avaliação neurológica com médico neurologista que envolve entrevista com os pais e avaliação clínica-neurológica do paciente. Saiba mais sobre este protocolo de avaliação para queixa de TDAH do grupo referência em São Paulo em avaliação neuropsicológica para o TDAH lendo o artigo “Protocolo interdisci- plinar de avaliação neuropsicológica, comportamental e clínica para crianças e ado- lescentes com queixas de desatenção e hiperatividade”: https://bit.ly/3adnNbFOutro ponto importante da avaliação é a parte comportamental. Como parte do critério diagnóstico, faz-se necessário verificar se a hiperatividade, comportamentos im- pulsivos ou até agressivos e antissociais estejam ocorrendo e em quais ambientes. Por isso, são utilizados questionários para pais/cuidadores e professores, ao menos para compreender melhor as dificuldades comportamentais da criança e do adolescente. 12 Highlight 13 O instrumento mais utilizado para avaliar os comportamentos que preenchem critério diagnóstico para TDAH é o SNAP –IV (escala para diagnóstico de TDAH em crian- ças aplicada aos pais e professores) (MATTOS; SERRA-PINHEIRO; ROHDE; PINTO, 2006 apud REED, 2018). O CBCL (Child Behaviour Cheklist) é o mais utilizado para avaliar problemas de comportamento e competência escolar em crianças. Este questio- nário é respondido por pais/cuidadores e professores e fornece informações a respei- to de comportamentos externalizantes (agressividade, por exemplo) e internalizantes (como isolamento de depressão, por exemplo) ( BORDIN; MARI; CAEIRO, 1995 apud REED, 2018). Você Sabia? O CBCL é um instrumento que faz parte de um sistema de avaliação maior, o ASEBA (Achenbach System of Empirically Based Assessment), criado por Achenbach e Rescorla (2001). Além disso, é um instrumento que apresenta validade multicultural, sendo tra- duzido para 61 línguas e tem sido considerado um dos instrumentos mais eficazes para quantificar problemas comportamentais em crianças e adolescentes. Fonte: WIELEWICKI; GALLO; GROSSI, 2011. Reed (2018) destaca a importância do diagnóstico precoce para um melhor prog- nóstico. Quanto mais cedo se intervir, menor será o impacto do quadro clínico na vida acadêmica e pessoal da criança, bem como será possível prevenir outros problemas, como ansiedade e depressão. Dislexia do Desenvolvimento Casella (2018) aponta que a dificuldade de aprendizagem é uma das queixas mais comuns na clínica, chegando a corresponder a 5% das avaliações na clínica pediátrica. Com incidência de 4 a 5 % (SHAYWITZ; GRUEN; SHAYWITZ, 2007 apud CASELLA, 2018), a dislexia é um distúrbio do neurodesenvolvimento que faz parte dos transtornos específicos da aprendizagem, segundo a classificação do DSM-V (American Psychiatric Association, 2013). A dislexia é caraterizada pela dificuldade de leitura, que exclui fato- res como alterações auditivas ou visuais, questões psicossociais, déficit mental e instru- ção inadequada de acordo com os critérios diagnósticos do DSM-V. Em sua base etiológica, são conhecidos os genes envolvidos no quadro clínico. Con- tudo, é complexo e não totalmente compreendido o tipo de herança genética (HABIBI; MCINTOSH; TULVING, 2000 apud CASELLA, 2018). A Dislexia não é um quadro homogêneo e apresenta-se em subtipos. O subtipo mais comum é a dificuldade no processamento fonológico em que a criança apresenta leitura lenta, tanto de pala- vras regulares quanto irregulares (ZOUBRINETZKY; BIELLE; VALDOIS, 2014 apud CASELLA, 2018). Com relação à base neurobiológica da dislexia, esta já é bem relatada. Devido ao avanço tecnológico, os estudos têm apontado prejuízos funcionais na circuitaria que envolve processamento fonológico e ortográfico das palavras. 13 Highlight UNIDADE Avaliação Neuropsicológica da Criança e do Adolescente Figura 1 – Esquema representativo dos circuitos neurais envolvidos no processamento fonológico e ortográfico de palavras Fonte: Adaptado de CASELLA, , 2018 Pacientes com dislexia costumam apresentar alterações a um componente específico da linguagem, mais especificamente no reconhecimento da quebra em unidades menores de sons em que as letras representam estes sons ouvidos nas palavras (CASELLA, 2018), ou seja, a integração do processamento fonológico e visual está em déficit na dislexia. Essa compreensão da criança sobre a correspondência dos sons com as letras é chamada de consciência fonológica (BRADELY; BRYANT, 1983 apud ROTHE-NEVES; CAMPOS, 2016), habilidade importante para a aprendizagem da leitura (ROTHE-NEVES; CAMPOS, 2016). A avaliação neuropsicológica, neste caso, abrange, além das funções cognitivas bá- sicas, as habilidades de linguagem e matemática. Crianças com Dislexia do Desen- volvimento frequentemente apresentam falhas em recodificação fonética na memória de trabalho, na recodificação fonológica no acesso lexical e consciência fonológica ( WAGNER; TOGERSEN, 1987 apud ROTHE-NEVES; CAMPOS, 2016). De acordo com Capellini (2006 apud MIRANDA; BORGES; ROCCA, 2018), a avaliação neurop- sicológica nesse caso: deve verificar se a disfunção está alterando a aquisição de estratégias de leitura, mais especificamente de estratégias fonológicas, resultando em falhas na automatização da decodificação fonológica, que em geral impe- dem o acesso ao significado das palavras e dos textos, comprometendo o objetivo final da leitura, ou seja, a compreensão do texto lido. (CAPELLINI, 2006 apud MIRANDA; BORGES; ROCCA, 2018) Portanto, além das medidas de funcionamento intelectual, faz-se necessário apro- fundar a avaliação neuropsicológica nos aspectos de leitura com uso de teste como o Leitura e Ditado de palavras e pseudopalavras, tempo de nomeação de cores na parte 1 do Stroop Victória, BALE Computadorizada (Bateria de Leitura e Escrita Computa- dorizada), Teste de Competência de Leitura de Sentenças (TCLS) e Teste de Competên- cia de Leitura de Palavras (TCLP) (LUKASOVA; OLIVEIRA; BARBOSA; MACEDO, 14 Highlight Highlight Highlight 15 2008), que são alguns exemplos de testes de leitura. Para avaliar habilidades aritméticas, pode ser utilizado o teste de Prova Aritmética, Leitura de ditados e números arábicos e ZAREKI-R, que avaliam processamento numérico e cálculo (HAASE; SANTOS, 2014), para citar alguns testes. Medina, Souza e Guimarães (2018) avaliaram as funções executivas em crianças disléxicas e observaram déficits no controle inibitório, na memória de trabalho, na flexi- bilização cognitiva e na atenção. Tais déficits contribuem para as dificuldades de leitura nas crianças com dislexia do desenvolvimento por serem funções cognitivas importantes no processo de leitura. Você Sabia? Estudos têm mostrado por meio de exames de imagem (ressonância magnética funcio- nal) que o treino da consciência fonológica e da habilidade de decodificação melhoram não somente a habilidade de leitura, mas também a atividade cerebral das áreas de lin- guagem que estão menos ativadas em crianças disléxicas, remediando o quadro clínico e normalizando a atividade cerebral. Figura 2 Fonte: Adaptado de SIMOS, p. 1203-1213, 2002 15 Highlight UNIDADE Avaliação Neuropsicológica da Criança e do Adolescente Avaliação neuropsicológica no Transtorno do Espectro do Autismo O Transtorno do Espectro do Autismo (TEA) também é um transtorno do neurode- senvolvimento caracterizado por prejuízo clínico significativo em duas áreas: compor- tamento – padrões repetitivos de comportamento (estereotipias com as mão, fixação em uma rotina que não pode ser violada); e interesse restrito (interesse em coisas muito específicas), déficits de início precoce e persistentes na comunicação social e nas intera- ções sociais, de acordo com os critérios diagnósticos do DSM-V (American Psychiatric Association, 2013). O TEA tem fatores genéticos com alta taxa de hereditariedade (es- timativa de 90% segundo RUTTER, 2000 apud RIBEIRO; CASELLA; POLANCZYK, 2018). Contudo, não há um único gene envolvido no TEA, mas sim um conjunto de genes relacionados. Além disso, existem fatores de risco ambientais. Por isso, é consi- derado um quadro clínico multifatorial (RIBEIRO; CASELLA; POLANCZYK, 2018) e heterogêneo, podendo se apresentar como um quadro grave até de alto funcionamento. A manifestação clínica é precoce, possível de se observar em bebês e tem como principal característica o desenvolvimento da interação social atípico com redução no interesse em interagir com as pessoas, dificuldades de entender o que o outro estápensando e sentindo; aqueles que apresentam TEA não procuram compartilhar experiências e costumam isolar-se. Além disso, apresentam comprometimento na co- municação oral, com atraso no desenvolvimento da linguagem ou com comunicação inadequada, costumam solicitar ajuda de forma inadequada. Outro prejuízo observado precocemente é o da capacidade de olhar para quem está falando e para o objeto na interação social (atenção compartilhada). Um comportamento típico de crianças com TEA que mostra déficit nesta habilidade é o de pegar a mão de uma pessoa e levá-la ao que deseja pegar sem olhar para a pessoa, guiando-a até o que deseja (RIBEIRO; CASELLA; POLANCZYK, 2018). Para realizar o diagnóstico diferencial, é necessário excluir outras condições clínicas, como Transtorno de Linguagem, Deficiência Intelectual, déficits auditivos, Transtorno da Comunicação Social, Síndrome de Rett, TDAH, bem como Transtorno de Ansieda- de, Transtorno Obsessivo-Compulsivo e Esquizofrenia. Contudo, é possível que pacien- tes com TEA tenham como comorbidade algum destes quadros clínicos, sendo o mais frequente a deficiência intelectual (RIBEIRO; CASELLA; POLANCZYK, 2018). Como é possível observar, o TEA é um quadro muito heterogêneo, com grande va- riabilidade e de difícil diagnóstico por não haver exames ou medidas precisas, ou seja, o diagnóstico é clínico. Por isso, a avaliação diagnóstica deve ser interdisciplinar ( RIBEIRO; CASELLA; POLANCZYK, 2018). Para a realização da avaliação neuropsicológica, é necessária a utilização de uma série de recursos, como entrevista clínica; observação e registro do comportamento da criança; testes não verbais, quando a criança ou o adoles- cente apresenta déficits significativos da linguagem, para avaliar inteligência; escalas de comportamento; testes que avaliam cognição social, como a teoria da mente; inventário para avaliar habilidades sociais; e testes para avaliar funções executivas, para citar os principais. Além da avaliação de um neuropediatra, um fonoaudiólogo poderá realizar 16 Highlight Highlight Highlight Highlight Highlight 17 a avaliação da linguagem (RIBEIRO; CASELLA; POLANCZYK, 2018; MIRANDA; BORGES; ROCCA, 2018). Como instrumentos diagnósticos são muito utilizados o ADI (Autism Diagnostic Interview), uma entrevista realizada com os pais, e a ADOS (Autism Diagnostic Observation Schedule) – por meio da observação, este protocolo padronizado permite a avaliação tanto do comportamento social quanto da comunicação de crianças e adultos com suspeita de TEA (RIBEIRO; CASELLA; POLANCZYK, 2018). Na Universidade Presbiteriana Mackenzie, o Programa de Pós-Graduação em Dis- túrbios do Desenvolvimento realiza em seu laboratório, sob a coordenação do neuro- pediatra Prof. Dr. Salomão Schwartzman, avaliação de crianças com suspeita de TEA com uma equipe multidisciplinar, formada por médicos, fonoaudiólogos e psicólogos. A equipe publicou em 2011 o protocolo que utiliza para a avaliação das crianças autis- tas, o qual consiste em: Anamnese, avaliação neuropsicológica, avaliação fonoaudiológica, avalia- ção da cognição social, exame físico, exame neurológico, avaliação através de equipamento que registra o movimento ocular (Tobii eye tracking) e aplicação de protocolos de pesquisas científicas . (VELLOSO et al., 2011) No final da avaliação, ocorre uma reunião multidisciplinar para discutir o caso e che- gar a um diagnóstico baseado nos manuais diagnósticos internacionais. Após a elabora- ção de relatório com todos os dados da avaliação, com orientações, é realizada uma reu- nião com a família (VELLOSO et al., 2011), momento de esclarecimento e orientações. Como instrumento de rastreio, o grupo utiliza questionários como o Autism Screening Questionnaire (ASQ) (BERUMENT et al., 1999 apud VELLOSO et al., 2011) e o Autism Behavior Checklist (ABC) (MERTELETO; PEDROMÔNICO, 2005 apud VELLOSO et al., 2011). Na avaliação neuropsicológica, para citar os principais testes utilizados na época, eram utilizados o WISC – III para avaliar inteligência; o teste Rey Auditory Verbal Learning Test (RAVLT) para avaliar memória verbal imediata e tardia; o teste Figuras Complexas de Rey para avaliar habilidade visuoconstrutiva, memória visual e capacidade de organização perceptivo-motora; e funções executivas eram avaliadas pelo teste Wisconsin de Classificação de cartas e Torre de Hanoi. Com relação à Cognição Social, o grupo utilizava o Inventário de Habilidades Sociais (DEL PRETTE, 2001 apud VELLOSO et al., 2011), o Quoeficiente de Empatia e Sistematização (VINIC; SCHWARTZMAN, 2010 apud VELLOSO et al., 2011) e tarefa de falas e crenças, para citar as principais (VELLOSO et al., 2011). Para conhecer o protocolo completo e a avaliação realizada pela fonoaudióloga, o exame físico, neurológico e avaliação por rastreio ocular, leia o artigo “Protocolo de Avaliação Diagnóstica Multidisciplinar da Equipe de Transtornos Globais do Desenvolvimento”, disponível em: https://bit.ly/3r6wUkv 17 Highlight Highlight UNIDADE Avaliação Neuropsicológica da Criança e do Adolescente Outros testes vêm sendo utilizados na avaliação neuropsicológica do TEA. Para avaliar a inteligência, além da versão atualizada do WISC na sua quarta edição, é uti- lizado também o teste Matrizes Progressivas de Raven, um teste de inteligência não verbal. O SON-R 2 é outro teste de inteligência não verbal que vem sendo utilizado na avaliação de inteligência em crianças com TEA entre 2 anos e meio e 7 anos. Para avaliação da Cognição Social, também é utilizado o teste Sally-Anne (RIBEIRO; CASELLA; POLANCZYK, 2018; MIRANDA; BORGES; ROCCA, 2018), para inves- tigar Teoria da Mente de primeira ordem, a habilidade de inferir o que o outro está pensando, sentindo, suas intenções, crenças, desejos de si e do outro (PREMACK; WOODRUFF; 1978 apud RIBEIRO; CASELLA; POLANCZYK, 2018). Em Síntese Nesta unidade, foi possível conhecer o papel e a importância da avaliação neuropsi- cológica infantil e do adolescente, como é realizada, os principais testes, inventários e escalas utilizados no processo de avaliação, bem como os principais distúrbios do desen- volvimento de maior demanda clínica. Foi discutida a importância de o protocolo clínico ser pensado para cada demanda clínica, apresentando-se alguns instrumentos mais uti- lizados para cada distúrbio do desenvolvimento. Além disso, foi discutida a importância da equipe multidisciplinar para a obtenção de um diagnóstico preciso. 18 19 Material Complementar Indicações para saber mais sobre os assuntos abordados nesta Unidade: Livros O cérebro autista: pensando atrás do espectro GRANDIN, T.; PANEK, R. O cérebro autista: pensando atrás do espectro. São Paulo: Record, 2015. No mundo da lua MATTOS, P. No Mundo da Lua. São Paulo: Autêntica, 2015. Vídeos TDE II – Teste de Desempenho Escolar 2 ª edição https://youtu.be/H3VOnzWebwA Dislexia https://youtu.be/T47RgFHsmsA 19 UNIDADE Avaliação Neuropsicológica da Criança e do Adolescente Referências AMERICAN PSYCHIATRIC ASSOCIATION. Diagnostic and statistical manual of mental disorders – DSM-V. 5. ed. Washington, DC: American Psychiatric Association, 2013. ANTUNES, A. M.; JÚLIO-COSTA, A.; MALLOY-DINIZ, L. F. Como explorar a queixa clínica na avaliação neuropsicológica de pré-escolares. In: SEABRA, A. G.; DIAS, N. M. Neuropsicologia com pré-escolares: avaliação e intervenção. São Paulo: Pearson Clinical Brasil, 2018. CARREIRO, L. R. R. et al. Protocolo interdisciplinar de avaliação neuropsicológica, comportamental e clínica para crianças e adolescentes com queixas de desatenção e hiperatividade. Revista Psicológica – Teoria e Prática, v. 16, n. 3, 2014. CASAELLA, E. B. Dislexia do desenvolvimento. In: MIOTTO, E. C.; LUCIA, M. C. S.; SCAFF, M. Neuropsicologia clínica. 2ª ed. Rio de Janeiro: Roca, 2018. COSTA, J. C. da. Neurodesenvolvimento e os primeiros anos de vida: genética vs. am- biente. Revista Latinoamericana de Educación Intantil, v. 7, n. 1,p. 52-60, 2018. HAASE, V. G.; SANTOS, F. H. Transtornos específicos de aprendizagem: dislexia e discalculia. In: Fuentes, D.; MALOY-DINIZ, L. F.; CAMARGO, C. H. P.; CONSENZA, R. Neuropsicologia: teoria e prática. 2a ed. Porto Alegre: Artemed, 2014. LUKASOVA, K.; OLIVEIRA, D. G.; BARBOSA, A. C. C.; MACEDO, E. C. 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