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FARMACOLOGIA II → ANTI-INFLAMATÓRIOS NÃO ESTEROIDES (AINES) Neste capítulo, são descritos os anti-inflamatórios não esteroides (AINE) empregados no tratamento da inflamação, da dor e da febre. » Mecanismo de ação Quando as células são ativadas por diversos estímulos, tais como produtos microbianos e vários mediadores da inflamação, o ácido araquidônico da membrana é rapidamente convertido pelas ações de enzimas para produzir as prostaglandinas e os leucotrienos. Estímulos mecânicos, químicos e físicos ou outros mediadores liberam ácido araquidônico da membrana fosfolipídica através da ação de fosfolipases celulares, principalmente a fosfolipase A2. O ácido araquidônico é um ácido graxo poli-insaturado com 20 carbonos, que não ocorre livre em células, mas normalmente é esterificado nos fosfolipídios da membrana. Os mediadores derivados do ácido araquidônico são sintetizados por duas classes principais de enzimas: ciclo-oxigenases (que geram as prostaglandinas) e lipoxigenases (que produzem os leucotrienos e lipoxinas). Várias das ações das prostaglandinas são mediadas por sua ligação a uma ampla variedade de distintos receptores de membrana celular que operam via proteínas G acopladas. As prostaglandinas e seus metabólitos, produzidos endogenamente nos tecidos, atuam como sinalizadores locais que fazem o ajuste fino da resposta de um tipo celular específico. Suas funções variam amplamente, dependendo do tecido e das enzimas específicas daquela via e que estão disponíveis naquele local específico. Por exemplo, a liberação de tromboxano A2 (TXA2) das plaquetas durante a lesão tecidual inicia o recrutamento de novas plaquetas para a aglutinação, bem como promove vasoconstrição local. No entanto, a prostaciclina (PGI2) produzida pelas células endoteliais tem efeitos opostos, inibindo a aglutinação das plaquetas e produzindo vasodilatação. O efeito líquido sobre as plaquetas e os vasos sanguíneos depende do balanço entre esses dois prostanoides. Em adição a seus efeitos locais, as prostaglandinas estão envolvidas na patogenia da dor e febre na inflamação. Foram descritas duas isoformas da enzima cicloxigenase (COX). A COX-1 é constitutiva, isto é, está sempre presente e ativa. Contribui para o funcionamento fisiológico dos órgãos, como a citoproteção gástrica, a homeostase vascular, a agregação plaquetária e as funções reprodutiva e renal. Sua inibição produz, inevitavelmente, efeitos indesejáveis como lesões às mucosas, distúrbio da função renal, alterações hemodinâmicas e distúrbios da função uterina. A COX-2 é induzida pelos processos inflamatórios e produz prostaglandinas que sensibilizam os nociceptores, provocam febre e estimulam a inflamação por meio da vasodilatação e do aumento da permeabilidade vascular. A sua expressão é induzida por mediadores inflamatórios como o FNTα e a IL1, mas pode também ser inibida por glicocorticoides, o que pode contribuir para os efeitos antiinflamatórios significativos desses fármacos. Em alguns órgãos, a COX-2 também é constitutiva (cérebro, rins e ossos). Os AINEs atuam inibindo as enzimas cicloxigenases, que catalisam o primeiro estágio da biossíntese de prostanoides. Isso leva à redução da síntese de prostaglandinas, com efeitos desejados e indesejados. A maioria dos AINEs tradicionais inibe tanto a COX-1 como a COX-2, embora a sua potência relativa para cada isoforma seja diferente. Acredita-se que a ação anti-inflamatória (e provavelmente a maioria das ações analgésicas e antipiréticas) dos AINE esteja relacionada à inibição de COX-2, enquanto seus efeitos indesejáveis – particularmente os que afetam o trato gastrintestinal – resultem sobretudo de sua inibição de COX-1. Compostos com ação inibitória seletiva sobre COX-2 estão hoje em uso clínico; no entanto, apesar de esses fármacos apresentarem menos efeitos gastrintestinais adversos, não estão nem perto de serem tão bem tolerados como esperado. Inflamação O processo inflamatório refere-se à resposta protetora do sistema imune a um estímulo prejudicial. Pode ser estimulado por agentes nocivos, infecções e lesões físicas, com liberação de moléculas associadas a lesão e patógenos, que são reconhecidos por células encarregadas da vigilância imunológica. A capacidade de armar uma resposta inflamatória é essencial para a sobrevida na presença de patógenos ambientais e lesões. Em algumas situações e doenças, a inflamação pode ser exagerada e sustentada, sem benefício aparente e até mesmo com graves consequências adversas (p. ex., hipersensibilidade, doenças autoimunes, inflamação crônica). Muitas moléculas estão envolvidas na promoção e na resolução do processo inflamatório. A biossíntese de prostanoides está significativamente aumentada nos tecidos inflamados. A prostaglandina E2 (PGE2) e a prostaciclina (PGI2) são os principais prostanoides que medeiam a inflamação. Aumentam o fluxo sanguíneo local, a permeabilidade vascular e a infiltração dos leucócitos por meio de ativação de seus respectivos receptores, EP2 e IP. A PGD2, um dos principais produtos dos mastócitos, contribui para a inflamação nas respostas alérgicas, particularmente no pulmão. Os AINEs, inibindo a produção de prostaglandinas, impedem tais ações. Dor Os nociceptores, que consistem em terminais periféricos de fibras aferentes primárias que percebem a dor, podem ser ativados por vários estímulos, como calor, ácidos ou pressão. Os mediadores inflamatórios liberados por células não neuronais durante a lesão tecidual aumentam a sensibilidade dos nociceptores e potencializam a percepção da dor. Entre esses mediadores estão a bradicinina, serotonina, prostaglandina, H+, ATP, neurotrofinas (fator de crescimento neural) e leucotrienos. A PGE2 e a PGI2 reduzem o limiar para a estimulação dos nociceptores, causando sensibilização periférica. Assim, acredita-se que a reversão da sensibilização periférica representa a base mecânica para o componente periférico da atividade analgésica dos AINE. Como já estudado em Farmacologia I, a Organização Mundial da Saúde (OMS) sugere a Escada Analgésica com três degraus para organização e padronização do manejo da dor de acordo com a intensidade de dor do indivíduo. O primeiro degrau representa as dores leves (pontuação de 1 a 3) e recomenda o uso de anti-inflamatórios não esteroides (AINEs) ou analgésicos simples (como paracetamol e dipirona). O segundo degrau representa as dores moderadas (pontuação de 4 a 6) e recomenda o uso de opioides fracos (como a codeína) associados ou não aos anti-inflamatórios não esteroides/analgésicos simples. O terceiro degrau representa as dores fortes (pontuação de 7 a 10) e recomenda o uso de opioides fortes, como a morfina. Lembre-se: Os analgésicos simples e os AINEs têm EFEITO TETO no controle da dor. Isso significa que doses maiores não controlam melhor a dor, só aumentam os efeitos adversos. Pelo contrário, os opioides não possuem efeito teto. Febre O hipotálamo regula o ponto definido em que a temperatura é mantida. Esse ponto definido apresenta-se elevado na febre, refletindo a presença de infecção ou o resultado de lesão tecidual, inflamação, rejeição de enxerto ou neoplasia maligna. Todas essas condições intensificam a formação de citocinas, como IL-1β, IL-6, TNF-α, e interferonas, que funcionam como pirógenos endógenos. A resposta de termorregulação é mediada pela indução coordenada da COX-2 e formação de PGE2. A PGE2 pode atravessar a barreira hematencefálica e atua sobre receptores EP3 e, talvez, receptores EP1 em neurônios termossensíveis. Isso estimula o hipotálamo a elevar a temperatura corporal promovendo um aumento na geração de calor e uma diminuição na perda de calor. Os AINE suprimem essa resposta por meio de inibição da síntese de PGE2 dependente de COX-2. Do ponto de vista químico e farmacológico, paracetamol e dipirona podem ser classificados como AINEs. No entanto,do ponto de vista clínico, não. Assim, geralmente diferenciamos os AINEs dos analgésicos simples (paracetamol e dipirona). Ademais, acredita-se que tais analgésicos simples atuem inibindo uma enzima denominada COX-3, e, por tal razão, eles não têm os mesmos efeitos adversos dos AINEs e também não possuem efeito anti-inflamatório relevante (mas sim apenas um efeito analgésico). 1. Efeito anti-inflamatório: Há diminuição das prostaglandinas vasodilatadoras (PGE2 e PGI2), resultando em menor vasodilatação e menos edema. 2. Efeito analgésico: Há diminuição das prostaglandinas (PGI2, PGE1 e PGE2), diminuindo a sensibilização das terminações nervosas nociceptivas a mediadores inflamatórios. 3. Efeito antipirético: Há diminuição da interleucina 1 (que também é uma prostaglandina) responsável pela elevação do ponto de ajuste hipotalâmico para o controle da temperatura. 4. Efeito antitrombótico: Há diminuição do tromboxano (TXA2) nas plaquetas. → Ácido acetilsalicílico O ácido acetilsalicílico (AAS) pode ser considerado o protótipo dos AINEs. Ele apresenta um efeito dose dependente. Assim, possui efeito anti-inflamatório apenas em dosagens relativamente altas, raramente usadas. Ele é mais usado em dosagens baixas para a prevenção de eventos cardiovasculares, como o acidente vascular encefálico (AVE) e o infarto do miocárdio. » Aspectos farmacológicos • Existem mais de 20 AINEs diferentes, distribuídos em 6 classes farmacológicas • São ácidos fracos • Possuem boa biodisponibilidade via oral e baixo metabolismo de primeira passagem • Possuem alta ligação à albumina • Possuem baixo volume de distribuição • São metabolizados no fígado • Possuem meia-vida variável e assim podem ser classificados em fármacos de curta ação (<6 horas) ou de longa ação (>6 horas). Como já comentado, os AINEs são classificados, quanto a seu mecanismo, em AINEs não seletivos quanto à isoforma, que inibem tanto a COX-1 quanto a COX-2, e em AINEs seletivos da COX-2. Teoricamente, os AINEs seletivos da COX-2 seriam melhores, pois a inibição da COX2 parece levar aos efeitos antiinflamatório, analgésico e antipirético de tais fármacos. No entanto, na prática, não existe nenhum AINE superior a outro. Todos possuem eficácias similares. Todavia, os inibidores seletivos da COX-2 parecem possuir menos efeitos gastrointestinais quando comparados com os inibidores não seletivos. Na verdade, o que se observou é que o uso desses fármacos provoca menos alterações gastrointestinais observáveis na endoscopia digestiva alta. No entanto, não existem evidências de boa qualidade que afirmem que eles diminuam os eventos clínicos. Ao serem lançados, os AINEs seletivos da COX-2 foram muito utilizados até se concluir que os efeitos adversos também são significativos, obrigando a retirada de parte dos líderes de venda (como o rofecoxibe = Vioxx®). Após o uso prolongado de rofecoxibe, observou-se um aumento de eventos tromboembólicos (infartos cardíacos e AVEs). Assim, descobriu-se que tais fármacos aumentam a chance de cardiopatia isquêmica de maneira dose-dependente. » Indicações clínicas Os AINEs são os medicamentos mais utilizados no mundo inteiro. Como já comentado, esses fármacos possuem efeitos analgésicos, antipiréticos e anti-inflamatórios. No entanto, nas doenças inflamatórias crônicas (como artrite reumatoide e lúpus eritematoso sistêmico), não são capazes de mudar o curso das doenças e, assim, são efetivos apenas para tratar sintomas. São muito efetivos para o tratamento de dor aguda e crônica. » Seleção do fármaco Os fármacos de duração menor são os preferidos na maioria dos pacientes. Então, o ibuprofeno acaba sendo a escolha mais racional, por estar disponível pelo SUS. No entanto, como já estudado, a eficácia é semelhante entre todos. A seleção do fármaco é baseada em critérios como toxicidade relativa, conveniência para o paciente, custo e experiência de emprego. A resposta aos AINEs é definida como melhora sintomática em até duas semanas. Caso isso não seja atingido, pode-se trocar o fármaco por algum de outro grupo. » Efeitos adversos Devido aos eventos adversos associados enumerados a seguir, é preferível usar os AINEs na menor dosagem eficaz e pelo menor tempo possível. → Efeitos cardiovasculares: Os efeitos adversos cardiovasculares ocorrem especialmente com o uso de AINEs seletivos para COX-2. Assim, como as plaquetas expressam primariamente a COX- 1, esses fármacos não têm propriedades antitrombóticas. O efeito provavelmente resulta da produção predominante de tromboxano A2 pela COX-1 (que não está inibida) nas plaquetas, concomitantemente com a inibição da formação de prostaciclina mediada pela COX-2 no endotélio. Como já foi apresentado anteriormente, o tromboxano A2 promove a agregação plaquetária, enquanto a prostaciclina a inibe. Isso resulta em um efeito pró-trombótico e, portanto, tais fármacos aumentam a chance de cardiopatia isquêmica de maneira dose-dependente. Por outro lado, na teoria, os AINEs não seletivos, também inibem a COX-1, o que acaba por diminuir a síntese de tromboxano A2 e proporcionar um equilíbrio nessa reação, não estando o seu uso tão associado a efeitos cardiovasculares. No entanto, na realidade, os AINEs não seletivos também podem causar efeitos cardiovasculares. O AAS é um fármaco especial nesse sentido, pois, (por ter maior seletividade pela COX-1), em doses baixas, inibe a produção de tromboxano A2 mediada por COX1, reduzindo, assim, a vasoconstrição e a aglutinação de plaquetas mediada por TXA2 e o subsequente risco de eventos cardiovasculares. Além disso, o naproxeno é um AINE que, segundo estudos, não está relacionado a efeitos cardiovasculares. O risco absoluto de aumento da incidência de doença cardiovascular em pacientes sem doença prévia parece ser pequeno! → Efeitos gastrointestinais: Os efeitos adversos mais comuns dos AINEs são relacionados ao trato gastrointestinal, variando desde dispepsia até doença ulcerosa péptica e sangramento. Normalmente, as prostaglandinas atuam na proteção gástrica e na reparação do epitélio. Assim, a inibição da síntese de prostaglandinas pelos AINEs resulta em redução da secreção epitelial de muco e bicarbonato, aumento da secreção ácida, diminuição do fluxo sanguíneo, menor reparação da mucosa e suscetibilidade a dano. Logo, fármacos que inibem a COX1 resultam em aumento do risco de sangramento gastrointestinal e ulcerações. Fármacos com maior seletividade relativa para a COX1 podem ter maior risco de eventos gastrointestinal se comparados àqueles com menor seletividade pela COX1 (isto é, maior seletividade pela COX2). Para evitar tais complicações, os AINEs devem ser tomados por no máximo uma semana. Estudos indicam que o ibuprofeno está associado a menores efeitos gastrointestinais. # Pacientes de alto risco: idade > 60 anos, evento gastrointestinal prévio, uso de glicocorticoides, anticoagulantes e altas doses de AINEs. # Prevenção: Caso seja necessária a utilização de AINEs nesses pacientes, é necessário fazer a prevenção primária, para tentar evitar ao máximo a ocorrência de efeitos gastrointestinais adversos. Para tanto, pode-se lançar mão de: usar AAS revestido, tratar a infecção por H. pylori caso ela esteja presente, usar AINEs seletivos para COX-2 ou usar concomitantemente inibidores da bomba de prótons/antagonistas de histamina. Caso o paciente já tenha doença ulcerosa e precise fazer uso de AINEs, a prevenção secundária pode ser feita com uso concomitantemente inibidores da bomba de prótons/antagonistas de histamina, erradicação de H. pylori ou uso de AINEs seletivos para COX-2. O tratamento efetivo é interromper a administração de AINEs e, quando isso não for possível, deve- se utilizar inibidores da bomba de prótons por 4 a 8 semanas e fazer erradicação de H. pylori. → Efeitos renais: Os AINEs previnema síntese de PGE2 e PGI2, que são prostaglandinas responsáveis pela manutenção do fluxo sanguíneo renal (promovendo a vasodilatação da arteríola aferente). Assim, a diminuição da síntese de prostaglandinas pode resultar em insuficiência renal aguda, necrose da papila renal e necrose intersticial aguda em alguns pacientes. # Fatores de risco para insuficiência renal aguda: doença renal prévia, estados de depleção de volume (relativo e verdadeiro) # Cuidados: É racional evitar o uso de AINEs em pacientes com alto risco. Dessa forma, tais fármacos estão praticamente proscritos em pacientes com insuficiência renal crônica. Podem ser usados com muito cuidado em pacientes com TFG < 60 mL/min. Quando usados, é importante que o profissional de saúde discuta e informe o paciente sobre a sua situação e monitore a função renal do doente. Recomenda-se também evitar o uso de AINEs antes de “insultos renais” (como angiotomografia com contraste – que já é nefrotóxica por si só). → Efeitos hepáticos: Os AINEs raramente causam insuficiência hepática. No entanto, é importante apontar a hepatotoxicidade causada por altas doses de paracetamol. Assim, ocorre lesão hepática em 17% dos adultos com superdosagem acidental de paracetamol. → Efeitos pulmonares: Os AINEs são inibidores da cicloxigenase e, por isso, inibem a síntese de prostaglandinas, mas não a de leucotrienos. Por essa razão, os AINEs – principalmente o AAS – devem ser usados com cautela em pacientes com asma, pois teoriza-se que a inibição da síntese de prostaglandinas pode causar desvio em direção à produção de leucotrienos e, consequentemente, aumentar as manifestações da asma. → Efeitos hematológicos: Alguns dos efeitos adversos hematológicos possíveis são neutropenia e disfunção plaquetária. → Outros efeitos: Outros efeitos adversos importantes dos AINEs são piora dos níveis de pressão arterial em pacientes com hipertensão arterial sistêmica e distúrbios hidroeletrolíticos (hipercalemia e hiponatremia). » Interações medicamentosas • Com outros medicamentos ligados a proteínas: fenitoína e varfarina • Metotrexato: Os AINEs aumentam os níveis de metotrexato ao diminuir a depuração renal. • Inibidores da ECA: O uso de AINEs associados aos inibidores da ECA causa um antagonismo farmacodinâmico, diminuindo a efetividade desses fármacos. • Glicocorticoides: O uso de AINEs associados aos glicocorticoides aumenta a chance de doença ulcerosa péptica. • Inibidores da recaptação de serotonina: O uso de AINEs associados aos inibidores da recaptação de serotonina aumenta a chance de efeitos adversos gastrointestinais. • Anticoagulantes e antiplaquetários: O uso de AINEs associados aos anticoagulantes e antiplaquetários aumenta a chance de sangramento.