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Anemias hiporregenerativas A baixa resposta reticulocitária perante a anemia é sinal patognomônico das anemias por deficiência de produção ou hiporregenerativas. A faixa da normalidade no número de reticulócitos por volume de sangue varia entre 25.000 e 100.000/mm3: • >= 100.000/mm3 anemias hiperproliferativas, • < 100.000/mm3 quando não há resposta medular eficaz → anemias hipoproliferativas ou por deficiência de produção. ANEMIA FERROPRIVA Anemia por deficiência de ferro A função do ferro é ser mediador enzimático para a troca de elétrons e carreador de oxigênio (mioglobina e Hb) é o componente central da molécula heme e o responsável direto por levar oxigênio até os tecidos. Em adultos, as causas mais comuns de anemia por deficiência de ferro são ingestão insuficiente, déficit de absorção, perdas sanguíneas ou aumento rápido da demanda (como no crescimento rápido dos adolescentes e na gestação). O ferro total do organismo varia entre 2 e 4 g: por volta de 50 mg/kg nos homens e 35 mg/kg nas mulheres. Ingestão: Está presente na forma de anéis heme (carnes, peixes, aves), a mais biodisponível, e na forma de complexos de hidróxido férrico (nos vegetais). Esta necessita do pH ácido do estômago para ser reduzida à forma ferrosa e para poder ser adequadamente absorvida. Absorção: Do total de ferro ingerido, 30% da forma heme e 10% da não heme são absorvidos; o restante é eliminado nas fezes. É absorvido pela borda “em escova” das células epiteliais da vilosidade intestinal, especialmente no duodeno e no jejuno proximal. Existem substâncias capazes de interferir na absorção do ferro, como o ácido ascórbico, que melhora a absorção, ou como os fitatos (farelos, aveia, centeio), tanatos (chás), oxalatos (uvas-passas, figo, ameixa, batatas-doces, amêndoas, tomate, chocolate, cacau), fosfatos (leite e derivados), antiácidos, cálcio e até antibióticos (tetraciclina, quinolonas), que reduzem a absorção. Uma vez no interior celular, o ferro tem 2 vias possíveis: • É armazenado como ferritina • É transportado para o plasma, passando pela proteína transmembrana ferroportina, que, por sua vez, atua em conjunto com a hefaestina para nova transformação de íon ferroso em férrico. Atualmente, sabe-se, ainda, que a regulação da absorção é dada por uma proteína de fase aguda chamada hepcidina; sintetizada no fígado, atua diretamente na inibição da absorção de ferro, bem como na diminuição da sua liberação do interior da célula intestinal. Logo, sua superexpressão causa aumento dos estoques de ferro, associado à diminuição da absorção desse íon e de sua quantidade sérica circulante. A hepcidina está aumentada em infecções, inflamações, doença renal crônica e aumento do estoque de ferro, e diminuída em casos de hipóxia, anemia, deficiência de ferro, eritropoese inefetiva e altos níveis de eritropoetina. Quadro clínico: A privação de ferro manifesta-se com sintomas em outros órgãos e tecidos, independentemente da presença ou não de anemia, como queda de cabelo, redução do rendimento intelectual e mialgia. São queixas frequentes na ferropenia: perversão do apetite (pica – vontade de comer terra, barro, arroz cru), pagofagia (compulsão por comer gelo), unhas quebradiças e finas, língua lisa, com perda das papilas, glossite, queilite angular, gastrite atrófica e diminuição da saliva. Coiloníquia, que são as unhas em formato de colher. Os sintomas evoluem de maneira gradual e incluem fadiga, taquicardia, palpitação, irritabilidade, tontura, cefaleia e intolerância aos esforços de intensidade variável. Laboratório: redução dos níveis de ferritina sérica abaixo de 30 ng/mL.vVolumes corpusculares médios mais baixos e anisocitose importante, o que eleva o valor do RDW. Níveis de ferro circulante e a saturação da transferrina caem. A Capacidade Total de Ligação do Ferro (CTLF) e a quantidade de receptor de transferrina solúvel aumentam, mostrando que os receptores do ferro estão “vazios”. Protoporfirina eritrocitária livre aumentada. A falta de ferro para formar Hb leva à formação de hemácias com pouco conteúdo (hipocromia: Hemoglobina Corpuscular Média – HCM – baixa), que, ao se adaptarem a essa situação, alcançam volumes corpusculares mais baixos (microcitose: Volume Corpuscular Médio – VCM – baixo). A contagem de plaquetas pode elevar-se em razão do aumento da secreção de eritropoetina (EPO) pela anemia. Diagnóstico diferencial: Outras causas de anemia hipocrômica microcítica devem ser consideradas na avaliação clínica: a) Anemia de doença crônica; b) Talassemia; c) Anemia sideroblástica; d) Hemoglobinopatia C; e) Intoxicação por chumbo. Tratamento A transfusão para a correção de anemia ferropriva deve ser reservada a quadros de instabilidade hemodinâmica por sangramento excessivo ou situações que apresentem sinais de isquemia tecidual/cor anêmico. A primeira opção para o tratamento da anemia ferropriva é o ferro oral, pois é de custo bastante baixo, de fácil administração e sem efeitos adversos graves. O sulfato ferroso na dose de 300 mg (60 mg de ferro elementar), 3 a 4x/d, que deve ser ingerido longe das refeições, para garantir o máximo aproveitamento. Em crianças, preconiza-se o uso de 2 mg/kg/d, procurando não ultrapassar 15 mg/d, para não aumentar a toxicidade. O aporte de ferro oral deverá ser mantido por, pelo menos, 4 a 6 meses após a normalização da Hb, para garantir a repleção dos estoques do mineral. ANEMIA MEGALOBLÁSTICA É um distúrbio provocado pela síntese comprometida do DNA. A divisão celular é lenta, em razão da inadequada conversão de desoxiuridilato em timidilato. As células megaloblásticas tendem a ser grandes, com proporção aumentada de RNA e proteínas em relação ao DNA, com a presença de grandes núcleos com cromatina rendilhada. Existem 4 tipos etiológicos de anemia megaloblástica: por deficiência de cobalamina (Cbl – vitamina B12), por deficiência de folato, por drogas e por alterações variadas, que incluem síndrome mielodisplásica. 1.Anemia por deficiência de vitamina B12 A vitamina B12 é encontrada somente em produtos de origem animal (carnes, ovos e derivados do leite), e toda aquela presente no corpo humano provém da dieta. A dose necessária diária é de 2 µg/d para adultos e 2,6 µg/d para gestantes e lactentes. A reserva é de 2.000 a 5.000 mg, sendo metade estocada no fígado. Para a absorção adequada da vitamina B12, são necessários os seguintes fatores: • Ingesta adequada; • Acidez gástrica; • Proteases pancreáticas; • Secreção de FI; • Receptor ileal funcionante. A principal consequência da deficiência de cobalamina é o aumento da homocisteína, o que é tóxico ao endotélio, podendo acelerar a arteriosclerose e causar tromboembolismo venoso. As principais causas de deficiência de vitamina B12 são: anemia perniciosa; gastrectomia/cirurgia bariátrica; doença péptica; ressecção/bypass ileal; doença de Crohn/má absorção; síndrome da alça cega; insuficiência pancreática; dieta vegetariana vegana; gestante vegetariana; medicamentos que alteram a síntese de DNA, como biguanida, neomicina, 6- mercaptopurina e agentes alquilantes (ciclofosfamida); inibidor da bomba de prótons. Deficiência de fator intrínseco: A causa mais comum de deficiência de B12 é a chamada anemia perniciosa, doença autoimune que dificilmente se manifesta antes da idade adulta. O FI diminui por meio de 2 mecanismos principais: 1. Anticorpos antifator intrínseco: detectáveis em 70% dos pacientes com anemia perniciosa, possuem 100% de especificidade; 2. Gastrite atrófica: associada ao anticorpo anticélula parietal (detectável em até 90%), diminuindo a secreção do FI. É mais sensível do que o anticorpo antifator intrínseco, porém menos específico. A gastrite atrófica também estáassociada ao risco aumentado de neoplasia gástrica e tumor carcinoide gástrico, recomendando-se vigilância com endoscopia anual. Geralmente, a anemia perniciosa associa-se a outras alterações imunológicas, como deficiência de IgA, vitiligo, hipotireoidismo e insuficiência endócrina poliglandular. Quandro clinico Sangramentos quando se instala plaquetopenia. Glossite, anorexia, diarreia, polineuropatia, mielopatia, demência e neuropatia óptica, e parestesia simétrica, acometendo mais os membros inferiores, ataxia. Ao exame físico, encontram-se palidez e, às vezes, icterícia leve. Constitui quadro clássico: pessoa idosa, levemente ictérica e pálida, com língua careca, mentalmente lenta e com passos largos e trôpegos. A reposição de folato é capaz de corrigir a anemia, porém não afeta o quadro neurológico ou há até piora deste, nos casos de deficiência de B12. Alterações laboratoriais A anemia megaloblástica caracteriza-se por macrocitose com VCM aumentado, que pode chegar a 140 fL. A associação à deficiência de ferro não é rara; nesse caso, o VCM pode estar normal ou até diminuído. A contagem de plaquetas e granulócitos pode estar reduzida, e os reticulócitos estão baixos. A combinação de macro-ovalócitos e neutrófilos hipersegmentados é patognomônica de anemia megaloblástica. O diagnóstico de deficiência de vitamina B12 é feito pela dosagem da vitamina no sangue, que deverá estar baixa. Em casos de dosagem normal de vitamina B12, mas com quadro clínico e hemograma altamente suspeitos, podem-se dosar homocisteína sérica e ácido metilmalônico sérico e urinário (todos estarão aumentados). Diagnóstico diferencial: Deve-se, primeiramente, diferenciar a deficiência de B12 da deficiência de folato, pela semelhança dos quadros clínico e laboratorial. Pelo quadro de pancitopenia que pode acontecer, deve-se diferenciar de anemia aplásica e leucemias agudas. Tratamento Os pacientes com anemia perniciosa são tratados com aporte parenteral de vitamina B12, sugerindo o uso diário de injeção de 1.000 µg IM. O esquema proposto é de 1 injeção/d por 1 semana; após, 1 injeção/sem durante 1 mês; e, depois, 1x/mês por toda a vida. Pode- se, em alguns casos, utilizar a manutenção com Cbl oral de forma alternativa, 1.000 µg/d, continuamente. O primeiro sinal de resposta é sensação inespecífica de bem-estar, seguida da redução dos outros sintomas. Pode acontecer hipocalemia nos primeiros dias de tratamento, principalmente se a anemia é muito grave, pelo aumento da utilização para a eritropoese. Espera- se aumento de contagem reticulocitária em 3 a 4 dias de tratamento. A normalização hematológica acontece em torno de 2 meses após o início da terapêutica. 2. Anemia por deficiência de ácido fólico Está presente na maioria dos vegetais e das frutas, principalmente nos cítricos e nas folhas verdes, na forma de poliglutamato, sendo hidrolisado em monoglutamato no jejuno, onde é absorvido. As necessidades diárias variam entre 50 e 100 µg, aumentando na gestação até 8 vezes. Os estoques corpóreos de folato alcançam cerca de 5.000 µg, nível suficiente para suprir os requerimentos orgânicos por 2 a 3 meses. O folato é estocado principalmente no fígado e secretado na bile, onde a circulação êntero-hepática será responsável por sua reabsorção e reutilização, diminuindo as perdas orgânicas. A principal causa de deficiência é falha na ingesta: pessoas anoréxicas, etilistas crônicas, aquelas que não ingerem frutas ou vegetais crus e as que cozinham demasiadamente os alimentos. Quadros clínico e laboratorial O quadro é semelhante ao da deficiência de vitamina B12, com as mudanças megaloblásticas e as alterações de mucosa, porém não se apresenta quadro neurológico associado. Acontece também a elevação da desidrogenase láctica e das bilirrubinas, porém a dosagem de B12 é normal. O AF sérico está abaixo de 3 ng/mL. Em caso de dúvida diagnóstica, pode-se observar aumento da homocisteína sérica e urinária, mas, diferentemente do que ocorre na deficiência de vitamina B12, a dosagem do ácido metilmalônico está normal. Os principais diagnósticos diferenciais de causas de macrocitose são: Drogas; Alcoolismo/doença hepática alcoólica; Hipotireoidismo; Mieloma múltiplo (falsa macrocitose); Síndrome mielodisplásica; Anemia aplásica; Leucemias agudas. Tratamento Utiliza-se AF oral na dose de 1 a 5 mg/d, e espera-se resposta rápida, deverá ser continuado até a completa recuperação hematológica ou durante todo o período de aumento da demanda, quando for o caso. 3.Anemia de doença crônica É a etiologia mais frequente de anemia entre indivíduos hospitalizados, pois a maioria das doenças sistêmicas crônicas associa-se a quadros de anemia leve ou moderada. Nessa condição, há resposta hematológica insuficiente perante as injúrias sistêmicas dos mais variados tipos, como inflamação, infecção, trauma, neoplasia, hepatopatia alcoólica, insuficiência cardíaca congestiva, diabetes, trombose, doença pulmonar obstrutiva crônica, insuficiência renal, entre outros. A hepcidina tem sua liberação aumentada diante de quadros infecciosos e inflamatórios, particularmente com liberação de interleucina 6 (IL-6). Tal proteína provoca a retenção do ferro dentro dos macrófagos, impedindo o retorno do ferro estocado à circulação e bloqueando também a passagem daquele presente nos enterócitos para a circulação (inibe a ferroportina), os quais perdem esse metal ao sofrerem a descamação fisiológica. Quadro laboratorial A anemia é de intensidade variável. Muitos pacientes apresentam valor de Hb entre 10 e 11 g/dL. A prevalência e a severidade estão relacionadas ao estágio da doença de base e à idade do paciente. A morfologia eritrocitária é normocítica/ normocrômica, e a contagem reticulocitária está diminuída. Substâncias que sugerem atividade inflamatória elevada, como a proteína C reativa, velocidade de hemossedimentação e fibrinogênio, podem estar elevadas. Ferro sérico baixo, às vezes chegando a níveis mínimos. Diagnóstico diferencial: anemias secundárias às doenças endócrinas graves: hipotireoidismo, hiperparatireoidismo, insuficiência adrenal e mesmo pan-hipopituitarismo, talassemia, anemia sideroblástica, deficiência de cobre, intoxicação por chumbo e hemoglobinopatia C. Tratamento Na anemia de doença crônica, o tratamento deve ser da doença de base em si, uma vez que a anemia geralmente é discreta e não necessita ser tratada. Sangramento, deficiência de vitamina B12, folato e ferro devem ser corrigidos, caso presentes. A EPO recombinante injetável, indicada a pacientes com Hb < 10 g/dL, apresenta boa resposta em 40 a 80% dos casos. O nível sérico de EPO < 500 UI/L é um bom preditor de resposta. Deve-se fazer reposição de ferro oral concomitante para manter a ferritina > 100 ng/dL e a saturação de transferrina > 20%. 4.Anemia da insuficiência renal crônica Na IRC, o grau de anemia é proporcional ao grau de insuficiência renal, de modo que aproximadamente 90% da população com clearance de creatinina < 25 a 30 mL/min apresenta anemia, muitas vezes, com valor de hemoglobina (Hb) < 10 g/dL. A anemia pode, ainda, surgir mesmo com menores valores de creatinina, como 2 mg/dL. No paciente com IRC, a anemia contribui para a piora dos sintomas relacionados à diminuição da função renal, como fadiga, depressão, dispneia e alteração cardiovascular. Na avaliação laboratorial, encontra-se anemia normocrômica e normocítica leve, na maioria dos casos, com Hb em torno de 9 a 10 g/dL, com reticulócito normal ou diminuído. Deve ser feita a dosagem do perfil completo de ferro ao diagnóstico da anemia e na monitorização durante todo o tratamento. O tratamento é feito com a reposição de EPO recombinante, na dose de 150 UI/kg SC, 3x/sem. O valor-alvode Hb desejado com o tratamento é de 10 a 12 g/dL. Recomenda-se a reposição de AF e ferro, com controle periódico do perfil deste, que deve manter valores de ferritina entre 200 e 500 µg/L e/ou saturação de transferrina entre 20 e 50%. 5.Anemias sideroblásticas As anemias sideroblásticas, congênitas ou adquiridas, compõem um grupo heterogêneo de doenças nas quais há o comprometimento da síntese de Hb, em virtude da falha na síntese de protoporfirina, que, junto ao ferro, forma o núcleo heme da Hb. A anemia sideroblástica hereditária mais comum é ligada ao X, de baixa incidência e de manifestação precoce. As formas adquiridas são mais comuns e ocorrem por alcoolismo, toxicidade por drogas (cloranfenicol e agentes antituberculose), intoxicação por chumbo, deficiência de cobre e, mais frequentemente, como manifestação de uma desordem medular (clonal) em célula-tronco hematopoética, a mielodisplasia ou síndrome mielodisplásica, capaz de evoluir para leucemia aguda. Não há sintomas clínicos além dos relacionados à anemia, que geralmente é moderada, com níveis de Hb entre 7 e 9 g/dL. O diagnóstico é feito por meio do exame da medula óssea, que mostra sinais de eritropoese ineficaz e deficiência na maturação citoplasmática. A coloração de ferro medular pelo corante azul da Prússia, ou coloração de Perls, mostra aumento generalizado nos depósitos de ferro. Em algumas situações, podem-se encontrar sideroblastos “em anel” (depósitos de ferro ao redor do núcleo do eritroblasto). Os níveis séricos de ferro e ferritina e a saturação de transferrina estão elevados, revelando a sobrecarga daquele. A anemia aparece nos primeiros meses de vida; pode haver esplenomegalia. Apresenta microcitose e hipocromia, devendo haver diferenciação da anemia ferropriva e das talassemias. Adquirida: Tende a ser macrocítica, com subpopulação microcítica. Pode apresentar leucopenia e/ou plaquetopenia. No caso da intoxicação por chumbo, o pontilhado basófilo eritroide é característico, e os níveis séricos desse metal estão acima do normal. Tratamento O tratamento é dependente da causa-base. Quando a etiologia é secundária ao uso de drogas, a retirada delas é suficiente. Na intoxicação por chumbo, está indicada a quelação do metal pesado. Na deficiência de cobre, deve ser feita a suplementação do metal. No alcoolismo, deve ser orientada a suspensão da ingesta alcoólica e feita suplementação vitamínica com AF e vitamina B6.