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Prévia do material em texto

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)
INTRODUÇÃO À LINGUÍSTICA: domínios e fronteiras, vol. 1
Fernanda Mussalim e Anna Christina Bentes (Orgs.)
Capa: aeroestúdio
Preparação de originais: Elisabeth Santo e Nair Kayo
Revisão: Maria de Lourdes de Almeida e Cibele Cesario da Silva
Composição: Linea Editora Ltda.
Coordenação editorial: Danilo A. Q. Morales
Conversão para ebook: Cumbuca Studio
Nenhuma parte desta obra pode ser reproduzida ou duplicada sem autorização expressa dos autores e
do editor.
© 2000 by Organizadoras
Direitos para esta edição
CORTEZ EDITORA
Rua Monte Alegre, 1074 – Perdizes
05014-001 – São Paulo – SP
Tel.: (11) 3864-0111 Fax: (11) 3864-4290
E-mail: cortez@cortezeditora.com.br
www.cortezeditora.com.br
Publicado no Brasil – 2021
Para Sírio e Inge
Que nos mostraram
Os encantos da linguagem.
(As Organizadoras)
O homem sentiu sempre — e os poetas frequentemente cantaram — o poder fundador da linguagem,
que instaura uma sociedade imaginária, anima as coisas inertes, faz ver o que ainda não existe, traz
de volta o que desapareceu.
Émile Benveniste
SUMÁRIO
Apresentação à 9ª edição
Apresentação
Sírio Possenti
Introdução
Fernanda Mussalim e Anna Christina Bentes
1. SOCIOLINGUÍSTICA
PARTE I
Tânia Maria Alkmim
PARTE II
Roberto Gomes Camacho
2. LINGUÍSTICA HISTÓRICA
Nilson Gabas Júnior
3. FONÉTICA
Gladis Massini‑Cagliari e Luiz Carlos Cagliari
4. FONOLOGIA
Angel Corbera Mori
5. MORFOLOGIA
Maria Filomena Spatti Sandalo
6. SINTAXE
Rosane de Andrade Berlinck, Marina R. A. Augusto e Ana Paula Scher
7. LINGUÍSTICA TEXTUAL
Anna Christina Bentes
Sobre os Autores
APRESENTAÇÃO À 9ª EDIÇÃO
A obra Introdução à Linguística: domínios e fronteiras (Volumes 1 e 2)
foi lançada no II Congresso Internacional da Associação Brasileira de
Linguística (Abralin), que aconteceu em Fortaleza, na Universidade Federal
do Ceará (UFC), em março de 2001.
Com a participação de linguistas brasileiros de várias instituições do
país, os dois volumes foram organizados de forma a dar acesso aos
principais objetos de estudo e às principais teorizações das diferentes áreas
da Linguística, em uma linguagem focada no público de graduação, mas
sem abrir mão do necessário rigor acadêmico na apresentação de cada uma
das áreas que constituem esse campo do conhecimento.
O trabalho coletivo e engajado dos vários autores dessa obra resultou na
sua consolidação como uma referência no Brasil: um material
imprescindível para a formação dos profissionais da área de Letras e
Linguística e também um guia de conhecimento básico do campo dos
estudos da linguagem, que figura na bibliografia obrigatória de vários
programas de pós-graduação no país.
Para nós, organizadoras da obra Introdução à Linguística: domínios e
fronteiras, isso tudo é, ao mesmo tempo, uma grande alegria, mas também
uma grande responsabilidade.
A atualização da obra no ano de seu aniversário de dez anos foi a
maneira que encontramos para celebrar o seu sucesso e, ao mesmo tempo,
continuar a fornecer um material de formação adequada e de qualidade no
campo dos estudos linguísticos.
Essa atualização foi feita de maneira diversificada e contemplou
reformulações pontuais e/ou reformulações mais gerais de grande parte dos
artigos. Houve desde a aplicação do acordo ortográfico e correções dos
originais, até atualizações de bibliografia, exemplos e dados, além da
inserção de novos conceitos e/ou reformulações teóricas. Foram feitas
também atualizações das informações sobre os autores e uma mudança no
layout da capa, conservando-se, no entanto, as cores e o espírito das capas
originais.
Os dez anos de sucesso editorial e de reconhecimento do mérito
acadêmico dessa obra devem-se a muitos: autores, editores, colegas e
leitores. A eles, o nosso mais sincero agradecimento e a reiteração de nosso
compromisso com o fortalecimento das práticas de reflexão sobre a
linguagem a partir de uma perspectiva linguística.
Assim, gostaríamos de agradecer, mais uma vez, a todos os autores que
se dispuseram a colaborar, há dez anos, com esse projeto e que também se
dispuseram a colaborar com esta atualização da obra.
Gostaríamos de agradecer à Cortez Editora, por ter acolhido esta obra
para publicação e por ter sido incansável na sua divulgação e distribuição.
Agradecemos também aos nossos colegas da Linguística e aos
estudiosos da linguagem em geral, que consideram que esta obra deve ser
lida por seus alunos de graduação e/ou de pós-graduação em Letras e
Linguística e/ou em outras áreas do conhecimento.
E, por fim, gostaríamos de agradecer aos nossos leitores de todo o país,
por terem escolhido nossa obra como um dos inúmeros companheiros de
jornada no curso de sua formação profissional.
Sabemos que os tempos de hoje exigem muito mais de todos nós,
profissionais das Letras e da Linguística. Por sua abrangência e
objetividade, acreditamos que esta obra continua a constituir-se em um
significativo apoio para a obtenção de uma boa formação profissional e
humana no campo dos estudos da linguagem, já que a questão linguística é,
atualmente, uma das mais importantes agendas da educação e da ciência
brasileiras.
Dezembro de 2011
Fernanda Mussalim
Anna Christina Bentes
(As organizadoras)
APRESENTAÇÃO
Prefaciar um livro como este que o leitor tem em mãos não é uma tarefa
que se cumpra facilmente. Por duas razões, principalmente. Em primeiro
lugar, não é obra de autor, ou seja, sendo uma coletânea, não se trata de um
livro que possa ser atribuído a uma pessoa, caso em que os prefácios
dedicam parte de seu espaço para celebrar o autor, não necessariamente
para comentar o livro. Em segundo, porque se trata de uma obra contendo
textos sobre Linguística, destinada de certa forma à sua divulgação, ou, dito
de outra maneira, destinada a propiciar uma introdução não trivial a um
campo de saber já veterano, mas para muitos completamente desconhecido.
O livro trata de temas bastante conhecidos nos meios mais ou menos
especializados, mas nada — eu disse “nada”, não disse “pouco” —
conhecidos nos meios que não se dedicam especificamente a essas questões,
por mais que elas lhes sejam afetas. Este poderia bem ser o caso dos críticos
literários, antropólogos, sociólogos, cientistas políticos, psicólogos, e
mesmo psicanalistas.
Os estudantes que chegam à universidade repetem e confirmam a
situação: eles não têm a menor familiaridade com as questões mais banais
às quais se dedica a Linguística, a despeito de longa experiência escolar
com manifestações variadas e relevantes de linguagem, e também de
alguma experiência, frequentemente dolorosa e quase sempre inútil, com
gramáticas (sempre e só as normativas).
Este é um fato curioso, sobre o qual se deveria meditar. Todos
conhecem, mesmo os que se devotam apenas ao campo das humanidades, e
mesmo às letras, alguma coisa sobre relatividade, big bang e universo em
expansão, DNA e clonagem. No mínimo. Às vezes, equivocadamente, é
verdade, a ponto de confundirem a relatividade de Einstein com o
relativismo de suas convicções... De qualquer forma, nos campos da Física
e da Biologia, faz tempo que a escola e a imprensa diária ultrapassaram
Newton e Mendel. Mas nunca — se houver pelo menos um caso, me
avisem — ultrapassaram, nem escola, nem imprensa, nem mesmo o
ensaísmo dos finais de semana, muito menos as colunas que agora assolam
a mídia, os limiares das gramáticas normativas (a única exceção são as
menções cansativas a um texto de Jakobson sobre as funções da linguagem)
quando a questão são as línguas. Ouvir o comentário de um intelectual ou
de um jogador de futebol sobre a questão é exatamente a mesma coisa.
Ora, tais gramáticas estão para a Linguística mais ou menos como
Galileu está para a Física Moderna, isso se considerarmos de maneira
otimista e generosa apenas os tópicos nos quais discutem a organização
interna da língua e sua eventual relação com o mundo, que é o caso da
herança filosófica das gramáticas. Quanto ao mais, a atitude é meramentenormativa, pré-baconiana nos melhores casos, e manual de etiqueta — ruim
— nos piores. O melhor testemunho desse atraso é o sucesso de
pseudoprofessores nos meios de comunicação, que nada mais fazem do que
repetir materiais do nível das apostilas dos cursinhos, com listas de
“problemas” de uso do português falado julgado à luz da língua escrita.
Faça o leitor a suposição de que os programas e as colunas sobre música,
teatro e economia sejam do mesmo calibre, e o atraso saltará aos olhos
ainda mais claramente. Em resumo: Linguística é uma coisa de que
ninguém ouviu falar. Daí a relevância de um livro como este. Mas há mais
razões.
Outra observação sobre um certo atraso, outra justificativa para a
publicação deste livro: quem já ouviu falar de Linguística (isso se vê na
imprensa e às vezes em departamentos avançados) supõe que ela se resume
à arbitrariedade do signo, às relações paradigmáticas e sintagmáticas
(quando a coisa é sofisticada, menciona-se outra dupla saussuriana,
sincronia e diacronia). Frequentemente, as introduções à Linguística —
disciplina obrigatória nos cursos de Letras — não ultrapassam essa leitura
mais ou menos festiva de Saussure, feita em algum manual, ou em apostila,
que ninguém é de ferro.
Assim, este livro se justifica plenamente, e por uma só razão, embora ela
tenha sentidos diferentes em diversos domínios sociais. O que justifica este
livro é sua capacidade de produzir uma certa ruptura. No caso dos
intelectuais vizinhos, o efeito poderia ser o da atualização mínima. Seria
importante, por isso mesmo, no entanto, que não buscassem no livro
ferramentas para seu trabalho. Para isso, as introduções aqui apresentadas
não serviriam, pois se trata de introduções. Mas ninguém espera que façam
as categorias da Linguística aqui oferecidas em embrião render em seus
trabalhos. Poderiam instruir-se, apenas, mesmo que fosse para conversas em
recepções. Já está na hora de não se ouvirem mais imprecações grosseiras
sobre erros de português, avaliações de baixíssimo nível sobre a pronúncia
desta ou daquela região, preconceitos ridículos — se não fossem
socialmente excludentes — a respeito da linguagem corrente, quer se trate
de fala popular, quer se trate de línguas de menor prestígio, especialmente
quando isso se deve a peculiaridades estruturais (que não se diga mais, por
exemplo, que o chinês não tem sintaxe, só porque sua frase não se organiza
como a do francês). Até porque essas avaliações, feitas supostamente de
algum patamar elevado, depõem muito mais sobre a ignorância de quem as
faz do que sobre a suposta deficiência dos produtores dos fatos linguísticos
comentados.
Um segundo nível de ruptura em que este livro pode atuar é em relação
ao estudante de Letras. É o que mais importa. De fato, nada é mais
necessário do que eliminar o suposto saber do aluno de colegial em relação
aos fatos linguísticos. Em primeiro lugar, a ruptura precisa realizar-se até
mesmo em relação ao que sejam fatos linguísticos. É mais ou menos sabido
que os fatos não se oferecem graciosamente ao estudioso, que cada teoria de
certa forma decide sobre eles — quais e como são, quais os mais e os
menos relevantes etc.
Nesse domínio, duas questões são essenciais: que o estudante se torne
capaz de ver como fatos os casos de variação; em segundo lugar, que
perceba que há pesquisa possível em língua — ou melhor, que fazer
pesquisa a propósito de língua não equivale a consultar gramáticas e
dicionários para verificar o que neles consta e o que não consta neles.
Essas são apenas as primeiras rupturas. Talvez as mais necessárias. Mas,
além disso, cabe verificar minimamente o quanto são ricos e estão sendo
cada vez mais enriquecidos novos campos. Por exemplo: pode-se dizer com
certeza que um texto não é uma soma de frases, que propriedades como
coesão e coerência têm dimensões bastante objetivas, por um lado, mas
relacionam-se com domínios que se poderiam dizer interdisciplinares, por
outro. Assim, mesmo sem poder-se dizer que se atinge o patamar da
“objetividade” nesse domínio, pode-se dizer com certeza que a categoria
decisiva já não é o (bom ou mau) gosto do leitor.
O que se pode dizer do texto vale para outros tantos campos
relativamente recentes: as novidades relacionadas a questões postas pelo
estudo do discurso, pela Psicolinguística, pela Neurolinguística, pelos novos
problemas (e novas propostas de saídas) que a Linguística propõe ao
professor e educador são suficientemente desafiadoras.
O livro deixará claro a seu leitor o quanto a linguagem é um campo de
experiências riquíssimas, quer se trate de abordar os aspectos relativos ao
que se poderia chamar de seus problemas estruturais (Fonologia,
Morfologia, Sintaxe), quer se trate de tematizar suas relações com outros
campos de saber. Ou com o mundo, que só conhecemos, de fato, ou que
tentamos conhecer, por meio da linguagem — de alguma linguagem.
Sírio Possenti
INTRODUÇÃO
A Linguística, nos dias de hoje, conta com uma vasta bibliografia de
estudos no campo, desde textos mais introdutórios até textos de grande
especificidade e aprofundamento. Os textos introdutórios já existentes são,
sem dúvida alguma, bastante esclarecedores. O que justificaria, então, a
organização de uma obra como esta, que se propõe a introduzir o leitor nos
estudos da Linguística?
Nosso propósito na organização desta obra é o de preparar o terreno
conceitual para contatos posteriores com materiais que analisem o
fenômeno da linguagem com um maior grau de detalhe e aprofundamento,
além de tornar acessível, para leitores iniciantes ou não especializados em
Linguística, as relevantes abordagens sobre o fenômeno da linguagem. No
intuito de realizarmos tal propósito, concebemos os dois volumes de
Introdução à Linguística: domínios e fronteiras, buscando aliar os seguintes
aspectos:
a) uma apresentação geral e gradual das principais áreas da Linguística
no Brasil;
b) uma amostra de como as diversas áreas abordam os fatos de
linguagem;
c) uma linguagem acessível.
Com base nesses três aspectos, procuramos organizar os capítulos de
forma a conferir uma certa unidade à obra. Assim, de um modo geral, os
capítulos estão constituídos da seguinte maneira: (i) histórico da área; (ii)
bases epistemológicas da área; (iii) diferentes vertentes da área; (iv) análise
de dados. No entanto, em função da especificidade de cada área e do
próprio estilo e visão de cada autor com relação ao campo apresentado, os
capítulos conferem um peso diferenciado aos aspectos acima citados.
Com relação à ordem dos capítulos, não optamos pela apresentação das
disciplinas seguindo a perspectiva clássica, que perscruta o fenômeno da
linguagem partindo dos níveis mínimos de análise em direção aos níveis
superiores. Optamos por oferecer ao leitor a possibilidade de inicialmente
enxergar o fenômeno linguístico como um fenômeno sociocultural,
fundamentalmente heterogêneo e em constante processo de mudança.
Entendemos que, assim, podemos lhe promover uma entrada mais
significativa no terreno das necessárias e esclarecedoras orientações
teóricas formais sobre a linguagem humana.
Iniciamos o volume 1 desta obra com o capítulo de Sociolinguística
(partes 1 e 2) porque essa área, na tentativa de compreender a questão da
relação entre linguagem e sociedade, postula o princípio da diversidade
linguística. Além, disso, a Sociolíguística increve-se na corrente das
orientações teóricas contextuais sobre o fenômeno linguístico, orientações
teóricas estas que consideram as comunidades linguísticas não somente sob
o ângulo das regras de linguagem, mas também sob o ângulo das relações
de poder que se manifestam na e pela linguagem.
O capítulo de Linguística Histórica é apresentado na sequência,
enfocando os processos de mudança das línguas no tempo. Essa sequência
se justifica porque mudança e variação linguística encontram-se
estreitamente relacionadas: se há mudança linguística é porque, em algum
momento anterior, ocorreu o fenômeno da variação. Sendo assim,
esperamos que estes primeiros textos possam esclarecer parao leitor dois
dos mais importantes pressupostos da Linguística moderna: que todas as
línguas variam e que todas as línguas mudam.
Em seguida, começamos a explorar as áreas que fazem parte daquilo
que é tradicionalmente concebido como a descrição gramatical das línguas
naturais. Os capítulos de Fonética, Fonologia, Morfologia e Sintaxe
possuem a tarefa de introduzir as perspectivas teóricas e metodológicas que
constituíram a Linguística como uma ciência autônoma e com um objeto de
estudo próprio, ao longo do século XX. Em contato com esses capítulos, o
leitor terá a oportunidade de escrutinar o fenômeno linguístico em seus
diferentes níveis e, também, de ter acesso a um olhar predominantemente
formalista em relação às línguas naturais. Em outras palavras, nesses
capítulos, o leitor estará entrando em contato com abordagens que propõem
um número restrito de princípios firmes e seguros que são utilizados na
construção positiva do conhecimento das línguas e da faculdade de
linguagem.
Finalizamos o primeiro volume com o capítulo de Linguística Textual.
Essa área, que tem como principal interesse o estudo dos processos de
produção, recepção e interpretação dos textos, reintegra o sujeito e a
situação de comunicação em seu escopo teórico. Esse movimento faz parte
de um esforço mais amplo de construção de uma Linguística para além dos
limites da frase.
Iniciamos o volume 2 apresentando a área da Semântica, que tem como
objeto de estudo a questão do significado e/ou dos processos de
significação. Esse foi um tema sempre presente em outros lugares de
construção do conhecimento, tais como a Lógica, a Retórica, a Filosofia e,
mais recentemente, a Semiótica, a História, a Antropologia e as Ciências
Cognitivas, o que nos sinaliza para o fato de que este objeto “transborda as
próprias fronteiras da Linguística” e nos coloca na posição de ter de
enfrentar as discussões sobre as relações entre linguagem e mundo,
linguagem e conhecimento.
Os capítulos de Pragmática, Análise da Conversação e Análise do
Discurso, que são apresentados na sequência, podem ser definidos, de
maneira geral, como aqueles que, a partir de pressupostos teóricos
diferenciados, estabelecem relações com a exterioridade da linguagem,
problematizando a separação entre a materialidade da língua e seus
contextos de produção. Para tanto, essas áreas também mobilizam saberes
advindos de outros campos, tais como a Filosofia da Linguagem, a
Antropologia, a História, a Sociologia, a Psicanálise, e as Ciências
Cognitivas, proporcionando ao leitor diferentes olhares em relação às
formas de construção dos sentidos, de nossa subjetividade/alteridade e de
nossa historicidade.
Com o capítulo de Neurolinguística, continuamos o nosso percurso
pelas áreas que, pela natureza das indagações que fazem, são constituídas
fundamentalmente por teorias linguísticas e por teorias advindas de outros
campos do saber. Em outras palavras, “as fronteiras que delimitam os
objetos de estudo destas áreas são instáveis, movediças”. Os capítulos de
Neurolinguística, Psicolinguística e Aquisição da Linguagem se distinguem
dos outros e se aproximam entre si por necessitarem da articulação de
saberes produzidos, principalmente, na Linguística, na Psicologia e na área
de Neurociências, para que sejam respondidas as questões elaboradas em
seus respectivos campos sobre as relações entre linguagem e cognição,
linguagem e cérebro, enfim, sobre os diferentes modos pelos quais os
sujeitos adquirem, organizam e reelaboram o conhecimento.
O último capítulo deste volume, Língua e ensino: políticas de
fechamento, tematiza as contribuições que alguns importantes pressupostos
teóricos construídos pela ciência da linguagem ao longo do século XX
podem dar para o ensino. O capítulo apresenta as diferentes concepções de
gramática que norteiam as práticas pedagógicas, além de problematizar as
atuais práticas de leitura e de produção de textos na escola, proporcionando
ao leitor um olhar crítico em relação aos processos de “homogeneização e
silenciamento dos sujeitos”, tão em curso nas instituições escolares.
Essa explicação sobre a disposição dos capítulos na obra não tem o
objetivo de impor uma leitura linear. Dependendo dos seus interesses e de
suas questões, o leitor poderá elaborar a sua própria ordem de leitura.
Introdução à Linguística: domínios e fronteiras é fruto de um trabalho
coletivo, resultante de uma verdadeira cooperação entre nós, organizadoras,
entre as organizadoras e os autores, entre os autores e seus diversos
interlocutores, entre nós e as pessoas que acompanharam mais de perto o
projeto ao longo desses três anos, e entre nós e os editores. Esta experiência
de constante diálogo nos foi extremamente valiosa e prazerosa. Esperamos
que nossos leitores também se beneficiem da estimulante “atmosfera” de
reflexão sobre a linguagem propiciada pelo trabalho de cada um dos autores
desta obra.
Aos autores e autoras, agradecemos o entusiasmo com que se engajaram
neste projeto intelectual, a tolerância às longas conversas teóricas por
telefone e às propostas de intervenção em seus estilos pessoais de escrita e
pelos textos em si, que se constituem em brilhantes contribuições para o
entendimento da ciência da linguagem e de seus tão diversos e fascinantes
objetos.
Agradecemos a Sírio Possenti pela gentileza em prefaciar esta obra,
colaborando, com seu conhecimento sobre a linguagem e sua experiência
como pesquisador e professor, para que este projeto alcançasse o bom nível
que alcançou. Agradecemos também à Ingedore Koch que, com sua
reconhecida autoridade e competência, nos presenteou com um texto de
apresentação para a capa desta obra.
Gostaríamos de deixar público o nosso reconhecimento aos professores
Angel Mori, Aryon Rodrigues, Edwiges Morato, Erotilde Pezatti, Ester
Scarpa, Helena Brandão, Ingedore Koch, Jairo M. Nunes, João Wanderley
Geraldi, Kanavillil Rajagopalan, Luiz Antônio T. Marcuschi, Sírio Possenti
e à pesquisadora Helena Britto, por suas leituras atenciosas, que
contribuíram de forma decisiva para a concepção e organização de alguns
capítulos desta obra.
Temos também o prazer de reconhecer que, nestes tempos difíceis para a
universidade brasileira, ainda existem espaços institucionais que
proporcionam as condições para que um projeto dessa natureza seja
passível de ser executado. Assim, agradecemos ao Instituto de Estudos da
Linguagem da Universidade Estadual de Campinas, por ser uma espécie de
confortável “lar” acadêmico, onde tivemos a oportunidade de aprender que
uma formação sólida pode e deve estar aliada a compromissos políticos
mais amplos.
A evolução deste livro tem um débito especial para com Edwiges Maria
Morato, nossa companheira nesta jornada intelectual, por ter participado das
inúmeras discussões sobre a organização dos capítulos, pelas leituras
perspicazes e construtivas de alguns deles e por nos ter sempre incentivado,
com sua amizade sólida, com seu brilhantismo e com seu compromisso com
níveis elevados de instigação, a acreditar que valia a pena. Gostaríamos
ainda de agradecer a Ivana Lima Regis, por sua amizade e por ter sido uma
interlocutora especial em todos os estágios deste trabalho, e a Marcelo
Lemos Silveira, pelo apoio e companheirismo.
Esperamos que este livro possibilite ao leitor vislumbrar a ciência da
linguagem. Evidentemente, não tivemos a pretensão de esgotar as
discussões que são feitas atualmente nas diferentes áreas apresentadas. Ao
contrário, Introdução à Linguística: domínios e fronteiras propõe-se a ser
uma porta de entrada para o campo da Linguística, um campo vasto,
heterogêneo, multidisciplinar, que consolida seus domínios e constrói seus
objetos de estudo a partir de influências intradisciplinares e de uma
complexa, mas muito produtiva, rede de relações com outros lugares de
construção do conhecimento.
Fernanda Mussalim
Anna Christina Bentes
Organizadoras
1
SOCIOLINGUÍSTICA
PARTE I
Tânia Maria Alkmim
1. CONSIDERAÇÕES INICIAIS
Linguagem e sociedade estão ligadas entre si de modo inquestionável.Mais do que isso, podemos afirmar que essa relação é a base da constituição
do ser humano. A história da humanidade é a história de seres organizados
em sociedades e detentores de um sistema de comunicação oral, ou seja, de
uma língua. Efetivamente, a relação entre linguagem e sociedade não é
posta em dúvida por ninguém, e não deveria estar ausente, portanto, das
reflexões sobre o fenômeno linguístico. Por que se fala, então, em
Sociolinguística? Ou melhor, por que existe uma área, dentro da
Linguística, para tratar, especificamente, das relações entre linguagem e
sociedade — a Sociolinguística? A linguagem não seria, essencialmente,
um fenômeno de natureza social? As respostas a questões como essas não
são tão óbvias. Para respondê-las, é preciso considerar razões de natureza
histórica, mais precisamente, o contexto social mais amplo em que se
situam aqueles que se dedicam a pensar o fenômeno linguístico. Assim,
inicialmente, é necessário levar em conta que os estudiosos do fenômeno
linguístico, como homens de seu tempo, assumiram posturas teóricas em
consonância com o fazer científico da tradição cultural em que estavam
inseridos. Nesse sentido, as teorias de linguagem, do passado ou atuais,
sempre refletem concepções particulares de fenômeno linguístico e
compreensões distintas do papel deste na vida social. Mais concretamente,
em cada época, as teorias linguísticas definem, a seu modo, a natureza e as
características relevantes do fenômeno linguístico. E, evidentemente, a
maneira de descrevê-lo e de analisá-lo.
Alguns manuais de história da Linguística nos oferecem um panorama
de diversas abordagens no estudo do fenômeno linguístico.1 Observemos, a
título ilustrativo, alguns comentários de Câmara Jr., em História da
linguística, a respeito do linguista alemão Augusto Schleicher, cujos
trabalhos tiveram forte impacto no século XIX:
Schleicher não era apenas um linguista mas também um estudioso das ciências naturais
dedicando-se à botânica. Este fato dera-lhe uma orientação a favor das ciências da natureza.
Ademais, de acordo com a filosofia de Hegel, que dominou o pensamento alemão dessa época, as
ciências humanas, incluindo a história, são o produto do livre pensamento do homem e não
podem ser colocadas sob a influência de leis imutáveis e gerais tais como o fenômeno da
natureza.
Ora, Schleicher, como todos os linguistas anteriores a ele, tinha a
ambição de elevar o estudo da linguagem ao status de uma ciência rigorosa
com rigorosas leis de desenvolvimento.2
É assim que Schleicher se propõe a colocar a Linguística no campo das
ciências naturais, dissociando-a da tradição filológica, vista por ele como
um ramo da História, ciência humana. Para o referido linguista alemão, o
desenvolvimento da linguagem era comparável ao de uma planta que nasce,
cresce e morre segundo leis físicas. A linguagem é vista como um
organismo natural ao qual se aplica, portanto, o conceito de evolução,
desenvolvido por Darwin. A esse respeito Câmara Jr. relata o que se segue:
De acordo com Schleicher, cada língua é o produto da ação de um complexo de substâncias
naturais no cérebro e no aparelho fonador. Estudar uma língua é, portanto, uma abordagem
indireta a este complexo de matérias. Desta maneira, foi ele levado a adiantar que a diversidade
das línguas depende da diversidade dos cérebros e órgãos fonadores dos homens, de acordo com
as suas raças. E associou a língua à raça de maneira indissolúvel. Advogou que a língua é o
critério mais adequado para se proceder à classificação racial da humanidade.3
A orientação biologizante que Schleicher imprimiu à Linguística da sua
época afastou, evidentemente, toda consideração de ordem social e cultural
no trato do fenômeno linguístico.
A relação entre linguagem e sociedade, reconhecida, mas nem sempre
assumida como determinante, encontra-se diretamente ligada à questão da
determinação do objeto de estudo da Linguística. Isto é, embora se admita
que a relação linguagem-sociedade seja evidente por si só, é possível
privilegiar uma determinada óptica, e esta decisão repercute na visão que se
tem do fenômeno linguístico, de sua natureza e caracterização. Nesse
sentido, a Linguística do século XX teve um papel decisivo na questão da
consideração da relação linguagem-sociedade: é esta que se encarrega de
excluir toda consideração de natureza social, histórica e cultural na
observação, descrição, análise e interpretação do fenômeno linguístico.
Referimo-nos, aqui, à constituição da tradição estruturalista, iniciada por
Saussure em seu Curso de linguística geral, em 1916. É Saussure quem
define a língua, por oposição à fala, como o objeto central da Linguística.
Na visão do autor, a língua é o sistema subjacente à atividade da fala, mais
concretamente, é o sistema invariante que pode ser abstraído das múltiplas
variações observáveis da fala. Da fala, se ocupará a Estilística, ou, mais
amplamente, a Linguística Externa. A Linguística, propriamente dita, terá
como tarefa descrever o sistema formal, a língua. Inaugura-se, assim, a
chamada abordagem imanente da língua, que, em termos saussurianos,
significa afastar “tudo o que lhe seja estranho ao organismo, ao seu
sistema”.4
Interessantemente, para Saussure, a língua é um fato social, no sentido
de que é um sistema convencional adquirido pelos indivíduos no convívio
social. Mais precisamente, ele aponta a linguagem com a faculdade natural
que permite ao homem constituir uma língua. Em consequência, a língua se
caracteriza por ser “um produto social da faculdade da linguagem”.5
Saussure privilegia o caráter formal e estrutural do fenômeno
linguístico, embora reconheça a importância de considerações de natureza
etnológica, histórica e política. Segundo ele, “o estudo dos fenômenos
linguísticos externos é muito frutífero; mas é falso dizer que sem estes não
seria possível conhecer o organismo linguístico interno”.6 Saussure
institucionaliza a distinção entre uma Linguística Interna oposta a uma
Linguística Externa. É essa dicotomia que dividirá, de maneira permanente,
o campo dos estudos linguísticos contemporâneos, em que orientações
formais se opõem a orientações contextuais, sendo que estas últimas se
encontram fragmentadas sob o rótulo das muitas interdisciplinas:
Sociolinguística, Etnolinguística, Psicolinguística etc.
A tradição de relacionar linguagem e sociedade, ou, mais precisamente,
língua, cultura e sociedade, está inscrita na reflexão de vários autores do
século XX. Integrados ou não à grande corrente estruturalista, que ocupou o
centro da cena teórica, particularmente, a partir dos anos 1930, encontramos
linguistas cujas obras são referências obrigatórias, quando se trata de pensar
a questão do social no campo dos estudos linguísticos. Não caberia, aqui,
enumerar todos esses estudiosos, mas uma breve referência a alguns nomes,
ligados ao contexto europeu, impõe-se: Antoine Meillet, Mikhail Bakhtin,
Marcel Cohen, Émile Benveniste e Roman Jakobson.
Meillet, aluno de Saussure, filia-se à orientação diacrônica dos estudos
linguísticos, mas, para ele, a história das línguas é inseparável da história da
cultura e da sociedade: é essa abordagem que podemos ver em sua obra,
sobre a história do latim, Esquisse d’une histoire de la langue latine. A
propósito desse linguista francês, cabe destacar sua visão do fenômeno
linguístico, bem ilustrada por um trecho de sua aula inaugural no Colège de
France, em 1906:
Ora, a linguagem é, eminentemente, um fato social. Tem-se, frequentemente, repetido que as
línguas não existem fora dos sujeitos que as falam, e, em consequência disto, não há razões para
lhes atribuir uma existência autônoma, um ser particular. Esta é uma constatação óbvia, mas sem
força, como a maior parte das proposições evidentes. Pois, se a realidade de uma língua não é
algo de substancial, isto não significa que não seja real. Esta realidade é, ao mesmo tempo,
linguística e social.7
Bakhtin (1929), com sua crítica radical à postura saussuriana, traz para o
centro da cena dos estudos linguísticos a noçãode comunicação social:
A verdadeira substância da língua não é constituída por um sistema abstrato de formas
linguísticas, nem pela enunciação monológica isolada, nem pelo ato psicofisiológico de sua
produção, mas pelo fenômeno social da interação verbal realizada através da enunciação ou das
enunciações. A interação verbal constitui assim a realidade fundamental da língua.8
De uma perspectiva diferente da de Bakhtin, Jakobson, outro linguista
russo, explicita sua visão sobre a relação entre linguagem e contexto social,
em que a noção de comunicação tem também um papel central. Para
Jakobson, o princípio da homogeneidade do código linguístico, postulado
por Saussure (1916), e adotado pela Linguística, “não passa de uma ficção
desconcertante”,9 já que todo indivíduo participa de diferentes comunidades
linguísticas e todo código linguístico é “multiforme e compreende uma
hierarquia de subcódigos diversos, livremente escolhidos pelo sujeito
falante”,10 segundo a função da mensagem, do interlocutor ao qual se dirige
e da relação existente entre os falantes envolvidos na situação
comunicativa.
Para Jakobson (1960), o ponto de partida é o processo comunicativo
amplo, e isso o leva a ultrapassar a óptica estreita de uma análise do
fenômeno linguístico ancorada apenas em suas características estruturais.
Ao privilegiar o processo comunicativo, o referido autor privilegia também
os aspectos funcionais da linguagem. É o que podemos ver com clareza em
seu célebre artigo “Linguística e poética”, em que Jakobson identifica os
fatores constitutivos de todo ato de comunicação verbal: o remetente, a
mensagem, o destinatário, o contexto, o canal e o código. Cada um desses
fatores determina uma diferente função de linguagem, seguindo-se, então,
que “a estrutura verbal de uma mensagem depende basicamente da função
predominante”.11 Assim é que, por exemplo, a predominância do fator
remetente configura a função emotiva ou expressiva, que exprime “a atitude
de quem fala em relação àquilo de que está falando”,12 e se evidencia, entre
outros procedimentos, pelo uso de interjeições, pela alteração de duração de
vogais (por exemplo, em português, graande).
Em 1956, o francês Marcel Cohen publicou Pour une sociologie du
langage — republicado, em 1971, com o novo título de Matériaux pour une
sociologie du langage — em que advoga a necessidade de um diálogo entre
as ciências humanas, afirmando que “os fenômenos linguísticos se realizam
no contexto variável dos acontecimentos sociais”.13 Mas, ao assumir o
postulado saussuriano de que é preciso separar aspectos internos e aspectos
externos no estudo das línguas, Cohen assume a questão das relações entre
linguagem e sociedade a partir da consideração de fatores externos. Nesse
sentido, o referido autor estabelece um repertório de tópicos de interesse
para um estudo sociológico da linguagem, como, por exemplo, o estudo das
relações entre as divisões sociais e as variedades de linguagem, que permite
abordar temas como: a distinção entre variedades rurais, urbanas e de
classes sociais, os estilos de linguagem (variedades formais e informais), as
formas de tratamento, a linguagem de grupos segregados (jargão de
estudantes, de marginais, de profissionais etc.).
Finalmente, alguns rápidos comentários sobre Benveniste, linguista
francês, cuja reflexão marcou profundamente a Linguística francesa
contemporânea em geral e, particularmente, o campo da Análise do
Discurso.14 Exporemos aqui apenas alguns comentários que tematizam a
questão das relações entre linguagem e sociedade. Para Benveniste (1963),
“é dentro da, e pela língua, que indivíduo e sociedade se determinam
mutuamente”,15 dado que ambos só ganham existência pela língua. É que a
língua é a manifestação concreta da faculdade humana da linguagem, isto é,
da faculdade humana de simbolizar. Sendo assim, é pelo exercício da
linguagem, pela utilização da língua, que o homem constrói sua relação
com a natureza e com os outros homens. Em outros termos, “a linguagem
sempre se realiza dentro de uma língua, de uma estrutura linguística
definida e particular, inseparável de uma sociedade definida e particular”.16
Logo, língua e sociedade não podem ser concebidas uma sem a outra.
Particularmente, em “Estrutura da língua e estrutura da sociedade”,
Benveniste (1968) discute a questão que nos interessa aqui. Segundo ele, “a
ideia de procurar entre estas duas entidades relações unívocas que fariam
corresponder tal estrutura social a tal estrutura linguística parece trair uma
visão muito simplista das coisas”.17 Isto porque sociedade e língua são
grandezas de ordem distinta, ou melhor, têm organizações estruturais
diversas. Assim é que a língua se organiza em unidades distintas, que são
em número finito, combináveis e hierarquizadas — o que não se observa na
organização social. Mas, segundo o autor, algumas propriedades aproximam
língua e sociedade: são realidades inconscientes, representam a natureza,
são sempre herdadas e não podem ser abolidas pela vontade dos homens.
Há, no entanto, uma dimensão privativa da língua, que a coloca em um
plano especial: seu poder coercitivo, que transforma um agregado de
indivíduos em uma comunidade, criando a possibilidade da produção e da
subsistência coletiva. Para Benveniste, a questão da relação entre língua e
sociedade se resolve pela consideração da língua como instrumento de
análise da sociedade. Ele afirma que a língua contém a sociedade e por isto
é o interpretante da sociedade. Esse papel de interpretante é garantido pelo
fato de que a língua é “o instrumento de comunicação que é e deve ser
comum a todos os membros da sociedade”, possibilitando, assim, “a
produção indefinida de mensagens em variedades ilimitadas”.18 Mais
exatamente: “a língua é necessariamente o instrumento próprio para
descrever, para conceitualizar, para interpretar tanto a natureza quanto a
experiência”.19 Além disso, a língua dá forma à sociedade ao exibir o
semantismo social, que consiste, principalmente, de designações, de fatos
de vocabulário. Particularmente, o vocabulário se apresenta como uma
fonte importante para os estudiosos da sociedade e da cultura, pois retém
informações sobre as formas e as fases da organização social, sobre os
regimes políticos etc. Essa linha de reflexão é exemplarmente representada
na obra de Benveniste (1969/1970) Vocabulário das instituições indo-
europeias.
Finalmente, cabe assinalar uma outra consideração relevante de
Benveniste. Para ele, a língua permite que o homem se situe na natureza e
na sociedade; o homem “se situa necessariamente em uma classe, seja uma
classe de autoridade ou classe da produção”.20 Em consequência, a língua,
sendo uma prática humana, “revela o uso particular que grupos ou classes
de homens fazem [dela] [...] e as diferenciações que daí resultam no interior
de uma língua comum”.21 Vemos, assim, que Benveniste articula a questão
da relação língua e sociedade no plano geral da construção do humano e,
particularmente, no plano das relações concretas e contingentes
estabelecidas na vida social.
O esboço feito até aqui pode ser reduzido a uma afirmação muito
simples: a questão da relação é óbvia e complexa ao mesmo tempo.
Sabemos que é inegável, mas também que a passagem do social ao
linguístico — e do linguístico ao social — não é feita com tranquilidade.
Não há consenso sobre o modo de tratar e de explicitar a questão da relação
entre linguagem e sociedade: o fato é que o lugar reservado a essa
consideração constitui um dos grandes “divisores de águas” no campo da
reflexão da Linguística contemporânea.
2. A SOCIOLINGUÍSTICA: FIXAÇÃO DE UM CAMPO DE ESTUDOS
O termo Sociolinguística, relativo a uma área da Linguística, fixou-se
em 1964. Mais precisamente, surgiu em um congresso, organizado por
William Bright, na Universidade da Califórnia em Los Angeles (UCLA), do
qual participaram vários estudiosos, que se constituíram, posteriormente,
em referências clássicas na tradição dos estudos voltados para a questão da
relação entre linguagem e sociedade: JohnGumperz, Einar Haugen,
William Labov, Dell Hymes, John Fisher, José Pedro Rona. Ao organizar e
publicar, em 1966, os trabalhos apresentados no referido congresso sob o
título Sociolinguistics, Bright escreve o texto introdutório “As dimensões da
Sociolinguística”,22 em que define e caracteriza a nova área de estudo. A
proposta de Bright para a Sociolinguística é a de que ela deve “demonstrar a
covariação sistemática das variações linguística e social. Ou seja, relacionar
as variações linguísticas observáveis em uma comunidade às diferenciações
existentes na estrutura social desta mesma sociedade”.23 Segundo o referido
autor, o objeto de estudo da Sociolinguística é a diversidade linguística. E,
como que estabelecendo um roteiro para atividades de pesquisa a serem
desenvolvidas na área da Sociolinguística, Bright, na mesma obra,
identifica um conjunto de fatores socialmente definidos, com os quais se
supõe que a diversidade linguística esteja relacionada, como:
a) identidade social do emissor ou falante — relevante, por exemplo, no
estudo dos dialetos de classes sociais e das diferenças entre falas
femininas e masculinas;
b) identidade social do receptor ou ouvinte — relevante, por exemplo,
no estudo das formas de tratamento, da baby talk ( fala utilizada por
adultos para se dirigirem aos bebês);
c) o contexto social — relevante, por exemplo, no estudo das diferenças
entre a forma e a função dos estilos formal e informal, existentes na
grande maioria das línguas;
d) o julgamento social distinto que os falantes fazem do próprio
comportamento linguístico e sobre o dos outros, isto é, as atitudes
linguísticas.
A propósito do nascimento da Sociolinguística, Bachmann et al. (1981)
tecem considerações interessantes. Segundo estes autores, o novo campo é
o lugar
onde vão se encontrar os herdeiros de tradições antigas como a da antropologia linguística —
caso de Hymes — ou da dialectologia social — como Labov — e de especialistas da
experimentação ou da intervenção social: psicólogos, sociólogos, e mesmo planificadores.24
Os referidos autores observam, também, que a Sociolinguística se
constitui e floresce no momento em que o formalismo, representado pela
gramática de Chomsky,25 alcança enorme repercussão, em rota para o seu
percurso vitorioso. Vemos, assim, que, de um lado, a preocupação com as
relações entre linguagem e sociedade tinha raízes históricas no contexto
acadêmico norte-americano, e também que a oposição entre uma
abordagem imanente da língua versus a consideração do contexto social é
posta com grande vitalidade no campo dos estudos linguísticos. De fato, a
constituição da Sociolinguística se fez, claramente, a partir da atividade de
vários estudiosos e pesquisadores que deram continuidade à tradição,
inaugurada no começo do século XX por F. Boas (1911) e seus discípulos
mais conhecidos — Edward Sapir (1921) e Benjamin L. Whorf (1941): a
chamada Antropologia Linguística. Nessa vertente, em que linguagem,
cultura e sociedade são considerados fenômenos inseparáveis, linguistas e
antropólogos trabalham lado a lado e, mesmo, de modo integrado. Nesse
sentido, o que há de novo é a definição de uma área explicitamente voltada
para o tratamento do fenômeno linguístico no contexto social no interior da
Linguística, animada pela atuação de linguistas e, particularmente, de
estudiosos formados em campos das ciências sociais. A Sociolinguística
nasce marcada por uma origem interdisciplinar. É oportuno assinalar que o
estabelecimento da Sociolinguística, em 1964, é precedido pela atuação de
vários pesquisadores, que buscavam articular a linguagem com aspectos de
ordem social e cultural. Destacaremos, aqui, dois desses pesquisadores. Em
1962, Hymes publica um artigo em que propõe um novo domínio de
pesquisa, a Etnografia da Fala, rebatizada mais tarde como Etnografia da
Comunicação.26 De caráter interdisciplinar, buscando a contribuição de
áreas como a Etnologia, a Psicologia e a Linguística, o novo domínio
pretende descrever e interpretar o comportamento linguístico no contexto
cultural e, deslocando o enfoque tradicional sobre o código linguístico,
procura definir as funções da linguagem a partir da observação da fala e das
regras sociais próprias a cada comunidade. Questões como Qual o
comportamento linguístico adequado para homens, mulheres e crianças na
comunidade X? ou Que momentos são adequados para o exercício da fala
na comunidade Y? podem ser tomadas como ponto de partida para
pesquisas em Etnografia da Comunicação. Mais tarde, Hymes (1972)
publicou um artigo de grande impacto — “Models of the interaction of
language and social life” — no qual estabelece os princípios teóricos e
metodológicos da Etnografia da Comunicação.
Em 1963, Labov publica seu célebre trabalho sobre a comunidade da
ilha de Martha’s Vineyard, no litoral de Massachusetts, em que sublinha o
papel decisivo dos fatores sociais na explicação da variação linguística, isto
é, da diversidade linguística observada. Nesse texto, o autor relaciona
fatores como idade, sexo, ocupação, origem étnica e atitude ao
comportamento linguístico manifesto dos vineyardenses, mais
concretamente, à pronúncia de determinados fones do inglês. Logo em
1964, Labov finaliza sua pesquisa sobre a estratificação social do inglês em
New York, em que fixa um modelo de descrição e interpretação do
fenômeno linguístico no contexto social de comunidades urbanas —
conhecido como Sociolinguística Variacionista ou Teoria da Variação, de
grande impacto na Linguística contemporânea.27 A segunda parte desse
capítulo tratará especificamente dessa vertente da Sociolinguística.
Assim, o rótulo “sociolinguística”, como foi possível observar, reuniu e
agregou, no seu início, pesquisadores marcados pela formação acadêmica
em diferentes campos do saber e marcados também pela preocupação com
as implicações teóricas e práticas do fenômeno linguístico na sociedade
norte-americana. Surgem, assim, pesquisas voltadas para as minorias
linguísticas (imigrantes porto-riquenhos, poloneses, italianos etc.),28 e para
a questão do insucesso escolar de crianças oriundas de grupos sociais
desfavorecidos (negros e imigrantes, particularmente). Em suma, a
realidade diversificada, tanto linguística como cultural dos Estados Unidos,
torna-se um ponto de reflexão básico para um contingente significativo de
estudiosos. A propósito, vale lembrar que, também em 1964, houve um
congresso em Bloomington, Indiana, em que linguistas e cientistas sociais
debateram questões relativas às relações interdisciplinares, ao campo da
dialectologia social, à escolarização de crianças provenientes de meio social
pobre e de origem estrangeira. Três obras referenciais foram organizadas a
partir dos trabalhos apresentados nesse congresso: Ferguson (1965)
Directions in Sociolinguistics: report on a interdisciplinary seminar,
Lieberson (1966) (org.) Explorations in Sociolinguistics, e Schuy (1964)
(org.) Social dialects and language learning.
3. A SOCIOLINGUÍSTICA: OBJETO, CONCEITOS, PRESSUPOSTOS
Pondo de maneira simples e direta, podemos dizer que o objeto da
Sociolinguística é o estudo da língua falada, observada, descrita e analisada
em seu contexto social, isto é, em situações reais de uso. Seu ponto de
partida é a comunidade linguística, um conjunto de pessoas que interagem
verbalmente e que compartilham um conjunto de normas com respeito aos
usos linguísticos. Em outras palavras, uma comunidade de fala se
caracteriza não pelo fato de se constituir por pessoas que falam do mesmo
modo, mas por indivíduos que se relacionam, por meio de redes
comunicativas diversas, e que orientam seu comportamento verbal por um
mesmo conjunto de regras. Tomemos, como exemplo, o uso do modo
imperativo em português. Para os falantes do português, o imperativo
denota ordem, exortação, conselho, solicitação, segundo o significado do
verbo e o tom de voz utilizado, como em: “Vai-te embora”; “Ouve este
conselho!”; “Vem cá!”; “Desce daí!”. Consideremos, agora, as seguintes
observações de Cunha e Cintra:
Atenuação.
Pordever social e moral, geralmente evitamos ferir a suscetibilidade de nosso interlocutor com a
rudeza de uma ordem. Entre os numerosos meios de que nos servimos para enfraquecer a noção
de comando, devemos ressaltar (além dos já estudados), pela sua eficiência, o emprego de
fórmulas de polidez ou de civilidade, tais como: por favor, por gentileza, digne-se de, tenha a
bondade etc.:
— Fale mais alto, por favor! (F. Botelho, X, 177)
— Entrem, por favor, que não ocupam lugar — exclamou Seu Pio. (A. F. Schmidt, GB, 165)
— Tenham a bondade de sentar e esperar um momento. [= Sentem-se e esperem um momento.]
(R. Braga, CCE, 272)
É claro que também aqui o tom de voz é de uma suma importância. Qualquer dessas frases pode,
não obstante as fórmulas de cortesia empregadas, tornar-se rude e seca, ou mesmo insolente, com
a simples mudança de entoação.29
A depender do alcance e dos objetos de um trabalho de natureza
sociolinguística, podemos selecionar e descrever comunidades de fala como
a cidade de New York ou a cidade do Rio de Janeiro, de São Paulo, de
Belém. Ou o povo ianomâmi, que vive no Estado do Amapá. Ou, ainda, as
comunidades dos pescadores do litoral do Estado do Rio de Janeiro, da Ilha
de Marajó, dos estudantes de Direito, dos rappers etc.
Ao estudar qualquer comunidade linguística, a constatação mais
imediata é a existência de diversidade ou da variação. Isto é, toda
comunidade se caracteriza pelo emprego de diferentes modos de falar. A
essas diferentes maneiras de falar, a Sociolinguística reserva o nome de
variedades linguísticas. O conjunto de variedades linguísticas utilizado por
uma comunidade é chamado repertório verbal. Assim é que, a propósito da
cidade de Bruxelas, na Bélgica — país caracterizado pelo bilinguismo
francês-flamengo (variedade do holandês) — Fishman aponta:
Os funcionários administrativos do Governo, em Bruxelas, que são de origem flamenga, nem
sempre falam holandês entre si, mesmo quando todos sabem holandês muito bem e igualmente
bem. Não só há ocasiões em que falam francês entre si, em vez de holandês, como também há
algumas ocasiões em que falam entre si o holandês standard enquanto em outras usam esta ou
aquela variedade regional do holandês. De fato, alguns da mesma forma usam diferentes
variedades de francês: uma variedade particularmente carregada de termos administrativos
oficiais, outra correspondendo ao francês não técnico falado nos círculos de educação superior e
refinados da Bélgica, e, ainda outra, que não é apenas um “francês mais coloquial” mas o francês
coloquial dos que são flamengos. Em suma, essas diversas variedades de holandês e de francês
constituem o repertório linguístico de certos complexos sociais flamengos em Bruxelas.30
Caso consideremos uma comunidade como a de Salvador, observaremos
que o seu repertório linguístico se constitui de variedades linguísticas
distintas, dado que os habitantes da cidade falam de modo diferente em
função, por exemplo, de sua origem regional, de sua classe social, de suas
ocupações, de sua escolaridade e também da situação em que se encontram.
Assim é que um falante que pronuncia a palavra “doido” como [dojdӡʊ]
revela sua proveniência da região interiorana, assim como a pronúncia da
palavra “cozinha” como [kũŋʼzĩɐ] indica, além da origem social, a sua
pouca escolaridade. Um mesmo habitante de Salvador, segundo a situação
em que se encontrar, poderá optar entre usar as expressões “Fiquei retado”
ou “Fiquei aborrecido’’, assim como entre “João convidou ele” ou “João o
convidou”.
Qualquer língua, falada por qualquer comunidade, exibe sempre
variações. Pode-se afirmar mesmo que nenhuma língua se apresenta como
uma entidade homogênea. Isso significa dizer que qualquer língua é
representada por um conjunto de variedades. Concretamente: o que
chamamos de “língua portuguesa” engloba os diferentes modos de falar
utilizado pelo conjunto de seus falantes do Brasil, em Portugal, em Angola,
Moçambique, Cabo Verde, Timor etc.
Língua e variação são inseparáveis: a Sociolinguística encara a
diversidade linguística não como um problema, mas como uma qualidade
constitutiva do fenômeno linguístico. Nesse sentido, qualquer tentativa de
buscar apreender apenas o invariável, o sistema subjacente — se valer de
oposições como “língua e fala”, ou competência e performance — significa
uma redução na compreensão do fenômeno linguístico. O aspecto formal e
estruturado do fenômeno linguístico é apenas parte do fenômeno total.
3.1. A variação linguística: um recorte
Todas as línguas do mundo são sempre continuações históricas. Em
outras palavras, as gerações sucessivas de indivíduos legam a seus
descendentes o domínio de uma língua particular. As mudanças temporais
são parte da história das línguas. Dois exemplos de mudança histórica no
português são ilustrativos:
a) no português arcaico (entre os séculos XII e XVI), ocorriam
construções impessoais em que a indeterminação do sujeito era
indicada pelo vocábulo “homem”, com o mesmo sentido que,
atualmente, usamos o pronome “se”. Por exemplo: “E pode homem
hyr de Santarem a Beia [Beja] em quatro dias”,31 que corresponde,
modernamente, a “E pode-se ir de Santarém a Beja em quatro dias”;
b) a forma de tratamento “Vossa Senhoria” é atestada nos meados do
século XV como expressão reservada ao rei. Já no final do século
XVI, esta perde seu estatuto de realeza, sendo empregada no trato
com arcebispos, bispos, duques, marqueses, condes, além de uma
gama de altos funcionários (como, por exemplo, vice-rei ou
governador da Índia).32
No plano sincrônico, as variações observadas nas línguas são
relacionáveis a fatores diversos: dentro de uma mesma comunidade de fala,
pessoas de origem geográfica, de idade, de sexo diferentes falam
distintamente. É bom frisar que não existe nenhuma relação de causalidade
entre o fato de nascer em uma determinada região, ser de uma classe social
determinada etc., e falar de uma certa maneira.
Os falantes adquirem as variedades linguísticas próprias a sua região, a
sua classe social etc. De uma perspectiva geral, podemos descrever as
variedades linguísticas a partir de dois parâmetros básicos: a variação
geográfica (ou diatópica) e a variação social (ou diastrática).
A variação geográfica ou diatópica está relacionada às diferenças
linguísticas distribuídas no espaço físico, observáveis entre falantes de
origens geográficas distintas. Alguns exemplos:
a) brasileiros e portugueses se distinguem em vários aspectos de sua
fala. No plano lexical, apenas um exemplo: “combóio” em Portugal,
“trem” no Brasil. No plano fonético: a pronúncia aberta da vogal
anterior média como em “prémio” [‘], em contraste com a
pronúncia fechada no Brasil, “prêmio” [‘]. No plano
gramatical: derivações diversas de uma raiz comum, como em
ficheiro, paragem, bolseiro, que no Brasil correspondem a fichário,
parada e bolsista; a colocação de advérbios como em “Lá não vou”
(Portugal) e “Não vou lá” (Brasil);33
b) entre falantes brasileiros originários das regiões nordeste (incluída a
Bahia) e sudeste, percebemos diferenças fonéticas, como, por
exemplo, a pronúncia de vogais médias pretônicas — como ocorre
na palavra “melado” — pronunciadas como vogais abertas no
nordeste [’] e fechadas no sudeste [’]. Percebemos
também diferenças gramaticais, como, por exemplo, a preferência
pela posposição verbal da negação, como em “sei não” (nordeste) e
“não sei” (ou, “não sei, não’’, no sudeste); o uso do artigo definido
antes de nomes próprios como em “Falei com Joana” (nordeste) e
“Falei com a Joana” (sudeste);
c) no Estado da Bahia, por exemplo, a origem urbana ou rural pode ser
evidenciada pelo uso da expressão “de primeiro” [di primero], em
lugar de “antigamente”, “anteriormente”.
Tomando-se a comunidade de fala de língua portuguesa como um todo,
podemo-nos referir às variedades brasileira, portuguesa, baiana, curitibana,
rural paulista (ou caipira) etc.
A variação social ou diastrática, por sua vez, relaciona-se a um conjunto
de fatores que têm a ver com a identidadedos falantes e também com a
organização sociocultural da comunidade de fala. Neste sentido, podemos
apontar os seguintes fatores relacionados às variações de natureza social: a)
classe social; b) idade; c) sexo; d) situação ou contexto social. Em relação
aos três primeiros fatores, nos limitaremos a fornecer exemplos, remetendo,
para um tratamento variacionista dos fatores em questão, à segunda parte
deste capítulo. No que diz respeito ao fator situação ou contexto social,
faremos uma exposição um pouco mais aprofundada.
a) Classe social: observemos alguns exemplos indicativos de
pertencente à fala de grupos situados abaixo na escala social:
— uso de dupla negação, como em “ninguém não viu”, “eu nem num
gosto”;
— presença de [r], em lugar de [l], em grupos consonantais, como
em “brusa” (blusa) e “grobo” (globo);
— na Índia, existem as castas brâmane (superior), não brâmane
(média) e intocável (inferior), que correspondem à hierarquia
social vigente. Na área de Bangalore, a língua Kannada apresenta
dados relativos a esta diferenciação social: a palavra “nome” tem
as formas /hesru/, “hesru”, na variedade coloquial dos brâmanes,
e /yesru/, “yesru”, na variedade não brâmane; a expressão “com
licença” é realizada como /kšamisu/, “kšamisu”, na variedade
coloquial dos brâmanes e /cemsu/, “cemsu”, na variedade
coloquial dos não brâmanes (Bright, 1960).
b) Idade:
— o uso de léxico particular, como presente em certas gírias
(“maneiro”, “esperto”, com o sentido de avaliação positiva sobre
coisas, pessoas e situações), denota faixa etária jovem;
— uso de pronome tu em situações de interação entre iguais no Rio
de Janeiro, como em “Tu viu só?”, também sugere que os
falantes são jovens;
— a pronúncia fechada da vogal tônica posterior da palavra
“senhora” [’], em lugar de [’], é característica de
alguns falantes mais velhos.
c) Sexo:
— a duração de vogais como recurso expressivo, como em
“maaravilhoso”, costuma ocorrer na fala de mulheres (Camacho,
1978), assim como o uso frequente de diminutivos, como
“bonitinho”, “gostosinho”, “vermelhinho”;
— na língua Zuñi, falada por um grupo indígena da América do
Norte, os fones [ty] e [c] falados por pessoas do sexo feminino
correspondem a [ky] na fala masculina;
— no japonês, para o pronome de primeira pessoa eu, além de uma
forma utilizável por todos os falantes, existem as formas “atashi”,
usada exclusivamente por mulheres, e “boku”, própria aos
homens.
d) Situação ou contexto social: é um fato muito conhecido que qualquer
pessoa muda sua fala, de acordo com o(s) seu(s) interlocutor(es) —
se este é mais velho ou hierarquicamente superior, por exemplo —,
segundo o lugar em que se encontra — em um bar, em uma
conferência — e até mesmo segundo o tema da conversa — fofoca,
assunto científico. Ou seja, todo falante varia sua fala segundo a
situação em que se encontra.
Fishman (1972) assim se pronuncia: “uma situação é definida pela
coocorrência de dois (ou mais) interlocutores mutuamente relacionados de
uma maneira determinada, comunicando sobre um determinado tópico, num
contexto determinado”.34 Uma definição desse tipo possibilita descrever os
padrões de uma determinada sociedade com respeito ao uso das variedades
linguísticas. Isto é, qual o comportamento linguístico adequado às situações
em que se encontram os falantes. Consideremos, por exemplo, a situação de
uma defesa de tese e a comemoração que se segue à aprovação desta tese,
que envolve as mesmas pessoas. As diferenças existentes entre as duas
situações — tema das conversas, local etc. — podem fazer com que uma
sociedade considere adequado utilizar variedades linguísticas diferentes ou
a mesma. Segue-se, então, que cada grupo social estabelece um contínuo de
situações cujos polos extremos e opostos são representados pela
formalidade e informalidade. Em nossa sociedade, conferências, entrevistas
para obtenção de emprego, solicitação de informação a um desconhecido,
contato entre vendedores e clientes são, em geral, vistos como situações
formais. Já situações como passeatas, mesas redondas sobre esporte, bate-
papo em bar, festas de Natal nas empresas são definidas como informais. As
variedades linguísticas utilizadas pelos participantes das situações devem
corresponder às expectativas sociais convencionais: o falante que não
atender às convenções pode receber algum tipo de “punição”, representada,
por exemplo, por um franzir de sobrancelhas.
Há um tipo de interação social particular em que um falante decide
mudar de variedade linguística sem que tenha ocorrido mudança de
situação: é o que Fishman (1972) chama de mudança metafórica. Um bom
exemplo é uma conversa em que o pai interroga a filha nos seguintes
termos: “Aonde a senhora pensa que vai?” — em que o uso da forma de
tratamento “senhora” está obviamente carregado de ironia.
Aprende-se a falar na convivência. Mas, mais do que isso, aprendemos
quando devemos falar de um certo modo e quando devemos falar de outro.
Os indivíduos que integram uma comunidade precisam saber quando devem
mudar de uma variedade para outra. Segundo Fishman (1972), os membros
de qualquer comunidade “adquirem lenta e inconscientemente as
competências comunicativa e sociolinguística, com respeito ao uso
apropriado da língua”.35 Em termos concretos, é possível afirmar que os
falantes aprendem quando podem falar e quando devem permanecer em
silêncio, se podem utilizar a forma imperativa para dar uma ordem ou se
devem se valer de uma expressão modalizada, como em “saiam daqui, já”
ou “por favor, dirijam-se à saída”; se é oportuno dizer “tô fora” ou “não vai
ser possível”; ou, ainda, “a gente não sabia” ou “não sabíamos”, ou ainda
“desconhecíamos”.
Às variações linguísticas relacionadas ao contexto chamamos de
variações estilísticas ou registros. Nesse sentido, os falantes diversificam
sua fala — isto é, usam estilos ou registros distintos — em função das
circunstâncias em que ocorrem suas interações verbais. Segundo Camacho,
os falantes adequam suas formas de expressão às finalidades específicas de
seu ato enunciativo, sendo que tal adequação “decorre de uma seleção
dentre o conjunto de formas que constitui o saber linguístico individual, de
um modo mais ou menos consciente”.36 A seleção de formas envolve,
naturalmente, um grau maior ou menor de reflexão, por parte do falante: o
uso do estilo formal, em relação ao informal, requer uma atuação mais
consciente. Assim é que observamos estilos distintos quando um falante
conversa com um amigo ou com vizinhos recém-conhecidos, ou com um
médico, durante uma consulta, bem como ao escrever um bilhete a um
colega de faculdade, uma carta à seção de leitores de um jornal ou ao
elaborar um relatório dirigido a um superior no trabalho. A terminologia
para se referir aos diferentes estilos de fala não é nada precisa. Utilizamos,
muito genericamente, expressões como estilos formal, informal, coloquial,
familiar, pessoal.
A noção de situação — tal como foi definida — tem um alcance restrito,
reduzindo-se, praticamente, à consideração da cena em que ocorrem as
interações verbais. É útil e produtivo entender situação de uma perspectiva
mais abrangente, a saber, como o contexto social global de uma
comunidade, com suas marcas históricas e culturais próprias. Pensamos
aqui, particularmente, nos contextos ritualísticos e religiosos que, tomados
como ponto de partida, sugerem o estudo de variedades e usos linguísticos
especiais. Assim, por exemplo, o contexto das tradições religiosas sugere o
estudo das linguagens esotéricas, das fórmulas e invocações propiciatórias
às práticas da relação com o mundo do sagrado. O contexto da ordenação
jurídica, por sua vez, sugere o estudo das variedades linguísticas
particulares utilizadas pelos tabeliães, advogados, juízes e promotores nos
julgamentos.
No campo dos usos religiosos, cabe citar o fascinante trabalho de
Michel Leiris (1948), La langue secrète des Dogon de Sanga, que se ocupa
da língua iniciática do povo Dogon que habita uma região do atual Mali
(antigo Sudão Francês).Sobre a comunidade brasileira, há um interessante
estudo de Maria Izabel S. Magalhães (1985), The rezas and benzeções:
healing speech activities in Brazil, que focaliza a prática linguística de
benzedores, a partir de dados coletados em cidades-satélites de Brasília.
W. M. O’Barr e J. F. O’Barr (1976) organizaram um volume, de extremo
interesse — Language and politics — em que analisam a questão das
relações entre linguagem e o funcionamento do sistema de ordenações
legais na Índia e na Tanzânia, dois países que compartilham algumas
características marcantes: são ex-colônias inglesas, sociedades plurilíngues
e precisam pensar a questão da relação entre a herança histórica tradicional
e a recente, produzida pelo colonialismo inglês.
Os parâmetros da variação linguística são diversos, como se pode inferir
da exposição feita até aqui. Para efeito de apresentação, isolamos os fatores
a que a variação linguística, como um todo, está relacionada. Não podemos
deixar de apontar, no entanto, que, na realidade das relações sociais, os
fatores de variação se encontram imbricados. No ato de interagir
verbalmente, um falante utilizará a variedade linguística relativa a sua
região de origem, classe social, idade, escolaridade, sexo etc. e segundo a
situação em que se encontrar. Por exemplo: um brasileiro, nascido em
Recife, apresentará, sempre, vogais pretônicas abertas como em []
“real”, mas ainda a depender de sua escolaridade, da origem rural ou
urbana, utilizará o verbo “assuntar” ou “prestar atenção” e, a depender da
situação, dirá “Fui nada” ou “Fui não”.
3.2. As variedades linguísticas e a estrutura social
Como já foi dito, em qualquer comunidade de fala, podemos observar a
coexistência de um conjunto de variedades linguísticas. Essa coexistência,
entretanto, não se dá no vácuo, mas no contexto das relações sociais
estabelecidas pela estrutura sociopolítica de cada comunidade. Na realidade
objetiva da vida social, há sempre uma ordenação valorativa das variedades
linguísticas em uso, que reflete a hierarquia dos grupos sociais. Isto é, em
todas as comunidades existem variedades que são consideradas superiores e
outras inferiores. Em outras palavras, como afirma Gnerre, “uma variedade
linguística ‘vale’ o que ‘valem’ na sociedade os seus falantes, isto é, vale
como reflexo do poder e da autoridade que eles têm nas relações
econômicas e sociais”.37 Constata-se, de modo muito evidente, a existência
de variedades de prestígio e de variedades não prestigiadas nas sociedades
em geral. As sociedades de tradição ocidental oferecem um caso particular
de variedade prestigiada: a variedade padrão. A variedade padrão é a
variedade linguística socialmente mais valorizada, de reconhecido prestígio
dentro de uma comunidade, cujo uso é, normalmente, requerido em
situações de interação determinadas, definidas pela comunidade como
próprias, em função da formalidade da situação, do assunto tratado, da
relação entre os interlocutores etc. A questão da língua padrão tem uma
enorme importância em sociedades como a nossa. Algumas considerações a
seu respeito se impõem.
A variedade padrão de uma comunidade — também chamada norma
culta, ou língua culta — não é, como o senso comum faz crer, a língua por
excelência, a língua original, posta em circulação, da qual os falantes se
apropriam como podem ou são capazes. O que chamamos de variedade
padrão é o resultado de uma atitude social ante a língua, que se traduz, de
um lado, pela seleção de um dos modos de falar entre os vários existentes
na comunidade e, de outro, pelo estabelecimento de um conjunto de normas
que definem o modo “correto” de falar. Tradicionalmente, o melhor modo
de falar e as regras do bom uso correspondem aos hábitos linguísticos dos
grupos socialmente dominantes. Em nossas sociedades de tradição
ocidental, a variedade padrão, historicamente, coincide com a variedade
falada pelas classes sociais altas, de determinadas regiões geográficas. Ou
melhor, coincide com a variedade linguística falada pela nobreza, pela
burguesia, pelo habitante de núcleos urbanos, que são centros do poder
econômico e do sistema cultural predominante.
Fishman (1970) define a padronização, isto é, o estabelecimento da
variedade padrão, como um tratamento social característico da língua, que
se verifica quando há diversidade social suficiente e necessidade de
elaboração simbólica. Em outras palavras, a definição de uma variedade
padrão representa o ideal da homogeneidade em meio à realidade concreta
da variação linguística — algo que, por estar acima do corpo social,
representa o conjunto de suas diversidades e contradições. A variedade
alçada à condição de padrão não detém propriedades intrínsecas que
garantem uma qualidade “naturalmente” superior às demais variedades. Na
verdade, a padronização é sempre historicamente definida. Isto é, cada
época determina o que considera como forma padrão: determinadas
pronúncias, construções gramaticais e expressões lexicais. Segue-se, então,
que certas formas podem ser consideradas como pertencentes à variedade
padrão em uma época e deixar de sê-lo em outra. As línguas mudam
incessantemente, e a definição do “certo”, do “agradável” e do “adequado”
também. Na prática, podemos concordar com Fishman, o que é padrão pode
tornar-se não padrão, e o que é considerado não padrão pode ser
estabelecido como padrão. A história da língua portuguesa, como a de
tantas outras, oferece-nos inumeráveis exemplos dessa ordem de fatos.
Consideremos, a propósito, os seguintes exemplos do século XVI:
— as formas “dereito”, “despois”, “frecha”, “frito”, “premeiramente”,
hoje desabonadas, são encontradas no texto da carta de Pero Vaz de
Caminha, de 1500;
— as formas “frauta”, “escuitar”, “intonce”, assim como as construções
sintáticas do tipo “deseja de comprar” (com a presença da
preposição de) e “se esta gente, cuja valia e obra tanto amaste/não
queres que padeçam vitupério” (concordância do sujeito gente com o
verbo flexionado no plural) — hoje consideradas incorretas — são
encontradas em Os Lusíadas, de Camões (1572).
Como se vê, representações de pronúncias e construções gramaticais
atestadas em textos legitimados não são mais consideradas como “bom
uso”. Como entender, então, que ocorrências equivalentes, tão vivas em
variedades não padrões contemporâneas, como por exemplo “Framengo”,
“ele deve de sair, agora” e “a gente fomos lá”, sejam consideradas como
“erradas”, “fruto de ignorância”? A fala das classes altas mudou e a de
outros grupos sociais reteve esses usos: esse foi o “erro”.
A avaliação social das variedades linguísticas é um fato observável em
qualquer comunidade da fala. Frequentemente, ouvimos falar em línguas
“simples”, “inferiores”, “primitivas”. Para a Linguística, esse tipo de
afirmação carece de qualquer fundamento científico. Toda língua é
adequada à comunidade que a utiliza, é um sistema completo que permite a
um povo exprimir o mundo físico e simbólico em que vive. É
absolutamente impróprio dizer que há línguas pobres em vocabulário. Não
existem também sistemas gramaticais imperfeitos. Seria um contrassenso
imaginar seres humanos com uma “meia língua”. A falta de léxico
específico para descrever, por exemplo, a astronomia na língua de um povo
corresponde ao desinteresse por este assunto: a sociedade não tem
necessidade de dominar este dado do real. Caso a sociedade necessite, basta
fazer empréstimos linguísticos: o contato cultural com outros povos, o
conhecimento de novos conteúdos ou a descoberta de realidades até então
desconhecidas são o motor da elaboração de novos conceitos e da produção
de novas palavras. Quanto ao aspecto gramatical, o estudo das mais
distintas línguas tem revelado que ele se apresenta sempre como um sistema
organizado e coerente de regras. As línguas diferem entre si em numerosos
aspectos, e essas diferenças correspondem ao patrimônio expressivo da
humanidade.
Assim como não existem línguas “inferiores”, não existem variedades
linguísticas “inferiores”. Como vimos, as línguas não são homogêneas ea
variação observável em todas elas é produto de sua história e do seu
presente. Em que se baseiam, então, as avaliações sociais? Podemos
afirmar, com toda tranquilidade, que os julgamentos sociais ante a língua —
ou melhor as atitudes sociais — se baseiam em critérios não linguísticos:
são julgamentos de natureza política e social. Não é casual, portanto, que se
julgue “feia” a variedade dos falantes de origem rural, de classe social
baixa, com pouca escolaridade, de regiões culturalmente desvalorizadas.
Por que se considera “desagradável” o r retroflexo, o chamado r caipira,
presente em realizações como [’p] “porta”? Afinal, a mesma articulação
retroflexa ocorre em palavras do inglês como [ka] “car” (carro), que
ninguém sente como “feia”. Em resumo: julgamos não a fala, mas o falante,
e o fazemos em função de sua inserção na estrutura social.
Para a Sociolinguística, a natureza variável da língua é um pressuposto
fundamental, que orienta e sustenta a observação, a descrição e a
interpretação do comportamento linguístico. As diferenças linguísticas,
observáveis nas comunidades em geral, são vistas como um dado inerente
ao fenômeno linguístico. A não aceitação da diferença é responsável por
numerosos e nefastos preconceitos sociais e, neste aspecto, o preconceito
linguístico tem um efeito particularmente negativo. A sociedade reage de
maneira particularmente consensual quando se trata de questões
linguísticas: ficamos unanimemente chocados diante da palavra inadequada,
da concordância verbal não realizada, do estilo impróprio à situação de fala.
A intolerância linguística é um dos comportamentos sociais mais facilmente
observáveis, seja na mídia, nas relações sociais cotidianas, nos espaços
institucionais etc. A rejeição a certas variedades linguísticas, concretizada
na desqualificação de pronúncias, de construções gramaticais e de usos
vocabulares, é compartilhada sem maiores conflitos pelos não especialistas
em linguagem. O senso comum opera com a ideia de que existe uma língua
— o bem social à disposição de todos — que é adquirida distintamente, em
função de condições diversas, pelos falantes. Na realidade, existe sempre
um conjunto de variedades linguísticas em circulação no meio social.
Aprende-se a variedade a que se é exposto, e não há nada de errado com
essas variedades. Os grupos sociais dão continuidade à herança linguística
recebida. Nesse sentido, é preciso ter claro que os grupos situados embaixo
na escala social não adquirem a língua de modo imperfeito, não deturpam a
língua “comum”. A homogeneidade linguística é um mito, que pode ter
consequências graves na vida social. Pensar que a diferença linguística é
um mal a ser erradicado justifica a prática da exclusão e do bloqueio ao
acesso a bens sociais. Trata-se sempre de impor a cultura dos grupos
detentores do poder (ou a eles ligados) aos outros grupos — e a língua é um
dos componentes do sistema cultural. A existência de uma variedade
padrão, que desloca todas as outras variedades linguísticas e cria um
contexto de relações assimétricas entre falantes de uma comunidade, é um
exemplo objetivo dessa questão. Cabe aos usuários das variedades não
padrões adotar a variedade socialmente aceitável — pelo menos, em certas
circunstâncias, como em situação de fala pública ou durante uma entrevista
em uma agência de emprego. Por que aprender um outro modo de falar?
Onde adquirir este outro modo de falar? A motivação para falar um outro
modo de falar é sempre social, e isso pode ser produzido pela escola, ou
pela experiência social. De qualquer maneira, a decisão de falar de um
modo distinto daquele que aprendemos não se concretiza facilmente: há
sempre um longo caminho a percorrer, tanto mais longo quanto mais
distante se encontra o falante dos padrões linguísticos e culturais
legitimados.
4. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Marcada por uma heterogeneidade original, a Sociolinguística dos anos
1960 pode ser vista como o ponto de partida de novas correntes e
orientações de pesquisas, centradas no trato do fenômeno linguístico
relacionado ao contexto social e cultural, que se distinguem, de forma mais
evidente, pela vinculação explícita a algum campo das ciências humanas.
De uma perspectiva bem geral, podemos apontar a Antropologia e a
Sociologia como áreas relevantes. Dentre estas correntes, destacaremos
apenas algumas:
— a Sociologia da Linguagem, representada por J. Fishman;
— a Sociolinguística Interacional, ligada ao nome de J. Gumperz;
— a Dialectologia Social, associada ao trabalho de estudiosos como R.
Shuy e P. Trudgil;
— a Etnografia da Comunicação, inseparável do nome de D. Hymes,
referida anteriormente. Caberia, também, uma referência, nesta
vertente, aos trabalhos de R. Bauman e J. Sherzer, voltados,
particularmente, para a questão da arte verbal e da poética dos
gêneros de fala.
Algumas antologias, bastante citadas, oferecem uma visão da produção
no campo da Sociolinguística e permitem observar a diversidade de temas
estudados e de abordagens praticadas, como, por exemplo: Pride, J. B. e
Holms, J. (1972) (orgs.), Sociolinguistics; Giglioli, P. P. (1974) (Org.).
Language and social context; Coupland, N.; Jaworski, A. (1997) (Orgs.).
Sociolinguistics. Duas outras referências merecem ser feitas: a coletânea de
trabalhos representativos da Sociolinguística praticada no mundo românico
— Dittmar, N.; Schlieben-Lange, B. (1982) (Orgs.). La sociolinguistique
dans les pays de langue romane — e o número 89 do periódico
International Journal of Sociology of Language (1989), dedicado à
produção brasileira.
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2. Câmara Jr., J. M. Op. cit., p. 50.
3. Câmara Jr., J. M. Op. cit., p. 51.
4. Saussure, F. de. Curso de linguística geral. 3. ed. São Paulo: Cultrix, 1981. (Título orginal,
1916b)
5. Saussure, F. de. Op. cit., p. 17.
6. Saussure, F. de. Op. cit., p. 31.
7. O texto original de MEILLET é o que se segue: “Or, le langage est éminement un fait social. On
a souvent repeté que les langues n’existent pas en dehors des sujets que les parlent, et que par suite
on n’est pas fondé à leur attribuer une existence autonome, un être propre. C’est une constatation
évidente, mais sans portée, comme la plupart des propositions évidentes. Car si la réalité d’une
langue n’est pas quelque chose de substantiel, elle n’en existe pas moins. Cette realité est à la fois
linguistique et sociale”. In: Meillet, A. Esquisse d’une histoire de la langue latine. Paris: Klincksiek,
1977. p. 16. (Título original, 1928)
8. Bakhtin, M. Marxismo e filosofia da linguagem. 5. ed. São Paulo: Hucitec, 1990. p. 123. (Título
original, 1929)
9. Jakobson, R. Relações entre a ciência da linguagem e as outras ciências. Lisboa: Bertrand,
1973. p. 29.
10. Ibidem, p. 29.
11. Jakobson, R. Linguística e poética. In: Linguística e comunicação. São Paulo: Cultrix, 1970.
p.123. (Título original, 1960)
12. Jakobson, R. Linguística e comunicação. São Paulo: Cultrix, 1970. p.124
13. O texto original de Cohen (1956) é o que se segue: “Les phénomènes linguistiques se realizent
dans le cadre changeant des événements sociaux”. In: Cohen, M. Matériaux pour une sociologie du
langage. Paris: Maspero, 1956. v. 2, p. 30.
14. Cf. particularmente o famoso artigo de Benveniste, “O aparelho formal da enunciação”, in
Benveniste, E., Problemas de linguística geral II. São Paulo: Editora Nacional/EDUSP, 1989. (Título
original, 1974).
15. Benveniste, E. Problemas de linguística geral. São Paulo: Editora Nacional/EDUSP, 1976. p.
27.
16. Ibidem, p. 31.
17. Benveniste, E. Problemas de linguística geral II. São Paulo: Editora Nacional/EDUSP, 1989.
p. 95. (Título original, 1968)
18. Ibidem, p. 98.
19. Ibidem, p. 99.
20. Ibidem, p. 101.
21. Ibidem, p. 102.22. Ver Bright, W. As dimensões da sociolinguística. In: Fonseca, M. S.; Neves, M. F. (Orgs.).
Sociolinguística. Rio de Janeiro: Eldorado, 1974.
23. Ibidem, p. 34.
24. Bachmann, C. et al. Language et communications sociales. Paris: Hatier, 1974. p. 17.
25. Remetemos o leitor ao capítulo “Sintaxe” neste mesmo volume.
26. Hymes, D. The ethnography of speaking. In: Gladwin, T.; Stutervant, W. C. (Orgs.).
Anthropology and human behavior. Washington, D.C.: The Anthropological Society of Washington,
1964. (Título original, 1962)
27. Labov, W. The stratification of English in New York City. Washington, D.C.: Center for
Applied Linguistics, 1966.
28. Ver Fishman, J. A . et al. Language loyalty in the United States. The Hague: Mouton, 1966.
Ver também Fishman, J. A. et al. Bilingualism in the Barrio: the measurement and description of
language dominance in bilinguals. Washington, D.C.: Dept. of Health, Education and Welfare, 1968.
29. Cunha, C.; Cintra, L. F. L. Nova gramática do português contemporâneo. Rio de Janeiro:
Nova Fronteira, 1985.
30. Fishman, J. A. A sociologia da linguagem. In: Fonseca, M. S. V.; Neves, M. F. (Orgs.).
Sociolinguística. Rio de Janeiro: Eldorado, 1974. p. 28.
31. Dias, A. E. S. Sintaxe histórica portuguesa. 4. ed. Lisboa: Clássica, 1959. p. 22. (Título
original, 1884)
32. Cintra, L. F. L. Origens do sistema de formas de tratamento do português actual. In: Sobre as
“formas de tratamento” na língua portuguesa. Lisboa: Horizonte, 1972. (Título original, 1965)
33. Ver Câmara Jr., J. M. Línguas europeias de ultramar: o português do Brasil. In: Dispersos. Rio
de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 1975. (Título original, 1963) Ver também Boléo, M. P.
Brasileirismo. Brasília, v. 3, p. 3-42, 1943.
34. Fishman, J. A. A sociologia da linguagem. In: Fonseca, M. S. V.; Neves, M. F. (Orgs.).
Sociolinguística. Rio de Janeiro: Eldorado, 1974. p. 29. (Título original, 1972)
35. Ibidem.
36. Camacho, R. A variação linguística. In: Subsídios à proposta curricular de língua portuguesa
para o segundo grau. São Paulo: CENP, Secretaria do Estado da Educação, 1978. v. IV, p. 17.
37. Gnerre, M. Linguagem, escrita e poder. São Paulo: Martins Fontes, 1985. cap. 1: Linguagem,
poder e discriminação, p. 4.
SOCIOLINGUÍSTICA
PARTE II
Roberto Gomes Camacho
1. O SURGIMENTO DA SOCIOLINGUÍSTICA
Todos concordam que o principal marco para o surgimento da
linguística moderna e, ao mesmo tempo, do estruturalismo, é a publicação
do Curso de linguística geral (Saussure [1916], 1977). O estruturalismo,
criatura que, como o monstro de Frankenstein, tomou vida independente até
da vontade de seu próprio criador, surgiu do corte operado por Saussure
(1977) nos fenômenos heteróclitos da linguagem, ao projetar, dos atos de
fala individuais, um modelo abstrato para seu estudo, que ele denominou
língua, “um sistema que conhece apenas sua ordem própria” (Saussure,
1977, p. 31).
Apesar da alegação saussuriana de que a língua é a parte social da
linguagem, a separação entre sistema e discurso, em toda a tradição
linguística que se seguiu a esse ato de criação, foi não só mantida, mas até
mesmo talvez aprofundada, por pesquisadores de escolas distintas como
Leonard Bloomfield, Louis Hjelmslev e Noam Chomsky. No entanto, alega
Calvet, coberto de razão, “as línguas não existem sem as pessoas que as
falam, e a história de uma língua é a história de seus falantes” (Calvet,
2002, p. 12). Embora Saussure identificasse a língua com uma instituição
social, o estruturalismo inaugurou um objeto que se define justamente pela
recusa de levar em conta o que a língua tem de social — ou, pelo menos, o
conceito de “social” em Saussure se delimita com o de relações pluri-
individuais (Calvet, 2002, p. 31).
Quando, no final da década de 1950, surgiu Chomsky (1957) com seu
Syntactic Structures, esse corte se manteve sob outra denominação e sob
nova direção teórica. Com efeito, o sistema linguístico se enquadrou na
moldura do conhecimento intuitivo do falante-ouvinte, um objeto de
natureza psicológica ou cognitiva, denominado competência, com o
descarte simultâneo dos atos de fala, infinitamente variáveis e variados,
que, relegados ao conceito de desempenho, ficaram destituídos de qualquer
importância teórico-metodológica.
Era esse o cenário quando, em maio de 1964, novas personagens
emergiram. Reuniram-se 25 pesquisadores na Universidade da Califórnia
em Los Angeles (UCLA) para uma conferência sobre sociolinguística
promovida por William Bright, que abriu espaço para o debate de uma
grande diversidade de temas, todos ligados à relação entre linguagem e
sociedade.1 Para não alongar muito o assunto, basta lembrar que, como
nova área de estudos, a tarefa atribuída à sociolinguística é a de
“demonstrar a covariação sistemática das variações linguística e social”
(Bright, [1966] 1974, p. 17), o que poderia ser retraduzido por “demonstrar
que na verdade tal variação ou diversidade não é ‘livre’, mas correlacionada
a diferenças sociais sistemáticas” (Bright, [1966] 1974, p. 18).
Segundo entende Calvet (2002), o texto de Bright ([1966] 1974) tem
hoje o valor histórico de registrar que o encontro de 1964 marca o
nascimento da sociolinguística; marca também a emergência de um modo
alternativo de fazer ciência, em oposição à gramática gerativa de Chomsky
que estava se impondo como o paradigma dominante, algo que Kuhn
(1974) chamaria de “ciência normal”. Na visão de Bright ([1966] 1974),
todavia, a sociolinguística só poderia ser concebida como uma abordagem
anexa aos fatos de língua em complementação à própria linguística formal,
à sociologia e à antropologia.
Dizer, como Bright ([1966] 1974), que a sociolinguística trata da relação
de covariação sistemática entre língua e sociedade é fazer uma afirmação
correta e ao mesmo tempo excessivamente simplificadora. As últimas três
décadas assistiram ao interesse cada vez mais crescente pelo estudo da
linguagem em uso no contexto social, mas os diversos enfoques que se
abrigaram sob o rótulo sociolinguística vêm cobrindo, desde o início, uma
grande variedade de assuntos.
Uma das áreas lida com a interação da linguagem ou situações dialetais
com fatores em grande escala, como decadência e assimilação de línguas
minoritárias, desenvolvimento de bilinguismo em nações socialmente
complexas, planejamento linguístico em nações emergentes. Esse tipo de
enfoque, comumente denominado Sociologia da linguagem, ligado
principalmente ao nome de Joshua Fishman, era, em sua criação, um ramo
das ciências sociais, na medida em que encara os sistemas linguísticos
como instrumentais em relação às instituições sociais mais amplas (cf.
Fishmann, 1971). Essa visão se alterou um pouco hoje em virtude da
necessidade que os linguistas se impuseram de buscar maior grau de
visibilidade social na comunidade leiga, mediante propostas de políticas
linguísticas.
Outra área de estudos, denominada Etnografia da comunicação (cf.
Hymes, 1974), interessa-se em descrever e analisar as formas dos eventos
de fala, especificamente, as regras que dirigem a seleção que o falante opera
em função da relação que ele contrai com o interlocutor, com o assunto da
conversa, e outras circunstâncias do processo de comunicação. Esse ramo
de estudos fortemente ligado ao nome de Hymes desemboca hoje em outros
cursos d’água igualmente caudalosos, como a Análise da Conversação (cf.
Sacks; Schegloff; Jefferson, 1974; Tannen, 1984) e a Sociolinguística
Interacional (cf. Gumperz, 1982).2
Uma terceira área de interesse, que podemos apropriadamente chamar
de Sociolinguística Variacionista, umbilicalmente ligada ao nome de
William Labov, trata do exame da linguagem no contexto social como
solução de problemas próprios da teoria da linguagem. Diferentemente do
modo acessório como Bright ([1966] 1974) enfoca a relação da
sociolinguística com outras áreas de investigação, para Labov ([1972]
2008), a relação entre língua e sociedade é encarada como
metodologicamente indispensável, não como mero recurso interdisciplinar.
Como a língua é, em últimaanálise, um fenômeno social, fica claro, para
um sociolinguista, que é necessário recorrer às variações derivadas do
contexto social para encontrar respostas para os problemas que emergem da
variação inerente ao sistema linguístico.
2. O QUE É A SOCIOLINGUÍSTICA VARIACIONISTA?
Tendo separado a sociolinguística variacionista de outras áreas afins,
resta-nos discutir agora como essa abordagem vê a relação entre a estrutura
linguística e a social. Para início de conversa, dois falantes de uma mesma
língua ou variedade dialetal dificilmente se expressam de modo idêntico.
Nem mesmo um único falante fala sempre do mesmo modo, isto é, nenhum
usuário de uma língua é falante de um único e mesmo estilo ou registro: a
adesão às determinações do contexto discursivo leva-o a selecionar
expressões com grau maior ou menor de formalidade. Sendo assim, o que a
sociolinguística faz é correlacionar as variações existentes na expressão
verbal a diferenças de ordem linguística e de ordem social, entendendo cada
domínio, o linguístico e o social, como fenômenos estruturados e regulares.
Podemos afirmar, com base nos postulados da sociolinguística, que, se um
falante enuncia o verbo “levaram” como “levaru”, e outro falante, como
“levarum”, ou, alternativamente, se um mesmo falante usa ora “levarum”,
ora “levaru”, essa variação na fala não é o resultado aleatório de um uso
arbitrário e inconsequente. Pelo contrário, é o uso sistemático e regular de
uma propriedade inerente aos sistemas linguísticos que é a possibilidade de
variação, entendida como heterogeneidade constitutiva da linguagem. É
essa regularidade e estruturação que passaremos a discutir.
Uma observação pouco acurada dos usos que se fazem de situações
comuns de interação poderia levar à dedução equivocada de que a língua
em uso é uma espécie de caos, uma terra de ninguém, sujeita, portanto, ao
uso arbitrário de seus recursos. Enquanto uns falam, por exemplo, “Cê leu
os livros?”, outros manifestam exatamente o mesmo conteúdo empregando
uma forma de expressão como “Cê leu os livro?”. Como é possível abarcar
esses dois enunciados alternativos, e igualmente disponíveis à seleção do
falante, numa explicação linguística coerente e sistemática?
Com base num ponto de vista estritamente linguístico, que é o que
sempre pesa mais para um sociolinguista variacionista, comparemos a
variação entre ausência e presença de segmentos sonoros, como a que se
aplica ao fonema consonantal /s/ identificado como fricativo alveolar. Para
simplificar, simbolizemos como [s] e [Ø] a variação entre a presença e a
ausência desse elemento sonoro, respectivamente.
A variação entre [s] e [Ø] pode aparecer na marcação de plural em “os
livros/os livro”, e em outros tantos substantivos comuns da língua
portuguesa, como “os meninos/os menino”, e pode aparecer também em
nomes próprios, como “Marcos/Marco”, em que não há envolvimento de
pluralidade, embora [s] possa ser também eliminado. O mesmo segmento
sonoro final — a fricativa alveolar [s] — pode aparecer, por outro lado, em
outras palavras, como “ananás”, “arroz” etc., sem que seja eliminado com a
mesma frequência. Afinal de contas, ouvir algo como o ananá(i), o arrô(i) é
algo extremamente raro, pelo menos na variedade paulista3, ao passo que é
extremamente frequente ouvir a expressão “os menino”.
Nem é preciso ser especialista no assunto para verificar que as
condições dessa variação, que são de ordem fonológica, não estão sujeitas
ao acaso, nem ao livre arbítrio do falante. Muito pelo contrário, acham-se
fortemente marcadas por motivações emanadas do próprio sistema
linguístico. Diríamos que a escolha possível do falante por uma ou outra
forma estaria fortemente condicionada por essas restrições. Vejamos por
quê.
Selecionar uma palavra com a ausência ou a presença de uma fricativa
alveolar depende de estar esse segmento numa sílaba átona final, como em
“livros”, “meninos” e “Marcos”. Já o simples fato de incidir sobre uma
sílaba tônica, como em “ananás”, praticamente elimina a possibilidade de
variação entre [s] e [Ø] numa variedade dialetal como a paulista, embora
esse contexto seja favorável a um processo de ditongação antes da fricativa
alveolar, o que forneceria casos como “ananais”, “arroiz”, etc.
Esses exemplos poderiam ser questionados com o argumento de que,
nas condições a que se submete a variação, como a posição de sílaba átona
final para a alternância [s] e [Ø], o caos se instala na língua, já que é o
espaço privilegiado para o falante agora exercer livremente o arbítrio.
Contra-argumentemos também contra essa objeção e a própria língua é aqui
novamente o depósito onde se buscam os melhores dados.
Observe-se, por exemplo, a diferença entre “meninos” e “Marcos”,
numa sentença como “O Marcos levou os meninos ao teatro”. Observando-
se a forma de “Marcos” em comparação com a de “os meninos”, deduz-se
que seria muito mais natural que os falantes eliminassem mais a variante [s]
do nome próprio que a do nome comum de “os meninos”. De um ponto de
vista morfológico, o [s] de “Marcos” não exerce função alguma, já que não
passa de um segmento fonológico que, juntamente com os demais, constitui
a forma do morfema lexical, ou radical, que forma a palavra em questão. Já
não se pode dizer o mesmo do [s] do substantivo “meninos” de “os
meninos”: trata-se do mesmo segmento fonológico que, coincidentemente
aqui, constitui sozinho a marca gramatical de plural, conforme a
segmentação menino-s.
Esses dados mostram que a variação entre [s] e [Ø] apresenta diferentes
estatutos nos dois casos: se o segmento fonológico manifesta um valor
semântico, como o de pluralidade, que se deseja veicular ao interlocutor,
seria mais natural manter integralmente sua forma de expressão; trata-se de
um processo que incide sobre o sistema gramatical da língua. É, por
conseguinte, mais natural que a incidência de variação no fonema fricativo
/s/ em finais átonos de palavras seja quantitativamente mais elevada nas
palavras em que o processo de variação é só fonológico do que naquelas em
que afeta também o sistema gramatical.
No entanto, as motivações do sistema linguístico impedem mais uma
vez que essa correlação se estabeleça de modo absoluto no uso real. Ocorre
que a categoria de número é redundantemente marcada no sintagma
nominal em português, mediante uma regra sintática de concordância:
assim, em termos meramente informacionais, tanto faz dizer “Marcos” ou
“Marco” quanto “os meninos espertos”, “os meninos esperto” ou ainda “os
menino esperto”; nesse sintagma nominal complexo, parece que, se o valor
de pluralidade já está assegurado em algum constituinte mais à esquerda, os
demais podem prescindir dessa marcação.
Evidências estatísticas mostram, no entanto, que, mais do que
simplesmente ser a posição inicial a preferência para marcar plural nos
sintagmas nominais, a alternância entre as variantes [s] e [Ø] é o resultado
de um conjunto muito mais complexo de fatores linguísticos, que incorpora
classe gramatical, função sintática e posição do constituinte no interior do
sintagma nominal (SN). Observe a Tabela 1 abaixo.
Tabela 1
Relação entre marcação de pluralidade e os elementos do SN
Fatores Frequência Prob.
Núcleo na 1ª posição 165/173 = 95% .69
Núcleo na 2ª posição 2.842/5.300 = 53% .24
Núcleo na 3ª posição 333/537 = 62% .39
Classe não nuclear anteposta 4.292/4.407 = 97% .87
Classe não nuclear posposta 241/564 = 43% .25
(Adaptado de Scherre, 1996, p. 101)
Os dados da Tabela 1 mostram que, independentemente da classe
gramatical, um constituinte anteposto ao núcleo é mais suscetível à
marcação de plural do que um posposto. Um constituinte não nuclear pode
aparecer até na terceira posição, mas a probabilidade de ser marcado é
maior se ele estiver anteposto ao núcleo. Uma consequência óbvia dessa
distribuição é a de que não tem qualquer suporte nas evidências afirmar
simplesmente que a primeira posição do SN é a mais marcada.
Os elementos nucleares, por seu lado, também não são igualmente
marcados em todas as posições. São sempre maismarcados na primeira e na
terceira do que na segunda posição. Por isso, afirmações como, por
exemplo, a de que o substantivo é uma das classes menos suscetíveis à
marcação de plural também não encontram respaldo nos dados dispostos na
Tabela 1 (cf. Scherre, 1996, p. 101-102).
Essa interação complexa de fatores mostra que, no processo de
marcação de plural no SN, a gramática do português organiza a variação de
número de um modo muito mais sutil e complexo para bloquear o avanço
do processo fonológico de erosão das consoantes em posição de sílaba
átona final e preservar a função morfológica de indicação de pluralidade do
segmento sonoro [s]; mas, sobretudo, essa distribuição mostra, com extrema
clareza, o caráter sistemático, estruturalmente regulado da variação. Essa
regularidade comprova, portanto, que, se, por um lado, a heterogeneidade é
propriedade constitutiva da linguagem, por outro, não é o resultado
aleatório de procedimentos arbitrários, mas de restrições impostas pelo
próprio sistema linguístico.
Uma comparação com o espanhol será um tanto útil para se entender o
alcance das pressões do sistema linguístico sobre os processos variáveis de
marcação de pluralidade. Como se sabe, “o menino” se traduz, em
espanhol, por “el niño”. Como, em espanhol, o artigo no plural é “los”, a
expressão “los niños” traduz “os meninos”. Comparado com o singular “el
niño”, a ausência de [s], mesmo no artigo “los”, mantém a integridade da
informação de número no sintagma nominal pluralizado em “lo niño”. Não
sendo possível contar com a oposição entre [s] e [Ø], em função da erosão
das consoantes finais na fala, o falante lança mão de outra oposição com o
mesmo sucesso: “el” x “lo”. Já no feminino, o fenômeno se iguala ao
português, como se pode observar a partir da oposição “la niña” x “las
niñas”. Se o falante eliminar o segmento [s] do sintagma no plural,
eliminará concomitantemente a marcação de número.
Evidências estatísticas sobre o espanhol portorriquenho apontam para
altas frequências na eliminação do [s] em todos os constituintes dos
sintagmas nominais masculinos e baixas frequências na eliminação desse
segmento nos sintagmas nominais femininos, conforme se observa nas
tabelas 2 e 3 a seguir.
Tabela 2
Frequência de apagamento de [s] em determinantes
Masculino Feminino Total
Presença de [s] 216 167 383
Ausência de [s] 53 24 77
Total 269 191 460
% de ausência 19,7% 12,5% 16,7%
Tabela 3
Frequência de apagamento de [s] em substantivos
Masculino Feminino Total
Presença de [s] 149 169 318
Ausência de [s] 452 217 669
Total 601 386 987
% de ausência 75,2% 56,2% 67,8%
(Adaptado de Flores; Myhill; Tarallo, 1983, apud Tarallo 1999)
As Tabelas 2 e 3 mostram que a incidência percentual de apagamento de
[s] marcador de plural é mais alta para os determinantes e substantivos
masculinos. Esses resultados comprovam, assim, que o sistema linguístico
do espanhol está submetido a um processo de variação fonológica que pode
vir a comprometer a veiculação de valores semânticos, como a marcação de
pluralidade. Mesmo assim, permite uma maior frequência de uso justamente
nos casos em que a oposição entre singular e plural é mais neutra e menos
relevante funcionalmente (cf. Tarallo, 1990), isto é, nas posições pospostas
ao núcleo do sintagma nominal para o português e nas formas masculinas
para o espanhol.
Podemos voltar, agora, à comparação das frequências de emprego da
variação entre [s] e [Ø] em palavras monomorfêmicas, como o nome
próprio “Marcos”, em que o cancelamento da fricativa não significa a
eliminação de uma marca de plural, e em palavras bimorfêmicas, como o
nome comum “meninos”, em que o cancelamento pode implicar perda de
informação. Ao compararmos essas duas formas, não o faremos mais com a
inocência de antes, mas convictos das pressões gramaticais, teremos a
certeza de que comparações fidedignas só se podem estabelecer em relações
estratégicas do sintagma nominal que envolvam posição, classe gramatical
e função sintática. E, sobretudo, teremos aprendido a lição importante de
que a variação não é o resultado do uso arbitrário e irregular dos falantes,
mas, ao contrário, é o resultado sistemático e regular de restrições impostas
pelo próprio sistema linguístico.
Vejamos, agora, um exemplo mais, para observarmos a relevância de um
tipo de determinação extralinguística para a variação. Para isso, viajemos
até o inglês americano e examinemos a forma que seus falantes empregam
para exprimir o segmento inicial de palavras como “thing”, “through” etc.
— a variável (th) para o fonema /θ/, representando a pronúncia de pelo
menos quatro três variantes: a própria fricativa interdental [θ], uma oclusiva
[t] uma africada [tθ] e uma fricativa velar [s].
Na Figura 1, o eixo vertical representa a escala dos valores médios para
(th) e o eixo horizontal representa os quatro estilos contextuais A-D.4 As
linhas horizontais, que conectam os valores, mostram a progressão dos
índices médios por grupos socioeconômicos distinguidos como 0-1 para
classe baixa; 2-4 para classe operária; 5-8 para classe média baixa; 9 para
classe média alta. A Figura 1 mostra claramente um fenômeno chamado de
estratificação descontínua, já que os cinco estratos da população investigada
estão agrupados em dois estratos maiores, demonstrando diferentes valores
sociais para a expressão da variável.
Em todos os contextos, os membros da comunidade são diferenciados
pelo uso que fazem da variante de prestígio, a pronúncia de uma fricativa
interdental [θ]. Essa distribuição se reflete claramente no fato de que os
índices mais altos ou mais baixos de emprego da variável (th) são
diretamente correlacionados a posições na estrutura social, com uma nítida
diferença entre as camadas mais altas e as camadas mais baixas da
estratificação social.
Apesar disso, numa escala de formalidade da situação de interação
verbal, todos os grupos mantêm comportamento idêntico, de modo que
índices mais elevados da variante de prestígio — a variante [θ] — estão
correlacionados a graus mais elevados de formalidade (cf. Labov, [1972]
2008).
Figura 1
Estratificação de uma variável linguística com significado social estável 
(adaptado de Labov, [1972] 2008, p. 142)
Agora não são, por conseguinte, restrições de natureza intrinsecamente
linguística que favorecem ou não a pronúncia variável do fonema /θ/, mas
restrições de natureza extralinguística, indicadas na diferenciação social e
estilística.
Se as línguas naturais humanas consistem em sistemas organizados de
forma e conteúdo, seria estranho que a variação não fosse uma de suas
propriedades mais marcantes e significativas. Na realidade, a diversidade é
uma propriedade funcional e inerente dos sistemas linguísticos, e o papel da
sociolinguística é exatamente enfocá-la como objeto de estudo, em suas
determinações linguísticas e não linguísticas. A esse respeito, é sempre útil
ouvirmos Labov:
A existência de variação e de estruturas heterogêneas nas comunidades de fala investigadas está
certamente bem fundamentada nos fatos. É a existência de qualquer outro tipo de comunidade de
fala deve ser posta em dúvida [...] a heterogeneidade não é apenas comum, ela é o resultado
natural de fatores linguísticos fundamentais. Argumentamos que a ausência de alternância
estilística e de sistemas comunicativos multiestratificados é que seria disfuncional. (Labov,
[1972] 2008, p. 238)
A linguagem é, sem dúvida alguma, o modo mais característico de
comportamento social, sendo, por isso, impossível separá-la de suas
funções sociointeracionais. É até por isso que, vale repetir, o próprio uso do
termo sociolinguística para rotular esse enfoque soa um tanto redundante.
Consequentemente, somente é possível considerá-lo uma subárea da
linguística ou um de seus domínios conexos de uma perspectiva que não
inclua como relevante a natureza social da linguagem.
A sociolinguística trata da estrutura e da evolução da linguagem,
encaixando-a no contexto social da comunidade. Seus tópicos recobrem a
área convencionalmente chamadade “linguística geral”, na medida em que
lida com questões decorrentes do exame dos níveis fonológico,
morfológico, sintático e semântico para esclarecer a configuração das regras
linguísticas, sua combinação em sistemas, a coexistência de sistemas
alternativos e, principalmente, a evolução diacrônica de tais regras e
sistemas (cf. Labov, [1972] 2008). Vale lembrar a forte correlação entre
variação e mudança. Toda mudança é o resultado de algum processo de
variação, em que ainda coexistam a substituta e a substituída, embora o
inverso não seja verdadeiro, isto é, nem todo processo de variação resulta
necessariamente numa mudança diacrônica, caso em que a variação é
estável e funciona como indicador de diferenças sociais.
3. A VARIAÇÃO E SUAS CAUSAS
Mas, a propósito, o que são variantes e variáveis linguísticas? Observe a
variação entre as várias pronúncias do fonema /r/ em final de sílaba como
[}], a forma retroflexa, amplamente usada no interior de São Paulo,
pejorativa- 
mente chamada r-caipira; [x], uma fricativa velar, [h], uma fricativa glotal,
ambas faladas no litoral brasileiro em geral, embora estereotipadas como
pertencentes unicamente ao dialeto carioca; e, finalmente [r], uma vibrante
alveolar, usada, com maior frequência, na região metropolitana de Porto
Alegre.5 Uma propriedade comum identifica todos os casos mencionados de
variação: representam duas ou mais formas alternativas de dizer a mesma
coisa no mesmo contexto.
O termo variável representa o esforço do sociolinguista por
generalizações abstratas. Trata-se de uma classe de variantes que
constituem duas ou mais alternativas concretas de uso. As variantes,
ordenadas ao longo de uma dimensão contínua, são determinadas por uma
ou mais variáveis independentes, de natureza linguística ou extralinguística.
Observe que a marcação de plural no SN é uma variável, representada por
Labov (2008) por colchetes angulares: <s>. A marcação positiva de plural,
representada por [s], como em “os meninos”, e a marcação negativa,
representada por [Ø], como em “os menino”, constituem as variantes. Uma
variável pode representar duas ou mais variantes.
É justamente por não ter função no processo de comunicação, que a
linguística estruturalista não levou seriamente em consideração a análise de
variáveis. Concebeu a linguagem como um instrumento de comunicação,
identificando-a com uma espécie de código, similar aos sistemas de sinais
eletrônicos, coisa que absolutamente a linguagem humana não é. O
interesse pela função cognitiva, informativa ou referencial da linguagem
teve como consequência teórico-metodológica a exclusão de qualquer
unidade de análise que não contivesse o mínimo de informação requerido
pelo critério funcional. A abordagem gerativista, quando surgiu no final dos
anos 1950, recusou o enfoque da variação para descrever um modelo de
competência baseado na idealização da comunidade linguística e do falante-
ouvinte.
A alternância entre duas formas com o mesmo significado, duas
variantes, acabou confinada, para um estruturalista, à vala comum da
variação livre e da variação combinatória ou contextual; para um
gerativista, duas variantes são indiferentemente postuladas como regra
facultativa ou opcional.
A despeito de diferenças de enfoque, todo linguista,
indiscriminadamente, concorda com o princípio de que nenhuma língua
natural humana é um sistema em si mesmo homogêneo e invariável. Todos
os níveis de análise linguística estão sujeitos ao processo de variação.
Observe, inicialmente, o nível fonológico: a alternância entre qualquer
pronúncia de /r/ e sua ausência, em formas infinitivas do verbo, como
“falá”, “comê”, é um exemplo de variável fonológica. Já no nível
morfológico, é possível observar a alternância de sufixos derivacionais,
como “salaminho” e “salamito”, que identifica uma diferença entre o falar
paulista e o gaúcho. No nível sintático, observe os vários tipos de
construção relativa, nos seguintes exemplos: “A moça de quem você falou
estuda no colégio” x “A moça que você falou estuda no colégio” x “A
moça que você falou dela estuda no colégio”. Observe, agora, a alternância
entre os morfemas lexicais de “jerimum” x “abóbora”, “macaxeira” x
“aipim” x “mandioca”, que fornecem identificação da origem regional do
falante.
Já do ponto de vista dos fatores extralinguísticos (cf. Camacho, 1988),
toda língua comporta variantes: (a) em função da identidade social do
emissor; (b) em função da identidade social do receptor; (c) em função das
condições sociais de produção discursiva. Em função do primeiro fator,
pertencem as variantes que se podem denominar dialetais em sentido
amplo: variantes geográficas ou diatópicas, variantes socioculturais ou
diastráticas. Em função do segundo e do terceiro fatores, pertencem as
variantes de registro ou estilísticas, ou ainda diafásicas. Referem-se ao grau
de formalidade da situação e ao ajustamento do emissor à identidade social
do receptor.
Como é verdadeiro que o domínio de uma língua deriva do grau de
contato do falante com outros membros da comunidade, também é
verdadeiro que quanto maior o intercâmbio entre os falantes de uma língua,
tanto maior a semelhança entre seus atos verbais. Dessa tendência para a
maior semelhança entre os atos verbais dos membros de uma mesma
comunidade resulta a variação geográfica ou diatópica. Outra razão reside
no fato de que os indivíduos nativos de determinado setor geográfico se
orientam para um centro cultural, política e economicamente polarizador.
Constitui-se, assim, uma comunidade linguística geograficamente restrita
no interior de uma mais extensa e abrangente. Mediante a atração
geográfica e a contiguidade física é que se desenvolve um comportamento
cultural específico que identifica os membros de uma comunidade e os
distingue dos membros de outras.
É fácil perceber a variação motivada por diferenças na origem
geográfica. Basta percorrer o país para perceber, por exemplo, que toda a
região nordestina se identifica com base na variação sistemática das vogais
pretônicas “e” e “o” de “dezembro” e “colina”, que “estabelece uma linha
divisória entre os falares do Norte, que em geral optam pela realização
aberta, e os falares do Sul, que geralmente optam pela realização fechada”
(Leite e Callou, 2005, p. 39-40) na região Sudeste.
Outro exemplo relevante é o caso do r pós-vocálico. Estudando a
distribuição das variantes nas cinco capitais representadas no Projeto
NURC (São Paulo, Rio de Janeiro, Porto Alegre, Recife e Salvador), Leite e
Callou (2005) mostram que São Paulo e Porto Alegre opõem-se nitidamente
ao Rio de Janeiro, Recife e Salvador, sobretudo no que tange ao contexto de
final de sílaba no interior de vocábulos como carta: os primeiros
privilegiam as variantes apicais, e os segundos, as não vibrantes posteriores,
como a fricativa velar e a aspirada.
Se o grau de semelhança entre as formas de expressão dos membros de
uma comunidade linguística é proporcional ao grau de intercâmbio social
que mantêm entre si, pode-se afirmar que a variação sociocultural ou
diastrática deriva da tendência para a maior semelhança entre os atos
verbais dos indivíduos participantes de um mesmo setor socioeconômico e
cultural. As diferenças linguísticas são motivadas por diferenças de ordem
socioeconômica, como nível de renda familiar, grau de escolaridade; de
ordem sociobiológica, como idade e sexo/gênero; de ocupação profissional,
entre outros.
Podem-se apontar alguns traços que caracterizam o desempenho verbal
de indivíduos pertencentes a baixos estratos socioculturais na pronúncia
mais ou menos generalizada da redução e desnasalização do ditongo /eyN/
em posição de sílaba átona final, como se observa em palavras, como
“homem”, pronunciada “homi”; “devem”, pronunciada “devi”, caso em
que, simultaneamente afeta uma regra de concordância verbal. Outro traço é
o apagamento de fricativas alveolares surdas [s] ou sonoras [z], também em
posição de sílaba átona final, observável em palavras como “vamos”,
pronunciada “vamo”, e em sintagmas nominais pluralizados,como “os
meninos”, pronunciado “os menino”, que, nesse caso, afeta também uma
regra de concordância nominal.
Ainda está por ser feito um retrato amplo da realidade diatópica e
diastrática do Brasil, embora os caminhos que levam a esse resultado já
estejam abertos com o desenvolvimento do projeto Atlas Linguístico do
Brasil-ALIB (cf. Aguillera, 2005). Esse retrato permitiria confirmar ou
rejeitar a hipótese de que as divisões dialetais do Brasil são menos
geográficas que sociais e que a maneira de falar distinguiria mais um
falante escolarizado de um não escolarizado do mesmo espaço geográfico,
do que dois falantes do mesmo nível de escolaridade de regiões diferentes
(cf. Leite e Callou, 2005, p. 17-8).
A distribuição social das formas em variação adquire valores em função
do poder e da autoridade que os falantes detêm nas relações econômicas e
culturais. Assim, uma variante, como presença de marcação de pluralidade
no SN, é conhecida como detentora de prestígio social entre os membros da
comunidade, sendo por isso chamada variante de prestígio ou padrão. Já
sua alternativa, a ausência de marcação de pluralidade, é conhecida como
variante não padrão ou estigmatizada.
É óbvio que a distribuição de valores sociais se torna institucionalizada
pela elevação de uma variedade de prestígio à condição de norma padrão6
que, como tal, passa a ser veiculada no sistema escolar, nos meios de
comunicação, na linguagem oficial do Estado etc. O mecanismo é simples:
como os detentores da variedade de prestígio controlam o poder político das
instituições, em virtude do poder emanado das relações econômicas e
sociais, são também detentores da autoridade de vincular a língua à
variedade com a qual mantêm maior contato.
Com base na inevitabilidade social do processo de padronização
linguística, não seria difícil estabelecer uma norma para o português
brasileiro com base na variedade falada pelas pessoas cultas e urbanas.
Pesquisas recentes como a desenvolvida no âmbito do Projeto NURC (cf.
Castilho, 1990) e do Projeto de Gramática do Português Falado (cf.
Castilho, 2006) fornecem um quadro suficientemente amplo e nítido de
como se expressam os falantes cultos de núcleos urbanos mais
cosmopolitas. No entanto, até aqui a variedade empregada para o
estabelecimento de uma norma padrão nas gramáticas normativas vigentes é
extraída de textos escritos e literários, não raramente do passado.
Segundo Faraco (2008), a construção de um padrão brasileiro foi, já na
origem, excessivamente artificial: em vez de adotar como referência a
norma culta comum, a elite letrada conservadora adotou como parâmetro
um modelo lusitano de escrita, praticado por escritores portugueses do
romantismo (cf. Faraco, 2008). Esse descompasso se concretiza
particularmente em prescrever como corretas normas já não empregadas por
nenhum falante culto. Exemplo ilustrativo é a regência preposicionada do
verbo assistir na acepção de “ver”, “estar presente”, em oposição a assistir
na acepção de “prestar assistência”, que nenhum falante culto ainda
considera. A essa norma estreita, que persiste em ignorar a norma culta
urbana realmente falada no país, Faraco (2008) se refere ironicamente como
norma “curta”; suas prescrições têm sido reforçadas pelos consultórios
gramaticais, pelos manuais de redação dos grandes jornais e pelos
elaboradores de concursos públicos.
Voltando para a diversidade, vale a pena lembrar o caso das chamadas
linguagens especiais. Fatores como idade, gênero e ocupação motivam a
distinção entre a linguagem comum e esse tipo especial de variedades.
Corresponde à primeira o inventário lexical e sintático referente aos
conceitos comuns à maioria dos membros de uma comunidade linguística.
Já as linguagens especiais contrastam com a comum por consistirem em
variedades dialetais próprias das diversas subcomunidades linguísticas,
cujos membros compartilham uma forma especial de atividade, sobretudo a
profissional, mas também a científica e a lúdica. Os jargões científicos, as
gírias, são subcategorias compreendidas no âmbito das linguagens técnicas.
As diversas modalidades de gírias distinguem-se de outros tipos de
linguagens técnicas em função das motivações sociais que acionam seu
surgimento, a mais importante das quais é a necessidade de sigilo,
principalmente no caso do desenvolvimento de variedades linguísticas
próprias de grupos fechados, como os que vivem à margem da sociedade.
Há, todavia, outras motivações que acionam o surgimento da gíria. Além da
necessidade de criação de neologismos por força de necessidades
expressivas, há uma demanda especial, em certos grupos, por forte coesão
social, cuja consequência é a exclusão, via linguagem, dos que dela não são
membros. Esse tipo de motivação para a criação de gíria caracteriza
especialmente a linguagem do adolescente.7
A diversidade linguística não se restringe a determinações motivadas
por origem sociocultural e geográfica. Um mesmo indivíduo pode alternar
entre diferentes formas linguísticas de acordo com a variação das
circunstâncias que cercam a interação verbal, incluindo o contexto social,
propriamente dito, o assunto tratado, a identidade social do interlocutor etc.
Um professor universitário, por exemplo, pode pôr-se às voltas com pelo
menos três diferentes situações linguísticas: no restaurante universitário
conversando sobre banalidades com seus alunos; na sala de aula, exercendo
sua profissão; e no auditório, dando uma palestra. É óbvio que essas
diferentes circunstâncias exigem progressivamente maior frequência na
escolha de formas cultas de expressão. Assim, na situação de conferencista,
não soaria adequado o emprego, por exemplo, de “cê” por “você”, de “tá”
por “está”, perfeitamente plausíveis na conversa informal do restaurante
universitário.
A variação estilística ou de registro é o resultado da adequação da
expressão às finalidades específicas do processo de interação verbal com
base no grau de atenção que se presta à forma. O grau de atenção é
proporcional ao grau de formalidade da situação: quanto menos coloquiais
as circunstâncias, tanto maior a preocupação com a forma de expressão. Se
a competência do falante inclui duas formas de expressão, como “Por favor,
poderia me passar o açúcar”, em contraste com “Ô meu chapa, vai ficar
alugando o açucareiro até quando?”, é óbvio que o primeiro enunciado seja
selecionado num jantar com participantes estranhos ao círculo íntimo do
falante, enquanto o segundo seja selecionado numa situação em que estejam
presentes interlocutores do círculo íntimo do falante.
É possível considerar dois limites extremos na transição entre os
diferentes estilos possíveis: o estilo informal, em que é mínimo o grau de
atenção e o estilo formal, em que é máximo o grau de atenção. A diferença
essencial entre os dois graus extremos reside nos diferentes graus de adesão
ao uso de formas padrão ou variantes de prestígio: no estilo informal a
adesão às formas prestigiadas ou cultas é menor do que no estilo formal.
Outro aspecto a destacar é a forte vinculação entre a variação social e a
estilística. O indivíduo deve interiorizar, em sua competência linguística, as
formas alternativas padrão e não padrão sobre as quais incide a seleção que
ele opera conforme variam as circunstâncias de interação. Em geral,
indivíduos de baixa escolarização não desenvolvem a capacidade de operar
com regras variáveis. Nesse caso, como lhes são vedadas as possibilidades
de adaptar seu estilo às circunstâncias de interação, a língua que usam acaba
representando uma poderosa barreira para todo tipo de ascensão social que
depende de capacidade verbal.
4. POR QUE NÃO IGNORAR A VARIAÇÃO LINGUÍSTICA
Justamente por acreditarem que a variação consiste numa espécie de
caos organizado (Tarallo, 1985), cujos princípios merecem ser escrutinados,
é que os sociolinguistas voltaram a atenção para seu exame. A variável
como uma unidade estrutural representou uma inovação na teoria da
linguagem com o surgimento da sociolinguística: até então, todas as
unidades linguísticas— fones, fonemas, morfemas, sintagmas e orações —
eram unidades de natureza invariante, discreta e qualitativa. A variável,
como unidade de análise, tem natureza, por definição, variante, contínua e
quantitativa (cf. Labov, 1966). É variante no sentido de que é realizada
diferentemente em diferentes circunstâncias; é contínua no sentido de que
certas variantes, como a pronúncia retroflexa de /r/, assumem significado
social com base na distância da forma padrão, a vibrante alveolar; é
quantitativa no sentido de que a relevância metodológica das variantes que
constituem uma variável é determinada pela frequência relativa de cada um
em relação aos diferentes fatores que as restringem.
O estudo de uma unidade com as características da variável linguística
só é possível no interior de um arcabouço teórico que abandone o axioma
ainda vigente de categoricidade, o que de pronto se deu com a
sociolinguística. No entanto, seria interessante verificar por que se voltou a
atenção para a variação somente nos últimos trinta anos.
Esquivar-se de lidar com o caos é uma fragilidade inerentemente
humana e talvez seja por isso, e não exatamente por ignorar a existência da
variação, que a investigação linguística excluiu-a de seus critérios de
relevância. Não é por ignorá-la, porque, desde o século passado, os
linguistas manifestam reconhecimento de sua existência. Em 1885,
Schuchardt (apud Chambers, 1995) já notava que a pronúncia do indivíduo
não está livre de variações. Algumas décadas mais tarde, Sapir ([1921]
1975, p. 147) alegava que todos reconhecem que a linguagem é variável.
Mesmo assim, por que razão a diversidade não foi sistematicamente
analisada até a inauguração da sociolinguística no início dos anos 1960?
O desenvolvimento na teoria linguística de um sentimento de aversão ao
caos, à variação, cuja consequência foi gerar uma concepção monolítica de
linguagem, baseia-se em uma posição metodológica, cultivada pelas teorias
estruturalista e gerativista, que associam rigorosamente a estrutura
linguística à homogeneidade.
Embora esteja presente na concepção chomskiana de linguagem, o
primeiro postulado emergiu originalmente do corte metodológico sobre o
fenômeno linguístico que Saussure executou ao cunhar a famosa dicotomia
língua/fala: “enquanto que a linguagem é heterogênea, a língua assim
delimitada é de natureza homogênea” (Saussure, [1916] 1977, p. 23). Esse
postulado radica no fato de que a língua, o sistema gramatical, é extraído da
turbulência vertiginosa da fala, de que emergem os usos sociais da
linguagem. Fica excluída, in limine, a aparente ilegalidade dos fenômenos
sociais (cf. Sapir, 1929, apud Chambers, 1995).
Uma consequência dessa dicotomia é que se pode estudar o sistema
linguístico sem recorrer a uma comunidade de fala e, embora o
estruturalismo saussuriano considerasse a língua “a parte social da
linguagem”, os linguistas que assumiram esse compromisso teórico não
tratam absolutamente do aspecto social: consideram que quaisquer
explicações sobre os fatos linguísticos devem ser extraídas de outros fatos
linguísticos (a linguística interna), não de algum dado externo relacionado
ao comportamento social dos usuários. Trabalham, ademais, com um ou
dois informantes, quando não descrevem o sistema linguístico com base no
exame do conhecimento que mantêm a respeitos de suas regras de
funcionamento.
Labov ([1972] 2008) alude a essa contradição metodológica como o
“paradoxo saussuriano”: se a língua é um “um sistema gramatical que existe
virtualmente em cada cérebro”, como afirma Saussure ([1916] 1977, p. 21),
é possível obter dados a respeito de seu funcionamento mediante o
testemunho de um único informante, quando não do próprio investigador. Já
dados a respeito do funcionamento da fala, a parte individual da linguagem,
somente podem ser obtidos mediante o exame do comportamento verbal de
um grupo de indivíduos. Esse paradoxo — a investigação do aspecto social
não demanda mais que um informante, enquanto a investigação do aspecto
individual prescinde da observação da linguagem em uso no contexto social
— é o resultado direto do axioma da categoricidade, presente já em
Saussure ao fazer a opção metodológica pela língua.
A tradição linguística em favor da categoricidade dos fenômenos
observáveis, iniciada na distinção saussuriana língua/fala, teve em
Chomsky o mais importante continuador na linguística contemporânea,
como mostra claramente a seguinte citação:
A teoria linguística se preocupa primariamente com um falante-ouvinte ideal de uma comunidade
de fala completamente homogênea, que conhece perfeitamente sua língua e, ao aplicar esse
conhecimento ao desempenho real, não é afetado por condições gramaticalmente irrelevantes,
tais como limitações de memória, distrações, mudanças de atenção e de interesse, e erros (casuais
ou característicos). (Chomsky, 1965, p. 3)8
Outra citação, agora de Lyons, acrescenta ainda mais clareza a esse
ponto:
Quando dizemos que duas pessoas falam a mesma língua, estamos necessariamente fazendo
abstração de todas as espécies de diferenças na sua fala. [...] Para simplicidade de nossa
exposição, admitiremos que a língua que descrevemos é uniforme — entendendo por uniforme
que ela é indiferenciada dialetal e estilisticamente — o que é, logicamente, uma “idealização”
dos fatos — e que todos os falantes nativos estão de acordo se um enunciado é aceitável ou não.
(Lyons, 1979, p. 146-7)
Deduz-se, assim, que é possível desenvolver cabalmente uma teoria
linguística adequada com base num comportamento verbal uniforme e
homogêneo, sem espaço para a variação. Como resultado desse princípio,
supõe-se, em segundo lugar, que os falantes têm acesso a suas intuições
acerca das regras uniformes de funcionamento da linguagem e podem assim
relatá-las, o que exclui, em consequência, a necessidade de se introduzir
numa comunidade de fala em busca de dados reais.
Com o sucesso da análise abstrata dos fenômenos linguísticos, operada,
inicialmente, pelo paradigma estruturalista e, em seguida, pelo gerativista,9
não parecia haver qualquer razão para o pesquisador se preocupar com a
busca de dados. A exclusão da relação entre a linguagem e o contexto
social, motivada pelo axioma de categoricidade, foi, de certa maneira,
conveniente para o linguista, que, por tendência, sempre preferiu trabalhar
com seu próprio conhecimento das regras de funcionamento da linguagem.
Entretanto, a idealização da comunidade de fala não significa,
obviamente, ignorar a existência da variação. Que tratamento dar a ela no
contexto de uma concepção abstrata de linguagem? As explicações ficaram
sujeitas a duas alternativas: (i) as variantes pertencem a diferentes sistemas
linguísticos coexistentes e a alternância entre elas não passa de um exemplo
de mistura dialetal ou de uma mudança de código (code-switching); (ii) a
seleção das variantes, que alternam de um modo imprevisivelmente livre
(free variants), é um fenômeno secundário da superfície, isto é, situado
abaixo do nível da estrutura linguística.
Para ilustrar essas duas posições, poderíamos considerar a aplicação da
regra de concordância verbal na língua portuguesa. A primeira explicação
afirma que o falante fica alternando entre dois diferentes sistemas, ou faz
uma mistura dialetal, sempre que muda de um enunciado, em que o verbo
concorda em número com seu sujeito, como “Aí chegaram uns caras”, para
um enunciado, como “Aí chegou uns caras”, em que o verbo não estabelece
concordância com o SN sujeito. A segunda explicação afirma que a
concordância é, na gramática do falante, uma regra facultativa, estando as
duas formas verbais em variação livre.
A noção de sistemas coexistentes sustenta a ideia de que os falantes
manteriam separadas as duas gramáticas, o que lhes permitiria mudar
variavelmente de uma para outra. É difícil de sustentar essa noção em
virtude de uma consequência que dela se infere: a de que os falantes seriam
capazes de manter consistentemente um sistema até que alguma mudança
nas circunstâncias de uso acionasse o segundosistema disponível.
Elementos misturados dos dois sistemas não deveriam, em princípio,
ocorrer enquanto as condições do evento de fala permanecessem
inalteradas.
A noção de variante livre, que se sustentaria na ideia de que formas
alternativas não passam de meras flutuações casuais, apresenta também
consequências discutíveis. Se duas variantes são realmente livres, segue-se
forçosamente que elas não podem ser condicionadas por nenhum fator,
embora a observação mais desinteressada possível do fluxo de fala mostre
claramente que variantes em uso acham-se sempre fortemente vinculadas
pelo menos a fatores sociais, o que torna seu comportamento empiricamente
previsível e passível de formulação teórica.
A inadequação e a fragilidade desse tipo de consideração se tornam
ainda mais evidentes se voltarmos a atenção para processos variáveis que se
situam na intersecção entre a gramática e a fonologia, como os fenômenos
de simplificação de grupos consonantais no inglês negro norte-americano,
como “bold/bol’ ” (atrevido) e “rolled/roll’ ” (rolou/rolava). A questão
central aqui diz respeito diretamente à própria estrutura linguística: grupos
consonantais da forma CVC+C10 que envolverem um morfema de pretérito,
como rolled, devem receber o mesmo tratamento que os grupos da forma
CVCC, que não perdem nenhuma informação gramatical? Teorias
linguísticas de base formal não possuem critérios nem meios adequados
para expressar a configuração desse fato, uma vez que tanto “bold” quanto
“rolled” se incluiriam na mesma regra opcional ou facultativa. Só um
tratamento quantitativo da linguagem em uso no contexto social permite
observar que as formas que envolvem informação de pretérito, como
“rolled”, são menos frequentemente simplificadas que as que não envolvem
esse tipo de conteúdo (cf. Labov, [1972] 2008).
5. UMA EXPLICAÇÃO HISTÓRICA PARA O FORMALISMO
Bakhtin forneceu uma das hipóteses mais apaixonantes para a
explicação da tendência da teoria da linguagem para o tratamento
categórico dos fenômenos linguísticos e, como um marxista convicto,
localizou todas as causas na história do pensamento linguístico ocidental. O
enfoque filológico com o qual a linguística do século XX pensou romper é
determinante para a apreciação do pensamento contemporâneo da teoria da
linguagem.
Desde os primeiros estudos hindus e gregos, remontando aos séculos IV
e V a.C., a linguística vem elaborando suas categorias com base em
monólogos mortos, por exemplo, a inscrição em monumentos antigos. E, de
fato, o mais antigo tratado sobre a linguagem, produzido na Índia, é uma
interpretação das palavras do Rigveda, que já haviam ficado obscuras; o
objetivo principal do estudo linguístico em Alexandria durante o período
helenístico foi a explicação dos textos dos poetas da Antiguidade,
principalmente Homero (cf. Câmara Jr., 1975).
Bakhtin entende que a própria enunciação monológica é uma abstração,
já que qualquer ato enunciativo, ainda que no âmbito da linguagem escrita,
representa a resposta a algum outro texto, constituindo-se, desse modo, num
elo de uma cadeia de atos de fala. No entanto, o filólogo-linguista não é
capaz de perceber o caráter dialético das enunciações; pelo contrário,
“compreende-as como um todo isolado que se basta a si mesmo e não lhe
aplica uma compreensão ideológica ativa...” (Bakhtin, 1979, p. 84).
A concepção de uma língua isolada, fechada e monológica,
desvinculada de seu contexto linguístico real, corresponde à compreensão
passiva que filólogos e sacerdotes tinham de uma língua estrangeira, escrita
e morta. A história da linguística é, com efeito, um desfile completo desse
tipo de investigação.
Na Idade Média, a emergência de línguas nacionais nos vários Estados,
que constituíram o Império Romano, provocou reforço no empenho
normativista em conservar a “pureza” do latim como língua universal de
cultura. Tamanho era o esforço, que as línguas vernáculas emergentes eram,
elas próprias, consideradas “estrangeiras” aos escritores, cujo ponto de
referência era o latim. Já a Filologia greco-latina iniciou, praticamente no
Renascimento, o estudo de decifração e preservação de textos arcaicos,
procedimento que se desenvolveu ao longo de toda a história (cf. Câmara
Jr., 1975, p. 22-3).
A partir do início do século XIX, a literatura e a filosofia hindus se
difundiram na Europa, em razão, principalmente, da atuação de eruditos
ingleses, contribuindo para o fortalecimento do Romantismo em
contraposição à influência e ao domínio da cultura greco-latina. Embora
não fosse linguista, foi Friedrich Schlegel quem chamou a atenção para a
Índia, com o propósito de pregar o Romantismo, difundindo a cultura e a
filosofia hindu em oposição à filosofia greco-latina na Europa. Seu irmão,
August Schlegel, esse sim um linguista, foi um dos fundadores da filologia
sânscrita. Assim, as principais obras da cultura e da religião hindus
passaram a ser debatidas com o mesmo espírito ideológico que a filologia
clássica aplicava aos grandes autores da Antiguidade greco-latina. O estudo
filológico do século XIX estendeu-se também às línguas medievais da
Europa, em razão da importância que o Romantismo atribuía aos aspectos
culturais da Idade Média.
A orientação dos paradigmas vigentes na linguística, até
aproximadamente a metade do século XX, para a criação de um objeto de
estudos estável e uniforme, desligado da realidade social, reflete o papel
histórico que a palavra estrangeira desempenhou na formação histórica de
todas as civilizações. Passemos a palavra a Bakhtin:
A palavra estrangeira foi, efetivamente, o veículo da civilização, da cultura e da religião, da
organização política (os sumérios em relação aos semitas babilônicos; os jaféticos em relação aos
helenos; Roma, o cristianismo, em relação aos eslavos do leste etc.). Esse grandioso papel
organizador da palavra estrangeira — palavra que transporta consigo forças e estruturas
estrangeiras e que algumas vezes é encontrada por um jovem povo conquistador no território
invadido de uma cultura antiga e poderosa (cultura que, então, escraviza, por assim dizer, do seu
túmulo, a consciência ideológica do povo invasor) — fez com que, na consciência histórica dos
povos, a palavra estrangeira se fundisse com a ideia de poder, de força, de santidade, de verdade,
e obrigou a reflexão linguística a voltar-se de maneira privilegiada para seu estudo. (Bakhtin,
1979, p. 87)
Uma premissa fundamental da linguística contemporânea é justamente o
enfoque na modalidade oral da linguagem, sendo até comum vê-lo como
princípio programático, nos manuais correntes de divulgação, para opor a
linguística à filologia. Ainda assim, na interpretação de Bakhtin (1979), o
linguista continua a aplicar às línguas vivas a metodologia e as categorias
analíticas adquiridas do longo convívio com as línguas mortas-escritas-
estrangeiras. O resultado desse tratamento é a concepção de linguagem que
o norteia, que é a de um objeto de estudos isolado-fechado-monológico,
absolutamente desvinculado do contexto social.11
Para resolver problemas da estrutura linguística, a alternativa teórica
introduzida por Labov, na década de 1960, postula, por princípio, que a
heterogeneidade é inerente ao sistema linguístico; além disso, concebe a
análise da língua com base num conjunto de formas que se manifestam, de
fato, no contexto social. Nessa perspectiva, a língua é constituída por um
conjunto de fenômenos não estritamente linguísticos, mas também
extralinguísticos, que participam ativamente da aplicação de uma regra,
favorecendo-a ou desfavorecendo-a. É possível afirmar que se inaugurou aí,
com o advento da sociolinguística, um dos primeiros movimentos
orquestrados, não obviamente o único, contra a tendência tradicional de
considerar a língua um objeto de estudos tão isolado do uso que lhe dá a
configuração de um cadáver que se disseca. A perspectiva inaugurada por
Labov pretendeu superar o idealismo homogeneizante da linguística
contemporânea: não há fronteira nítida entre língua e fala ou competência e
desempenho; ao contrário,o objeto de estudos é a língua de fato em uso no
contexto social, em que predominam as situações mais informais.
No entanto, para sustentar a ideia de que fenômenos reais, observáveis
nos dados empíricos coletados na comunidade de fala, é que devem
constituir o verdadeiro substrato da análise linguística, Labov (1969) adotou
o formalismo da gramática gerativa para representar esse tipo de processos
de variação. Essa metodologia incluiu inovações na regra de reescrita do
paradigma chomskiano, como a adoção de colchetes angulares para referir-
se a variáveis dependentes, e expoentes gregos para indicar o grau de
influência de um condicionamento sobre o outro, transformando, portanto,
na representação formal, a noção de regra opcional em regra variável.
Apesar das substanciais descobertas de regularidades sob a égide da
noção de regra variável, esse conceito entrou rapidamente no fogo cerrado
da crítica, quando, na década de 1970, o conceito foi estendido aos
fenômenos sintáticos com os mesmos métodos aplicados aos fenômenos
fonológicos. A dificuldade de lidar com o fato de que dificilmente duas
variantes sintáticas contêm o mesmo significado representou uma crise no
estatuto metodológico da teoria variacionista, em razão de forte reação
provocada por Lavandera (1978), com réplica de Labov (1978), e também
por Romaine (1981) e García (1985). O ataque de Romaine mirou o aspecto
indutivista da teoria, enquanto os de Lavandera e García, o estatuto teórico
da regra variável, quando aplicada à sintaxe.
A polêmica entre Lavandera (1978) e Labov (1978) se resume à questão
da real equivalência semântica entre duas variantes sintáticas. O aspecto
crucial é que a noção de equivalência semântica implica uma redução muito
drástica da noção de significado referencial, se a sociolinguística insistir em
manter o princípio de que duas formas alternativas são variantes se
representarem o mesmo valor de verdade no mesmo contexto de ocorrência.
Em vez de operar com essa concepção extremamente limitada de
significado, Lavandera (1978) propõe substituir o conceito de equivalência
semântica pelo de comparabilidade funcional.12
Garcia (1985) sugere compartilhar a mesma opinião ao tecer críticas ao
modo como Weiner e Labov (1983) veem as noções de escolha entre
construções passivas e ativas sem agente. Um dos objetivos desses autores é
apresentar um estudo quantitativo dos fatores que determinam a preferência
na seleção de construções passivas sobre as ativas por falantes do inglês, e
esclarecer a questão qualitativa crucial de quais traços sintáticos e quais
traços semânticos do contexto determinam a escolha entre as duas
alternativas.
Para Garcia (1985), a falta de clareza que Weiner e Labov (1983) têm do
conceito de escolha linguística estaria supostamente arraigada na visão de
linguagem que eles compartilham, identificada por Garcia como um
comportamento governado por regras. Dessa perspectiva, a tarefa do
linguista deveria ser somente descobrir e descrever as regularidades ocultas
que “governam” o aparente caos e grau de arbitrariedade do uso de uma
língua, uma visão que é altamente compatível com o desejo variacionista de
assumir a equivalência linguística de diferentes expressões e dividir a
distribuição de formas governadas por regras em categóricas e variáveis.
É justamente esse postulado que, segundo Garcia (1985), esvaziaria o
termo escolha do conteúdo linguístico que ele implica. Seria, portanto,
sistemática e significativamente abandonado nos estudos variacionistas
justamente o valor comunicativo das alternativas envolvidas, a diferença
que elas fazem para o que se diz quando se escolhe uma forma em vez de
outra. O fato de que, nesses termos, o falante nunca faz uma escolha, parece
a Garcia (1985) particularmente paradoxal e especialmente deplorável num
enfoque para o qual é supostamente básica a natureza social da linguagem
(Garcia, 1985, p. 220).
6. VIAS ALTERNATIVAS
Eckert (2005) chama a atenção para uma nova perspectiva
metodológica, que retraduza o conceito de variável linguística, entendendo-
o como o lugar da construção do significado social da linguagem. Ao fazer
sua proposta, todavia, reconstrói a trajetória dos últimos 40 anos de
pesquisa sociolinguística, em que distingue três ondas de prática analítica.
A primeira onda nos estudos variacionistas, lançada pelo estudo de
Labov sobre a cidade de Nova York (1966), estabeleceu correlações entre
variáveis linguísticas e categorias sociais primárias, como classe
socioeconômica, gênero, idade, escolaridade etc. Os padrões regulares e
sistemáticos de covariação social e linguística levantaram questões sobre
relações sociais subjacentes às categorias sociais primárias, o que conduziu
ao surgimento da segunda onda, caracterizada por estudos etnográficos de
populações mais localmente definidas.
Os estudos etnográficos enfocam comunidades menores por períodos de
tempo relativamente longos, com o objetivo de descobrir as categorias
sociais localmente mais salientes. Essas categorias podem ser instanciações
locais das categorias primárias que guiam os estudos quantitativos, mas o
traço distintivo crucial desse tipo de estudos é a descoberta do lugar dessas
categorias na prática social local.
Segundo Eckert (2005), a primeira via etnográfica, quantitativamente
orientada da variação, aberta por Labov no estudo realizado na ilha
Martha’s Vineyard, foi depois trilhada por outras pesquisas realizadas na
Europa. No enfoque etnográfico de Belfast, Milroy (1980) avançou-o mais,
ao enfocar comunidades de classe operária e examinar a relação entre
engajamento local e uso do vernáculo, correlacionando o uso de variáveis
vernaculares locais com a densidade e a multiplicidade da rede de relações
sociais do falante.
A terceira onda, que se desenvolveu mais recentemente, centra o foco na
variação vista não como o reflexo do lugar social num ponto da escala, mas
como um recurso para a construção de significado social. É justamente
Eckert (2000) que se tem voltado para a necessidade de conectar essas
categorias sociais mais abstratas, arraigadas na experiência do falante, com
as comunidades imaginárias mais amplas, centrando foco na construção do
conceito de comunidade de prática. Uma comunidade de prática é um
agregado de pessoas que se juntam para engajar-se em algum
empreendimento comum. Na esteira desse engajamento, a comunidade de
prática desenvolve meios para fazer coisas que se traduzem em práticas
sociais, que envolvem a construção de uma orientação compartilhada em
relação ao mundo em volta.
O conceito-chave para o processo de construção é o de prática
estilística. Até aqui, nos estudos variacionistas, o estilo tem sido tratado
como ajustes à (in)formalidade da situação mediante o uso de variáveis
individuais. A face renovada de estilo o identifica com o modo como os
falantes combinam variáveis para criar modos distintivos de fala, que
fornecem a chave para a construção da identidade social. Continuamente, os
falantes atribuem significado social à variação de um modo consequente,
situação que os colocam como verdadeiros protagonistas do processo de
variação, e que o trabalho de Eckert (2000) parece querer recuperar.
7. A SOCIOLINGUÍSTICA E O ENSINO DA LÍNGUA MATERNA
7.1. O conflito entre norma e variação
A natureza discriminatória que a linguagem pode assumir leva-nos,
como linguistas, a refletir sobre a questão que mais nos afeta: em que grau o
processo de ensino da língua materna contribui para o agravamento ou para
a simples manutenção da situação de exclusão a que está sujeita a
população socialmente marginalizada? Certamente são numerosos os
aspectos que respondem a essa questão. Nenhum, porém, é ainda hoje mais
relevante que o da relação de conflito que se estabelece entre a cultura
imposta como referencial exclusivo e as experiências vivenciadas,
especialmente pelo jovem provindo de camadas marginalizadas. Enfocando
essa relação de um ângulo estritamente linguístico, delineia-se o conflito no
âmbito da polarização entre a língua de fatoensinada na escola, como
referencial exclusivo, que podemos denominar norma padrão, e o dialeto
social que o aprendiz domina, de acordo com sua origem sociocultural.
Ao assumir, de fato e de direito, o princípio da heterogeneidade inerente
à linguagem, a linguística moderna, especialmente a Sociolinguística,
eliminou preconceitos, ao afirmar, axiomaticamente, que todas as línguas e
variedades de uma língua são igualmente complexas e eficientes para o
exercício de todas as funções a que se destinam; que nenhuma língua ou
variedade dialetal impõe limitações cognitivas na percepção e na produção
de enunciados.
A tradição pedagógica replica, entretanto, que, na prática de quem
educa, a teoria é bem outra: há uma e somente uma língua correta e eficaz a
todas as circunstâncias de interação, que se define como norma padrão.
Esse conceito, que não implica nenhuma variedade específica de
linguagem, representa uma forma institucionalizada de imposição baseada
em registros escritos e literários. Adquiriu o direito de ser a língua e de
aplicar às demais variedades cuidados repressivos. Sabe-se perfeitamente
como é a variedade culta urbana do Brasil, mas a norma padrão não a
reconhece, limitando-se a repetir regras das gramáticas portuguesas
instituídas no século XVIII. A fusão, numa coisa só e indiscriminada entre
língua e norma padrão, acaba passando por uma espécie de variedade neutra
e universal, modo de existência próprio dos mecanismos tipicamente
ideológicos.
Contrariando a linguística em seus princípios, a pedagogia da língua
materna elege o correto e o incorreto sua dicotomia predileta para
discriminar e, ao mesmo tempo, selecionar. Sem qualquer respaldo nos
fatos linguísticos da variedade urbana culta, mas baseada solidamente em
motivações sociais, que a rubrica do incorreto mal encobre, a tradição
pedagógica acaba por liquidar o último reduto das camadas marginais —
justamente o que lhes é peculiar e identificador: sua própria variedade de
linguagem. No lugar dela nada repõe, uma vez que perde o tempo que tem
para o trabalho reflexivo sobre a linguagem, repetindo, ano a ano, as
mesmas inúteis listas de exceções de regras, a mesma classificação
gramatical. Esse procedimento estigmatiza indelevelmente formas
discursivas complexas e eficazes do quotidiano e nada repõe. As marcas
são, no entanto, certamente fortes e profundas.
O sentimento de aversão que a pedagogia da língua cria é de tal monta
que os danos podem ser irreversíveis. Um dos danos mais simples de
detectar é o horror que as crianças sentem diante da página em branco,
seguido da inevitável pergunta: “Quantas linhas, professor?”. Assim, ao
impor um modelo de linguagem, sem qualquer direito a apelação, com
exclusividade e em substituição à variedade que o aluno já domina, como se
simplesmente nada dominasse, a escola parece simplesmente ignorar a
diversidade linguística.
O problema da relação entre norma padrão e diversidade linguística,
aparentemente pedagógico, cruza linhas com a questão social e linguística
da adequação de variedades não cultas como sistemas de comunicação. Para
um sociolinguista, variações linguísticas podem classificar-se com base
numa oposição entre um modelo da diferença verbal e um modelo da
deficiência verbal. O modelo da deficiência considera diferenças verbais
como desvios da norma padrão, que, como vimos, está mais próxima das
classes mais privilegiadas. O modelo da diferença considera que as
variedades populares constituem um sistema linguístico nem deficiente,
nem inerentemente inferior ao de variedades cultas (cf. Wolfram e Fasold,
1974).
O ensino de língua na escola pratica tradicionalmente o modelo da
deficiência. O principal pressuposto da tradição normativa é que cabe à
escola o papel de compensar supostas carências socioculturais. Decorre
desse pressuposto que a principal tarefa do ensino é substituir formas das
variedades populares por formas da norma padrão. A esse modo de
existência, a Sociolinguística propôs uma alternativa fundamental, segundo
a qual variações de linguagem não devem passar por um crivo valorativo, já
que não são mais que formas alternativas que o sistema linguístico põe à
disposição do falante. Nesse caso, é outra a tarefa fundamental da
pedagogia da língua materna: cumpre-lhe, por um lado, atualizar
constantemente a norma padrão, substituindo prescrições ultrapassadas, de
base escrita e literária, por normas emanadas da variedade culta urbana, já
sobejamente conhecida; cumpre-lhe, por outro lado, despertar a consciência
do aluno para a adequação das formas às circunstâncias do processo de
comunicação.
Por trás desse programa, há alguns pressupostos, como o de que formas
socialmente estigmatizadas operam como estruturas linguísticas tão
complexas e eficazes quanto as formas mais prestigiadas. Outro
pressuposto, mais geral, afirma que a norma padrão não constitui um
modelo universal — a língua. É apenas a variedade mais prestigiada, cujo
formato atual decorre de registros escritos e literários sem qualquer relação
com o padrão culto real. Desfaz-se, assim, aquela fusão equivocada de
língua e norma padrão, anteriormente mencionada.
7.2. Ação normativa e violência simbólica
Impor com exclusividade a norma padrão, misturar uma pitada de
intolerância para com a variedade que as crianças dominam são os
ingredientes de uma receita infalível que se resume na rejeição à língua e no
desenvolvimento de um processo de insegurança linguística. Para as
crianças socioeconomicamente favorecidas, o mal é certamente menor,
embora presente também. Como, desde a primeira infância, essas crianças
se acham familiarizadas com a variedade urbana culta, o modelo escolar,
baseado na norma padrão, representa uma extensão parcial do processo de
socialização iniciado pelos pais.
Desse modo, parece impor-se uma correlação: quanto maior a
familiaridade cultural que o alunado mantém com a norma padrão veiculada
pelo ensino, tanto maior a probabilidade de êxito ao longo do processo
escolar. Nesse aspecto, as camadas marginalizadas nadam contra a maré. A
modalidade de cultura que a escola desenvolve afina-se mais com a das
classes dominantes e com a imposição da norma padrão. O problema é
maior quando essa modalidade se impõe ao ensino como referencial
exclusivo a que outros modos de existência cultural acabam por submeter-
se.
Tal cultura é arbitrariamente imposta, já que, na relação pedagógica em
si mesma, abstratamente considerada, nada há que leve a instituir a matriz
de valores da classe dominante como cultura referencial exclusiva a
transmitir. Objetivamente, a ação pedagógica reveste-se, assim, de violência
simbólica, pois decorre da imposição, por um poder arbitrário, de uma
cultura também arbitrariamente selecionada, e que, de forma alguma, pode
ser deduzida de princípios universais. Na realidade, essa seleção é
arbitrária, porque se baseia nas relações de força entre os grupos sociais
(Bourdieu e Passeron, 1975).
O papel que a norma padrão desempenha nesse jogo é óbvio: o valor
simbólico das variedades linguísticas disponíveis cultas e populares está em
função da distância que as separa da norma padrão que a escola impõe. A
instituição não reconhece a legitimidade da variação linguística. Muito pelo
contrário, acaba por submetê-la ao critério de correção. O que passa é um
paradigma de expressões vinculado ao registro formal de uma modalidade
escrita já ultrapassada. O que sobra é proscrito como realizações imperfeitas
e deficientes, em confronto com a matriz de valores eleita. Assim, o valor
simbólico das diferentes variedades linguísticas depende sempre da
distância que as separa da norma padrão, que a escola impõe sob a condição
de um modelo neutro e universal. Por conseguinte, a desigual distribuição
do capital linguístico escolarmente rentável (Bourdieu e Passeron, 1975) é
um dos elos mais dissimulados da relação entre sucesso escolar e origem
social.
Para ocultar e dissimular esse modo de existência, a instituição escolar,
aqui no Brasil e em outras partes do mundo, desenvolve princípios,como o
da privação cultural e o da deficiência verbal, deslocando a causa de si
própria para o aluno. Em termos linguísticos, acredita na estratégia
erradicacionista do ensino compensatório, que procura liquidar as formas
das variedades populares, suprindo a lacuna com outras alternativas,
próprias da norma padrão.
O problema é que essa estratégia provoca conflitos entre diferentes
sistemas de valores e estes, por sua vez, desencadeiam obstáculos sérios à
aquisição da própria norma padrão (Camacho, 1984). A emergência de
conflitos, entre sistemas diversos de valores, dá vazão ao surgimento de
questões ideológicas. A variedade linguística de uma comunidade é fator de
identificação social de seus membros. Se for estigmatizada pela escola, em
contraponto à norma padrão, instaura-se um conflito entre os valores
simbólicos, que a instituição pretende inculcar, e os que o aluno tem para
compartilhar com os demais membros de sua própria comunidade e que o
identificam com seus pares (cf. Labov, 1964). Uma consequência drástica
desse conflito pode ser a rejeição tácita da própria norma padrão, em termos
de ensino de língua, e de outros valores da classe dominante. Em termos
práticos, tudo redunda em evasão e repetência escolar.
A solução desse conflito parece muito evidente. Em primeiro lugar, é
necessário atualizar constantemente a norma padrão com base nos registros
da variedade culta, modalidades escrita e falada. Em segundo lugar, é
acreditar no modelo da diferença e adotar outra estratégia para o ensino da
língua materna. O ensino da norma padrão não necessita ser substitutivo e,
por isso, não implica a erradicação das variedades populares. As formas
alternativas podem conviver harmoniosamente na sala de aula. Cabe ao
professor o bom senso de discriminá-las adequadamente, fornecendo ao
aluno as chaves para perceber as diferenças de valor social entre elas e,
depois, saber tirar vantagem dessa habilidade, selecionando a mais
adequada, conforme as exigências das circunstâncias do intercurso verbal.
Se a padronização linguística é uma imposição institucional em
sociedades estratificadas, o sistema escolar tem um papel político relevante
a desempenhar para a promoção das camadas marginalizadas, que é o de
propiciar-lhes acesso a todos os bens simbólicos, dentre eles o acesso á
norma padrão. É essa ação transformadora que cabe à escola assumir com
urgência, para exercer, de fato e de direito, seu papel de instituição de
vanguarda.
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1. A esse propósito, ver o capítulo “Sociolinguística: Parte I”, neste volume.
2. A esse propósitover em Ribeiro e Garcez (1998) uma coletânea de textos representativos dessa
área.
3. É comum ouvir arroi em outras variedades, o que prova apenas que essas restrições de fato
existem, mas que são também dependentes do contexto sociogeográfico.
4. De A a D, o grau de atenção à forma aumenta progressivamente, o que identifica grau crescente
de formalidade. A situação predominante no contexto de uma entrevista gravada é a B, ou estilo
cuidadoso, ficando reservado ao contexto A, estilo casual, o registro que escapa das restrições sociais
de uma situação de entrevista; o contexto B é a situação de leitura de um texto, e o contexto C é a
situação de leitura de pares mínimos; em ambos os estilos de leitura há uma incidência significativa
da variável em estudo.
5. Remetemos o leitor aos capítulos “Fonética” e “Fonologia”, neste mesmo volume, para uma
identificação mais completa desses sons.
6. Adotamos aqui o critério estabelecido por Bagno (2003) e Faraco (2008) para distinguir as
variedades prestigiadas e as variedades estigmatizadas da norma padrão. Estando estreitamente
vinculada ao ensino formal, a norma padrão não é a variedade falada por ninguém, na medida em que
é extraída de textos literários; mesmo assim, ou por isso mesmo, exerce forte influência simbólica
sobre o imaginário de todos os brasileiros, principalmente sobre os membros das camadas sociais
mais privilegiadas.
7. A esse propósito ver Preti (1984), Burke e Porter (1997).
8. Cf. o original: “Linguistic theory is concerned primarily with an ideal speaker-listener, in a
completely homogeneous speech-community, who knows its language perfectly and is unaffected by
such grammatically irrelevant conditions as memory limitations, distractions, shifts of attention and
interest, and errors (random or characteristics) in applying his knowledge of the language in actual
performance”.
9. Ver o capítulo “Sintaxe”, neste mesmo volume.
10. Entenda-se C para consoante e V para vogal.
11. A história contemporânea da Linguística aponta para mudanças significativas em direção da
descrição da língua viva, falada. Vale observar que, no Brasil, os pesquisadores do Projeto de
Gramática do Português Falado, coordenado por Ataliba Teixeira de Castilho (cf. Castilho, 2006),
debruçaram-se sobre a observação direta do oral com o objetivo final de fornecerem uma gramática
de referência dessa modalidade de linguagem.
12. Para um tratamento mais completo desse assunto, ver Camacho (2010).
2
LINGUÍSTICA HISTÓRICA1
Nilson Gabas Jr.
1. INTRODUÇÃO
A Linguística Histórica estuda os processos de mudança das línguas no
tempo. Os estudos históricos, principalmente os desenvolvidos a partir do
século XIX com o latim, o grego e o sânscrito, são tão importantes em
linguística (conforme veremos na seção 2) que a própria disciplina, a
Linguística, afirmou-se como ciência a partir deles.
Neste capítulo, estudaremos as principais características da Linguística
Histórica, em três seções distintas. Na seção 2, relataremos, concisamente, a
história da Linguística Histórica, a fim de dar ao leitor um panorama geral
de como se desenvolveu esse ramo da Linguística e também para situar sua
importância na história da disciplina. Na seção 3, descreveremos em
detalhes os vários tipos de mudança linguística possíveis de ocorrer nas
línguas do mundo, como as diversas modalidades de mudanças de som, os
processos de analogia, as mudanças gramaticais e semânticas. Na seção 4,
apresentaremos como ocorre a classificação genética entre línguas e o
principal método de reconstrução linguística utilizado para esse fim, o
método comparativo, que teve início no século XIX e que continua a ser
utilizado até hoje como um poderoso mecanismo de reconstrução histórica
de línguas.
2. O INÍCIO DA LINGUÍSTICA HISTÓRICA
Semelhanças aparentes entre línguas distintas sempre chamaram a
atenção de estudiosos e curiosos em todo o mundo. Foi, no entanto, apenas
no final do século XVIII que Sir William Jones, um juiz inglês na Índia,
oficial e acertadamente propôs que o latim, o grego e o sânscrito eram
línguas aparentadas entre si. Sir Jones foi além: não apenas demonstrou,
com os métodos de correspondência de som, que tal afirmação era possível
de ser comprovada, como também hipotetizou que as três línguas eram
derivadas de uma outra língua, possivelmente já extinta (hoje sabemos que
se trata do protoindo-europeu). Era o começo de estudos sistemáticos em
Linguística Histórica e Comparativa, que, graças à farta quantidade de
registros históricos, se concentraram nas línguas indo-europeias.
Depois de Sir William Jones, as principais contribuições para o estudo e
entendimento das relações entre as línguas indo-europeias foram feitas
pelos dinamarqueses Rasmus Rask e Karl Verner e pelo alemão Jacob
Grimm. Ao comparar latim, grego e sânscrito com as línguas germânicas
(alemão, inglês, dinamarquês, holandês etc.), Rask descobriu, e um pouco
mais tarde Grimm aperfeiçoou analiticamente, as seguintes mudanças com
relação à língua-mãe, o protoindo-europeu (PIE):2
1) as consoantes oclusivas surdas (p, t, k, kw) do PIE mudaram em
fricativas surdas correspondentes (f, θ, h, hw) nas línguas germânicas;
2) as consoantes oclusivas sonoras (b, d, g, gw) do PIE mudaram em
oclusivas surdas correspondentes (p, t, k, kw) nas línguas germânicas;
3) as consoantes aspiradas sonoras (bh, dh, gh, gwh) do PIE mudaram
em oclusivas não aspiradas sonoras correspondentes (b, d, g, gw) nas
línguas germânicas.
Embora Grimm tenha chamado tais mudanças de “mudanças de som”,
elas ficaram conhecidas mais tarde como “Lei de Grimm”, e a metodologia
para seu estabelecimento serviu como base para outros pesquisadores
estabelecerem e comprovarem mudanças de som em outras línguas do
mundo.
Os estudos com línguas indo-europeias continuaram, e descobriu-se,
mais tarde, que um grupo de palavras da família germânica parecia desafiar
as leis de Grimm, quando comparadas ao grego ou latim. Foi constatado
que, em algumas palavras da família germânica, as consoantes sonoras /b/,
/d/ e /g/ correspondiam às consoantes surdas /p/, /t/ e /k/ do grego, em vez
de corresponder à série de consoantes fricativas /f/, /θ/ e /x/, como previa a
“Lei de Grimm”. Alguns exemplos são apresentados a seguir.
Tabela 2.1
Alemão antigo ubar “sobre”
Grego hupér “sobre”
Inglês antigo fæder “pai”
Grego patē´r “pai”
Alemão antigo swigur “sogra”
Grego hekurā´ “sogra”
Exemplos como esses tornaram-se um problema para as mudanças de
som propostas por Grimm e intrigaram estudiosos por algum tempo, até que
Karl Verner propôs uma solução satisfatória. Segundo Verner, uma mudança
fonológica teria ocorrido posteriormente às mudanças de som propostas por
Grimm, em que as consoantes fricativas /f/, /θ/ e /h/ das línguas germânicas
teriam passado às oclusivas sonoras /b/, /d/ e /g/ correspondentes em início
de sílabas pretônicas. Verner resolveu, assim, o impasse e, como Grimm,
teve sua solução batizada com o nome de “Lei de Verner”.
Rask, Grimm e Verner foram, não obstante, apenas os mais eminentes
pesquisadores das línguas indo-europeias. O clima para estudos de caráter
comparatista durante o século XIX era contagiante, sendo vários os
estudiosos que os seguiram, ou que desenvolveram novos estudos
comparativos baseados nos princípios anteriormente desenvolvidos,
contribuindo sobremaneira para o desenvolvimento e sistematicidade de
estudos de reconstrução linguística.
Dentre o segundo grupo de estudiosos destaca-se um grupo (ou escola)
centrado na Universidade de Leipzig, na Alemanha. Os membros deste
grupo, denominado neogramáticos, eram contra os métodos vigentes da
comparação linguística. Eles questionavam basicamente o fato de os
estudos comparatistas basearem-se em dados de língua escrita e não de
língua falada.3 Para dar conta das mudanças nas línguas estudadas, os
neogramáticos apregoavam o reconhecimento e a utilização de dois
princípios: (i) o princípio da não excepcionalidade das regras de mudança
de som;4 (ii) o princípio da analogia.5
Os métodospreconizados pelos neogramáticos nortearam os trabalhos
em linguística comparativa até meados do século XX, quando a esses se
opôs Wang (1969), em sua proposta posteriormente conhecida como “teoria
da difusão lexical”. Tarallo (1990) descreve assim esta controvérsia entre
neogramáticos e difusionistas:
A controvérsia entre os neogramáticos e os defensores da difusão lexical gira em torno de dois
pares de termos: som e palavra, de um lado, e gradual e abrupto, de outro. Assim, para os
neogramáticos a mudança fonológica é foneticamente gradual, mas lexicalmente abrupta; para os
“difusionistas”, a mudança fonológica é, ao contrário, foneticamente abrupta, mas lexicalmente
gradual.6
Sabemos, hoje em dia, graças a essa controvérsia (resolvida por Labov,
em 1981),7 que as leis de mudança de som não são tão poderosas quanto
preconizadas pelos neogramáticos, e que há inúmeros casos em que elas
ocorrem lenta e gradualmente, obedecendo à história de cada palavra, de
acordo com os preceitos da teoria da difusão lexical.
Considerando a rigidez científica com que foram postulados e efetuados,
é possível perceber que os estudos comparativos com as línguas indo-
europeias, nos séculos XVIII e XIX, contribuíram de maneira fundamental
para o nascimento e progresso da Linguística Histórica e para o próprio
estabelecimento da Linguística como ciência.8
3. MUDANÇA LINGUÍSTICA
Toda língua falada no mundo está em constante processo de mudança.
As mudanças que ocorrem, no entanto, não são imediatamente sentidas
pelos falantes, nem estes falantes estão necessariamente conscientes de tais
mudanças. Isso se deve, via de regra, a três fatores: a) as mudanças são
lentas e graduais; b) elas são parciais, envolvendo apenas partes do sistema
linguístico e não o seu todo; c) elas sofrem influência de uma força oposta,
a força de preservação da intercompreensão. Em princípio, e dado um
contexto apropriado, qualquer parte de uma língua pode mudar, desde o
nível fonético-fonológico (dos sons) até o nível semântico (do significado).
Nas subseções que se seguem, trataremos de descrever em detalhe cada um
dos possíveis tipos de mudança linguística, isto é, as mudanças de som
(seção 3.1), as mudanças por meio de analogia (seção 3.2), as mudanças na
gramática (seção 3.3) e na semântica (seção 3.4).
3.1. Mudança de som9
Um dos principais mecanismos de mudança linguística é o de mudança
de som. Para que uma mudança de som ocorra, deve existir, em primeiro
lugar, uma variação10 linguisticamente não distintiva entre dois ou mais
sons, durante um certo período de tempo. O termo linguisticamente, usado
aqui para descrever variação não distintiva, é importante, já que o uso de
um ou outro som não implica diferenças de significado, mas pode implicar
diferenças de status social etc.
Visto que é antieconômico para os falantes de uma língua terem duas
variantes de uma mesma palavra, a tendência é que apenas uma delas
sobreviva. É muito difícil, no entanto, predizer quando ou mesmo se uma
determinada forma vai suplantar a outra, e qual delas será a vencedora. Isso
se deve principalmente ao fato de que é impossível prever o que uma
comunidade linguística irá ou deixará de adotar como forma padrão, já que
não é incomum observar casos em que fortes tendências a determinadas
mudanças não se concretizam. Quanto à sua natureza, as mudanças de som
são classificadas de acordo com o tipo de processo envolvido. Estes podem
ser, basicamente, de perda ou adição de fonemas, assimilação, dissimilação,
duração (ou prolongamento) e metátese.11 Descrevemos, a seguir, cada um
deles.
3.1.1. Perda ou adição de fonemas
Os processos de perda ou adição são os tipos mais frequentes de
mudança de som. Neles, um fonema é perdido ou ganho como resultado da
mudança. Veja, por exemplo, a mudança de /p/ do indo-europeu para Ø nas
línguas celtas (p > Ø) tanto em início quanto em meio de palavra:12
Tabela 2.2
Indo-Europeu Irlandês Antigo
*pətēr13 athair “pai”
*nepot- nie “sobrinho”
*tepent-s tëe “quente”
Como exemplo de mudança de adição, temos a inserção da vogal /e/ nas
palavras do português, espanhol e francês provindas das palavras do latim
que iniciavam em /s/ + consoante:
Tabela 2.3
Latim Português Espanhol Francês
sponsu esposo esposo époux
schola escola escuela école
3.1.2. Assimilação
Os processos de assimilação são os processos pelos quais um som
condiciona a ocorrência de outro som, tanto no ponto ou modo de
articulação, quanto no vozeamento.14 Existem basicamente três tipos de
assimilação, regressiva, progressiva e de enfraquecimento. Nos processos
de assimilação regressiva e progressiva podem participar tanto sons
consonantais quanto vocálicos. O tipo mais comum de assimilação, tanto
para consoantes quanto para vogais, é o regressivo, em que um som se
assimila a outro que o segue. Como exemplo de assimilação regressiva
envolvendo consoantes, vejamos o caso do desenvolvimento do latim para o
italiano, em que os grupos de consoantes -ct- e -pt- do latim passaram a -tt-
em italiano:
Tabela 2.4
Latim Italiano
noctem notte “noite”
factum fatto “feito”
septem sette “sete”
aptum atto “apto”
Como exemplo de assimilação regressiva envolvendo vogais, vejamos o
exemplo a seguir, em que, no desenvolvimento do latim para o português,
uma vogal central mudou em vogal posterior por assimilação à vogal
posterior que a seguia:
Tabela 2.5
Latim Português
aut ou
aurum ouro
taurum touro
Menos comuns são os processos de assimilação progressiva, em que um
som se assimila a outro que o precede. Vejamos, no exemplo a seguir, a
mudança de -ln- do inglês antigo para -ll- em inglês médio.
Tabela 2.6
Inglês antigo Inglês médio
eln elle “unidade de medida”
myln mille “moinho”
Vejamos agora um exemplo de assimilação progressiva envolvendo
vogais em turco. Em turco antigo, as vogais arredondadas (como o [ü]
exemplificado na Tabela 2.7) mudaram para não arredondadas, após vogais
não arredondadas, em turco moderno:
Tabela 2.7
Turco antigo Turco moderno
bilür bilir “ele (sabe)”
gelüp gelip “indo”
Finalmente, há os processos de enfraquecimento, que envolvem
consoantes em ambiente intervocálico. Há dois tipos principais de
enfraquecimento, o que faz uma consoante oclusiva tornar-se continuante, e
o que faz uma consoante surda tornar-se sonora. Como exemplo clássico do
primeiro, vejamos o caso a seguir do desenvolvimento do português, em
que consoantes oclusivas sonoras bilabiais se tornaram fricativas sonoras
bilabiais entre vogais:
Tabela 2.8
Latim Português
rubium ruivo
habēre haver
amābas amavas
Como exemplo de enfraquecimento em virtude da mudança de
sonoridade da consoante, vejamos o seguinte exemplo também do
desenvolvimento do português, em que uma consoante surda tornou-se
sonora em ambiente intervocálico:
Tabela 2.9
Latim Português
lupum lobo
mūtāre mudar
amiˉcam amiga
3.1.3. Dissimilação
Embora os processos de dissimilação sejam bem menos comuns do que
os de assimilação, eles são importantes o bastante para serem mencionados
aqui. Na mudança de som por dissimilação, um de dois sons similares se
modifica para ampliar ainda mais a diferença entre eles. Na história do
desenvolvimento do latim para o francês (e o português) podemos observar
dissimilação tanto de consoantes quanto de vogais.
O exemplo a seguir mostra a mudança de um dos /r/’s do latim para um
/l/ no francês.15 Este mesmo fato ocorreu em português, por exemplo na
palavra ‘ralo’, vinda do latim, rarum.
Tabela 2.10
Latim Francês
frāgrāre flairer “cheirar”
frī·gorōsum frileux “frio”
No exemplo a seguir, uma de duas vogais iguais sucessivas em latim
tornou-se /e/ em francês. O mesmo aconteceu, por exemplo, com a palavra
latina formosum, que em português arcaico mudou em fermoso.
Tabela 2.11
Latim Francês
diˉviˉnum devin “divino”
succussan secousse “choque”
3.1.4. Duração (ou prolongamento)
O tipo mais comum de mudança de som envolvendo duração é o que se
pode chamar de alongamento compensatório. Essa mudança ocorre quando
a primeira consoante de uma sílabapesada do tipo VCC cai. Para
compensar, então, o peso da sílaba, a vogal que a precede se prolonga. Esse
processo é bastante comum nas línguas indo-europeias, como mostra o
exemplo a seguir, do irlandês antigo:
Tabela 2.12
Celta comum Irlandês antigo
*magl māl “príncipe”
*kenetl cenēl “gênero”
*etn ēn “pássaro”
*datl dāl “assembleia”
3.1.5. Metátese
O processo de metátese é o menos frequente de todos os processos de
mudança de som. Na metátese há a inversão de posição de dois sons
adjacentes, envolvendo comumente uma consoante líquida e uma vogal.
Comparemos, no exemplo a seguir, a mudança do latim para o português:
Tabela 2.13
Latim Português
inter entre
super sobre
3.2. Analogia
Muitas mudanças linguísticas não podem ser explicadas exclusivamente
em termos de mudança de som. Certos tipos de mudança são mais
apropriadamente agrupados sob a denominação de analogia. De acordo com
Arlotto, analogia é “o processo pelo qual uma forma se torna mais parecida
com outra forma com a qual ela é de alguma maneira associada”.16
Um dos principais efeitos do processo analógico é o de fazer com que
uma forma inicialmente anômala ou irregular se torne regular. Um exemplo
envolvendo analogia pode ser observado no sistema de marcação de plural
no inglês moderno quando comparado ao inglês antigo. Em inglês antigo,
os nomes (ou substantivos) pertenciam a uma de quatro classes distintas e
cada um recebia uma forma de plural específica, dependendo de sua classe.
Representamos na Tabela 2.14 a forma de cada uma dessas classes,
primeiro no singular e subsequentemente no plural.
Tabela 2.14
Inglês antigo singular Inglês moderno singular
1. hand hand “mão”
2. gear year “ano”
3. ēage eye “olho”
4. stān stone “pedra”
Tabela 2.15
Inglês antigo plural Inglês moderno plural
1. handa hands “mãos”
2. gear years “anos”
3. ēagan eyes “olhos”
4. stānas stones “pedras”
Os exemplos das Tabelas 2.14 e 2.15 são ilustrativos de que os nomes
em inglês antigo que pertenciam à mesma classe de “hand” marcavam o
plural por meio da adição de {-a}; os nomes da mesma classe de “gear”
marcavam o plural por meio de um morfema Ø; os nomes da classe de
“ēage” marcavam o plural pela mudança do {-e} final para {-a} e
adicionando o morfema {-n}; e, finalmente, os nomes da classe de “stān”
marcavam o plural por meio do uso do morfema {-as}. Ao compararmos as
mudanças do inglês antigo para o inglês moderno, observamos que a
marcação do plural se regularizou, passando de quatro formas distintas para
apenas uma, a que utiliza o morfema {-as}, reinterpretado mais tarde apenas
como {-s}. Tal regularização ocorreu por meio de uma regra de proporção,
cuja base foi a marca de plural para a palavra stone. Comparada com hand,
essa regra de proporção é expressa da seguinte maneira:
stone:stones::hand:hands
onde se lê: stone está para stones, assim como hand está para hands.
Assim, seguindo esse mesmo processo analógico, o morfema {-s} se
estendeu como marca de plural para as demais palavras do inglês.
3.3. Mudança gramatical
Por mudança gramatical deve ser entendido todo processo que tem
como resultado uma mudança no sistema gramatical de uma dada língua,
seja no âmbito morfológico, seja no sintático.17 Os processos de mudança
gramatical se distinguem, assim, dos processos de mudança de som e de
analogia descritos anteriormente justamente pelo fato de, nos últimos,
nenhuma alteração gramatical ser produzida como resultado da mudança.
Um exemplo (clássico) de mudança gramatical é a perda da flexão
nominal com a consequente rigidez na ordem de palavras para expressar
relações gramaticais em várias línguas. Esse foi precisamente o caso do
desenvolvimento das línguas românicas (português, francês, espanhol,
italiano, romeno etc.) a partir do latim. Em latim, a ordem das palavras nas
sentenças era livre, e a determinação das relações gramaticais como sujeito
e objeto era feita por meio de um sistema de marcação de caso nos nomes
que compunham as orações. Com isso, era possível para o falante de latim
alterar a ordem dos constituintes sem prejudicar a identificação dessas
relações gramaticais. Com a perda do sistema de marcação de caso, a ordem
dos constituintes passou a ser fundamental, e as relações de sujeito e objeto
passaram a ser determinadas apenas pela sua posição na oração, o sujeito
ocorrendo primeiro, seguido do verbo, e depois o objeto. Notemos, no
exemplo do latim, que a ordem dos constituintes é alterada sem prejuízo
para o seu significado, graças às terminações dos nomes (-us para o
nominativo e -am para o acusativo) que mantêm marcadas,
respectivamente, as relações gramaticais de sujeito e objeto.
Marcell-us ama-t Claudi-am
Marcelo-NOM ama-3sg.PRES Claudi-ACC
‘Marcelo ama Cláudia’
Claudi-am ama-t Marcell-us
Claudi-ACC ama-3sg.PRES Marcelo-NOM
‘Marcelo ama Cláudia’
Note-se que, no exemplo do português a seguir, como não há marcação
de caso, se a ordem dos nomes é alterada, as relações gramaticais também o
são. Assim, obtemos significados radicalmente diferentes se alterarmos a
posição de “menino” e “cachorro” em:
O menino matou o cachorro. vs. O cachorro matou o menino.
3.4. Mudança semântica
Mudanças semânticas são as mudanças do significado das palavras (ou
vocabulário) de uma língua. Até o presente momento da história da
Linguística, ainda não foi possível formular nenhum modelo abstrato de
mudança semântica, como foi feito para as mudanças fonético-fonológicas
e gramaticais. Isso se deve, em grande parte, à incapacidade de qualquer
modelo de conseguir tratar, de maneira sistemática, todos os casos (ou
tipos) de mudança envolvendo significado. Não obstante, interessantes
observações envolvendo mudança semântica têm possibilitado o
reconhecimento de alguns mecanismos que podem causar ou promover
mudanças de significado. Entre esses mecanismos encontram-se os
processos de aparecimento (ou neologismo), obsolescência, contato
semântico, isolamento de formas e deslocamento semântico. Veremos, a
seguir, cada um desses mecanismos.
3.4.1. Aparecimento ou neologismo
Quando um novo item é inserido no léxico de uma língua, seja por
mecanismos internos ou externos, ocorre o fenômeno de aparecimento. Essa
inserção pode se dar por diversos fatores como, por exemplo, pela
necessidade de se nomear novas descobertas ou invenções (ex. cd-player), e
novas atitudes ou tendências ligadas a um nome próprio (ex. narcisismo,
getulismo) etc.18
Dentre as classes de palavras passíveis de terem acrescido um novo item
lexical, a mais comum é a classe dos nomes, pelo processo de empréstimo
linguístico. Como exemplos de empréstimo linguístico podemos citar, em
português brasileiro, a ocorrência de nomes de origem indígena,
principalmente tupinambá, graças à história do contato entre portugueses e
índios desde o início da colonização.19 Assim, temos nomes de origem
indígena para designar os mais variados referentes, como animais: acará,
pacu, jiboia etc.; plantas: jacarandá, mandioca etc.; objetos: maracá,
arapuca etc.; comidas típicas: beiju, piracuí etc.; lugares: Capanema (mata
ruim, imprestável), Jaguariúna (rio preto das onças) etc. Outros nomes
estrangeiros não indígenas também fazem parte do português atual, tais
como software, mouse etc., provenientes do inglês; déjà vu, chique, menu,
corbelha etc., do francês; haraquiri, nissei etc., do japonês; bazar etc., do
persa; quibe etc., do árabe; iogurte etc., do turco; ioga, laca etc., do
sânscrito.
3.4.2. Obsolescência
Obsolescência é o processo exatamente oposto ao de aparecimento, em
que um item lexical cessa de existir em uma dada comunidade linguística
graças, principalmente, à sua baixa frequência de uso. Em função da
existência de mecanismos de recuperação, como os registros escritos (ex.
textos antigos, dicionários etc.) ou a própria memória (no caso das línguas
ágrafas), não é possível estabelecer com precisão quando um item lexical
não faz mais parte do vocabulário de uma dada língua. Algumas palavras do
português que provavelmente já sofreram o processo de obsolescênciasão,
por exemplo, alugatário (“inquilino, locatário”), clavina (“carabina”),
monoquini (“maiô de uma peça”), repostaria (“dependência dos palácios e
casas nobres”) e tassalho (“fatia grande”).
3.4.3. Contato semântico
A mudança semântica por contato semântico se dá quando um item
lexical existente adquire um outro significado a partir de um contexto
específico. Um exemplo clássico desse tipo de mudança pode ser observado
na palavra bead, do inglês, que atualmente significa “conta de um colar”.
Bead provém do inglês antigo, gebed, e significava “reza, oração”. A
explicação da mudança de significado de “reza” para “conta” vem do fato
do costume, entre os membros da Igreja Católica, de contar suas rezas ou
orações em rosários, formados por contas. O novo sentido de bead, como
“conta”, no entanto, só foi possível de se estabelecer plenamente quando a
palavra prayer foi emprestada do francês para cobrir o sentido antigo de
“reza, oração”.
3.4.4. Isolamento de formas
A mudança semântica por isolamento de formas se dá quando um item
particular de um grupo relacionado de formas (paradigma) se distancia do
resto e assume um significado distinto. Um exemplo disso é a palavra do
latim tec-tum, “teto”. Originalmente, esta palavra era uma derivação de
teg-, “cobrir” e -tum, um sufixo usado produtivamente para formar nomes
de verbos. Com o desenvolvimento do latim arcaico para o latim clássico, -
tum passou a não ser mais produtivo, e tectum pôde assumir o significado
especializado de “teto”.
3.4.5. Deslocamento semântico
Embora praticamente ilimitado, o fenômeno de deslocamento semântico
pode ser classificado em pelo menos quatro tipos distintos, de acordo com
sua natureza: a) extensão; b) estreitamento; c) uso figurativo; d) desvio.
Descreveremos cada um desses fenômenos a seguir.
a) Extensão: por extensão de significado entendemos o fenômeno pelo
qual o(s) sentido(s) de um dado item lexical aumenta(m) em número com o
passar do tempo. Observamos isso, por exemplo, na palavra salário, que em
português moderno significa “pagamento em dinheiro pelo trabalho regular
de qualquer pessoa”. A palavra ancestral de salário é salārium do latim, e
tinha o significado limitado de “pagamento em qualquer espécie pelo
trabalho regular de um soldado”. Salārium, por sua vez, foi primeiramente
usado para significar “pagamento em sal pelo trabalho regular de um
soldado”. Houve, então, as seguintes extensões de significado de salário, a
partir do seu significado original: “pagamento em sal pelo trabalho regular
de um soldado” > “pagamento em qualquer espécie pelo trabalho regular de
um soldado” > “pagamento em dinheiro pelo trabalho regular de qualquer
pessoa”.
b) Estreitamento: estreitamento (ou restrição) é o processo inverso da
extensão. Por meio dele, um item lexical tem seu significado estreitado ou
restringido. Um exemplo do português é a palavra pílula que, em seu
sentido original significa “medicação em forma comprimida para ser
tomada oralmente”, mas que, por um processo de estreitamento de sentido,
está passando a significar “contraceptivo oral”.
c) Uso figurativo: um dos processos mais frequentes de deslocamento
semântico acontece pelo uso figurativo da linguagem. Uso figurativo ocorre
quando há um deslocamento (na maioria das vezes intencional) do sentido
original de uma palavra, por meio dos processos tradicionalmente
conhecidos como metáfora, metonímia, sinédoque etc. Como exemplo
ilustrativo de uso figurativo, vejamos um caso de deslocamento de
significado envolvendo a palavra “boneca”. Quando dizemos que tal mulher
ou criança é uma boneca, para nos referirmos à sua beleza física, estamos
deslocando, do significado original de “boneca”, sua propriedade de ter
invariavelmente formas bem-feitas e de ser bonita, e caracterizando também
a referida mulher ou criança como possuindo as mesmas características.
Depois de ser aceito e difundido pela comunidade de falantes de português,
tal uso fez com que a palavra “boneca” tivesse significado duplo (ou duas
entradas no dicionário), e equivalesse, além do seu sentido original, também
ao significado de “mulher ou criança bonita”.20
d) Desvio: desvio é o processo pelo qual um item lexical continua a
existir, apesar de seu significado mudar (se desviar) sem grandes mudanças
no seu campo semântico original. Um exemplo de desvio é a palavra
inglesa artillery, “artilharia”, do inglês médio artillerie, que se referia aos
utensílios e armas de guerra do chão utilizados naquela época, como
catapultas, flechas etc., e que, presentemente, se refere aos utensílios
modernos como tanques, canhões, metralhadoras, morteiros etc.
Os mecanismos de mudança linguística, tais como os aqui descritos
(mudança de som, analogia, mudança gramatical e semântica), são
utilizados como base para o estabelecimento de classificações genéticas
entre diferentes línguas e para a reconstrução de protolínguas. Passemos
agora à descrição de como se dão os processos de classificação genética e
de reconstrução linguística.21
4. CLASSIFICAÇÃO GENÉTICA E RECONSTRUÇÃO
Um dos propósitos da Linguística Histórica é a classificação genética
entre línguas e sua reconstrução. Nesta seção trataremos de descrever e
exemplificar o que é a classificação genética de línguas e como se faz a
reconstrução da fase pré-histórica de uma língua. Tentaremos responder a
questões como: (i) o que significa, exatamente, classificar uma língua
geneticamente?; (ii) o que são duas (ou mais) línguas geneticamente
relacionadas?; (iii) como é determinado o grau de parentesco entre elas?
4.1. Classificação genética
Classificação genética é o processo pelo qual línguas distintas são
agrupadas em uma dada classe, seguindo critérios que podem ser
tipológicos (referentes ao compartilhamento de traços fonético-fonológicos
e gramaticais) ou teóricos (referentes à ocorrência de correspondências
recorrentes entre elementos linguísticos não universais).
As primeiras classificações genéticas sistemáticas de línguas seguiram
critérios teóricos, baseados em correspondências de som, e começaram
apenas depois dos estudos de Grimm e Verner. Com base nos postulados
envolvendo mudanças de som, foi possível verificar até que ponto
semelhanças entre duas ou mais línguas eram devidas a empréstimo
linguístico, ao mero acaso, ou, principalmente, a recorrentes
correspondências de som, o que apontava para uma mesma ascendência
genética. Neste último caso, a hipótese era de que as línguas em questão
eram, no passado, uma única língua, chamada língua comum ou língua-
mãe.
Para expressar o relacionamento genético entre línguas aparentadas, o
meio mais utilizado até hoje (ainda que não o melhor) é o diagrama em
árvore, criado pelo alemão August Schleicher, no século XIX. Como
exemplo de um diagrama em árvore, consideremos as línguas A, B, C e D a
seguir:
Neste diagrama, A é considerada língua-mãe, e as línguas B, C e D são
seus descendentes diretos e consideradas línguas-irmãs entre si. É possível,
ainda, ter ramificações mais profundas, como, por exemplo:
onde [E e F], [G, H e I] e [J e K] formam três subgrupos distintos de
línguas-irmãs entre si, cujas línguas-mães são, respectivamente B, C e D,
que também são, por sua vez, línguas-irmãs entre si, e que têm A como
língua-mãe.
Quanto aos níveis de classificação em que se agrupam as línguas,
existem os troncos linguísticos e as famílias linguísticas. Um tronco
linguístico é formado por uma ou mais famílias linguísticas, cada família
possuindo uma ou mais línguas-irmãs, como ilustra o diagrama acima. É
importante ressaltar que é praticamente impossível para o linguista
determinar, de maneira precisa, em que ponto da história de uma língua esta
se dividiu em duas (ou mais) e assim por diante, até chegar ao presente.
Estudos mostram, no entanto, que o grau de profundidade temporal de um
tronco linguístico varia de 5.000 a 6.000 anos, e o de uma família
linguística varia de 2.000 a 4.000 anos. Embora haja linguistas que se
lancem a propor relacionamentos genéticos de línguas por períodos além donível de tronco linguístico, acreditamos que este seja o nível mais alto de
parentesco genético a que se possa chegar com segurança, já que propor um
nível superior implicaria a criação de hipóteses pouco sustentáveis e de alta
improbabilidade. Como observação final, é importante lembrar que, embora
a ocorrência de grupos de línguas aparentadas seja uma regra entre as
línguas do mundo, existem línguas que não são geneticamente classificadas
como pertencendo a um grupo linguístico ou outro. Tais línguas são, por
isso, denominadas línguas isoladas. O exemplo clássico de língua isolada é
o basco, falado na Espanha. No Brasil, várias línguas indígenas são
classificadas como isoladas, por exemplo, o koaiá (ou kwazá) e o aikaná, no
Estado de Rondônia; o irántxe e o trumái, no Estado do Mato Grosso; e o
tikúna, no Estado do Amazonas.
4.2. Reconstrução linguística
Uma vez determinado o parentesco genético entre duas ou mais línguas,
o passo seguinte é o da reconstrução da língua-mãe, com a descrição mais
completa possível das mudanças que se sucederam, e que resultaram nos
seus descendentes. Para reconstruir uma língua-mãe a partir de seus
descendentes, o método utilizado é o método comparativo, que envolve o
estabelecimento de correspondências de elementos fonéticos e
fonológicos22 entre palavras cognatas23 nas línguas envolvidas, e a
projeção desses elementos no passado, propondo um ancestral cujo
desenvolvimento pode ser demonstrado como fonte do que existe no
presente. Como um exemplo de reconstrução no nível fonológico, vejamos
a Tabela 2.16, contendo palavras24 de algumas línguas de diferentes
famílias do tronco tupi (Tu = Tupinambá, família Tupi-Guarani; Aw =
Awetí, família Awetí; Mu = Mundurukú, família Mundurukú; Ka = Karo,
família Ramarama; Kt = Karitiána, família Arikém; Tp = Tuparí, família
Tuparí; e finalmente Ga = Gavião, família Mondé).25
Tabela 2.16
Lista de palavras em diferentes línguas do tronco Tupi
Tu Aw Mu Ka Kt Tp Ga
1. po po biˉ pá piˉ po pabe “mão”
2. tı˜ — — tı˜ — tı˜́ı˜ “envergonhar-se”
3. men men — mẽn mana men met “marido”
4. kiˉr kiˉr kit — ket kiˉt kír-i “imaturo”
5. a a a a o a aa “fruta”
O primeiro passo no trabalho de reconstrução é o de estabelecer as
correspondências de som, pela comparação dos itens lexicais. Trataremos
primeiramente das vogais, e depois das consoantes. Como correspondências
vocálicas entre as línguas acima, temos o seguinte:
Tabela 2.17
Correspondências vocálicas entre as palavras da Tabela 2.16
Tu Aw Mu Ka Kt Tp Ga
1. o o iˉ á26 iˉ o a
2. ĩ — — ĩ — i ĩĩ́
3. e e — ẽ a e e
4. iˉ iˉ i — e iˉ i
5. a a a a o a aa
O passo seguinte é o de comparar as correspondências obtidas entre si,
com o intuito de hipotetizar qual fonema estava presente na protolíngua, ou
língua comum, do qual cada um dos seus descendentes se desenvolveu. As
hipóteses a serem criadas devem seguir regras plausíveis que, de
preferência, tenham alguma motivação fonética, e que considerem o padrão
fonológico da protolíngua a ser recriado como um todo. Por uma questão
prática, analisaremos primeiramente as correspondências expressas nas
linhas 2-5. Temos, então:
Tabela 2.18
Correspondências vocálicas das linhas 2-5 da Tabela 2.17
Tu Aw Mu Ka Kt Tp Ga
2. ĩ — — ĩ — i ĩĩ́
3. e e — ẽ a e e
4. iˉ iˉ i — e iˉ i
5. a a a a o a aa
As correspondências da linha 2 apontam estatisticamente para a
possibilidade de ter havido um fonema /*i/ no prototupi. Assumiremos esta
hipótese como a mais plausível, e reconstruiremos o fonema vocálico /*i/
como primeiro integrante do conjunto de vogais da protolíngua, o prototupi.
Com relação à linha 3, é igualmente plausível que tenha existido um
fonema /*e/ que tenha se tornado /a/ em Karitiána.
A linha 4 é aparentemente um pouco mais problemática, pois temos a
possibilidade de reconstruir três vogais a partir dos reflexos encontrados:
/*i/, /*i/ ou /*e/. Entretanto, se considerarmos o fato de que as vogais /*i/ e
/*e/ já foram reconstruídas a partir dos reflexos encontrados nas linhas 2 e
3, respectivamente, resta-nos a possibilidade de reconstruir um proto /*i/,
que teria mudado em /i/ em Mundurukú e Gavião, e em /e/ em Karitiána.
Na última linha vemos que é muito provável a existência de um /*a/ no
prototupi, que se manteve como tal em todas as línguas dos nossos
exemplos, exceto em Karitiána, onde o proto /*a/ mudou para /o/. Voltemos
agora à nossa primeira linha de correspondências, ainda não analisada, que
reproduzimos a seguir.
Tabela 2.19
Correspondências vocálicas a linha 1 da Tabela 2.17
Tu Aw Mu Ka Kt Tp Ga
1. o o iˉ á iˉ o a
O problema que se coloca em relação às correspondências acima é o
mesmo encontrado com relação à linha 4, isto é, a existência de um leque
razoavelmente grande de possibilidades de reconstrução para a vogal
original: como propor uma protovogal baseados em três diferentes reflexos,
/o/, /i/ e /a/? Em primeiro lugar devemos deixar claro que o ideal seria
possuir mais dados para verificar se as correspondências observadas são
consistentes em todas as línguas ou não. Consideraremos, entretanto, que,
para fins didáticos, os dados anteriores são representativos. O método,
então, a ser usado, deve seguir uma argumentação clara, como a aplicada na
determinação da protovogal /*i/. Assim, a partir dos reflexos encontrados
na linha 1, não poderíamos postular a existência de uma protovogal /*i/ ou
/*a/, pois tanto /*i/ quanto /*a/ já foram reconstruídos a partir de outros
reflexos, os encontrados, respectivamente, nas linhas 4 e 5, conforme
descrevemos. A solução mais adequada, então, seria postular a existência de
um protofonema /*o/, que teria se mantido como tal em Tupinambá, Awetí e
Tuparí, mudado em /i/ em Mundurukú e Karitiána, e em /a/ em Karo e
Gavião. O sistema vocálico do prototupi, de acordo com os dados
disponíveis, seria, então, composto das seguintes vogais:
*i *i *o
*e *a
Passemos agora a analisar as correspondências das consoantes em
nossos exemplos de línguas tupi, apresentadas na Tabela 2.20.
Tabela 2.20
Correspondências entre consoantes das palavras da Tabela 2.16
Tu Aw Mu Ka Kt Tp Ga
1. p p b p p p p
2. t — — t — n t
3. m m — m m m m
4. n n — n n n n
5. k k k — k k k
6. r r t — t t r
7.       
Sobre a linha 1 da Tabela 2.20, podemos hipotetizar a ocorrência de uma
consoante oclusiva bilabial surda /*p/ no prototupi, já que as
correspondências entre as línguas são quase unânimes. Para dar conta da
única ocorrência de /b/ como reflexo de /*p/ em Mundurukú, é possível
dizer que /*p/ tenha mudado em /b/, em Mundurukú, em ambiente de início
de palavra (ver o exemplo 1 da Tabela 2.1).
Sobre a linha 2, é possível hipotetizar a existência de um protofonema
/*t/, que provavelmente teria se nasalizado (mudado em /n/), em início de
palavra, em Tuparí.
As correspondências levantadas na linha 3 apontam diretamente para a
reconstrução de um protofonema /*m/, já que o reflexo /m/ é o único
encontrado nas línguas descendentes.
Na linha 4, pudemos reconstruir um protofonema /*n/, que se realizaria
como tal em todas as línguas de nossos exemplos, exceto em Gavião, onde
teria se desnasalizado e mudado para /t/.
Na linha 5, reconstruímos o protofonema /*k/, que se realiza como tal
em todas as línguas.
Com relação à linha 6, deixaremos a determinação do protofonema sem
uma solução definitiva, uma vez que é possível hipotetizar tanto a
existência de /*t/ quanto de /*r/ como fonema original (note-se que /t/
ocorre como reflexo em três das línguas de nossos exemplos, Mundurukú,
Karitiána e Tuparí, enquanto /r/ ocorre em outras três: Tupinambá, Awetí e
Gavião).27 Apenas com a coleta e análise de mais dados é que poderemos
decidir pela ocorrência de /*t/ ou /*r/ como protofonema do prototupi. Vale
ressaltar que, caso /*t/ fosse confirmado como o fonema original, o fato de
já termos definido a ocorrência de outro /*t/, a partir das correspondências
encontradas na linha 2, não constituiria um problema para nossa análise,
uma vez que esse segundo /*t/ ocorre em ambiente deinício de palavra,
enquanto o primeiro /*t/ (reconstruído a partir das correspondências da
linha 6) ocorre em ambiente de fim de palavra.
Finalmente, as correspondências apresentadas na linha 7 apontam para a
reconstrução de um protofonema //, já que é unânime a ocorrência desse
fonema em todas as palavras nas línguas em questão.
Com base nas reconstruções efetuadas, o quadro fonológico parcial das
consoantes da protolíngua ficaria assim representado:
*p *t *k */
*m *n (*r)
Após a reconstrução dos elementos tanto vocálicos quanto consonantais
do prototupi, o passo final da reconstrução fonológica é proceder à
reconstrução de cada uma das palavras dos nossos exemplos usando tais
elementos. O resultado é o seguinte:
1. *po “mão”
2. *ti (ou *ti) “envergonhar-se”
3. *men “marido”
4. *kit (ou *kir) “imaturo”
5. *a “fruta”
Finalmente, devemos ressaltar que o trabalho de reconstrução de uma
língua somente estará terminado quando, além da reconstrução
fonética/fonológica, forem também cumpridas as etapas de reconstrução
morfológica e sintática, para as quais são utilizados procedimentos gerais de
análise e levantamento de hipóteses como os observados na reconstrução
fonológica. Tais etapas de reconstrução não serão, no entanto, objeto de
análise deste capítulo.
O apêndice que se segue é uma representação do tronco linguístico
tupi.28 Por uma questão prática, não incluímos a descrição das línguas da
família tupi-guarani, a maior família do tronco tupi. Ela é composta de
aproximadamente 30 línguas faladas no Brasil e nos países vizinhos, e de
várias línguas que já desapareceram, entre elas o Tupinambá.
Relacionamos, no entanto, a seguir, as línguas dessa família, em que
dialetos de uma mesma língua são marcados por letras minúsculas (ex. a),
b), c) etc.), e línguas faladas em mais de um país são marcadas com um
asterisco (*).
Línguas tupi-guarani do Brasil (segundo Rodrigues, 1986):
1. Akwáwa: a) Asuriní do Tocantins; b) Suruí do Tocantins; c) Parakanã
2. Amanayé
3. Anambé
4. Apiaká
5. Araweté
6. Asuriní do Xingu
7. Avá (Canoeiro)
8. Guajá
9. Guaraní*: a) Kaiwá; b) Mbiá; c) Nhandéva
10. Kamayurá
11. Kayabí
12. Kokáma*
13. Língua Geral Amazônica (Nheengatu)
14. Omágua*
15. Parintinín: a) Diahói; b) Júma; c) Parintinín; d) Tenharín
16. Tapirapé
17. Tenetehára: a) Guajajára; b) Tembé
18. Uruewauwáu
19. Urubú
20. Wayampí*
21. Xetá
 
Línguas tupis-guaranis do exterior (Denny Moore, em comunicação
pessoal):
1. Chiriguáno — Paraguai
2. Emerillon — Guiana Francesa
3. Guaraní* — Paraguai e Bolívia
4. Guarasúgwe — Bolívia
5. Guaráyo — Bolívia
6. Kokáma* — Peru
7. Omágua* — Peru
8. Sirionó — Bolívia
9. Tapiete — Bolívia
10. Wayampí* — Guiana Francesa
11. Yukue (Bia-Ye) — Bolívia
REFERÊNCIAS
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Company, 1989.
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Cambridge University Press, 1977.
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COUTINHO, Ismael de Lima. Pontos de gramática histórica. Rio de Janeiro: Livraria Acadêmica,
1970.
CUNHA, Antônio Geraldo da. Dicionário histórico das palavras portuguesas de origem tupi. São
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Faraco, Carlos Alberto. Linguística histórica: uma introdução ao estudo da história das línguas. São
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Moore, Denny. A few aspects of comparative Tupi syntax. Trabalho apresentado no 47º Congresso
Internacional de Americanistas. WISE, Mary Ruth (Ed.). Revista Latinoamericana de Estudios
Etnolinguisticos, Lima, Peru, 1994. (Linguistica Tupi-Guarani e Caribe, v. 8.)
RODRIGUES, A.D. A classificação do tronco linguístico tupi. Revista de Antropologia, São Paulo,
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______. Tupinambá e mundurukú: evidências fonológicas e lexicais de parentesco genético. Estudos
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______. Relações internas na família linguística tupi-guarani. Revista de Antropologia, São Paulo, n.
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______. Línguas brasileiras. Para o conhecimento das línguas indígenas brasileiras. São Paulo:
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______. Glottalized Stops in Prototupi. In: ENCONTRO DA SOCIEDADE PARA O ESTUDO DAS
LÍNGUAS INDÍGENAS DAS AMÉRICAS (SSILA). Albuquerque, Estados Unidos, 1995.
TARALLO, Fernando. Tempos linguísticos: itinerário histórico da língua portuguesa. São Paulo:
Ática, 1990.
1. Agradeço os valiosos comentários do prof. Aryon Dall’Igna Rodrigues, feitos durante a
elaboração deste capítulo.
2. Para uma melhor compreensão dos conceitos fonéticos aqui descritos, ver os capítulos
“Fonética” e “Fonologia” neste volume.
3. Para uma discussão mais aprofundada sobre o papel dos neogramáticos na construção das
teorias na Linguística Histórica, ver Tarallo, F. Tempos linguísticos. São Paulo: Ática, 1990.
4. Segundo os neogramáticos, as leis de mudança de som operam sem exceção. As aparentes
exceções eram passíveis de ser definidas por meio de condicionamento fonético (como a Lei de
Verner) e, para dirimi-las, era necessário apenas a formulação de uma outra regra incluindo a
descrição de tal condicionamento.
5. O processo de analogia é discutido na seção 2.2.
6. Tarallo, F. Tempos linguísticos. São Paulo: Ática, 1990. p. 69.
7. Para uma descrição pormenorizada da controvérsia envolvendo neogramáticos e difusionistas,
ver Tarallo, F., Tempos linguísticos. São Paulo: Ática, 1990.
8. Para uma maior e mais detalhada descrição da história da Linguística, ver Câmara Jr., J. M.
História da linguística. Petrópolis: Vozes, 1975.
9. Os processos de mudança de som são tradicionalmente conhecidos como metaplasmos.
10. Para uma melhor compreensão do fenômeno de variação linguística, ver o capítulo
“Sociolinguística” (Partes I e II) neste volume.
11. Diferentes autores variam quanto à classificação dos tipos de mudança de som e também
quanto à terminologia utilizada para descrevê-los. Para observar processos de mudança de som
especificamente do português em relação ao latim, ver Coutinho, I. L. Pontos de gramática histórica.
Rio de Janeiro: Livraria Acadêmica, 1970.
12. O asterisco usado antes de uma palavra indica que tal palavra é uma reconstrução, feita a partir
de dados colhidos de línguas aparentadas. Maiores detalhes sobre reconstrução linguística serão
dados na seção 4.2.
13. O símbolo [ – ] (macron) usado sobre vogais no latim indica prolongamento em sua pronúncia.
14. Para uma melhor compreensão dos conceitos de modo de articulação, ponto de articulação e
vozeamento, ver os capítulos “Fonética” e “Fonologia” neste volume.
15. Os /g/’s do latim mudam para ã no francês por meio de outra mudança de som.
16. Arlotto, Anthony. Introduction to historical linguistics. Lanham/New York/London: University
Press of America, 1972. p. 130.
17. Embora mudanças semânticas também estejam, de alguma forma, presentes em toda mudança
gramatical, consideraremos tais mudanças separadamente, na seção 3.4.
18. Para um maior aprofundamento dos diferentes tipos de aparecimento, com ênfase no português
do Brasil, ver Alves, I. Neologismo. São Paulo: Ática, 1994.
19. Ver Cunha, A. G. da. Dicionáriohistórico das palavras portuguesas de origem tupi. São
Paulo: Melhoramentos, 1978.
20. Para efeito meramente ilustrativo, vejamos o que o dicionário Aurélio, em sua versão CD-
ROM, traz como significado para o verbete boneca: 1. Figura de trapo, louça, madeira, plástico etc.,
que imita uma forma feminina e serve como brinquedo de criança ou enfeite [Sin. (fam.): nena.]; 2.
Fig. Mulher excessivamente enfeitada e/ou de corpo pequeno e bem-feito; 3. Mulher charmosa e
bonita.
21. Para exemplos de trabalhos de classificação genética envolvendo línguas indígenas brasileiras,
ver Gabas (1997); Moore (1994); Rodrigues (1964, 1966, 1980, 1985, 1995). Para exemplos de
trabalho de reconstrução histórica envolvendo o português, ver Coutinho (1970); Tarallo (1990) e
Ilari (1999). Sobre um trabalho envolvendo o desenvolvimento de uma língua indígena, ver Jensen
(1989).
22. Apesar de o método comparativo ter seu início no nível da fonologia, atualmente, graças ao
avanço dos outros níveis de análise linguística, ele se estende aos níveis da morfologia e da sintaxe.
23. Palavras cognatas são palavras que se assemelham em forma e significado, não devido ao
acaso ou a empréstimos linguísticos, mas a uma mesma filiação genética. No método comparativo, as
palavras mais utilizadas como itens comparáveis e, portanto, mais suscetíveis de serem cognatas
entre si são os nomes de partes do corpo, de relações de parentesco, e de elementos da natureza.
24. No trabalho “real” de reconstrução fonológica, um número muito superior de itens lexicais
(entre 400-500) são coletados, comparados e analisados.
25. Os exemplos aqui citados, exceto os de Karo, são de Rodrigues (1986/1995). As palavras do
Karo são de nossa própria base de dados.
26. Por uma questão de simplicidade, desconsideraremos, em nossa tabela de correspondências, as
ocorrências de fenômenos suprassegmentais, como tom alto (ex., Karo [á]), nasalidade (ex., Karo
[e)]) e prolongamento (ex., Gavião [ii]).
27. Apesar disso, podemos antecipar quais devem ter sido as regras de mudança de som ocorridas
tanto no caso de /*r/ quanto de /*t/ serem caracterizados como o protofonema original. Caso se
comprove a ocorrência de /*r/, é possível postular que /*r/ tivesse mudado em /t/ em Mundurukú,
Karitiána e Tuparí em ambiente de final de palavra. Caso se comprove a ocorrência de /*t/, é possível
postular que /*t/ mudou em /r/ em dois ambientes distintos: (i) em final de palavra nas línguas
Tupinambá e Awetí e (ii) entre vogais na língua Gavião.
28. Esta classificação baseia-se em Rodrigues, 1964, 1966, 1985 e Gabas, 1997.
Apêndice I. Classificação do tronco linguístico tupi
3
FONÉTICA
Gladis Massini-Cagliari
Luiz Carlos Cagliari
1. INTRODUÇÃO: FONÉTICA E FONOLOGIA
A Fonética e a Fonologia são as áreas da Linguística que estudam os
sons da fala. Por terem o mesmo objeto de estudo, são ciências
relacionadas. No entanto, esse mesmo objeto é tomado de pontos de vista
diferentes, em cada caso.1
A principal preocupação da Fonética é descrever os sons da fala. Por
exemplo, são afirmações típicas desta ciência dizer que o som [b] é
articulado com uma corrente de ar pulmonar, egressiva, com vibração das
cordas vocais, com uma obstrução do fluxo de ar seguida de uma explosão;
ou descrever a vogal [i] como aquela que tem os dois primeiros formantes2
mais afastados um do outro; ou dizer que, embora do ponto de vista
acústico e articulatório os três as da palavra batata possam ser considerados
como realizações um pouco distintas, os falantes de português reconhecem
esses sons como pertencendo à mesma categoria (vogal a).
As afirmações anteriores ilustram o fato de a Fonética poder ser feita de
três pontos de vista: a) da maneira como os sons são produzidos (ou seja,
mostrando que movimentos do aparelho fonador estão envolvidos na
produção dos sons da fala) — Fonética Articulatória; b) da maneira como
os sons são transmitidos (isto é, a partir das propriedades físicas —
acústicas — dos sons que se propagam através do ar) — Fonética Acústica;
c) da maneira como os sons são percebidos pelo ouvinte — Fonética
Auditiva.
Por sua vez, a Fonologia procura interpretar os resultados obtidos por
meio da descrição (fonética) dos sons da fala,3 em função dos sistemas de
sons das línguas e dos modelos teóricos disponíveis. Faz parte do trabalho
fonológico explicar o porquê de os falantes de alguns dialetos do português
do Brasil considerarem como sendo o “mesmo som” as consoantes iniciais
das palavras tapa e tia ([t] e [t] — “tchê” —, respectivamente), muito
embora elas sejam bastante diferentes, articulatória, acústica e
perceptualmente.
Dessa forma, enquanto a Fonética é basicamente descritiva, a Fonologia
é uma ciência explicativa, interpretativa; enquanto a análise fonética se
baseia na produção, percepção e transmissão dos sons da fala, a análise
fonológica busca o valor dos sons em uma língua — em outras palavras,
sua função linguística.
Como se constituem em duas abordagens bem diferentes do mesmo
objeto (os sons da fala), a maneira como um foneticista vê, analisa e
transcreve os fatos da língua difere do modo como o faz um fonólogo. Por
essa razão, uma transcrição fonética dos segmentos é representada dentro de
colchetes quadrados [ ] e uma transcrição fonológica (fonêmica), dentro de
barras simples inclinadas / /4.
Neste capítulo, o leitor pode encontrar princípios básicos de Fonética.
Uma introdução à Fonologia será vista no próximo capítulo deste livro.
Por ser a Articulatória a área de investigação mais antiga e, por essa
razão, mais solidamente estabelecida dentro da tradição da Fonética
linguística (remontando suas origens aos estudos clássicos), dedicaremos a
ela a maior parte deste artigo. Um pequeno vislumbre dos propósitos da
Fonética Acústica, ciência que tem se beneficiado muito dos recentes
avanços tecnológicos (mas que, por este motivo, infelizmente, tem ficado
cada vez mais próxima da Física e da Engenharia do que da Linguística),
vem no final do artigo.
Os estudos de Fonética são tão antigos quanto as gramáticas e estão,
ainda, por trás da formação dos sistemas de escrita mais antigos. Ao longo
dos anos, além da preocupação em descrever a função de letras e sons,
começaram a surgir explicações sobre o funcionamento do aparelho fonador
e dos mecanismos de produção da fala. No século XVIII, tiveram grande
desenvolvimento os estudos prosódicos, desassociados, então, dos estudos
de metrificação poética. No final do século XIX, surgiram os primeiros
laboratórios de fonética experimental. A partir daí, os estudos de Fonética
Acústica foram crescendo e sobrepujando em importância e em interesse os
estudos de natureza articulatória e auditiva, que já contavam com excelentes
resultados. Além de dar suporte aos estudos de Fonologia e de outras áreas
da Linguística, a pesquisa fonética tem contribuído enormemente para o
desenvolvimento de tecnologias que se utilizam dos elementos sonoros da
fala, como a engenharia de telecomunicações, sobretudo a telefonia, as
ciências da computação, com especial referência à produção de programas
de produção e de reconhecimento da fala.
2. FONÉTICA ARTICULATÓRIA
2.1. A produção da fala
Para falar, uma pessoa usa mais da metade do corpo: do abdômen até a
cabeça. Os linguistas não sabem ao certo onde fica o centro processador da
linguagem, mas, tradicionalmente, atribui-se ao cérebro ou à alma. A
verdade é que, antes de abrir a boca para falar, uma pessoa necessita
planejar o que vai dizer e enviar comandos neuromusculares para que sua
fala se realize. Como a linguagem é um composto de ideias e de sons, é
preciso organizar as ideias e os sons que irão carrear essas ideias.
O primeiro processo de produção de fala é o neurolinguístico e significa
que é preciso juntar as ideias aos sons correspondentes daquilo que se quer
falar em uma determinada ordem, seguindo as regras da língua.5 Feito isso,
o cérebro começa a enviar para os músculos mensagens para diferentes
partes do corpo, preparando-o para dizer o que foi planejado.Esse é o
processo neuromuscular. As primeiras mensagens agem diretamente sobre
o processo da respiração. O diafragma e os músculos intercostais mudam o
mecanismo comum de respiração, que ocorre em forma de uma onda suave
e regular, para uma onda que apresenta, em um momento curto, uma
intensidade muito grande e, em um momento relativamente longo, uma
queda durante a qual aparecem variações de duração e de intensidade,
definindo, assim, os limites e as bases de cada sílaba do enunciado que se
quer falar.6
Figura 3.1
Representação esquemática da variação de pressão da corrente 
de ar usada para a respiração normal (a) e para a fala (b)
O processo da respiração também ativa diferentes mecanismos
aerodinâmicos. Na quase totalidade do tempo da fala, usa-se um
mecanismo pulmonar egressivo, ou seja, a fala se aproveita de uma
modificação causada sobre a corrente de ar que usamos para respirar
(expiração).
Em alguns casos muito particulares, um som pode ser produzido com
outro tipo de corrente de ar. Com a glote fechada, isto é, com as cordas
vocais juntas, pode-se mexer a laringe para baixo ou para cima e, se houver
uma obstrução em outra parte do aparelho fonador, haverá uma diminuição
da pressão do ar entre as duas obstruções pelo aumento da cavidade e, ao
soltar as obstruções, formar-se-á uma corrente de ar para dentro, produzindo
um mecanismo aerodinâmico implosivo. Se, ao contrário, houver uma
diminuição da cavidade, o ar aumentará de pressão e formar-se-á uma
corrente de ar curta, mas de grande velocidade e pressão, produzindo,
assim, um mecanismo aerodinâmico ejectivo. Sons implosivos e ejectivos
não são encontrados nas línguas românicas, mas não são raros em línguas
africanas e indígenas — como nos exemplos a seguir, retirados da língua
Zibiao Guéré:7
implosivos: [kie] (macaco) [a] (fumaça)
ejectivos: [k’jà:má:] (aversão)
Um som com corrente de ar ingressiva, chamado clique, pode ser
produzido quando o dorso da língua contra o palato mole fecha a passagem
posterior da cavidade oral e uma outra obstrução é formada nos lábios ou
com a ponta da língua (experimente produzir um beijinho, ou o som típico
para colocar os cavalos em movimento, ou, ainda, uma negativa — que, às
vezes, é representada nas histórias em quadrinhos como ts! ts!). Com o
abaixamento da língua, aumenta o volume da cavidade entre as obstruções,
o ar fica com pressão menor e se cria uma breve e intensa corrente de ar
ingressiva que produz o “estalo” típico dos cliques fonéticos. Esse
mecanismo aerodinâmico é chamado de velar (ou de velárico). Cliques são
raros nas línguas e são encontrados de maneira típica em algumas línguas
africanas, como o Xhosa, da África do Sul.
cliques: (aplicar)
(médico)
(ser difícil, obstrução)8
A corrente de ar é modificada ao passar pelas cavidades supraglotais
(faringe, boca e lábios). Essa modificação ocorre em determinados pontos
desse tubo onde há uma constrição capaz de alterar as características
acústicas da corrente de ar. Essas obstruções são chamadas de articulações
fonéticas e suas características formam o processo articulatório.
Dadas as configurações do aparelho fonador, quando a corrente de ar
chega na parte superior da faringe, encontra dois caminhos: a passagem
oral, pela boca, e a passagem nasal, pela cavidade nasofaríngea e pelas
cavidades nasais. O ar pode seguir um desses caminhos ou ambos. Trata-se
do processo oro-nasal.
Figura 3.2
Esquema do aparelho fonador, com as estruturas mais importantes (Cagliari, 1977, p. 45).
Quando a corrente de ar fonatório sai pela boca e/ou pelas narinas, as
vibrações das partículas de ar se espalham em ondas circulares. As
características acústicas desse tipo de som formam o processo acústico da
fala. Ao receber essas ondas, o ouvinte realiza o processo auditivo (ou
perceptual) da fala. O som (que é energia acústica) transforma-se em
movimento do tímpano. Este movimento envolve três pequenos ossos
dentro do ouvido que, articulando-se com o tímpano, transmitem as
vibrações deste para a cóclea, a qual, por sua vez, transforma as vibrações
em variação hidráulica do líquido que ela contém. Este transforma a
variação de pressão em impulsos neurais, que são levados até o cérebro.
Quando a percepção da fala chega ao cérebro, ativa-se novamente o
processo neurolinguístico, que irá interpretar os sons e associá-los aos
respectivos significados, de acordo com o sistema da língua.
2.1.1. Fonação
A laringe tem uma estrutura anatômica e um processo fisiológico
complexo que é usado não somente na fala, mas na respiração. A corrente
de ar oriunda dos pulmões é modificada acusticamente, recebendo
características de um som periódico, no caso do vozeamento, ou de um som
aperiódico, isto é, fricção, no caso do efeito de turbulência causado pela
obstrução no tubo laríngeo e, sobretudo, pelos estreitamentos das cordas
vocais.
A passagem que se forma entre as cordas vocais é chamada de glote. Ao
passar pela laringe, a corrente de ar passa a constituir o ar fonatório, o qual
será modificado acusticamente ao passar pelas cavidades supraglotais
(faringal, nasofaringal, nasal, oral e labial). Quando a glote está muito
aberta, a corrente de ar pode não sofrer alteração, formando uma corrente
de ar fonatório somente ao passar por uma obstrução nas cavidades
supraglotais. Isso acontece, por exemplo, com sons fricativos surdos.
Figura 3.3
Figura esquemática da laringe e diferentes configurações da glote.
O processo de fonação compreende as possibilidades articulatórias das
estruturas da laringe e, sobretudo, das cordas vocais. Os seguintes tipos de
fonação e de segmentos podem ser produzidos (Ladefoged, 1971/1983):
a) Oclusiva Glotal: é uma oclusiva produzida pelo fechamento da glote
durante a duração necessária para se obter uma consoante. Em português,
expressões de surpresa como [a], [E], [aa] (Ah?!, Éh!?, Aah!?)
costumam ter uma oclusiva glotal.
b) Fricativa Glotal: é um segmento aspirado (ou “surdo”) ou
murmurado (“sonoro”) articulado com a duração equivalente de uma
consoante (ex.: em inglês, a consoante inicial de horse e house).
c) Vozeamento: é o processo que produz sons sonoros por meio das
vibrações da cordas vocais. Todas as vogais e consoantes vozeadas (=
“sonoras”) (ex.: bolo; vaca; zebra) são produzidas com vibração das cordas
vocais.
d) Ensurdecimento: é o processo que deixa a corrente de ar pulmonar
passar pela laringe sem se alterar acusticamente. Produz os sons surdos.
Ex.: massa; faca.
e) Aspiração: é o processo que produz fricção local quando a corrente
de ar pulmonar passa pela glote. Isto é obtido por uma constrição da glote
que produz turbulência quando o ar passa por ela. Este tipo de fonação é
conhecido também como sussurro (whispery voice).
f) Murmúrio: é o processo que, além de fazer o ar fonatório carrear
fricção, traz consigo também características acústicas de uma onda
periódica, ou seja, é um tipo de aspirada sonora (breathy voice).
g) Creaky voice: é o processo que modifica a corrente de ar pulmonar
com vibrações muito lentas, produzindo uma qualidade fonatória de som
muito grave (cf. qualidade de voz de um cantor do tipo “baixo”).
h) Falseto: é o processo fonatório que emprega as cordas vocais bem
esticadas, o que imprime à corrente de ar um som fundamental muito agudo
(ex.: voz aguda de pessoas nervosas, homens forçando uma voz aguda).
2.2. Prosódia e segmentos
Ao segmentar a fala (= “cortar”, “analisar em pedaços menores”), as
unidades chamadas segmentos são as que definem as vogais e as
consoantes.9 As unidades maiores do que os segmentos são chamadas de
prosódicas, como a sílaba, as moras silábicas, o pé, o grupo tonal, os tons
entoacionais, a tessitura e o tempo.10 Há, ainda, algumas propriedades
fonéticas chamadas de suprassegmentos.11 Às vezes, esse termo é sinônimo
de “prosódia”, às vezes, representa algumas propriedades, como a duração
segmental, a nasalização, as articulações secundárias etc. As unidades
constituintes dos segmentos, isto é, as unidades menores do que eles, são
chamadasde traços ou propriedades distintivas, como o vozeamento, o
lugar e o modo de articulação.
2.3 Elementos prosódicos
Assim como na música, pode-se considerar que a fala tem melodia
(entoação, tons) e harmonia (acento e ritmo). São esses fatores que fazem a
“música” da fala, que serão considerados neste item.
2.3.1. Acento
Na tradição dos estudos gramaticais do português, a palavra “acento”
costuma vir relacionada a um aspecto gráfico da escrita (ex.: acentos agudo,
grave ou circunflexo). Entretanto, na Fonética, o termo acento está mais
relacionado à noção de “tonicidade” da Gramática Tradicional — que
divide as palavras do português em oxítonas (café), paroxítonas (casa) e
proparoxítonas (lâmpada), de acordo com a posição da sílaba tônica (=
acentuada) — do que com a de “acento” propriamente dita.
As sílabas são tônicas ou átonas, dependendo do grau de saliência que
apresentam. Essa saliência provém geralmente, em português, de uma
duração maior.12 Pode vir também de uma elevação ou mudança de direção
da curva melódica em um enunciado e até por um aumento de intensidade
sonora.
Uma sílaba só é tônica ou átona por comparação com as demais. Em
termos fonéticos, uma sílaba isolada não é tônica nem átona.13 Há três tipos
de sílabas tônicas: as sílabas que têm o acento primário, as que têm o acento
secundário e as que têm o acento frasal. A palavra cafezinho, dita
isoladamente, recebe o acento primário na penúltima sílaba (zi) e pode ter
um acento secundário na primeira sílaba (ca). Já na frase Vou tomar um
cafezinho, a sílaba zi, que já era acentuada no nível da palavra, recebe o
acento frasal.
O acento frasal sempre coincide com uma sílaba que tem também um
acento primário ou com um monossílabo isolado. Toda palavra pronunciada
isoladamente terá uma sílaba com acento primário, se não for monossílaba.
Todo enunciado apresenta um acento frasal que, em português, é definido
pela mudança no contorno da variação melódica das sílabas, ou seja, da
entoação. Esse acento frasal pode se deslocar à esquerda do enunciado. É
preciso, ainda, dizer que, em enunciados com várias palavras, os acentos
das palavras consideradas individualmente se acomodam ao padrão rítmico,
podendo sofrer modificações. Compare os seguintes exemplos (as sílabas
com acento primário vêm em negrito e a sílaba com acento frasal vem
sublinhada):14
(1) a) ontem
b) ela foi ao cinema ontem
c) ela foi ao cinema ontem
d) ela foi ao cinema ontem
e) ela foi ao cinema ontem
Como as diferentes colocações do acento frasal mudam o foco dos
enunciados anteriores, as especificidades semânticas de cada um deles
fazem com que os enunciados em (1b-e) possam ser interpretados como
respostas às seguintes perguntas:
(2) b’) quando ela foi ao cinema?
c’) onde ela foi ontem?
d’) quem foi ao cinema ontem?
e’) ela foi ao ou no cinema ontem?
Como, em português, uma sequência muito longa de sílabas átonas não
é aceitável, algumas dessas sílabas passam a ter um reforço extra, formando
uma onda rítmica mais regular. Dessa forma, a ocorrência de acentos
secundários pode ser considerada um efeito de regras de eurritmia da
língua. Fatores lexicais podem também definir um acento secundário, como
o que acontece com os derivados com -(z)inho, -í(ssi)mo e -mente
(exemplos 3a). Nesses casos, o radical derivacional fica com um acento
secundário. Uma outra regra de eurritmia diz que a língua tende a ter um
acento secundário em início de palavras quando o acento principal está
distante desse contexto (3b). Também por razões de eurritmia, a língua
tende a evitar que dois acentos ocorram em sequência, fazendo com que o
da esquerda se desloque (3c, no nível da palavra, e 3d-e, no nível frasal).
Veja os exemplos a seguir (em que a sílaba com acento secundário vem
marcada com acento grave):
(3) a) bèlíssima hotèlzinho
b) ànticonstitùcional ìntolerável
c) càfezinho fèlizmente fèrozmente tòtalmente
d) Foi em uma discussão que ele perdeu.
Foi em uma dìscussão que ele perdeu!
e) Era um jacaré lento ao nadar.
Era um jàcaré lento ao nadar.
2.3.2 Ritmo
O senso comum, passado pela nossa tradição escolar, transmite a falsa
ideia de que apenas padrões muito rígidos de repetição de quantidades de
sílabas e de acentos (a exemplo do que ocorre em poemas metrificados)
podem ser considerados “rítmicos”. Por exemplo, os versos dessa
tradicional cantiga de roda podem ser considerados “rítmicos” porque
possuem todos sete sílabas poéticas cada um15 e porque os acentos poéticos
recaem sempre a espaços regulares no verso, na terceira, na quinta e na
sétima sílabas poéticas.
(4) Ca/ ran/ gue/ jo / não / é / pei/xe
1 2 3 4 5 6 7
Ca/ ran/ gue/ jo / pei/ xe /é
1 2 3 4 5 6 7
Ca/ ran/ gue/ jo / só / é / pei/xe
1 2 3 4 5 6 7
Na/ en/ chen/ te / da / ma/ré
1 2 3 4 5 6 7
No entanto, em termos fonéticos, qualquer texto falado possui ritmo,
uma vez que esta noção é definida como a maneira como as línguas
organizam no tempo os elementos salientes da fala (em especial, as
durações silábicas e os acentos).16 Por causa dessa concepção temporal de
ritmo, esta noção tem sido, tradicionalmente, dentro da Fonética, trabalhada
com base na ideia de isocronia.17
A partir da proposta de Pike (1945), as línguas do mundo foram
classificadas em dois grandes grupos: as línguas de ritmo acentual e as
línguas de ritmo silábico. As línguas que tendem a ter sílabas tônicas
isócronas, isto é, ocorrendo em intervalos de tempo de duração similar, são
chamadas de línguas de ritmo acentual. O português, o inglês, o árabe são
desse tipo. As línguas cujas durações silábicas relativas não costumam
variar conforme o contexto ou a velocidade de fala, mantendo fixas as
durações relativas das sílabas, em qualquer circunstância, constituem
línguas de ritmo silábico. O italiano, o francês, o espanhol, o alemão, o
japonês e o chinês são exemplos de línguas de ritmo silábico.
No caso das línguas de ritmo acentual, a isocronia das sílabas tônicas
(ou dos pés — intervalo entre uma tônica e outra, incluindo a primeira e
excluindo a segunda) aumenta ou diminui a duração individual das sílabas,
dependendo do número de sílabas átonas que ocorre entre uma tônica e
outra. Se houver duas, três, quatro ou cinco, a velocidade de fala irá
aumentar na mesma proporção. Uma maneira fácil de identificar esse
fenômeno reside na enunciação de listas de números (exemplo 5a). Como
cada um tem um acento, mas um número variável de sílabas átonas, as
batidas rítmicas caem sempre em intervalos aproximadamente iguais e a
velocidade de fala aumenta ou diminui à medida que houver mais ou menos
sílabas átonas entre as tônicas. Experimente dizer os enunciados abaixo,
observando o comportamento do ritmo. É comum no enunciado (5b) alguns
falantes dizerem apenas uma vez a sílaba “de” que aparece repetida. Em
(5c), como ocorrem dois acentos próximos em “abacaxi”/“manga”, para
manter a tendência isocrônica das sílabas tônicas, há um prolongamento da
primeira tônica, ou uma pausa entre ambas.
(5) a) 20, 21, 22, 23, 24, 25, 26, 27, 28, 29, 30, 31 ...
b) Pedro estuda na Universidade de Campinas.
c) laranja, caju, abacaxi, manga, pêssego, melancia...
Essa tipologia das línguas quanto ao ritmo foi posta em dúvida ou
refeita por alguns autores — entre eles, Dauer (1983) e Jassem, Hill e
Witten (1984).
2.3.3. Velocidade de fala ou tempo
Em primeiro lugar, é preciso não confundir “ritmo” com “velocidade de
fala” ou tempo. O ritmo é a maneira como as línguas organizam a
substância fonética no tempo, com base na relação de proeminência entre
sílabas e acentos. No entanto, um mesmo padrão rítmico pode ser dito com
maior ou menor velocidade de fala — assim como uma estrutura musical
não perde o ritmo se executada mais rápida ou mais lentamente (variação de
andamento: uma valsa, por exemplo, pode ser executada bem lentamente ou
com um andamento mais rápido, mas continuará sendo uma valsa).
Variações de velocidade de fala tendem a causar modificações fonéticas.
Quanto mais veloz for a fala, haverá uma tendência maior para a
centralizaçãovocálica, para a queda de segmentos, para a coarticulação,
para a perda de qualidades articulatórias e consequente perda de
inteligibilidade da fala. Ao diminuir a velocidade normal de fala, o falante
também passa a ter problemas de articulação e o ouvinte, de percepção. A
inserção de segmentos e a perda de qualidades articulatórias são os traços
mais notáveis. Todavia, dentro de certos limites, a variação de velocidade
pode ser usada para enfatizar o que se diz (desaceleração), para evitar
intromissão do interlocutor (aceleração) ou para sinalizar final de
argumentação e de turno discursivo nos diálogos (desaceleração).
2.3.4. Entoação
Todas as sílabas da fala são pronunciadas com certa altura melódica.
Nas línguas tonais, como o chinês, cada sílaba das palavras tem uma altura
melódica fixa. Nas línguas entoacionais, como o português, diferentes tipos
de enunciados carreiam padrões melódicos predeterminados pelo sistema.
Nesse caso, as “frases declarativas” se distinguem das “frases
interrogativas” porque as primeiras apresentam um padrão entoacional
descendente e as segundas, um padrão ascendente. Esses padrões
entoacionais podem ser melhor definidos em termos de tons entoacionais.18
Dentro dessa abordagem, o sistema entoacional do português apresenta seis
tons primários, cada qual podendo ter variantes, chamadas de tons
secundários.19
Tons primários do português:
As variações que formam os tons secundários podem ocorrer na
primeira parte do tom entoacional ou na segunda. Há muitas maneiras de
fazer essas variações, trazendo sempre pequenas modificações de
significado ao enunciado. Os tons secundários (e outros fenômenos
prosódicos) costumam trazer acréscimos ao significado literal de um
enunciado, chamado de atitude do falante. Nesse sentido, um enunciado
pode revelar alegria, tristeza, raiva, dúvida, incerteza, escárnio, zombaria
etc. Mostram-se, a seguir, alguns exemplos como ilustração.
Um padrão entoacional forma um grupo tonal. Todo grupo tonal terá
sempre uma sílaba tônica saliente (o acento frasal), que coincide com a
posição em que a curva melódica muda de direção. Corresponde, na
anotação acima, à sílaba que vem logo após as barras duplas verticais. Todo
grupo tonal é formado por pés rítmicos20 — como mostra o exemplo a
seguir, em que estão representados a tonicidade, os pés (delimitados por
barras simples inclinadas), os tons (representados por números no início do
grupo tonal) e os grupos tonais (cujos limites se encontram representados
por barras duplas inclinadas).21
(6) //3 ^ Bea/triz ^ en/tão ^ pergun/tou //2 ^ vo/cê não quer /ir ao ci/nema
^
//3 Eu repe/ti di/zendo //5 que já /tinha assis/tido /àquele /filme//
2.3.5. Tessitura
O espaço compreendido entre o som mais grave e o mais agudo, na fala
de uma pessoa, é chamado de tessitura. Como acontece na música, uma
melodia da fala pode continuar com a mesma curva, porém localizando-se
em uma escala superior ou inferior. A fala costuma abranger o intervalo
(tessitura) de uma oitava e meia. O ato de mudar os valores de frequência
dessa escala para cima (fala aguda) ou para baixo (voz grave) em um
indivíduo acarreta acréscimo de significação ao discurso. O uso mais
comum da tessitura é encontrado em palavras ou expressões intercaladas, as
quais são pronunciadas com uma tessitura baixa. Em um texto, podem
ocorrer trechos com tessitura baixa, quando o falante quer significar que
aquele trecho é menos importante, é secundário, com relação ao restante do
que está dizendo. Isso é muito comum quando as pessoas contam histórias.
Variando a tessitura no discurso, o falante consegue criar uma “onda” que
coloca em condições de igual valor discursivo trechos localizados em
diferentes partes do texto. É por essa razão que, após uma divagação em
final de parágrafo, ao retornar ao assunto, em novo parágrafo, expressões
como então, daí, portanto etc., são ditas com uma tessitura mais alta. Em
textos argumentativos, não é raro, à medida que os argumentos vão se
colocando, a tessitura abaixar progressivamente. Esse procedimento tem a
finalidade de não permitir que o interlocutor interrompa o que está sendo
dito, uma vez que a tessitura é um dos fenômenos que sinalizam os turnos
linguísticos, nas situações dialógicas.
2.3.6. Qualidade de voz
Os segmentos da fala (consoantes e vogais) apresentam características
próprias, ou seja, um som pode ser sonoro, aspirado, dental, velar, nasal,
fricativo etc.22 Na fala comum dos indivíduos e até de línguas ou dialetos,
entretanto, costuma haver uma predominância de certas qualidades
fonéticas, como as mencionadas anteriormente. Isso faz com que, por
exemplo, uma língua como o inglês americano soe, aos ouvidos de falantes
de outras variedades do inglês ou de outras línguas, como sendo
“excessivamente” nasalizado e retroflexo. O português soa como uma
língua bastante fricativa e nasalizada. Essas características gerais da
produção da fala são chamadas de qualidades de voz.23
A maneira mais comum de se identificar a qualidade de voz está na
produção individual. Quando uma pessoa tende a articular os sons com
qualidades secundárias, na maioria dos segmentos, o resultado é uma
qualidade de voz peculiar daquele indivíduo (ou grupo, ou dialeto). Por
exemplo, algumas pessoas costumam produzir os sons anteriores com a
ponta da língua muito avançada, o que gera uma qualidade dentalizada de
sua fala, ou um ceceo. Em algumas variedades do português do Brasil,
como a fala de caiçaras, é comum encontrar pessoas que falam com uma
qualidade de voz palatalizada. Não é raro encontrar pessoas com qualidade
de voz velarizada — tão do agrado de certos políticos ao discursarem.
Locutores de propagandas com voz muito grave apresentam uma qualidade
de voz creaky voice. O que se costuma, em geral, chamar de uma qualidade
de voz “normal” é, de fato, uma fala com qualidade alveolar. Quando um
homem fala com um tom fundamental muito agudo, sua qualidade de voz é
de falseto. Esse tipo de qualidade de voz é encontrado, por exemplo, na fala
de certas pessoas quando estão muito exaltadas.
Por causa dessa sobreposição de qualidades fonéticas e das
modificações articulatórias que as produzem, o resultado final dos sons da
fala pode trazer problemas para as transcrições fonéticas e interpretação
linguística dos fatos. Por isso é importante que o linguista descreva as
qualidades de voz como um parâmetro independente. Por exemplo, ao
observar a fala de uma pessoa com qualidade de voz palatalizada ou dental,
quase todos os segmentos apresentarão essa qualidade, alguns de maneira
mais evidente, e, se estes forem privilegiados, a descrição dos sons dessas
pessoas acabará introduzindo consoantes palatais ou dentais onde ocorre
apenas um efeito secundário de palatalização e de dentalização, causado por
fatores de qualidade de voz e não de processos fonológicos.24
2.4. Segmentos
2.4.1. Consoantes
As consoantes são sons que apresentam contatos ou constrições no
aparelho fonador facilmente analisáveis, sobretudo pela repetição da
articulação em comparação com gestos semelhantes e próximos. Por essa
razão, as consoantes são classificadas tradicionalmente em termos de modo
e de lugar de articulação e quanto à vibração (ou não) das cordas vocais,
além das características do mecanismo aerodinâmico envolvido.
De acordo com o mecanismo aerodinâmico, uma consoante pode ser
egressiva ou ingressiva, dependendo da direção da corrente de ar. As
oclusivas com corrente de ar pulmonar egressivo são chamadas também de
plosivas e as com corrente de ar pulmonar ingressivo são chamadas de
implosivas; se o mecanismo aerodinâmico for glotal egressivo, a oclusiva
recebe o nome especial de ejectiva e, se for velar, é chamada de clique.
Figura 3.4
Estruturas do mecanismo de produção da nasalidade. Em (a), com a posição abaixada do véu
palatino, articulam-se os sons nasalizados. Em (b), com o véu palatino levantado, articulam-se
os sons orais — Cagliari (1977, p. 91).
2.4.1.1. Modos de articulação
Em função dos modos de articulação, os segmentosconsonantais
podem ser:
a) oclusivos: são sons produzidos com um bloqueio completo à corrente
de ar em algum ponto do aparelho fonador, desde a glote até os lábios (ex.:
as consoantes grifadas em pato; gado);
b) nasais: são sons produzidos com um bloqueio à corrente de ar na
cavidade oral, com concomitante abaixamento do véu palatino, o que
permite a saída da corrente de ar pelas narinas (ex.: somo; sono; sonho);
c) fricativos: são sons produzidos com um estreitamento em qualquer
parte do aparelho fonador (da glote até os lábios), de tal modo que o ar
fonatório, passando por essa parte, produza fricção (ex.: faca; vaca; saca;
jaca);
d) africados: são sons que apresentam um bloqueio completo à corrente
de ar dentro da cavidade oral, em sua parte inicial, e uma obstrução que
produz fricção, durante a parte final de sua articulação (ex.: tia; dia, no
dialeto carioca). Como se trata de um som único, a representação fonética
desses sons é feita por meio de dígrafos, com o primeiro elemento
representando uma consoante oclusiva e o segundo, uma fricativa. Para que
um som seja considerado uma africada e não apenas uma sequência de
oclusiva mais fricativa, a articulação de ambas as partes deve ser
“homorgânica”, ou seja, ocorrer no mesmo lugar de articulação;
e) laterais: são os sons que bloqueiam a passagem central da corrente de
ar na parte anterior da cavidade oral, permitindo um escape lateral (ex.:
vela; velha). No caso da lateral palatal, a corrente de ar passa por trás dos
últimos molares, saindo por entre a parte externa dos dentes e a bochecha;
f) vibrantes: o termo vibrante cobre várias designações usadas pelos
foneticistas. Assim, por vibrantes entendem-se os sons produzidos por
batidas rápidas da ponta da língua ou do véu palatino, em geral, três ou
quatro. Esse tipo de consoante também é chamado de vibrante múltipla, na
tradição fonética portuguesa. Quando ocorre apenas uma batida rápida da
parte superior da ponta da língua contra os dentes ou alvéolos dos dentes
incisivos superiores, o som tem o nome de tepe (ou vibrante simples — na
tradição fonética portuguesa), por exemplo, Araraquara. Se a batida rápida
for feita com a parte de baixo da ponta da língua contra os alvéolos dos
dentes incisivos superiores, o som tem o nome de flepe;25
g) retroflexos: são sons produzidos com uma obstrução à corrente de ar
produzida pelo encurvamento da ponta da língua para cima e para trás.26
Sons oclusivos, fricativos, laterais e até vogais podem receber a retroflexão
como uma articulação secundária. Em alguns casos, tem-se observado que o
efeito de retroflexão de um som é obtido por uma significativa elevação do
dorso da língua, além de uma certa elevação da ponta da língua, formando
um cavado entre as duas obstruções;
h) aproximantes: são sons não oclusivos, que não se articulam dentro da
área vocálica, mas que não apresentam fricção, graças ao fato de a
constrição ser menor (isto é, formar uma passagem mais aberta à corrente
de ar) do que o necessário para causar turbulência à passagem do ar
fonatório e consequente produção de fricção.27
Embora as vogais constituam um modo de articulação dos sons, não são,
em geral, analisadas em função dessa categoria.
Figura 3.5
Localização dos lugares de articulação e de alguns segmentos no aparelho fonador
2.4.1.2. Lugares de articulação
Em função dos lugares de articulação, um segmento fonético pode ser:
a) labial ou bilabial: é o som produzido com um estreitamento ou
fechamento produzido pela aproximação dos lábios (para exemplificação de
cada uma das consoantes do português, de acordo com os lugares de
articulação utilizados pela língua, veja Tabela 3.1). No caso de alguns sons,
como as vogais, ocorre uma protrusão concomitante na articulação labial.
Uma articulação labializada é chamada também de arredondada;
b) labiodental: é o som produzido com um contato do lábio inferior com
os dentes incisivos superiores. Este lugar de articulação se aplica de
maneira típica a fricativas e, raramente, a oclusivas e nasais;
c) dental: é o som produzido com a ponta da língua entre os dentes
incisivos superiores e inferiores, ou com a ponta da língua contra a parte
posterior dos dentes incisivos superiores;
d) alveolar: é o som produzido com a parte da frente da língua em
direção aos alvéolos dos dentes incisivos superiores;
e) palatoalveolar: é o som produzido na região imediatamente posterior
à região onde se articulam os sons alveolares. Trata-se de um som de base
“alveolar” ao qual foi acrescentada uma qualidade “palatal”;
f) alveopalatal: é o som produzido na região imediatamente anterior à
região onde se articulam os sons palatais. É um som “palatal” com
características alveolares ou anteriores;
g) palatal: é o som produzido com a parte central da língua contra a
parte central (mais alta) da abóbada palatina, indo até o final do palato duro;
h) velar: é o som produzido com o dorso da língua contra o palato mole;
i) uvular: é o som produzido com o dorso da língua contra o fundo da
cavidade oral, de modo a pressionar a parte mais baixa do palato mole,
incluindo a úvula;
j) faringal: é o som produzido pela raiz da língua formando uma
constrição contra a parede da cavidade faringal. Na articulação desse tipo
de som, a língua deve assumir uma posição plana, o que costuma trazer a
sua ponta um tanto para a frente;
k) glotal: é o som produzido com a articulação das cordas vocais.
Se for necessário anotar uma articulação como ocorrendo à meia
distância entre dois lugares anteriormente definidos, usa-se um diacrítico28
de “anterior” ou de “posterior”, conforme o caso. As categorias usadas nas
línguas para definir os fonemas e alofones29 foram estabelecidas, levando-
se em consideração a anatomia e fisiologia da fala e, sobretudo, o fato de
cada lugar propiciar uma qualidade fonética diferente para um mesmo
modo de articulação. Nem todos os lugares comportam todos os tipos de
modos de articulação, em geral, por restrições fisiológicas.30
Tabela 3.1
Exemplos de consoantes do português, classificadas quanto ao modo e ao lugar de articulação
Exemplos de modos e lugares de articulação para as consoantes do português
Oclusivas:
a) bilabiais: [p, b] pato, bato
b) alveolares: [t, d] tato, dado
c) velares: [k, g] cato, gato
Fricativas:
a) labiodentais: [f, v] faca, vaca
b) alveolares: [s, z] caça, casa
c) palatoalveolares: [S, Z] chá, já
d) velares: [x, ] rato, barriga
e) uvulares: [X, ] roda, curral*
f) glotais: [h, ] rato, barriga
Africadas:
a) palatoalveolares: [t, d] tia, dia, pote, pode
Nasais:
a) bilabial: [m] somo
b) dental: [n] sono
c) palatal: [] sonho
d) velar [N] banco:
Laterais:
a) dental: [l] mala
b) palatal: [] malha:
Vibrantes:
a) alveolar sonora: [r] mar
b) alveolar surda: [r8] mar
c) uvular sonora: [R] mar*
Tepes:
a) alveodental: [R] prato, crise, força, caro
Retroflexas:
a) anterior (alveolar) [] porta, mar
b) posterior (palatoalveolar) [] porta, mar
* Este tipo de articulação ocorre muito raramente em português. O mais comum é uma articulação velar um tanto
posteriorizada, sem chegar a ser uvular.
2.4.1.3. Vozeamento
Na fonética segmental, com base no processo fonatório, em geral,
classificam-se os sons com base na oposição surdo/sonoro
(vozeado/desvozeado). Os sons produzidos com vibrações das cordas
vocais são chamados de sonoros ou vozeados. Já os sons surdos ou
desvozeados são aqueles produzidos sem vibrações das cordas vocais. As
vogais são os sons vozeados, por excelência.31 Por sua vez, as consoantes
podem ser surdas ou sonoras. Veja-se a oposição entre o som inicial dos
pares de palavras a seguir, em que a primeira palavra se inicia por um som
surdo e a segunda, por um sonoro: pato, bato; faca, vaca; chá, já; cato, gato
etc.
2.4.2. Vogais
Na produção dos sons vocálicos, os articuladores orais encontram-se de
tal modo abertos que a corrente de ar, ao passar centralmente pela cavidade
oral, não encontrando obstáculos, não produz fricção. As vogais são sempre
pronunciadas com a pontada língua abaixada e com a superfície da língua
em forma convexa.
Figura 3.6
Configurações da superfície medial da língua obtida por 
meio de raio-X durante a articulação das vogais [i], [a] e [u]
Esquema da configuração da língua
para a articulação das vogais [i], [a]
e [u]. Dada a configuração côncava
da abóbada palatina, o ponto mais
alto da curva da superfície da língua
formará o lugar de maior constrição
na cavidade oral, e definirá os sons
em função da altura articulatória, na
vertical, e do lugar, na horizontal.
-------- [i]; —— [a]; ........ [u]
O movimento do corpo da língua para a produção dos sons vocálicos se
restringe a uma certa área do trato vocal, representada por um trapézio, na
Figura 3.7. Além dos limites dessa área, os sons produzidos não se
caracterizam mais como vogais.
Figura 3.7
Representação esquemática da área vocálica
Figura 3.8
Graus de estreitamento dos articuladores dentro da cavidade oral — 
Cagliari (1981a, p. 38)
Tradicionalmente, do ponto de vista articulatório, os sons vocálicos têm
sido classificados com base nos movimentos da língua nos eixos vertical e
horizontal, dentro da área vocálica. Dessa forma, foram estabelecidos
quatro níveis de altura, a partir da posição mais fechada dos articuladores
até a mais aberta,32 e três regiões articulatórias, com base no deslocamento
horizontal do estreitamento articulatório, dentro da área vocálica. Como as
vogais também podem ser produzidas com ou sem protrusão labial, podem
ser classificadas conforme a posição dos lábios no momento de sua
produção (arredondados ou não arredondados).33 Na Tabela 3.2, encontram-
se estabelecidos esses três parâmetros articulatórios de classificação para as
vogais, relacionando-os com os símbolos representantes das vogais
correspondentes à articulação analisada.34
Tabela 3.2
Classificação das vogais
Da Tabela 3.2, as vogais que podem ser encontradas na posição tônica,
no português do Brasil, são: [i] — abacaxi; [e] — beleza; [] — belo; [a] —
batata; [] — bola; [o] — bolo; [u] — urubu. A vogal [] é, também,
bastante frequente no português brasileiro, podendo ocorrer nasalisada ou
não (ex.: cama; banana). No português europeu, na posição átona, é
bastante frequente a ocorrência da vogal [], denominada “schwa”, por
exemplo, em palavras como leite; Algarve. A vogal representada como [y]
corresponde ao “i arredondado” do francês, grafada como u, por exemplo,
menu. Já a vogal [] ocorre em japonês, equivalendo a um “u não
arredondado”. Os sons [i] e [u] são recorrentes em algumas línguas
indígenas brasileiras.
2.4.2.1. Ditongos
Do ponto de vista estritamente fonético, os ditongos são vogais que
mudam de qualidade durante sua produção. Em geral, as vogais mantêm,
durante um certo tempo, uma qualidade constante, com variações em geral
pouco perceptíveis em seu início e final. No caso dos ditongos, a
articulação parte de um ponto dentro da área vocálica e se dirige a outro.
Nesse movimento, a vogal vai variando, assumindo a qualidade vocálica
dos lugares por onde passa. Isso pode ser detectado por meio de aparelhos
especiais. No entanto, o ouvido humano ouve de forma saliente apenas as
qualidades vocálicas do início e do final desse movimento — ou, se houver,
também do ponto em que o movimento muda de direção. É por essa razão
que os ditongos são representados na transcrição fonética por dígrafos e os
tritongos por trígrafos, nos quais aparecem os símbolos dos valores mais
salientes da percepção dessas articulações.
Muitas línguas, sobretudo as indo-europeias, formam ditongos partindo
ou chegando a uma articulação alta, fechada. É por essa razão que, nessas
línguas, os ditongos começam ou acabam com as qualidades [i] ou [u].
Entretanto, nada impede que, foneticamente, mesmo nessas línguas,
ocorram ditongos formados diferentemente. Para um bom observador, em
português, há a possibilidade da formação de ditongos e tritongos, cujas
margens são ocupadas por vogais outras que não [i] e [u], no nível fonético,
mas que costumam ser interpretadas pelo falante/ouvinte como se fossem
essas vogais, no nível fonológico (aquele que se preocupa com a função dos
sons dentro do sistema):
(7) sEU sEo sE (céu)
paI pae paE (pai)
kUAU koAU kUA (qual)
2.4.2.2. Semivogais
As semivogais (ou semiconsoantes) são interpretações fonológicas e não
fonéticas. Como se disse anteriormente, os ditongos representam uma única
vogal que muda de qualidade durante sua articulação — e que é
representada por um dígrafo (não por duas vogais). A noção de semivogal
só faz sentido dentro de uma ciência como a Fonologia,35 que vai
determinar o valor que os elementos representados por /j/ e /w/ assumem na
estruturação fonológica das sílabas.36 A interpretação das semivogais na
tradição gramatical e desta para a tradição linguística vem do fato de as
línguas semíticas, que transcreviam apenas as consoantes, no caso dos
ditongos, representarem o elemento [i] ou [u] — que passaram a ter um
status de consoante na escrita. Como a língua grega formava ditongos
(assim como o português), tendo sempre em um dos pontos de saliência as
qualidades [i] ou [u], ficou como “regra” a interpretação do ditongo como
uma vogal precedida ou seguida de [i] ou [u]. Dessa forma, o termo
semivogal veio da interpretação da sílaba como constituída de consoantes
na periferia e de vogal no núcleo. Como as qualidades vocálicas [i] e [u]
eram consideradas menos salientes, passaram a ser vogais que ocupavam a
periferia da sílaba e não o núcleo.
Como os foneticistas sempre se preocuparam com o estudo das
saliências, no caso dos ditongos, notaram que, em geral, quando um
ditongo termina com as qualidades [i] ou [u], a curva de saliência auditiva é
decrescente, e quando aqueles elementos iniciam o ditongo, a saliência é
crescente. Por essa razão, os ditongos passaram a ser classificados como
decrescentes ou crescentes. No entanto, foneticamente, é possível (e
acontece em certos casos) a curva de saliência estar invertida, tendo nos
elementos [i] e [u] uma saliência maior do que no outro elemento integrante
do ditongo.
Pela definição de ditongo, conclui-se que não pode haver ditongo que
tenha a mesma qualidade no início e no final, porque, neste caso, o que
acontece é uma vogal longa. Em português, algumas pessoas pronunciam
palavras como sul usando apenas uma vogal longa [su:]; a maioria, porém,
pronuncia um ditongo crescente [su].37
2.5 Transcrição fonética
A transcrição fonética depende de uma tradição, segundo a qual o que
ouvimos é representado, entre colchetes, em termos de segmentos
chamados consoantes ou vogais. Os foneticistas não usam os dados de
línguas particulares para definir o valor dos segmentos, mas as
possibilidades articulatórias do homem.38 Assim, qualquer som que pode
ser um fonema ou um alofone em uma língua será representado por um
símbolo próprio.39
O treinamento fonético de transcrição comporta dois tipos de exercícios,
sem os quais uma transcrição pode ser mal realizada. O primeiro é o
treinamento de audição, que faz com que o linguista saiba ouvir sons
individuais — colocados em qualquer tipo de contexto e de qualquer
extensão — e reconhecer em cada segmento a categoria a que pertence, de
acordo com as possibilidades articulatórias do homem. O segundo é o
treinamento de produção, que treina o linguista a dizer todos os segmentos
individualmente ou de forma combinada com qualquer outro em qualquer
sequência. Como disse, certa vez, o foneticista Ladefoged (1975), trata-se
de uma “arte” dentro de uma ciência.
A história da Fonética conheceu vários sistemas de transcrição fonética.
Hoje, o mais difundido é o da Associação Internacional de Fonética,
conhecida como IPA (International Phonetics Association). Esse alfabeto já
tem cem anos e foi recentemente reformado em alguns aspectos menos
importantes.40 Um outro sistema é o do SIL (Summer Institute of
Linguistics), difundido por Kenneth Lee Pike e muito usado na transcrição
de línguas indígenas.41 Hoje, este alfabeto está cedendo lugar para o IPA.
Os procedimentospara se fazer uma transcrição fonética são os seguintes.
Em primeiro lugar, é muito melhor transcrever a fala na presença do
informante, usando dos recursos de gravação (de preferência em vídeo)
como forma apenas de documentação. O linguista ouve o informante e
procura repetir o que ouviu até que este diga que está tudo correto. A partir
da audição e da propriocepção dos movimentos e gestos articulatórios feitos
para reproduzir o que ouviu, procede-se à identificação dos segmentos e à
sua transcrição. É importante anotar não apenas os segmentos, mas todas as
outras características de cada um deles, como duração, acento, tom,
qualidade de voz, articulação secundária (aspiração, labialização, por
exemplo) etc. Terminado um enunciado, o linguista lê o que escreveu, para
que o informante julgue se está tudo correto. O ideal é filmar em vídeo toda
a sessão, para posterior revisão do trabalho realizado. Dependendo do grau
de sofisticação que se quer na transcrição fonética, haverá um uso maior ou
menor de diacríticos. É sempre melhor simplificar uma transcrição
posteriormente do que ter dúvidas sobre detalhes não anotados.
2.5.1. Exemplos de transcrição fonética
Apresentamos, a seguir, alguns exemplos de transcrição fonética,
seguindo os procedimentos estabelecidos no item anterior deste texto.
Partimos da leitura de um parágrafo de um livro científico. Apenas por
motivos didáticos, apresentaremos, primeiramente, a transcrição fonética de
uma palavra isolada, depois de uma frase, e, em seguida, de todo o trecho.
Também para facilitar a leitura da transcrição feita, apresentamos o texto
lido oralmente na sua forma ortográfica. É necessário salientar que as
transcrições do trecho inteiro não marcam os elementos prosódicos.
Portanto, entre os fenômenos não representados estão o acento, o ritmo, a
entoação e a silabificação.
Ortografia
“Em relação ao ritmo, a situação não é diferente: há um verdadeiro abismo
entre as descrições fonéticas e fonológicas. Tal problema vem de longa
data, podendo ser encontradas divergências entre foneticistas e fonólogos
desde Pike” (Massini--Cagliari. Acento e ritmo. São Paulo: Contexto, 1992.
p. 82).
• Transcrição de uma palavra isolada
[‘] — “ritmo”
• Transcrição de uma frase
[’’’’] — “em relação ao
ritmo a situação não é diferente”
• Transcrição do trecho inteiro
Dialeto paulista:



Dialeto carioca:



3. FONÉTICA ACÚSTICA
42
Os sons da fala se propagam no ar e, como quaisquer sons, podem ser
gravados e estudados por meio de equipamentos de análise acústica.
Os laboratórios de Fonética começaram no século passado e já tiveram
os mais variados tipos de aparelhos, acompanhando o progresso da
tecnologia e os interesses das pesquisas. Um grande impulso nos estudos de
Fonética Acústica veio com o desenvolvimento da telefonia. Hoje, com
uma câmera de vídeo e programas especiais para computadores pessoais, é
possível ter um laboratório em casa.43
As pesquisas em Fonética Acústica apresentam três tipos gerais de
preocupação para o linguista: pesquisa da estrutura física dos sons da fala,
pesquisa de fala sintética e pesquisa de reconhecimento automático da fala.
O primeiro tipo é uma preocupação bem típica da Linguística e os outros
dois, mais próprios dos engenheiros de comunicação e de computação.
A fala apresenta sons periódicos e ruídos (sons aperiódicos). Os sons
periódicos são formados por harmônicos, que são múltiplos inteiros da
primeira frequência, chamada de fundamental. Essa frequência fundamental
é a que produz o efeito auditivo de altura do som, ou seja, da melodia da
fala (tom e entoação). Dependendo do reforço que os harmônicos recebem,
o som fica com qualidade própria (timbre). Assim como, na música, uma
mesma nota pode ser tocada por diferentes instrumentos, cada qual com sua
qualidade, do mesmo modo um som com um mesmo fundamental pode
ficar com diferentes qualidades, como acontece com as vogais. Portanto, as
diferentes configurações do aparelho fonador servem para modular o som
fonatório, imprimindo as diferentes qualidades. Existem alguns harmônicos
que ficam bem reforçados, apresentando, no envelope dos espectros
sonoros, picos de intensidade que são chamados de formantes (cf. Fant,
1968). Ao longo do tempo, os formantes apresentam uma transição no
começo e no final de cada segmento, sobretudo quando os vizinhos têm
uma articulação bem diferente, como no caso de uma oclusiva seguida de
uma vogal.
Há várias maneiras de se analisar os elementos físicos da acústica dos
sons da fala. O mais comum é por meio de espectrogramas — que são
gráficos que apresentam na ordenada a variação de intensidade dos sons,
por meio de manchas escuras, numa escala de frequência e, na abscissa, a
variação do espectro (intensidade e frequência) em função do tempo
decorrido. Pelo estudo dos formantes, obtém-se uma descrição dos sons
periódicos da fala (sonoros). Por exemplo, as vogais altas apresentam o
formante dois (F2) mais afastado do formante um (F1), as vogais baixas
apresentam F2 menos afastado de F1. As vogais anteriores apresentam
frequências localizadas em uma parte mais alta do espectro, ao passo que as
vogais posteriores, na parte mais baixa. As oclusivas surdas apresentam um
espaço em branco, correspondente ao momento de total obstrução à
corrente de ar. As oclusivas sonoras apresentam vibrações de baixa
frequência. No momento da soltura das oclusões, ocorre um breve momento
de fricção (aspiração ou murmúrio) e um direcionamento da transição em
direção à localização do segmento imediatamente seguinte. As fricativas
apresentam fricção que, por ser o resultado de turbulência e de ruído, não
define estruturas de formantes. Cada tipo de consoante fricativa é
reconhecido pela posição que ocupa no espectro: as palatais apresentam
sons em altas frequências, as alveolares apresentam sons em frequências
mais baixas e as labiais nas frequências mais baixas do espectro. Essa
diferença é facilmente perceptível ao ouvido, quando se pronunciam esses
sons de forma isolada e prolongada. Sons do tipo das laterais, das
retroflexas, das nasais e das vibrantes apresentam um forte damping, ou
seja, uma redução significativa na intensidade geral do espectro.
Durante muito tempo, a palatografia44 prestou grandes serviços à
Fonética, juntamente com as pesquisas aerodinâmicas obtidas por meio dos
quimógrafos.45 A palatografia pode ser feita de várias maneiras e serve para
mostrar os contatos linguopalatais, como mostra a Figura 3.10.
Figura 3.9
Amostra de espectrograma tradicional com exemplo do português, mostrando a variação 
de formantes na linha do tempo, as áreas de fricção e a curva de amplitude, sobreposta.
Figura 3.10
Exemplo de palatograma obtido por meio de fotografia da imagem dos 
contatos linguopalatais (áreas claras) refletida em um espelho. As áreas 
escuras estão cobertas por uma mistura de chocolate e carvão.
Palatograma tradicional que mostra
as áreas de contato linguopalatal na
articulação do som []. Nota-se
como há um fechamento do canal
central, por onde passa a corrente de
ar, tendo a maior constrição na
altura dos primeiros dentes molares,
região definida como ponto de
articulação palatoalveolar.
Figura 3.11
Palatogramas feitos por meio da impressão dos contatos da língua contra uma placa de acrílico
que reveste o palato duro. Desse modo, os contatos podem ser vistos em três posições
diferentes.
Os palatogramas de cima
representam a fricativa [s]. Nota-
se a passagem estreita localizada
junto aos dentes caninos e
incisivos. Os palatogramasde
baixo mostram a articulação de
uma fricativa []. Nota-se que o
estreitamento maior à corrente
de ar ocorre junto aos dentes pré-
molares. Na vista lateral desses
palatogramas, observa-se que a
fricativa alveolar tem uma
posição mais baixa da língua.
Figura 3.12
Amostras de palatogramas das vogais [i], [e] e [E], mostrados em três 
dimensões diferentes: de baixo para cima, lateral esquerda e de frente. 
As duas últimas dimensões são possíveis porque a placa é transparente.
Palatograma de vogal [i].
Diferentemente da fricativa
alveolar, o canal de constrição à
corrente de ar não forma um
afunilamento final, evitando a
turbulência do ar e a fricção. A
articulação é alveolar e ocorre
junto aos dentes caninos.
Palatograma da vogal [e].
Observa-se que esta vogal é
articulada com a língua mais
baixa e com um estreitamento à
corrente de ar menor do que para
a vogal [i]. Os contatos
linguopalatais têm seu início nos
alvéolos dos dentes caninos.
Palatograma da vogal [E]. Esta
vogal tem uma posição da língua
ainda mais baixa do que a vogal
[e] e uma passagem bem aberta à
corrente de ar. Como acontece
com as demais, o início dos
contatos ocorre junto aos
alvéolos dos dentes caninos.
Os estudos quimográficos mostram o comportamento da corrente de ar
oral e nasal, as vibrações das cordas vocais e, às vezes, até a forma da onda
acústica, como se pode ver na Figura 3.13.
Figura 3.13
Amostra de um quimograma moderno — Cagliari (1981b)
Na Figura 3.13, os seguintes parâmetros foram registrados: marca do
tempo (onda de 50 cps), segmentação representada por barras verticais
(feitas pelo foneticista ao analisar os dados registrados), a corrente de ar
nasal filtrada (lpNt), a mesma corrente de ar sem passar por filtros (NAt),
mostrando os momentos de vozeamento, a corrente de ar oral filtrada
(lpMt), a mesma corrente de ar oral sem ser filtrada (MAt), a configuração
das vibrações das cordas vocais (Lx) captada por um laringógrafo, com
microfone de contato, onde se vê a curva entoacional (tom 3 e tom 1) e, por
último, a forma de onda acústica (áudio). A transcrição fonética do
enunciado é apresentada logo abaixo da linha lpNt.
4. CONCLUSÃO
Por meio dessa breve introdução aos estudos de Fonética, esperamos ter
mostrado que, por trás dos sons da nossa fala, existem muito mais
características fascinantes do que o nosso sistema de escrita alfabético-
ortográfico, que representa a fala apenas por símbolos para consoantes e
vogais, deixa entrever.
Os estudos de Fonética são indispensáveis para quem lida com os
elementos sonoros da linguagem e, por essa razão, são importantes para a
Medicina (fisiologia e cirurgias que envolvem membros do aparelho
fonador), para a Fonoaudiologia (tratamento de distúrbios da fala), para a
Engenharia de Telecomunicação (telefonia, aparelhos de sons), para a
Ciência da Computação (produção e reconhecimento de fala), para as Artes
Cênicas e Cinematográficas, e, é claro, para as Ciências da Linguagem.
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1. A respeito da divisão entre Fonética e Fonologia, ver Ladefoged, 1990.
2. Ver definição no item 2 — “Fonética Acústica” — neste mesmo capítulo.
3. Ver o próximo capítulo deste volume — “Fonologia”.
4. Para uma introdução ao modelo fonêmico, ver Cagliari, 1997.
5. Dadas as peculiaridades prosódicas, como a entoação, o ritmo, a velocidade de fala e a
acentuação, a programação linguística inicial precisa ter uma certa extensão temporal. Como os
contornos melódicos da fala seguem padrões, no caso de uma frase interrogativa, para que o
resultado saia correto, é preciso saber que o final do grupo tonal terá uma elevação da melodia da
voz, para que o que vem antes se adapte de maneira correta. Por outro lado, qualquer estrutura
rítmica da fala exige que sejam montadas unidades de tempo maior do que os segmentos. A
atribuição de acentos também exige conhecimentos prévios maiores do que os segmentos, sobretudo
quando ocorrem deslocamentos de acentos em frases, causados pela concatenação de segmentos.
Para uma distinção entre os níveis prosódico e segmental, veja o item 2.2 — “Prosódia e segmentos”
— neste capítulo.
6. A teoria dos pulsos torácicos, para explicar o mecanismo da produção das sílabas, foi, pela
primeira vez, formulada por Stetson, 1928, e revisitada em Ladefoged, 1967. Experimente prolongar
um som (por exemplo, “a”) e, ao mesmo tempo, peça para alguém bater nas suas costas. O som
contínuo (uma sílaba longa) se divide em pulsos, fazendo uma série de “as”, cada qual valendo por
uma sílaba.
7. Para poder ler a transcrição fonética representada nesses exemplos e produzir os sons
representados, remetemos o leitor à Tabela de Símbolos do IPA, no final deste capítulo, e também aos
itens 2.5 — “Transcrição fonética” —, 2.4.2 — “Vogais” — e 2.4.1 — “Consoantes”.
8. Os exemplos aqui citados foram retirados de Laver (1994, p. 238-239).
9. A respeito da origem da divisão dos sons da fala em consoantes e vogais, ver Cagliari, 1989a.
10. Para uma listagem dos elementos prosódicos, com um estudo de sua função, ver Cagliari,
1992. A respeito de como tais elementos podem ser inferidos a partir da modalidade escrita, deve-se
consultar Cagliari, 1989b.
11. A este respeito, ver o livro de Lehiste, 1970.
12. A este respeito, vejam-se os trabalhos de Fernandes, 1976; Cagliari, 1981a, 1984; Delgado
Martins, 1986; Moraes, 1986, 1987; Massini, 1991; e Massini-Cagliari, 1992.
13. Assim, palavras como é, há, só, pé, sim, não, ditas isoladamente, não são átonas nem tônicas,
porque não há com o que comparar.
14. No exemplo (e), a sílaba ao, que, isoladamente, não é nem tônica nem átona (é um
monossílabo), passou a ter um acento principal pelo fato de receber um acento frasal.
15. Na nossa tradição atual, costuma-se contar apenas até a última sílaba tônica para estabelecer a
quantidade de sílabas poéticas do verso. A este respeito, ver Goldstein, 1987 e Massini-Cagliari,
1999. p. 52-55.
16. A respeito da diferenciação entre duração e quantidade silábicas, ver Cagliari e Massini-
Cagliari, 1998.
17. A este respeito, ver Abercrombie, 1965/1967.
18. A descrição da entoação, neste tópico, segue a teoria de Halliday, 1963/1970. Ver, também,
Halliday, McIntosh e Strevens, 1974.
19. A descrição dos padrões entoacionais do português, neste artigo, segue Cagliari, 1981a,
1982a,b.
20. Para a definição de pé, veja o item 2.3.2. — “Ritmo”.
21. No exemplo, as pausas são representadas com o símbolo ^ .
22. Veja os itens 2.4.1 — “Consoantes” — e 2.4.2 — “Vogais” —, neste mesmo capítulo.
23. Para um estudo mais aprofundado das qualidades de voz, ver Laver, 1980.
24. As características de qualidade de voz causam problemas muito complicados nas análises
fonéticas por meio de instrumentos, porque modificam o resultado físico dos dados de maneira
significativa — o que para o ouvido é tido como irrelevante, porque ele os analisa e os deixa de lado
como fenômenos de qualidade de voz.
25. Na tradição fonética americana, o termo flap refere-se ao que o IPA chama de tepe (em inglês
tap), ou seja, à vibrante simples, da tradição fonética portuguesa.
26. As retroflexas não apresentam contato da ponta da língua na linha central da cavidade oral e,
às vezes, são chamadas de “vibrantes” retroflexas, pela semelhança auditiva que apresentam com os
chamados sons do “r”. Na tradição fonética portuguesa, são chamados de “r caipira”.
27. Com exceção das oclusivas, todas as demais consoantes podem ser também fricativas ou
aproximantes. Exceto as fricativas, as demais consoantes desse grupo são, em geral, aproximantes.
28. Conforme Tabela dos Símbolos do IPA, no final deste capítulo.
29. Para as definições de fonema e alofone, remetemos o leitor para o próximo capítulo deste livro
e para Cagliari (1997).
30. Não há razão linguística para se proceder a uma classificação mais detalhada do que a
apresentada neste texto para os lugares de articulação.
31. As vogais que, em português, às vezes são classificadas como surdas constituem, na verdade,
sons sussurrados.
32. Os termos fechada, meio-fechada, meio-aberta e aberta, utilizados na tabela como parâmetros
para classificação das vogais, equivalem aos termos alta, médio-alta, médio-baixa e baixa, que
podem ser encontrados em outros trabalhos.
33. A oposição arredondada/não arredondada equivale à oposição labializada/não labializada,
encontrada em outros trabalhos.
34. Sugestão para treinar a sua performance: para produzir os sons vocálicos presentes na Tabela
3.2 que não ocorrem no português, parta de um som homorgânico e depois modifique a característica
que diferencia o som presente em nossa língua daquele não presente. Exemplo: para produzir um [y],
que é uma vogal fechada, anterior, arredondada, você pode partir do [i], que se diferencia do [y]
apenas por não ser arredondada. Mantendo a altura e a região articulatória próprias do [i], basta fazer
uma protrusão dos lábios.
35. Ver o capítulo sobre Fonologia neste mesmo volume.
36. Em termos fonéticos, os símbolos [j] e [w] representam consoantes fricativas (ou
aproximantes). A este respeito, veja o item 2.4.1.1 — “Modos de articulação” — deste capítulo e a
tabela dos símbolos fonéticos, ao final deste capítulo.
37. Convém notar que a transcrição [su] refere-se à palavra suo (v. suar) e não a sul (cf. ainda
palavras como último, culpa, multa etc.). Por outro lado, note-se o efeito de assimilação causado
pelos elementos menos salientes dos ditongos sobre os mais salientes em exemplos como [mas] e
[mas], em que se pode observar, no segundo caso, um recuo da vogal /a/.
38. A respeito das possibilidades articulatórias do homem, ver Catford (1968/1977).
39. É interessante notar que todos os sons possíveis de serem articulados aparecem nas línguas.De
acordo com essa tradição, nem todas as variações possíveis de serem detectadas pelo ouvido e,
sobretudo, por meio de instrumentos em laboratórios, constituem segmentos fonéticos autônomos,
devendo ser agrupados nas categorias definidas auditivamente. Por exemplo, embora se possa notar
diferentes realizações de uma vogal como [a], sobretudo através de instrumentos apropriados, essas
variantes são irrelevantes quer para a Fonética linguística, quer para a Fonologia, servindo tão
somente para um estudo físico de um som que veio da fala de alguém.
40. No final deste texto, são apresentadas as tabelas com os símbolos adotados pelo IPA, para a
transcrição de vogais e de consoantes, bem como os diacríticos adotados para acrescentar, à
representação dos segmentos, características adicionais do som transcrito.
41. A respeito do alfabeto fonético do SIL, ver Pullum e Ladusaw (1986).
42. Para uma introdução aos estudos de Fonética Acústica, ver Ladefoged (1962) e Fry (1979).
43. Os estudos acústicos podem, assim, ser feitos com a demonstração em vídeo do que se analisa,
em tempo real, gravado em CD. Podem-se, além disso, fazer boas transcrições fonéticas auditivas,
com a análise das imagens e dos gráficos processados pelo computador. Pesquisas de natureza
aerodinâmica e fisiológica requerem equipamentos mais sofisticados e, em geral, muito caros.
44. A este respeito, ver Cagliari (1974).
45. W. Hardcastle desenvolveu um método computadorizado de investigação palatográfica
indireta, muito útil nas pesquisas fonéticas e nas clínicas de fonoaudiologia. Sobre este assunto, ver
Hardcastle e Laver (1997). Os quimógrafos estão praticamente ausentes das pesquisas modernas.
SÍMBOLOS DO IPA (INTERNATIONAL PHONETICS ASSOCIATION)
(organizados por Luiz Carlos Cagliari)
Consoantes:
Onde os símbolos aparecem em pares, o da direita representa uma consoante sonora. Áreas hachuradas denotam
articulações consideradas impossíveis.
Outros símbolos:
 Fricativa labiovelar surda  Clique bilabial
w Aproximante labiovelar sonora  Clique dental
 Aproximante labiopalatal sonora ! Clique (pós)alveolar
K Fricativa epiglotal surda  Clique palatoalveolar
 Fricativa epiglotal sonora  Clique lateral-alveolar
SÍMBOLOS DO IPA (INTERNATIONAL PHONETICS ASSOCIATION)
(organizados por Luiz Carlos Cagliari)
Consoantes:
Onde os símbolos aparecem em pares, o da direita representa uma consoante sonora. Áreas hachuradas denotam
articulações consideradas impossíveis.
Outros símbolos:
Fricativa labiovelar surda Clique bilabial
Aproximante labiovelar sonora Clique dental
Aproximante labiopalatal sonora Clique (pós)alveolar
Fricativa epiglotal surda Clique palatoalveolar
Consoantes africadas e com dupla articulação podem ser representadas por dois símbolos unidos por uma barra de
ligação, se for necessário: .
SÍMBOLOS DO IPA (INTERNATIONAL PHONETICS ASSOCIATION)
(organizados por Luiz Carlos Cagliari)
Diacríticos:
Tons e variação melódica de palavras:
SÍMBOLOS DO IPA (INTERNATIONAL PHONETICS ASSOCIATION)
(organizados por Luiz Carlos Cagliari)
Vogais:
Suprassegmentos:
4
FONOLOGIA
Angel Corbera Mori
1. FONÉTICA E FONOLOGIA
O linguista suíço Ferdinand de Saussure foi o primeiro a estabelecer que
a linguagem humana compreendia dois aspectos fundamentais: a língua e a
fala. Para ele, a língua é um produto social, presente na totalidade dos
membros de uma comunidade linguística. A fala, por sua vez, é um fato
individual, representa uma realização concreta da língua num momento e
lugar determinados. Nesse sentido, segundo o autor, o estudo da linguagem
comporta duas partes: “uma, essencial, tem por objeto a língua, que é social
em sua essência e independente do indivíduo; esse estudo é unicamente
psíquico; outra, secundária, tem por objeto a parte individual da linguagem,
vale dizer, a fala, inclusive a fonação e é psicofísica”.1
A língua e a fala não ocorrem separadas, ambas são interdependentes, a
língua é ao mesmo tempo o instrumento e o produto da fala. Dessa forma,
língua e fala constituem a linguagem humana: a língua representa o código
comum de comunicação entre todos os membros de uma comunidade, e a
fala é a materialização da língua em situação de uso de cada indivíduo dessa
comunidade (Saussure, 1916).
Na visão saussureana, a língua é um sistema de signos formados pela
união do significado e do significante.2 Neste capítulo, iremos nos deter no
estudo do significante, não do significado. O significante, na fala, é
estudado pela Fonética:3 articulatória e acusticamente. Na língua, o
significante é estudado pela Fonologia.
Quando falamos emitimos uma série de sons, porém esses sons não são
realizados de uma mesma maneira por todos os membros de uma
comunidade linguística. Do mesmo modo, os sons nunca são produzidos no
aparelho fonatório num mesmo ponto articulatório, eles podem estar
condicionados por determinados contextos fônicos que os circundam. Em
português, por exemplo, temos o fonema plosivo velar desvozeado /k/,4 que
pode ser articulado numa posição mais pós-velar quando ocorre em
palavras como [k2ubU] “cubo”; numa posição mais anterior, na região
palatal, como em [k1ilU] “quilo”, e numa posição mais central em [kaz]
“casa”. Apesar dessas diferenças fonéticas, o ouvido do falante nativo do
português não as percebe; para poder identificá-las ele precisaria de um
treinamento específico em Fonética. Outro exemplo, em espanhol os
fonemas plosivos vozeados /b/, /d/ e /g/ ocorrem como fones5 fricativos em
determinados contextos fonéticos. Assim, na palavra “gato”, o fonema /g/ é
articulado como uma consoante plosiva velar vozeada [gato], mas no
contexto intervocálico, como em “una gata” [unaata], é articulado como
fricativa velar vozeada, mas sem, no entanto, variar o significado da palavra
“gato”. Essas variações fonéticas não são percebidas pelo falante nativo do
espanhol, pois elas se dão automaticamente.
Se, por outra parte, contrastarmos a palavra “gato” com “pato”, veremos
que há variação no significado; isso quer dizer que os segmentos /g/ e /p/
são fonemas no espanhol. Do mesmo modo, haverá variação de significado
se confrontarmos “gato” e “pato” com [mato] “mato” do verbo matar. Já o
fone [] que ocorre na emissão [unaata] não é fonema no espanhol, ele é
uma realização fonética do fonema velar vozeado /g/. O estudo dos fones
em seus aspectos físicos, articulatórios e auditivos corresponde à Fonética.
O estudo dos fonemas como unidades discretas, distintivas e funcionais é
tarefa da Fonologia.
A diferença entre Fonética e Fonologia foi consolidada no Primeiro
Congresso Internacional de Linguistas realizado em Haia,6 em 1928, a
partir do trabalho de três linguistas russos: Roman Jakobson, Nicolai
Trubetzkoy e Serge Karcevsky. Esses autores sentiram a necessidade de
estabelecer a diferença entre uma ciência que se ocupasse dos sons da fala,
a Fonética, e outra ligada aos sons da língua — a Fonologia. Essa diferença
foi consagrada por Trubetzkoy (1969), que diferenciou duas “ciências dos
sons”, uma que se ocuparia do ato de fala e outra do sistema da língua.
Ambas as ciências usam métodos diferentes de investigação: o estudo dos
sons relacionado ao ato de fala — os fenômenos físicos concretos —
emprega métodos que correspondem às ciências naturais; o estudo dos sons
relacionado ao sistema da língua usa os métodos da Linguística, das
humanidades ou das ciências sociais. Nesse sentido, “designamos o estudo
do som ligado ao ato de fala com o termo Fonética, e o estudo relacionado
com o sistema da língua com o termo Fonologia”.7
Podemos, assim, considerar a Fonética como a ciência do aspecto
material dos sons da linguagem humana. Ela estuda os aspectos físicos da
fala, ou seja, as bases acústicas relacionadas com a percepção, e as bases
fisiológicas relacionadas com a produção. A Fonética estuda os sons da fala
independentemente da função que eles possam desempenhar numa língua
determinada. Os métodos de estudo da Fonética se aproximam mais das
ciências naturais. As unidadesbásicas da Fonética são os fones, transcritos
entre colchetes [p], [t], [k].
A Fonologia estuda as diferenças fônicas correlacionadas com as
diferenças de significado (ex.: [p]ato/[m]ato), ou seja, estuda os fones
segundo a função que eles cumprem numa língua específica, os fones
relacionados às diferenças de significado e a sua inter-relação significativa
para formar sílabas, morfemas e palavras. A Fonologia relaciona-se,
também, com a parte da teoria geral da linguagem humana concernente com
as propriedades universais do sistema fônico das línguas naturais, ou seja,
referente aos sons possíveis que podem ocorrer nas línguas. Os primitivos
da Fonologia são os fonemas que, por convenção, são representados entre
barras inclinadas, /p/, /t/, /k/.
A Fonética e a Fonologia como disciplinas diferentes operam com seus
próprios métodos; porém, elas se condicionam mutuamente em seu valor e
desenvolvimentos. Por exemplo, pretender descrever a fonologia de uma
língua indígena falada no Brasil sem considerar o aspecto fonético seria
absurdo. Do mesmo modo, o estudo da fonética de uma língua, qualquer
que seja, resulta pouco proveitoso, de alcance limitado, se não se considera
a função que os segmentos fônicos desempenham no sistema dessa língua.
1.1. Importância da Fonologia
Um dos objetivos da Fonologia relaciona-se com o desenvolvimento de
ortografias, ou seja, o emprego de um alfabeto para representar a escrita de
uma língua. A relação íntima entre a estrutura fonológica de uma língua e o
sistema de escrita está presente no livro de Pike (1947), Phonemics: a
technique for reducing languages to writing. O alvo principal desse texto é
capacitar o estudante de Linguística nas técnicas da análise fonológica para
descobrir os fonemas de uma língua desconhecida e propor, posteriormente,
uma escrita.
Muitos linguistas estiveram, e ainda continuam, envolvidos com o
estudo de línguas desconhecidas, línguas sem tradição de escrita. Uma parte
do trabalho desses linguistas é, justamente, propor um sistema ortográfico
da língua que se está pesquisando. Assim, por exemplo, muitas ortografias
das línguas ameríndias foram criadas, com base nos princípios da análise
fonológica apresentados por Pike (1947).
As aplicações da teoria fonológica não se restringem à elaboração de
ortografias para línguas que carecem dela. Ela ajuda também no
conhecimento do sistema fonológico da língua materna. Assim, recorrendo
à Fonologia, pode-se estabelecer a relação que há entre os fonemas da
língua e os símbolos gráficos que os representam.
Embora os sistemas alfabéticos de escrita sejam idealmente fonológicos,
diversos fatores de mudança linguística e extralinguística produzem
discrepâncias entre a estrutura fonológica das línguas e suas ortografias. Por
exemplo, em português não há uma correspondência biunívoca entre o
fonema fricativo alveolar vozeado /z/ e sua representação grafêmica. Os
grafemas usados na representação desse fonema são: <z> como em zebra,
Elza; <s> como em piso, asilado; <x> como em exame, exato.
Os sistemas de escrita, portanto, não acompanham o desenvolvimento
dinâmico da língua oral, daí essa defasagem entre a fala e a sua
representação gráfica, dando como resultado os problemas ortográficos no
momento de se escrever. O professor deveria, nesse caso, conhecer o
sistema fonológico da língua para poder explicar sobre os problemas de
ortografia.
O conhecimento da Fonologia auxilia também na aprendizagem de uma
língua estrangeira. É comum, ao aprender uma língua estrangeira, usar os
fones da língua materna na pronúncia daquela que se está aprendendo.
Entretanto, quando as duas línguas diferem em seus componentes
fonológicos, podem ocorrer interferências problemáticas na prática oral da
língua estrangeira. Por exemplo, em contraposição aos dois fonemas do
sistema vocálico português — /E/ (como em [pE] “pé”, [fE] “fé”) e /e/
(como em [ipe] “ipê”, [le] “lê”) —, o sistema fonológico espanhol
reconhece apenas um único fonema, a saber, /e/. Em razão disso, a maioria
dos falantes espanhóis que tem um conhecimento superficial do português
não faz distinção entre // e /e/, substituindo ambas as vogais pelo seu
fonema único /e/.
Observando os sistemas fonológicos das línguas envolvidas, o professor
de língua estrangeira poderia resolver os problemas de interferência,
desenvolvendo estratégias que auxiliem o estudante a superar a tendência
de transpor o sistema fônico de sua língua materna para a língua
estrangeira. Se o professor desconhece os sistemas fonológicos da língua
estrangeira e daquela do estudante, então o ensino desse professor será
pouco proveitoso.
A análise fonológica das línguas pode ser aplicada também às desordens
fônicas presentes na fala de pessoas com distúrbios da linguagem. A
avaliação de desordens fonológicas na fala de uma pessoa pode resultar
enganosa e muitas vezes errada, como interpretar, por exemplo, os
problemas de articulação simplesmente em termos de omissões,
substituições e distorções. Quando um indivíduo mostra uma desordem
fonológica, deve-se indagar pelo alcance desses problemas e estabelecer sua
relação com o sistema fonológico da língua. Um especialista em patologia
da linguagem, que entenda da natureza sistemática dos problemas
articulatórios, está em condições de fazer diagnósticos positivos sobre esses
problemas que um indivíduo apresenta.
2. O FONEMA
Cada língua dispõe de um número determinado de unidades fônicas cuja
função é determinar a diferença de significado de uma palavra em relação a
uma outra. Por exemplo, a palavra [kasa] “caça” diferencia-se de [kaza]
“casa” pelo uso de uma fricativa alveolar não vozeada [s] em “caça” e de
uma vozeada [z] em “casa”. Esses tipos de segmentos como /s/ e /z/, que
permitem diferenciar significados, denominam-se fonemas. Assim, /s/ e /z/
são dois fonemas no português.
O fonema é tratado como uma unidade menor que não pode ser
analisada em outras unidades menores, ou seja, como unidade indivisível.
Como afirma Trubetzkoy, “as unidades fonológicas que, desde o ponto de
vista da língua em questão, não podem ser analisadas em unidades
fonológicas menores e sucessivas serão chamadas fonemas”.8 Nesse
sentido, o fonema é a menor unidade fonológica da língua de que se trata.
O linguista polonês Jan Baudouin de Courtenay, que desde 1870 tinha
insistido na divisão entre fonema e som, definiu o fonema em termos
estritamente psicológicos. Para ele, o fonema era o equivalente psíquico do
som, cujo estudo ficaria por conta da psicofonética. Sapir (1944), linguista
norte-americano, enfatizou, também, o valor psicológico do sistema
fonológico de uma língua. Para Sapir, os fonemas seriam sons ideais que os
falantes intentam produzir e os ouvintes creem escutar.
As primeiras definições de fonema dadas por Trubetzkoy (1933)
estiveram, igualmente, impregnadas de psicologismo. Em seu artigo La
phonologie actuelle (1981), o autor afirma que a Fonética procura descobrir
o que de fato se pronuncia ao falar uma língua, e a Fonologia o que se crê
pronunciar, considerando o fonema como a imagem acústico-motora mais
simples e significativa de uma língua. Posteriormente, no seu livro
Grundzüge der Phonologie (1939), Trubetzkoy deixou de lado sua visão
psicologista, definindo o fonema em termos estritamente funcionais. O
fonema passou a ser definido, então, de acordo com a função que
desempenha numa língua, sendo considerado como um conceito linguístico
e não psicológico.
Leonard Bloomfield, linguista norte-americano, considera o fonema
como uma propriedade observável, do contrário resultaria apenas numa
conveniência descritiva do analista. A contribuição básica de Bloomfield
em torno da Fonologia e da teoria do fonema encontra-se em seu livro
Language (1933). Para ele, há física e fisiologicamente um número
ilimitado de enunciados que pode ser registrado, mas dele somente uma
parte limitada se relaciona com os significados, aqueles enunciados que são
distintivos na comunicação linguística. Assim, há formas que podem ser
divididas em partese elas podem ser isoladas e combinadas para formarem
outras unidades. Partindo desse conceito, Bloomfield definiu o fonema
como “unidades mínimas de traços fônicos distintivos”.9 Por exemplo, em
inglês, a propriedade ponto de articulação das plosivas não vozeadas /p, t, k/
será relevante na identificação desses fonemas, já a propriedade de
aspiração será irrelevante. A aspiração não é uma pro- 
priedade distintiva no sistema fonológico do inglês. Assim, o fonema /p/ é
articulado na posição bilabial, /t/ na região dos alvéolos e /k/ no ponto velar.
Esses mesmos fonemas podem ocorrer acompanhados de aspiração quando
são pronunciados em início de palavra ou em sílaba tônica como em [pHIt]
“pit”, [pHrIpHQr] “prepare”, [tHEst] “test”, [ptHejtU] “potato”,
[kHIk] “kick”, [rIkHwajt] “requite”. Nesses exemplos, os pontos de
articulação continuam sendo os mesmos, mas acompanhados de uma
característica adicional, a aspiração [H].
O fonema pode ser definido também como uma classe de sons. Gleason
(1985), por exemplo, define o fonema como uma classe de sons que são (a)
foneticamente semelhantes e (b) mostram determinados esquemas de
distribuição, dependendo das características de cada língua ou dialeto. Por
exemplo, em alguns dialetos do português brasileiro, os fones [t] e [t]
formam uma classe de sons que podem ser considerados foneticamente
semelhantes, cujo padrão de ocorrências está condicionado por um
determinado contexto. O fone [t] ocorre condicionado pela vogal alta [i]
como em [tSia] “tia”. O fone [t] ocorre em outros contextos em que não
esteja presente essa vogal [i], como em [tatu] “tatu”. Em ambos os casos, a
realização desses fones representa a materialização fonética do fonema
plosivo dental não vozeado /t/. Note-se que a identificação de [t] e [t] como
fones do fonema /t/ se aplica para algumas variedades do português
brasileiro, é uma marca própria do português, não sendo relevante para
nenhuma outra língua.
Em conclusão, toda língua possui um número restrito de sons cuja
função é diferenciar o significado de uma palavra em relação à outra. Os
sons que exercem esse papel chamam-se fonemas e ocorrem em sequências
sintagmáticas, combinando-se entre si de acordo com as regras fonológicas
de cada língua.
2.1. A identificação dos fonemas
Um objetivo da Fonologia é estabelecer os sistemas fonológicos das
línguas, ou seja, o conjunto de elementos abstratos relacionados entre si que
o falante utiliza para discriminar e delimitar as unidades funcionais de sua
língua. Como chega o fonólogo a descobrir e fazer explícitos esses
sistemas? A identificação dos fonemas é feita segundo uma bateria de
testes, os mais comuns dizem respeito aos critérios de oposição,
distribuição complementar, semelhança fonética e variação livre. A seguir,
cada um desses critérios é descrito brevemente.
2.1.1. Oposição
Dados dois fones, se a substituição de um pelo outro resultar numa
diferença lexical, então esses fones podem ser considerados como fonemas.
Para que esse teste resulte operativo, precisamos do par mínimo, ou seja, de
dois itens lexicais idênticos, que se diferenciem apenas num elemento da
sequência. Dito de outra maneira, quando duas palavras são idênticas em
todos os seus aspectos, exceto num segmento, são referidas como pares
mínimos. Por exemplo, palavras do português como:
(1)
[m]ar “mar” [p]ar “par”
[b]ar “bar” [m]ar “mar”
ve[l]a “vela” ve[]a “velha”
[f]ala “fala” [v]ala “vala”
quei[]o “queixo” quei[]o “queijo”
são pares mínimos. Esses pares nos permitem interpretar os fones [p], [b],
[m], [l], [], [f], [v], [] e [] como fonemas consonantais do português. O
mesmo procedimento pode ser usado para postular os fonemas vocálicos. O
teste dos pares mínimos é uma chave importante na análise fonológica
tradicional10. A partir dele, os fones serão considerados fonemas se forem
responsáveis pela mudança de significado das palavras dadas.
2.1.2. Oposição em ambientes análogos
Às vezes é impossível encontrar verdadeiros pares mínimos para
postular fonemas. Em tais casos, o fonólogo busca pares que diferem em
dois, ou talvez três, aspectos. Assim, dois itens que ocorram em ambientes
similares, mas não idênticos, podem caracterizar a oposição em ambiente
análogo, desde que as diferenças entre os sons não sejam atribuídas aos
sons vizinhos11. Por exemplo, em Ewe (língua da família Ghaniana)12 os
fones fricativos [f] e [v] são interpretados como fonemas com base nos
pares análogos [evlo] “ele é mau” e [ẽflẽ] “ele partiu”. Nesses itens, as
vogais nasal [ẽ] e oral [o] não podem ser as condicionantes para a
ocorrência das fricativas surda [f] e sonora [v], respectivamente. Essas
vogais são vozeadas e, se fossem responsáveis pelo condicionamento,
então, estariam afetando de maneira diferente o vozeamento de sons
vizinhos13. Não sendo esse o caso, conclui-se que os fones [f] e [v] são
fonemas em Ewe.
Segundo Burquest (1998), em Kaiwá (Guaraní) os fones [p] e [b] podem
ser interpretados como fonemas com base em palavras que apresentam
ambientes análogos, em dados, como se vê a seguir:
(2)
[opa] “acabou-se” [aba] “lugar”
[ipo] “mão dele’ [bo] “colar”
[pik] “peixe” [oboko] “bolsa dele mesmo”
[ap] “aqui” [ba] “outras pessoas”
O que está em jogo nessas palavras é descobrir se os fones bilabiais [p]
e [b] podem ser fonemas na língua kaiwá. Veja-se que esses dois segmentos
diferenciam-se apenas pelo vozeamento: [p] é uma consoante plosiva não
vozeada e [b] é uma plosiva vozeada. Como não encontramos pares
mínimos nesse conjunto de itens, podemos elaborar um quadro mostrando a
distribuição desses fones:
(3)
[p] [b]
opa aba
ipo bo
pik oboko
ap b
Os ambientes em que ocorrem esses dois segmentos são muito similares.
Contudo, não há nada específico, nesses ambientes, que estejam
condicionando a ocorrência ora do fone vozeado [b] ora do não vozeado
[p]. Não sendo possível prever quando ocorre [p] e quando [b], conclui-se,
com base no contraste de ambientes análogos, que esses dois fones devem
ser interpretados como fonemas diferentes na língua kaiwá.
2.1.3. Distribuição complementar
2.1.3.1. Alofones
Os fonemas de uma língua permitem diferenciar o significado das
palavras, daí que realizações fonéticas diferentes de um mesmo fonema não
podem ocorrer em contraste. As diferentes realizações fonéticas de um
fonema são conhecidas como alofones ou variantes fonéticas. Esses
alofones ocorrem condicionados por determinados contextos fonológicos,
posição na palavra, qualidade dos segmentos contíguos, condicionamentos
suprassegmentais como acento e tom. Em suma, pela combinação de vários
fatores. Da mesma maneira que o inventário de fonemas de uma língua
pode variar em relação a uma outra, assim também os alofones que
caracterizam o fonema de uma língua variam de uma língua para outra.
O critério principal para agrupar os alofones como variantes de um
fonema chama-se distribuição complementar. A distribuição complementar
estabelece que, se dois fones ocorrem em ambientes mutuamente
exclusivos, eles podem ser considerados eventualmente como alofones de
um mesmo fonema. Em espanhol, por exemplo, existem os segmentos [b],
[d], [g], [B], [] e []. Os três primeiros são consoantes plosivas vozeadas
que ocorrem em ambientes como início de palavra, depois de uma
consoante nasal e precedendo outra consoante, como em [bomba]
“bomba”, [daR] “dar”, [gato] “gato”, [lENgwa] “língua”. Os três últimos
segmentos — [B], [] e [] — são fricativos vozeados que ocorrem sempre
entre vogais, como em [deBER] “dever”, [naDa], “nada”, [boDea]
“bar”. Ou seja, o contexto de ocorrência dessas seis consoantes é
mutuamente exclusivo, de modo que esses segmentos estão em distribuição
complementar. Assim, a ocorrência dos segmentos [], [] e [] é
previsível, pois são alofones dos fonemas plosivos /b/, /d/ e /g/
respectivamente, que se manifestam como fricativos quando ocorrem entre
vogais.
A noção de distribuição complementar fundamenta-se no princípio de
que “os sons tendem a ser afetados porseus contextos linguísticos” (Pike,
1947). Esses contextos incluem: (a) efeitos dos sons vizinhos, (b) a posição
de ocorrência em unidades maiores (sílaba, palavra, sintagmas), (c) o efeito
de elementos suprassegmentais (acento, tom), e (d) informações de índole
lexical e gramatical (palavras simples, compostas, categorias lexicais como
nome, verbo, adjetivo).
Para agrupar os fones como alofones de um fonema é importante
considerar o critério de semelhança fonética. Assume-se que os alofones de
um mesmo fonema devem apresentar semelhança fonética. Os sons que
estão em distribuição complementar, mas que não apresentam semelhança
fonética, não podem ser alofones de um mesmo fonema. Por exemplo,
considerando a ocorrência dos fones [] e [g] em espanhol, vemos que eles
estão em distribuição complementar: [] ocorre entre vogais, [g] não
aparece nessa posição, pelo contrário, o fone fricativo [], alofone do
fonema /g/ é que ocupa essa posição. O fone [g], por sua vez, ocorre em
início absoluto de palavra e depois de uma consoante nasal, ambientes em
que não ocorre o fone []. Contudo, o fato de [] e [g] estarem em
distribuição complementar não é suficiente para concluir que eles sejam
alofones de um mesmo fonema. Esses fones carecem de semelhança
fonética. O segmento [] é bilabial e [g], velar. O modo de articulação é
também diferente: [] é uma consoante fricativa, [g] uma plosiva, o único
traço em comum que partilham esses dois segmentos é o vozeamento.
Em relação à semelhança fonética, pode-se dizer que o ponto de
articulação exerce um papel importante no momento de agrupar os fones.
Assim, é possível estabelecer princípios gerais, como:
a) Princípio da homogeneidade fonética
Quanto mais longe esteja o ponto de articulação de dois sons haverá
menos possibilidade de que eles sejam alofones de um mesmo fonema.14
No entanto, a semelhança fonética pode ser determinada, também, pelo
efeito acústico das articulações. O japonês, por exemplo, possui três
segmentos fricativos: labial [], glotal [h] e palatal [ç]. Apesar de esses três
fones serem articulatoriamente diferentes, são analisados como alofones de
um mesmo fonema, pois os mesmos têm efeitos acústicos semelhantes,15 ou
seja, parece ser necessário conjugar a homogeneidade fonética com a
acústica. A propriedade acústica dos fones pode, em determinados casos
como no japonês, contribuir para se estabelecer a semelhança fonética.
Dessa maneira, podemos considerar um segundo princípio.
b) Princípio da homogeneidade acústica
Dois sons serão tanto mais homogêneos quanto mais semelhantes sejam
seus efeitos acústicos.16
Os fones agrupados como semelhantes, que potencialmente poderiam
ser alofones de um mesmo fonema, são conhecidos como pares suspeitos,
isto é, pares de sons foneticamente similares que, eventualmente, seriam
alofones de um mesmo fonema.
2.1.4. Variação livre
Pelo critério da distribuição complementar identificamos as variantes
alofônicas de um mesmo fonema. Contudo, haverá casos em que as
variações fonéticas não são contrastivas e nem estão em distribuição
complementar. Nesses casos, o falante pode usar dois ou mais alofones no
mesmo contexto sem destruir a identidade dos itens lexicais em questão.
Quando isso ocorre, fala-se que os fones são variantes livres de um mesmo
fonema. Assim, em Shanenawá (Pano),17 os fones [f] e [v] ocorrem em
variação livre em início absoluto de palavra, como em [fuRu] ≈ [vuRu]
“olho”, [fatSi] ≈ [vatSi] “ovo”. Esses itens podem ser emitidos pelos
falantes shanenawás ora com [f] ora com [v] sem afetar o significado dessas
palavras. Ou seja, os fones [f] e [v] estão em variação livre.
Nos estudos sociolinguísticos, assume-se que as “variantes livres” estão,
na realidade, controladas por variáveis sociolinguísticas.18 Há fatores
sociais, linguísticos e estilísticos que determinam sistematicamente quais
das variantes serão usadas com maior frequência.
Princípios adicionais podem ser usados na análise fonológica de uma
língua. Na descrição das línguas ameríndias, por exemplo, é útil considerar
os seguintes:
2.1.5. Princípio da simetria
Os sistemas fonológicos das línguas mostram tendências pela simetria,
produto da pressão estrutural de seus padrões fonéticos. Por exemplo, se no
inventário fonético de uma língua ocorrem os segmentos plosivos
desvozeados [p, t, k] e seus correspondentes vozeados [b, d, g] e na análise
fonológica comprova-se que [p], [b], [t] e [d] são fonemas, então, pelo
princípio de simetria, poder-se-ia supor que os fones [k] e [g] também
sejam fonemas. Pelo princípio da simetria espera-se que para cada som de
uma língua seja encontrado um outro som correspondente. Assim, no
português encontramos as consoantes fricativas desvozeadas [f], [s], [], e
suas correspondentes desvozeadas [v], [z], [Z], constituindo, dessa maneira,
um quadro fonético simétrico, como se vê a seguir:
Embora as línguas mostrem inclinações pela simetria em seus sistemas
fonológicos, isso não implica que os inventários fonológicos sejam
necessariamente simétricos. É o caso, por exemplo, dos sistemas
fonológicos de muitas línguas indígenas, que se caracterizam por serem
assimétricos.
2.1.6. Princípio de economia
Esse princípio relaciona-se com a simplicidade ou generalidade que se
deve conseguir na descrição da fonologia de uma língua. Sua aplicação é
muito geral; uma versão ortodoxa desse princípio diz que dadas, por
exemplo, duas descrições linguísticas, uma contendo um inventário de 25
fonemas e a outra com 20 fonemas, escolhe-se a segunda por postular
menos fonemas. Porém, o fonólogo deve estar ciente de que não interessa
se o inventário fonológico de uma língua possui mais ou menos fonemas, o
que interessa é a coerência e a sistematicidade apresentadas na descrição
linguística. Nesse aspecto, não adianta forçar a análise para satisfazer
caprichos do analista ou para satisfazer determinada teoria linguística.
2.1.7. Princípio de pressão estrutural
Esse princípio toma como base a organização estrutural de uma língua
na interpretação dos fonemas. Ele é usado na análise de segmentos que
foneticamente são ambivalentes, como os glides19 [j] e [w] ou em casos de
sequências de consoantes do tipo [ts], [dz] (como em palavras do Kulina:20
[dzidzitani] “escuridão”, [tsktani] “liso”), [t], [d] (como em palavras do
português: [k] “ética”, [ip] “tipo”, [di] “dia”, [ditad]
“ditado”), [p], [b] (como ocorre em palavras da língua Margi:21 [pà]
“luta”, [bà] “laço”).
Nas palavras do Kulina e do português, os segmentos [ts], [dz], [t] e
[d] poderiam ser tratados inicialmente como uma sequência de dois
fonemas na fonologia, ou seja, CC,22 ou como consoantes complexas
constituídas foneticamente de uma plosiva mais uma fricativa, característica
dos segmentos africados. Nesse caso, esses segmentos serão interpretados
na fonologia apenas como C e não como CC. Do mesmo modo, haverá que
decidir se os segmentos [p], [b] do Margi representam a sequência de
dois fonemas: nasal + plosiva, ou se eles podem ser interpretados como
consoantes complexas acompanhadas de uma realização pré-nasalizada.
Uma ou outra interpretação dependerá do padrão estrutural da língua que se
está analisando.
Para entender melhor o princípio de pressão estrutural, considerem-se os
seguintes dados fonéticos da língua Shanenawá (Pano):
(4) [piciwi] “nadar” [suja] “rato”
[wasi] “capim” [japa] “piaba”
Nessa transcrição, os glides estão simbolizados por [w] e [j], como se
fossem consoantes, mas foneticamente são percebidos, também, como se
fossem vogais. Então, nada impede que esses mesmos itens sejam
transcritos como:
(5) [piciui] “nadar” [suia] “rato”
[uasi] “capim” [iapa] “piaba”
Numa transcrição fonética, uma ou outra forma de simbolização é
possível. Numa análise fonológica ter-se-á que se decidir se esses fones
funcionam como fonemas consonantais /w/, /j/, ou como fonemas vocálicos
/u/, /i/. A solução de serem tratados como consoantes ou como vogais
dependerá do padrão estrutural dalíngua Shanenawá, ou seja, segundo a
estrutura silábica dessa língua (cf. sílaba na seção 4).
3. PROPRIEDADES DOS SONS: OS TRAÇOS DISTINTIVOS
Considerou-se, até o momento, os fonemas como as unidades básicas da
Fonologia, no sentido de serem as unidades mínimas e contrastivas que
ocorrem numa língua. No entanto, há uma série de evidências mostrando
que são determinadas propriedades dos sons e não os fonemas que seriam
os primitivos da Fonologia.23
O fonema estaria constituído por um conjunto de propriedades que se
realizam simultaneamente. Esse feixe de propriedades chama-se traços.
Assim, por exemplo, os fonemas do espanhol: /b/, /d/ e /g/ atualizam-se
foneticamente como alofones fricativos [], [] e [], respectivamente,
quando ocorrem entre vogais. Pelos parâmetros tradicionais da análise
fonológica concluir-se-ia, então, que
(6)
a) /b/ é um fonema plosivo bilabial sonoro que se realiza foneticamente
como [] quando ocorre entre vogais;
b) /d/ é um fonema plosivo dental sonoro que se realiza foneticamente
como [] quando ocorre entre vogais;
c) /g/ é um fonema plosivo velar sonoro que se realiza foneticamente
como [] quando ocorre entre vogais.
Descritos dessa maneira, tem-se a impressão de que o falante do
espanhol manifesta três “regras” diferentes: (a) para a bilabial, (b) para a
dental e (c) para a velar. Contudo, a teoria fonológica busca generalizações
na explicitação dos processos fonológicos que ocorrem numa língua. No
caso do espanhol, vê-se que as três consoantes plosivas vozeadas realizam-
se como fricativas em posição intervocálica, independentemente de seus
pontos de articulação, se são bilabiais, dentais ou velares. Em cada uma das
três regras — (a), (b) e (c) —, há especificações redundantes dos contextos
em que se produz cada fonema. Individualmente, cada regra menciona a
mudança de uma consoante plosiva vozeada para uma consoante fricativa.
Está implícito, a partir dessa observação, que há um processo regular de
mudança das plosivas vozeadas, mas que essas três regras não o explicitam.
A análise fonológica de uma língua procura generalizações, então esses
segmentos deveriam ser agrupados em classes naturais, entendidas como
aquelas que agrupam os sons por determinadas propriedades que são
partilhadas entre si. Dessa maneira, os segmentos plosivos /b/, /d/ e /g/ do
espanhol formam uma classe natural e os fricativos [], [] e [] formam
outra classe natural. Mas, para agrupar os sons em termos de classes
naturais, deve-se procurar pela estrutura interna desses sons, ou seja, pelos
seus traços. Os traços servem não apenas para agrupar os sons em classes
naturais, mas também para diferenciar um fonema de outro, daí que são
denominados traços distintivos. Por exemplo, os fonemas bilabiais /p/ e /b/
opõem-se pelo traço distintivo [voz], o primeiro é [–vozeado] e o segundo
[+vozeado].
Então, a mudança dos fonemas plosivos do espanhol, anteriormente
citados, pode ser mostrada não por três regras independentes (a), (b) e (c),
mas pela fusão dessas três regras em uma, ou seja:
(7) Consoantes obstruintes vozeadas /b, d, g/ pronunciam-se como
fricativas [], [] e [] quando ocorrem entre vogais.
Definir os fonemas em termos de traços é um dos desenvolvimentos
mais importantes da teoria fonológica. Um objetivo da teoria fonológica é
identificar o conjunto de traços necessários para descrever os sons de
qualquer língua para, assim, compreender melhor as fonologias das línguas
faladas no mundo.
Uma versão sistemática da teoria de traços foi apresentada no livro
Preliminaries to speech analysis (Jakobson, Fant e Halle, 1952) e
posteriormente em Fundamentals of language (Jakobson e Halle, 1956).
Esses autores postularam uma dúzia de traços definidos em termos
acústicos24 e considerados como universais, que serviriam para definir as
propriedades dos fonemas de qualquer língua do mundo. Assim, pela teoria
de traços, cada fonema era definido com base numa oposição binária:
presença/ausência de determinado traço. Chomsky e Halle (1968)
propuseram um novo sistema de traços no livro The sound pattern of
English (SPE). Os traços propostos por eles caracterizam-se, também, por
serem universais e opostos binariamente: presença/ausência de um
determinado traço. Porém, os traços de Chomsky e Halle são definidos em
termos articulatórios e não acusticamente,25 como o foi no caso de seus
antecessores.
3.1. Traços de Chomsky e Halle
No que segue, apresentam-se os traços propostos em Sound pattern of
English (Chomsky e Halle, 1968), considerando algumas modificações
levantadas em Halle e Clements (1983). Opta-se pelos traços de Chomsky e
Halle porque são de uso muito amplo e representam o ponto de partida para
a discussão de qualquer teoria fonológica. Tais traços se dividem em traços
de classes principais, de cavidade, de corpo da língua, de forma dos lábios,
de modo de articulação, de fonte e traços prosódicos.
3.1.1. Traços de classes principais
Três traços são referidos como de classes principais, pois eles dividem o
conjunto dos segmentos fonológicos de uma língua em classes mais
significativas.
1) Silábico [sil]: os sons silábicos são os segmentos que funcionam
como núcleo da sílaba. Os não silábicos ocorrem como margens na sílaba.
Este traço serve para diferenciar as vogais das consoantes. Assim, as vogais
são [+silábico], as consoantes [– silábico]. Porém, há línguas em que as
consoantes fricativas estridentes, nasais, laterais e vibrantes poderiam
desempenhar a função de núcleo, ou seja, serem [+ silábico], como em
palavras do inglês: [bQtl] “battle”, [btn] “button” e [krv] “sangue” do
servo-croata.26 As teorias fonológicas não lineares27 não consideram mais o
traço silábico, pois a sílaba possui sua própria estrutura métrica. Ela é um
constituinte formado de uma estrutura interna própria (cf. sílaba, seção 4).
2) Consonantal [cons]: os sons consonantais são produzidos com uma
constrição28 ao longo da linha central do trato vocal. Essa constrição pode
ser total, como na articulação das consoantes plosivas, ou parcial, como na
produção das consoantes fricativas. Os sons não consonantais não
apresentam essa constrição. Assim, as vogais, os glides [w], [j] e os sons
glotais [h] e []29 são [–cons]. As consoantes plosivas, nasais, líquidas,
fricativas, africadas são [+cons].
3) Soante [soan]: esse tipo de sons é produzido com uma configuração
do trato vocal que permite o vozeamento espontâneo. Nos não soantes, isto
é, nas obstruintes30, a configuração do trato vocal inibe o vozeamento
espontâneo. Nessa definição, o estado normal das soantes é o vozeamento e
para as obstruintes o desvozeamento. As vogais, as consoantes nasais,
líquidas e os glides são [+soan], os segmentos plosivos, fricativos e
africados são [–soan].
Os traços de classes principais definem, segundo Chomsky e Halle
(1968, p. 303), as categorias de sons como na tabela a seguir:
(8)
Traços de classes principais
Silábico Consonantal Soante
Vogais vozeadas + – +
Vogais não vozeadas + – +
Glides (I): w, j – – +
Glides (II): h, ? – – +31
Laterais – + +
Vibrantes – + +
Plosivas nasais – + +
Plosivas orais – + –
3.1.2. Traços de cavidade
Os traços de cavidade referem-se aos pontos de articulação dos
segmentos envolvidos. Eles explicam em que lugar do trato vocal se
produzem as modificações da corrente de ar.
1) Coronal [cor]: os sons coronais são produzidos com o ápice ou a
lâmina da língua elevada acima de sua posição neutra. Considera-se posição
neutra o lugar onde se articula a vogal cardinal [], como na palavra [b:d]
“bed” do inglês ou [kaf] “café” do português. Assim, na produção de sons
coronais, o ápice ou a lâmina da língua eleva-se em direção à parte
posterior dos incisivos posteriores, entre a região da arcada alveolar e o
palato duro. Os sons não coronais permanecem em posição neutra.
Consoantes dentais, alveolares, alvéolo-palatais, retroflexas e palatais são
[+cor]. Todas as outras consoantes são [–cor]32.
2) Anterior [ant]: os sons anteriores são produzidos com uma obstruçãona parte anterior do trato vocal, numa região situada entre os lábios e a
arcada alveolar. Os não anteriores são produzidos na região pós-alveolar. O
traço anterior aplica-se somente às consoantes, não às vogais. Na geometria
de traços de Clements e Hume (1995), todas as vogais são inerentemente [–
anterior].
As consoantes labiais, dentais e alveolares são [+ant], as alvéolo-
palatais, palatais, velares, uvulares e faringais são [–ant].
A aplicação desses dois traços às vogais produz uma classificação
como:
(9)
3) Distribuído [dis]: sons distribuídos são aqueles produzidos com uma
constrição que se estende por uma distância relativamente longa no nível da
linha central do trato vocal. Nos não distribuídos, o comprimento da
constrição é mais reduzido. Esse traço é usado para diferenciar segmentos
produzidos com o ápice da língua daqueles em que intervêm a lâmina, e
para diferenciar consoantes retroflexas das não retroflexas. Assim, sons
apicais e retroflexos serão [–dis], sons laminais e não retroflexos serão
[+dis]. As consoantes bilabiais serão [+dis] e as labiodentais [–dis].
Considerando-se os traços coronal, anterior e distribuído, podemos ter
uma classificação das consoantes como a seguir:
(10)
33
3.1.3. Traços do corpo da língua
Esses traços caracterizam as diversas movimentações do corpo da língua
com respeito à posição neutra. Aos traços alto, baixo e recuado, citados
inicialmente por Chomsky e Halle (1968, p. 304-308), somou-se também o
traço raiz da língua avançada (Halle e Clements, 1983).
1) Alto [alt]: os sons altos são produzidos com uma elevação do corpo
da língua acima da posição neutra; os não altos são produzidos sem essa
elevação. Vogais altas, glides (w, j), consoantes alvéolo-palatais, palatais,
palatalizadas, velares e velarizadas são [+alto]. Todos os outros sons são [–
alto].
2) Baixo [bx]: os sons baixos apresentam um abaixamento do corpo da
língua em relação à posição neutra; os não baixos não apresentam essa
característica. As vogais abertas, consoantes faringais e faringalizadas são
[+baixo]; outras consoantes, vogais altas e médias são [–baixo]. Na
realidade, as vogais médias são [–alto, –baixo]. Para alguns fonólogos as
glotais [h] e [] são também [+baixo].
3) Recuado [rec]: também definido como [posterior]34, serve para
caracterizar os sons produzidos com uma retração do corpo da língua
relativamente à sua posição neutra. Os não recuados produzem-se sem essa
retração. Vogais centrais e posteriores, consoantes velares, uvulares,
faringais, velarizadas, faringalizadas e o glide [w] são [+recuado]. Todos os
outros sons caracterizam-se por serem [–recuado]; incluem-se nessa
característica as glotais [h] e [], pois na articulação delas não há retração
do corpo da língua.
A aplicação desses três traços às vogais permite diferenciar vogais
fechadas [+alto], vogais abertas [+baixo] e vogais centrais e posteriores
[+recuado], como se indica na tabela a seguir:
(11)
4) Raiz da língua avançada [ATR]: na emissão dos sons ATR, a raiz da
língua é puxada em direção à parte anterior do trato vocal, o que faz com
que a cavidade faríngea se amplie e produza uma elevação do corpo da
língua; os sons [–ATR] são produzidos numa posição neutra. Esse traço foi
aplicado para diferenciar vogais tensas [+ATR] das não tensas [–ATR],
encontradas principalmente em línguas africanas como em Akan e Igbo. Na
língua Akan35 há dez fonemas vocálicos que podem ser diferenciados pelo
traço [ATR], como se vê a seguir:
(12)
Os quatro traços citados, na proposta atual de Clements e Hume (1995),
são substituídos pelo traço abertura da boca,36 isto é, [aberto]; porém, ele se
aplica somente às vogais, não aos segmentos consonantais. Por exemplo,
pelo traço [aberto] as vogais orais do português se diferenciariam como na
tabela a seguir:
(13)
3.1.4. Traços relacionados com a forma dos lábios
Esse tipo de traços caracteriza o estreitamento da passagem do ar, obtido
tanto pelo arredondamento dos lábios, por exemplo, na produção das vogais
[o], [u], quanto pela constrição dos mesmos, como na emissão das
consoantes labiais.
1) Arredondado [arr]: os sons arredondados são produzidos com uma
protrusão dos lábios. Os não arredondados são produzidos com uma
distensão dos lábios, ou numa posição neutra. Vogais arredondadas, glides
[w, ] e consoantes labializadas são [+arredondado], os outros são [–
arredondado].
2) Labial [lab]: esse traço não aparece em Chomsky e Halle (1968),
porém ele é apresentado em Halle e Clements (1983), também em Clements
e Hume (1995). Os sons labiais são produzidos com uma constrição dos
lábios; os não labiais sem essa constrição. Consoantes labiais e labiodentais
são [labiais]. Dessa maneira as consoantes [p, b, f, v, , , m, , pW, bW,
kW], as vogais [u, o, , y, ø] e os glides [w, ] são [labial].
Em Clements e Hume (1995), o traço [labial] é considerado como
monovalente, sendo tratado como traço de cobertura, ou seja, é um traço
que serve para se referir a qualquer envolvimento dos lábios. Isso faz com
que o traço arredondado seja aplicado tão somente aos sons que são
articulados com protrusão dos lábios. Assim, então, [labial] pode ser
dividido em sons labiais [–arredondados] e sons labiais [+arredondados], ou
seja:
(14)
3.1.5. Traços de modo de articulação
Esses traços servem para identificar os processos articulatórios usados
na produção dos sons. Tais processos são determinados pela atuação dos
articuladores nos pontos de articulação. Nesse sentido, o articulador pode
provocar um impedimento total, parcial, intermitente ou deixar a passagem
do ar totalmente livre (Barroso, 1999, p. 55-59).
1) Contínuo [con]: na produção dos sons contínuos há uma obstrução da
passagem do ar pelo trato vocal, mas sem chegar a ser total. Nos não
contínuos a passagem do ar é completamente bloqueada. Os sons fricativos,
glides [w, j], consoantes líquidas, e consoante [h] são [+con]. Os segmentos
laterais podem ser considerados como [+contínuo] ou como [–contínuo], a
caracterização como positivo ou negativo depende da língua em questão. A
situação dos sons róticos [r] também é problemática. O problema se
relaciona com a qualidade desses sons. Por exemplo, as aproximantes [] do
inglês americano e [] do britânico são [+contínuo], também a vibrante
uvular [R] que ocorre em palavras do português como [Rumu] “rumo”,
[kaRu] “carro”, [iZ{jlit] “israelita”, na pronúncia dos falantes de
Portugal, pode ser caracterizada como [+contínuo]. Porém, as vibrantes,
tepes e flepes são [–contínuo].
2) Lateral [lat]: os sons laterais são produzidos com o abaixamento da
parte média da língua de um ou dos dois lados, o que permite o fluxo lateral
da corrente de ar. Nos sons não laterais o fluxo de ar dá-se pela parte central
do trato vocal. As líquidas laterais, as fricativas laterais e as africadas
laterais são [+lateral].
3) Nasal [nas]: na produção dos sons nasais o véu palatino está
abaixado, permitindo o fluxo do ar pela cavidade nasal. Nos sons não nasais
o véu está elevado contra a parede da faringe, então o ar flui pela cavidade
oral. As plosivas nasais, consoantes nasalizadas, vogais e glides nasalizados
são [+nasal].37
Com base nesses três traços podemos diferenciar consoantes fricativas,
líquidas, nasais e glides como a seguir:
(15)
4) Estridente [estr]: o uso desse traço limita-se aos sons fricativos e
africados. Acusticamente, os sons estridentes se caracterizam pela presença
de mais ruído do que seus correspondentes não estridentes. Fricativas
labiodentais, alveolares, alvéolo-palatais e uvulares são [+estridente],
fricativas bilabiais, interdentais, palatais e velares são [–estridente]. Esse
traço diferenciará africadas e fricativas da forma seguinte:
(16)
5) Distensão retardada [DR]: existem duas maneiras pelas quais o
fechamento do trato vocal pode ser liberado: (a) abruptamente como nas
plosivas, (b) gradualmente como nas fricativas e africadas.
O traço distensão retardada foi proposto inicialmente em Chomsky e
Halle (1968) para diferenciar as plosivasorais das africadas. Nesse sentido,
as consoantes africadas são [+DR], e as plosivas, [–DR],38 como na tabela a
seguir:
(17)
3.1.6. Traços de fonte
Esses traços caracterizam os diferentes tipos de fonação que intervêm na
produção dos sons. Os órgãos principais envolvidos nessa operação são a
laringe e as cordas vocais. Desse modo, podemos ter sons vozeados,
aspirados e glotalizados. Esse tipo de segmentos pode ser caracterizado
pelos seguintes traços:
1) Vozeado [voz]: sons vozeados são produzidos com vibração das
pregas vocais. Os sons não vozeados são produzidos sem essa vibração.
Todos os segmentos sonoros, incluindo os glides [w, j], vogais e consoantes
nasais e líquidas são vozeados. Os segmentos surdos são [–voz].
2) Pressão subglotal elevada [PSE]: existem sons que são produzidos
com um aumento das cartilagens aritenoides,39 criando uma abertura maior
da glote. Outro tipo de sons é produzido sem essa configuração. Consoantes
aspiradas, murmuradas, vogais e glides desvozeadas são caracterizadas
como [+PSE].
3) Constrição glotal [CG]: os sons que apresentam constrição glotal são
produzidos com um forte fechamento da glote, que impossibilita a vibração
das pregas vocais. Os sons sem constrição glotal não apresentam essa
configuração. Esse traço serve para caracterizar as consoantes ejetivas,
implosivas, laringalizadas e a glotal [].
Os traços de fonte podem ser exemplificados como se indica na tabela a
seguir:
(18)
3.1.7. Traços prosódicos
Uma especificação fonética requer, além dos traços segmentais que
caracterizam os sons individualmente, outros traços que se apresentam
numa sequência de sons. Esses traços são os prosódicos ou
suprassegmentais.
O sistema desenvolvido por Chomsky e Halle (1968) incluía
basicamente os traços: [longo], [acento] e [tom]. O traço [longo] era para
caracterizar segmentos que apresentavam duração, tais como vogais longas
(ex.: latim) e consoantes geminadas40 (ex.: italiano). O traço [acento] era
usado para caracterizar as sílabas que apresentavam maior intensidade que
outras. Essa intensidade era considerada como característica inerente de
uma vogal e não propriamente da sílaba como constituinte. O traço [tom]
era empregado para caracterizar a altura das unidades portadoras de tom,
neste caso também, com referência as vogais.
Esses traços prosódicos, com o surgimento das fonologias não lineares,
passaram a ser tratados não como traços, mas como representações em
diagramas arbóreos, batizados com o nome de representações métricas.
Dessa forma, os segmentos geminados e os que apresentam alongamento
não são mais tratados como [+longo]. Eles apenas são representados como
em (19):
(19)
Do mesmo modo, uma palavra como àkhwá “ovos” da língua Igbo41,
com tom baixo na primeira sílaba e alto na segunda, será representada
como:
(20)
42
Finalmente, na fonologia não linear o acento é um conceito relacional,
de maneira que uma sílaba acentuada é mais proeminente que aquela não
acentuada. Essa relação de proeminência é expressa por meio de árvores
binárias, cujos ramos são rotulados em termos de forte (S) e fraco (W).43
Por exemplo, a palavra falavam (forma verbal) do português terá a seguinte
representação:
(21)
Em conclusão, a teoria dos traços distintivos veio alterar o conceito de
fonema, considerado inicialmente como unidade mínima da Fonologia. Ora,
o fonema é um segmento sonoro, constituído por determinadas
propriedades, isto é, os traços distintivos.
Os traços distintivos são identificáveis e servem para distinguir os
fonemas, daí que essas propriedades passem a ser consideradas como as
unidades primitivas da Fonologia. Nesse sentido, a teoria fonológica atual
considera os fonemas como conjuntos de traços distintivos e, por essa
razão, muitas vezes emprega-se o termo segmentos fonológicos ou apenas
segmentos. Portanto, quando identificarmos segmentos numa cadeia
fonológica, teremos em mente os traços distintivos que os identificam.
4. SÍLABA
Nesta seção, considerar-se-ão os princípios de organização que
governam a combinação dos fonemas. Os fonemas podem combinar-se
entre si para formar unidades maiores, como sílabas, morfemas e palavras.
Essa combinação não se dá ao acaso, mas segue determinados princípios da
Gramática e da estrutura fonológica de uma língua. O primeiro nível de
organização que rege os fonemas está relacionado com as condições
definidas pela estrutura fonotática44 da sílaba.
A sílaba é una unidade básica que nos informa acerca de como está
organizado o sistema fonológico de uma língua; ela é uma entidade
estritamente fonológica, não pode ser confundida com uma unidade da
gramática ou da semântica.
Na teoria fonológica desenvolvida por Chomsky e Halle (1968), a sílaba
não foi reconhecida como um constituinte estruturado. Esses autores
consideraram apenas o traço [silábico] para diferenciar os segmentos
consonantais dos vocálicos. Assim, as vogais foram tratadas como
[+silábico] e as consoantes como [–silábico]. De acordo com esse critério,
as palavras foram vistas como uma sequência de segmentos consonantais e
vocálicos.
Foi somente com o surgimento da fonologia não linear que a sílaba
adquiriu um papel central nos estudos fonológicos. Atualmente, existem
vários modelos teóricos que tratam dela. Comparar todos esses modelos não
é objetivo deste capítulo. Tudo o que podemos fazer aqui é dar alguma
noção daquilo que se convencionou chamar de estrutura silábica.
4.1. Importância da sílaba
O reconhecimento de um constituinte sílaba permite eliminar o traço
[silábico] da teoria fonológica que permite, por extensão, eliminar os traços
prosódicos [acento] e [longo]. Eliminado o traço [silábico], veremos que a
característica de um segmento como [silábico] ou como não [silábico]
dependerá de sua posição na estrutura silábica de uma língua, e não das
propriedades inerentes dos segmentos. Por exemplo, o contraste entre as
vogais altas [i], [u] e os glides [j], [w] não depende mais do traço [silábico],
mas de sua posição na estrutura da sílaba. Se esses segmentos ficarem na
posição de núcleo serão automaticamente silábicos, se ficarem nas bordas
do núcleo serão não silábicos.
4.2. Representação da estrutura silábica
A sílaba representa o primeiro nível de organização fonológica dos
fonemas de uma língua particular. É necessário focalizar o termo “língua
particular”, pois as línguas variam de acordo com seus padrões silábicos.
Apesar das variações nos padrões silábicos, é possível reconhecer que todas
as línguas do mundo têm o padrão CV (Consoante-Vogal), considerado a
sílaba menos marcada45 (cf. Jakobson, 1962).
Na estrutura silábica, as vogais formam o núcleo da sílaba, mas em
determinadas línguas, como no inglês, as consoantes líquidas e as nasais
podem também ocupar a posição de núcleo. As consoantes que se situam
nas bordas do núcleo denominam-se ataque46 e coda, respectivamente.
Ataque é a denominação para a consoante que precede o núcleo e coda é a
consoante que ocorre após o núcleo. Contudo, a teoria fonológica reconhece
que essa relação não é estritamente linear, em termos de ataque–núcleo–
coda, mas que a estrutura da sílaba obedece a uma construção hierárquica.
Sendo assim, a sílaba é um constituinte estruturado em termos de ataque e
rima, esta última ramificando-se, por sua vez, em um subconstituinte
obrigatório, o núcleo, seguido opcionalmente pela coda. Dessa forma, o
molde da sílaba será representado como segue: (a letra grega [σ] é para
indicar o constituinte sílaba, A para ataque, R para rima, Nu para núcleo e
Co para coda).
(22)
A teoria assume, também, que a associação dos fonemas com os
subconstituintes ataque, núcleo e coda não se dá diretamente, mas por meio
de uma camada intermediária chamada esqueleto CV. Por exemplo, em
Shanenawá (Pano), a palavra  utSuan “pimenta” será representada como:
(23)
4.2.1. Classificação tipológica da sílaba
Atendendo a sua estrutura, as sílabas podem ser leves ou pesadas. Uma
sílaba leve tem a estrutura CV, ou seja, uma sílaba que apresenta uma rima
não ramificada.Por exemplo, mehináku, uma língua indígena da família
arawák, possui somente sílabas CV. Também há línguas que podem tratar
uma estrutura CVC como sílaba leve. Uma sílaba pesada é aquela em que a
rima se ramifica, ou seja, uma estrutura como CV:47, CV:C, CVV, CVC,
CVCC. A propriedade de ser uma sílaba leve ou pesada é denominada pela
teoria fonológica peso silábico.
Outra forma de caracterizar os tipos de sílabas é em termos de sílaba
aberta (ou livre) e sílaba fechada (ou travada). No primeiro tipo, a sílaba
sempre termina em vogal (CV); no segundo, a sílaba termina em uma ou
mais consoantes. Alguns tipos de sílabas que ocorrem no português se
podem ver em (24).
(24)
a) a. cor . do V. CVC. CV48
b) pers . pe . ti . va CVCC. CV. CV. CV
c) prá . ti . co CCV. CV. CV
d) a. gru. par V. CCV. CVC
Outro fato importante a se considerar na combinação dos fonemas na
sílaba é que essa combinação não se dá aleatoriamente, mas os fonemas
seguem um padrão específico de combinação conhecida na Fonologia como
hierarquia de sonoridade (Hooper, 1976). A hierarquia de sonoridade
relaciona-se com o vozeamento. Quanto mais propenso um segmento seja
para o vozeamento espontâneo, maior sonoridade ele tem. A sonoridade dos
segmentos é comumente representada por meio de uma escala como a
seguinte:
(25)
A utilidade de se reconhecer uma escala de sonoridade como a de (25)
apoia-se no fato de que cada vez que temos um segmento com grau de
sonoridade alto teremos o núcleo da sílaba, e quando a escala de sonoridade
for baixa teremos os segmentos que estão nas margens da sílaba: ataque e
coda. Assim, na representação hierárquica de (25), os elementos de maior
sonoridade, nesse caso, vogais, são candidatos a serem núcleo da sílaba; os
de menor sonoridade são candidatos para ocuparem as bordas no núcleo
silábico, ou seja, as posições de ataque e de coda.
Existem outras propriedades e princípios relacionados com a
estruturação da sílaba nas línguas naturais, porém esses temas são tópicos
mais avançados a serem estudados em livros que tratam especificamente da
teoria fonológica.
5. CONCLUSÃO
Neste capítulo apresentamos uma breve introdução aos conceitos
considerados básicos pela teoria fonológica. Nossa tarefa teve a finalidade
de oferecer ao estudante de Letras e Linguística subsídios elementares no
campo da Fonologia, que possam constituir um ponto de partida para
estudos mais avançados. Os temas tratados estão apenas abrindo a porta
para posteriores estudos, que nos permitam ir de maneira mais aprofundada
na compreensão da teoria fonológica e das fonologias manifestadas pelas
línguas particulares.
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1. Saussure, F. de. Curso de linguística geral. São Paulo: Cultrix, 1995. p. 27 (1ª edição, em
francês, 1916).
2. O significado relaciona-se com o conceito ou ideia, isto é, a representação mental de um objeto
ou da realidade social em que os falantes de uma língua se situam. O significante relaciona-se com a
expressão fônica do significado.
3. A partir de agora pressuporemos certos conhecimentos de Fonética Geral. Para tal, remetemos o
leitor ao capítulo de Fonética, neste volume.
4. Ver a definição de fonema na seção2.
5. O termo fone é usado como sinônimo de som. Nesse sentido, fone quer dizer a realização
concreta, material de um segmento. Quando os fones cumprem uma função distintiva ou funcional
numa língua, como [p] e [b] em “pato”, “bato”, serão considerados como fonemas dessa língua.
6. Uma das três cidades mais importantes da Holanda onde se realizou, em 1928, o Primeiro
Congresso Internacional de Linguistas.
7. Trubetzkoy, N. S. Principles of phonology. Berkeley/Los Angeles: University of California
Press, 1969. p. 4 (1ª edição, 1939).
8. Tradução, a partir do inglês, feita pelo autor do presente texto. Cf. Trubetzkoy, N. S. Principles
of phonology. Berkeley/Los Angeles: University of California Press, 1969. p. 35.
9. O texto original de Bloomfield (1933) é: “... minimal unit of distinctive sound feature”.
Bloomfield, L. Language. New York: Holt, Reinhart e Winston, 1993. p. 79.
10. Usamos o termo “tradicional” para nos referir ao modelo de Fonologia que se fundamenta nos
procedimentos de descoberta para encontrar os fonemas de uma língua sem tradição de escrita.
11. Em Grimes (1969), a definição de ambientes análogos é denominada “near minimal pairs”.
Assim, essas formas diferem em significante e significado, mas, ao contrário dos verdadeiros pares
mínimos, a diferença do som se dá em mais de um lugar (Grimes, 1969, p. 136).
12. O Ewe é uma língua da floresta tropical da África ocidental. Essa língua, assim como o Igbo e
o Akan, é a mais difundida dessa região africana.
13. Em outras palavras, as vogais sendo intrinsicamente vozeadas estariam condicionando de
maneira diferente a ocorrência fonética da fricativa labiodental [f] não vozeada e a correspondente,
também labiodental, vozeada [v]. Não há, também, razão alguma para dizer que as vogais nasais
estariam condicionando a presença de [f] e as orais a correspondente [v].
14. Moreno Cabrera, J. C. Curso universitário de linguística general. Semântica, pragmática,
morfología y fonología. Madrid: Sínteses, 1994. t. II.
15. Observe-se que, na emissão desses três segmentos, a saída do ar pela cavidade oral é contínua,
mas com alguma constrição nos pontos de articulação, a saber, bilabial, glote e palatal. Nesse sentido,
as características acústicas são bastante similares.
16. Moreno Cabrera, J. C. Curso universitário de linguística general. Semântica, pragmática,
morfología y fonología. Madrid: Sínteses, 1994. t. II.
17. O Shanenawá é uma língua indígena falada por uma população que habita a região do rio
Envira, município de Feijó, Estado do Acre.
18. Para a definição de variáveis, ver o capítulo Sociolinguística, neste volume.
19. Glide é um empréstimo do inglês usado em fonética “para indicar um som de transposição
quando os órgãos da fala se movimentam em direção a uma articulação ou se afastam dela (on-glide
e off-glide, respectivamente). Como não são nem consoantes nem vogais, os glides costumam ser
denominados semiconsoantes ou semivogais (têm uma qualidade vocálica e uma distribuição
consonantal)”. Crystal, D. Dicionário de linguística e fonética. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998. p.
126. Para detalhes, ver o capítulo Fonética, neste volume.
20. Kulina é uma língua indígena da família Arawá falada nos Estados do Acre e Amazonas.
21. Margi é uma língua falada na região norte da Nigéria.
22. C = (consoante).
23. Para uma discussão teórica de esse ponto ver Jakobson, Fant e Halle (1952), Jakobson e Halle
(1956), Chomsky e Halle (1968). Uma apresentação interessante sobre o status dos traços segmentais
pode ser lida em Hall (2007).
24. Os autores privilegiaram as propriedades físicas dos sons.
25. Ou seja, Chomsky e Halle (1968) focalizaram a maneira como os sons são produzidos pela
aparelho fonador.
26. O servo-croata é uma língua eslava falada principalmente na Sérvia, em Montenegro, na
Croácia, na Bósnia e em Herzegovina, todas antigas repúblicas da Iugoslávia.
27. A partir da década de 1980 desenvolveu-se um quadro formal e conceptual de teoria
fonológica integrada por diferentes subteorias: geometria de traços, teoria da sílaba e teoria métrica
do acento, que em seu conjunto são conhecidas como fonologia não linear. A fonologia não linear vê
os traços dispostos hierarquicamente em diferentes camadas de maneira que a) alguns traços têm sua
própria camada de autossegmentalização, b) não há necessariamente uma correspondência biunívoca
entre o número de autossegmentos e o número de fonemas presentes num determinado enunciado, e
c) os autossegmentos ligam-se a suas unidades segmentais por meio de linhas de associação.
28. Constrição refere-se a um estreitamento que ocorre no aparelho fonador. Os diferentes tipos e
graus de constrição servem de base qualitativa para a classificação articulatória dos sons.
29. Em SPE (Chomsky e Halle, 1968) os segmentos [w] e [j] são tratados como glides (I), os
segmentos [h] e [?] como glides (II). Em teorias fonológicas mais recentes, os glides (I) são definidos
como [aproximantes], junto as vogais e segmentos líquidos.
30. O traço oposto a soante é [obstruinte] para caracterizar os sons com uma constrição que
impede o fluxo do ar, como ocorre nas consoantes plosivas, fricativas e africadas.
31. Schane (1973) e Hyman (1975) apresentam dados de línguas em que [h] e [?] partilham as
características dos segmentos obstruentes e não de soantes.
32. A partir de Clements e Hume (1995), as vogais [i], [e] e [E] são tratadas igualmente como
coronais.
33. Na realidade, o uso do traço distribuído resulta relevante em línguas que possuem segmentos
coronais distintivos.
34. Recuado corresponde ao traço [back] em Chomsky e Halle (1968:305), que em algumas
traduções em português e espanhol aparece como posterior. Porém, é preferível usar [recuado] para
evitar um falso paralelismo entre os traços [anterior] e [posterior]. Lembre-se de que o traço
[anterior] se define não em relação com a posição do dorso da língua, mas segundo a localização do
ponto de articulação na cavidade oral. Por essa razão, todas as vogais são [–anterior], pois na
articulação delas não se dá propriamente nenhum ponto de articulação.
35. Língua da família Kwa falada nos trópicos da África Ocidental.
36. O traço abertura expressa, na verdade, graus de altura da língua na emissão das vogais. O fato
dessa caracterização encontra-se postulado a partir da geometria de traços, que trata de uniformizar a
especificação dos pontos de articulação tanto das vogais como das consoantes.
37. Na fonologia não linear, o traço [nasal] representa uma autossegmento, pois em muitas línguas
a nasalização não caracteriza apenas vogais e consoantes, mas ela pode espalhar-se pelos domínios da
sílaba, morfema e palavra. Por exemplo, em Aguaruna (Jívaro), a nasalização pode espalhar-se por
toda uma palavra, numa direção direita-esquerda como em [jawaã] →[jawãã] →[jawãã] →[jãwãã]
“cachorro”.
38. Na fonologia não linear, o traço [distensão retardada] não é mais necessário. A diferença entre
segmentos plosivos e africados é feita pela representação métrica dos mesmos. Assume-se que uma
consoante plosiva é representada contendo uma raiz, e as africadas contendo duas raízes. Ambos os
segmentos, por sua vez, associam-se a uma variável [X], denominada unidade de tempo. Assim, a
africada pós-alveolar /tS/ está ligada, simultaneamente, a uma raiz com o traço [–contínuo] e a outra
com o traço [+contínuo].
39. As aritenoides são cartilagens que, junto com os ligamentos, músculos e membranas,
governam a ação das cordas vocais. Existem duas aritenoides e estão localizadas na laringe. São
importantes na movimentação das cordas vocais.
40. O termo geminado(a) se usa em Fonética e em Fonologia para indicar uma sequência de
segmentos idênticos. Por exemplo, em italiano há consoantes geminadas como em fatto “fato”, que
se diferenciam das não geminadas como em fato “destino”.
41. Língua falada na Nigéria.
42. L: tom baixo, H: tom alto.
43. S: do inglês Strong, e W: do inglês weak.
44. Fonotática é um termo usado na Fonologia para se referir às combinaçõesde segmentos
possíveis numa determinada língua.
45. Entenda-se “menos marcada” em termos de ser mais natural, o mais comum. Um tipo de
padrão silábico mais frequentemente encontrado nos tipos silábicos das línguas do mundo.
46. É comum também usar o uso do termo em inglês onset para se referir ao ataque.
47. V: significa vogal alongada.
48. V (= vogal), C (= consoante), (.) significa fronteira silábica.
5
MORFOLOGIA
Maria Filomena Spatti Sandalo
1. INTRODUÇÃO
A Morfologia é o ponto de maior controvérsia no estudo de linguagem
natural. Especialistas se debatem tomando posições que vão desde aquelas
que consideram a Morfologia como o principal componente do estudo
gramatical, até aquelas que desconsideram totalmente o nível morfológico
na construção de uma teoria da gramática. Este capítulo, cujo objetivo é
fazer uma introdução aos estudos de Morfologia, tem como foco a
controvérsia que caracteriza esta área, apresentando as formas como
algumas correntes linguísticas variaram no decorrer dos anos ao darem um
maior ou menor papel para a Morfologia.
Este texto tem a seguinte organização: em primeiro lugar,
apresentaremos noções básicas relacionadas aos domínios dos estudos
morfológicos; em seguida, apresentaremos discussões sobre o papel da
Morfologia dentro de dois quadros teóricos: o estruturalista e o da teoria
gerativa; por fim, tentaremos fazer perceber que o momento atual vai na
direção de um maior acordo sobre o papel da Morfologia na Gramática.
2. A MORFOLOGIA E SUAS UNIDADES BÁSICAS
A Morfologia é frequentemente definida como o componente da
Gramática que trata da estrutura interna das palavras. Mas o que é uma
palavra?1 A existência de palavras é assumida como uma realidade pela
maioria de nós, linguistas ou não. No entanto, não é simples definir o que é
uma palavra. Na Linguística, como em qualquer ciência, um dos problemas
básicos é identificar critérios para definirmos as unidades básicas de estudo.
Em línguas isolantes, como o chinês, cada palavra carrega apenas um
significado, mas em línguas polissintéticas, como a língua kadiwéu, falada
no Mato Grosso do Sul, ou o georgiano, falado na Europa oriental, certas
sequências de sons, assumidas por seus falantes como palavras, carregam
significados traduzidos por frases em línguas como o português. Assim,
como podemos ter certeza de que jotaγanγetaγadomitiwaji do kadiwéu é
uma palavra e não uma frase? O significado não nos ajuda. Esta sequência
de sons significa “eu falo com eles por vocês”. Tampouco, critérios
semânticos não nos ajudam a definir uma palavra em línguas como o
português. Como saber se construtor e aquele que constrói são palavras do
português? Ambos têm o mesmo significado. Assim, se nosso critério for o
significado, deveríamos dizer que ambas as sequências pertencem à mesma
classe gramatical. No entanto, nosso conhecimento de falantes do português
nos sugere que a primeira é uma palavra, mas a segunda sequência é uma
frase.
Critérios fonológicos também não nos ajudam. É impossível elaborar
um teste baseado em critérios fonológicos que possa ser categoricamente
aplicado para qualquer língua para sabermos se estamos lidando com uma
palavra ou frase. Algumas pessoas já tentaram definir palavras pelo acento.
Segundo este critério, uma palavra deveria contar com um acento principal
(i.e. de maior intensidade) e alguns acentos secundários. No entanto
[detèrgénte] e [dètergénte], ambos com um acento principal e um
secundário, correspondem a uma frase e uma palavra, respectivamente.
Essa ambiguidade é explorada pela seguinte piada:
(1) O que é detergente?
É o ato de prender pessoas.
Muitos linguistas preferem definir palavras usando critérios sintáticos,
os quais parecem funcionar em qualquer língua do mundo. Uma sequência
de sons somente pode ser definida como uma palavra lexical se (i) puder ser
usada como resposta mínima a uma pergunta e se (ii) puder ser usada em
várias posições sintáticas. Em (2), nabos ocorre como a menor resposta
possível à questão dada. Em (3), a palavra nabos ocorre como objeto da
sentença e em (4) ocorre como sujeito. Isto é, esta sequência de sons pode
ocorrer em mais de uma posição sintática. É, portanto, uma palavra.
(2) O que Maria comprou na feira hoje?
Nabos.
(3) Maria comprou nabos na feira hoje.
(4) Nabos foi o que Maria comprou na feira hoje.
Um elemento como lhe pode ocorrer em mais de uma posição na
sentença, como demonstrado em (5) e (6): lhe pode ocorrer antes ou depois
do verbo. Lhe é uma palavra?
(5) Maria quer lhe dar um livro de presente.
(6) Maria quer dar-lhe um livro de presente.
Palavra é a unidade mínima que pode ocorrer livremente. Uma vez
assumida essa definição de palavra, podemos distinguir vários elementos
que carregam exatamente o mesmo significado, mas que não têm o mesmo
status gramatical. Assim, um pronome clítico, como lhe, embora possa
carregar o mesmo significado que um pronome, não pode ser caracterizado
como uma palavra, uma vez que não atinge os critérios sintáticos
anteriormente definidos. Por exemplo, o pronome clítico o “terceira pessoa
singular masculino” (Maria o viu na feira) não pode ocorrer como resposta
a uma pergunta e não pode servir como sujeito de uma sentença. Não é,
portanto, uma palavra. Mas o pronome ele, embora carregue o mesmo
significado, isto é, “terceira pessoa singular masculino”, qualifica-se como
uma palavra, pois pode ocorrer isoladamente e em várias posições
sintáticas. No português brasileiro vernáculo, ele ocorre em qualquer
posição argumental (Ele me viu, Eu vi ele, José deu um livro para ele).
A pergunta “como podemos ter certeza de que jotaγanγetaγadomitiwaji
do kadiwéu é uma palavra e não uma frase?” pode ser respondida da
seguinte forma: a sequência de sons do kadiwéu obedece aos critérios
sintáticos apontados, sendo, portanto, uma palavra, mesmo que, em
português, ela seja traduzida como uma sentença.
Uma vez definido o que é uma palavra, temos definida a unidade
máxima da Morfologia. O que seria a unidade mínima deste componente da
Gramática? As unidades mínimas da Morfologia são os elementos que
compõem uma palavra. Seriam fonemas e traços, como definidos no
capítulo Fonologia, neste mesmo volume? Não. A Morfologia tem seus
próprios elementos mínimos. O conhecimento desses elementos é o que nos
permite entender o significado de palavras que nunca ouvimos antes. Ao
nos depararmos com uma palavra como nacionalização, mesmo sem nunca
termos ouvido esta palavra, podemos descobrir o que ela significa se
soubermos o significado de nação, “pátria”, e o significado dos elementos
que derivam novas palavras em português: al, “elemento que transforma um
substantivo em adjetivo”; izar, “elemento que transforma um adjetivo em
verbo”; e ção, “elemento que transforma verbo em substantivo”.2 Assim, ao
adicionarmos nação e al, criamos o adjetivo nacional e, ao adicionarmos
izar, temos o verbo nacionalizar. Finalmente, ao somarmos ção com
nacionalizar, formamos o nome (ou substantivo, segundo a terminologia da
Gramática tradicional) nacionalização.3 A palavra nacionalização significa
ato de nacionalizar. Seu significado é derivado do significado das partes que
compõem esta palavra. Os elementos que carregam significado dentro de
uma palavra são rotulados de morfemas e são estes a unidade mínima da
Morfologia. Apesar de muitas pessoas afirmarem que a palavra é a unidade
mínima que carrega significado, o morfema é que o é.
3. O QUADRO ESTRUTURALISTA
Para o estruturalismo, uma das preocupações da Linguística é tentar
explicar como reconhecemos palavras que nunca ouvimos antes e como
podemos criar palavras que nunca foram proferidas antes. A resposta é que
nosso conhecimento dos morfemas da língua é o que nos dá esta
capacidade. Assim, o problema central da Linguística para o quadro teórico
estruturalista é identificar os morfemas que compõem cada língua falada no
mundo; a Morfologia, portanto, é de crucial importância para o
estruturalismo.4 Nesta perspectiva, uma parte central do estudo envolve
identificar morfemas delínguas não previamente descritas. A metodologia
estruturalista mostra que não é necessário saber falar uma língua para ser
capaz de identificar seus morfemas. Os seguintes passos são usados para a
documentação dos morfemas de uma dada língua:
a) Identifique formas recorrentes e tente observar qual é o pedaço de
significado recorrente na tradução. Assim, nas palavras a seguir,
provenientes da língua kadiwéu, j ocorre em todas as palavras. Na
tradução é recorrente o significado “primeira pessoa”. Assim, j deve
ser o morfema que carrega o significado de primeira pessoa na
língua kadiwéu em verbos.
Figura 5.1
Palavras do kadiwéu e identificação morfológica
b) Não assuma que morfemas universalmente aparecem na mesma
ordem que os morfemas do português. Assim, o português também
conta com um morfema que marca a primeira pessoa em verbos: o
(ajudo, soco, escuto). Mas as ordens de morfemas do kadiwéu e do
português são distintas. Assim, este morfema é um prefixo no
kadiwéu, isto é, ocorre antes da raiz verbal, mas é um sufixo (ocorre
depois da raiz verbal) no português.
c) Não assuma que todos os significados expressos por morfemas em
sua língua nativa serão expressos em outra língua por um morfema
específico. Em chinês, por exemplo, não há marcas de pessoa.
d) Não assuma que sua língua nativa apresenta todos os contrastes
morfológicos possíveis universalmente. Uma grande parte das
línguas indígenas brasileiras, por exemplo, é caracterizada pela
presença de um morfema, rotulado de relacional, que não se
encontra em nenhuma língua europeia. O papel deste morfema ainda
é amplamente desconhecido. Sabe-se apenas que, quando este
morfema estiver presente no verbo, o objeto direto não pode ser
deslocado. Isto é, ele deve estar contíguo ao verbo. O estudo de
línguas não previamente descritas apresenta um universo de
morfemas a serem descobertos.5
Estamos agora preparados para conhecer a estrutura interna da palavra
do kadiwéu que deu início a este capítulo:
Figura 5.2
Palavra do kadiwéu e a identificação morfológica
“Eu falo com eles por vocês.”
É possível observar que há várias diferenças entre a morfologia do
português e a do kadiwéu, o que ilustra a diversidade linguística que
encontramos ao estudar Morfologia. Assim, o kadiwéu separa os morfemas
de pessoa daqueles de número. Já o português agrupa estes traços
semânticos em um único morfema. Por exemplo, m (cf. amam) agrupa
pessoa e número: terceira pessoa do plural. O kadiwéu conta com um
morfema que marca o objeto indireto, além de um morfema que marca o
sujeito. O verbo só é marcado para o sujeito no português. A interrogação
no glossário em 7 indica que ainda não sabemos/entendemos este morfema.
Como dito anteriormente, o estudo morfológico é um universo a ser
explorado. As línguas polissintéticas, como o kadiwéu, são línguas em que
qualquer palavra, exceto o verbo, pode ser omitida, uma vez que todos os
significados de uma sentença são expressos por meio de morfemas verbais.
Sapir (1921) propôs a seguinte caracterização para uma língua
polissintética:6
Uma língua polissintética, como seu nome implica, é mais que ordinariamente sintética. A
elaboração de uma palavra é extrema. Conceitos que nós nunca sonharíamos em tratar de uma
maneira subordinada são simbolizados por afixos derivacionais ou mudanças “simbólicas” no
elemento radical, enquanto noções mais abstratas, incluindo relações sintáticas, podem também
ser transmitidas pela palavra.7
Assim, em uma língua como o kadiwéu, até mesmo significados
expressos por meio de preposições, como acontece em português, são
expressos por morfemas verbais. Esta língua apresenta um morfema verbal
que indica o papel semântico do objeto indireto (benefactivo). Línguas
como o português contam com preposições na sintaxe com essa função. O
kadiwéu não tem adposições.
Além de sufixos e prefixos, a tipologia de morfemas conta também com
infixos. Infixos são morfemas adicionados dentro de outros morfemas. Por
exemplo, na língua tagalog (falada nas Filipinas), um “passado” é
adicionado dentro do verbo:
Figura 5.3
Infixos do tagalog
Infixos são muito raros nas línguas do mundo e parecem ser derivados,
não primitivos. Assim, os infixos do tagalog parecem ser infixos somente
porque a fonologia da língua evita sílabas travadas por consoantes, e a
prefixação de um resultaria em uma palavra iniciada por uma sílaba travada
por uma consoante. A língua resolve esse conflito adicionando o morfema
de passado logo após a consoante (ou encontro consonantal) que inicia a
palavra. Assim, uma sílaba ótima é criada.
Aqueles que seguem o quadro estruturalista de análise linguística,
entretanto, não têm como preocupação fundamental entender o porquê de
certos afixos serem infixos, sufixos ou prefixos. Essa é uma preocupação da
teoria gerativa recente, como será discutido mais adiante. Mas certos
fenômenos gerados pela interação entre a Fonologia e a Morfologia são de
fundamental importância para o estruturalismo, bem como para o quadro
gerativo. Na seção seguinte, abordaremos o início da teoria gerativa, a qual
deu muita ênfase para a interface entre Morfologia e Fonologia.
4. MORFOFONOLOGIA E A TEORIA GERATIVA PADRÃO
Esta seção tem como objetivo introduzir o estudo da relação entre
Fonologia e Morfologia, tomando como base os critérios usados nos
primeiros anos do gerativismo (Chomsky e Halle, 1968).
O exemplo do tagalog nos mostra que a Morfologia sofre um impacto
bastante acentuado da Fonologia, pois os fatos do tagalog nos indicam que
a Fonologia pode definir o lugar onde o morfema deverá ser inserido na
palavra. Entretanto, derivar a posição de afixos não era uma preocupação
para a teoria gerativa padrão, nem para o estruturaslismo. Ao observarmos
as línguas naturais, veremos que a Fonologia pode exercer influência não
apenas em relação ao lugar onde o morfema é inserido, mas também na
própria forma fonética dos morfemas. A derivação das diferentes formas
fonéticas de um mesmo morfema é de crucial importância para a teoria
padrão. Assim, vemos que, em inglês, o morfema de plural em nomes é
realizado como [z] depois de vogais e depois de uma oclusiva sonora (ex.:
dogs), como [s] depois de uma oclusiva surda (ex.: cats), mas como [∂z] em
palavras como judges. As variantes (i.e., as diferentes formas fonéticas) de
um mesmo morfema são chamadas de alomorfes. No capítulo Fonologia
deste volume, tratamos de variação alofônica (i.e., as diferentes formas
fonéticas de um fonema) em termos de regras que derivam alofones de
formas subjacentes. Como a variação alofônica, a variação alomórfica é
tratada por meio da postulação de uma representação subjacente, da qual
alomorfes podem ser derivados por meio de regras fonológicas.
Uma estratégia fundamental do linguista ao selecionar uma
representação subjacente de um morfema é escolher o alomorfe que conta
com a distribuição menos marcada (i.e., mais frequente). A realização do
morfema de plural nominal do inglês mais frequente é z, uma vez que
ocorre depois de consoantes sonoras e depois de vogais. Vamos, assim,
escolher esta forma para ser a forma subjacente. Os alomorfes podem,
agora, ser derivados por meio de regras fonológicas como aquelas
discutidas no capítulo Fonologia deste volume. São as seguintes as regras
fonológicas responsáveis pela derivação dos alomorfes do morfema de
plural nominal do inglês, segundo O’Grady et al. (1991):
1) Devozeamento:
[+ consonantal, + sonoro] → [– sonoro] / [+ consonantal, – sonoro] ___
2) Epêntese de schwa:
Ø → ∂ / [+ consonantal, + estridente, + coronal] ___ [+ consonantal, +
estridente, + coronal]
A regra 1 postula que uma consoante sonora perde seu traço de
vozeamento toda vez que estiver adjacente a uma consoante desvozeada. A
regra 2 postula que um schwa, [∂], é inserido toda vez que duas fricativas
estiverem adjacentes. A Figura 5.3 mostra a derivação dos alomorfes do
morfema z “plural nominal” apresentados:8
Figura 5.4
Derivação das formas de plural nominal do inglês
Há, entretanto, algumas diferenças entre alomorfiae alofonia. Por
exemplo, regras de alofonia geralmente não têm exceções. Assim, sabemos
que o segmento /l/ é realizado como [w] sempre que ocorrer na coda
silábica (isto é, no final da sílaba) na fala de paulistas jovens (cf. /sal/, que
se realiza como [saw]). Em contraste, regras morfofonêmicas, isto é, regras
de alomorfia, nem sempre são produtivas como a variação alomórfica do
morfema de plural nominal do inglês. As regras morfofonêmicas
frequentemente fazem referência a uma estrutura morfológica específica,
isto é, obrigam uma dada regra fonológica a ser aplicada somente quando
uma dada estrutura morfológica for encontrada. Como exemplo, podemos
citar a variação entre nação e nacion, vista anteriormente quando
discutimos a palavra nacionalização, ou entre leão e leon (cf. leonino).
Mattoso Câmara (1970) postula que formas contendo ditongos nasais, como
ão, são derivadas. Traduzindo para o quadro gerativo, podemos dizer que as
formas subjacentes relativas aos exemplos anteriores são nacion e leon.
Este tipo de análise conta com a transformação de on em ão, a qual nem
sempre ocorre, uma vez que baton não se transforma em batão. Essa
transformação apenas acontece quando há o acréscimo de uma vogal
temática, isto é, quando uma determinada estrutura morfológica é
encontrada.9
Como já foi mencionado, uma representação subjacente é aquela da qual
podemos derivar todos os alomorfes por meio de regras fonológicas.
Dissemos que uma estratégia fundamental do linguista ao selecionar uma
representação subjacente de um morfema é escolher o alomorfe que conta
com a distribuição menos marcada. Entretanto, essa não é a única estratégia
permitida pela teoria gerativa padrão. Nada na teoria gerativa da década de
1960 nos obrigava a escolher uma forma existente na língua como a forma
subjacente. Naquele momento, era permitido postular uma forma jamais
realizada na língua como a representação subjacente de um dado morfema
(desde que fosse possível derivar da forma subjacente postulada todas as
formas alomórficas por meio de regras fonológicas), o que é conhecido
como neutralização absoluta. Esse tipo de abordagem coloca um sério
problema para a aquisição de linguagem. Como pode uma criança adquirir
uma forma que jamais ouviu? Na teoria gerativa recente, neutralizações
absolutas não são permitidas.
A seção seguinte apresenta um histórico do desenvolvimento do estudo
da Morfologia na teoria gerativa, mostrando que a Morfologia tem também
uma interface com a Sintaxe, além da interface com a Fonologia.
4.1. O desenvolvimento da teoria gerativa
Com a apresentação da teoria gerativa na década de 1960, a morfologia
e a descrição morfológica de línguas não previamente analisadas, como
desenvolvidas pelos estruturalistas, perderam espaço. Segundo Anderson
(1982), nesta época, “morphologists could safely go to the beach”.10 Neste
momento, passou-se a buscar os universais da linguagem. Por esse motivo,
a Sintaxe (i.e., o estudo da formação de sentenças) passou a ser o ponto
central da Gramática, uma vez que é na Sintaxe que vemos uma maior
similaridade entre as línguas. Como a Morfologia tem uma relação bastante
importante com a Fonologia, a Morfologia passou a ser tratada dentro do
componente fonológico, nas linhas apresentadas na seção anterior. Deixou
de ser, assim, um componente da Gramática. É natural, assim, que a
Morfologia tenha perdido espaço nesta época. Dentro do quadro gerativista
das décadas de 1970 e 1980, passou-se a assumir que cada componente da
Gramática deveria corresponder a um módulo independente governado por
seus princípios particulares. Cada módulo seria, assim, completamente
independente do outro. A Fonologia passou a ser dividida em duas partes: a
Fonologia Lexical (processada no léxico) e a Fonologia Pós-lexical
(processada depois da sintaxe). A Linguística Gerativa passou, assim, a
contar com os módulos representados por quadrados na Figura 5.5:
Figura 5.5
Módulos componentes da gramática segundo a teoria gerativa das décadas de setenta e oitenta
A Morfologia passou a ser tratada dentro do quadro da Fonologia
Lexical.11 O estudo da interação entre Morfologia e Fonologia ganhou o
rótulo de Fonologia Lexical. Segundo essa abordagem, morfemas seriam
adicionados uns aos outros no léxico, regras fonológicas seguiriam
aplicadas depois da adição de cada morfema. Uma regra fonológica poderia
ser aplicada mais de uma vez, se cíclica. Um exemplo de regra cíclica é a
atribuição de acento no português.12 Assim, observamos que a palavra
cafezinho conta com dois acentos: na sílaba fe e na sílaba zi. Sabemos que a
sílaba fe conta com um acento porque a vogal desta sílaba é aberta (i.e. []).
Vogais abertas como esta só ocorrem em sílabas acentuadas no português
(compare pérola e perolado, onde a vogal [] passa para [e] quando não se
encontra em uma sílaba acentuada). Sabemos também que a sílaba zi conta
com um acento, uma vez que a palavra cafezinho é tradicionalmente
classificada como paroxítona. Dentro do quadro da Fonologia Lexical, este
fenômeno é analisado dizendo-se que primeiro o morfema café entra na
derivação e o acento é atribuído. Então, o morfema zinho é acrescentado e o
acento é atribuído novamente. Assim, regras cíclicas são aplicadas
repetitivamente no final de cada operação de adição morfológica. As regras
não cíclicas seriam aplicadas no final das operações de adição de
morfemas.13
O léxico, como visto dentro desse modelo, é um local de
armazenamento de irregularidades memorizadas. A morfologia específica
de cada língua seria, assim, objeto da memória. Como cada língua tem seu
léxico específico, explicar-se-ia, assim, a diversidade encontrada nos
domínios da Morfologia. De acordo com Chomsky (1970), a Sintaxe
seguiria toda e qualquer operação lexical, manipulando palavras inteiras,
sendo, portanto, cega à estrutura interna das palavras, isto é, às operações
lexicais. Essa perspectiva, entretanto, se mostrou simplista demais no
decorrer da década de 1980.
Anderson (1982) questionou, em um artigo chamado “Where is
Morphology?”, se a Morfologia é realmente irrelevante para a Sintaxe e se
toda Morfologia deve ser processada no léxico. O autor fundou uma
discussão cujo objetivo era mostrar que, pelo menos uma classe de
morfemas, aqueles conhecidos como morfemas flexionais, são relevantes
para a Sintaxe e não podem ser ignorados pelo componente sintático. Antes,
no entanto, de demonstrar o porquê de a Sintaxe não poder ignorar a
Morfologia Flexional, é necessário definir Morfologia Flexional e
Derivacional. A Morfologia Derivacional apresenta as seguintes
propriedades:
a) a Morfologia Derivacional tem a característica de alterar a categoria
gramatical de uma palavra. Assim, em nosso exemplo
nacionalização, trabalhamos com vários morfemas derivacionais.
Vimos a transformação de um substantivo em adjetivo, deste
adjetivo em verbo e, finalmente, deste verbo em substantivo
novamente. Caso a categoria não seja alterada pela adição de um
morfema derivacional, um novo traço de significado que pode ser
parafraseado por uma palavra independente é adicionado. Por
exemplo, se adicionarmos re ao verbo fazer, temos fazer de novo;
b) a Morfologia Derivacional não é produtiva, isto é, não é qualquer
morfema derivacional que pode ser adicionado a qualquer raiz.
Morfemas derivacionais têm muitas restrições de co-ocorrência;
assim, podemos adicionar o morfema iz ao substantivo hospital e
criar hospitalizar, mas não podemos adicioná-lo ao substantivo
clínica e criar clinizar. Devemos dizer clinicar; devemos memorizar
que podemos dizer hospitalizar e que não podemos dizer clinizar.
Este é um argumento para acreditar-se que a Morfologia
Derivacional é um fenômeno lexical, uma vez que o léxico é visto
neste modelo como um receptáculo de irregularidades e
memorizações.
A Morfologia Flexional conta com as seguintes propriedades:
a) a Morfologia Flexional não altera categorias. Ela estabelece ligações
entre as palavras. Assim, na frase eu falo, o morfema o mostra que o
sujeito da sentença é primeirapessoa. Na frase Os macacos caíram
da árvore, o plural no artigo, s, indica que o núcleo do sintagma
nominal é plural, e o morfema m indica que o sujeito da sentença é
terceira pessoa do plural. Assim, a Morfologia Flexional acena para
a Sintaxe, ficando difícil de aceitar a sua não relevância para a
Sintaxe;
b) a Morfologia Flexional é produtiva. Assim, qualquer verbo pode ser
marcado por um morfema indicando terceira pessoa do plural e
qualquer artigo pode ser pluralizado. Exceções são muito raras,
enquanto exceções no paradigma derivacional são muito frequentes.
Evidência clara da relevância da Morfologia Flexional para a Sintaxe
vem de morfemas que indicam caso. Algumas línguas são caracterizadas
por apresentarem alguns morfemas adicionados ao núcleo de um sintagma
nominal indicando o papel sintático deste sintagma; esses morfemas são
conhecidos como morfemas de caso. Por exemplo, o caso nominativo
mostra que o sintagma nominal é sujeito, o caso acusativo mostra que o
sintagma nominal é objeto direto, o caso ergativo indica que o sintagma
nominal é sujeito de um verbo transitivo. Assim, fica muito difícil pensar
que a Morfologia pode ser totalmente processada antes da Sintaxe, uma vez
que morfemas flexionais, como morfemas de caso, fazem referência a
estruturas sintáticas.
As línguas são classificadas entre aquelas com um padrão de caso
nominativo-acusativo ou ergativo-absolutivo. Nas línguas com padrão
ergativo-absolutivo, o objeto e o sujeito de um verbo intransitivo são
marcados da mesma maneira, e o sujeito de um verbo transitivo conta com
uma marca especial. Como exemplo de uma língua ergativa, veja as
sentenças do Yidin, falado na Austrália:
(7) Wagudja-ngu djugi gundal
Homem-ERGATIVO árvore estar cortando
“O homem está cortando uma árvore.”
(8) Wagudja gundal
Homem estar cortando
“O homem está realizando a tarefa de cortar.”
Observe que o sujeito da sentença transitiva é marcado por um morfema
especial, ngu. Este é o morfema de caso ergativo. O sujeito da intransitiva e
o objeto da transitiva não são marcados (absolutivo). Compare essas
sentenças do Yidin com sentenças paralelas do russo:
(9) Andrei ljubit Natash-u
Andrei ama Natasha-ACUSATIVO
“Andrei ama Natasha.”
(10) Natasha uxodit
Natasha partiu
“Natasha partiu.”
As línguas com o padrão nominativo-acusativo marcam o sujeito, de
verbos transitivos ou intransitivos, da mesma maneira. O objeto é marcado
de modo especial. Este é o caso do russo. O russo, ao contrário do Yidin,
marca o objeto com um morfema especial, u. Este é o morfema de caso
acusativo. O sujeito, seja de uma sentença transitiva ou intransitiva, não é
marcado (nominativo). O russo apresenta um padrão acusativo-nominativo.
Outras línguas acusativas são o latim, o alemão, o turco, o japonês, o
coreano, entre muitas outras. As línguas ergativas são mais raras, entre elas
estão o basco (falado na Espanha), o tagalog (Filipinas), o avar (Cáucaso), o
inuktitut (norte do Canadá e Groenlândia), o dyrbal (Austrália) e o kuykuru
(Brasil).
É interessante observar que o sistema de caso tem um impacto na ordem
de constituintes sintáticos, e esta é uma evidência forte para a afirmação de
que a Sintaxe é sensível à Morfologia Flexional. Assim, não há nenhuma
língua ergativa que apresente a ordem sintática SVO como ordem não
marcada (i.e., sentenças que podem servir de respostas para questões como
o que aconteceu?), ordem esta que é muito comum entre as línguas
acusativas. Além disso, em nenhuma língua acusativa, ao coordenarmos
sentenças do tipo o homem viu uma onça e correu, o falante nativo
interpretará o sujeito da segunda sentença como a onça. Mas este fenômeno
sintático, de interpretar o sujeito da coordenada como sendo aquele que
corresponde ao objeto da oração principal, ocorre em várias línguas
ergativas.
A hipótese de Chomsky (1970), de que a Sintaxe deveria ser cega para a
Morfologia, ficou conhecida como hipótese lexicalista. Mas a discussão
levantada por Anderson (1982) convenceu a comunidade linguística de que
a sintaxe não pode ser cega à Morfologia Flexional. A divisão entre
Morfologia Derivacional como um processo lexical e Morfologia Flexional
como um processo sintático passou a ser conhecida por hipótese lexicalista
fraca. Assim, vemos a Morfologia Flexional ganhar espaço dentro da
árvore sintática, como podemos ver no capítulo Sintaxe, deste volume, onde
a flexão é representada na estrutura sintática por F.
Degraff (1997) apresenta forte evidência empírica para acreditarmos que
a flexão verbal deve realmente ocupar um papel na estrutura sintática. O
autor mostra que diferenças entre o francês e o haitiano relativas ao
posicionamento de advérbios podem ser elegantemente capturadas ao
assumirmos que a flexão verbal ocupa uma posição sintática. Assim, os
advérbios são sistematicamente colocados depois do verbo no francês,
enquanto são colocados sistematicamente antes do verbo no haitiano. Veja
os exemplos a seguir, que manipulam exatamente o mesmo advérbio:
(11) Francês: L’élève étudie bien/mal la leçon.
Haitiano: Elèv la byen/mal etidye leson an.
“O aluno estudou bem/mal a lição.”
Degraff assume que o francês e o haitiano têm a mesma estrutura
subjacente para as sentenças acima, onde o advérbio ocupa uma posição
mais alta que o verbo na árvore sintática (o advérbio é adjungido ao
sintagma verbal). O francês e o haitiano, entretanto, diferem no fato de que
o haitiano não conta com Morfologia Flexional. Degraff, assumindo que F
(flexão) ocupa um lugar na árvore sintática, explica o fenômeno acima
dizendo que o verbo é alçado no francês para a posição F, onde se anexa ao
morfema flexional de tempo/modo/pessoa, passando a ocupar uma posição
mais alta na árvore sintática que o advérbio. O haitiano não conta com
Morfologia Flexional, com o verbo permanecendo in situ. Portanto, no
haitiano, o advérbio continua ocupando uma posição mais alta, precedendo
o verbo.
A teoria sintática ganha uma teoria de caso, como também podemos
observar no capítulo Sintaxe, neste volume. Isto é, caso passou a ser visto
como um fenômeno puramente sintático. Assumiu-se, assim, dentro da
teoria gerativa, que todas as línguas contam com atribuição de caso; as
línguas apenas diferem no fato de que algumas têm caso morfologicamente
marcado e outras não. Segundo esse ponto de vista, mesmo quando o caso
não é marcado morfologicamente no substantivo, ainda é possível descobrir
qual é o sistema de caso de uma dada língua pelo padrão de concordância
verbal. No português, o caso não é marcado morfologicamente, mas
percebemos que esta língua tem um padrão acusativo-nominativo.
Percebemos isso porque o verbo sempre concorda com o sujeito, seja
transitivo ou intransitivo, com o mesmo morfema (cf. eu como, eu lavo
pratos). Em uma língua ergativa, é possível encontrar um padrão de
concordância em que o verbo concorda da mesma forma com o objeto e
com o sujeito intransitivo, apresentando uma concordância especial para o
sujeito transitivo.14
Como fundador da discussão sobre o lugar da Morfologia na Gramática,
Anderson (1982) não seguiu, entretanto, a corrente que simplesmente
deslocou a Morfologia Flexional do léxico para a Sintaxe. Em sua obra de
1992, Anderson recusa a ideia de que a Morfologia Flexional fizesse parte
da Sintaxe e funda um quadro teórico para a análise de Morfologia
Flexional. Uma ideia muito interessante desse quadro é a proposta de que
morfemas não constituem a unidade mínima da Morfologia. Morfemas são
um epifenômeno, como o fonema. Para Anderson (1992), a unidade mínima
da Morfologia são traços, aqui definidos como propriedades semânticas
mínimas. Traços morfológicos seriam do tipo +1pessoa, +passado etc. O
autor propôs que o léxico contivesse os traços a serem manipulados por
uma dada língua. A Sintaxe poderia manipular esses traços e a Fonologia
Pós-lexical resolveria como eles seriam (ou não) pronunciados na
superfície. Isto é, para Anderson, a Morfologia Flexional não tem um lugar
específico dentro dos módulos da teoria linguística. A Morfologiapercorre
todo o processo linguístico e, portanto, estudar Morfologia envolve contar
com uma visão global de Linguística. De acordo com Anderson (1992):
[...] a estrutura da palavra pode ser entendida apenas como um produto de princípios em
interação provenientes de muitas partes da gramática: ao menos da fonologia, da sintaxe e da
semântica, em adição ao “léxico”. Como tal, não é uma teoria que lida com o conteúdo de uma
caixa num diagrama de fluxo típico, mas, ao invés, uma teoria de um domínio substantivo, cujo
conteúdo é disperso através da gramática.15
A proposta de Anderson de considerar traços como unidades mínimas
da Morfologia foi adotada pelo Minimalismo de Chomsky (1993, 1995) e
pela teoria denominada Morfologia Distribuída, de Halle e Marantz (1993,
1995), na década de 1990. O Minimalismo reformulou totalmente o papel
da Morfologia dentro da teoria linguística. A Morfologia voltou a contar
com certo papel de destaque. Segundo os adeptos do Minimalismo (1995), a
Morfologia (i.e., os traços morfológicos) “guiam” a Sintaxe. Isto é,
processos sintáticos, como o movimento de constituintes, somente podem
ser ativados se a Morfologia exigir que isto ocorra. Para os minimalistas,
entretanto, apesar de a Morfologia voltar a ganhar uma ênfase especial, ela
continuou a ser parte da Sintaxe.
Os adeptos da Morfologia Distribuída defendem, como os seguidores de
Chomsky, que a teoria deve ser modular, mas se diferenciam daqueles que
seguem o Minimalismo, ao afirmarem que, embora muito da Morfologia
ocorra no módulo da Sintaxe, a Morfologia tem seu próprio componente,
definido como um nível de interface entre a Sintaxe e a Fonologia. Assim, o
módulo da Morfologia, segundo esta perspectiva, está localizado entre a
Sintaxe e a Fonologia e, deste modo, a Sintaxe é visível para a Morfologia e
a Morfologia é visível para a Fonologia, permitindo maior intersecção entre
Morfologia-Fonologia-Sintaxe. A arquitetura de gramática proposta pela
Morfologia Distribuída não inclui um Léxico, como proposto nos modelos
lexicalistas da Gramática Gerativa. No entanto, este modelo não exclui a
necessidade de listar certos tipos de informações distribuídas em três listas:
a lista dos Morfemas, a lista do Vocabulário, e a lista da Enciclopédia.
Figura 5.6
Estrutura da Gramática proposta pela Morfologia Distribuída de Halle e Marantz (1993)
A Morfologia Distribuída passou a recusar a ideia de que as Morfologias
Derivacional e Flexional estão separadas em dois módulos distintos e
dependentes da Fonologia Lexical e da Sintaxe, respectivamente. Este
modelo defende que a Morfologia, como um todo, tem seus processos
independentes de quaisquer outros fenômenos linguísticos. Segundo Halle e
Marantz (1993), processos morfológicos incluem fenômenos como fusão e
fissão, os quais não caracterizam nenhum outro módulo linguístico.
Não temos, segundo a Morfologia Distribuída, morfemas como
primitivos linguísticos. Ao contrário, temos posições onde traços
morfológicos e fonológicos são inseridos. De acordo com este modelo, as
morfologias de todas as línguas do mundo teriam as mesmas posições
sintáticas para inserção de traços morfológicos. Mas a Morfologia, a qual
segue a Sintaxe, pode manipular as posições sintáticas por meio de fusão de
determinadas posições ou fissão de uma dada posição. Como exemplo,
podemos citar o caso dos morfemas de concordância. Como vimos antes, o
kadiwéu conta com um morfema que marca a concordância do verbo com o
sujeito e com um morfema que marca a concordância do verbo com o
objeto, mas o português marca apenas a concordância do verbo com o
sujeito. Como já dissemos, a Morfologia Distribuída postula que,
universalmente, cada posição de concordância conta com uma posição
sintática. Assim, a concordância com o sujeito conta com uma posição e a
concordância com o objeto conta com uma segunda posição em todas as
línguas do mundo. Segundo este modelo, línguas como o português, que só
apresentam concordância com o sujeito marcada morfologicamente,
passaram por um processo de fusão de posições para concordância.16
Outro fenômeno da Morfologia Flexional (também rotulada de
morfossintaxe), abordado frequentemente por linguistas que dominam
apenas as ferramentas da análise sintática, é a voz, como, por exemplo, a
voz passiva e a voz antipassiva. Tanto a passiva como a antipassiva são
processos de intransitivização. Elas diferem apenas no fato de que na
passiva o agente é removido, enquanto o paciente é removido na
antipassiva. A voz passiva pode ser representada pela seguinte frase do
português:
(12) Todos estes livros foram escritos pelo mesmo autor.
A passivização tem um impacto considerável na Sintaxe. O argumento
paciente passa a ser o sujeito da sentença e o argumento agente passa a ser
governado por uma adposição. O agente passa a ser opcional, provando que
a sentença se torna intransitiva.
A antipassiva, comum nas línguas ergativas, também causa
intransitivização. No caso da antipassivização, o argumento paciente passa
a ser governado por uma adposição e passa a ser opcional, como pode ser
notado no exemplo abaixo do chukchee, língua indígena norte-americana:
(13) a) ∃nan qaa-t q∂rir-ninet.
ele-ERG rena-ABS procurar-3SUBJ/3OBJ
“Ele procurou uma rena”.
(13) b) Ine-lq∂rir-∂-rk∂n (qora-ta).
ANTIPASS-procurar-Ø-PRES/3SUBJ rena-adposição
“Ele está procurando (por uma rena)”.
A estrutura de passivas e antipassivas continua sendo uma questão atual
dentro da teoria linguística.17 Outro fenômeno linguístico muito discutido
na década de 1980, e que ainda continua sendo objeto de controvérsia, são
os pronomes clíticos. Assim, alguns autores tentam abordar os pronomes
clíticos na Sintaxe puramente, mas outros, como Anderson, Marantz e
Halle, reivindicam que os clíticos são objeto de um módulo independente.
Como mencionado anteriormente, clíticos não podem ser classificados
como palavras, pois não ocorrem livremente em qualquer posição sintática
e não podem ocorrer em isolamento. Mas também não podem ser
classificados como afixos (prefixo, sufixo ou infixo), pois afixos têm uma
posição fixa em relação ao seu hospedeiro, enquanto um clítico tende a ser
mais livre. Assim, o afixo de primeira pessoa do singular o ocorre sempre
sufixado à raiz verbal (cf. venho). Um clítico de primeira pessoa do singular
no português brasileiro pode ocorrer antes ou depois do verbo (desculpe-me
ou me desculpe). Dado o seu caráter híbrido, não é uma palavra, mas não
chega a ser um afixo. Os clíticos têm sido objeto de muita controvérsia na
teoria linguística, passando por aqueles que argumentam que clíticos devem
ser tratados como palavras e que, portanto, devem funcionar como
argumentos sintáticos (Jelinek, 1984) e por aqueles que acreditam que
clíticos são afixos e devem ser tratados como concordância (Suñer, 1988).
Uma proposta que ganhou bastante destaque foi a de Anderson (1992),
segundo a qual clíticos são afixos. A diferença de afixos tradicionais é que
eles seriam afixados à frase, enquanto afixos tradicionais seriam afixados à
palavra.18
4.2. Outros desenvolvimentos dentro da teoria gerativa atual
O objetivo deste capítulo é dar uma visão geral dos fenômenos
encontrados ao trabalharmos com Morfologia. Entretanto, os fenômenos já
apresentados não esgotam todas as possibilidades de análise. Os fenômenos
morfológicos nem sempre são concatenativos, isto é, processados por meio
da adição de morfemas. Toda língua conta com um componente de
Morfologia Não concatenativa. No português, esses processos são os que se
seguem:
a) mistura: palavras que são criadas pela junção de partes de duas
palavras já existentes na língua. Em português, podemos observar este
processo em palavras como portunhol, uma mistura entre as palavras
português e espanhol;
b) abreviação: um processo no qual uma nova palavra é criada pelo
truncamento de uma palavra já existente, como, por exemplo, biju para
bijuteria;
c) acronímia: palavras iniciadas pelas letras iniciais de uma sigla, por
exemplo, IEL, pronunciada [ω] por Instituto de Estudos

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