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Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) INTRODUÇÃO À LINGUÍSTICA: domínios e fronteiras, vol. 1 Fernanda Mussalim e Anna Christina Bentes (Orgs.) Capa: aeroestúdio Preparação de originais: Elisabeth Santo e Nair Kayo Revisão: Maria de Lourdes de Almeida e Cibele Cesario da Silva Composição: Linea Editora Ltda. Coordenação editorial: Danilo A. Q. Morales Conversão para ebook: Cumbuca Studio Nenhuma parte desta obra pode ser reproduzida ou duplicada sem autorização expressa dos autores e do editor. © 2000 by Organizadoras Direitos para esta edição CORTEZ EDITORA Rua Monte Alegre, 1074 – Perdizes 05014-001 – São Paulo – SP Tel.: (11) 3864-0111 Fax: (11) 3864-4290 E-mail: cortez@cortezeditora.com.br www.cortezeditora.com.br Publicado no Brasil – 2021 Para Sírio e Inge Que nos mostraram Os encantos da linguagem. (As Organizadoras) O homem sentiu sempre — e os poetas frequentemente cantaram — o poder fundador da linguagem, que instaura uma sociedade imaginária, anima as coisas inertes, faz ver o que ainda não existe, traz de volta o que desapareceu. Émile Benveniste SUMÁRIO Apresentação à 9ª edição Apresentação Sírio Possenti Introdução Fernanda Mussalim e Anna Christina Bentes 1. SOCIOLINGUÍSTICA PARTE I Tânia Maria Alkmim PARTE II Roberto Gomes Camacho 2. LINGUÍSTICA HISTÓRICA Nilson Gabas Júnior 3. FONÉTICA Gladis Massini‑Cagliari e Luiz Carlos Cagliari 4. FONOLOGIA Angel Corbera Mori 5. MORFOLOGIA Maria Filomena Spatti Sandalo 6. SINTAXE Rosane de Andrade Berlinck, Marina R. A. Augusto e Ana Paula Scher 7. LINGUÍSTICA TEXTUAL Anna Christina Bentes Sobre os Autores APRESENTAÇÃO À 9ª EDIÇÃO A obra Introdução à Linguística: domínios e fronteiras (Volumes 1 e 2) foi lançada no II Congresso Internacional da Associação Brasileira de Linguística (Abralin), que aconteceu em Fortaleza, na Universidade Federal do Ceará (UFC), em março de 2001. Com a participação de linguistas brasileiros de várias instituições do país, os dois volumes foram organizados de forma a dar acesso aos principais objetos de estudo e às principais teorizações das diferentes áreas da Linguística, em uma linguagem focada no público de graduação, mas sem abrir mão do necessário rigor acadêmico na apresentação de cada uma das áreas que constituem esse campo do conhecimento. O trabalho coletivo e engajado dos vários autores dessa obra resultou na sua consolidação como uma referência no Brasil: um material imprescindível para a formação dos profissionais da área de Letras e Linguística e também um guia de conhecimento básico do campo dos estudos da linguagem, que figura na bibliografia obrigatória de vários programas de pós-graduação no país. Para nós, organizadoras da obra Introdução à Linguística: domínios e fronteiras, isso tudo é, ao mesmo tempo, uma grande alegria, mas também uma grande responsabilidade. A atualização da obra no ano de seu aniversário de dez anos foi a maneira que encontramos para celebrar o seu sucesso e, ao mesmo tempo, continuar a fornecer um material de formação adequada e de qualidade no campo dos estudos linguísticos. Essa atualização foi feita de maneira diversificada e contemplou reformulações pontuais e/ou reformulações mais gerais de grande parte dos artigos. Houve desde a aplicação do acordo ortográfico e correções dos originais, até atualizações de bibliografia, exemplos e dados, além da inserção de novos conceitos e/ou reformulações teóricas. Foram feitas também atualizações das informações sobre os autores e uma mudança no layout da capa, conservando-se, no entanto, as cores e o espírito das capas originais. Os dez anos de sucesso editorial e de reconhecimento do mérito acadêmico dessa obra devem-se a muitos: autores, editores, colegas e leitores. A eles, o nosso mais sincero agradecimento e a reiteração de nosso compromisso com o fortalecimento das práticas de reflexão sobre a linguagem a partir de uma perspectiva linguística. Assim, gostaríamos de agradecer, mais uma vez, a todos os autores que se dispuseram a colaborar, há dez anos, com esse projeto e que também se dispuseram a colaborar com esta atualização da obra. Gostaríamos de agradecer à Cortez Editora, por ter acolhido esta obra para publicação e por ter sido incansável na sua divulgação e distribuição. Agradecemos também aos nossos colegas da Linguística e aos estudiosos da linguagem em geral, que consideram que esta obra deve ser lida por seus alunos de graduação e/ou de pós-graduação em Letras e Linguística e/ou em outras áreas do conhecimento. E, por fim, gostaríamos de agradecer aos nossos leitores de todo o país, por terem escolhido nossa obra como um dos inúmeros companheiros de jornada no curso de sua formação profissional. Sabemos que os tempos de hoje exigem muito mais de todos nós, profissionais das Letras e da Linguística. Por sua abrangência e objetividade, acreditamos que esta obra continua a constituir-se em um significativo apoio para a obtenção de uma boa formação profissional e humana no campo dos estudos da linguagem, já que a questão linguística é, atualmente, uma das mais importantes agendas da educação e da ciência brasileiras. Dezembro de 2011 Fernanda Mussalim Anna Christina Bentes (As organizadoras) APRESENTAÇÃO Prefaciar um livro como este que o leitor tem em mãos não é uma tarefa que se cumpra facilmente. Por duas razões, principalmente. Em primeiro lugar, não é obra de autor, ou seja, sendo uma coletânea, não se trata de um livro que possa ser atribuído a uma pessoa, caso em que os prefácios dedicam parte de seu espaço para celebrar o autor, não necessariamente para comentar o livro. Em segundo, porque se trata de uma obra contendo textos sobre Linguística, destinada de certa forma à sua divulgação, ou, dito de outra maneira, destinada a propiciar uma introdução não trivial a um campo de saber já veterano, mas para muitos completamente desconhecido. O livro trata de temas bastante conhecidos nos meios mais ou menos especializados, mas nada — eu disse “nada”, não disse “pouco” — conhecidos nos meios que não se dedicam especificamente a essas questões, por mais que elas lhes sejam afetas. Este poderia bem ser o caso dos críticos literários, antropólogos, sociólogos, cientistas políticos, psicólogos, e mesmo psicanalistas. Os estudantes que chegam à universidade repetem e confirmam a situação: eles não têm a menor familiaridade com as questões mais banais às quais se dedica a Linguística, a despeito de longa experiência escolar com manifestações variadas e relevantes de linguagem, e também de alguma experiência, frequentemente dolorosa e quase sempre inútil, com gramáticas (sempre e só as normativas). Este é um fato curioso, sobre o qual se deveria meditar. Todos conhecem, mesmo os que se devotam apenas ao campo das humanidades, e mesmo às letras, alguma coisa sobre relatividade, big bang e universo em expansão, DNA e clonagem. No mínimo. Às vezes, equivocadamente, é verdade, a ponto de confundirem a relatividade de Einstein com o relativismo de suas convicções... De qualquer forma, nos campos da Física e da Biologia, faz tempo que a escola e a imprensa diária ultrapassaram Newton e Mendel. Mas nunca — se houver pelo menos um caso, me avisem — ultrapassaram, nem escola, nem imprensa, nem mesmo o ensaísmo dos finais de semana, muito menos as colunas que agora assolam a mídia, os limiares das gramáticas normativas (a única exceção são as menções cansativas a um texto de Jakobson sobre as funções da linguagem) quando a questão são as línguas. Ouvir o comentário de um intelectual ou de um jogador de futebol sobre a questão é exatamente a mesma coisa. Ora, tais gramáticas estão para a Linguística mais ou menos como Galileu está para a Física Moderna, isso se considerarmos de maneira otimista e generosa apenas os tópicos nos quais discutem a organização interna da língua e sua eventual relação com o mundo, que é o caso da herança filosófica das gramáticas. Quanto ao mais, a atitude é meramentenormativa, pré-baconiana nos melhores casos, e manual de etiqueta — ruim — nos piores. O melhor testemunho desse atraso é o sucesso de pseudoprofessores nos meios de comunicação, que nada mais fazem do que repetir materiais do nível das apostilas dos cursinhos, com listas de “problemas” de uso do português falado julgado à luz da língua escrita. Faça o leitor a suposição de que os programas e as colunas sobre música, teatro e economia sejam do mesmo calibre, e o atraso saltará aos olhos ainda mais claramente. Em resumo: Linguística é uma coisa de que ninguém ouviu falar. Daí a relevância de um livro como este. Mas há mais razões. Outra observação sobre um certo atraso, outra justificativa para a publicação deste livro: quem já ouviu falar de Linguística (isso se vê na imprensa e às vezes em departamentos avançados) supõe que ela se resume à arbitrariedade do signo, às relações paradigmáticas e sintagmáticas (quando a coisa é sofisticada, menciona-se outra dupla saussuriana, sincronia e diacronia). Frequentemente, as introduções à Linguística — disciplina obrigatória nos cursos de Letras — não ultrapassam essa leitura mais ou menos festiva de Saussure, feita em algum manual, ou em apostila, que ninguém é de ferro. Assim, este livro se justifica plenamente, e por uma só razão, embora ela tenha sentidos diferentes em diversos domínios sociais. O que justifica este livro é sua capacidade de produzir uma certa ruptura. No caso dos intelectuais vizinhos, o efeito poderia ser o da atualização mínima. Seria importante, por isso mesmo, no entanto, que não buscassem no livro ferramentas para seu trabalho. Para isso, as introduções aqui apresentadas não serviriam, pois se trata de introduções. Mas ninguém espera que façam as categorias da Linguística aqui oferecidas em embrião render em seus trabalhos. Poderiam instruir-se, apenas, mesmo que fosse para conversas em recepções. Já está na hora de não se ouvirem mais imprecações grosseiras sobre erros de português, avaliações de baixíssimo nível sobre a pronúncia desta ou daquela região, preconceitos ridículos — se não fossem socialmente excludentes — a respeito da linguagem corrente, quer se trate de fala popular, quer se trate de línguas de menor prestígio, especialmente quando isso se deve a peculiaridades estruturais (que não se diga mais, por exemplo, que o chinês não tem sintaxe, só porque sua frase não se organiza como a do francês). Até porque essas avaliações, feitas supostamente de algum patamar elevado, depõem muito mais sobre a ignorância de quem as faz do que sobre a suposta deficiência dos produtores dos fatos linguísticos comentados. Um segundo nível de ruptura em que este livro pode atuar é em relação ao estudante de Letras. É o que mais importa. De fato, nada é mais necessário do que eliminar o suposto saber do aluno de colegial em relação aos fatos linguísticos. Em primeiro lugar, a ruptura precisa realizar-se até mesmo em relação ao que sejam fatos linguísticos. É mais ou menos sabido que os fatos não se oferecem graciosamente ao estudioso, que cada teoria de certa forma decide sobre eles — quais e como são, quais os mais e os menos relevantes etc. Nesse domínio, duas questões são essenciais: que o estudante se torne capaz de ver como fatos os casos de variação; em segundo lugar, que perceba que há pesquisa possível em língua — ou melhor, que fazer pesquisa a propósito de língua não equivale a consultar gramáticas e dicionários para verificar o que neles consta e o que não consta neles. Essas são apenas as primeiras rupturas. Talvez as mais necessárias. Mas, além disso, cabe verificar minimamente o quanto são ricos e estão sendo cada vez mais enriquecidos novos campos. Por exemplo: pode-se dizer com certeza que um texto não é uma soma de frases, que propriedades como coesão e coerência têm dimensões bastante objetivas, por um lado, mas relacionam-se com domínios que se poderiam dizer interdisciplinares, por outro. Assim, mesmo sem poder-se dizer que se atinge o patamar da “objetividade” nesse domínio, pode-se dizer com certeza que a categoria decisiva já não é o (bom ou mau) gosto do leitor. O que se pode dizer do texto vale para outros tantos campos relativamente recentes: as novidades relacionadas a questões postas pelo estudo do discurso, pela Psicolinguística, pela Neurolinguística, pelos novos problemas (e novas propostas de saídas) que a Linguística propõe ao professor e educador são suficientemente desafiadoras. O livro deixará claro a seu leitor o quanto a linguagem é um campo de experiências riquíssimas, quer se trate de abordar os aspectos relativos ao que se poderia chamar de seus problemas estruturais (Fonologia, Morfologia, Sintaxe), quer se trate de tematizar suas relações com outros campos de saber. Ou com o mundo, que só conhecemos, de fato, ou que tentamos conhecer, por meio da linguagem — de alguma linguagem. Sírio Possenti INTRODUÇÃO A Linguística, nos dias de hoje, conta com uma vasta bibliografia de estudos no campo, desde textos mais introdutórios até textos de grande especificidade e aprofundamento. Os textos introdutórios já existentes são, sem dúvida alguma, bastante esclarecedores. O que justificaria, então, a organização de uma obra como esta, que se propõe a introduzir o leitor nos estudos da Linguística? Nosso propósito na organização desta obra é o de preparar o terreno conceitual para contatos posteriores com materiais que analisem o fenômeno da linguagem com um maior grau de detalhe e aprofundamento, além de tornar acessível, para leitores iniciantes ou não especializados em Linguística, as relevantes abordagens sobre o fenômeno da linguagem. No intuito de realizarmos tal propósito, concebemos os dois volumes de Introdução à Linguística: domínios e fronteiras, buscando aliar os seguintes aspectos: a) uma apresentação geral e gradual das principais áreas da Linguística no Brasil; b) uma amostra de como as diversas áreas abordam os fatos de linguagem; c) uma linguagem acessível. Com base nesses três aspectos, procuramos organizar os capítulos de forma a conferir uma certa unidade à obra. Assim, de um modo geral, os capítulos estão constituídos da seguinte maneira: (i) histórico da área; (ii) bases epistemológicas da área; (iii) diferentes vertentes da área; (iv) análise de dados. No entanto, em função da especificidade de cada área e do próprio estilo e visão de cada autor com relação ao campo apresentado, os capítulos conferem um peso diferenciado aos aspectos acima citados. Com relação à ordem dos capítulos, não optamos pela apresentação das disciplinas seguindo a perspectiva clássica, que perscruta o fenômeno da linguagem partindo dos níveis mínimos de análise em direção aos níveis superiores. Optamos por oferecer ao leitor a possibilidade de inicialmente enxergar o fenômeno linguístico como um fenômeno sociocultural, fundamentalmente heterogêneo e em constante processo de mudança. Entendemos que, assim, podemos lhe promover uma entrada mais significativa no terreno das necessárias e esclarecedoras orientações teóricas formais sobre a linguagem humana. Iniciamos o volume 1 desta obra com o capítulo de Sociolinguística (partes 1 e 2) porque essa área, na tentativa de compreender a questão da relação entre linguagem e sociedade, postula o princípio da diversidade linguística. Além, disso, a Sociolíguística increve-se na corrente das orientações teóricas contextuais sobre o fenômeno linguístico, orientações teóricas estas que consideram as comunidades linguísticas não somente sob o ângulo das regras de linguagem, mas também sob o ângulo das relações de poder que se manifestam na e pela linguagem. O capítulo de Linguística Histórica é apresentado na sequência, enfocando os processos de mudança das línguas no tempo. Essa sequência se justifica porque mudança e variação linguística encontram-se estreitamente relacionadas: se há mudança linguística é porque, em algum momento anterior, ocorreu o fenômeno da variação. Sendo assim, esperamos que estes primeiros textos possam esclarecer parao leitor dois dos mais importantes pressupostos da Linguística moderna: que todas as línguas variam e que todas as línguas mudam. Em seguida, começamos a explorar as áreas que fazem parte daquilo que é tradicionalmente concebido como a descrição gramatical das línguas naturais. Os capítulos de Fonética, Fonologia, Morfologia e Sintaxe possuem a tarefa de introduzir as perspectivas teóricas e metodológicas que constituíram a Linguística como uma ciência autônoma e com um objeto de estudo próprio, ao longo do século XX. Em contato com esses capítulos, o leitor terá a oportunidade de escrutinar o fenômeno linguístico em seus diferentes níveis e, também, de ter acesso a um olhar predominantemente formalista em relação às línguas naturais. Em outras palavras, nesses capítulos, o leitor estará entrando em contato com abordagens que propõem um número restrito de princípios firmes e seguros que são utilizados na construção positiva do conhecimento das línguas e da faculdade de linguagem. Finalizamos o primeiro volume com o capítulo de Linguística Textual. Essa área, que tem como principal interesse o estudo dos processos de produção, recepção e interpretação dos textos, reintegra o sujeito e a situação de comunicação em seu escopo teórico. Esse movimento faz parte de um esforço mais amplo de construção de uma Linguística para além dos limites da frase. Iniciamos o volume 2 apresentando a área da Semântica, que tem como objeto de estudo a questão do significado e/ou dos processos de significação. Esse foi um tema sempre presente em outros lugares de construção do conhecimento, tais como a Lógica, a Retórica, a Filosofia e, mais recentemente, a Semiótica, a História, a Antropologia e as Ciências Cognitivas, o que nos sinaliza para o fato de que este objeto “transborda as próprias fronteiras da Linguística” e nos coloca na posição de ter de enfrentar as discussões sobre as relações entre linguagem e mundo, linguagem e conhecimento. Os capítulos de Pragmática, Análise da Conversação e Análise do Discurso, que são apresentados na sequência, podem ser definidos, de maneira geral, como aqueles que, a partir de pressupostos teóricos diferenciados, estabelecem relações com a exterioridade da linguagem, problematizando a separação entre a materialidade da língua e seus contextos de produção. Para tanto, essas áreas também mobilizam saberes advindos de outros campos, tais como a Filosofia da Linguagem, a Antropologia, a História, a Sociologia, a Psicanálise, e as Ciências Cognitivas, proporcionando ao leitor diferentes olhares em relação às formas de construção dos sentidos, de nossa subjetividade/alteridade e de nossa historicidade. Com o capítulo de Neurolinguística, continuamos o nosso percurso pelas áreas que, pela natureza das indagações que fazem, são constituídas fundamentalmente por teorias linguísticas e por teorias advindas de outros campos do saber. Em outras palavras, “as fronteiras que delimitam os objetos de estudo destas áreas são instáveis, movediças”. Os capítulos de Neurolinguística, Psicolinguística e Aquisição da Linguagem se distinguem dos outros e se aproximam entre si por necessitarem da articulação de saberes produzidos, principalmente, na Linguística, na Psicologia e na área de Neurociências, para que sejam respondidas as questões elaboradas em seus respectivos campos sobre as relações entre linguagem e cognição, linguagem e cérebro, enfim, sobre os diferentes modos pelos quais os sujeitos adquirem, organizam e reelaboram o conhecimento. O último capítulo deste volume, Língua e ensino: políticas de fechamento, tematiza as contribuições que alguns importantes pressupostos teóricos construídos pela ciência da linguagem ao longo do século XX podem dar para o ensino. O capítulo apresenta as diferentes concepções de gramática que norteiam as práticas pedagógicas, além de problematizar as atuais práticas de leitura e de produção de textos na escola, proporcionando ao leitor um olhar crítico em relação aos processos de “homogeneização e silenciamento dos sujeitos”, tão em curso nas instituições escolares. Essa explicação sobre a disposição dos capítulos na obra não tem o objetivo de impor uma leitura linear. Dependendo dos seus interesses e de suas questões, o leitor poderá elaborar a sua própria ordem de leitura. Introdução à Linguística: domínios e fronteiras é fruto de um trabalho coletivo, resultante de uma verdadeira cooperação entre nós, organizadoras, entre as organizadoras e os autores, entre os autores e seus diversos interlocutores, entre nós e as pessoas que acompanharam mais de perto o projeto ao longo desses três anos, e entre nós e os editores. Esta experiência de constante diálogo nos foi extremamente valiosa e prazerosa. Esperamos que nossos leitores também se beneficiem da estimulante “atmosfera” de reflexão sobre a linguagem propiciada pelo trabalho de cada um dos autores desta obra. Aos autores e autoras, agradecemos o entusiasmo com que se engajaram neste projeto intelectual, a tolerância às longas conversas teóricas por telefone e às propostas de intervenção em seus estilos pessoais de escrita e pelos textos em si, que se constituem em brilhantes contribuições para o entendimento da ciência da linguagem e de seus tão diversos e fascinantes objetos. Agradecemos a Sírio Possenti pela gentileza em prefaciar esta obra, colaborando, com seu conhecimento sobre a linguagem e sua experiência como pesquisador e professor, para que este projeto alcançasse o bom nível que alcançou. Agradecemos também à Ingedore Koch que, com sua reconhecida autoridade e competência, nos presenteou com um texto de apresentação para a capa desta obra. Gostaríamos de deixar público o nosso reconhecimento aos professores Angel Mori, Aryon Rodrigues, Edwiges Morato, Erotilde Pezatti, Ester Scarpa, Helena Brandão, Ingedore Koch, Jairo M. Nunes, João Wanderley Geraldi, Kanavillil Rajagopalan, Luiz Antônio T. Marcuschi, Sírio Possenti e à pesquisadora Helena Britto, por suas leituras atenciosas, que contribuíram de forma decisiva para a concepção e organização de alguns capítulos desta obra. Temos também o prazer de reconhecer que, nestes tempos difíceis para a universidade brasileira, ainda existem espaços institucionais que proporcionam as condições para que um projeto dessa natureza seja passível de ser executado. Assim, agradecemos ao Instituto de Estudos da Linguagem da Universidade Estadual de Campinas, por ser uma espécie de confortável “lar” acadêmico, onde tivemos a oportunidade de aprender que uma formação sólida pode e deve estar aliada a compromissos políticos mais amplos. A evolução deste livro tem um débito especial para com Edwiges Maria Morato, nossa companheira nesta jornada intelectual, por ter participado das inúmeras discussões sobre a organização dos capítulos, pelas leituras perspicazes e construtivas de alguns deles e por nos ter sempre incentivado, com sua amizade sólida, com seu brilhantismo e com seu compromisso com níveis elevados de instigação, a acreditar que valia a pena. Gostaríamos ainda de agradecer a Ivana Lima Regis, por sua amizade e por ter sido uma interlocutora especial em todos os estágios deste trabalho, e a Marcelo Lemos Silveira, pelo apoio e companheirismo. Esperamos que este livro possibilite ao leitor vislumbrar a ciência da linguagem. Evidentemente, não tivemos a pretensão de esgotar as discussões que são feitas atualmente nas diferentes áreas apresentadas. Ao contrário, Introdução à Linguística: domínios e fronteiras propõe-se a ser uma porta de entrada para o campo da Linguística, um campo vasto, heterogêneo, multidisciplinar, que consolida seus domínios e constrói seus objetos de estudo a partir de influências intradisciplinares e de uma complexa, mas muito produtiva, rede de relações com outros lugares de construção do conhecimento. Fernanda Mussalim Anna Christina Bentes Organizadoras 1 SOCIOLINGUÍSTICA PARTE I Tânia Maria Alkmim 1. CONSIDERAÇÕES INICIAIS Linguagem e sociedade estão ligadas entre si de modo inquestionável.Mais do que isso, podemos afirmar que essa relação é a base da constituição do ser humano. A história da humanidade é a história de seres organizados em sociedades e detentores de um sistema de comunicação oral, ou seja, de uma língua. Efetivamente, a relação entre linguagem e sociedade não é posta em dúvida por ninguém, e não deveria estar ausente, portanto, das reflexões sobre o fenômeno linguístico. Por que se fala, então, em Sociolinguística? Ou melhor, por que existe uma área, dentro da Linguística, para tratar, especificamente, das relações entre linguagem e sociedade — a Sociolinguística? A linguagem não seria, essencialmente, um fenômeno de natureza social? As respostas a questões como essas não são tão óbvias. Para respondê-las, é preciso considerar razões de natureza histórica, mais precisamente, o contexto social mais amplo em que se situam aqueles que se dedicam a pensar o fenômeno linguístico. Assim, inicialmente, é necessário levar em conta que os estudiosos do fenômeno linguístico, como homens de seu tempo, assumiram posturas teóricas em consonância com o fazer científico da tradição cultural em que estavam inseridos. Nesse sentido, as teorias de linguagem, do passado ou atuais, sempre refletem concepções particulares de fenômeno linguístico e compreensões distintas do papel deste na vida social. Mais concretamente, em cada época, as teorias linguísticas definem, a seu modo, a natureza e as características relevantes do fenômeno linguístico. E, evidentemente, a maneira de descrevê-lo e de analisá-lo. Alguns manuais de história da Linguística nos oferecem um panorama de diversas abordagens no estudo do fenômeno linguístico.1 Observemos, a título ilustrativo, alguns comentários de Câmara Jr., em História da linguística, a respeito do linguista alemão Augusto Schleicher, cujos trabalhos tiveram forte impacto no século XIX: Schleicher não era apenas um linguista mas também um estudioso das ciências naturais dedicando-se à botânica. Este fato dera-lhe uma orientação a favor das ciências da natureza. Ademais, de acordo com a filosofia de Hegel, que dominou o pensamento alemão dessa época, as ciências humanas, incluindo a história, são o produto do livre pensamento do homem e não podem ser colocadas sob a influência de leis imutáveis e gerais tais como o fenômeno da natureza. Ora, Schleicher, como todos os linguistas anteriores a ele, tinha a ambição de elevar o estudo da linguagem ao status de uma ciência rigorosa com rigorosas leis de desenvolvimento.2 É assim que Schleicher se propõe a colocar a Linguística no campo das ciências naturais, dissociando-a da tradição filológica, vista por ele como um ramo da História, ciência humana. Para o referido linguista alemão, o desenvolvimento da linguagem era comparável ao de uma planta que nasce, cresce e morre segundo leis físicas. A linguagem é vista como um organismo natural ao qual se aplica, portanto, o conceito de evolução, desenvolvido por Darwin. A esse respeito Câmara Jr. relata o que se segue: De acordo com Schleicher, cada língua é o produto da ação de um complexo de substâncias naturais no cérebro e no aparelho fonador. Estudar uma língua é, portanto, uma abordagem indireta a este complexo de matérias. Desta maneira, foi ele levado a adiantar que a diversidade das línguas depende da diversidade dos cérebros e órgãos fonadores dos homens, de acordo com as suas raças. E associou a língua à raça de maneira indissolúvel. Advogou que a língua é o critério mais adequado para se proceder à classificação racial da humanidade.3 A orientação biologizante que Schleicher imprimiu à Linguística da sua época afastou, evidentemente, toda consideração de ordem social e cultural no trato do fenômeno linguístico. A relação entre linguagem e sociedade, reconhecida, mas nem sempre assumida como determinante, encontra-se diretamente ligada à questão da determinação do objeto de estudo da Linguística. Isto é, embora se admita que a relação linguagem-sociedade seja evidente por si só, é possível privilegiar uma determinada óptica, e esta decisão repercute na visão que se tem do fenômeno linguístico, de sua natureza e caracterização. Nesse sentido, a Linguística do século XX teve um papel decisivo na questão da consideração da relação linguagem-sociedade: é esta que se encarrega de excluir toda consideração de natureza social, histórica e cultural na observação, descrição, análise e interpretação do fenômeno linguístico. Referimo-nos, aqui, à constituição da tradição estruturalista, iniciada por Saussure em seu Curso de linguística geral, em 1916. É Saussure quem define a língua, por oposição à fala, como o objeto central da Linguística. Na visão do autor, a língua é o sistema subjacente à atividade da fala, mais concretamente, é o sistema invariante que pode ser abstraído das múltiplas variações observáveis da fala. Da fala, se ocupará a Estilística, ou, mais amplamente, a Linguística Externa. A Linguística, propriamente dita, terá como tarefa descrever o sistema formal, a língua. Inaugura-se, assim, a chamada abordagem imanente da língua, que, em termos saussurianos, significa afastar “tudo o que lhe seja estranho ao organismo, ao seu sistema”.4 Interessantemente, para Saussure, a língua é um fato social, no sentido de que é um sistema convencional adquirido pelos indivíduos no convívio social. Mais precisamente, ele aponta a linguagem com a faculdade natural que permite ao homem constituir uma língua. Em consequência, a língua se caracteriza por ser “um produto social da faculdade da linguagem”.5 Saussure privilegia o caráter formal e estrutural do fenômeno linguístico, embora reconheça a importância de considerações de natureza etnológica, histórica e política. Segundo ele, “o estudo dos fenômenos linguísticos externos é muito frutífero; mas é falso dizer que sem estes não seria possível conhecer o organismo linguístico interno”.6 Saussure institucionaliza a distinção entre uma Linguística Interna oposta a uma Linguística Externa. É essa dicotomia que dividirá, de maneira permanente, o campo dos estudos linguísticos contemporâneos, em que orientações formais se opõem a orientações contextuais, sendo que estas últimas se encontram fragmentadas sob o rótulo das muitas interdisciplinas: Sociolinguística, Etnolinguística, Psicolinguística etc. A tradição de relacionar linguagem e sociedade, ou, mais precisamente, língua, cultura e sociedade, está inscrita na reflexão de vários autores do século XX. Integrados ou não à grande corrente estruturalista, que ocupou o centro da cena teórica, particularmente, a partir dos anos 1930, encontramos linguistas cujas obras são referências obrigatórias, quando se trata de pensar a questão do social no campo dos estudos linguísticos. Não caberia, aqui, enumerar todos esses estudiosos, mas uma breve referência a alguns nomes, ligados ao contexto europeu, impõe-se: Antoine Meillet, Mikhail Bakhtin, Marcel Cohen, Émile Benveniste e Roman Jakobson. Meillet, aluno de Saussure, filia-se à orientação diacrônica dos estudos linguísticos, mas, para ele, a história das línguas é inseparável da história da cultura e da sociedade: é essa abordagem que podemos ver em sua obra, sobre a história do latim, Esquisse d’une histoire de la langue latine. A propósito desse linguista francês, cabe destacar sua visão do fenômeno linguístico, bem ilustrada por um trecho de sua aula inaugural no Colège de France, em 1906: Ora, a linguagem é, eminentemente, um fato social. Tem-se, frequentemente, repetido que as línguas não existem fora dos sujeitos que as falam, e, em consequência disto, não há razões para lhes atribuir uma existência autônoma, um ser particular. Esta é uma constatação óbvia, mas sem força, como a maior parte das proposições evidentes. Pois, se a realidade de uma língua não é algo de substancial, isto não significa que não seja real. Esta realidade é, ao mesmo tempo, linguística e social.7 Bakhtin (1929), com sua crítica radical à postura saussuriana, traz para o centro da cena dos estudos linguísticos a noçãode comunicação social: A verdadeira substância da língua não é constituída por um sistema abstrato de formas linguísticas, nem pela enunciação monológica isolada, nem pelo ato psicofisiológico de sua produção, mas pelo fenômeno social da interação verbal realizada através da enunciação ou das enunciações. A interação verbal constitui assim a realidade fundamental da língua.8 De uma perspectiva diferente da de Bakhtin, Jakobson, outro linguista russo, explicita sua visão sobre a relação entre linguagem e contexto social, em que a noção de comunicação tem também um papel central. Para Jakobson, o princípio da homogeneidade do código linguístico, postulado por Saussure (1916), e adotado pela Linguística, “não passa de uma ficção desconcertante”,9 já que todo indivíduo participa de diferentes comunidades linguísticas e todo código linguístico é “multiforme e compreende uma hierarquia de subcódigos diversos, livremente escolhidos pelo sujeito falante”,10 segundo a função da mensagem, do interlocutor ao qual se dirige e da relação existente entre os falantes envolvidos na situação comunicativa. Para Jakobson (1960), o ponto de partida é o processo comunicativo amplo, e isso o leva a ultrapassar a óptica estreita de uma análise do fenômeno linguístico ancorada apenas em suas características estruturais. Ao privilegiar o processo comunicativo, o referido autor privilegia também os aspectos funcionais da linguagem. É o que podemos ver com clareza em seu célebre artigo “Linguística e poética”, em que Jakobson identifica os fatores constitutivos de todo ato de comunicação verbal: o remetente, a mensagem, o destinatário, o contexto, o canal e o código. Cada um desses fatores determina uma diferente função de linguagem, seguindo-se, então, que “a estrutura verbal de uma mensagem depende basicamente da função predominante”.11 Assim é que, por exemplo, a predominância do fator remetente configura a função emotiva ou expressiva, que exprime “a atitude de quem fala em relação àquilo de que está falando”,12 e se evidencia, entre outros procedimentos, pelo uso de interjeições, pela alteração de duração de vogais (por exemplo, em português, graande). Em 1956, o francês Marcel Cohen publicou Pour une sociologie du langage — republicado, em 1971, com o novo título de Matériaux pour une sociologie du langage — em que advoga a necessidade de um diálogo entre as ciências humanas, afirmando que “os fenômenos linguísticos se realizam no contexto variável dos acontecimentos sociais”.13 Mas, ao assumir o postulado saussuriano de que é preciso separar aspectos internos e aspectos externos no estudo das línguas, Cohen assume a questão das relações entre linguagem e sociedade a partir da consideração de fatores externos. Nesse sentido, o referido autor estabelece um repertório de tópicos de interesse para um estudo sociológico da linguagem, como, por exemplo, o estudo das relações entre as divisões sociais e as variedades de linguagem, que permite abordar temas como: a distinção entre variedades rurais, urbanas e de classes sociais, os estilos de linguagem (variedades formais e informais), as formas de tratamento, a linguagem de grupos segregados (jargão de estudantes, de marginais, de profissionais etc.). Finalmente, alguns rápidos comentários sobre Benveniste, linguista francês, cuja reflexão marcou profundamente a Linguística francesa contemporânea em geral e, particularmente, o campo da Análise do Discurso.14 Exporemos aqui apenas alguns comentários que tematizam a questão das relações entre linguagem e sociedade. Para Benveniste (1963), “é dentro da, e pela língua, que indivíduo e sociedade se determinam mutuamente”,15 dado que ambos só ganham existência pela língua. É que a língua é a manifestação concreta da faculdade humana da linguagem, isto é, da faculdade humana de simbolizar. Sendo assim, é pelo exercício da linguagem, pela utilização da língua, que o homem constrói sua relação com a natureza e com os outros homens. Em outros termos, “a linguagem sempre se realiza dentro de uma língua, de uma estrutura linguística definida e particular, inseparável de uma sociedade definida e particular”.16 Logo, língua e sociedade não podem ser concebidas uma sem a outra. Particularmente, em “Estrutura da língua e estrutura da sociedade”, Benveniste (1968) discute a questão que nos interessa aqui. Segundo ele, “a ideia de procurar entre estas duas entidades relações unívocas que fariam corresponder tal estrutura social a tal estrutura linguística parece trair uma visão muito simplista das coisas”.17 Isto porque sociedade e língua são grandezas de ordem distinta, ou melhor, têm organizações estruturais diversas. Assim é que a língua se organiza em unidades distintas, que são em número finito, combináveis e hierarquizadas — o que não se observa na organização social. Mas, segundo o autor, algumas propriedades aproximam língua e sociedade: são realidades inconscientes, representam a natureza, são sempre herdadas e não podem ser abolidas pela vontade dos homens. Há, no entanto, uma dimensão privativa da língua, que a coloca em um plano especial: seu poder coercitivo, que transforma um agregado de indivíduos em uma comunidade, criando a possibilidade da produção e da subsistência coletiva. Para Benveniste, a questão da relação entre língua e sociedade se resolve pela consideração da língua como instrumento de análise da sociedade. Ele afirma que a língua contém a sociedade e por isto é o interpretante da sociedade. Esse papel de interpretante é garantido pelo fato de que a língua é “o instrumento de comunicação que é e deve ser comum a todos os membros da sociedade”, possibilitando, assim, “a produção indefinida de mensagens em variedades ilimitadas”.18 Mais exatamente: “a língua é necessariamente o instrumento próprio para descrever, para conceitualizar, para interpretar tanto a natureza quanto a experiência”.19 Além disso, a língua dá forma à sociedade ao exibir o semantismo social, que consiste, principalmente, de designações, de fatos de vocabulário. Particularmente, o vocabulário se apresenta como uma fonte importante para os estudiosos da sociedade e da cultura, pois retém informações sobre as formas e as fases da organização social, sobre os regimes políticos etc. Essa linha de reflexão é exemplarmente representada na obra de Benveniste (1969/1970) Vocabulário das instituições indo- europeias. Finalmente, cabe assinalar uma outra consideração relevante de Benveniste. Para ele, a língua permite que o homem se situe na natureza e na sociedade; o homem “se situa necessariamente em uma classe, seja uma classe de autoridade ou classe da produção”.20 Em consequência, a língua, sendo uma prática humana, “revela o uso particular que grupos ou classes de homens fazem [dela] [...] e as diferenciações que daí resultam no interior de uma língua comum”.21 Vemos, assim, que Benveniste articula a questão da relação língua e sociedade no plano geral da construção do humano e, particularmente, no plano das relações concretas e contingentes estabelecidas na vida social. O esboço feito até aqui pode ser reduzido a uma afirmação muito simples: a questão da relação é óbvia e complexa ao mesmo tempo. Sabemos que é inegável, mas também que a passagem do social ao linguístico — e do linguístico ao social — não é feita com tranquilidade. Não há consenso sobre o modo de tratar e de explicitar a questão da relação entre linguagem e sociedade: o fato é que o lugar reservado a essa consideração constitui um dos grandes “divisores de águas” no campo da reflexão da Linguística contemporânea. 2. A SOCIOLINGUÍSTICA: FIXAÇÃO DE UM CAMPO DE ESTUDOS O termo Sociolinguística, relativo a uma área da Linguística, fixou-se em 1964. Mais precisamente, surgiu em um congresso, organizado por William Bright, na Universidade da Califórnia em Los Angeles (UCLA), do qual participaram vários estudiosos, que se constituíram, posteriormente, em referências clássicas na tradição dos estudos voltados para a questão da relação entre linguagem e sociedade: JohnGumperz, Einar Haugen, William Labov, Dell Hymes, John Fisher, José Pedro Rona. Ao organizar e publicar, em 1966, os trabalhos apresentados no referido congresso sob o título Sociolinguistics, Bright escreve o texto introdutório “As dimensões da Sociolinguística”,22 em que define e caracteriza a nova área de estudo. A proposta de Bright para a Sociolinguística é a de que ela deve “demonstrar a covariação sistemática das variações linguística e social. Ou seja, relacionar as variações linguísticas observáveis em uma comunidade às diferenciações existentes na estrutura social desta mesma sociedade”.23 Segundo o referido autor, o objeto de estudo da Sociolinguística é a diversidade linguística. E, como que estabelecendo um roteiro para atividades de pesquisa a serem desenvolvidas na área da Sociolinguística, Bright, na mesma obra, identifica um conjunto de fatores socialmente definidos, com os quais se supõe que a diversidade linguística esteja relacionada, como: a) identidade social do emissor ou falante — relevante, por exemplo, no estudo dos dialetos de classes sociais e das diferenças entre falas femininas e masculinas; b) identidade social do receptor ou ouvinte — relevante, por exemplo, no estudo das formas de tratamento, da baby talk ( fala utilizada por adultos para se dirigirem aos bebês); c) o contexto social — relevante, por exemplo, no estudo das diferenças entre a forma e a função dos estilos formal e informal, existentes na grande maioria das línguas; d) o julgamento social distinto que os falantes fazem do próprio comportamento linguístico e sobre o dos outros, isto é, as atitudes linguísticas. A propósito do nascimento da Sociolinguística, Bachmann et al. (1981) tecem considerações interessantes. Segundo estes autores, o novo campo é o lugar onde vão se encontrar os herdeiros de tradições antigas como a da antropologia linguística — caso de Hymes — ou da dialectologia social — como Labov — e de especialistas da experimentação ou da intervenção social: psicólogos, sociólogos, e mesmo planificadores.24 Os referidos autores observam, também, que a Sociolinguística se constitui e floresce no momento em que o formalismo, representado pela gramática de Chomsky,25 alcança enorme repercussão, em rota para o seu percurso vitorioso. Vemos, assim, que, de um lado, a preocupação com as relações entre linguagem e sociedade tinha raízes históricas no contexto acadêmico norte-americano, e também que a oposição entre uma abordagem imanente da língua versus a consideração do contexto social é posta com grande vitalidade no campo dos estudos linguísticos. De fato, a constituição da Sociolinguística se fez, claramente, a partir da atividade de vários estudiosos e pesquisadores que deram continuidade à tradição, inaugurada no começo do século XX por F. Boas (1911) e seus discípulos mais conhecidos — Edward Sapir (1921) e Benjamin L. Whorf (1941): a chamada Antropologia Linguística. Nessa vertente, em que linguagem, cultura e sociedade são considerados fenômenos inseparáveis, linguistas e antropólogos trabalham lado a lado e, mesmo, de modo integrado. Nesse sentido, o que há de novo é a definição de uma área explicitamente voltada para o tratamento do fenômeno linguístico no contexto social no interior da Linguística, animada pela atuação de linguistas e, particularmente, de estudiosos formados em campos das ciências sociais. A Sociolinguística nasce marcada por uma origem interdisciplinar. É oportuno assinalar que o estabelecimento da Sociolinguística, em 1964, é precedido pela atuação de vários pesquisadores, que buscavam articular a linguagem com aspectos de ordem social e cultural. Destacaremos, aqui, dois desses pesquisadores. Em 1962, Hymes publica um artigo em que propõe um novo domínio de pesquisa, a Etnografia da Fala, rebatizada mais tarde como Etnografia da Comunicação.26 De caráter interdisciplinar, buscando a contribuição de áreas como a Etnologia, a Psicologia e a Linguística, o novo domínio pretende descrever e interpretar o comportamento linguístico no contexto cultural e, deslocando o enfoque tradicional sobre o código linguístico, procura definir as funções da linguagem a partir da observação da fala e das regras sociais próprias a cada comunidade. Questões como Qual o comportamento linguístico adequado para homens, mulheres e crianças na comunidade X? ou Que momentos são adequados para o exercício da fala na comunidade Y? podem ser tomadas como ponto de partida para pesquisas em Etnografia da Comunicação. Mais tarde, Hymes (1972) publicou um artigo de grande impacto — “Models of the interaction of language and social life” — no qual estabelece os princípios teóricos e metodológicos da Etnografia da Comunicação. Em 1963, Labov publica seu célebre trabalho sobre a comunidade da ilha de Martha’s Vineyard, no litoral de Massachusetts, em que sublinha o papel decisivo dos fatores sociais na explicação da variação linguística, isto é, da diversidade linguística observada. Nesse texto, o autor relaciona fatores como idade, sexo, ocupação, origem étnica e atitude ao comportamento linguístico manifesto dos vineyardenses, mais concretamente, à pronúncia de determinados fones do inglês. Logo em 1964, Labov finaliza sua pesquisa sobre a estratificação social do inglês em New York, em que fixa um modelo de descrição e interpretação do fenômeno linguístico no contexto social de comunidades urbanas — conhecido como Sociolinguística Variacionista ou Teoria da Variação, de grande impacto na Linguística contemporânea.27 A segunda parte desse capítulo tratará especificamente dessa vertente da Sociolinguística. Assim, o rótulo “sociolinguística”, como foi possível observar, reuniu e agregou, no seu início, pesquisadores marcados pela formação acadêmica em diferentes campos do saber e marcados também pela preocupação com as implicações teóricas e práticas do fenômeno linguístico na sociedade norte-americana. Surgem, assim, pesquisas voltadas para as minorias linguísticas (imigrantes porto-riquenhos, poloneses, italianos etc.),28 e para a questão do insucesso escolar de crianças oriundas de grupos sociais desfavorecidos (negros e imigrantes, particularmente). Em suma, a realidade diversificada, tanto linguística como cultural dos Estados Unidos, torna-se um ponto de reflexão básico para um contingente significativo de estudiosos. A propósito, vale lembrar que, também em 1964, houve um congresso em Bloomington, Indiana, em que linguistas e cientistas sociais debateram questões relativas às relações interdisciplinares, ao campo da dialectologia social, à escolarização de crianças provenientes de meio social pobre e de origem estrangeira. Três obras referenciais foram organizadas a partir dos trabalhos apresentados nesse congresso: Ferguson (1965) Directions in Sociolinguistics: report on a interdisciplinary seminar, Lieberson (1966) (org.) Explorations in Sociolinguistics, e Schuy (1964) (org.) Social dialects and language learning. 3. A SOCIOLINGUÍSTICA: OBJETO, CONCEITOS, PRESSUPOSTOS Pondo de maneira simples e direta, podemos dizer que o objeto da Sociolinguística é o estudo da língua falada, observada, descrita e analisada em seu contexto social, isto é, em situações reais de uso. Seu ponto de partida é a comunidade linguística, um conjunto de pessoas que interagem verbalmente e que compartilham um conjunto de normas com respeito aos usos linguísticos. Em outras palavras, uma comunidade de fala se caracteriza não pelo fato de se constituir por pessoas que falam do mesmo modo, mas por indivíduos que se relacionam, por meio de redes comunicativas diversas, e que orientam seu comportamento verbal por um mesmo conjunto de regras. Tomemos, como exemplo, o uso do modo imperativo em português. Para os falantes do português, o imperativo denota ordem, exortação, conselho, solicitação, segundo o significado do verbo e o tom de voz utilizado, como em: “Vai-te embora”; “Ouve este conselho!”; “Vem cá!”; “Desce daí!”. Consideremos, agora, as seguintes observações de Cunha e Cintra: Atenuação. Pordever social e moral, geralmente evitamos ferir a suscetibilidade de nosso interlocutor com a rudeza de uma ordem. Entre os numerosos meios de que nos servimos para enfraquecer a noção de comando, devemos ressaltar (além dos já estudados), pela sua eficiência, o emprego de fórmulas de polidez ou de civilidade, tais como: por favor, por gentileza, digne-se de, tenha a bondade etc.: — Fale mais alto, por favor! (F. Botelho, X, 177) — Entrem, por favor, que não ocupam lugar — exclamou Seu Pio. (A. F. Schmidt, GB, 165) — Tenham a bondade de sentar e esperar um momento. [= Sentem-se e esperem um momento.] (R. Braga, CCE, 272) É claro que também aqui o tom de voz é de uma suma importância. Qualquer dessas frases pode, não obstante as fórmulas de cortesia empregadas, tornar-se rude e seca, ou mesmo insolente, com a simples mudança de entoação.29 A depender do alcance e dos objetos de um trabalho de natureza sociolinguística, podemos selecionar e descrever comunidades de fala como a cidade de New York ou a cidade do Rio de Janeiro, de São Paulo, de Belém. Ou o povo ianomâmi, que vive no Estado do Amapá. Ou, ainda, as comunidades dos pescadores do litoral do Estado do Rio de Janeiro, da Ilha de Marajó, dos estudantes de Direito, dos rappers etc. Ao estudar qualquer comunidade linguística, a constatação mais imediata é a existência de diversidade ou da variação. Isto é, toda comunidade se caracteriza pelo emprego de diferentes modos de falar. A essas diferentes maneiras de falar, a Sociolinguística reserva o nome de variedades linguísticas. O conjunto de variedades linguísticas utilizado por uma comunidade é chamado repertório verbal. Assim é que, a propósito da cidade de Bruxelas, na Bélgica — país caracterizado pelo bilinguismo francês-flamengo (variedade do holandês) — Fishman aponta: Os funcionários administrativos do Governo, em Bruxelas, que são de origem flamenga, nem sempre falam holandês entre si, mesmo quando todos sabem holandês muito bem e igualmente bem. Não só há ocasiões em que falam francês entre si, em vez de holandês, como também há algumas ocasiões em que falam entre si o holandês standard enquanto em outras usam esta ou aquela variedade regional do holandês. De fato, alguns da mesma forma usam diferentes variedades de francês: uma variedade particularmente carregada de termos administrativos oficiais, outra correspondendo ao francês não técnico falado nos círculos de educação superior e refinados da Bélgica, e, ainda outra, que não é apenas um “francês mais coloquial” mas o francês coloquial dos que são flamengos. Em suma, essas diversas variedades de holandês e de francês constituem o repertório linguístico de certos complexos sociais flamengos em Bruxelas.30 Caso consideremos uma comunidade como a de Salvador, observaremos que o seu repertório linguístico se constitui de variedades linguísticas distintas, dado que os habitantes da cidade falam de modo diferente em função, por exemplo, de sua origem regional, de sua classe social, de suas ocupações, de sua escolaridade e também da situação em que se encontram. Assim é que um falante que pronuncia a palavra “doido” como [dojdӡʊ] revela sua proveniência da região interiorana, assim como a pronúncia da palavra “cozinha” como [kũŋʼzĩɐ] indica, além da origem social, a sua pouca escolaridade. Um mesmo habitante de Salvador, segundo a situação em que se encontrar, poderá optar entre usar as expressões “Fiquei retado” ou “Fiquei aborrecido’’, assim como entre “João convidou ele” ou “João o convidou”. Qualquer língua, falada por qualquer comunidade, exibe sempre variações. Pode-se afirmar mesmo que nenhuma língua se apresenta como uma entidade homogênea. Isso significa dizer que qualquer língua é representada por um conjunto de variedades. Concretamente: o que chamamos de “língua portuguesa” engloba os diferentes modos de falar utilizado pelo conjunto de seus falantes do Brasil, em Portugal, em Angola, Moçambique, Cabo Verde, Timor etc. Língua e variação são inseparáveis: a Sociolinguística encara a diversidade linguística não como um problema, mas como uma qualidade constitutiva do fenômeno linguístico. Nesse sentido, qualquer tentativa de buscar apreender apenas o invariável, o sistema subjacente — se valer de oposições como “língua e fala”, ou competência e performance — significa uma redução na compreensão do fenômeno linguístico. O aspecto formal e estruturado do fenômeno linguístico é apenas parte do fenômeno total. 3.1. A variação linguística: um recorte Todas as línguas do mundo são sempre continuações históricas. Em outras palavras, as gerações sucessivas de indivíduos legam a seus descendentes o domínio de uma língua particular. As mudanças temporais são parte da história das línguas. Dois exemplos de mudança histórica no português são ilustrativos: a) no português arcaico (entre os séculos XII e XVI), ocorriam construções impessoais em que a indeterminação do sujeito era indicada pelo vocábulo “homem”, com o mesmo sentido que, atualmente, usamos o pronome “se”. Por exemplo: “E pode homem hyr de Santarem a Beia [Beja] em quatro dias”,31 que corresponde, modernamente, a “E pode-se ir de Santarém a Beja em quatro dias”; b) a forma de tratamento “Vossa Senhoria” é atestada nos meados do século XV como expressão reservada ao rei. Já no final do século XVI, esta perde seu estatuto de realeza, sendo empregada no trato com arcebispos, bispos, duques, marqueses, condes, além de uma gama de altos funcionários (como, por exemplo, vice-rei ou governador da Índia).32 No plano sincrônico, as variações observadas nas línguas são relacionáveis a fatores diversos: dentro de uma mesma comunidade de fala, pessoas de origem geográfica, de idade, de sexo diferentes falam distintamente. É bom frisar que não existe nenhuma relação de causalidade entre o fato de nascer em uma determinada região, ser de uma classe social determinada etc., e falar de uma certa maneira. Os falantes adquirem as variedades linguísticas próprias a sua região, a sua classe social etc. De uma perspectiva geral, podemos descrever as variedades linguísticas a partir de dois parâmetros básicos: a variação geográfica (ou diatópica) e a variação social (ou diastrática). A variação geográfica ou diatópica está relacionada às diferenças linguísticas distribuídas no espaço físico, observáveis entre falantes de origens geográficas distintas. Alguns exemplos: a) brasileiros e portugueses se distinguem em vários aspectos de sua fala. No plano lexical, apenas um exemplo: “combóio” em Portugal, “trem” no Brasil. No plano fonético: a pronúncia aberta da vogal anterior média como em “prémio” [‘], em contraste com a pronúncia fechada no Brasil, “prêmio” [‘]. No plano gramatical: derivações diversas de uma raiz comum, como em ficheiro, paragem, bolseiro, que no Brasil correspondem a fichário, parada e bolsista; a colocação de advérbios como em “Lá não vou” (Portugal) e “Não vou lá” (Brasil);33 b) entre falantes brasileiros originários das regiões nordeste (incluída a Bahia) e sudeste, percebemos diferenças fonéticas, como, por exemplo, a pronúncia de vogais médias pretônicas — como ocorre na palavra “melado” — pronunciadas como vogais abertas no nordeste [’] e fechadas no sudeste [’]. Percebemos também diferenças gramaticais, como, por exemplo, a preferência pela posposição verbal da negação, como em “sei não” (nordeste) e “não sei” (ou, “não sei, não’’, no sudeste); o uso do artigo definido antes de nomes próprios como em “Falei com Joana” (nordeste) e “Falei com a Joana” (sudeste); c) no Estado da Bahia, por exemplo, a origem urbana ou rural pode ser evidenciada pelo uso da expressão “de primeiro” [di primero], em lugar de “antigamente”, “anteriormente”. Tomando-se a comunidade de fala de língua portuguesa como um todo, podemo-nos referir às variedades brasileira, portuguesa, baiana, curitibana, rural paulista (ou caipira) etc. A variação social ou diastrática, por sua vez, relaciona-se a um conjunto de fatores que têm a ver com a identidadedos falantes e também com a organização sociocultural da comunidade de fala. Neste sentido, podemos apontar os seguintes fatores relacionados às variações de natureza social: a) classe social; b) idade; c) sexo; d) situação ou contexto social. Em relação aos três primeiros fatores, nos limitaremos a fornecer exemplos, remetendo, para um tratamento variacionista dos fatores em questão, à segunda parte deste capítulo. No que diz respeito ao fator situação ou contexto social, faremos uma exposição um pouco mais aprofundada. a) Classe social: observemos alguns exemplos indicativos de pertencente à fala de grupos situados abaixo na escala social: — uso de dupla negação, como em “ninguém não viu”, “eu nem num gosto”; — presença de [r], em lugar de [l], em grupos consonantais, como em “brusa” (blusa) e “grobo” (globo); — na Índia, existem as castas brâmane (superior), não brâmane (média) e intocável (inferior), que correspondem à hierarquia social vigente. Na área de Bangalore, a língua Kannada apresenta dados relativos a esta diferenciação social: a palavra “nome” tem as formas /hesru/, “hesru”, na variedade coloquial dos brâmanes, e /yesru/, “yesru”, na variedade não brâmane; a expressão “com licença” é realizada como /kšamisu/, “kšamisu”, na variedade coloquial dos brâmanes e /cemsu/, “cemsu”, na variedade coloquial dos não brâmanes (Bright, 1960). b) Idade: — o uso de léxico particular, como presente em certas gírias (“maneiro”, “esperto”, com o sentido de avaliação positiva sobre coisas, pessoas e situações), denota faixa etária jovem; — uso de pronome tu em situações de interação entre iguais no Rio de Janeiro, como em “Tu viu só?”, também sugere que os falantes são jovens; — a pronúncia fechada da vogal tônica posterior da palavra “senhora” [’], em lugar de [’], é característica de alguns falantes mais velhos. c) Sexo: — a duração de vogais como recurso expressivo, como em “maaravilhoso”, costuma ocorrer na fala de mulheres (Camacho, 1978), assim como o uso frequente de diminutivos, como “bonitinho”, “gostosinho”, “vermelhinho”; — na língua Zuñi, falada por um grupo indígena da América do Norte, os fones [ty] e [c] falados por pessoas do sexo feminino correspondem a [ky] na fala masculina; — no japonês, para o pronome de primeira pessoa eu, além de uma forma utilizável por todos os falantes, existem as formas “atashi”, usada exclusivamente por mulheres, e “boku”, própria aos homens. d) Situação ou contexto social: é um fato muito conhecido que qualquer pessoa muda sua fala, de acordo com o(s) seu(s) interlocutor(es) — se este é mais velho ou hierarquicamente superior, por exemplo —, segundo o lugar em que se encontra — em um bar, em uma conferência — e até mesmo segundo o tema da conversa — fofoca, assunto científico. Ou seja, todo falante varia sua fala segundo a situação em que se encontra. Fishman (1972) assim se pronuncia: “uma situação é definida pela coocorrência de dois (ou mais) interlocutores mutuamente relacionados de uma maneira determinada, comunicando sobre um determinado tópico, num contexto determinado”.34 Uma definição desse tipo possibilita descrever os padrões de uma determinada sociedade com respeito ao uso das variedades linguísticas. Isto é, qual o comportamento linguístico adequado às situações em que se encontram os falantes. Consideremos, por exemplo, a situação de uma defesa de tese e a comemoração que se segue à aprovação desta tese, que envolve as mesmas pessoas. As diferenças existentes entre as duas situações — tema das conversas, local etc. — podem fazer com que uma sociedade considere adequado utilizar variedades linguísticas diferentes ou a mesma. Segue-se, então, que cada grupo social estabelece um contínuo de situações cujos polos extremos e opostos são representados pela formalidade e informalidade. Em nossa sociedade, conferências, entrevistas para obtenção de emprego, solicitação de informação a um desconhecido, contato entre vendedores e clientes são, em geral, vistos como situações formais. Já situações como passeatas, mesas redondas sobre esporte, bate- papo em bar, festas de Natal nas empresas são definidas como informais. As variedades linguísticas utilizadas pelos participantes das situações devem corresponder às expectativas sociais convencionais: o falante que não atender às convenções pode receber algum tipo de “punição”, representada, por exemplo, por um franzir de sobrancelhas. Há um tipo de interação social particular em que um falante decide mudar de variedade linguística sem que tenha ocorrido mudança de situação: é o que Fishman (1972) chama de mudança metafórica. Um bom exemplo é uma conversa em que o pai interroga a filha nos seguintes termos: “Aonde a senhora pensa que vai?” — em que o uso da forma de tratamento “senhora” está obviamente carregado de ironia. Aprende-se a falar na convivência. Mas, mais do que isso, aprendemos quando devemos falar de um certo modo e quando devemos falar de outro. Os indivíduos que integram uma comunidade precisam saber quando devem mudar de uma variedade para outra. Segundo Fishman (1972), os membros de qualquer comunidade “adquirem lenta e inconscientemente as competências comunicativa e sociolinguística, com respeito ao uso apropriado da língua”.35 Em termos concretos, é possível afirmar que os falantes aprendem quando podem falar e quando devem permanecer em silêncio, se podem utilizar a forma imperativa para dar uma ordem ou se devem se valer de uma expressão modalizada, como em “saiam daqui, já” ou “por favor, dirijam-se à saída”; se é oportuno dizer “tô fora” ou “não vai ser possível”; ou, ainda, “a gente não sabia” ou “não sabíamos”, ou ainda “desconhecíamos”. Às variações linguísticas relacionadas ao contexto chamamos de variações estilísticas ou registros. Nesse sentido, os falantes diversificam sua fala — isto é, usam estilos ou registros distintos — em função das circunstâncias em que ocorrem suas interações verbais. Segundo Camacho, os falantes adequam suas formas de expressão às finalidades específicas de seu ato enunciativo, sendo que tal adequação “decorre de uma seleção dentre o conjunto de formas que constitui o saber linguístico individual, de um modo mais ou menos consciente”.36 A seleção de formas envolve, naturalmente, um grau maior ou menor de reflexão, por parte do falante: o uso do estilo formal, em relação ao informal, requer uma atuação mais consciente. Assim é que observamos estilos distintos quando um falante conversa com um amigo ou com vizinhos recém-conhecidos, ou com um médico, durante uma consulta, bem como ao escrever um bilhete a um colega de faculdade, uma carta à seção de leitores de um jornal ou ao elaborar um relatório dirigido a um superior no trabalho. A terminologia para se referir aos diferentes estilos de fala não é nada precisa. Utilizamos, muito genericamente, expressões como estilos formal, informal, coloquial, familiar, pessoal. A noção de situação — tal como foi definida — tem um alcance restrito, reduzindo-se, praticamente, à consideração da cena em que ocorrem as interações verbais. É útil e produtivo entender situação de uma perspectiva mais abrangente, a saber, como o contexto social global de uma comunidade, com suas marcas históricas e culturais próprias. Pensamos aqui, particularmente, nos contextos ritualísticos e religiosos que, tomados como ponto de partida, sugerem o estudo de variedades e usos linguísticos especiais. Assim, por exemplo, o contexto das tradições religiosas sugere o estudo das linguagens esotéricas, das fórmulas e invocações propiciatórias às práticas da relação com o mundo do sagrado. O contexto da ordenação jurídica, por sua vez, sugere o estudo das variedades linguísticas particulares utilizadas pelos tabeliães, advogados, juízes e promotores nos julgamentos. No campo dos usos religiosos, cabe citar o fascinante trabalho de Michel Leiris (1948), La langue secrète des Dogon de Sanga, que se ocupa da língua iniciática do povo Dogon que habita uma região do atual Mali (antigo Sudão Francês).Sobre a comunidade brasileira, há um interessante estudo de Maria Izabel S. Magalhães (1985), The rezas and benzeções: healing speech activities in Brazil, que focaliza a prática linguística de benzedores, a partir de dados coletados em cidades-satélites de Brasília. W. M. O’Barr e J. F. O’Barr (1976) organizaram um volume, de extremo interesse — Language and politics — em que analisam a questão das relações entre linguagem e o funcionamento do sistema de ordenações legais na Índia e na Tanzânia, dois países que compartilham algumas características marcantes: são ex-colônias inglesas, sociedades plurilíngues e precisam pensar a questão da relação entre a herança histórica tradicional e a recente, produzida pelo colonialismo inglês. Os parâmetros da variação linguística são diversos, como se pode inferir da exposição feita até aqui. Para efeito de apresentação, isolamos os fatores a que a variação linguística, como um todo, está relacionada. Não podemos deixar de apontar, no entanto, que, na realidade das relações sociais, os fatores de variação se encontram imbricados. No ato de interagir verbalmente, um falante utilizará a variedade linguística relativa a sua região de origem, classe social, idade, escolaridade, sexo etc. e segundo a situação em que se encontrar. Por exemplo: um brasileiro, nascido em Recife, apresentará, sempre, vogais pretônicas abertas como em [] “real”, mas ainda a depender de sua escolaridade, da origem rural ou urbana, utilizará o verbo “assuntar” ou “prestar atenção” e, a depender da situação, dirá “Fui nada” ou “Fui não”. 3.2. As variedades linguísticas e a estrutura social Como já foi dito, em qualquer comunidade de fala, podemos observar a coexistência de um conjunto de variedades linguísticas. Essa coexistência, entretanto, não se dá no vácuo, mas no contexto das relações sociais estabelecidas pela estrutura sociopolítica de cada comunidade. Na realidade objetiva da vida social, há sempre uma ordenação valorativa das variedades linguísticas em uso, que reflete a hierarquia dos grupos sociais. Isto é, em todas as comunidades existem variedades que são consideradas superiores e outras inferiores. Em outras palavras, como afirma Gnerre, “uma variedade linguística ‘vale’ o que ‘valem’ na sociedade os seus falantes, isto é, vale como reflexo do poder e da autoridade que eles têm nas relações econômicas e sociais”.37 Constata-se, de modo muito evidente, a existência de variedades de prestígio e de variedades não prestigiadas nas sociedades em geral. As sociedades de tradição ocidental oferecem um caso particular de variedade prestigiada: a variedade padrão. A variedade padrão é a variedade linguística socialmente mais valorizada, de reconhecido prestígio dentro de uma comunidade, cujo uso é, normalmente, requerido em situações de interação determinadas, definidas pela comunidade como próprias, em função da formalidade da situação, do assunto tratado, da relação entre os interlocutores etc. A questão da língua padrão tem uma enorme importância em sociedades como a nossa. Algumas considerações a seu respeito se impõem. A variedade padrão de uma comunidade — também chamada norma culta, ou língua culta — não é, como o senso comum faz crer, a língua por excelência, a língua original, posta em circulação, da qual os falantes se apropriam como podem ou são capazes. O que chamamos de variedade padrão é o resultado de uma atitude social ante a língua, que se traduz, de um lado, pela seleção de um dos modos de falar entre os vários existentes na comunidade e, de outro, pelo estabelecimento de um conjunto de normas que definem o modo “correto” de falar. Tradicionalmente, o melhor modo de falar e as regras do bom uso correspondem aos hábitos linguísticos dos grupos socialmente dominantes. Em nossas sociedades de tradição ocidental, a variedade padrão, historicamente, coincide com a variedade falada pelas classes sociais altas, de determinadas regiões geográficas. Ou melhor, coincide com a variedade linguística falada pela nobreza, pela burguesia, pelo habitante de núcleos urbanos, que são centros do poder econômico e do sistema cultural predominante. Fishman (1970) define a padronização, isto é, o estabelecimento da variedade padrão, como um tratamento social característico da língua, que se verifica quando há diversidade social suficiente e necessidade de elaboração simbólica. Em outras palavras, a definição de uma variedade padrão representa o ideal da homogeneidade em meio à realidade concreta da variação linguística — algo que, por estar acima do corpo social, representa o conjunto de suas diversidades e contradições. A variedade alçada à condição de padrão não detém propriedades intrínsecas que garantem uma qualidade “naturalmente” superior às demais variedades. Na verdade, a padronização é sempre historicamente definida. Isto é, cada época determina o que considera como forma padrão: determinadas pronúncias, construções gramaticais e expressões lexicais. Segue-se, então, que certas formas podem ser consideradas como pertencentes à variedade padrão em uma época e deixar de sê-lo em outra. As línguas mudam incessantemente, e a definição do “certo”, do “agradável” e do “adequado” também. Na prática, podemos concordar com Fishman, o que é padrão pode tornar-se não padrão, e o que é considerado não padrão pode ser estabelecido como padrão. A história da língua portuguesa, como a de tantas outras, oferece-nos inumeráveis exemplos dessa ordem de fatos. Consideremos, a propósito, os seguintes exemplos do século XVI: — as formas “dereito”, “despois”, “frecha”, “frito”, “premeiramente”, hoje desabonadas, são encontradas no texto da carta de Pero Vaz de Caminha, de 1500; — as formas “frauta”, “escuitar”, “intonce”, assim como as construções sintáticas do tipo “deseja de comprar” (com a presença da preposição de) e “se esta gente, cuja valia e obra tanto amaste/não queres que padeçam vitupério” (concordância do sujeito gente com o verbo flexionado no plural) — hoje consideradas incorretas — são encontradas em Os Lusíadas, de Camões (1572). Como se vê, representações de pronúncias e construções gramaticais atestadas em textos legitimados não são mais consideradas como “bom uso”. Como entender, então, que ocorrências equivalentes, tão vivas em variedades não padrões contemporâneas, como por exemplo “Framengo”, “ele deve de sair, agora” e “a gente fomos lá”, sejam consideradas como “erradas”, “fruto de ignorância”? A fala das classes altas mudou e a de outros grupos sociais reteve esses usos: esse foi o “erro”. A avaliação social das variedades linguísticas é um fato observável em qualquer comunidade da fala. Frequentemente, ouvimos falar em línguas “simples”, “inferiores”, “primitivas”. Para a Linguística, esse tipo de afirmação carece de qualquer fundamento científico. Toda língua é adequada à comunidade que a utiliza, é um sistema completo que permite a um povo exprimir o mundo físico e simbólico em que vive. É absolutamente impróprio dizer que há línguas pobres em vocabulário. Não existem também sistemas gramaticais imperfeitos. Seria um contrassenso imaginar seres humanos com uma “meia língua”. A falta de léxico específico para descrever, por exemplo, a astronomia na língua de um povo corresponde ao desinteresse por este assunto: a sociedade não tem necessidade de dominar este dado do real. Caso a sociedade necessite, basta fazer empréstimos linguísticos: o contato cultural com outros povos, o conhecimento de novos conteúdos ou a descoberta de realidades até então desconhecidas são o motor da elaboração de novos conceitos e da produção de novas palavras. Quanto ao aspecto gramatical, o estudo das mais distintas línguas tem revelado que ele se apresenta sempre como um sistema organizado e coerente de regras. As línguas diferem entre si em numerosos aspectos, e essas diferenças correspondem ao patrimônio expressivo da humanidade. Assim como não existem línguas “inferiores”, não existem variedades linguísticas “inferiores”. Como vimos, as línguas não são homogêneas ea variação observável em todas elas é produto de sua história e do seu presente. Em que se baseiam, então, as avaliações sociais? Podemos afirmar, com toda tranquilidade, que os julgamentos sociais ante a língua — ou melhor as atitudes sociais — se baseiam em critérios não linguísticos: são julgamentos de natureza política e social. Não é casual, portanto, que se julgue “feia” a variedade dos falantes de origem rural, de classe social baixa, com pouca escolaridade, de regiões culturalmente desvalorizadas. Por que se considera “desagradável” o r retroflexo, o chamado r caipira, presente em realizações como [’p] “porta”? Afinal, a mesma articulação retroflexa ocorre em palavras do inglês como [ka] “car” (carro), que ninguém sente como “feia”. Em resumo: julgamos não a fala, mas o falante, e o fazemos em função de sua inserção na estrutura social. Para a Sociolinguística, a natureza variável da língua é um pressuposto fundamental, que orienta e sustenta a observação, a descrição e a interpretação do comportamento linguístico. As diferenças linguísticas, observáveis nas comunidades em geral, são vistas como um dado inerente ao fenômeno linguístico. A não aceitação da diferença é responsável por numerosos e nefastos preconceitos sociais e, neste aspecto, o preconceito linguístico tem um efeito particularmente negativo. A sociedade reage de maneira particularmente consensual quando se trata de questões linguísticas: ficamos unanimemente chocados diante da palavra inadequada, da concordância verbal não realizada, do estilo impróprio à situação de fala. A intolerância linguística é um dos comportamentos sociais mais facilmente observáveis, seja na mídia, nas relações sociais cotidianas, nos espaços institucionais etc. A rejeição a certas variedades linguísticas, concretizada na desqualificação de pronúncias, de construções gramaticais e de usos vocabulares, é compartilhada sem maiores conflitos pelos não especialistas em linguagem. O senso comum opera com a ideia de que existe uma língua — o bem social à disposição de todos — que é adquirida distintamente, em função de condições diversas, pelos falantes. Na realidade, existe sempre um conjunto de variedades linguísticas em circulação no meio social. Aprende-se a variedade a que se é exposto, e não há nada de errado com essas variedades. Os grupos sociais dão continuidade à herança linguística recebida. Nesse sentido, é preciso ter claro que os grupos situados embaixo na escala social não adquirem a língua de modo imperfeito, não deturpam a língua “comum”. A homogeneidade linguística é um mito, que pode ter consequências graves na vida social. Pensar que a diferença linguística é um mal a ser erradicado justifica a prática da exclusão e do bloqueio ao acesso a bens sociais. Trata-se sempre de impor a cultura dos grupos detentores do poder (ou a eles ligados) aos outros grupos — e a língua é um dos componentes do sistema cultural. A existência de uma variedade padrão, que desloca todas as outras variedades linguísticas e cria um contexto de relações assimétricas entre falantes de uma comunidade, é um exemplo objetivo dessa questão. Cabe aos usuários das variedades não padrões adotar a variedade socialmente aceitável — pelo menos, em certas circunstâncias, como em situação de fala pública ou durante uma entrevista em uma agência de emprego. Por que aprender um outro modo de falar? Onde adquirir este outro modo de falar? A motivação para falar um outro modo de falar é sempre social, e isso pode ser produzido pela escola, ou pela experiência social. De qualquer maneira, a decisão de falar de um modo distinto daquele que aprendemos não se concretiza facilmente: há sempre um longo caminho a percorrer, tanto mais longo quanto mais distante se encontra o falante dos padrões linguísticos e culturais legitimados. 4. CONSIDERAÇÕES FINAIS Marcada por uma heterogeneidade original, a Sociolinguística dos anos 1960 pode ser vista como o ponto de partida de novas correntes e orientações de pesquisas, centradas no trato do fenômeno linguístico relacionado ao contexto social e cultural, que se distinguem, de forma mais evidente, pela vinculação explícita a algum campo das ciências humanas. De uma perspectiva bem geral, podemos apontar a Antropologia e a Sociologia como áreas relevantes. Dentre estas correntes, destacaremos apenas algumas: — a Sociologia da Linguagem, representada por J. Fishman; — a Sociolinguística Interacional, ligada ao nome de J. Gumperz; — a Dialectologia Social, associada ao trabalho de estudiosos como R. Shuy e P. Trudgil; — a Etnografia da Comunicação, inseparável do nome de D. Hymes, referida anteriormente. Caberia, também, uma referência, nesta vertente, aos trabalhos de R. Bauman e J. Sherzer, voltados, particularmente, para a questão da arte verbal e da poética dos gêneros de fala. Algumas antologias, bastante citadas, oferecem uma visão da produção no campo da Sociolinguística e permitem observar a diversidade de temas estudados e de abordagens praticadas, como, por exemplo: Pride, J. B. e Holms, J. (1972) (orgs.), Sociolinguistics; Giglioli, P. P. (1974) (Org.). Language and social context; Coupland, N.; Jaworski, A. (1997) (Orgs.). Sociolinguistics. Duas outras referências merecem ser feitas: a coletânea de trabalhos representativos da Sociolinguística praticada no mundo românico — Dittmar, N.; Schlieben-Lange, B. (1982) (Orgs.). La sociolinguistique dans les pays de langue romane — e o número 89 do periódico International Journal of Sociology of Language (1989), dedicado à produção brasileira. 5. REFERÊNCIAS BACHMANN, C. et al. Langage et communications sociales. Paris: Hatier, 1981. BAKHTIN, M. Marxismo e filosofia da linguagem. 5. ed. São Paulo: Hucitec, 1990. (Título original, 1929) BAUMAN, R.; SHERZER, J. (Orgs.). Explorations in the ethnography of speaking. London: Cambridge University Press, 1974. BENVENISTE, E. Vocabulário das instituições indo-europeias. Campinas: Editora da Unicamp, 1995. 2 v. (Título original, 1969/1970) ______. Estrutura da língua e estrutura da sociedade. In: Problemas de linguística geral II. São Paulo: Editora Nacional/Edusp, 1989. (Título original, 1968) ______. Vista d’olhos sobre o desenvolvimento da linguística. In: Problemas de linguística geral. São Paulo: Editora Nacional/Edusp, 1976. (Título original, 1963) BOAS, F. 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O texto original de MEILLET é o que se segue: “Or, le langage est éminement un fait social. On a souvent repeté que les langues n’existent pas en dehors des sujets que les parlent, et que par suite on n’est pas fondé à leur attribuer une existence autonome, un être propre. C’est une constatation évidente, mais sans portée, comme la plupart des propositions évidentes. Car si la réalité d’une langue n’est pas quelque chose de substantiel, elle n’en existe pas moins. Cette realité est à la fois linguistique et sociale”. In: Meillet, A. Esquisse d’une histoire de la langue latine. Paris: Klincksiek, 1977. p. 16. (Título original, 1928) 8. Bakhtin, M. Marxismo e filosofia da linguagem. 5. ed. São Paulo: Hucitec, 1990. p. 123. (Título original, 1929) 9. Jakobson, R. Relações entre a ciência da linguagem e as outras ciências. Lisboa: Bertrand, 1973. p. 29. 10. Ibidem, p. 29. 11. Jakobson, R. Linguística e poética. In: Linguística e comunicação. São Paulo: Cultrix, 1970. p.123. (Título original, 1960) 12. Jakobson, R. Linguística e comunicação. São Paulo: Cultrix, 1970. p.124 13. O texto original de Cohen (1956) é o que se segue: “Les phénomènes linguistiques se realizent dans le cadre changeant des événements sociaux”. In: Cohen, M. Matériaux pour une sociologie du langage. Paris: Maspero, 1956. v. 2, p. 30. 14. Cf. particularmente o famoso artigo de Benveniste, “O aparelho formal da enunciação”, in Benveniste, E., Problemas de linguística geral II. São Paulo: Editora Nacional/EDUSP, 1989. (Título original, 1974). 15. Benveniste, E. Problemas de linguística geral. São Paulo: Editora Nacional/EDUSP, 1976. p. 27. 16. Ibidem, p. 31. 17. Benveniste, E. Problemas de linguística geral II. São Paulo: Editora Nacional/EDUSP, 1989. p. 95. (Título original, 1968) 18. Ibidem, p. 98. 19. Ibidem, p. 99. 20. Ibidem, p. 101. 21. Ibidem, p. 102.22. Ver Bright, W. As dimensões da sociolinguística. In: Fonseca, M. S.; Neves, M. F. (Orgs.). Sociolinguística. Rio de Janeiro: Eldorado, 1974. 23. Ibidem, p. 34. 24. Bachmann, C. et al. Language et communications sociales. Paris: Hatier, 1974. p. 17. 25. Remetemos o leitor ao capítulo “Sintaxe” neste mesmo volume. 26. Hymes, D. The ethnography of speaking. In: Gladwin, T.; Stutervant, W. C. (Orgs.). Anthropology and human behavior. Washington, D.C.: The Anthropological Society of Washington, 1964. (Título original, 1962) 27. Labov, W. The stratification of English in New York City. Washington, D.C.: Center for Applied Linguistics, 1966. 28. Ver Fishman, J. A . et al. Language loyalty in the United States. The Hague: Mouton, 1966. Ver também Fishman, J. A. et al. Bilingualism in the Barrio: the measurement and description of language dominance in bilinguals. Washington, D.C.: Dept. of Health, Education and Welfare, 1968. 29. Cunha, C.; Cintra, L. F. L. Nova gramática do português contemporâneo. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985. 30. Fishman, J. A. A sociologia da linguagem. In: Fonseca, M. S. V.; Neves, M. F. (Orgs.). Sociolinguística. Rio de Janeiro: Eldorado, 1974. p. 28. 31. Dias, A. E. S. Sintaxe histórica portuguesa. 4. ed. Lisboa: Clássica, 1959. p. 22. (Título original, 1884) 32. Cintra, L. F. L. Origens do sistema de formas de tratamento do português actual. In: Sobre as “formas de tratamento” na língua portuguesa. Lisboa: Horizonte, 1972. (Título original, 1965) 33. Ver Câmara Jr., J. M. Línguas europeias de ultramar: o português do Brasil. In: Dispersos. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 1975. (Título original, 1963) Ver também Boléo, M. P. Brasileirismo. Brasília, v. 3, p. 3-42, 1943. 34. Fishman, J. A. A sociologia da linguagem. In: Fonseca, M. S. V.; Neves, M. F. (Orgs.). Sociolinguística. Rio de Janeiro: Eldorado, 1974. p. 29. (Título original, 1972) 35. Ibidem. 36. Camacho, R. A variação linguística. In: Subsídios à proposta curricular de língua portuguesa para o segundo grau. São Paulo: CENP, Secretaria do Estado da Educação, 1978. v. IV, p. 17. 37. Gnerre, M. Linguagem, escrita e poder. São Paulo: Martins Fontes, 1985. cap. 1: Linguagem, poder e discriminação, p. 4. SOCIOLINGUÍSTICA PARTE II Roberto Gomes Camacho 1. O SURGIMENTO DA SOCIOLINGUÍSTICA Todos concordam que o principal marco para o surgimento da linguística moderna e, ao mesmo tempo, do estruturalismo, é a publicação do Curso de linguística geral (Saussure [1916], 1977). O estruturalismo, criatura que, como o monstro de Frankenstein, tomou vida independente até da vontade de seu próprio criador, surgiu do corte operado por Saussure (1977) nos fenômenos heteróclitos da linguagem, ao projetar, dos atos de fala individuais, um modelo abstrato para seu estudo, que ele denominou língua, “um sistema que conhece apenas sua ordem própria” (Saussure, 1977, p. 31). Apesar da alegação saussuriana de que a língua é a parte social da linguagem, a separação entre sistema e discurso, em toda a tradição linguística que se seguiu a esse ato de criação, foi não só mantida, mas até mesmo talvez aprofundada, por pesquisadores de escolas distintas como Leonard Bloomfield, Louis Hjelmslev e Noam Chomsky. No entanto, alega Calvet, coberto de razão, “as línguas não existem sem as pessoas que as falam, e a história de uma língua é a história de seus falantes” (Calvet, 2002, p. 12). Embora Saussure identificasse a língua com uma instituição social, o estruturalismo inaugurou um objeto que se define justamente pela recusa de levar em conta o que a língua tem de social — ou, pelo menos, o conceito de “social” em Saussure se delimita com o de relações pluri- individuais (Calvet, 2002, p. 31). Quando, no final da década de 1950, surgiu Chomsky (1957) com seu Syntactic Structures, esse corte se manteve sob outra denominação e sob nova direção teórica. Com efeito, o sistema linguístico se enquadrou na moldura do conhecimento intuitivo do falante-ouvinte, um objeto de natureza psicológica ou cognitiva, denominado competência, com o descarte simultâneo dos atos de fala, infinitamente variáveis e variados, que, relegados ao conceito de desempenho, ficaram destituídos de qualquer importância teórico-metodológica. Era esse o cenário quando, em maio de 1964, novas personagens emergiram. Reuniram-se 25 pesquisadores na Universidade da Califórnia em Los Angeles (UCLA) para uma conferência sobre sociolinguística promovida por William Bright, que abriu espaço para o debate de uma grande diversidade de temas, todos ligados à relação entre linguagem e sociedade.1 Para não alongar muito o assunto, basta lembrar que, como nova área de estudos, a tarefa atribuída à sociolinguística é a de “demonstrar a covariação sistemática das variações linguística e social” (Bright, [1966] 1974, p. 17), o que poderia ser retraduzido por “demonstrar que na verdade tal variação ou diversidade não é ‘livre’, mas correlacionada a diferenças sociais sistemáticas” (Bright, [1966] 1974, p. 18). Segundo entende Calvet (2002), o texto de Bright ([1966] 1974) tem hoje o valor histórico de registrar que o encontro de 1964 marca o nascimento da sociolinguística; marca também a emergência de um modo alternativo de fazer ciência, em oposição à gramática gerativa de Chomsky que estava se impondo como o paradigma dominante, algo que Kuhn (1974) chamaria de “ciência normal”. Na visão de Bright ([1966] 1974), todavia, a sociolinguística só poderia ser concebida como uma abordagem anexa aos fatos de língua em complementação à própria linguística formal, à sociologia e à antropologia. Dizer, como Bright ([1966] 1974), que a sociolinguística trata da relação de covariação sistemática entre língua e sociedade é fazer uma afirmação correta e ao mesmo tempo excessivamente simplificadora. As últimas três décadas assistiram ao interesse cada vez mais crescente pelo estudo da linguagem em uso no contexto social, mas os diversos enfoques que se abrigaram sob o rótulo sociolinguística vêm cobrindo, desde o início, uma grande variedade de assuntos. Uma das áreas lida com a interação da linguagem ou situações dialetais com fatores em grande escala, como decadência e assimilação de línguas minoritárias, desenvolvimento de bilinguismo em nações socialmente complexas, planejamento linguístico em nações emergentes. Esse tipo de enfoque, comumente denominado Sociologia da linguagem, ligado principalmente ao nome de Joshua Fishman, era, em sua criação, um ramo das ciências sociais, na medida em que encara os sistemas linguísticos como instrumentais em relação às instituições sociais mais amplas (cf. Fishmann, 1971). Essa visão se alterou um pouco hoje em virtude da necessidade que os linguistas se impuseram de buscar maior grau de visibilidade social na comunidade leiga, mediante propostas de políticas linguísticas. Outra área de estudos, denominada Etnografia da comunicação (cf. Hymes, 1974), interessa-se em descrever e analisar as formas dos eventos de fala, especificamente, as regras que dirigem a seleção que o falante opera em função da relação que ele contrai com o interlocutor, com o assunto da conversa, e outras circunstâncias do processo de comunicação. Esse ramo de estudos fortemente ligado ao nome de Hymes desemboca hoje em outros cursos d’água igualmente caudalosos, como a Análise da Conversação (cf. Sacks; Schegloff; Jefferson, 1974; Tannen, 1984) e a Sociolinguística Interacional (cf. Gumperz, 1982).2 Uma terceira área de interesse, que podemos apropriadamente chamar de Sociolinguística Variacionista, umbilicalmente ligada ao nome de William Labov, trata do exame da linguagem no contexto social como solução de problemas próprios da teoria da linguagem. Diferentemente do modo acessório como Bright ([1966] 1974) enfoca a relação da sociolinguística com outras áreas de investigação, para Labov ([1972] 2008), a relação entre língua e sociedade é encarada como metodologicamente indispensável, não como mero recurso interdisciplinar. Como a língua é, em últimaanálise, um fenômeno social, fica claro, para um sociolinguista, que é necessário recorrer às variações derivadas do contexto social para encontrar respostas para os problemas que emergem da variação inerente ao sistema linguístico. 2. O QUE É A SOCIOLINGUÍSTICA VARIACIONISTA? Tendo separado a sociolinguística variacionista de outras áreas afins, resta-nos discutir agora como essa abordagem vê a relação entre a estrutura linguística e a social. Para início de conversa, dois falantes de uma mesma língua ou variedade dialetal dificilmente se expressam de modo idêntico. Nem mesmo um único falante fala sempre do mesmo modo, isto é, nenhum usuário de uma língua é falante de um único e mesmo estilo ou registro: a adesão às determinações do contexto discursivo leva-o a selecionar expressões com grau maior ou menor de formalidade. Sendo assim, o que a sociolinguística faz é correlacionar as variações existentes na expressão verbal a diferenças de ordem linguística e de ordem social, entendendo cada domínio, o linguístico e o social, como fenômenos estruturados e regulares. Podemos afirmar, com base nos postulados da sociolinguística, que, se um falante enuncia o verbo “levaram” como “levaru”, e outro falante, como “levarum”, ou, alternativamente, se um mesmo falante usa ora “levarum”, ora “levaru”, essa variação na fala não é o resultado aleatório de um uso arbitrário e inconsequente. Pelo contrário, é o uso sistemático e regular de uma propriedade inerente aos sistemas linguísticos que é a possibilidade de variação, entendida como heterogeneidade constitutiva da linguagem. É essa regularidade e estruturação que passaremos a discutir. Uma observação pouco acurada dos usos que se fazem de situações comuns de interação poderia levar à dedução equivocada de que a língua em uso é uma espécie de caos, uma terra de ninguém, sujeita, portanto, ao uso arbitrário de seus recursos. Enquanto uns falam, por exemplo, “Cê leu os livros?”, outros manifestam exatamente o mesmo conteúdo empregando uma forma de expressão como “Cê leu os livro?”. Como é possível abarcar esses dois enunciados alternativos, e igualmente disponíveis à seleção do falante, numa explicação linguística coerente e sistemática? Com base num ponto de vista estritamente linguístico, que é o que sempre pesa mais para um sociolinguista variacionista, comparemos a variação entre ausência e presença de segmentos sonoros, como a que se aplica ao fonema consonantal /s/ identificado como fricativo alveolar. Para simplificar, simbolizemos como [s] e [Ø] a variação entre a presença e a ausência desse elemento sonoro, respectivamente. A variação entre [s] e [Ø] pode aparecer na marcação de plural em “os livros/os livro”, e em outros tantos substantivos comuns da língua portuguesa, como “os meninos/os menino”, e pode aparecer também em nomes próprios, como “Marcos/Marco”, em que não há envolvimento de pluralidade, embora [s] possa ser também eliminado. O mesmo segmento sonoro final — a fricativa alveolar [s] — pode aparecer, por outro lado, em outras palavras, como “ananás”, “arroz” etc., sem que seja eliminado com a mesma frequência. Afinal de contas, ouvir algo como o ananá(i), o arrô(i) é algo extremamente raro, pelo menos na variedade paulista3, ao passo que é extremamente frequente ouvir a expressão “os menino”. Nem é preciso ser especialista no assunto para verificar que as condições dessa variação, que são de ordem fonológica, não estão sujeitas ao acaso, nem ao livre arbítrio do falante. Muito pelo contrário, acham-se fortemente marcadas por motivações emanadas do próprio sistema linguístico. Diríamos que a escolha possível do falante por uma ou outra forma estaria fortemente condicionada por essas restrições. Vejamos por quê. Selecionar uma palavra com a ausência ou a presença de uma fricativa alveolar depende de estar esse segmento numa sílaba átona final, como em “livros”, “meninos” e “Marcos”. Já o simples fato de incidir sobre uma sílaba tônica, como em “ananás”, praticamente elimina a possibilidade de variação entre [s] e [Ø] numa variedade dialetal como a paulista, embora esse contexto seja favorável a um processo de ditongação antes da fricativa alveolar, o que forneceria casos como “ananais”, “arroiz”, etc. Esses exemplos poderiam ser questionados com o argumento de que, nas condições a que se submete a variação, como a posição de sílaba átona final para a alternância [s] e [Ø], o caos se instala na língua, já que é o espaço privilegiado para o falante agora exercer livremente o arbítrio. Contra-argumentemos também contra essa objeção e a própria língua é aqui novamente o depósito onde se buscam os melhores dados. Observe-se, por exemplo, a diferença entre “meninos” e “Marcos”, numa sentença como “O Marcos levou os meninos ao teatro”. Observando- se a forma de “Marcos” em comparação com a de “os meninos”, deduz-se que seria muito mais natural que os falantes eliminassem mais a variante [s] do nome próprio que a do nome comum de “os meninos”. De um ponto de vista morfológico, o [s] de “Marcos” não exerce função alguma, já que não passa de um segmento fonológico que, juntamente com os demais, constitui a forma do morfema lexical, ou radical, que forma a palavra em questão. Já não se pode dizer o mesmo do [s] do substantivo “meninos” de “os meninos”: trata-se do mesmo segmento fonológico que, coincidentemente aqui, constitui sozinho a marca gramatical de plural, conforme a segmentação menino-s. Esses dados mostram que a variação entre [s] e [Ø] apresenta diferentes estatutos nos dois casos: se o segmento fonológico manifesta um valor semântico, como o de pluralidade, que se deseja veicular ao interlocutor, seria mais natural manter integralmente sua forma de expressão; trata-se de um processo que incide sobre o sistema gramatical da língua. É, por conseguinte, mais natural que a incidência de variação no fonema fricativo /s/ em finais átonos de palavras seja quantitativamente mais elevada nas palavras em que o processo de variação é só fonológico do que naquelas em que afeta também o sistema gramatical. No entanto, as motivações do sistema linguístico impedem mais uma vez que essa correlação se estabeleça de modo absoluto no uso real. Ocorre que a categoria de número é redundantemente marcada no sintagma nominal em português, mediante uma regra sintática de concordância: assim, em termos meramente informacionais, tanto faz dizer “Marcos” ou “Marco” quanto “os meninos espertos”, “os meninos esperto” ou ainda “os menino esperto”; nesse sintagma nominal complexo, parece que, se o valor de pluralidade já está assegurado em algum constituinte mais à esquerda, os demais podem prescindir dessa marcação. Evidências estatísticas mostram, no entanto, que, mais do que simplesmente ser a posição inicial a preferência para marcar plural nos sintagmas nominais, a alternância entre as variantes [s] e [Ø] é o resultado de um conjunto muito mais complexo de fatores linguísticos, que incorpora classe gramatical, função sintática e posição do constituinte no interior do sintagma nominal (SN). Observe a Tabela 1 abaixo. Tabela 1 Relação entre marcação de pluralidade e os elementos do SN Fatores Frequência Prob. Núcleo na 1ª posição 165/173 = 95% .69 Núcleo na 2ª posição 2.842/5.300 = 53% .24 Núcleo na 3ª posição 333/537 = 62% .39 Classe não nuclear anteposta 4.292/4.407 = 97% .87 Classe não nuclear posposta 241/564 = 43% .25 (Adaptado de Scherre, 1996, p. 101) Os dados da Tabela 1 mostram que, independentemente da classe gramatical, um constituinte anteposto ao núcleo é mais suscetível à marcação de plural do que um posposto. Um constituinte não nuclear pode aparecer até na terceira posição, mas a probabilidade de ser marcado é maior se ele estiver anteposto ao núcleo. Uma consequência óbvia dessa distribuição é a de que não tem qualquer suporte nas evidências afirmar simplesmente que a primeira posição do SN é a mais marcada. Os elementos nucleares, por seu lado, também não são igualmente marcados em todas as posições. São sempre maismarcados na primeira e na terceira do que na segunda posição. Por isso, afirmações como, por exemplo, a de que o substantivo é uma das classes menos suscetíveis à marcação de plural também não encontram respaldo nos dados dispostos na Tabela 1 (cf. Scherre, 1996, p. 101-102). Essa interação complexa de fatores mostra que, no processo de marcação de plural no SN, a gramática do português organiza a variação de número de um modo muito mais sutil e complexo para bloquear o avanço do processo fonológico de erosão das consoantes em posição de sílaba átona final e preservar a função morfológica de indicação de pluralidade do segmento sonoro [s]; mas, sobretudo, essa distribuição mostra, com extrema clareza, o caráter sistemático, estruturalmente regulado da variação. Essa regularidade comprova, portanto, que, se, por um lado, a heterogeneidade é propriedade constitutiva da linguagem, por outro, não é o resultado aleatório de procedimentos arbitrários, mas de restrições impostas pelo próprio sistema linguístico. Uma comparação com o espanhol será um tanto útil para se entender o alcance das pressões do sistema linguístico sobre os processos variáveis de marcação de pluralidade. Como se sabe, “o menino” se traduz, em espanhol, por “el niño”. Como, em espanhol, o artigo no plural é “los”, a expressão “los niños” traduz “os meninos”. Comparado com o singular “el niño”, a ausência de [s], mesmo no artigo “los”, mantém a integridade da informação de número no sintagma nominal pluralizado em “lo niño”. Não sendo possível contar com a oposição entre [s] e [Ø], em função da erosão das consoantes finais na fala, o falante lança mão de outra oposição com o mesmo sucesso: “el” x “lo”. Já no feminino, o fenômeno se iguala ao português, como se pode observar a partir da oposição “la niña” x “las niñas”. Se o falante eliminar o segmento [s] do sintagma no plural, eliminará concomitantemente a marcação de número. Evidências estatísticas sobre o espanhol portorriquenho apontam para altas frequências na eliminação do [s] em todos os constituintes dos sintagmas nominais masculinos e baixas frequências na eliminação desse segmento nos sintagmas nominais femininos, conforme se observa nas tabelas 2 e 3 a seguir. Tabela 2 Frequência de apagamento de [s] em determinantes Masculino Feminino Total Presença de [s] 216 167 383 Ausência de [s] 53 24 77 Total 269 191 460 % de ausência 19,7% 12,5% 16,7% Tabela 3 Frequência de apagamento de [s] em substantivos Masculino Feminino Total Presença de [s] 149 169 318 Ausência de [s] 452 217 669 Total 601 386 987 % de ausência 75,2% 56,2% 67,8% (Adaptado de Flores; Myhill; Tarallo, 1983, apud Tarallo 1999) As Tabelas 2 e 3 mostram que a incidência percentual de apagamento de [s] marcador de plural é mais alta para os determinantes e substantivos masculinos. Esses resultados comprovam, assim, que o sistema linguístico do espanhol está submetido a um processo de variação fonológica que pode vir a comprometer a veiculação de valores semânticos, como a marcação de pluralidade. Mesmo assim, permite uma maior frequência de uso justamente nos casos em que a oposição entre singular e plural é mais neutra e menos relevante funcionalmente (cf. Tarallo, 1990), isto é, nas posições pospostas ao núcleo do sintagma nominal para o português e nas formas masculinas para o espanhol. Podemos voltar, agora, à comparação das frequências de emprego da variação entre [s] e [Ø] em palavras monomorfêmicas, como o nome próprio “Marcos”, em que o cancelamento da fricativa não significa a eliminação de uma marca de plural, e em palavras bimorfêmicas, como o nome comum “meninos”, em que o cancelamento pode implicar perda de informação. Ao compararmos essas duas formas, não o faremos mais com a inocência de antes, mas convictos das pressões gramaticais, teremos a certeza de que comparações fidedignas só se podem estabelecer em relações estratégicas do sintagma nominal que envolvam posição, classe gramatical e função sintática. E, sobretudo, teremos aprendido a lição importante de que a variação não é o resultado do uso arbitrário e irregular dos falantes, mas, ao contrário, é o resultado sistemático e regular de restrições impostas pelo próprio sistema linguístico. Vejamos, agora, um exemplo mais, para observarmos a relevância de um tipo de determinação extralinguística para a variação. Para isso, viajemos até o inglês americano e examinemos a forma que seus falantes empregam para exprimir o segmento inicial de palavras como “thing”, “through” etc. — a variável (th) para o fonema /θ/, representando a pronúncia de pelo menos quatro três variantes: a própria fricativa interdental [θ], uma oclusiva [t] uma africada [tθ] e uma fricativa velar [s]. Na Figura 1, o eixo vertical representa a escala dos valores médios para (th) e o eixo horizontal representa os quatro estilos contextuais A-D.4 As linhas horizontais, que conectam os valores, mostram a progressão dos índices médios por grupos socioeconômicos distinguidos como 0-1 para classe baixa; 2-4 para classe operária; 5-8 para classe média baixa; 9 para classe média alta. A Figura 1 mostra claramente um fenômeno chamado de estratificação descontínua, já que os cinco estratos da população investigada estão agrupados em dois estratos maiores, demonstrando diferentes valores sociais para a expressão da variável. Em todos os contextos, os membros da comunidade são diferenciados pelo uso que fazem da variante de prestígio, a pronúncia de uma fricativa interdental [θ]. Essa distribuição se reflete claramente no fato de que os índices mais altos ou mais baixos de emprego da variável (th) são diretamente correlacionados a posições na estrutura social, com uma nítida diferença entre as camadas mais altas e as camadas mais baixas da estratificação social. Apesar disso, numa escala de formalidade da situação de interação verbal, todos os grupos mantêm comportamento idêntico, de modo que índices mais elevados da variante de prestígio — a variante [θ] — estão correlacionados a graus mais elevados de formalidade (cf. Labov, [1972] 2008). Figura 1 Estratificação de uma variável linguística com significado social estável (adaptado de Labov, [1972] 2008, p. 142) Agora não são, por conseguinte, restrições de natureza intrinsecamente linguística que favorecem ou não a pronúncia variável do fonema /θ/, mas restrições de natureza extralinguística, indicadas na diferenciação social e estilística. Se as línguas naturais humanas consistem em sistemas organizados de forma e conteúdo, seria estranho que a variação não fosse uma de suas propriedades mais marcantes e significativas. Na realidade, a diversidade é uma propriedade funcional e inerente dos sistemas linguísticos, e o papel da sociolinguística é exatamente enfocá-la como objeto de estudo, em suas determinações linguísticas e não linguísticas. A esse respeito, é sempre útil ouvirmos Labov: A existência de variação e de estruturas heterogêneas nas comunidades de fala investigadas está certamente bem fundamentada nos fatos. É a existência de qualquer outro tipo de comunidade de fala deve ser posta em dúvida [...] a heterogeneidade não é apenas comum, ela é o resultado natural de fatores linguísticos fundamentais. Argumentamos que a ausência de alternância estilística e de sistemas comunicativos multiestratificados é que seria disfuncional. (Labov, [1972] 2008, p. 238) A linguagem é, sem dúvida alguma, o modo mais característico de comportamento social, sendo, por isso, impossível separá-la de suas funções sociointeracionais. É até por isso que, vale repetir, o próprio uso do termo sociolinguística para rotular esse enfoque soa um tanto redundante. Consequentemente, somente é possível considerá-lo uma subárea da linguística ou um de seus domínios conexos de uma perspectiva que não inclua como relevante a natureza social da linguagem. A sociolinguística trata da estrutura e da evolução da linguagem, encaixando-a no contexto social da comunidade. Seus tópicos recobrem a área convencionalmente chamadade “linguística geral”, na medida em que lida com questões decorrentes do exame dos níveis fonológico, morfológico, sintático e semântico para esclarecer a configuração das regras linguísticas, sua combinação em sistemas, a coexistência de sistemas alternativos e, principalmente, a evolução diacrônica de tais regras e sistemas (cf. Labov, [1972] 2008). Vale lembrar a forte correlação entre variação e mudança. Toda mudança é o resultado de algum processo de variação, em que ainda coexistam a substituta e a substituída, embora o inverso não seja verdadeiro, isto é, nem todo processo de variação resulta necessariamente numa mudança diacrônica, caso em que a variação é estável e funciona como indicador de diferenças sociais. 3. A VARIAÇÃO E SUAS CAUSAS Mas, a propósito, o que são variantes e variáveis linguísticas? Observe a variação entre as várias pronúncias do fonema /r/ em final de sílaba como [}], a forma retroflexa, amplamente usada no interior de São Paulo, pejorativa- mente chamada r-caipira; [x], uma fricativa velar, [h], uma fricativa glotal, ambas faladas no litoral brasileiro em geral, embora estereotipadas como pertencentes unicamente ao dialeto carioca; e, finalmente [r], uma vibrante alveolar, usada, com maior frequência, na região metropolitana de Porto Alegre.5 Uma propriedade comum identifica todos os casos mencionados de variação: representam duas ou mais formas alternativas de dizer a mesma coisa no mesmo contexto. O termo variável representa o esforço do sociolinguista por generalizações abstratas. Trata-se de uma classe de variantes que constituem duas ou mais alternativas concretas de uso. As variantes, ordenadas ao longo de uma dimensão contínua, são determinadas por uma ou mais variáveis independentes, de natureza linguística ou extralinguística. Observe que a marcação de plural no SN é uma variável, representada por Labov (2008) por colchetes angulares: <s>. A marcação positiva de plural, representada por [s], como em “os meninos”, e a marcação negativa, representada por [Ø], como em “os menino”, constituem as variantes. Uma variável pode representar duas ou mais variantes. É justamente por não ter função no processo de comunicação, que a linguística estruturalista não levou seriamente em consideração a análise de variáveis. Concebeu a linguagem como um instrumento de comunicação, identificando-a com uma espécie de código, similar aos sistemas de sinais eletrônicos, coisa que absolutamente a linguagem humana não é. O interesse pela função cognitiva, informativa ou referencial da linguagem teve como consequência teórico-metodológica a exclusão de qualquer unidade de análise que não contivesse o mínimo de informação requerido pelo critério funcional. A abordagem gerativista, quando surgiu no final dos anos 1950, recusou o enfoque da variação para descrever um modelo de competência baseado na idealização da comunidade linguística e do falante- ouvinte. A alternância entre duas formas com o mesmo significado, duas variantes, acabou confinada, para um estruturalista, à vala comum da variação livre e da variação combinatória ou contextual; para um gerativista, duas variantes são indiferentemente postuladas como regra facultativa ou opcional. A despeito de diferenças de enfoque, todo linguista, indiscriminadamente, concorda com o princípio de que nenhuma língua natural humana é um sistema em si mesmo homogêneo e invariável. Todos os níveis de análise linguística estão sujeitos ao processo de variação. Observe, inicialmente, o nível fonológico: a alternância entre qualquer pronúncia de /r/ e sua ausência, em formas infinitivas do verbo, como “falá”, “comê”, é um exemplo de variável fonológica. Já no nível morfológico, é possível observar a alternância de sufixos derivacionais, como “salaminho” e “salamito”, que identifica uma diferença entre o falar paulista e o gaúcho. No nível sintático, observe os vários tipos de construção relativa, nos seguintes exemplos: “A moça de quem você falou estuda no colégio” x “A moça que você falou estuda no colégio” x “A moça que você falou dela estuda no colégio”. Observe, agora, a alternância entre os morfemas lexicais de “jerimum” x “abóbora”, “macaxeira” x “aipim” x “mandioca”, que fornecem identificação da origem regional do falante. Já do ponto de vista dos fatores extralinguísticos (cf. Camacho, 1988), toda língua comporta variantes: (a) em função da identidade social do emissor; (b) em função da identidade social do receptor; (c) em função das condições sociais de produção discursiva. Em função do primeiro fator, pertencem as variantes que se podem denominar dialetais em sentido amplo: variantes geográficas ou diatópicas, variantes socioculturais ou diastráticas. Em função do segundo e do terceiro fatores, pertencem as variantes de registro ou estilísticas, ou ainda diafásicas. Referem-se ao grau de formalidade da situação e ao ajustamento do emissor à identidade social do receptor. Como é verdadeiro que o domínio de uma língua deriva do grau de contato do falante com outros membros da comunidade, também é verdadeiro que quanto maior o intercâmbio entre os falantes de uma língua, tanto maior a semelhança entre seus atos verbais. Dessa tendência para a maior semelhança entre os atos verbais dos membros de uma mesma comunidade resulta a variação geográfica ou diatópica. Outra razão reside no fato de que os indivíduos nativos de determinado setor geográfico se orientam para um centro cultural, política e economicamente polarizador. Constitui-se, assim, uma comunidade linguística geograficamente restrita no interior de uma mais extensa e abrangente. Mediante a atração geográfica e a contiguidade física é que se desenvolve um comportamento cultural específico que identifica os membros de uma comunidade e os distingue dos membros de outras. É fácil perceber a variação motivada por diferenças na origem geográfica. Basta percorrer o país para perceber, por exemplo, que toda a região nordestina se identifica com base na variação sistemática das vogais pretônicas “e” e “o” de “dezembro” e “colina”, que “estabelece uma linha divisória entre os falares do Norte, que em geral optam pela realização aberta, e os falares do Sul, que geralmente optam pela realização fechada” (Leite e Callou, 2005, p. 39-40) na região Sudeste. Outro exemplo relevante é o caso do r pós-vocálico. Estudando a distribuição das variantes nas cinco capitais representadas no Projeto NURC (São Paulo, Rio de Janeiro, Porto Alegre, Recife e Salvador), Leite e Callou (2005) mostram que São Paulo e Porto Alegre opõem-se nitidamente ao Rio de Janeiro, Recife e Salvador, sobretudo no que tange ao contexto de final de sílaba no interior de vocábulos como carta: os primeiros privilegiam as variantes apicais, e os segundos, as não vibrantes posteriores, como a fricativa velar e a aspirada. Se o grau de semelhança entre as formas de expressão dos membros de uma comunidade linguística é proporcional ao grau de intercâmbio social que mantêm entre si, pode-se afirmar que a variação sociocultural ou diastrática deriva da tendência para a maior semelhança entre os atos verbais dos indivíduos participantes de um mesmo setor socioeconômico e cultural. As diferenças linguísticas são motivadas por diferenças de ordem socioeconômica, como nível de renda familiar, grau de escolaridade; de ordem sociobiológica, como idade e sexo/gênero; de ocupação profissional, entre outros. Podem-se apontar alguns traços que caracterizam o desempenho verbal de indivíduos pertencentes a baixos estratos socioculturais na pronúncia mais ou menos generalizada da redução e desnasalização do ditongo /eyN/ em posição de sílaba átona final, como se observa em palavras, como “homem”, pronunciada “homi”; “devem”, pronunciada “devi”, caso em que, simultaneamente afeta uma regra de concordância verbal. Outro traço é o apagamento de fricativas alveolares surdas [s] ou sonoras [z], também em posição de sílaba átona final, observável em palavras como “vamos”, pronunciada “vamo”, e em sintagmas nominais pluralizados,como “os meninos”, pronunciado “os menino”, que, nesse caso, afeta também uma regra de concordância nominal. Ainda está por ser feito um retrato amplo da realidade diatópica e diastrática do Brasil, embora os caminhos que levam a esse resultado já estejam abertos com o desenvolvimento do projeto Atlas Linguístico do Brasil-ALIB (cf. Aguillera, 2005). Esse retrato permitiria confirmar ou rejeitar a hipótese de que as divisões dialetais do Brasil são menos geográficas que sociais e que a maneira de falar distinguiria mais um falante escolarizado de um não escolarizado do mesmo espaço geográfico, do que dois falantes do mesmo nível de escolaridade de regiões diferentes (cf. Leite e Callou, 2005, p. 17-8). A distribuição social das formas em variação adquire valores em função do poder e da autoridade que os falantes detêm nas relações econômicas e culturais. Assim, uma variante, como presença de marcação de pluralidade no SN, é conhecida como detentora de prestígio social entre os membros da comunidade, sendo por isso chamada variante de prestígio ou padrão. Já sua alternativa, a ausência de marcação de pluralidade, é conhecida como variante não padrão ou estigmatizada. É óbvio que a distribuição de valores sociais se torna institucionalizada pela elevação de uma variedade de prestígio à condição de norma padrão6 que, como tal, passa a ser veiculada no sistema escolar, nos meios de comunicação, na linguagem oficial do Estado etc. O mecanismo é simples: como os detentores da variedade de prestígio controlam o poder político das instituições, em virtude do poder emanado das relações econômicas e sociais, são também detentores da autoridade de vincular a língua à variedade com a qual mantêm maior contato. Com base na inevitabilidade social do processo de padronização linguística, não seria difícil estabelecer uma norma para o português brasileiro com base na variedade falada pelas pessoas cultas e urbanas. Pesquisas recentes como a desenvolvida no âmbito do Projeto NURC (cf. Castilho, 1990) e do Projeto de Gramática do Português Falado (cf. Castilho, 2006) fornecem um quadro suficientemente amplo e nítido de como se expressam os falantes cultos de núcleos urbanos mais cosmopolitas. No entanto, até aqui a variedade empregada para o estabelecimento de uma norma padrão nas gramáticas normativas vigentes é extraída de textos escritos e literários, não raramente do passado. Segundo Faraco (2008), a construção de um padrão brasileiro foi, já na origem, excessivamente artificial: em vez de adotar como referência a norma culta comum, a elite letrada conservadora adotou como parâmetro um modelo lusitano de escrita, praticado por escritores portugueses do romantismo (cf. Faraco, 2008). Esse descompasso se concretiza particularmente em prescrever como corretas normas já não empregadas por nenhum falante culto. Exemplo ilustrativo é a regência preposicionada do verbo assistir na acepção de “ver”, “estar presente”, em oposição a assistir na acepção de “prestar assistência”, que nenhum falante culto ainda considera. A essa norma estreita, que persiste em ignorar a norma culta urbana realmente falada no país, Faraco (2008) se refere ironicamente como norma “curta”; suas prescrições têm sido reforçadas pelos consultórios gramaticais, pelos manuais de redação dos grandes jornais e pelos elaboradores de concursos públicos. Voltando para a diversidade, vale a pena lembrar o caso das chamadas linguagens especiais. Fatores como idade, gênero e ocupação motivam a distinção entre a linguagem comum e esse tipo especial de variedades. Corresponde à primeira o inventário lexical e sintático referente aos conceitos comuns à maioria dos membros de uma comunidade linguística. Já as linguagens especiais contrastam com a comum por consistirem em variedades dialetais próprias das diversas subcomunidades linguísticas, cujos membros compartilham uma forma especial de atividade, sobretudo a profissional, mas também a científica e a lúdica. Os jargões científicos, as gírias, são subcategorias compreendidas no âmbito das linguagens técnicas. As diversas modalidades de gírias distinguem-se de outros tipos de linguagens técnicas em função das motivações sociais que acionam seu surgimento, a mais importante das quais é a necessidade de sigilo, principalmente no caso do desenvolvimento de variedades linguísticas próprias de grupos fechados, como os que vivem à margem da sociedade. Há, todavia, outras motivações que acionam o surgimento da gíria. Além da necessidade de criação de neologismos por força de necessidades expressivas, há uma demanda especial, em certos grupos, por forte coesão social, cuja consequência é a exclusão, via linguagem, dos que dela não são membros. Esse tipo de motivação para a criação de gíria caracteriza especialmente a linguagem do adolescente.7 A diversidade linguística não se restringe a determinações motivadas por origem sociocultural e geográfica. Um mesmo indivíduo pode alternar entre diferentes formas linguísticas de acordo com a variação das circunstâncias que cercam a interação verbal, incluindo o contexto social, propriamente dito, o assunto tratado, a identidade social do interlocutor etc. Um professor universitário, por exemplo, pode pôr-se às voltas com pelo menos três diferentes situações linguísticas: no restaurante universitário conversando sobre banalidades com seus alunos; na sala de aula, exercendo sua profissão; e no auditório, dando uma palestra. É óbvio que essas diferentes circunstâncias exigem progressivamente maior frequência na escolha de formas cultas de expressão. Assim, na situação de conferencista, não soaria adequado o emprego, por exemplo, de “cê” por “você”, de “tá” por “está”, perfeitamente plausíveis na conversa informal do restaurante universitário. A variação estilística ou de registro é o resultado da adequação da expressão às finalidades específicas do processo de interação verbal com base no grau de atenção que se presta à forma. O grau de atenção é proporcional ao grau de formalidade da situação: quanto menos coloquiais as circunstâncias, tanto maior a preocupação com a forma de expressão. Se a competência do falante inclui duas formas de expressão, como “Por favor, poderia me passar o açúcar”, em contraste com “Ô meu chapa, vai ficar alugando o açucareiro até quando?”, é óbvio que o primeiro enunciado seja selecionado num jantar com participantes estranhos ao círculo íntimo do falante, enquanto o segundo seja selecionado numa situação em que estejam presentes interlocutores do círculo íntimo do falante. É possível considerar dois limites extremos na transição entre os diferentes estilos possíveis: o estilo informal, em que é mínimo o grau de atenção e o estilo formal, em que é máximo o grau de atenção. A diferença essencial entre os dois graus extremos reside nos diferentes graus de adesão ao uso de formas padrão ou variantes de prestígio: no estilo informal a adesão às formas prestigiadas ou cultas é menor do que no estilo formal. Outro aspecto a destacar é a forte vinculação entre a variação social e a estilística. O indivíduo deve interiorizar, em sua competência linguística, as formas alternativas padrão e não padrão sobre as quais incide a seleção que ele opera conforme variam as circunstâncias de interação. Em geral, indivíduos de baixa escolarização não desenvolvem a capacidade de operar com regras variáveis. Nesse caso, como lhes são vedadas as possibilidades de adaptar seu estilo às circunstâncias de interação, a língua que usam acaba representando uma poderosa barreira para todo tipo de ascensão social que depende de capacidade verbal. 4. POR QUE NÃO IGNORAR A VARIAÇÃO LINGUÍSTICA Justamente por acreditarem que a variação consiste numa espécie de caos organizado (Tarallo, 1985), cujos princípios merecem ser escrutinados, é que os sociolinguistas voltaram a atenção para seu exame. A variável como uma unidade estrutural representou uma inovação na teoria da linguagem com o surgimento da sociolinguística: até então, todas as unidades linguísticas— fones, fonemas, morfemas, sintagmas e orações — eram unidades de natureza invariante, discreta e qualitativa. A variável, como unidade de análise, tem natureza, por definição, variante, contínua e quantitativa (cf. Labov, 1966). É variante no sentido de que é realizada diferentemente em diferentes circunstâncias; é contínua no sentido de que certas variantes, como a pronúncia retroflexa de /r/, assumem significado social com base na distância da forma padrão, a vibrante alveolar; é quantitativa no sentido de que a relevância metodológica das variantes que constituem uma variável é determinada pela frequência relativa de cada um em relação aos diferentes fatores que as restringem. O estudo de uma unidade com as características da variável linguística só é possível no interior de um arcabouço teórico que abandone o axioma ainda vigente de categoricidade, o que de pronto se deu com a sociolinguística. No entanto, seria interessante verificar por que se voltou a atenção para a variação somente nos últimos trinta anos. Esquivar-se de lidar com o caos é uma fragilidade inerentemente humana e talvez seja por isso, e não exatamente por ignorar a existência da variação, que a investigação linguística excluiu-a de seus critérios de relevância. Não é por ignorá-la, porque, desde o século passado, os linguistas manifestam reconhecimento de sua existência. Em 1885, Schuchardt (apud Chambers, 1995) já notava que a pronúncia do indivíduo não está livre de variações. Algumas décadas mais tarde, Sapir ([1921] 1975, p. 147) alegava que todos reconhecem que a linguagem é variável. Mesmo assim, por que razão a diversidade não foi sistematicamente analisada até a inauguração da sociolinguística no início dos anos 1960? O desenvolvimento na teoria linguística de um sentimento de aversão ao caos, à variação, cuja consequência foi gerar uma concepção monolítica de linguagem, baseia-se em uma posição metodológica, cultivada pelas teorias estruturalista e gerativista, que associam rigorosamente a estrutura linguística à homogeneidade. Embora esteja presente na concepção chomskiana de linguagem, o primeiro postulado emergiu originalmente do corte metodológico sobre o fenômeno linguístico que Saussure executou ao cunhar a famosa dicotomia língua/fala: “enquanto que a linguagem é heterogênea, a língua assim delimitada é de natureza homogênea” (Saussure, [1916] 1977, p. 23). Esse postulado radica no fato de que a língua, o sistema gramatical, é extraído da turbulência vertiginosa da fala, de que emergem os usos sociais da linguagem. Fica excluída, in limine, a aparente ilegalidade dos fenômenos sociais (cf. Sapir, 1929, apud Chambers, 1995). Uma consequência dessa dicotomia é que se pode estudar o sistema linguístico sem recorrer a uma comunidade de fala e, embora o estruturalismo saussuriano considerasse a língua “a parte social da linguagem”, os linguistas que assumiram esse compromisso teórico não tratam absolutamente do aspecto social: consideram que quaisquer explicações sobre os fatos linguísticos devem ser extraídas de outros fatos linguísticos (a linguística interna), não de algum dado externo relacionado ao comportamento social dos usuários. Trabalham, ademais, com um ou dois informantes, quando não descrevem o sistema linguístico com base no exame do conhecimento que mantêm a respeitos de suas regras de funcionamento. Labov ([1972] 2008) alude a essa contradição metodológica como o “paradoxo saussuriano”: se a língua é um “um sistema gramatical que existe virtualmente em cada cérebro”, como afirma Saussure ([1916] 1977, p. 21), é possível obter dados a respeito de seu funcionamento mediante o testemunho de um único informante, quando não do próprio investigador. Já dados a respeito do funcionamento da fala, a parte individual da linguagem, somente podem ser obtidos mediante o exame do comportamento verbal de um grupo de indivíduos. Esse paradoxo — a investigação do aspecto social não demanda mais que um informante, enquanto a investigação do aspecto individual prescinde da observação da linguagem em uso no contexto social — é o resultado direto do axioma da categoricidade, presente já em Saussure ao fazer a opção metodológica pela língua. A tradição linguística em favor da categoricidade dos fenômenos observáveis, iniciada na distinção saussuriana língua/fala, teve em Chomsky o mais importante continuador na linguística contemporânea, como mostra claramente a seguinte citação: A teoria linguística se preocupa primariamente com um falante-ouvinte ideal de uma comunidade de fala completamente homogênea, que conhece perfeitamente sua língua e, ao aplicar esse conhecimento ao desempenho real, não é afetado por condições gramaticalmente irrelevantes, tais como limitações de memória, distrações, mudanças de atenção e de interesse, e erros (casuais ou característicos). (Chomsky, 1965, p. 3)8 Outra citação, agora de Lyons, acrescenta ainda mais clareza a esse ponto: Quando dizemos que duas pessoas falam a mesma língua, estamos necessariamente fazendo abstração de todas as espécies de diferenças na sua fala. [...] Para simplicidade de nossa exposição, admitiremos que a língua que descrevemos é uniforme — entendendo por uniforme que ela é indiferenciada dialetal e estilisticamente — o que é, logicamente, uma “idealização” dos fatos — e que todos os falantes nativos estão de acordo se um enunciado é aceitável ou não. (Lyons, 1979, p. 146-7) Deduz-se, assim, que é possível desenvolver cabalmente uma teoria linguística adequada com base num comportamento verbal uniforme e homogêneo, sem espaço para a variação. Como resultado desse princípio, supõe-se, em segundo lugar, que os falantes têm acesso a suas intuições acerca das regras uniformes de funcionamento da linguagem e podem assim relatá-las, o que exclui, em consequência, a necessidade de se introduzir numa comunidade de fala em busca de dados reais. Com o sucesso da análise abstrata dos fenômenos linguísticos, operada, inicialmente, pelo paradigma estruturalista e, em seguida, pelo gerativista,9 não parecia haver qualquer razão para o pesquisador se preocupar com a busca de dados. A exclusão da relação entre a linguagem e o contexto social, motivada pelo axioma de categoricidade, foi, de certa maneira, conveniente para o linguista, que, por tendência, sempre preferiu trabalhar com seu próprio conhecimento das regras de funcionamento da linguagem. Entretanto, a idealização da comunidade de fala não significa, obviamente, ignorar a existência da variação. Que tratamento dar a ela no contexto de uma concepção abstrata de linguagem? As explicações ficaram sujeitas a duas alternativas: (i) as variantes pertencem a diferentes sistemas linguísticos coexistentes e a alternância entre elas não passa de um exemplo de mistura dialetal ou de uma mudança de código (code-switching); (ii) a seleção das variantes, que alternam de um modo imprevisivelmente livre (free variants), é um fenômeno secundário da superfície, isto é, situado abaixo do nível da estrutura linguística. Para ilustrar essas duas posições, poderíamos considerar a aplicação da regra de concordância verbal na língua portuguesa. A primeira explicação afirma que o falante fica alternando entre dois diferentes sistemas, ou faz uma mistura dialetal, sempre que muda de um enunciado, em que o verbo concorda em número com seu sujeito, como “Aí chegaram uns caras”, para um enunciado, como “Aí chegou uns caras”, em que o verbo não estabelece concordância com o SN sujeito. A segunda explicação afirma que a concordância é, na gramática do falante, uma regra facultativa, estando as duas formas verbais em variação livre. A noção de sistemas coexistentes sustenta a ideia de que os falantes manteriam separadas as duas gramáticas, o que lhes permitiria mudar variavelmente de uma para outra. É difícil de sustentar essa noção em virtude de uma consequência que dela se infere: a de que os falantes seriam capazes de manter consistentemente um sistema até que alguma mudança nas circunstâncias de uso acionasse o segundosistema disponível. Elementos misturados dos dois sistemas não deveriam, em princípio, ocorrer enquanto as condições do evento de fala permanecessem inalteradas. A noção de variante livre, que se sustentaria na ideia de que formas alternativas não passam de meras flutuações casuais, apresenta também consequências discutíveis. Se duas variantes são realmente livres, segue-se forçosamente que elas não podem ser condicionadas por nenhum fator, embora a observação mais desinteressada possível do fluxo de fala mostre claramente que variantes em uso acham-se sempre fortemente vinculadas pelo menos a fatores sociais, o que torna seu comportamento empiricamente previsível e passível de formulação teórica. A inadequação e a fragilidade desse tipo de consideração se tornam ainda mais evidentes se voltarmos a atenção para processos variáveis que se situam na intersecção entre a gramática e a fonologia, como os fenômenos de simplificação de grupos consonantais no inglês negro norte-americano, como “bold/bol’ ” (atrevido) e “rolled/roll’ ” (rolou/rolava). A questão central aqui diz respeito diretamente à própria estrutura linguística: grupos consonantais da forma CVC+C10 que envolverem um morfema de pretérito, como rolled, devem receber o mesmo tratamento que os grupos da forma CVCC, que não perdem nenhuma informação gramatical? Teorias linguísticas de base formal não possuem critérios nem meios adequados para expressar a configuração desse fato, uma vez que tanto “bold” quanto “rolled” se incluiriam na mesma regra opcional ou facultativa. Só um tratamento quantitativo da linguagem em uso no contexto social permite observar que as formas que envolvem informação de pretérito, como “rolled”, são menos frequentemente simplificadas que as que não envolvem esse tipo de conteúdo (cf. Labov, [1972] 2008). 5. UMA EXPLICAÇÃO HISTÓRICA PARA O FORMALISMO Bakhtin forneceu uma das hipóteses mais apaixonantes para a explicação da tendência da teoria da linguagem para o tratamento categórico dos fenômenos linguísticos e, como um marxista convicto, localizou todas as causas na história do pensamento linguístico ocidental. O enfoque filológico com o qual a linguística do século XX pensou romper é determinante para a apreciação do pensamento contemporâneo da teoria da linguagem. Desde os primeiros estudos hindus e gregos, remontando aos séculos IV e V a.C., a linguística vem elaborando suas categorias com base em monólogos mortos, por exemplo, a inscrição em monumentos antigos. E, de fato, o mais antigo tratado sobre a linguagem, produzido na Índia, é uma interpretação das palavras do Rigveda, que já haviam ficado obscuras; o objetivo principal do estudo linguístico em Alexandria durante o período helenístico foi a explicação dos textos dos poetas da Antiguidade, principalmente Homero (cf. Câmara Jr., 1975). Bakhtin entende que a própria enunciação monológica é uma abstração, já que qualquer ato enunciativo, ainda que no âmbito da linguagem escrita, representa a resposta a algum outro texto, constituindo-se, desse modo, num elo de uma cadeia de atos de fala. No entanto, o filólogo-linguista não é capaz de perceber o caráter dialético das enunciações; pelo contrário, “compreende-as como um todo isolado que se basta a si mesmo e não lhe aplica uma compreensão ideológica ativa...” (Bakhtin, 1979, p. 84). A concepção de uma língua isolada, fechada e monológica, desvinculada de seu contexto linguístico real, corresponde à compreensão passiva que filólogos e sacerdotes tinham de uma língua estrangeira, escrita e morta. A história da linguística é, com efeito, um desfile completo desse tipo de investigação. Na Idade Média, a emergência de línguas nacionais nos vários Estados, que constituíram o Império Romano, provocou reforço no empenho normativista em conservar a “pureza” do latim como língua universal de cultura. Tamanho era o esforço, que as línguas vernáculas emergentes eram, elas próprias, consideradas “estrangeiras” aos escritores, cujo ponto de referência era o latim. Já a Filologia greco-latina iniciou, praticamente no Renascimento, o estudo de decifração e preservação de textos arcaicos, procedimento que se desenvolveu ao longo de toda a história (cf. Câmara Jr., 1975, p. 22-3). A partir do início do século XIX, a literatura e a filosofia hindus se difundiram na Europa, em razão, principalmente, da atuação de eruditos ingleses, contribuindo para o fortalecimento do Romantismo em contraposição à influência e ao domínio da cultura greco-latina. Embora não fosse linguista, foi Friedrich Schlegel quem chamou a atenção para a Índia, com o propósito de pregar o Romantismo, difundindo a cultura e a filosofia hindu em oposição à filosofia greco-latina na Europa. Seu irmão, August Schlegel, esse sim um linguista, foi um dos fundadores da filologia sânscrita. Assim, as principais obras da cultura e da religião hindus passaram a ser debatidas com o mesmo espírito ideológico que a filologia clássica aplicava aos grandes autores da Antiguidade greco-latina. O estudo filológico do século XIX estendeu-se também às línguas medievais da Europa, em razão da importância que o Romantismo atribuía aos aspectos culturais da Idade Média. A orientação dos paradigmas vigentes na linguística, até aproximadamente a metade do século XX, para a criação de um objeto de estudos estável e uniforme, desligado da realidade social, reflete o papel histórico que a palavra estrangeira desempenhou na formação histórica de todas as civilizações. Passemos a palavra a Bakhtin: A palavra estrangeira foi, efetivamente, o veículo da civilização, da cultura e da religião, da organização política (os sumérios em relação aos semitas babilônicos; os jaféticos em relação aos helenos; Roma, o cristianismo, em relação aos eslavos do leste etc.). Esse grandioso papel organizador da palavra estrangeira — palavra que transporta consigo forças e estruturas estrangeiras e que algumas vezes é encontrada por um jovem povo conquistador no território invadido de uma cultura antiga e poderosa (cultura que, então, escraviza, por assim dizer, do seu túmulo, a consciência ideológica do povo invasor) — fez com que, na consciência histórica dos povos, a palavra estrangeira se fundisse com a ideia de poder, de força, de santidade, de verdade, e obrigou a reflexão linguística a voltar-se de maneira privilegiada para seu estudo. (Bakhtin, 1979, p. 87) Uma premissa fundamental da linguística contemporânea é justamente o enfoque na modalidade oral da linguagem, sendo até comum vê-lo como princípio programático, nos manuais correntes de divulgação, para opor a linguística à filologia. Ainda assim, na interpretação de Bakhtin (1979), o linguista continua a aplicar às línguas vivas a metodologia e as categorias analíticas adquiridas do longo convívio com as línguas mortas-escritas- estrangeiras. O resultado desse tratamento é a concepção de linguagem que o norteia, que é a de um objeto de estudos isolado-fechado-monológico, absolutamente desvinculado do contexto social.11 Para resolver problemas da estrutura linguística, a alternativa teórica introduzida por Labov, na década de 1960, postula, por princípio, que a heterogeneidade é inerente ao sistema linguístico; além disso, concebe a análise da língua com base num conjunto de formas que se manifestam, de fato, no contexto social. Nessa perspectiva, a língua é constituída por um conjunto de fenômenos não estritamente linguísticos, mas também extralinguísticos, que participam ativamente da aplicação de uma regra, favorecendo-a ou desfavorecendo-a. É possível afirmar que se inaugurou aí, com o advento da sociolinguística, um dos primeiros movimentos orquestrados, não obviamente o único, contra a tendência tradicional de considerar a língua um objeto de estudos tão isolado do uso que lhe dá a configuração de um cadáver que se disseca. A perspectiva inaugurada por Labov pretendeu superar o idealismo homogeneizante da linguística contemporânea: não há fronteira nítida entre língua e fala ou competência e desempenho; ao contrário,o objeto de estudos é a língua de fato em uso no contexto social, em que predominam as situações mais informais. No entanto, para sustentar a ideia de que fenômenos reais, observáveis nos dados empíricos coletados na comunidade de fala, é que devem constituir o verdadeiro substrato da análise linguística, Labov (1969) adotou o formalismo da gramática gerativa para representar esse tipo de processos de variação. Essa metodologia incluiu inovações na regra de reescrita do paradigma chomskiano, como a adoção de colchetes angulares para referir- se a variáveis dependentes, e expoentes gregos para indicar o grau de influência de um condicionamento sobre o outro, transformando, portanto, na representação formal, a noção de regra opcional em regra variável. Apesar das substanciais descobertas de regularidades sob a égide da noção de regra variável, esse conceito entrou rapidamente no fogo cerrado da crítica, quando, na década de 1970, o conceito foi estendido aos fenômenos sintáticos com os mesmos métodos aplicados aos fenômenos fonológicos. A dificuldade de lidar com o fato de que dificilmente duas variantes sintáticas contêm o mesmo significado representou uma crise no estatuto metodológico da teoria variacionista, em razão de forte reação provocada por Lavandera (1978), com réplica de Labov (1978), e também por Romaine (1981) e García (1985). O ataque de Romaine mirou o aspecto indutivista da teoria, enquanto os de Lavandera e García, o estatuto teórico da regra variável, quando aplicada à sintaxe. A polêmica entre Lavandera (1978) e Labov (1978) se resume à questão da real equivalência semântica entre duas variantes sintáticas. O aspecto crucial é que a noção de equivalência semântica implica uma redução muito drástica da noção de significado referencial, se a sociolinguística insistir em manter o princípio de que duas formas alternativas são variantes se representarem o mesmo valor de verdade no mesmo contexto de ocorrência. Em vez de operar com essa concepção extremamente limitada de significado, Lavandera (1978) propõe substituir o conceito de equivalência semântica pelo de comparabilidade funcional.12 Garcia (1985) sugere compartilhar a mesma opinião ao tecer críticas ao modo como Weiner e Labov (1983) veem as noções de escolha entre construções passivas e ativas sem agente. Um dos objetivos desses autores é apresentar um estudo quantitativo dos fatores que determinam a preferência na seleção de construções passivas sobre as ativas por falantes do inglês, e esclarecer a questão qualitativa crucial de quais traços sintáticos e quais traços semânticos do contexto determinam a escolha entre as duas alternativas. Para Garcia (1985), a falta de clareza que Weiner e Labov (1983) têm do conceito de escolha linguística estaria supostamente arraigada na visão de linguagem que eles compartilham, identificada por Garcia como um comportamento governado por regras. Dessa perspectiva, a tarefa do linguista deveria ser somente descobrir e descrever as regularidades ocultas que “governam” o aparente caos e grau de arbitrariedade do uso de uma língua, uma visão que é altamente compatível com o desejo variacionista de assumir a equivalência linguística de diferentes expressões e dividir a distribuição de formas governadas por regras em categóricas e variáveis. É justamente esse postulado que, segundo Garcia (1985), esvaziaria o termo escolha do conteúdo linguístico que ele implica. Seria, portanto, sistemática e significativamente abandonado nos estudos variacionistas justamente o valor comunicativo das alternativas envolvidas, a diferença que elas fazem para o que se diz quando se escolhe uma forma em vez de outra. O fato de que, nesses termos, o falante nunca faz uma escolha, parece a Garcia (1985) particularmente paradoxal e especialmente deplorável num enfoque para o qual é supostamente básica a natureza social da linguagem (Garcia, 1985, p. 220). 6. VIAS ALTERNATIVAS Eckert (2005) chama a atenção para uma nova perspectiva metodológica, que retraduza o conceito de variável linguística, entendendo- o como o lugar da construção do significado social da linguagem. Ao fazer sua proposta, todavia, reconstrói a trajetória dos últimos 40 anos de pesquisa sociolinguística, em que distingue três ondas de prática analítica. A primeira onda nos estudos variacionistas, lançada pelo estudo de Labov sobre a cidade de Nova York (1966), estabeleceu correlações entre variáveis linguísticas e categorias sociais primárias, como classe socioeconômica, gênero, idade, escolaridade etc. Os padrões regulares e sistemáticos de covariação social e linguística levantaram questões sobre relações sociais subjacentes às categorias sociais primárias, o que conduziu ao surgimento da segunda onda, caracterizada por estudos etnográficos de populações mais localmente definidas. Os estudos etnográficos enfocam comunidades menores por períodos de tempo relativamente longos, com o objetivo de descobrir as categorias sociais localmente mais salientes. Essas categorias podem ser instanciações locais das categorias primárias que guiam os estudos quantitativos, mas o traço distintivo crucial desse tipo de estudos é a descoberta do lugar dessas categorias na prática social local. Segundo Eckert (2005), a primeira via etnográfica, quantitativamente orientada da variação, aberta por Labov no estudo realizado na ilha Martha’s Vineyard, foi depois trilhada por outras pesquisas realizadas na Europa. No enfoque etnográfico de Belfast, Milroy (1980) avançou-o mais, ao enfocar comunidades de classe operária e examinar a relação entre engajamento local e uso do vernáculo, correlacionando o uso de variáveis vernaculares locais com a densidade e a multiplicidade da rede de relações sociais do falante. A terceira onda, que se desenvolveu mais recentemente, centra o foco na variação vista não como o reflexo do lugar social num ponto da escala, mas como um recurso para a construção de significado social. É justamente Eckert (2000) que se tem voltado para a necessidade de conectar essas categorias sociais mais abstratas, arraigadas na experiência do falante, com as comunidades imaginárias mais amplas, centrando foco na construção do conceito de comunidade de prática. Uma comunidade de prática é um agregado de pessoas que se juntam para engajar-se em algum empreendimento comum. Na esteira desse engajamento, a comunidade de prática desenvolve meios para fazer coisas que se traduzem em práticas sociais, que envolvem a construção de uma orientação compartilhada em relação ao mundo em volta. O conceito-chave para o processo de construção é o de prática estilística. Até aqui, nos estudos variacionistas, o estilo tem sido tratado como ajustes à (in)formalidade da situação mediante o uso de variáveis individuais. A face renovada de estilo o identifica com o modo como os falantes combinam variáveis para criar modos distintivos de fala, que fornecem a chave para a construção da identidade social. Continuamente, os falantes atribuem significado social à variação de um modo consequente, situação que os colocam como verdadeiros protagonistas do processo de variação, e que o trabalho de Eckert (2000) parece querer recuperar. 7. A SOCIOLINGUÍSTICA E O ENSINO DA LÍNGUA MATERNA 7.1. O conflito entre norma e variação A natureza discriminatória que a linguagem pode assumir leva-nos, como linguistas, a refletir sobre a questão que mais nos afeta: em que grau o processo de ensino da língua materna contribui para o agravamento ou para a simples manutenção da situação de exclusão a que está sujeita a população socialmente marginalizada? Certamente são numerosos os aspectos que respondem a essa questão. Nenhum, porém, é ainda hoje mais relevante que o da relação de conflito que se estabelece entre a cultura imposta como referencial exclusivo e as experiências vivenciadas, especialmente pelo jovem provindo de camadas marginalizadas. Enfocando essa relação de um ângulo estritamente linguístico, delineia-se o conflito no âmbito da polarização entre a língua de fatoensinada na escola, como referencial exclusivo, que podemos denominar norma padrão, e o dialeto social que o aprendiz domina, de acordo com sua origem sociocultural. Ao assumir, de fato e de direito, o princípio da heterogeneidade inerente à linguagem, a linguística moderna, especialmente a Sociolinguística, eliminou preconceitos, ao afirmar, axiomaticamente, que todas as línguas e variedades de uma língua são igualmente complexas e eficientes para o exercício de todas as funções a que se destinam; que nenhuma língua ou variedade dialetal impõe limitações cognitivas na percepção e na produção de enunciados. A tradição pedagógica replica, entretanto, que, na prática de quem educa, a teoria é bem outra: há uma e somente uma língua correta e eficaz a todas as circunstâncias de interação, que se define como norma padrão. Esse conceito, que não implica nenhuma variedade específica de linguagem, representa uma forma institucionalizada de imposição baseada em registros escritos e literários. Adquiriu o direito de ser a língua e de aplicar às demais variedades cuidados repressivos. Sabe-se perfeitamente como é a variedade culta urbana do Brasil, mas a norma padrão não a reconhece, limitando-se a repetir regras das gramáticas portuguesas instituídas no século XVIII. A fusão, numa coisa só e indiscriminada entre língua e norma padrão, acaba passando por uma espécie de variedade neutra e universal, modo de existência próprio dos mecanismos tipicamente ideológicos. Contrariando a linguística em seus princípios, a pedagogia da língua materna elege o correto e o incorreto sua dicotomia predileta para discriminar e, ao mesmo tempo, selecionar. Sem qualquer respaldo nos fatos linguísticos da variedade urbana culta, mas baseada solidamente em motivações sociais, que a rubrica do incorreto mal encobre, a tradição pedagógica acaba por liquidar o último reduto das camadas marginais — justamente o que lhes é peculiar e identificador: sua própria variedade de linguagem. No lugar dela nada repõe, uma vez que perde o tempo que tem para o trabalho reflexivo sobre a linguagem, repetindo, ano a ano, as mesmas inúteis listas de exceções de regras, a mesma classificação gramatical. Esse procedimento estigmatiza indelevelmente formas discursivas complexas e eficazes do quotidiano e nada repõe. As marcas são, no entanto, certamente fortes e profundas. O sentimento de aversão que a pedagogia da língua cria é de tal monta que os danos podem ser irreversíveis. Um dos danos mais simples de detectar é o horror que as crianças sentem diante da página em branco, seguido da inevitável pergunta: “Quantas linhas, professor?”. Assim, ao impor um modelo de linguagem, sem qualquer direito a apelação, com exclusividade e em substituição à variedade que o aluno já domina, como se simplesmente nada dominasse, a escola parece simplesmente ignorar a diversidade linguística. O problema da relação entre norma padrão e diversidade linguística, aparentemente pedagógico, cruza linhas com a questão social e linguística da adequação de variedades não cultas como sistemas de comunicação. Para um sociolinguista, variações linguísticas podem classificar-se com base numa oposição entre um modelo da diferença verbal e um modelo da deficiência verbal. O modelo da deficiência considera diferenças verbais como desvios da norma padrão, que, como vimos, está mais próxima das classes mais privilegiadas. O modelo da diferença considera que as variedades populares constituem um sistema linguístico nem deficiente, nem inerentemente inferior ao de variedades cultas (cf. Wolfram e Fasold, 1974). O ensino de língua na escola pratica tradicionalmente o modelo da deficiência. O principal pressuposto da tradição normativa é que cabe à escola o papel de compensar supostas carências socioculturais. Decorre desse pressuposto que a principal tarefa do ensino é substituir formas das variedades populares por formas da norma padrão. A esse modo de existência, a Sociolinguística propôs uma alternativa fundamental, segundo a qual variações de linguagem não devem passar por um crivo valorativo, já que não são mais que formas alternativas que o sistema linguístico põe à disposição do falante. Nesse caso, é outra a tarefa fundamental da pedagogia da língua materna: cumpre-lhe, por um lado, atualizar constantemente a norma padrão, substituindo prescrições ultrapassadas, de base escrita e literária, por normas emanadas da variedade culta urbana, já sobejamente conhecida; cumpre-lhe, por outro lado, despertar a consciência do aluno para a adequação das formas às circunstâncias do processo de comunicação. Por trás desse programa, há alguns pressupostos, como o de que formas socialmente estigmatizadas operam como estruturas linguísticas tão complexas e eficazes quanto as formas mais prestigiadas. Outro pressuposto, mais geral, afirma que a norma padrão não constitui um modelo universal — a língua. É apenas a variedade mais prestigiada, cujo formato atual decorre de registros escritos e literários sem qualquer relação com o padrão culto real. Desfaz-se, assim, aquela fusão equivocada de língua e norma padrão, anteriormente mencionada. 7.2. Ação normativa e violência simbólica Impor com exclusividade a norma padrão, misturar uma pitada de intolerância para com a variedade que as crianças dominam são os ingredientes de uma receita infalível que se resume na rejeição à língua e no desenvolvimento de um processo de insegurança linguística. Para as crianças socioeconomicamente favorecidas, o mal é certamente menor, embora presente também. Como, desde a primeira infância, essas crianças se acham familiarizadas com a variedade urbana culta, o modelo escolar, baseado na norma padrão, representa uma extensão parcial do processo de socialização iniciado pelos pais. Desse modo, parece impor-se uma correlação: quanto maior a familiaridade cultural que o alunado mantém com a norma padrão veiculada pelo ensino, tanto maior a probabilidade de êxito ao longo do processo escolar. Nesse aspecto, as camadas marginalizadas nadam contra a maré. A modalidade de cultura que a escola desenvolve afina-se mais com a das classes dominantes e com a imposição da norma padrão. O problema é maior quando essa modalidade se impõe ao ensino como referencial exclusivo a que outros modos de existência cultural acabam por submeter- se. Tal cultura é arbitrariamente imposta, já que, na relação pedagógica em si mesma, abstratamente considerada, nada há que leve a instituir a matriz de valores da classe dominante como cultura referencial exclusiva a transmitir. Objetivamente, a ação pedagógica reveste-se, assim, de violência simbólica, pois decorre da imposição, por um poder arbitrário, de uma cultura também arbitrariamente selecionada, e que, de forma alguma, pode ser deduzida de princípios universais. Na realidade, essa seleção é arbitrária, porque se baseia nas relações de força entre os grupos sociais (Bourdieu e Passeron, 1975). O papel que a norma padrão desempenha nesse jogo é óbvio: o valor simbólico das variedades linguísticas disponíveis cultas e populares está em função da distância que as separa da norma padrão que a escola impõe. A instituição não reconhece a legitimidade da variação linguística. Muito pelo contrário, acaba por submetê-la ao critério de correção. O que passa é um paradigma de expressões vinculado ao registro formal de uma modalidade escrita já ultrapassada. O que sobra é proscrito como realizações imperfeitas e deficientes, em confronto com a matriz de valores eleita. Assim, o valor simbólico das diferentes variedades linguísticas depende sempre da distância que as separa da norma padrão, que a escola impõe sob a condição de um modelo neutro e universal. Por conseguinte, a desigual distribuição do capital linguístico escolarmente rentável (Bourdieu e Passeron, 1975) é um dos elos mais dissimulados da relação entre sucesso escolar e origem social. Para ocultar e dissimular esse modo de existência, a instituição escolar, aqui no Brasil e em outras partes do mundo, desenvolve princípios,como o da privação cultural e o da deficiência verbal, deslocando a causa de si própria para o aluno. Em termos linguísticos, acredita na estratégia erradicacionista do ensino compensatório, que procura liquidar as formas das variedades populares, suprindo a lacuna com outras alternativas, próprias da norma padrão. O problema é que essa estratégia provoca conflitos entre diferentes sistemas de valores e estes, por sua vez, desencadeiam obstáculos sérios à aquisição da própria norma padrão (Camacho, 1984). A emergência de conflitos, entre sistemas diversos de valores, dá vazão ao surgimento de questões ideológicas. A variedade linguística de uma comunidade é fator de identificação social de seus membros. Se for estigmatizada pela escola, em contraponto à norma padrão, instaura-se um conflito entre os valores simbólicos, que a instituição pretende inculcar, e os que o aluno tem para compartilhar com os demais membros de sua própria comunidade e que o identificam com seus pares (cf. Labov, 1964). Uma consequência drástica desse conflito pode ser a rejeição tácita da própria norma padrão, em termos de ensino de língua, e de outros valores da classe dominante. Em termos práticos, tudo redunda em evasão e repetência escolar. A solução desse conflito parece muito evidente. Em primeiro lugar, é necessário atualizar constantemente a norma padrão com base nos registros da variedade culta, modalidades escrita e falada. Em segundo lugar, é acreditar no modelo da diferença e adotar outra estratégia para o ensino da língua materna. O ensino da norma padrão não necessita ser substitutivo e, por isso, não implica a erradicação das variedades populares. As formas alternativas podem conviver harmoniosamente na sala de aula. Cabe ao professor o bom senso de discriminá-las adequadamente, fornecendo ao aluno as chaves para perceber as diferenças de valor social entre elas e, depois, saber tirar vantagem dessa habilidade, selecionando a mais adequada, conforme as exigências das circunstâncias do intercurso verbal. Se a padronização linguística é uma imposição institucional em sociedades estratificadas, o sistema escolar tem um papel político relevante a desempenhar para a promoção das camadas marginalizadas, que é o de propiciar-lhes acesso a todos os bens simbólicos, dentre eles o acesso á norma padrão. É essa ação transformadora que cabe à escola assumir com urgência, para exercer, de fato e de direito, seu papel de instituição de vanguarda. REFERÊNCIAS AGUILERA, V.de A. (Org.). A geolinguística no Brasil: trilhas seguidas, caminhos a percorrer. Londrina: Universidade Estadual de Londrina, 2005. BAGNO, M. 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A situação predominante no contexto de uma entrevista gravada é a B, ou estilo cuidadoso, ficando reservado ao contexto A, estilo casual, o registro que escapa das restrições sociais de uma situação de entrevista; o contexto B é a situação de leitura de um texto, e o contexto C é a situação de leitura de pares mínimos; em ambos os estilos de leitura há uma incidência significativa da variável em estudo. 5. Remetemos o leitor aos capítulos “Fonética” e “Fonologia”, neste mesmo volume, para uma identificação mais completa desses sons. 6. Adotamos aqui o critério estabelecido por Bagno (2003) e Faraco (2008) para distinguir as variedades prestigiadas e as variedades estigmatizadas da norma padrão. Estando estreitamente vinculada ao ensino formal, a norma padrão não é a variedade falada por ninguém, na medida em que é extraída de textos literários; mesmo assim, ou por isso mesmo, exerce forte influência simbólica sobre o imaginário de todos os brasileiros, principalmente sobre os membros das camadas sociais mais privilegiadas. 7. A esse propósito ver Preti (1984), Burke e Porter (1997). 8. Cf. o original: “Linguistic theory is concerned primarily with an ideal speaker-listener, in a completely homogeneous speech-community, who knows its language perfectly and is unaffected by such grammatically irrelevant conditions as memory limitations, distractions, shifts of attention and interest, and errors (random or characteristics) in applying his knowledge of the language in actual performance”. 9. Ver o capítulo “Sintaxe”, neste mesmo volume. 10. Entenda-se C para consoante e V para vogal. 11. A história contemporânea da Linguística aponta para mudanças significativas em direção da descrição da língua viva, falada. Vale observar que, no Brasil, os pesquisadores do Projeto de Gramática do Português Falado, coordenado por Ataliba Teixeira de Castilho (cf. Castilho, 2006), debruçaram-se sobre a observação direta do oral com o objetivo final de fornecerem uma gramática de referência dessa modalidade de linguagem. 12. Para um tratamento mais completo desse assunto, ver Camacho (2010). 2 LINGUÍSTICA HISTÓRICA1 Nilson Gabas Jr. 1. INTRODUÇÃO A Linguística Histórica estuda os processos de mudança das línguas no tempo. Os estudos históricos, principalmente os desenvolvidos a partir do século XIX com o latim, o grego e o sânscrito, são tão importantes em linguística (conforme veremos na seção 2) que a própria disciplina, a Linguística, afirmou-se como ciência a partir deles. Neste capítulo, estudaremos as principais características da Linguística Histórica, em três seções distintas. Na seção 2, relataremos, concisamente, a história da Linguística Histórica, a fim de dar ao leitor um panorama geral de como se desenvolveu esse ramo da Linguística e também para situar sua importância na história da disciplina. Na seção 3, descreveremos em detalhes os vários tipos de mudança linguística possíveis de ocorrer nas línguas do mundo, como as diversas modalidades de mudanças de som, os processos de analogia, as mudanças gramaticais e semânticas. Na seção 4, apresentaremos como ocorre a classificação genética entre línguas e o principal método de reconstrução linguística utilizado para esse fim, o método comparativo, que teve início no século XIX e que continua a ser utilizado até hoje como um poderoso mecanismo de reconstrução histórica de línguas. 2. O INÍCIO DA LINGUÍSTICA HISTÓRICA Semelhanças aparentes entre línguas distintas sempre chamaram a atenção de estudiosos e curiosos em todo o mundo. Foi, no entanto, apenas no final do século XVIII que Sir William Jones, um juiz inglês na Índia, oficial e acertadamente propôs que o latim, o grego e o sânscrito eram línguas aparentadas entre si. Sir Jones foi além: não apenas demonstrou, com os métodos de correspondência de som, que tal afirmação era possível de ser comprovada, como também hipotetizou que as três línguas eram derivadas de uma outra língua, possivelmente já extinta (hoje sabemos que se trata do protoindo-europeu). Era o começo de estudos sistemáticos em Linguística Histórica e Comparativa, que, graças à farta quantidade de registros históricos, se concentraram nas línguas indo-europeias. Depois de Sir William Jones, as principais contribuições para o estudo e entendimento das relações entre as línguas indo-europeias foram feitas pelos dinamarqueses Rasmus Rask e Karl Verner e pelo alemão Jacob Grimm. Ao comparar latim, grego e sânscrito com as línguas germânicas (alemão, inglês, dinamarquês, holandês etc.), Rask descobriu, e um pouco mais tarde Grimm aperfeiçoou analiticamente, as seguintes mudanças com relação à língua-mãe, o protoindo-europeu (PIE):2 1) as consoantes oclusivas surdas (p, t, k, kw) do PIE mudaram em fricativas surdas correspondentes (f, θ, h, hw) nas línguas germânicas; 2) as consoantes oclusivas sonoras (b, d, g, gw) do PIE mudaram em oclusivas surdas correspondentes (p, t, k, kw) nas línguas germânicas; 3) as consoantes aspiradas sonoras (bh, dh, gh, gwh) do PIE mudaram em oclusivas não aspiradas sonoras correspondentes (b, d, g, gw) nas línguas germânicas. Embora Grimm tenha chamado tais mudanças de “mudanças de som”, elas ficaram conhecidas mais tarde como “Lei de Grimm”, e a metodologia para seu estabelecimento serviu como base para outros pesquisadores estabelecerem e comprovarem mudanças de som em outras línguas do mundo. Os estudos com línguas indo-europeias continuaram, e descobriu-se, mais tarde, que um grupo de palavras da família germânica parecia desafiar as leis de Grimm, quando comparadas ao grego ou latim. Foi constatado que, em algumas palavras da família germânica, as consoantes sonoras /b/, /d/ e /g/ correspondiam às consoantes surdas /p/, /t/ e /k/ do grego, em vez de corresponder à série de consoantes fricativas /f/, /θ/ e /x/, como previa a “Lei de Grimm”. Alguns exemplos são apresentados a seguir. Tabela 2.1 Alemão antigo ubar “sobre” Grego hupér “sobre” Inglês antigo fæder “pai” Grego patē´r “pai” Alemão antigo swigur “sogra” Grego hekurā´ “sogra” Exemplos como esses tornaram-se um problema para as mudanças de som propostas por Grimm e intrigaram estudiosos por algum tempo, até que Karl Verner propôs uma solução satisfatória. Segundo Verner, uma mudança fonológica teria ocorrido posteriormente às mudanças de som propostas por Grimm, em que as consoantes fricativas /f/, /θ/ e /h/ das línguas germânicas teriam passado às oclusivas sonoras /b/, /d/ e /g/ correspondentes em início de sílabas pretônicas. Verner resolveu, assim, o impasse e, como Grimm, teve sua solução batizada com o nome de “Lei de Verner”. Rask, Grimm e Verner foram, não obstante, apenas os mais eminentes pesquisadores das línguas indo-europeias. O clima para estudos de caráter comparatista durante o século XIX era contagiante, sendo vários os estudiosos que os seguiram, ou que desenvolveram novos estudos comparativos baseados nos princípios anteriormente desenvolvidos, contribuindo sobremaneira para o desenvolvimento e sistematicidade de estudos de reconstrução linguística. Dentre o segundo grupo de estudiosos destaca-se um grupo (ou escola) centrado na Universidade de Leipzig, na Alemanha. Os membros deste grupo, denominado neogramáticos, eram contra os métodos vigentes da comparação linguística. Eles questionavam basicamente o fato de os estudos comparatistas basearem-se em dados de língua escrita e não de língua falada.3 Para dar conta das mudanças nas línguas estudadas, os neogramáticos apregoavam o reconhecimento e a utilização de dois princípios: (i) o princípio da não excepcionalidade das regras de mudança de som;4 (ii) o princípio da analogia.5 Os métodospreconizados pelos neogramáticos nortearam os trabalhos em linguística comparativa até meados do século XX, quando a esses se opôs Wang (1969), em sua proposta posteriormente conhecida como “teoria da difusão lexical”. Tarallo (1990) descreve assim esta controvérsia entre neogramáticos e difusionistas: A controvérsia entre os neogramáticos e os defensores da difusão lexical gira em torno de dois pares de termos: som e palavra, de um lado, e gradual e abrupto, de outro. Assim, para os neogramáticos a mudança fonológica é foneticamente gradual, mas lexicalmente abrupta; para os “difusionistas”, a mudança fonológica é, ao contrário, foneticamente abrupta, mas lexicalmente gradual.6 Sabemos, hoje em dia, graças a essa controvérsia (resolvida por Labov, em 1981),7 que as leis de mudança de som não são tão poderosas quanto preconizadas pelos neogramáticos, e que há inúmeros casos em que elas ocorrem lenta e gradualmente, obedecendo à história de cada palavra, de acordo com os preceitos da teoria da difusão lexical. Considerando a rigidez científica com que foram postulados e efetuados, é possível perceber que os estudos comparativos com as línguas indo- europeias, nos séculos XVIII e XIX, contribuíram de maneira fundamental para o nascimento e progresso da Linguística Histórica e para o próprio estabelecimento da Linguística como ciência.8 3. MUDANÇA LINGUÍSTICA Toda língua falada no mundo está em constante processo de mudança. As mudanças que ocorrem, no entanto, não são imediatamente sentidas pelos falantes, nem estes falantes estão necessariamente conscientes de tais mudanças. Isso se deve, via de regra, a três fatores: a) as mudanças são lentas e graduais; b) elas são parciais, envolvendo apenas partes do sistema linguístico e não o seu todo; c) elas sofrem influência de uma força oposta, a força de preservação da intercompreensão. Em princípio, e dado um contexto apropriado, qualquer parte de uma língua pode mudar, desde o nível fonético-fonológico (dos sons) até o nível semântico (do significado). Nas subseções que se seguem, trataremos de descrever em detalhe cada um dos possíveis tipos de mudança linguística, isto é, as mudanças de som (seção 3.1), as mudanças por meio de analogia (seção 3.2), as mudanças na gramática (seção 3.3) e na semântica (seção 3.4). 3.1. Mudança de som9 Um dos principais mecanismos de mudança linguística é o de mudança de som. Para que uma mudança de som ocorra, deve existir, em primeiro lugar, uma variação10 linguisticamente não distintiva entre dois ou mais sons, durante um certo período de tempo. O termo linguisticamente, usado aqui para descrever variação não distintiva, é importante, já que o uso de um ou outro som não implica diferenças de significado, mas pode implicar diferenças de status social etc. Visto que é antieconômico para os falantes de uma língua terem duas variantes de uma mesma palavra, a tendência é que apenas uma delas sobreviva. É muito difícil, no entanto, predizer quando ou mesmo se uma determinada forma vai suplantar a outra, e qual delas será a vencedora. Isso se deve principalmente ao fato de que é impossível prever o que uma comunidade linguística irá ou deixará de adotar como forma padrão, já que não é incomum observar casos em que fortes tendências a determinadas mudanças não se concretizam. Quanto à sua natureza, as mudanças de som são classificadas de acordo com o tipo de processo envolvido. Estes podem ser, basicamente, de perda ou adição de fonemas, assimilação, dissimilação, duração (ou prolongamento) e metátese.11 Descrevemos, a seguir, cada um deles. 3.1.1. Perda ou adição de fonemas Os processos de perda ou adição são os tipos mais frequentes de mudança de som. Neles, um fonema é perdido ou ganho como resultado da mudança. Veja, por exemplo, a mudança de /p/ do indo-europeu para Ø nas línguas celtas (p > Ø) tanto em início quanto em meio de palavra:12 Tabela 2.2 Indo-Europeu Irlandês Antigo *pətēr13 athair “pai” *nepot- nie “sobrinho” *tepent-s tëe “quente” Como exemplo de mudança de adição, temos a inserção da vogal /e/ nas palavras do português, espanhol e francês provindas das palavras do latim que iniciavam em /s/ + consoante: Tabela 2.3 Latim Português Espanhol Francês sponsu esposo esposo époux schola escola escuela école 3.1.2. Assimilação Os processos de assimilação são os processos pelos quais um som condiciona a ocorrência de outro som, tanto no ponto ou modo de articulação, quanto no vozeamento.14 Existem basicamente três tipos de assimilação, regressiva, progressiva e de enfraquecimento. Nos processos de assimilação regressiva e progressiva podem participar tanto sons consonantais quanto vocálicos. O tipo mais comum de assimilação, tanto para consoantes quanto para vogais, é o regressivo, em que um som se assimila a outro que o segue. Como exemplo de assimilação regressiva envolvendo consoantes, vejamos o caso do desenvolvimento do latim para o italiano, em que os grupos de consoantes -ct- e -pt- do latim passaram a -tt- em italiano: Tabela 2.4 Latim Italiano noctem notte “noite” factum fatto “feito” septem sette “sete” aptum atto “apto” Como exemplo de assimilação regressiva envolvendo vogais, vejamos o exemplo a seguir, em que, no desenvolvimento do latim para o português, uma vogal central mudou em vogal posterior por assimilação à vogal posterior que a seguia: Tabela 2.5 Latim Português aut ou aurum ouro taurum touro Menos comuns são os processos de assimilação progressiva, em que um som se assimila a outro que o precede. Vejamos, no exemplo a seguir, a mudança de -ln- do inglês antigo para -ll- em inglês médio. Tabela 2.6 Inglês antigo Inglês médio eln elle “unidade de medida” myln mille “moinho” Vejamos agora um exemplo de assimilação progressiva envolvendo vogais em turco. Em turco antigo, as vogais arredondadas (como o [ü] exemplificado na Tabela 2.7) mudaram para não arredondadas, após vogais não arredondadas, em turco moderno: Tabela 2.7 Turco antigo Turco moderno bilür bilir “ele (sabe)” gelüp gelip “indo” Finalmente, há os processos de enfraquecimento, que envolvem consoantes em ambiente intervocálico. Há dois tipos principais de enfraquecimento, o que faz uma consoante oclusiva tornar-se continuante, e o que faz uma consoante surda tornar-se sonora. Como exemplo clássico do primeiro, vejamos o caso a seguir do desenvolvimento do português, em que consoantes oclusivas sonoras bilabiais se tornaram fricativas sonoras bilabiais entre vogais: Tabela 2.8 Latim Português rubium ruivo habēre haver amābas amavas Como exemplo de enfraquecimento em virtude da mudança de sonoridade da consoante, vejamos o seguinte exemplo também do desenvolvimento do português, em que uma consoante surda tornou-se sonora em ambiente intervocálico: Tabela 2.9 Latim Português lupum lobo mūtāre mudar amiˉcam amiga 3.1.3. Dissimilação Embora os processos de dissimilação sejam bem menos comuns do que os de assimilação, eles são importantes o bastante para serem mencionados aqui. Na mudança de som por dissimilação, um de dois sons similares se modifica para ampliar ainda mais a diferença entre eles. Na história do desenvolvimento do latim para o francês (e o português) podemos observar dissimilação tanto de consoantes quanto de vogais. O exemplo a seguir mostra a mudança de um dos /r/’s do latim para um /l/ no francês.15 Este mesmo fato ocorreu em português, por exemplo na palavra ‘ralo’, vinda do latim, rarum. Tabela 2.10 Latim Francês frāgrāre flairer “cheirar” frī·gorōsum frileux “frio” No exemplo a seguir, uma de duas vogais iguais sucessivas em latim tornou-se /e/ em francês. O mesmo aconteceu, por exemplo, com a palavra latina formosum, que em português arcaico mudou em fermoso. Tabela 2.11 Latim Francês diˉviˉnum devin “divino” succussan secousse “choque” 3.1.4. Duração (ou prolongamento) O tipo mais comum de mudança de som envolvendo duração é o que se pode chamar de alongamento compensatório. Essa mudança ocorre quando a primeira consoante de uma sílabapesada do tipo VCC cai. Para compensar, então, o peso da sílaba, a vogal que a precede se prolonga. Esse processo é bastante comum nas línguas indo-europeias, como mostra o exemplo a seguir, do irlandês antigo: Tabela 2.12 Celta comum Irlandês antigo *magl māl “príncipe” *kenetl cenēl “gênero” *etn ēn “pássaro” *datl dāl “assembleia” 3.1.5. Metátese O processo de metátese é o menos frequente de todos os processos de mudança de som. Na metátese há a inversão de posição de dois sons adjacentes, envolvendo comumente uma consoante líquida e uma vogal. Comparemos, no exemplo a seguir, a mudança do latim para o português: Tabela 2.13 Latim Português inter entre super sobre 3.2. Analogia Muitas mudanças linguísticas não podem ser explicadas exclusivamente em termos de mudança de som. Certos tipos de mudança são mais apropriadamente agrupados sob a denominação de analogia. De acordo com Arlotto, analogia é “o processo pelo qual uma forma se torna mais parecida com outra forma com a qual ela é de alguma maneira associada”.16 Um dos principais efeitos do processo analógico é o de fazer com que uma forma inicialmente anômala ou irregular se torne regular. Um exemplo envolvendo analogia pode ser observado no sistema de marcação de plural no inglês moderno quando comparado ao inglês antigo. Em inglês antigo, os nomes (ou substantivos) pertenciam a uma de quatro classes distintas e cada um recebia uma forma de plural específica, dependendo de sua classe. Representamos na Tabela 2.14 a forma de cada uma dessas classes, primeiro no singular e subsequentemente no plural. Tabela 2.14 Inglês antigo singular Inglês moderno singular 1. hand hand “mão” 2. gear year “ano” 3. ēage eye “olho” 4. stān stone “pedra” Tabela 2.15 Inglês antigo plural Inglês moderno plural 1. handa hands “mãos” 2. gear years “anos” 3. ēagan eyes “olhos” 4. stānas stones “pedras” Os exemplos das Tabelas 2.14 e 2.15 são ilustrativos de que os nomes em inglês antigo que pertenciam à mesma classe de “hand” marcavam o plural por meio da adição de {-a}; os nomes da mesma classe de “gear” marcavam o plural por meio de um morfema Ø; os nomes da classe de “ēage” marcavam o plural pela mudança do {-e} final para {-a} e adicionando o morfema {-n}; e, finalmente, os nomes da classe de “stān” marcavam o plural por meio do uso do morfema {-as}. Ao compararmos as mudanças do inglês antigo para o inglês moderno, observamos que a marcação do plural se regularizou, passando de quatro formas distintas para apenas uma, a que utiliza o morfema {-as}, reinterpretado mais tarde apenas como {-s}. Tal regularização ocorreu por meio de uma regra de proporção, cuja base foi a marca de plural para a palavra stone. Comparada com hand, essa regra de proporção é expressa da seguinte maneira: stone:stones::hand:hands onde se lê: stone está para stones, assim como hand está para hands. Assim, seguindo esse mesmo processo analógico, o morfema {-s} se estendeu como marca de plural para as demais palavras do inglês. 3.3. Mudança gramatical Por mudança gramatical deve ser entendido todo processo que tem como resultado uma mudança no sistema gramatical de uma dada língua, seja no âmbito morfológico, seja no sintático.17 Os processos de mudança gramatical se distinguem, assim, dos processos de mudança de som e de analogia descritos anteriormente justamente pelo fato de, nos últimos, nenhuma alteração gramatical ser produzida como resultado da mudança. Um exemplo (clássico) de mudança gramatical é a perda da flexão nominal com a consequente rigidez na ordem de palavras para expressar relações gramaticais em várias línguas. Esse foi precisamente o caso do desenvolvimento das línguas românicas (português, francês, espanhol, italiano, romeno etc.) a partir do latim. Em latim, a ordem das palavras nas sentenças era livre, e a determinação das relações gramaticais como sujeito e objeto era feita por meio de um sistema de marcação de caso nos nomes que compunham as orações. Com isso, era possível para o falante de latim alterar a ordem dos constituintes sem prejudicar a identificação dessas relações gramaticais. Com a perda do sistema de marcação de caso, a ordem dos constituintes passou a ser fundamental, e as relações de sujeito e objeto passaram a ser determinadas apenas pela sua posição na oração, o sujeito ocorrendo primeiro, seguido do verbo, e depois o objeto. Notemos, no exemplo do latim, que a ordem dos constituintes é alterada sem prejuízo para o seu significado, graças às terminações dos nomes (-us para o nominativo e -am para o acusativo) que mantêm marcadas, respectivamente, as relações gramaticais de sujeito e objeto. Marcell-us ama-t Claudi-am Marcelo-NOM ama-3sg.PRES Claudi-ACC ‘Marcelo ama Cláudia’ Claudi-am ama-t Marcell-us Claudi-ACC ama-3sg.PRES Marcelo-NOM ‘Marcelo ama Cláudia’ Note-se que, no exemplo do português a seguir, como não há marcação de caso, se a ordem dos nomes é alterada, as relações gramaticais também o são. Assim, obtemos significados radicalmente diferentes se alterarmos a posição de “menino” e “cachorro” em: O menino matou o cachorro. vs. O cachorro matou o menino. 3.4. Mudança semântica Mudanças semânticas são as mudanças do significado das palavras (ou vocabulário) de uma língua. Até o presente momento da história da Linguística, ainda não foi possível formular nenhum modelo abstrato de mudança semântica, como foi feito para as mudanças fonético-fonológicas e gramaticais. Isso se deve, em grande parte, à incapacidade de qualquer modelo de conseguir tratar, de maneira sistemática, todos os casos (ou tipos) de mudança envolvendo significado. Não obstante, interessantes observações envolvendo mudança semântica têm possibilitado o reconhecimento de alguns mecanismos que podem causar ou promover mudanças de significado. Entre esses mecanismos encontram-se os processos de aparecimento (ou neologismo), obsolescência, contato semântico, isolamento de formas e deslocamento semântico. Veremos, a seguir, cada um desses mecanismos. 3.4.1. Aparecimento ou neologismo Quando um novo item é inserido no léxico de uma língua, seja por mecanismos internos ou externos, ocorre o fenômeno de aparecimento. Essa inserção pode se dar por diversos fatores como, por exemplo, pela necessidade de se nomear novas descobertas ou invenções (ex. cd-player), e novas atitudes ou tendências ligadas a um nome próprio (ex. narcisismo, getulismo) etc.18 Dentre as classes de palavras passíveis de terem acrescido um novo item lexical, a mais comum é a classe dos nomes, pelo processo de empréstimo linguístico. Como exemplos de empréstimo linguístico podemos citar, em português brasileiro, a ocorrência de nomes de origem indígena, principalmente tupinambá, graças à história do contato entre portugueses e índios desde o início da colonização.19 Assim, temos nomes de origem indígena para designar os mais variados referentes, como animais: acará, pacu, jiboia etc.; plantas: jacarandá, mandioca etc.; objetos: maracá, arapuca etc.; comidas típicas: beiju, piracuí etc.; lugares: Capanema (mata ruim, imprestável), Jaguariúna (rio preto das onças) etc. Outros nomes estrangeiros não indígenas também fazem parte do português atual, tais como software, mouse etc., provenientes do inglês; déjà vu, chique, menu, corbelha etc., do francês; haraquiri, nissei etc., do japonês; bazar etc., do persa; quibe etc., do árabe; iogurte etc., do turco; ioga, laca etc., do sânscrito. 3.4.2. Obsolescência Obsolescência é o processo exatamente oposto ao de aparecimento, em que um item lexical cessa de existir em uma dada comunidade linguística graças, principalmente, à sua baixa frequência de uso. Em função da existência de mecanismos de recuperação, como os registros escritos (ex. textos antigos, dicionários etc.) ou a própria memória (no caso das línguas ágrafas), não é possível estabelecer com precisão quando um item lexical não faz mais parte do vocabulário de uma dada língua. Algumas palavras do português que provavelmente já sofreram o processo de obsolescênciasão, por exemplo, alugatário (“inquilino, locatário”), clavina (“carabina”), monoquini (“maiô de uma peça”), repostaria (“dependência dos palácios e casas nobres”) e tassalho (“fatia grande”). 3.4.3. Contato semântico A mudança semântica por contato semântico se dá quando um item lexical existente adquire um outro significado a partir de um contexto específico. Um exemplo clássico desse tipo de mudança pode ser observado na palavra bead, do inglês, que atualmente significa “conta de um colar”. Bead provém do inglês antigo, gebed, e significava “reza, oração”. A explicação da mudança de significado de “reza” para “conta” vem do fato do costume, entre os membros da Igreja Católica, de contar suas rezas ou orações em rosários, formados por contas. O novo sentido de bead, como “conta”, no entanto, só foi possível de se estabelecer plenamente quando a palavra prayer foi emprestada do francês para cobrir o sentido antigo de “reza, oração”. 3.4.4. Isolamento de formas A mudança semântica por isolamento de formas se dá quando um item particular de um grupo relacionado de formas (paradigma) se distancia do resto e assume um significado distinto. Um exemplo disso é a palavra do latim tec-tum, “teto”. Originalmente, esta palavra era uma derivação de teg-, “cobrir” e -tum, um sufixo usado produtivamente para formar nomes de verbos. Com o desenvolvimento do latim arcaico para o latim clássico, - tum passou a não ser mais produtivo, e tectum pôde assumir o significado especializado de “teto”. 3.4.5. Deslocamento semântico Embora praticamente ilimitado, o fenômeno de deslocamento semântico pode ser classificado em pelo menos quatro tipos distintos, de acordo com sua natureza: a) extensão; b) estreitamento; c) uso figurativo; d) desvio. Descreveremos cada um desses fenômenos a seguir. a) Extensão: por extensão de significado entendemos o fenômeno pelo qual o(s) sentido(s) de um dado item lexical aumenta(m) em número com o passar do tempo. Observamos isso, por exemplo, na palavra salário, que em português moderno significa “pagamento em dinheiro pelo trabalho regular de qualquer pessoa”. A palavra ancestral de salário é salārium do latim, e tinha o significado limitado de “pagamento em qualquer espécie pelo trabalho regular de um soldado”. Salārium, por sua vez, foi primeiramente usado para significar “pagamento em sal pelo trabalho regular de um soldado”. Houve, então, as seguintes extensões de significado de salário, a partir do seu significado original: “pagamento em sal pelo trabalho regular de um soldado” > “pagamento em qualquer espécie pelo trabalho regular de um soldado” > “pagamento em dinheiro pelo trabalho regular de qualquer pessoa”. b) Estreitamento: estreitamento (ou restrição) é o processo inverso da extensão. Por meio dele, um item lexical tem seu significado estreitado ou restringido. Um exemplo do português é a palavra pílula que, em seu sentido original significa “medicação em forma comprimida para ser tomada oralmente”, mas que, por um processo de estreitamento de sentido, está passando a significar “contraceptivo oral”. c) Uso figurativo: um dos processos mais frequentes de deslocamento semântico acontece pelo uso figurativo da linguagem. Uso figurativo ocorre quando há um deslocamento (na maioria das vezes intencional) do sentido original de uma palavra, por meio dos processos tradicionalmente conhecidos como metáfora, metonímia, sinédoque etc. Como exemplo ilustrativo de uso figurativo, vejamos um caso de deslocamento de significado envolvendo a palavra “boneca”. Quando dizemos que tal mulher ou criança é uma boneca, para nos referirmos à sua beleza física, estamos deslocando, do significado original de “boneca”, sua propriedade de ter invariavelmente formas bem-feitas e de ser bonita, e caracterizando também a referida mulher ou criança como possuindo as mesmas características. Depois de ser aceito e difundido pela comunidade de falantes de português, tal uso fez com que a palavra “boneca” tivesse significado duplo (ou duas entradas no dicionário), e equivalesse, além do seu sentido original, também ao significado de “mulher ou criança bonita”.20 d) Desvio: desvio é o processo pelo qual um item lexical continua a existir, apesar de seu significado mudar (se desviar) sem grandes mudanças no seu campo semântico original. Um exemplo de desvio é a palavra inglesa artillery, “artilharia”, do inglês médio artillerie, que se referia aos utensílios e armas de guerra do chão utilizados naquela época, como catapultas, flechas etc., e que, presentemente, se refere aos utensílios modernos como tanques, canhões, metralhadoras, morteiros etc. Os mecanismos de mudança linguística, tais como os aqui descritos (mudança de som, analogia, mudança gramatical e semântica), são utilizados como base para o estabelecimento de classificações genéticas entre diferentes línguas e para a reconstrução de protolínguas. Passemos agora à descrição de como se dão os processos de classificação genética e de reconstrução linguística.21 4. CLASSIFICAÇÃO GENÉTICA E RECONSTRUÇÃO Um dos propósitos da Linguística Histórica é a classificação genética entre línguas e sua reconstrução. Nesta seção trataremos de descrever e exemplificar o que é a classificação genética de línguas e como se faz a reconstrução da fase pré-histórica de uma língua. Tentaremos responder a questões como: (i) o que significa, exatamente, classificar uma língua geneticamente?; (ii) o que são duas (ou mais) línguas geneticamente relacionadas?; (iii) como é determinado o grau de parentesco entre elas? 4.1. Classificação genética Classificação genética é o processo pelo qual línguas distintas são agrupadas em uma dada classe, seguindo critérios que podem ser tipológicos (referentes ao compartilhamento de traços fonético-fonológicos e gramaticais) ou teóricos (referentes à ocorrência de correspondências recorrentes entre elementos linguísticos não universais). As primeiras classificações genéticas sistemáticas de línguas seguiram critérios teóricos, baseados em correspondências de som, e começaram apenas depois dos estudos de Grimm e Verner. Com base nos postulados envolvendo mudanças de som, foi possível verificar até que ponto semelhanças entre duas ou mais línguas eram devidas a empréstimo linguístico, ao mero acaso, ou, principalmente, a recorrentes correspondências de som, o que apontava para uma mesma ascendência genética. Neste último caso, a hipótese era de que as línguas em questão eram, no passado, uma única língua, chamada língua comum ou língua- mãe. Para expressar o relacionamento genético entre línguas aparentadas, o meio mais utilizado até hoje (ainda que não o melhor) é o diagrama em árvore, criado pelo alemão August Schleicher, no século XIX. Como exemplo de um diagrama em árvore, consideremos as línguas A, B, C e D a seguir: Neste diagrama, A é considerada língua-mãe, e as línguas B, C e D são seus descendentes diretos e consideradas línguas-irmãs entre si. É possível, ainda, ter ramificações mais profundas, como, por exemplo: onde [E e F], [G, H e I] e [J e K] formam três subgrupos distintos de línguas-irmãs entre si, cujas línguas-mães são, respectivamente B, C e D, que também são, por sua vez, línguas-irmãs entre si, e que têm A como língua-mãe. Quanto aos níveis de classificação em que se agrupam as línguas, existem os troncos linguísticos e as famílias linguísticas. Um tronco linguístico é formado por uma ou mais famílias linguísticas, cada família possuindo uma ou mais línguas-irmãs, como ilustra o diagrama acima. É importante ressaltar que é praticamente impossível para o linguista determinar, de maneira precisa, em que ponto da história de uma língua esta se dividiu em duas (ou mais) e assim por diante, até chegar ao presente. Estudos mostram, no entanto, que o grau de profundidade temporal de um tronco linguístico varia de 5.000 a 6.000 anos, e o de uma família linguística varia de 2.000 a 4.000 anos. Embora haja linguistas que se lancem a propor relacionamentos genéticos de línguas por períodos além donível de tronco linguístico, acreditamos que este seja o nível mais alto de parentesco genético a que se possa chegar com segurança, já que propor um nível superior implicaria a criação de hipóteses pouco sustentáveis e de alta improbabilidade. Como observação final, é importante lembrar que, embora a ocorrência de grupos de línguas aparentadas seja uma regra entre as línguas do mundo, existem línguas que não são geneticamente classificadas como pertencendo a um grupo linguístico ou outro. Tais línguas são, por isso, denominadas línguas isoladas. O exemplo clássico de língua isolada é o basco, falado na Espanha. No Brasil, várias línguas indígenas são classificadas como isoladas, por exemplo, o koaiá (ou kwazá) e o aikaná, no Estado de Rondônia; o irántxe e o trumái, no Estado do Mato Grosso; e o tikúna, no Estado do Amazonas. 4.2. Reconstrução linguística Uma vez determinado o parentesco genético entre duas ou mais línguas, o passo seguinte é o da reconstrução da língua-mãe, com a descrição mais completa possível das mudanças que se sucederam, e que resultaram nos seus descendentes. Para reconstruir uma língua-mãe a partir de seus descendentes, o método utilizado é o método comparativo, que envolve o estabelecimento de correspondências de elementos fonéticos e fonológicos22 entre palavras cognatas23 nas línguas envolvidas, e a projeção desses elementos no passado, propondo um ancestral cujo desenvolvimento pode ser demonstrado como fonte do que existe no presente. Como um exemplo de reconstrução no nível fonológico, vejamos a Tabela 2.16, contendo palavras24 de algumas línguas de diferentes famílias do tronco tupi (Tu = Tupinambá, família Tupi-Guarani; Aw = Awetí, família Awetí; Mu = Mundurukú, família Mundurukú; Ka = Karo, família Ramarama; Kt = Karitiána, família Arikém; Tp = Tuparí, família Tuparí; e finalmente Ga = Gavião, família Mondé).25 Tabela 2.16 Lista de palavras em diferentes línguas do tronco Tupi Tu Aw Mu Ka Kt Tp Ga 1. po po biˉ pá piˉ po pabe “mão” 2. tı˜ — — tı˜ — tı˜́ı˜ “envergonhar-se” 3. men men — mẽn mana men met “marido” 4. kiˉr kiˉr kit — ket kiˉt kír-i “imaturo” 5. a a a a o a aa “fruta” O primeiro passo no trabalho de reconstrução é o de estabelecer as correspondências de som, pela comparação dos itens lexicais. Trataremos primeiramente das vogais, e depois das consoantes. Como correspondências vocálicas entre as línguas acima, temos o seguinte: Tabela 2.17 Correspondências vocálicas entre as palavras da Tabela 2.16 Tu Aw Mu Ka Kt Tp Ga 1. o o iˉ á26 iˉ o a 2. ĩ — — ĩ — i ĩĩ́ 3. e e — ẽ a e e 4. iˉ iˉ i — e iˉ i 5. a a a a o a aa O passo seguinte é o de comparar as correspondências obtidas entre si, com o intuito de hipotetizar qual fonema estava presente na protolíngua, ou língua comum, do qual cada um dos seus descendentes se desenvolveu. As hipóteses a serem criadas devem seguir regras plausíveis que, de preferência, tenham alguma motivação fonética, e que considerem o padrão fonológico da protolíngua a ser recriado como um todo. Por uma questão prática, analisaremos primeiramente as correspondências expressas nas linhas 2-5. Temos, então: Tabela 2.18 Correspondências vocálicas das linhas 2-5 da Tabela 2.17 Tu Aw Mu Ka Kt Tp Ga 2. ĩ — — ĩ — i ĩĩ́ 3. e e — ẽ a e e 4. iˉ iˉ i — e iˉ i 5. a a a a o a aa As correspondências da linha 2 apontam estatisticamente para a possibilidade de ter havido um fonema /*i/ no prototupi. Assumiremos esta hipótese como a mais plausível, e reconstruiremos o fonema vocálico /*i/ como primeiro integrante do conjunto de vogais da protolíngua, o prototupi. Com relação à linha 3, é igualmente plausível que tenha existido um fonema /*e/ que tenha se tornado /a/ em Karitiána. A linha 4 é aparentemente um pouco mais problemática, pois temos a possibilidade de reconstruir três vogais a partir dos reflexos encontrados: /*i/, /*i/ ou /*e/. Entretanto, se considerarmos o fato de que as vogais /*i/ e /*e/ já foram reconstruídas a partir dos reflexos encontrados nas linhas 2 e 3, respectivamente, resta-nos a possibilidade de reconstruir um proto /*i/, que teria mudado em /i/ em Mundurukú e Gavião, e em /e/ em Karitiána. Na última linha vemos que é muito provável a existência de um /*a/ no prototupi, que se manteve como tal em todas as línguas dos nossos exemplos, exceto em Karitiána, onde o proto /*a/ mudou para /o/. Voltemos agora à nossa primeira linha de correspondências, ainda não analisada, que reproduzimos a seguir. Tabela 2.19 Correspondências vocálicas a linha 1 da Tabela 2.17 Tu Aw Mu Ka Kt Tp Ga 1. o o iˉ á iˉ o a O problema que se coloca em relação às correspondências acima é o mesmo encontrado com relação à linha 4, isto é, a existência de um leque razoavelmente grande de possibilidades de reconstrução para a vogal original: como propor uma protovogal baseados em três diferentes reflexos, /o/, /i/ e /a/? Em primeiro lugar devemos deixar claro que o ideal seria possuir mais dados para verificar se as correspondências observadas são consistentes em todas as línguas ou não. Consideraremos, entretanto, que, para fins didáticos, os dados anteriores são representativos. O método, então, a ser usado, deve seguir uma argumentação clara, como a aplicada na determinação da protovogal /*i/. Assim, a partir dos reflexos encontrados na linha 1, não poderíamos postular a existência de uma protovogal /*i/ ou /*a/, pois tanto /*i/ quanto /*a/ já foram reconstruídos a partir de outros reflexos, os encontrados, respectivamente, nas linhas 4 e 5, conforme descrevemos. A solução mais adequada, então, seria postular a existência de um protofonema /*o/, que teria se mantido como tal em Tupinambá, Awetí e Tuparí, mudado em /i/ em Mundurukú e Karitiána, e em /a/ em Karo e Gavião. O sistema vocálico do prototupi, de acordo com os dados disponíveis, seria, então, composto das seguintes vogais: *i *i *o *e *a Passemos agora a analisar as correspondências das consoantes em nossos exemplos de línguas tupi, apresentadas na Tabela 2.20. Tabela 2.20 Correspondências entre consoantes das palavras da Tabela 2.16 Tu Aw Mu Ka Kt Tp Ga 1. p p b p p p p 2. t — — t — n t 3. m m — m m m m 4. n n — n n n n 5. k k k — k k k 6. r r t — t t r 7. Sobre a linha 1 da Tabela 2.20, podemos hipotetizar a ocorrência de uma consoante oclusiva bilabial surda /*p/ no prototupi, já que as correspondências entre as línguas são quase unânimes. Para dar conta da única ocorrência de /b/ como reflexo de /*p/ em Mundurukú, é possível dizer que /*p/ tenha mudado em /b/, em Mundurukú, em ambiente de início de palavra (ver o exemplo 1 da Tabela 2.1). Sobre a linha 2, é possível hipotetizar a existência de um protofonema /*t/, que provavelmente teria se nasalizado (mudado em /n/), em início de palavra, em Tuparí. As correspondências levantadas na linha 3 apontam diretamente para a reconstrução de um protofonema /*m/, já que o reflexo /m/ é o único encontrado nas línguas descendentes. Na linha 4, pudemos reconstruir um protofonema /*n/, que se realizaria como tal em todas as línguas de nossos exemplos, exceto em Gavião, onde teria se desnasalizado e mudado para /t/. Na linha 5, reconstruímos o protofonema /*k/, que se realiza como tal em todas as línguas. Com relação à linha 6, deixaremos a determinação do protofonema sem uma solução definitiva, uma vez que é possível hipotetizar tanto a existência de /*t/ quanto de /*r/ como fonema original (note-se que /t/ ocorre como reflexo em três das línguas de nossos exemplos, Mundurukú, Karitiána e Tuparí, enquanto /r/ ocorre em outras três: Tupinambá, Awetí e Gavião).27 Apenas com a coleta e análise de mais dados é que poderemos decidir pela ocorrência de /*t/ ou /*r/ como protofonema do prototupi. Vale ressaltar que, caso /*t/ fosse confirmado como o fonema original, o fato de já termos definido a ocorrência de outro /*t/, a partir das correspondências encontradas na linha 2, não constituiria um problema para nossa análise, uma vez que esse segundo /*t/ ocorre em ambiente deinício de palavra, enquanto o primeiro /*t/ (reconstruído a partir das correspondências da linha 6) ocorre em ambiente de fim de palavra. Finalmente, as correspondências apresentadas na linha 7 apontam para a reconstrução de um protofonema //, já que é unânime a ocorrência desse fonema em todas as palavras nas línguas em questão. Com base nas reconstruções efetuadas, o quadro fonológico parcial das consoantes da protolíngua ficaria assim representado: *p *t *k */ *m *n (*r) Após a reconstrução dos elementos tanto vocálicos quanto consonantais do prototupi, o passo final da reconstrução fonológica é proceder à reconstrução de cada uma das palavras dos nossos exemplos usando tais elementos. O resultado é o seguinte: 1. *po “mão” 2. *ti (ou *ti) “envergonhar-se” 3. *men “marido” 4. *kit (ou *kir) “imaturo” 5. *a “fruta” Finalmente, devemos ressaltar que o trabalho de reconstrução de uma língua somente estará terminado quando, além da reconstrução fonética/fonológica, forem também cumpridas as etapas de reconstrução morfológica e sintática, para as quais são utilizados procedimentos gerais de análise e levantamento de hipóteses como os observados na reconstrução fonológica. Tais etapas de reconstrução não serão, no entanto, objeto de análise deste capítulo. O apêndice que se segue é uma representação do tronco linguístico tupi.28 Por uma questão prática, não incluímos a descrição das línguas da família tupi-guarani, a maior família do tronco tupi. Ela é composta de aproximadamente 30 línguas faladas no Brasil e nos países vizinhos, e de várias línguas que já desapareceram, entre elas o Tupinambá. Relacionamos, no entanto, a seguir, as línguas dessa família, em que dialetos de uma mesma língua são marcados por letras minúsculas (ex. a), b), c) etc.), e línguas faladas em mais de um país são marcadas com um asterisco (*). Línguas tupi-guarani do Brasil (segundo Rodrigues, 1986): 1. Akwáwa: a) Asuriní do Tocantins; b) Suruí do Tocantins; c) Parakanã 2. Amanayé 3. Anambé 4. Apiaká 5. Araweté 6. Asuriní do Xingu 7. Avá (Canoeiro) 8. Guajá 9. Guaraní*: a) Kaiwá; b) Mbiá; c) Nhandéva 10. Kamayurá 11. Kayabí 12. Kokáma* 13. Língua Geral Amazônica (Nheengatu) 14. Omágua* 15. Parintinín: a) Diahói; b) Júma; c) Parintinín; d) Tenharín 16. Tapirapé 17. Tenetehára: a) Guajajára; b) Tembé 18. Uruewauwáu 19. Urubú 20. Wayampí* 21. Xetá Línguas tupis-guaranis do exterior (Denny Moore, em comunicação pessoal): 1. Chiriguáno — Paraguai 2. Emerillon — Guiana Francesa 3. Guaraní* — Paraguai e Bolívia 4. Guarasúgwe — Bolívia 5. Guaráyo — Bolívia 6. Kokáma* — Peru 7. Omágua* — Peru 8. Sirionó — Bolívia 9. Tapiete — Bolívia 10. Wayampí* — Guiana Francesa 11. Yukue (Bia-Ye) — Bolívia REFERÊNCIAS ALVES, Ieda Maria. Neologismo. São Paulo: Ática, 1994. Antilla, Raimo. Historical and comparative linguistics. Amsterdam/Philadelphia: John Benjamins Company, 1989. Arlotto, Anthony. Introduction to historical linguistics. Lanham/New York/London: University Press of America, 1972. BYNON, Theodora. Historical linguistics. Cambridge Textbooks in Linguistics. Cambridge: Cambridge University Press, 1977. Câmara Jr., Joaquim Mattoso. História da linguística. Petrópolis: Vozes, 1975. COUTINHO, Ismael de Lima. Pontos de gramática histórica. Rio de Janeiro: Livraria Acadêmica, 1970. CUNHA, Antônio Geraldo da. Dicionário histórico das palavras portuguesas de origem tupi. São Paulo: Melhoramentos, 1978. Faraco, Carlos Alberto. Linguística histórica: uma introdução ao estudo da história das línguas. São Paulo: Ática, 1991. GABAS Jr., Nilson. 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Para uma discussão mais aprofundada sobre o papel dos neogramáticos na construção das teorias na Linguística Histórica, ver Tarallo, F. Tempos linguísticos. São Paulo: Ática, 1990. 4. Segundo os neogramáticos, as leis de mudança de som operam sem exceção. As aparentes exceções eram passíveis de ser definidas por meio de condicionamento fonético (como a Lei de Verner) e, para dirimi-las, era necessário apenas a formulação de uma outra regra incluindo a descrição de tal condicionamento. 5. O processo de analogia é discutido na seção 2.2. 6. Tarallo, F. Tempos linguísticos. São Paulo: Ática, 1990. p. 69. 7. Para uma descrição pormenorizada da controvérsia envolvendo neogramáticos e difusionistas, ver Tarallo, F., Tempos linguísticos. São Paulo: Ática, 1990. 8. Para uma maior e mais detalhada descrição da história da Linguística, ver Câmara Jr., J. M. História da linguística. Petrópolis: Vozes, 1975. 9. Os processos de mudança de som são tradicionalmente conhecidos como metaplasmos. 10. Para uma melhor compreensão do fenômeno de variação linguística, ver o capítulo “Sociolinguística” (Partes I e II) neste volume. 11. Diferentes autores variam quanto à classificação dos tipos de mudança de som e também quanto à terminologia utilizada para descrevê-los. Para observar processos de mudança de som especificamente do português em relação ao latim, ver Coutinho, I. L. Pontos de gramática histórica. Rio de Janeiro: Livraria Acadêmica, 1970. 12. O asterisco usado antes de uma palavra indica que tal palavra é uma reconstrução, feita a partir de dados colhidos de línguas aparentadas. Maiores detalhes sobre reconstrução linguística serão dados na seção 4.2. 13. O símbolo [ – ] (macron) usado sobre vogais no latim indica prolongamento em sua pronúncia. 14. Para uma melhor compreensão dos conceitos de modo de articulação, ponto de articulação e vozeamento, ver os capítulos “Fonética” e “Fonologia” neste volume. 15. Os /g/’s do latim mudam para ã no francês por meio de outra mudança de som. 16. Arlotto, Anthony. Introduction to historical linguistics. Lanham/New York/London: University Press of America, 1972. p. 130. 17. Embora mudanças semânticas também estejam, de alguma forma, presentes em toda mudança gramatical, consideraremos tais mudanças separadamente, na seção 3.4. 18. Para um maior aprofundamento dos diferentes tipos de aparecimento, com ênfase no português do Brasil, ver Alves, I. Neologismo. São Paulo: Ática, 1994. 19. Ver Cunha, A. G. da. Dicionáriohistórico das palavras portuguesas de origem tupi. São Paulo: Melhoramentos, 1978. 20. Para efeito meramente ilustrativo, vejamos o que o dicionário Aurélio, em sua versão CD- ROM, traz como significado para o verbete boneca: 1. Figura de trapo, louça, madeira, plástico etc., que imita uma forma feminina e serve como brinquedo de criança ou enfeite [Sin. (fam.): nena.]; 2. Fig. Mulher excessivamente enfeitada e/ou de corpo pequeno e bem-feito; 3. Mulher charmosa e bonita. 21. Para exemplos de trabalhos de classificação genética envolvendo línguas indígenas brasileiras, ver Gabas (1997); Moore (1994); Rodrigues (1964, 1966, 1980, 1985, 1995). Para exemplos de trabalho de reconstrução histórica envolvendo o português, ver Coutinho (1970); Tarallo (1990) e Ilari (1999). Sobre um trabalho envolvendo o desenvolvimento de uma língua indígena, ver Jensen (1989). 22. Apesar de o método comparativo ter seu início no nível da fonologia, atualmente, graças ao avanço dos outros níveis de análise linguística, ele se estende aos níveis da morfologia e da sintaxe. 23. Palavras cognatas são palavras que se assemelham em forma e significado, não devido ao acaso ou a empréstimos linguísticos, mas a uma mesma filiação genética. No método comparativo, as palavras mais utilizadas como itens comparáveis e, portanto, mais suscetíveis de serem cognatas entre si são os nomes de partes do corpo, de relações de parentesco, e de elementos da natureza. 24. No trabalho “real” de reconstrução fonológica, um número muito superior de itens lexicais (entre 400-500) são coletados, comparados e analisados. 25. Os exemplos aqui citados, exceto os de Karo, são de Rodrigues (1986/1995). As palavras do Karo são de nossa própria base de dados. 26. Por uma questão de simplicidade, desconsideraremos, em nossa tabela de correspondências, as ocorrências de fenômenos suprassegmentais, como tom alto (ex., Karo [á]), nasalidade (ex., Karo [e)]) e prolongamento (ex., Gavião [ii]). 27. Apesar disso, podemos antecipar quais devem ter sido as regras de mudança de som ocorridas tanto no caso de /*r/ quanto de /*t/ serem caracterizados como o protofonema original. Caso se comprove a ocorrência de /*r/, é possível postular que /*r/ tivesse mudado em /t/ em Mundurukú, Karitiána e Tuparí em ambiente de final de palavra. Caso se comprove a ocorrência de /*t/, é possível postular que /*t/ mudou em /r/ em dois ambientes distintos: (i) em final de palavra nas línguas Tupinambá e Awetí e (ii) entre vogais na língua Gavião. 28. Esta classificação baseia-se em Rodrigues, 1964, 1966, 1985 e Gabas, 1997. Apêndice I. Classificação do tronco linguístico tupi 3 FONÉTICA Gladis Massini-Cagliari Luiz Carlos Cagliari 1. INTRODUÇÃO: FONÉTICA E FONOLOGIA A Fonética e a Fonologia são as áreas da Linguística que estudam os sons da fala. Por terem o mesmo objeto de estudo, são ciências relacionadas. No entanto, esse mesmo objeto é tomado de pontos de vista diferentes, em cada caso.1 A principal preocupação da Fonética é descrever os sons da fala. Por exemplo, são afirmações típicas desta ciência dizer que o som [b] é articulado com uma corrente de ar pulmonar, egressiva, com vibração das cordas vocais, com uma obstrução do fluxo de ar seguida de uma explosão; ou descrever a vogal [i] como aquela que tem os dois primeiros formantes2 mais afastados um do outro; ou dizer que, embora do ponto de vista acústico e articulatório os três as da palavra batata possam ser considerados como realizações um pouco distintas, os falantes de português reconhecem esses sons como pertencendo à mesma categoria (vogal a). As afirmações anteriores ilustram o fato de a Fonética poder ser feita de três pontos de vista: a) da maneira como os sons são produzidos (ou seja, mostrando que movimentos do aparelho fonador estão envolvidos na produção dos sons da fala) — Fonética Articulatória; b) da maneira como os sons são transmitidos (isto é, a partir das propriedades físicas — acústicas — dos sons que se propagam através do ar) — Fonética Acústica; c) da maneira como os sons são percebidos pelo ouvinte — Fonética Auditiva. Por sua vez, a Fonologia procura interpretar os resultados obtidos por meio da descrição (fonética) dos sons da fala,3 em função dos sistemas de sons das línguas e dos modelos teóricos disponíveis. Faz parte do trabalho fonológico explicar o porquê de os falantes de alguns dialetos do português do Brasil considerarem como sendo o “mesmo som” as consoantes iniciais das palavras tapa e tia ([t] e [t] — “tchê” —, respectivamente), muito embora elas sejam bastante diferentes, articulatória, acústica e perceptualmente. Dessa forma, enquanto a Fonética é basicamente descritiva, a Fonologia é uma ciência explicativa, interpretativa; enquanto a análise fonética se baseia na produção, percepção e transmissão dos sons da fala, a análise fonológica busca o valor dos sons em uma língua — em outras palavras, sua função linguística. Como se constituem em duas abordagens bem diferentes do mesmo objeto (os sons da fala), a maneira como um foneticista vê, analisa e transcreve os fatos da língua difere do modo como o faz um fonólogo. Por essa razão, uma transcrição fonética dos segmentos é representada dentro de colchetes quadrados [ ] e uma transcrição fonológica (fonêmica), dentro de barras simples inclinadas / /4. Neste capítulo, o leitor pode encontrar princípios básicos de Fonética. Uma introdução à Fonologia será vista no próximo capítulo deste livro. Por ser a Articulatória a área de investigação mais antiga e, por essa razão, mais solidamente estabelecida dentro da tradição da Fonética linguística (remontando suas origens aos estudos clássicos), dedicaremos a ela a maior parte deste artigo. Um pequeno vislumbre dos propósitos da Fonética Acústica, ciência que tem se beneficiado muito dos recentes avanços tecnológicos (mas que, por este motivo, infelizmente, tem ficado cada vez mais próxima da Física e da Engenharia do que da Linguística), vem no final do artigo. Os estudos de Fonética são tão antigos quanto as gramáticas e estão, ainda, por trás da formação dos sistemas de escrita mais antigos. Ao longo dos anos, além da preocupação em descrever a função de letras e sons, começaram a surgir explicações sobre o funcionamento do aparelho fonador e dos mecanismos de produção da fala. No século XVIII, tiveram grande desenvolvimento os estudos prosódicos, desassociados, então, dos estudos de metrificação poética. No final do século XIX, surgiram os primeiros laboratórios de fonética experimental. A partir daí, os estudos de Fonética Acústica foram crescendo e sobrepujando em importância e em interesse os estudos de natureza articulatória e auditiva, que já contavam com excelentes resultados. Além de dar suporte aos estudos de Fonologia e de outras áreas da Linguística, a pesquisa fonética tem contribuído enormemente para o desenvolvimento de tecnologias que se utilizam dos elementos sonoros da fala, como a engenharia de telecomunicações, sobretudo a telefonia, as ciências da computação, com especial referência à produção de programas de produção e de reconhecimento da fala. 2. FONÉTICA ARTICULATÓRIA 2.1. A produção da fala Para falar, uma pessoa usa mais da metade do corpo: do abdômen até a cabeça. Os linguistas não sabem ao certo onde fica o centro processador da linguagem, mas, tradicionalmente, atribui-se ao cérebro ou à alma. A verdade é que, antes de abrir a boca para falar, uma pessoa necessita planejar o que vai dizer e enviar comandos neuromusculares para que sua fala se realize. Como a linguagem é um composto de ideias e de sons, é preciso organizar as ideias e os sons que irão carrear essas ideias. O primeiro processo de produção de fala é o neurolinguístico e significa que é preciso juntar as ideias aos sons correspondentes daquilo que se quer falar em uma determinada ordem, seguindo as regras da língua.5 Feito isso, o cérebro começa a enviar para os músculos mensagens para diferentes partes do corpo, preparando-o para dizer o que foi planejado.Esse é o processo neuromuscular. As primeiras mensagens agem diretamente sobre o processo da respiração. O diafragma e os músculos intercostais mudam o mecanismo comum de respiração, que ocorre em forma de uma onda suave e regular, para uma onda que apresenta, em um momento curto, uma intensidade muito grande e, em um momento relativamente longo, uma queda durante a qual aparecem variações de duração e de intensidade, definindo, assim, os limites e as bases de cada sílaba do enunciado que se quer falar.6 Figura 3.1 Representação esquemática da variação de pressão da corrente de ar usada para a respiração normal (a) e para a fala (b) O processo da respiração também ativa diferentes mecanismos aerodinâmicos. Na quase totalidade do tempo da fala, usa-se um mecanismo pulmonar egressivo, ou seja, a fala se aproveita de uma modificação causada sobre a corrente de ar que usamos para respirar (expiração). Em alguns casos muito particulares, um som pode ser produzido com outro tipo de corrente de ar. Com a glote fechada, isto é, com as cordas vocais juntas, pode-se mexer a laringe para baixo ou para cima e, se houver uma obstrução em outra parte do aparelho fonador, haverá uma diminuição da pressão do ar entre as duas obstruções pelo aumento da cavidade e, ao soltar as obstruções, formar-se-á uma corrente de ar para dentro, produzindo um mecanismo aerodinâmico implosivo. Se, ao contrário, houver uma diminuição da cavidade, o ar aumentará de pressão e formar-se-á uma corrente de ar curta, mas de grande velocidade e pressão, produzindo, assim, um mecanismo aerodinâmico ejectivo. Sons implosivos e ejectivos não são encontrados nas línguas românicas, mas não são raros em línguas africanas e indígenas — como nos exemplos a seguir, retirados da língua Zibiao Guéré:7 implosivos: [kie] (macaco) [a] (fumaça) ejectivos: [k’jà:má:] (aversão) Um som com corrente de ar ingressiva, chamado clique, pode ser produzido quando o dorso da língua contra o palato mole fecha a passagem posterior da cavidade oral e uma outra obstrução é formada nos lábios ou com a ponta da língua (experimente produzir um beijinho, ou o som típico para colocar os cavalos em movimento, ou, ainda, uma negativa — que, às vezes, é representada nas histórias em quadrinhos como ts! ts!). Com o abaixamento da língua, aumenta o volume da cavidade entre as obstruções, o ar fica com pressão menor e se cria uma breve e intensa corrente de ar ingressiva que produz o “estalo” típico dos cliques fonéticos. Esse mecanismo aerodinâmico é chamado de velar (ou de velárico). Cliques são raros nas línguas e são encontrados de maneira típica em algumas línguas africanas, como o Xhosa, da África do Sul. cliques: (aplicar) (médico) (ser difícil, obstrução)8 A corrente de ar é modificada ao passar pelas cavidades supraglotais (faringe, boca e lábios). Essa modificação ocorre em determinados pontos desse tubo onde há uma constrição capaz de alterar as características acústicas da corrente de ar. Essas obstruções são chamadas de articulações fonéticas e suas características formam o processo articulatório. Dadas as configurações do aparelho fonador, quando a corrente de ar chega na parte superior da faringe, encontra dois caminhos: a passagem oral, pela boca, e a passagem nasal, pela cavidade nasofaríngea e pelas cavidades nasais. O ar pode seguir um desses caminhos ou ambos. Trata-se do processo oro-nasal. Figura 3.2 Esquema do aparelho fonador, com as estruturas mais importantes (Cagliari, 1977, p. 45). Quando a corrente de ar fonatório sai pela boca e/ou pelas narinas, as vibrações das partículas de ar se espalham em ondas circulares. As características acústicas desse tipo de som formam o processo acústico da fala. Ao receber essas ondas, o ouvinte realiza o processo auditivo (ou perceptual) da fala. O som (que é energia acústica) transforma-se em movimento do tímpano. Este movimento envolve três pequenos ossos dentro do ouvido que, articulando-se com o tímpano, transmitem as vibrações deste para a cóclea, a qual, por sua vez, transforma as vibrações em variação hidráulica do líquido que ela contém. Este transforma a variação de pressão em impulsos neurais, que são levados até o cérebro. Quando a percepção da fala chega ao cérebro, ativa-se novamente o processo neurolinguístico, que irá interpretar os sons e associá-los aos respectivos significados, de acordo com o sistema da língua. 2.1.1. Fonação A laringe tem uma estrutura anatômica e um processo fisiológico complexo que é usado não somente na fala, mas na respiração. A corrente de ar oriunda dos pulmões é modificada acusticamente, recebendo características de um som periódico, no caso do vozeamento, ou de um som aperiódico, isto é, fricção, no caso do efeito de turbulência causado pela obstrução no tubo laríngeo e, sobretudo, pelos estreitamentos das cordas vocais. A passagem que se forma entre as cordas vocais é chamada de glote. Ao passar pela laringe, a corrente de ar passa a constituir o ar fonatório, o qual será modificado acusticamente ao passar pelas cavidades supraglotais (faringal, nasofaringal, nasal, oral e labial). Quando a glote está muito aberta, a corrente de ar pode não sofrer alteração, formando uma corrente de ar fonatório somente ao passar por uma obstrução nas cavidades supraglotais. Isso acontece, por exemplo, com sons fricativos surdos. Figura 3.3 Figura esquemática da laringe e diferentes configurações da glote. O processo de fonação compreende as possibilidades articulatórias das estruturas da laringe e, sobretudo, das cordas vocais. Os seguintes tipos de fonação e de segmentos podem ser produzidos (Ladefoged, 1971/1983): a) Oclusiva Glotal: é uma oclusiva produzida pelo fechamento da glote durante a duração necessária para se obter uma consoante. Em português, expressões de surpresa como [a], [E], [aa] (Ah?!, Éh!?, Aah!?) costumam ter uma oclusiva glotal. b) Fricativa Glotal: é um segmento aspirado (ou “surdo”) ou murmurado (“sonoro”) articulado com a duração equivalente de uma consoante (ex.: em inglês, a consoante inicial de horse e house). c) Vozeamento: é o processo que produz sons sonoros por meio das vibrações da cordas vocais. Todas as vogais e consoantes vozeadas (= “sonoras”) (ex.: bolo; vaca; zebra) são produzidas com vibração das cordas vocais. d) Ensurdecimento: é o processo que deixa a corrente de ar pulmonar passar pela laringe sem se alterar acusticamente. Produz os sons surdos. Ex.: massa; faca. e) Aspiração: é o processo que produz fricção local quando a corrente de ar pulmonar passa pela glote. Isto é obtido por uma constrição da glote que produz turbulência quando o ar passa por ela. Este tipo de fonação é conhecido também como sussurro (whispery voice). f) Murmúrio: é o processo que, além de fazer o ar fonatório carrear fricção, traz consigo também características acústicas de uma onda periódica, ou seja, é um tipo de aspirada sonora (breathy voice). g) Creaky voice: é o processo que modifica a corrente de ar pulmonar com vibrações muito lentas, produzindo uma qualidade fonatória de som muito grave (cf. qualidade de voz de um cantor do tipo “baixo”). h) Falseto: é o processo fonatório que emprega as cordas vocais bem esticadas, o que imprime à corrente de ar um som fundamental muito agudo (ex.: voz aguda de pessoas nervosas, homens forçando uma voz aguda). 2.2. Prosódia e segmentos Ao segmentar a fala (= “cortar”, “analisar em pedaços menores”), as unidades chamadas segmentos são as que definem as vogais e as consoantes.9 As unidades maiores do que os segmentos são chamadas de prosódicas, como a sílaba, as moras silábicas, o pé, o grupo tonal, os tons entoacionais, a tessitura e o tempo.10 Há, ainda, algumas propriedades fonéticas chamadas de suprassegmentos.11 Às vezes, esse termo é sinônimo de “prosódia”, às vezes, representa algumas propriedades, como a duração segmental, a nasalização, as articulações secundárias etc. As unidades constituintes dos segmentos, isto é, as unidades menores do que eles, são chamadasde traços ou propriedades distintivas, como o vozeamento, o lugar e o modo de articulação. 2.3 Elementos prosódicos Assim como na música, pode-se considerar que a fala tem melodia (entoação, tons) e harmonia (acento e ritmo). São esses fatores que fazem a “música” da fala, que serão considerados neste item. 2.3.1. Acento Na tradição dos estudos gramaticais do português, a palavra “acento” costuma vir relacionada a um aspecto gráfico da escrita (ex.: acentos agudo, grave ou circunflexo). Entretanto, na Fonética, o termo acento está mais relacionado à noção de “tonicidade” da Gramática Tradicional — que divide as palavras do português em oxítonas (café), paroxítonas (casa) e proparoxítonas (lâmpada), de acordo com a posição da sílaba tônica (= acentuada) — do que com a de “acento” propriamente dita. As sílabas são tônicas ou átonas, dependendo do grau de saliência que apresentam. Essa saliência provém geralmente, em português, de uma duração maior.12 Pode vir também de uma elevação ou mudança de direção da curva melódica em um enunciado e até por um aumento de intensidade sonora. Uma sílaba só é tônica ou átona por comparação com as demais. Em termos fonéticos, uma sílaba isolada não é tônica nem átona.13 Há três tipos de sílabas tônicas: as sílabas que têm o acento primário, as que têm o acento secundário e as que têm o acento frasal. A palavra cafezinho, dita isoladamente, recebe o acento primário na penúltima sílaba (zi) e pode ter um acento secundário na primeira sílaba (ca). Já na frase Vou tomar um cafezinho, a sílaba zi, que já era acentuada no nível da palavra, recebe o acento frasal. O acento frasal sempre coincide com uma sílaba que tem também um acento primário ou com um monossílabo isolado. Toda palavra pronunciada isoladamente terá uma sílaba com acento primário, se não for monossílaba. Todo enunciado apresenta um acento frasal que, em português, é definido pela mudança no contorno da variação melódica das sílabas, ou seja, da entoação. Esse acento frasal pode se deslocar à esquerda do enunciado. É preciso, ainda, dizer que, em enunciados com várias palavras, os acentos das palavras consideradas individualmente se acomodam ao padrão rítmico, podendo sofrer modificações. Compare os seguintes exemplos (as sílabas com acento primário vêm em negrito e a sílaba com acento frasal vem sublinhada):14 (1) a) ontem b) ela foi ao cinema ontem c) ela foi ao cinema ontem d) ela foi ao cinema ontem e) ela foi ao cinema ontem Como as diferentes colocações do acento frasal mudam o foco dos enunciados anteriores, as especificidades semânticas de cada um deles fazem com que os enunciados em (1b-e) possam ser interpretados como respostas às seguintes perguntas: (2) b’) quando ela foi ao cinema? c’) onde ela foi ontem? d’) quem foi ao cinema ontem? e’) ela foi ao ou no cinema ontem? Como, em português, uma sequência muito longa de sílabas átonas não é aceitável, algumas dessas sílabas passam a ter um reforço extra, formando uma onda rítmica mais regular. Dessa forma, a ocorrência de acentos secundários pode ser considerada um efeito de regras de eurritmia da língua. Fatores lexicais podem também definir um acento secundário, como o que acontece com os derivados com -(z)inho, -í(ssi)mo e -mente (exemplos 3a). Nesses casos, o radical derivacional fica com um acento secundário. Uma outra regra de eurritmia diz que a língua tende a ter um acento secundário em início de palavras quando o acento principal está distante desse contexto (3b). Também por razões de eurritmia, a língua tende a evitar que dois acentos ocorram em sequência, fazendo com que o da esquerda se desloque (3c, no nível da palavra, e 3d-e, no nível frasal). Veja os exemplos a seguir (em que a sílaba com acento secundário vem marcada com acento grave): (3) a) bèlíssima hotèlzinho b) ànticonstitùcional ìntolerável c) càfezinho fèlizmente fèrozmente tòtalmente d) Foi em uma discussão que ele perdeu. Foi em uma dìscussão que ele perdeu! e) Era um jacaré lento ao nadar. Era um jàcaré lento ao nadar. 2.3.2 Ritmo O senso comum, passado pela nossa tradição escolar, transmite a falsa ideia de que apenas padrões muito rígidos de repetição de quantidades de sílabas e de acentos (a exemplo do que ocorre em poemas metrificados) podem ser considerados “rítmicos”. Por exemplo, os versos dessa tradicional cantiga de roda podem ser considerados “rítmicos” porque possuem todos sete sílabas poéticas cada um15 e porque os acentos poéticos recaem sempre a espaços regulares no verso, na terceira, na quinta e na sétima sílabas poéticas. (4) Ca/ ran/ gue/ jo / não / é / pei/xe 1 2 3 4 5 6 7 Ca/ ran/ gue/ jo / pei/ xe /é 1 2 3 4 5 6 7 Ca/ ran/ gue/ jo / só / é / pei/xe 1 2 3 4 5 6 7 Na/ en/ chen/ te / da / ma/ré 1 2 3 4 5 6 7 No entanto, em termos fonéticos, qualquer texto falado possui ritmo, uma vez que esta noção é definida como a maneira como as línguas organizam no tempo os elementos salientes da fala (em especial, as durações silábicas e os acentos).16 Por causa dessa concepção temporal de ritmo, esta noção tem sido, tradicionalmente, dentro da Fonética, trabalhada com base na ideia de isocronia.17 A partir da proposta de Pike (1945), as línguas do mundo foram classificadas em dois grandes grupos: as línguas de ritmo acentual e as línguas de ritmo silábico. As línguas que tendem a ter sílabas tônicas isócronas, isto é, ocorrendo em intervalos de tempo de duração similar, são chamadas de línguas de ritmo acentual. O português, o inglês, o árabe são desse tipo. As línguas cujas durações silábicas relativas não costumam variar conforme o contexto ou a velocidade de fala, mantendo fixas as durações relativas das sílabas, em qualquer circunstância, constituem línguas de ritmo silábico. O italiano, o francês, o espanhol, o alemão, o japonês e o chinês são exemplos de línguas de ritmo silábico. No caso das línguas de ritmo acentual, a isocronia das sílabas tônicas (ou dos pés — intervalo entre uma tônica e outra, incluindo a primeira e excluindo a segunda) aumenta ou diminui a duração individual das sílabas, dependendo do número de sílabas átonas que ocorre entre uma tônica e outra. Se houver duas, três, quatro ou cinco, a velocidade de fala irá aumentar na mesma proporção. Uma maneira fácil de identificar esse fenômeno reside na enunciação de listas de números (exemplo 5a). Como cada um tem um acento, mas um número variável de sílabas átonas, as batidas rítmicas caem sempre em intervalos aproximadamente iguais e a velocidade de fala aumenta ou diminui à medida que houver mais ou menos sílabas átonas entre as tônicas. Experimente dizer os enunciados abaixo, observando o comportamento do ritmo. É comum no enunciado (5b) alguns falantes dizerem apenas uma vez a sílaba “de” que aparece repetida. Em (5c), como ocorrem dois acentos próximos em “abacaxi”/“manga”, para manter a tendência isocrônica das sílabas tônicas, há um prolongamento da primeira tônica, ou uma pausa entre ambas. (5) a) 20, 21, 22, 23, 24, 25, 26, 27, 28, 29, 30, 31 ... b) Pedro estuda na Universidade de Campinas. c) laranja, caju, abacaxi, manga, pêssego, melancia... Essa tipologia das línguas quanto ao ritmo foi posta em dúvida ou refeita por alguns autores — entre eles, Dauer (1983) e Jassem, Hill e Witten (1984). 2.3.3. Velocidade de fala ou tempo Em primeiro lugar, é preciso não confundir “ritmo” com “velocidade de fala” ou tempo. O ritmo é a maneira como as línguas organizam a substância fonética no tempo, com base na relação de proeminência entre sílabas e acentos. No entanto, um mesmo padrão rítmico pode ser dito com maior ou menor velocidade de fala — assim como uma estrutura musical não perde o ritmo se executada mais rápida ou mais lentamente (variação de andamento: uma valsa, por exemplo, pode ser executada bem lentamente ou com um andamento mais rápido, mas continuará sendo uma valsa). Variações de velocidade de fala tendem a causar modificações fonéticas. Quanto mais veloz for a fala, haverá uma tendência maior para a centralizaçãovocálica, para a queda de segmentos, para a coarticulação, para a perda de qualidades articulatórias e consequente perda de inteligibilidade da fala. Ao diminuir a velocidade normal de fala, o falante também passa a ter problemas de articulação e o ouvinte, de percepção. A inserção de segmentos e a perda de qualidades articulatórias são os traços mais notáveis. Todavia, dentro de certos limites, a variação de velocidade pode ser usada para enfatizar o que se diz (desaceleração), para evitar intromissão do interlocutor (aceleração) ou para sinalizar final de argumentação e de turno discursivo nos diálogos (desaceleração). 2.3.4. Entoação Todas as sílabas da fala são pronunciadas com certa altura melódica. Nas línguas tonais, como o chinês, cada sílaba das palavras tem uma altura melódica fixa. Nas línguas entoacionais, como o português, diferentes tipos de enunciados carreiam padrões melódicos predeterminados pelo sistema. Nesse caso, as “frases declarativas” se distinguem das “frases interrogativas” porque as primeiras apresentam um padrão entoacional descendente e as segundas, um padrão ascendente. Esses padrões entoacionais podem ser melhor definidos em termos de tons entoacionais.18 Dentro dessa abordagem, o sistema entoacional do português apresenta seis tons primários, cada qual podendo ter variantes, chamadas de tons secundários.19 Tons primários do português: As variações que formam os tons secundários podem ocorrer na primeira parte do tom entoacional ou na segunda. Há muitas maneiras de fazer essas variações, trazendo sempre pequenas modificações de significado ao enunciado. Os tons secundários (e outros fenômenos prosódicos) costumam trazer acréscimos ao significado literal de um enunciado, chamado de atitude do falante. Nesse sentido, um enunciado pode revelar alegria, tristeza, raiva, dúvida, incerteza, escárnio, zombaria etc. Mostram-se, a seguir, alguns exemplos como ilustração. Um padrão entoacional forma um grupo tonal. Todo grupo tonal terá sempre uma sílaba tônica saliente (o acento frasal), que coincide com a posição em que a curva melódica muda de direção. Corresponde, na anotação acima, à sílaba que vem logo após as barras duplas verticais. Todo grupo tonal é formado por pés rítmicos20 — como mostra o exemplo a seguir, em que estão representados a tonicidade, os pés (delimitados por barras simples inclinadas), os tons (representados por números no início do grupo tonal) e os grupos tonais (cujos limites se encontram representados por barras duplas inclinadas).21 (6) //3 ^ Bea/triz ^ en/tão ^ pergun/tou //2 ^ vo/cê não quer /ir ao ci/nema ^ //3 Eu repe/ti di/zendo //5 que já /tinha assis/tido /àquele /filme// 2.3.5. Tessitura O espaço compreendido entre o som mais grave e o mais agudo, na fala de uma pessoa, é chamado de tessitura. Como acontece na música, uma melodia da fala pode continuar com a mesma curva, porém localizando-se em uma escala superior ou inferior. A fala costuma abranger o intervalo (tessitura) de uma oitava e meia. O ato de mudar os valores de frequência dessa escala para cima (fala aguda) ou para baixo (voz grave) em um indivíduo acarreta acréscimo de significação ao discurso. O uso mais comum da tessitura é encontrado em palavras ou expressões intercaladas, as quais são pronunciadas com uma tessitura baixa. Em um texto, podem ocorrer trechos com tessitura baixa, quando o falante quer significar que aquele trecho é menos importante, é secundário, com relação ao restante do que está dizendo. Isso é muito comum quando as pessoas contam histórias. Variando a tessitura no discurso, o falante consegue criar uma “onda” que coloca em condições de igual valor discursivo trechos localizados em diferentes partes do texto. É por essa razão que, após uma divagação em final de parágrafo, ao retornar ao assunto, em novo parágrafo, expressões como então, daí, portanto etc., são ditas com uma tessitura mais alta. Em textos argumentativos, não é raro, à medida que os argumentos vão se colocando, a tessitura abaixar progressivamente. Esse procedimento tem a finalidade de não permitir que o interlocutor interrompa o que está sendo dito, uma vez que a tessitura é um dos fenômenos que sinalizam os turnos linguísticos, nas situações dialógicas. 2.3.6. Qualidade de voz Os segmentos da fala (consoantes e vogais) apresentam características próprias, ou seja, um som pode ser sonoro, aspirado, dental, velar, nasal, fricativo etc.22 Na fala comum dos indivíduos e até de línguas ou dialetos, entretanto, costuma haver uma predominância de certas qualidades fonéticas, como as mencionadas anteriormente. Isso faz com que, por exemplo, uma língua como o inglês americano soe, aos ouvidos de falantes de outras variedades do inglês ou de outras línguas, como sendo “excessivamente” nasalizado e retroflexo. O português soa como uma língua bastante fricativa e nasalizada. Essas características gerais da produção da fala são chamadas de qualidades de voz.23 A maneira mais comum de se identificar a qualidade de voz está na produção individual. Quando uma pessoa tende a articular os sons com qualidades secundárias, na maioria dos segmentos, o resultado é uma qualidade de voz peculiar daquele indivíduo (ou grupo, ou dialeto). Por exemplo, algumas pessoas costumam produzir os sons anteriores com a ponta da língua muito avançada, o que gera uma qualidade dentalizada de sua fala, ou um ceceo. Em algumas variedades do português do Brasil, como a fala de caiçaras, é comum encontrar pessoas que falam com uma qualidade de voz palatalizada. Não é raro encontrar pessoas com qualidade de voz velarizada — tão do agrado de certos políticos ao discursarem. Locutores de propagandas com voz muito grave apresentam uma qualidade de voz creaky voice. O que se costuma, em geral, chamar de uma qualidade de voz “normal” é, de fato, uma fala com qualidade alveolar. Quando um homem fala com um tom fundamental muito agudo, sua qualidade de voz é de falseto. Esse tipo de qualidade de voz é encontrado, por exemplo, na fala de certas pessoas quando estão muito exaltadas. Por causa dessa sobreposição de qualidades fonéticas e das modificações articulatórias que as produzem, o resultado final dos sons da fala pode trazer problemas para as transcrições fonéticas e interpretação linguística dos fatos. Por isso é importante que o linguista descreva as qualidades de voz como um parâmetro independente. Por exemplo, ao observar a fala de uma pessoa com qualidade de voz palatalizada ou dental, quase todos os segmentos apresentarão essa qualidade, alguns de maneira mais evidente, e, se estes forem privilegiados, a descrição dos sons dessas pessoas acabará introduzindo consoantes palatais ou dentais onde ocorre apenas um efeito secundário de palatalização e de dentalização, causado por fatores de qualidade de voz e não de processos fonológicos.24 2.4. Segmentos 2.4.1. Consoantes As consoantes são sons que apresentam contatos ou constrições no aparelho fonador facilmente analisáveis, sobretudo pela repetição da articulação em comparação com gestos semelhantes e próximos. Por essa razão, as consoantes são classificadas tradicionalmente em termos de modo e de lugar de articulação e quanto à vibração (ou não) das cordas vocais, além das características do mecanismo aerodinâmico envolvido. De acordo com o mecanismo aerodinâmico, uma consoante pode ser egressiva ou ingressiva, dependendo da direção da corrente de ar. As oclusivas com corrente de ar pulmonar egressivo são chamadas também de plosivas e as com corrente de ar pulmonar ingressivo são chamadas de implosivas; se o mecanismo aerodinâmico for glotal egressivo, a oclusiva recebe o nome especial de ejectiva e, se for velar, é chamada de clique. Figura 3.4 Estruturas do mecanismo de produção da nasalidade. Em (a), com a posição abaixada do véu palatino, articulam-se os sons nasalizados. Em (b), com o véu palatino levantado, articulam-se os sons orais — Cagliari (1977, p. 91). 2.4.1.1. Modos de articulação Em função dos modos de articulação, os segmentosconsonantais podem ser: a) oclusivos: são sons produzidos com um bloqueio completo à corrente de ar em algum ponto do aparelho fonador, desde a glote até os lábios (ex.: as consoantes grifadas em pato; gado); b) nasais: são sons produzidos com um bloqueio à corrente de ar na cavidade oral, com concomitante abaixamento do véu palatino, o que permite a saída da corrente de ar pelas narinas (ex.: somo; sono; sonho); c) fricativos: são sons produzidos com um estreitamento em qualquer parte do aparelho fonador (da glote até os lábios), de tal modo que o ar fonatório, passando por essa parte, produza fricção (ex.: faca; vaca; saca; jaca); d) africados: são sons que apresentam um bloqueio completo à corrente de ar dentro da cavidade oral, em sua parte inicial, e uma obstrução que produz fricção, durante a parte final de sua articulação (ex.: tia; dia, no dialeto carioca). Como se trata de um som único, a representação fonética desses sons é feita por meio de dígrafos, com o primeiro elemento representando uma consoante oclusiva e o segundo, uma fricativa. Para que um som seja considerado uma africada e não apenas uma sequência de oclusiva mais fricativa, a articulação de ambas as partes deve ser “homorgânica”, ou seja, ocorrer no mesmo lugar de articulação; e) laterais: são os sons que bloqueiam a passagem central da corrente de ar na parte anterior da cavidade oral, permitindo um escape lateral (ex.: vela; velha). No caso da lateral palatal, a corrente de ar passa por trás dos últimos molares, saindo por entre a parte externa dos dentes e a bochecha; f) vibrantes: o termo vibrante cobre várias designações usadas pelos foneticistas. Assim, por vibrantes entendem-se os sons produzidos por batidas rápidas da ponta da língua ou do véu palatino, em geral, três ou quatro. Esse tipo de consoante também é chamado de vibrante múltipla, na tradição fonética portuguesa. Quando ocorre apenas uma batida rápida da parte superior da ponta da língua contra os dentes ou alvéolos dos dentes incisivos superiores, o som tem o nome de tepe (ou vibrante simples — na tradição fonética portuguesa), por exemplo, Araraquara. Se a batida rápida for feita com a parte de baixo da ponta da língua contra os alvéolos dos dentes incisivos superiores, o som tem o nome de flepe;25 g) retroflexos: são sons produzidos com uma obstrução à corrente de ar produzida pelo encurvamento da ponta da língua para cima e para trás.26 Sons oclusivos, fricativos, laterais e até vogais podem receber a retroflexão como uma articulação secundária. Em alguns casos, tem-se observado que o efeito de retroflexão de um som é obtido por uma significativa elevação do dorso da língua, além de uma certa elevação da ponta da língua, formando um cavado entre as duas obstruções; h) aproximantes: são sons não oclusivos, que não se articulam dentro da área vocálica, mas que não apresentam fricção, graças ao fato de a constrição ser menor (isto é, formar uma passagem mais aberta à corrente de ar) do que o necessário para causar turbulência à passagem do ar fonatório e consequente produção de fricção.27 Embora as vogais constituam um modo de articulação dos sons, não são, em geral, analisadas em função dessa categoria. Figura 3.5 Localização dos lugares de articulação e de alguns segmentos no aparelho fonador 2.4.1.2. Lugares de articulação Em função dos lugares de articulação, um segmento fonético pode ser: a) labial ou bilabial: é o som produzido com um estreitamento ou fechamento produzido pela aproximação dos lábios (para exemplificação de cada uma das consoantes do português, de acordo com os lugares de articulação utilizados pela língua, veja Tabela 3.1). No caso de alguns sons, como as vogais, ocorre uma protrusão concomitante na articulação labial. Uma articulação labializada é chamada também de arredondada; b) labiodental: é o som produzido com um contato do lábio inferior com os dentes incisivos superiores. Este lugar de articulação se aplica de maneira típica a fricativas e, raramente, a oclusivas e nasais; c) dental: é o som produzido com a ponta da língua entre os dentes incisivos superiores e inferiores, ou com a ponta da língua contra a parte posterior dos dentes incisivos superiores; d) alveolar: é o som produzido com a parte da frente da língua em direção aos alvéolos dos dentes incisivos superiores; e) palatoalveolar: é o som produzido na região imediatamente posterior à região onde se articulam os sons alveolares. Trata-se de um som de base “alveolar” ao qual foi acrescentada uma qualidade “palatal”; f) alveopalatal: é o som produzido na região imediatamente anterior à região onde se articulam os sons palatais. É um som “palatal” com características alveolares ou anteriores; g) palatal: é o som produzido com a parte central da língua contra a parte central (mais alta) da abóbada palatina, indo até o final do palato duro; h) velar: é o som produzido com o dorso da língua contra o palato mole; i) uvular: é o som produzido com o dorso da língua contra o fundo da cavidade oral, de modo a pressionar a parte mais baixa do palato mole, incluindo a úvula; j) faringal: é o som produzido pela raiz da língua formando uma constrição contra a parede da cavidade faringal. Na articulação desse tipo de som, a língua deve assumir uma posição plana, o que costuma trazer a sua ponta um tanto para a frente; k) glotal: é o som produzido com a articulação das cordas vocais. Se for necessário anotar uma articulação como ocorrendo à meia distância entre dois lugares anteriormente definidos, usa-se um diacrítico28 de “anterior” ou de “posterior”, conforme o caso. As categorias usadas nas línguas para definir os fonemas e alofones29 foram estabelecidas, levando- se em consideração a anatomia e fisiologia da fala e, sobretudo, o fato de cada lugar propiciar uma qualidade fonética diferente para um mesmo modo de articulação. Nem todos os lugares comportam todos os tipos de modos de articulação, em geral, por restrições fisiológicas.30 Tabela 3.1 Exemplos de consoantes do português, classificadas quanto ao modo e ao lugar de articulação Exemplos de modos e lugares de articulação para as consoantes do português Oclusivas: a) bilabiais: [p, b] pato, bato b) alveolares: [t, d] tato, dado c) velares: [k, g] cato, gato Fricativas: a) labiodentais: [f, v] faca, vaca b) alveolares: [s, z] caça, casa c) palatoalveolares: [S, Z] chá, já d) velares: [x, ] rato, barriga e) uvulares: [X, ] roda, curral* f) glotais: [h, ] rato, barriga Africadas: a) palatoalveolares: [t, d] tia, dia, pote, pode Nasais: a) bilabial: [m] somo b) dental: [n] sono c) palatal: [] sonho d) velar [N] banco: Laterais: a) dental: [l] mala b) palatal: [] malha: Vibrantes: a) alveolar sonora: [r] mar b) alveolar surda: [r8] mar c) uvular sonora: [R] mar* Tepes: a) alveodental: [R] prato, crise, força, caro Retroflexas: a) anterior (alveolar) [] porta, mar b) posterior (palatoalveolar) [] porta, mar * Este tipo de articulação ocorre muito raramente em português. O mais comum é uma articulação velar um tanto posteriorizada, sem chegar a ser uvular. 2.4.1.3. Vozeamento Na fonética segmental, com base no processo fonatório, em geral, classificam-se os sons com base na oposição surdo/sonoro (vozeado/desvozeado). Os sons produzidos com vibrações das cordas vocais são chamados de sonoros ou vozeados. Já os sons surdos ou desvozeados são aqueles produzidos sem vibrações das cordas vocais. As vogais são os sons vozeados, por excelência.31 Por sua vez, as consoantes podem ser surdas ou sonoras. Veja-se a oposição entre o som inicial dos pares de palavras a seguir, em que a primeira palavra se inicia por um som surdo e a segunda, por um sonoro: pato, bato; faca, vaca; chá, já; cato, gato etc. 2.4.2. Vogais Na produção dos sons vocálicos, os articuladores orais encontram-se de tal modo abertos que a corrente de ar, ao passar centralmente pela cavidade oral, não encontrando obstáculos, não produz fricção. As vogais são sempre pronunciadas com a pontada língua abaixada e com a superfície da língua em forma convexa. Figura 3.6 Configurações da superfície medial da língua obtida por meio de raio-X durante a articulação das vogais [i], [a] e [u] Esquema da configuração da língua para a articulação das vogais [i], [a] e [u]. Dada a configuração côncava da abóbada palatina, o ponto mais alto da curva da superfície da língua formará o lugar de maior constrição na cavidade oral, e definirá os sons em função da altura articulatória, na vertical, e do lugar, na horizontal. -------- [i]; —— [a]; ........ [u] O movimento do corpo da língua para a produção dos sons vocálicos se restringe a uma certa área do trato vocal, representada por um trapézio, na Figura 3.7. Além dos limites dessa área, os sons produzidos não se caracterizam mais como vogais. Figura 3.7 Representação esquemática da área vocálica Figura 3.8 Graus de estreitamento dos articuladores dentro da cavidade oral — Cagliari (1981a, p. 38) Tradicionalmente, do ponto de vista articulatório, os sons vocálicos têm sido classificados com base nos movimentos da língua nos eixos vertical e horizontal, dentro da área vocálica. Dessa forma, foram estabelecidos quatro níveis de altura, a partir da posição mais fechada dos articuladores até a mais aberta,32 e três regiões articulatórias, com base no deslocamento horizontal do estreitamento articulatório, dentro da área vocálica. Como as vogais também podem ser produzidas com ou sem protrusão labial, podem ser classificadas conforme a posição dos lábios no momento de sua produção (arredondados ou não arredondados).33 Na Tabela 3.2, encontram- se estabelecidos esses três parâmetros articulatórios de classificação para as vogais, relacionando-os com os símbolos representantes das vogais correspondentes à articulação analisada.34 Tabela 3.2 Classificação das vogais Da Tabela 3.2, as vogais que podem ser encontradas na posição tônica, no português do Brasil, são: [i] — abacaxi; [e] — beleza; [] — belo; [a] — batata; [] — bola; [o] — bolo; [u] — urubu. A vogal [] é, também, bastante frequente no português brasileiro, podendo ocorrer nasalisada ou não (ex.: cama; banana). No português europeu, na posição átona, é bastante frequente a ocorrência da vogal [], denominada “schwa”, por exemplo, em palavras como leite; Algarve. A vogal representada como [y] corresponde ao “i arredondado” do francês, grafada como u, por exemplo, menu. Já a vogal [] ocorre em japonês, equivalendo a um “u não arredondado”. Os sons [i] e [u] são recorrentes em algumas línguas indígenas brasileiras. 2.4.2.1. Ditongos Do ponto de vista estritamente fonético, os ditongos são vogais que mudam de qualidade durante sua produção. Em geral, as vogais mantêm, durante um certo tempo, uma qualidade constante, com variações em geral pouco perceptíveis em seu início e final. No caso dos ditongos, a articulação parte de um ponto dentro da área vocálica e se dirige a outro. Nesse movimento, a vogal vai variando, assumindo a qualidade vocálica dos lugares por onde passa. Isso pode ser detectado por meio de aparelhos especiais. No entanto, o ouvido humano ouve de forma saliente apenas as qualidades vocálicas do início e do final desse movimento — ou, se houver, também do ponto em que o movimento muda de direção. É por essa razão que os ditongos são representados na transcrição fonética por dígrafos e os tritongos por trígrafos, nos quais aparecem os símbolos dos valores mais salientes da percepção dessas articulações. Muitas línguas, sobretudo as indo-europeias, formam ditongos partindo ou chegando a uma articulação alta, fechada. É por essa razão que, nessas línguas, os ditongos começam ou acabam com as qualidades [i] ou [u]. Entretanto, nada impede que, foneticamente, mesmo nessas línguas, ocorram ditongos formados diferentemente. Para um bom observador, em português, há a possibilidade da formação de ditongos e tritongos, cujas margens são ocupadas por vogais outras que não [i] e [u], no nível fonético, mas que costumam ser interpretadas pelo falante/ouvinte como se fossem essas vogais, no nível fonológico (aquele que se preocupa com a função dos sons dentro do sistema): (7) sEU sEo sE (céu) paI pae paE (pai) kUAU koAU kUA (qual) 2.4.2.2. Semivogais As semivogais (ou semiconsoantes) são interpretações fonológicas e não fonéticas. Como se disse anteriormente, os ditongos representam uma única vogal que muda de qualidade durante sua articulação — e que é representada por um dígrafo (não por duas vogais). A noção de semivogal só faz sentido dentro de uma ciência como a Fonologia,35 que vai determinar o valor que os elementos representados por /j/ e /w/ assumem na estruturação fonológica das sílabas.36 A interpretação das semivogais na tradição gramatical e desta para a tradição linguística vem do fato de as línguas semíticas, que transcreviam apenas as consoantes, no caso dos ditongos, representarem o elemento [i] ou [u] — que passaram a ter um status de consoante na escrita. Como a língua grega formava ditongos (assim como o português), tendo sempre em um dos pontos de saliência as qualidades [i] ou [u], ficou como “regra” a interpretação do ditongo como uma vogal precedida ou seguida de [i] ou [u]. Dessa forma, o termo semivogal veio da interpretação da sílaba como constituída de consoantes na periferia e de vogal no núcleo. Como as qualidades vocálicas [i] e [u] eram consideradas menos salientes, passaram a ser vogais que ocupavam a periferia da sílaba e não o núcleo. Como os foneticistas sempre se preocuparam com o estudo das saliências, no caso dos ditongos, notaram que, em geral, quando um ditongo termina com as qualidades [i] ou [u], a curva de saliência auditiva é decrescente, e quando aqueles elementos iniciam o ditongo, a saliência é crescente. Por essa razão, os ditongos passaram a ser classificados como decrescentes ou crescentes. No entanto, foneticamente, é possível (e acontece em certos casos) a curva de saliência estar invertida, tendo nos elementos [i] e [u] uma saliência maior do que no outro elemento integrante do ditongo. Pela definição de ditongo, conclui-se que não pode haver ditongo que tenha a mesma qualidade no início e no final, porque, neste caso, o que acontece é uma vogal longa. Em português, algumas pessoas pronunciam palavras como sul usando apenas uma vogal longa [su:]; a maioria, porém, pronuncia um ditongo crescente [su].37 2.5 Transcrição fonética A transcrição fonética depende de uma tradição, segundo a qual o que ouvimos é representado, entre colchetes, em termos de segmentos chamados consoantes ou vogais. Os foneticistas não usam os dados de línguas particulares para definir o valor dos segmentos, mas as possibilidades articulatórias do homem.38 Assim, qualquer som que pode ser um fonema ou um alofone em uma língua será representado por um símbolo próprio.39 O treinamento fonético de transcrição comporta dois tipos de exercícios, sem os quais uma transcrição pode ser mal realizada. O primeiro é o treinamento de audição, que faz com que o linguista saiba ouvir sons individuais — colocados em qualquer tipo de contexto e de qualquer extensão — e reconhecer em cada segmento a categoria a que pertence, de acordo com as possibilidades articulatórias do homem. O segundo é o treinamento de produção, que treina o linguista a dizer todos os segmentos individualmente ou de forma combinada com qualquer outro em qualquer sequência. Como disse, certa vez, o foneticista Ladefoged (1975), trata-se de uma “arte” dentro de uma ciência. A história da Fonética conheceu vários sistemas de transcrição fonética. Hoje, o mais difundido é o da Associação Internacional de Fonética, conhecida como IPA (International Phonetics Association). Esse alfabeto já tem cem anos e foi recentemente reformado em alguns aspectos menos importantes.40 Um outro sistema é o do SIL (Summer Institute of Linguistics), difundido por Kenneth Lee Pike e muito usado na transcrição de línguas indígenas.41 Hoje, este alfabeto está cedendo lugar para o IPA. Os procedimentospara se fazer uma transcrição fonética são os seguintes. Em primeiro lugar, é muito melhor transcrever a fala na presença do informante, usando dos recursos de gravação (de preferência em vídeo) como forma apenas de documentação. O linguista ouve o informante e procura repetir o que ouviu até que este diga que está tudo correto. A partir da audição e da propriocepção dos movimentos e gestos articulatórios feitos para reproduzir o que ouviu, procede-se à identificação dos segmentos e à sua transcrição. É importante anotar não apenas os segmentos, mas todas as outras características de cada um deles, como duração, acento, tom, qualidade de voz, articulação secundária (aspiração, labialização, por exemplo) etc. Terminado um enunciado, o linguista lê o que escreveu, para que o informante julgue se está tudo correto. O ideal é filmar em vídeo toda a sessão, para posterior revisão do trabalho realizado. Dependendo do grau de sofisticação que se quer na transcrição fonética, haverá um uso maior ou menor de diacríticos. É sempre melhor simplificar uma transcrição posteriormente do que ter dúvidas sobre detalhes não anotados. 2.5.1. Exemplos de transcrição fonética Apresentamos, a seguir, alguns exemplos de transcrição fonética, seguindo os procedimentos estabelecidos no item anterior deste texto. Partimos da leitura de um parágrafo de um livro científico. Apenas por motivos didáticos, apresentaremos, primeiramente, a transcrição fonética de uma palavra isolada, depois de uma frase, e, em seguida, de todo o trecho. Também para facilitar a leitura da transcrição feita, apresentamos o texto lido oralmente na sua forma ortográfica. É necessário salientar que as transcrições do trecho inteiro não marcam os elementos prosódicos. Portanto, entre os fenômenos não representados estão o acento, o ritmo, a entoação e a silabificação. Ortografia “Em relação ao ritmo, a situação não é diferente: há um verdadeiro abismo entre as descrições fonéticas e fonológicas. Tal problema vem de longa data, podendo ser encontradas divergências entre foneticistas e fonólogos desde Pike” (Massini--Cagliari. Acento e ritmo. São Paulo: Contexto, 1992. p. 82). • Transcrição de uma palavra isolada [‘] — “ritmo” • Transcrição de uma frase [’’’’] — “em relação ao ritmo a situação não é diferente” • Transcrição do trecho inteiro Dialeto paulista: Dialeto carioca: 3. FONÉTICA ACÚSTICA 42 Os sons da fala se propagam no ar e, como quaisquer sons, podem ser gravados e estudados por meio de equipamentos de análise acústica. Os laboratórios de Fonética começaram no século passado e já tiveram os mais variados tipos de aparelhos, acompanhando o progresso da tecnologia e os interesses das pesquisas. Um grande impulso nos estudos de Fonética Acústica veio com o desenvolvimento da telefonia. Hoje, com uma câmera de vídeo e programas especiais para computadores pessoais, é possível ter um laboratório em casa.43 As pesquisas em Fonética Acústica apresentam três tipos gerais de preocupação para o linguista: pesquisa da estrutura física dos sons da fala, pesquisa de fala sintética e pesquisa de reconhecimento automático da fala. O primeiro tipo é uma preocupação bem típica da Linguística e os outros dois, mais próprios dos engenheiros de comunicação e de computação. A fala apresenta sons periódicos e ruídos (sons aperiódicos). Os sons periódicos são formados por harmônicos, que são múltiplos inteiros da primeira frequência, chamada de fundamental. Essa frequência fundamental é a que produz o efeito auditivo de altura do som, ou seja, da melodia da fala (tom e entoação). Dependendo do reforço que os harmônicos recebem, o som fica com qualidade própria (timbre). Assim como, na música, uma mesma nota pode ser tocada por diferentes instrumentos, cada qual com sua qualidade, do mesmo modo um som com um mesmo fundamental pode ficar com diferentes qualidades, como acontece com as vogais. Portanto, as diferentes configurações do aparelho fonador servem para modular o som fonatório, imprimindo as diferentes qualidades. Existem alguns harmônicos que ficam bem reforçados, apresentando, no envelope dos espectros sonoros, picos de intensidade que são chamados de formantes (cf. Fant, 1968). Ao longo do tempo, os formantes apresentam uma transição no começo e no final de cada segmento, sobretudo quando os vizinhos têm uma articulação bem diferente, como no caso de uma oclusiva seguida de uma vogal. Há várias maneiras de se analisar os elementos físicos da acústica dos sons da fala. O mais comum é por meio de espectrogramas — que são gráficos que apresentam na ordenada a variação de intensidade dos sons, por meio de manchas escuras, numa escala de frequência e, na abscissa, a variação do espectro (intensidade e frequência) em função do tempo decorrido. Pelo estudo dos formantes, obtém-se uma descrição dos sons periódicos da fala (sonoros). Por exemplo, as vogais altas apresentam o formante dois (F2) mais afastado do formante um (F1), as vogais baixas apresentam F2 menos afastado de F1. As vogais anteriores apresentam frequências localizadas em uma parte mais alta do espectro, ao passo que as vogais posteriores, na parte mais baixa. As oclusivas surdas apresentam um espaço em branco, correspondente ao momento de total obstrução à corrente de ar. As oclusivas sonoras apresentam vibrações de baixa frequência. No momento da soltura das oclusões, ocorre um breve momento de fricção (aspiração ou murmúrio) e um direcionamento da transição em direção à localização do segmento imediatamente seguinte. As fricativas apresentam fricção que, por ser o resultado de turbulência e de ruído, não define estruturas de formantes. Cada tipo de consoante fricativa é reconhecido pela posição que ocupa no espectro: as palatais apresentam sons em altas frequências, as alveolares apresentam sons em frequências mais baixas e as labiais nas frequências mais baixas do espectro. Essa diferença é facilmente perceptível ao ouvido, quando se pronunciam esses sons de forma isolada e prolongada. Sons do tipo das laterais, das retroflexas, das nasais e das vibrantes apresentam um forte damping, ou seja, uma redução significativa na intensidade geral do espectro. Durante muito tempo, a palatografia44 prestou grandes serviços à Fonética, juntamente com as pesquisas aerodinâmicas obtidas por meio dos quimógrafos.45 A palatografia pode ser feita de várias maneiras e serve para mostrar os contatos linguopalatais, como mostra a Figura 3.10. Figura 3.9 Amostra de espectrograma tradicional com exemplo do português, mostrando a variação de formantes na linha do tempo, as áreas de fricção e a curva de amplitude, sobreposta. Figura 3.10 Exemplo de palatograma obtido por meio de fotografia da imagem dos contatos linguopalatais (áreas claras) refletida em um espelho. As áreas escuras estão cobertas por uma mistura de chocolate e carvão. Palatograma tradicional que mostra as áreas de contato linguopalatal na articulação do som []. Nota-se como há um fechamento do canal central, por onde passa a corrente de ar, tendo a maior constrição na altura dos primeiros dentes molares, região definida como ponto de articulação palatoalveolar. Figura 3.11 Palatogramas feitos por meio da impressão dos contatos da língua contra uma placa de acrílico que reveste o palato duro. Desse modo, os contatos podem ser vistos em três posições diferentes. Os palatogramas de cima representam a fricativa [s]. Nota- se a passagem estreita localizada junto aos dentes caninos e incisivos. Os palatogramasde baixo mostram a articulação de uma fricativa []. Nota-se que o estreitamento maior à corrente de ar ocorre junto aos dentes pré- molares. Na vista lateral desses palatogramas, observa-se que a fricativa alveolar tem uma posição mais baixa da língua. Figura 3.12 Amostras de palatogramas das vogais [i], [e] e [E], mostrados em três dimensões diferentes: de baixo para cima, lateral esquerda e de frente. As duas últimas dimensões são possíveis porque a placa é transparente. Palatograma de vogal [i]. Diferentemente da fricativa alveolar, o canal de constrição à corrente de ar não forma um afunilamento final, evitando a turbulência do ar e a fricção. A articulação é alveolar e ocorre junto aos dentes caninos. Palatograma da vogal [e]. Observa-se que esta vogal é articulada com a língua mais baixa e com um estreitamento à corrente de ar menor do que para a vogal [i]. Os contatos linguopalatais têm seu início nos alvéolos dos dentes caninos. Palatograma da vogal [E]. Esta vogal tem uma posição da língua ainda mais baixa do que a vogal [e] e uma passagem bem aberta à corrente de ar. Como acontece com as demais, o início dos contatos ocorre junto aos alvéolos dos dentes caninos. Os estudos quimográficos mostram o comportamento da corrente de ar oral e nasal, as vibrações das cordas vocais e, às vezes, até a forma da onda acústica, como se pode ver na Figura 3.13. Figura 3.13 Amostra de um quimograma moderno — Cagliari (1981b) Na Figura 3.13, os seguintes parâmetros foram registrados: marca do tempo (onda de 50 cps), segmentação representada por barras verticais (feitas pelo foneticista ao analisar os dados registrados), a corrente de ar nasal filtrada (lpNt), a mesma corrente de ar sem passar por filtros (NAt), mostrando os momentos de vozeamento, a corrente de ar oral filtrada (lpMt), a mesma corrente de ar oral sem ser filtrada (MAt), a configuração das vibrações das cordas vocais (Lx) captada por um laringógrafo, com microfone de contato, onde se vê a curva entoacional (tom 3 e tom 1) e, por último, a forma de onda acústica (áudio). A transcrição fonética do enunciado é apresentada logo abaixo da linha lpNt. 4. CONCLUSÃO Por meio dessa breve introdução aos estudos de Fonética, esperamos ter mostrado que, por trás dos sons da nossa fala, existem muito mais características fascinantes do que o nosso sistema de escrita alfabético- ortográfico, que representa a fala apenas por símbolos para consoantes e vogais, deixa entrever. Os estudos de Fonética são indispensáveis para quem lida com os elementos sonoros da linguagem e, por essa razão, são importantes para a Medicina (fisiologia e cirurgias que envolvem membros do aparelho fonador), para a Fonoaudiologia (tratamento de distúrbios da fala), para a Engenharia de Telecomunicação (telefonia, aparelhos de sons), para a Ciência da Computação (produção e reconhecimento de fala), para as Artes Cênicas e Cinematográficas, e, é claro, para as Ciências da Linguagem. REFERÊNCIAS ABERCROMBIE, D. Studies in phonetics and linguistics. London: Oxford University Press,1965. ______. Elements of general phonetics. Edinburgh: Edinburgh University Press,1967. 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Por outro lado, qualquer estrutura rítmica da fala exige que sejam montadas unidades de tempo maior do que os segmentos. A atribuição de acentos também exige conhecimentos prévios maiores do que os segmentos, sobretudo quando ocorrem deslocamentos de acentos em frases, causados pela concatenação de segmentos. Para uma distinção entre os níveis prosódico e segmental, veja o item 2.2 — “Prosódia e segmentos” — neste capítulo. 6. A teoria dos pulsos torácicos, para explicar o mecanismo da produção das sílabas, foi, pela primeira vez, formulada por Stetson, 1928, e revisitada em Ladefoged, 1967. Experimente prolongar um som (por exemplo, “a”) e, ao mesmo tempo, peça para alguém bater nas suas costas. O som contínuo (uma sílaba longa) se divide em pulsos, fazendo uma série de “as”, cada qual valendo por uma sílaba. 7. Para poder ler a transcrição fonética representada nesses exemplos e produzir os sons representados, remetemos o leitor à Tabela de Símbolos do IPA, no final deste capítulo, e também aos itens 2.5 — “Transcrição fonética” —, 2.4.2 — “Vogais” — e 2.4.1 — “Consoantes”. 8. Os exemplos aqui citados foram retirados de Laver (1994, p. 238-239). 9. A respeito da origem da divisão dos sons da fala em consoantes e vogais, ver Cagliari, 1989a. 10. Para uma listagem dos elementos prosódicos, com um estudo de sua função, ver Cagliari, 1992. A respeito de como tais elementos podem ser inferidos a partir da modalidade escrita, deve-se consultar Cagliari, 1989b. 11. A este respeito, ver o livro de Lehiste, 1970. 12. A este respeito, vejam-se os trabalhos de Fernandes, 1976; Cagliari, 1981a, 1984; Delgado Martins, 1986; Moraes, 1986, 1987; Massini, 1991; e Massini-Cagliari, 1992. 13. Assim, palavras como é, há, só, pé, sim, não, ditas isoladamente, não são átonas nem tônicas, porque não há com o que comparar. 14. No exemplo (e), a sílaba ao, que, isoladamente, não é nem tônica nem átona (é um monossílabo), passou a ter um acento principal pelo fato de receber um acento frasal. 15. Na nossa tradição atual, costuma-se contar apenas até a última sílaba tônica para estabelecer a quantidade de sílabas poéticas do verso. A este respeito, ver Goldstein, 1987 e Massini-Cagliari, 1999. p. 52-55. 16. A respeito da diferenciação entre duração e quantidade silábicas, ver Cagliari e Massini- Cagliari, 1998. 17. A este respeito, ver Abercrombie, 1965/1967. 18. A descrição da entoação, neste tópico, segue a teoria de Halliday, 1963/1970. Ver, também, Halliday, McIntosh e Strevens, 1974. 19. A descrição dos padrões entoacionais do português, neste artigo, segue Cagliari, 1981a, 1982a,b. 20. Para a definição de pé, veja o item 2.3.2. — “Ritmo”. 21. No exemplo, as pausas são representadas com o símbolo ^ . 22. Veja os itens 2.4.1 — “Consoantes” — e 2.4.2 — “Vogais” —, neste mesmo capítulo. 23. Para um estudo mais aprofundado das qualidades de voz, ver Laver, 1980. 24. As características de qualidade de voz causam problemas muito complicados nas análises fonéticas por meio de instrumentos, porque modificam o resultado físico dos dados de maneira significativa — o que para o ouvido é tido como irrelevante, porque ele os analisa e os deixa de lado como fenômenos de qualidade de voz. 25. Na tradição fonética americana, o termo flap refere-se ao que o IPA chama de tepe (em inglês tap), ou seja, à vibrante simples, da tradição fonética portuguesa. 26. As retroflexas não apresentam contato da ponta da língua na linha central da cavidade oral e, às vezes, são chamadas de “vibrantes” retroflexas, pela semelhança auditiva que apresentam com os chamados sons do “r”. Na tradição fonética portuguesa, são chamados de “r caipira”. 27. Com exceção das oclusivas, todas as demais consoantes podem ser também fricativas ou aproximantes. Exceto as fricativas, as demais consoantes desse grupo são, em geral, aproximantes. 28. Conforme Tabela dos Símbolos do IPA, no final deste capítulo. 29. Para as definições de fonema e alofone, remetemos o leitor para o próximo capítulo deste livro e para Cagliari (1997). 30. Não há razão linguística para se proceder a uma classificação mais detalhada do que a apresentada neste texto para os lugares de articulação. 31. As vogais que, em português, às vezes são classificadas como surdas constituem, na verdade, sons sussurrados. 32. Os termos fechada, meio-fechada, meio-aberta e aberta, utilizados na tabela como parâmetros para classificação das vogais, equivalem aos termos alta, médio-alta, médio-baixa e baixa, que podem ser encontrados em outros trabalhos. 33. A oposição arredondada/não arredondada equivale à oposição labializada/não labializada, encontrada em outros trabalhos. 34. Sugestão para treinar a sua performance: para produzir os sons vocálicos presentes na Tabela 3.2 que não ocorrem no português, parta de um som homorgânico e depois modifique a característica que diferencia o som presente em nossa língua daquele não presente. Exemplo: para produzir um [y], que é uma vogal fechada, anterior, arredondada, você pode partir do [i], que se diferencia do [y] apenas por não ser arredondada. Mantendo a altura e a região articulatória próprias do [i], basta fazer uma protrusão dos lábios. 35. Ver o capítulo sobre Fonologia neste mesmo volume. 36. Em termos fonéticos, os símbolos [j] e [w] representam consoantes fricativas (ou aproximantes). A este respeito, veja o item 2.4.1.1 — “Modos de articulação” — deste capítulo e a tabela dos símbolos fonéticos, ao final deste capítulo. 37. Convém notar que a transcrição [su] refere-se à palavra suo (v. suar) e não a sul (cf. ainda palavras como último, culpa, multa etc.). Por outro lado, note-se o efeito de assimilação causado pelos elementos menos salientes dos ditongos sobre os mais salientes em exemplos como [mas] e [mas], em que se pode observar, no segundo caso, um recuo da vogal /a/. 38. A respeito das possibilidades articulatórias do homem, ver Catford (1968/1977). 39. É interessante notar que todos os sons possíveis de serem articulados aparecem nas línguas.De acordo com essa tradição, nem todas as variações possíveis de serem detectadas pelo ouvido e, sobretudo, por meio de instrumentos em laboratórios, constituem segmentos fonéticos autônomos, devendo ser agrupados nas categorias definidas auditivamente. Por exemplo, embora se possa notar diferentes realizações de uma vogal como [a], sobretudo através de instrumentos apropriados, essas variantes são irrelevantes quer para a Fonética linguística, quer para a Fonologia, servindo tão somente para um estudo físico de um som que veio da fala de alguém. 40. No final deste texto, são apresentadas as tabelas com os símbolos adotados pelo IPA, para a transcrição de vogais e de consoantes, bem como os diacríticos adotados para acrescentar, à representação dos segmentos, características adicionais do som transcrito. 41. A respeito do alfabeto fonético do SIL, ver Pullum e Ladusaw (1986). 42. Para uma introdução aos estudos de Fonética Acústica, ver Ladefoged (1962) e Fry (1979). 43. Os estudos acústicos podem, assim, ser feitos com a demonstração em vídeo do que se analisa, em tempo real, gravado em CD. Podem-se, além disso, fazer boas transcrições fonéticas auditivas, com a análise das imagens e dos gráficos processados pelo computador. Pesquisas de natureza aerodinâmica e fisiológica requerem equipamentos mais sofisticados e, em geral, muito caros. 44. A este respeito, ver Cagliari (1974). 45. W. Hardcastle desenvolveu um método computadorizado de investigação palatográfica indireta, muito útil nas pesquisas fonéticas e nas clínicas de fonoaudiologia. Sobre este assunto, ver Hardcastle e Laver (1997). Os quimógrafos estão praticamente ausentes das pesquisas modernas. SÍMBOLOS DO IPA (INTERNATIONAL PHONETICS ASSOCIATION) (organizados por Luiz Carlos Cagliari) Consoantes: Onde os símbolos aparecem em pares, o da direita representa uma consoante sonora. Áreas hachuradas denotam articulações consideradas impossíveis. Outros símbolos: Fricativa labiovelar surda Clique bilabial w Aproximante labiovelar sonora Clique dental Aproximante labiopalatal sonora ! Clique (pós)alveolar K Fricativa epiglotal surda Clique palatoalveolar Fricativa epiglotal sonora Clique lateral-alveolar SÍMBOLOS DO IPA (INTERNATIONAL PHONETICS ASSOCIATION) (organizados por Luiz Carlos Cagliari) Consoantes: Onde os símbolos aparecem em pares, o da direita representa uma consoante sonora. Áreas hachuradas denotam articulações consideradas impossíveis. Outros símbolos: Fricativa labiovelar surda Clique bilabial Aproximante labiovelar sonora Clique dental Aproximante labiopalatal sonora Clique (pós)alveolar Fricativa epiglotal surda Clique palatoalveolar Consoantes africadas e com dupla articulação podem ser representadas por dois símbolos unidos por uma barra de ligação, se for necessário: . SÍMBOLOS DO IPA (INTERNATIONAL PHONETICS ASSOCIATION) (organizados por Luiz Carlos Cagliari) Diacríticos: Tons e variação melódica de palavras: SÍMBOLOS DO IPA (INTERNATIONAL PHONETICS ASSOCIATION) (organizados por Luiz Carlos Cagliari) Vogais: Suprassegmentos: 4 FONOLOGIA Angel Corbera Mori 1. FONÉTICA E FONOLOGIA O linguista suíço Ferdinand de Saussure foi o primeiro a estabelecer que a linguagem humana compreendia dois aspectos fundamentais: a língua e a fala. Para ele, a língua é um produto social, presente na totalidade dos membros de uma comunidade linguística. A fala, por sua vez, é um fato individual, representa uma realização concreta da língua num momento e lugar determinados. Nesse sentido, segundo o autor, o estudo da linguagem comporta duas partes: “uma, essencial, tem por objeto a língua, que é social em sua essência e independente do indivíduo; esse estudo é unicamente psíquico; outra, secundária, tem por objeto a parte individual da linguagem, vale dizer, a fala, inclusive a fonação e é psicofísica”.1 A língua e a fala não ocorrem separadas, ambas são interdependentes, a língua é ao mesmo tempo o instrumento e o produto da fala. Dessa forma, língua e fala constituem a linguagem humana: a língua representa o código comum de comunicação entre todos os membros de uma comunidade, e a fala é a materialização da língua em situação de uso de cada indivíduo dessa comunidade (Saussure, 1916). Na visão saussureana, a língua é um sistema de signos formados pela união do significado e do significante.2 Neste capítulo, iremos nos deter no estudo do significante, não do significado. O significante, na fala, é estudado pela Fonética:3 articulatória e acusticamente. Na língua, o significante é estudado pela Fonologia. Quando falamos emitimos uma série de sons, porém esses sons não são realizados de uma mesma maneira por todos os membros de uma comunidade linguística. Do mesmo modo, os sons nunca são produzidos no aparelho fonatório num mesmo ponto articulatório, eles podem estar condicionados por determinados contextos fônicos que os circundam. Em português, por exemplo, temos o fonema plosivo velar desvozeado /k/,4 que pode ser articulado numa posição mais pós-velar quando ocorre em palavras como [k2ubU] “cubo”; numa posição mais anterior, na região palatal, como em [k1ilU] “quilo”, e numa posição mais central em [kaz] “casa”. Apesar dessas diferenças fonéticas, o ouvido do falante nativo do português não as percebe; para poder identificá-las ele precisaria de um treinamento específico em Fonética. Outro exemplo, em espanhol os fonemas plosivos vozeados /b/, /d/ e /g/ ocorrem como fones5 fricativos em determinados contextos fonéticos. Assim, na palavra “gato”, o fonema /g/ é articulado como uma consoante plosiva velar vozeada [gato], mas no contexto intervocálico, como em “una gata” [unaata], é articulado como fricativa velar vozeada, mas sem, no entanto, variar o significado da palavra “gato”. Essas variações fonéticas não são percebidas pelo falante nativo do espanhol, pois elas se dão automaticamente. Se, por outra parte, contrastarmos a palavra “gato” com “pato”, veremos que há variação no significado; isso quer dizer que os segmentos /g/ e /p/ são fonemas no espanhol. Do mesmo modo, haverá variação de significado se confrontarmos “gato” e “pato” com [mato] “mato” do verbo matar. Já o fone [] que ocorre na emissão [unaata] não é fonema no espanhol, ele é uma realização fonética do fonema velar vozeado /g/. O estudo dos fones em seus aspectos físicos, articulatórios e auditivos corresponde à Fonética. O estudo dos fonemas como unidades discretas, distintivas e funcionais é tarefa da Fonologia. A diferença entre Fonética e Fonologia foi consolidada no Primeiro Congresso Internacional de Linguistas realizado em Haia,6 em 1928, a partir do trabalho de três linguistas russos: Roman Jakobson, Nicolai Trubetzkoy e Serge Karcevsky. Esses autores sentiram a necessidade de estabelecer a diferença entre uma ciência que se ocupasse dos sons da fala, a Fonética, e outra ligada aos sons da língua — a Fonologia. Essa diferença foi consagrada por Trubetzkoy (1969), que diferenciou duas “ciências dos sons”, uma que se ocuparia do ato de fala e outra do sistema da língua. Ambas as ciências usam métodos diferentes de investigação: o estudo dos sons relacionado ao ato de fala — os fenômenos físicos concretos — emprega métodos que correspondem às ciências naturais; o estudo dos sons relacionado ao sistema da língua usa os métodos da Linguística, das humanidades ou das ciências sociais. Nesse sentido, “designamos o estudo do som ligado ao ato de fala com o termo Fonética, e o estudo relacionado com o sistema da língua com o termo Fonologia”.7 Podemos, assim, considerar a Fonética como a ciência do aspecto material dos sons da linguagem humana. Ela estuda os aspectos físicos da fala, ou seja, as bases acústicas relacionadas com a percepção, e as bases fisiológicas relacionadas com a produção. A Fonética estuda os sons da fala independentemente da função que eles possam desempenhar numa língua determinada. Os métodos de estudo da Fonética se aproximam mais das ciências naturais. As unidadesbásicas da Fonética são os fones, transcritos entre colchetes [p], [t], [k]. A Fonologia estuda as diferenças fônicas correlacionadas com as diferenças de significado (ex.: [p]ato/[m]ato), ou seja, estuda os fones segundo a função que eles cumprem numa língua específica, os fones relacionados às diferenças de significado e a sua inter-relação significativa para formar sílabas, morfemas e palavras. A Fonologia relaciona-se, também, com a parte da teoria geral da linguagem humana concernente com as propriedades universais do sistema fônico das línguas naturais, ou seja, referente aos sons possíveis que podem ocorrer nas línguas. Os primitivos da Fonologia são os fonemas que, por convenção, são representados entre barras inclinadas, /p/, /t/, /k/. A Fonética e a Fonologia como disciplinas diferentes operam com seus próprios métodos; porém, elas se condicionam mutuamente em seu valor e desenvolvimentos. Por exemplo, pretender descrever a fonologia de uma língua indígena falada no Brasil sem considerar o aspecto fonético seria absurdo. Do mesmo modo, o estudo da fonética de uma língua, qualquer que seja, resulta pouco proveitoso, de alcance limitado, se não se considera a função que os segmentos fônicos desempenham no sistema dessa língua. 1.1. Importância da Fonologia Um dos objetivos da Fonologia relaciona-se com o desenvolvimento de ortografias, ou seja, o emprego de um alfabeto para representar a escrita de uma língua. A relação íntima entre a estrutura fonológica de uma língua e o sistema de escrita está presente no livro de Pike (1947), Phonemics: a technique for reducing languages to writing. O alvo principal desse texto é capacitar o estudante de Linguística nas técnicas da análise fonológica para descobrir os fonemas de uma língua desconhecida e propor, posteriormente, uma escrita. Muitos linguistas estiveram, e ainda continuam, envolvidos com o estudo de línguas desconhecidas, línguas sem tradição de escrita. Uma parte do trabalho desses linguistas é, justamente, propor um sistema ortográfico da língua que se está pesquisando. Assim, por exemplo, muitas ortografias das línguas ameríndias foram criadas, com base nos princípios da análise fonológica apresentados por Pike (1947). As aplicações da teoria fonológica não se restringem à elaboração de ortografias para línguas que carecem dela. Ela ajuda também no conhecimento do sistema fonológico da língua materna. Assim, recorrendo à Fonologia, pode-se estabelecer a relação que há entre os fonemas da língua e os símbolos gráficos que os representam. Embora os sistemas alfabéticos de escrita sejam idealmente fonológicos, diversos fatores de mudança linguística e extralinguística produzem discrepâncias entre a estrutura fonológica das línguas e suas ortografias. Por exemplo, em português não há uma correspondência biunívoca entre o fonema fricativo alveolar vozeado /z/ e sua representação grafêmica. Os grafemas usados na representação desse fonema são: <z> como em zebra, Elza; <s> como em piso, asilado; <x> como em exame, exato. Os sistemas de escrita, portanto, não acompanham o desenvolvimento dinâmico da língua oral, daí essa defasagem entre a fala e a sua representação gráfica, dando como resultado os problemas ortográficos no momento de se escrever. O professor deveria, nesse caso, conhecer o sistema fonológico da língua para poder explicar sobre os problemas de ortografia. O conhecimento da Fonologia auxilia também na aprendizagem de uma língua estrangeira. É comum, ao aprender uma língua estrangeira, usar os fones da língua materna na pronúncia daquela que se está aprendendo. Entretanto, quando as duas línguas diferem em seus componentes fonológicos, podem ocorrer interferências problemáticas na prática oral da língua estrangeira. Por exemplo, em contraposição aos dois fonemas do sistema vocálico português — /E/ (como em [pE] “pé”, [fE] “fé”) e /e/ (como em [ipe] “ipê”, [le] “lê”) —, o sistema fonológico espanhol reconhece apenas um único fonema, a saber, /e/. Em razão disso, a maioria dos falantes espanhóis que tem um conhecimento superficial do português não faz distinção entre // e /e/, substituindo ambas as vogais pelo seu fonema único /e/. Observando os sistemas fonológicos das línguas envolvidas, o professor de língua estrangeira poderia resolver os problemas de interferência, desenvolvendo estratégias que auxiliem o estudante a superar a tendência de transpor o sistema fônico de sua língua materna para a língua estrangeira. Se o professor desconhece os sistemas fonológicos da língua estrangeira e daquela do estudante, então o ensino desse professor será pouco proveitoso. A análise fonológica das línguas pode ser aplicada também às desordens fônicas presentes na fala de pessoas com distúrbios da linguagem. A avaliação de desordens fonológicas na fala de uma pessoa pode resultar enganosa e muitas vezes errada, como interpretar, por exemplo, os problemas de articulação simplesmente em termos de omissões, substituições e distorções. Quando um indivíduo mostra uma desordem fonológica, deve-se indagar pelo alcance desses problemas e estabelecer sua relação com o sistema fonológico da língua. Um especialista em patologia da linguagem, que entenda da natureza sistemática dos problemas articulatórios, está em condições de fazer diagnósticos positivos sobre esses problemas que um indivíduo apresenta. 2. O FONEMA Cada língua dispõe de um número determinado de unidades fônicas cuja função é determinar a diferença de significado de uma palavra em relação a uma outra. Por exemplo, a palavra [kasa] “caça” diferencia-se de [kaza] “casa” pelo uso de uma fricativa alveolar não vozeada [s] em “caça” e de uma vozeada [z] em “casa”. Esses tipos de segmentos como /s/ e /z/, que permitem diferenciar significados, denominam-se fonemas. Assim, /s/ e /z/ são dois fonemas no português. O fonema é tratado como uma unidade menor que não pode ser analisada em outras unidades menores, ou seja, como unidade indivisível. Como afirma Trubetzkoy, “as unidades fonológicas que, desde o ponto de vista da língua em questão, não podem ser analisadas em unidades fonológicas menores e sucessivas serão chamadas fonemas”.8 Nesse sentido, o fonema é a menor unidade fonológica da língua de que se trata. O linguista polonês Jan Baudouin de Courtenay, que desde 1870 tinha insistido na divisão entre fonema e som, definiu o fonema em termos estritamente psicológicos. Para ele, o fonema era o equivalente psíquico do som, cujo estudo ficaria por conta da psicofonética. Sapir (1944), linguista norte-americano, enfatizou, também, o valor psicológico do sistema fonológico de uma língua. Para Sapir, os fonemas seriam sons ideais que os falantes intentam produzir e os ouvintes creem escutar. As primeiras definições de fonema dadas por Trubetzkoy (1933) estiveram, igualmente, impregnadas de psicologismo. Em seu artigo La phonologie actuelle (1981), o autor afirma que a Fonética procura descobrir o que de fato se pronuncia ao falar uma língua, e a Fonologia o que se crê pronunciar, considerando o fonema como a imagem acústico-motora mais simples e significativa de uma língua. Posteriormente, no seu livro Grundzüge der Phonologie (1939), Trubetzkoy deixou de lado sua visão psicologista, definindo o fonema em termos estritamente funcionais. O fonema passou a ser definido, então, de acordo com a função que desempenha numa língua, sendo considerado como um conceito linguístico e não psicológico. Leonard Bloomfield, linguista norte-americano, considera o fonema como uma propriedade observável, do contrário resultaria apenas numa conveniência descritiva do analista. A contribuição básica de Bloomfield em torno da Fonologia e da teoria do fonema encontra-se em seu livro Language (1933). Para ele, há física e fisiologicamente um número ilimitado de enunciados que pode ser registrado, mas dele somente uma parte limitada se relaciona com os significados, aqueles enunciados que são distintivos na comunicação linguística. Assim, há formas que podem ser divididas em partese elas podem ser isoladas e combinadas para formarem outras unidades. Partindo desse conceito, Bloomfield definiu o fonema como “unidades mínimas de traços fônicos distintivos”.9 Por exemplo, em inglês, a propriedade ponto de articulação das plosivas não vozeadas /p, t, k/ será relevante na identificação desses fonemas, já a propriedade de aspiração será irrelevante. A aspiração não é uma pro- priedade distintiva no sistema fonológico do inglês. Assim, o fonema /p/ é articulado na posição bilabial, /t/ na região dos alvéolos e /k/ no ponto velar. Esses mesmos fonemas podem ocorrer acompanhados de aspiração quando são pronunciados em início de palavra ou em sílaba tônica como em [pHIt] “pit”, [pHrIpHQr] “prepare”, [tHEst] “test”, [ptHejtU] “potato”, [kHIk] “kick”, [rIkHwajt] “requite”. Nesses exemplos, os pontos de articulação continuam sendo os mesmos, mas acompanhados de uma característica adicional, a aspiração [H]. O fonema pode ser definido também como uma classe de sons. Gleason (1985), por exemplo, define o fonema como uma classe de sons que são (a) foneticamente semelhantes e (b) mostram determinados esquemas de distribuição, dependendo das características de cada língua ou dialeto. Por exemplo, em alguns dialetos do português brasileiro, os fones [t] e [t] formam uma classe de sons que podem ser considerados foneticamente semelhantes, cujo padrão de ocorrências está condicionado por um determinado contexto. O fone [t] ocorre condicionado pela vogal alta [i] como em [tSia] “tia”. O fone [t] ocorre em outros contextos em que não esteja presente essa vogal [i], como em [tatu] “tatu”. Em ambos os casos, a realização desses fones representa a materialização fonética do fonema plosivo dental não vozeado /t/. Note-se que a identificação de [t] e [t] como fones do fonema /t/ se aplica para algumas variedades do português brasileiro, é uma marca própria do português, não sendo relevante para nenhuma outra língua. Em conclusão, toda língua possui um número restrito de sons cuja função é diferenciar o significado de uma palavra em relação à outra. Os sons que exercem esse papel chamam-se fonemas e ocorrem em sequências sintagmáticas, combinando-se entre si de acordo com as regras fonológicas de cada língua. 2.1. A identificação dos fonemas Um objetivo da Fonologia é estabelecer os sistemas fonológicos das línguas, ou seja, o conjunto de elementos abstratos relacionados entre si que o falante utiliza para discriminar e delimitar as unidades funcionais de sua língua. Como chega o fonólogo a descobrir e fazer explícitos esses sistemas? A identificação dos fonemas é feita segundo uma bateria de testes, os mais comuns dizem respeito aos critérios de oposição, distribuição complementar, semelhança fonética e variação livre. A seguir, cada um desses critérios é descrito brevemente. 2.1.1. Oposição Dados dois fones, se a substituição de um pelo outro resultar numa diferença lexical, então esses fones podem ser considerados como fonemas. Para que esse teste resulte operativo, precisamos do par mínimo, ou seja, de dois itens lexicais idênticos, que se diferenciem apenas num elemento da sequência. Dito de outra maneira, quando duas palavras são idênticas em todos os seus aspectos, exceto num segmento, são referidas como pares mínimos. Por exemplo, palavras do português como: (1) [m]ar “mar” [p]ar “par” [b]ar “bar” [m]ar “mar” ve[l]a “vela” ve[]a “velha” [f]ala “fala” [v]ala “vala” quei[]o “queixo” quei[]o “queijo” são pares mínimos. Esses pares nos permitem interpretar os fones [p], [b], [m], [l], [], [f], [v], [] e [] como fonemas consonantais do português. O mesmo procedimento pode ser usado para postular os fonemas vocálicos. O teste dos pares mínimos é uma chave importante na análise fonológica tradicional10. A partir dele, os fones serão considerados fonemas se forem responsáveis pela mudança de significado das palavras dadas. 2.1.2. Oposição em ambientes análogos Às vezes é impossível encontrar verdadeiros pares mínimos para postular fonemas. Em tais casos, o fonólogo busca pares que diferem em dois, ou talvez três, aspectos. Assim, dois itens que ocorram em ambientes similares, mas não idênticos, podem caracterizar a oposição em ambiente análogo, desde que as diferenças entre os sons não sejam atribuídas aos sons vizinhos11. Por exemplo, em Ewe (língua da família Ghaniana)12 os fones fricativos [f] e [v] são interpretados como fonemas com base nos pares análogos [evlo] “ele é mau” e [ẽflẽ] “ele partiu”. Nesses itens, as vogais nasal [ẽ] e oral [o] não podem ser as condicionantes para a ocorrência das fricativas surda [f] e sonora [v], respectivamente. Essas vogais são vozeadas e, se fossem responsáveis pelo condicionamento, então, estariam afetando de maneira diferente o vozeamento de sons vizinhos13. Não sendo esse o caso, conclui-se que os fones [f] e [v] são fonemas em Ewe. Segundo Burquest (1998), em Kaiwá (Guaraní) os fones [p] e [b] podem ser interpretados como fonemas com base em palavras que apresentam ambientes análogos, em dados, como se vê a seguir: (2) [opa] “acabou-se” [aba] “lugar” [ipo] “mão dele’ [bo] “colar” [pik] “peixe” [oboko] “bolsa dele mesmo” [ap] “aqui” [ba] “outras pessoas” O que está em jogo nessas palavras é descobrir se os fones bilabiais [p] e [b] podem ser fonemas na língua kaiwá. Veja-se que esses dois segmentos diferenciam-se apenas pelo vozeamento: [p] é uma consoante plosiva não vozeada e [b] é uma plosiva vozeada. Como não encontramos pares mínimos nesse conjunto de itens, podemos elaborar um quadro mostrando a distribuição desses fones: (3) [p] [b] opa aba ipo bo pik oboko ap b Os ambientes em que ocorrem esses dois segmentos são muito similares. Contudo, não há nada específico, nesses ambientes, que estejam condicionando a ocorrência ora do fone vozeado [b] ora do não vozeado [p]. Não sendo possível prever quando ocorre [p] e quando [b], conclui-se, com base no contraste de ambientes análogos, que esses dois fones devem ser interpretados como fonemas diferentes na língua kaiwá. 2.1.3. Distribuição complementar 2.1.3.1. Alofones Os fonemas de uma língua permitem diferenciar o significado das palavras, daí que realizações fonéticas diferentes de um mesmo fonema não podem ocorrer em contraste. As diferentes realizações fonéticas de um fonema são conhecidas como alofones ou variantes fonéticas. Esses alofones ocorrem condicionados por determinados contextos fonológicos, posição na palavra, qualidade dos segmentos contíguos, condicionamentos suprassegmentais como acento e tom. Em suma, pela combinação de vários fatores. Da mesma maneira que o inventário de fonemas de uma língua pode variar em relação a uma outra, assim também os alofones que caracterizam o fonema de uma língua variam de uma língua para outra. O critério principal para agrupar os alofones como variantes de um fonema chama-se distribuição complementar. A distribuição complementar estabelece que, se dois fones ocorrem em ambientes mutuamente exclusivos, eles podem ser considerados eventualmente como alofones de um mesmo fonema. Em espanhol, por exemplo, existem os segmentos [b], [d], [g], [B], [] e []. Os três primeiros são consoantes plosivas vozeadas que ocorrem em ambientes como início de palavra, depois de uma consoante nasal e precedendo outra consoante, como em [bomba] “bomba”, [daR] “dar”, [gato] “gato”, [lENgwa] “língua”. Os três últimos segmentos — [B], [] e [] — são fricativos vozeados que ocorrem sempre entre vogais, como em [deBER] “dever”, [naDa], “nada”, [boDea] “bar”. Ou seja, o contexto de ocorrência dessas seis consoantes é mutuamente exclusivo, de modo que esses segmentos estão em distribuição complementar. Assim, a ocorrência dos segmentos [], [] e [] é previsível, pois são alofones dos fonemas plosivos /b/, /d/ e /g/ respectivamente, que se manifestam como fricativos quando ocorrem entre vogais. A noção de distribuição complementar fundamenta-se no princípio de que “os sons tendem a ser afetados porseus contextos linguísticos” (Pike, 1947). Esses contextos incluem: (a) efeitos dos sons vizinhos, (b) a posição de ocorrência em unidades maiores (sílaba, palavra, sintagmas), (c) o efeito de elementos suprassegmentais (acento, tom), e (d) informações de índole lexical e gramatical (palavras simples, compostas, categorias lexicais como nome, verbo, adjetivo). Para agrupar os fones como alofones de um fonema é importante considerar o critério de semelhança fonética. Assume-se que os alofones de um mesmo fonema devem apresentar semelhança fonética. Os sons que estão em distribuição complementar, mas que não apresentam semelhança fonética, não podem ser alofones de um mesmo fonema. Por exemplo, considerando a ocorrência dos fones [] e [g] em espanhol, vemos que eles estão em distribuição complementar: [] ocorre entre vogais, [g] não aparece nessa posição, pelo contrário, o fone fricativo [], alofone do fonema /g/ é que ocupa essa posição. O fone [g], por sua vez, ocorre em início absoluto de palavra e depois de uma consoante nasal, ambientes em que não ocorre o fone []. Contudo, o fato de [] e [g] estarem em distribuição complementar não é suficiente para concluir que eles sejam alofones de um mesmo fonema. Esses fones carecem de semelhança fonética. O segmento [] é bilabial e [g], velar. O modo de articulação é também diferente: [] é uma consoante fricativa, [g] uma plosiva, o único traço em comum que partilham esses dois segmentos é o vozeamento. Em relação à semelhança fonética, pode-se dizer que o ponto de articulação exerce um papel importante no momento de agrupar os fones. Assim, é possível estabelecer princípios gerais, como: a) Princípio da homogeneidade fonética Quanto mais longe esteja o ponto de articulação de dois sons haverá menos possibilidade de que eles sejam alofones de um mesmo fonema.14 No entanto, a semelhança fonética pode ser determinada, também, pelo efeito acústico das articulações. O japonês, por exemplo, possui três segmentos fricativos: labial [], glotal [h] e palatal [ç]. Apesar de esses três fones serem articulatoriamente diferentes, são analisados como alofones de um mesmo fonema, pois os mesmos têm efeitos acústicos semelhantes,15 ou seja, parece ser necessário conjugar a homogeneidade fonética com a acústica. A propriedade acústica dos fones pode, em determinados casos como no japonês, contribuir para se estabelecer a semelhança fonética. Dessa maneira, podemos considerar um segundo princípio. b) Princípio da homogeneidade acústica Dois sons serão tanto mais homogêneos quanto mais semelhantes sejam seus efeitos acústicos.16 Os fones agrupados como semelhantes, que potencialmente poderiam ser alofones de um mesmo fonema, são conhecidos como pares suspeitos, isto é, pares de sons foneticamente similares que, eventualmente, seriam alofones de um mesmo fonema. 2.1.4. Variação livre Pelo critério da distribuição complementar identificamos as variantes alofônicas de um mesmo fonema. Contudo, haverá casos em que as variações fonéticas não são contrastivas e nem estão em distribuição complementar. Nesses casos, o falante pode usar dois ou mais alofones no mesmo contexto sem destruir a identidade dos itens lexicais em questão. Quando isso ocorre, fala-se que os fones são variantes livres de um mesmo fonema. Assim, em Shanenawá (Pano),17 os fones [f] e [v] ocorrem em variação livre em início absoluto de palavra, como em [fuRu] ≈ [vuRu] “olho”, [fatSi] ≈ [vatSi] “ovo”. Esses itens podem ser emitidos pelos falantes shanenawás ora com [f] ora com [v] sem afetar o significado dessas palavras. Ou seja, os fones [f] e [v] estão em variação livre. Nos estudos sociolinguísticos, assume-se que as “variantes livres” estão, na realidade, controladas por variáveis sociolinguísticas.18 Há fatores sociais, linguísticos e estilísticos que determinam sistematicamente quais das variantes serão usadas com maior frequência. Princípios adicionais podem ser usados na análise fonológica de uma língua. Na descrição das línguas ameríndias, por exemplo, é útil considerar os seguintes: 2.1.5. Princípio da simetria Os sistemas fonológicos das línguas mostram tendências pela simetria, produto da pressão estrutural de seus padrões fonéticos. Por exemplo, se no inventário fonético de uma língua ocorrem os segmentos plosivos desvozeados [p, t, k] e seus correspondentes vozeados [b, d, g] e na análise fonológica comprova-se que [p], [b], [t] e [d] são fonemas, então, pelo princípio de simetria, poder-se-ia supor que os fones [k] e [g] também sejam fonemas. Pelo princípio da simetria espera-se que para cada som de uma língua seja encontrado um outro som correspondente. Assim, no português encontramos as consoantes fricativas desvozeadas [f], [s], [], e suas correspondentes desvozeadas [v], [z], [Z], constituindo, dessa maneira, um quadro fonético simétrico, como se vê a seguir: Embora as línguas mostrem inclinações pela simetria em seus sistemas fonológicos, isso não implica que os inventários fonológicos sejam necessariamente simétricos. É o caso, por exemplo, dos sistemas fonológicos de muitas línguas indígenas, que se caracterizam por serem assimétricos. 2.1.6. Princípio de economia Esse princípio relaciona-se com a simplicidade ou generalidade que se deve conseguir na descrição da fonologia de uma língua. Sua aplicação é muito geral; uma versão ortodoxa desse princípio diz que dadas, por exemplo, duas descrições linguísticas, uma contendo um inventário de 25 fonemas e a outra com 20 fonemas, escolhe-se a segunda por postular menos fonemas. Porém, o fonólogo deve estar ciente de que não interessa se o inventário fonológico de uma língua possui mais ou menos fonemas, o que interessa é a coerência e a sistematicidade apresentadas na descrição linguística. Nesse aspecto, não adianta forçar a análise para satisfazer caprichos do analista ou para satisfazer determinada teoria linguística. 2.1.7. Princípio de pressão estrutural Esse princípio toma como base a organização estrutural de uma língua na interpretação dos fonemas. Ele é usado na análise de segmentos que foneticamente são ambivalentes, como os glides19 [j] e [w] ou em casos de sequências de consoantes do tipo [ts], [dz] (como em palavras do Kulina:20 [dzidzitani] “escuridão”, [tsktani] “liso”), [t], [d] (como em palavras do português: [k] “ética”, [ip] “tipo”, [di] “dia”, [ditad] “ditado”), [p], [b] (como ocorre em palavras da língua Margi:21 [pà] “luta”, [bà] “laço”). Nas palavras do Kulina e do português, os segmentos [ts], [dz], [t] e [d] poderiam ser tratados inicialmente como uma sequência de dois fonemas na fonologia, ou seja, CC,22 ou como consoantes complexas constituídas foneticamente de uma plosiva mais uma fricativa, característica dos segmentos africados. Nesse caso, esses segmentos serão interpretados na fonologia apenas como C e não como CC. Do mesmo modo, haverá que decidir se os segmentos [p], [b] do Margi representam a sequência de dois fonemas: nasal + plosiva, ou se eles podem ser interpretados como consoantes complexas acompanhadas de uma realização pré-nasalizada. Uma ou outra interpretação dependerá do padrão estrutural da língua que se está analisando. Para entender melhor o princípio de pressão estrutural, considerem-se os seguintes dados fonéticos da língua Shanenawá (Pano): (4) [piciwi] “nadar” [suja] “rato” [wasi] “capim” [japa] “piaba” Nessa transcrição, os glides estão simbolizados por [w] e [j], como se fossem consoantes, mas foneticamente são percebidos, também, como se fossem vogais. Então, nada impede que esses mesmos itens sejam transcritos como: (5) [piciui] “nadar” [suia] “rato” [uasi] “capim” [iapa] “piaba” Numa transcrição fonética, uma ou outra forma de simbolização é possível. Numa análise fonológica ter-se-á que se decidir se esses fones funcionam como fonemas consonantais /w/, /j/, ou como fonemas vocálicos /u/, /i/. A solução de serem tratados como consoantes ou como vogais dependerá do padrão estrutural dalíngua Shanenawá, ou seja, segundo a estrutura silábica dessa língua (cf. sílaba na seção 4). 3. PROPRIEDADES DOS SONS: OS TRAÇOS DISTINTIVOS Considerou-se, até o momento, os fonemas como as unidades básicas da Fonologia, no sentido de serem as unidades mínimas e contrastivas que ocorrem numa língua. No entanto, há uma série de evidências mostrando que são determinadas propriedades dos sons e não os fonemas que seriam os primitivos da Fonologia.23 O fonema estaria constituído por um conjunto de propriedades que se realizam simultaneamente. Esse feixe de propriedades chama-se traços. Assim, por exemplo, os fonemas do espanhol: /b/, /d/ e /g/ atualizam-se foneticamente como alofones fricativos [], [] e [], respectivamente, quando ocorrem entre vogais. Pelos parâmetros tradicionais da análise fonológica concluir-se-ia, então, que (6) a) /b/ é um fonema plosivo bilabial sonoro que se realiza foneticamente como [] quando ocorre entre vogais; b) /d/ é um fonema plosivo dental sonoro que se realiza foneticamente como [] quando ocorre entre vogais; c) /g/ é um fonema plosivo velar sonoro que se realiza foneticamente como [] quando ocorre entre vogais. Descritos dessa maneira, tem-se a impressão de que o falante do espanhol manifesta três “regras” diferentes: (a) para a bilabial, (b) para a dental e (c) para a velar. Contudo, a teoria fonológica busca generalizações na explicitação dos processos fonológicos que ocorrem numa língua. No caso do espanhol, vê-se que as três consoantes plosivas vozeadas realizam- se como fricativas em posição intervocálica, independentemente de seus pontos de articulação, se são bilabiais, dentais ou velares. Em cada uma das três regras — (a), (b) e (c) —, há especificações redundantes dos contextos em que se produz cada fonema. Individualmente, cada regra menciona a mudança de uma consoante plosiva vozeada para uma consoante fricativa. Está implícito, a partir dessa observação, que há um processo regular de mudança das plosivas vozeadas, mas que essas três regras não o explicitam. A análise fonológica de uma língua procura generalizações, então esses segmentos deveriam ser agrupados em classes naturais, entendidas como aquelas que agrupam os sons por determinadas propriedades que são partilhadas entre si. Dessa maneira, os segmentos plosivos /b/, /d/ e /g/ do espanhol formam uma classe natural e os fricativos [], [] e [] formam outra classe natural. Mas, para agrupar os sons em termos de classes naturais, deve-se procurar pela estrutura interna desses sons, ou seja, pelos seus traços. Os traços servem não apenas para agrupar os sons em classes naturais, mas também para diferenciar um fonema de outro, daí que são denominados traços distintivos. Por exemplo, os fonemas bilabiais /p/ e /b/ opõem-se pelo traço distintivo [voz], o primeiro é [–vozeado] e o segundo [+vozeado]. Então, a mudança dos fonemas plosivos do espanhol, anteriormente citados, pode ser mostrada não por três regras independentes (a), (b) e (c), mas pela fusão dessas três regras em uma, ou seja: (7) Consoantes obstruintes vozeadas /b, d, g/ pronunciam-se como fricativas [], [] e [] quando ocorrem entre vogais. Definir os fonemas em termos de traços é um dos desenvolvimentos mais importantes da teoria fonológica. Um objetivo da teoria fonológica é identificar o conjunto de traços necessários para descrever os sons de qualquer língua para, assim, compreender melhor as fonologias das línguas faladas no mundo. Uma versão sistemática da teoria de traços foi apresentada no livro Preliminaries to speech analysis (Jakobson, Fant e Halle, 1952) e posteriormente em Fundamentals of language (Jakobson e Halle, 1956). Esses autores postularam uma dúzia de traços definidos em termos acústicos24 e considerados como universais, que serviriam para definir as propriedades dos fonemas de qualquer língua do mundo. Assim, pela teoria de traços, cada fonema era definido com base numa oposição binária: presença/ausência de determinado traço. Chomsky e Halle (1968) propuseram um novo sistema de traços no livro The sound pattern of English (SPE). Os traços propostos por eles caracterizam-se, também, por serem universais e opostos binariamente: presença/ausência de um determinado traço. Porém, os traços de Chomsky e Halle são definidos em termos articulatórios e não acusticamente,25 como o foi no caso de seus antecessores. 3.1. Traços de Chomsky e Halle No que segue, apresentam-se os traços propostos em Sound pattern of English (Chomsky e Halle, 1968), considerando algumas modificações levantadas em Halle e Clements (1983). Opta-se pelos traços de Chomsky e Halle porque são de uso muito amplo e representam o ponto de partida para a discussão de qualquer teoria fonológica. Tais traços se dividem em traços de classes principais, de cavidade, de corpo da língua, de forma dos lábios, de modo de articulação, de fonte e traços prosódicos. 3.1.1. Traços de classes principais Três traços são referidos como de classes principais, pois eles dividem o conjunto dos segmentos fonológicos de uma língua em classes mais significativas. 1) Silábico [sil]: os sons silábicos são os segmentos que funcionam como núcleo da sílaba. Os não silábicos ocorrem como margens na sílaba. Este traço serve para diferenciar as vogais das consoantes. Assim, as vogais são [+silábico], as consoantes [– silábico]. Porém, há línguas em que as consoantes fricativas estridentes, nasais, laterais e vibrantes poderiam desempenhar a função de núcleo, ou seja, serem [+ silábico], como em palavras do inglês: [bQtl] “battle”, [btn] “button” e [krv] “sangue” do servo-croata.26 As teorias fonológicas não lineares27 não consideram mais o traço silábico, pois a sílaba possui sua própria estrutura métrica. Ela é um constituinte formado de uma estrutura interna própria (cf. sílaba, seção 4). 2) Consonantal [cons]: os sons consonantais são produzidos com uma constrição28 ao longo da linha central do trato vocal. Essa constrição pode ser total, como na articulação das consoantes plosivas, ou parcial, como na produção das consoantes fricativas. Os sons não consonantais não apresentam essa constrição. Assim, as vogais, os glides [w], [j] e os sons glotais [h] e []29 são [–cons]. As consoantes plosivas, nasais, líquidas, fricativas, africadas são [+cons]. 3) Soante [soan]: esse tipo de sons é produzido com uma configuração do trato vocal que permite o vozeamento espontâneo. Nos não soantes, isto é, nas obstruintes30, a configuração do trato vocal inibe o vozeamento espontâneo. Nessa definição, o estado normal das soantes é o vozeamento e para as obstruintes o desvozeamento. As vogais, as consoantes nasais, líquidas e os glides são [+soan], os segmentos plosivos, fricativos e africados são [–soan]. Os traços de classes principais definem, segundo Chomsky e Halle (1968, p. 303), as categorias de sons como na tabela a seguir: (8) Traços de classes principais Silábico Consonantal Soante Vogais vozeadas + – + Vogais não vozeadas + – + Glides (I): w, j – – + Glides (II): h, ? – – +31 Laterais – + + Vibrantes – + + Plosivas nasais – + + Plosivas orais – + – 3.1.2. Traços de cavidade Os traços de cavidade referem-se aos pontos de articulação dos segmentos envolvidos. Eles explicam em que lugar do trato vocal se produzem as modificações da corrente de ar. 1) Coronal [cor]: os sons coronais são produzidos com o ápice ou a lâmina da língua elevada acima de sua posição neutra. Considera-se posição neutra o lugar onde se articula a vogal cardinal [], como na palavra [b:d] “bed” do inglês ou [kaf] “café” do português. Assim, na produção de sons coronais, o ápice ou a lâmina da língua eleva-se em direção à parte posterior dos incisivos posteriores, entre a região da arcada alveolar e o palato duro. Os sons não coronais permanecem em posição neutra. Consoantes dentais, alveolares, alvéolo-palatais, retroflexas e palatais são [+cor]. Todas as outras consoantes são [–cor]32. 2) Anterior [ant]: os sons anteriores são produzidos com uma obstruçãona parte anterior do trato vocal, numa região situada entre os lábios e a arcada alveolar. Os não anteriores são produzidos na região pós-alveolar. O traço anterior aplica-se somente às consoantes, não às vogais. Na geometria de traços de Clements e Hume (1995), todas as vogais são inerentemente [– anterior]. As consoantes labiais, dentais e alveolares são [+ant], as alvéolo- palatais, palatais, velares, uvulares e faringais são [–ant]. A aplicação desses dois traços às vogais produz uma classificação como: (9) 3) Distribuído [dis]: sons distribuídos são aqueles produzidos com uma constrição que se estende por uma distância relativamente longa no nível da linha central do trato vocal. Nos não distribuídos, o comprimento da constrição é mais reduzido. Esse traço é usado para diferenciar segmentos produzidos com o ápice da língua daqueles em que intervêm a lâmina, e para diferenciar consoantes retroflexas das não retroflexas. Assim, sons apicais e retroflexos serão [–dis], sons laminais e não retroflexos serão [+dis]. As consoantes bilabiais serão [+dis] e as labiodentais [–dis]. Considerando-se os traços coronal, anterior e distribuído, podemos ter uma classificação das consoantes como a seguir: (10) 33 3.1.3. Traços do corpo da língua Esses traços caracterizam as diversas movimentações do corpo da língua com respeito à posição neutra. Aos traços alto, baixo e recuado, citados inicialmente por Chomsky e Halle (1968, p. 304-308), somou-se também o traço raiz da língua avançada (Halle e Clements, 1983). 1) Alto [alt]: os sons altos são produzidos com uma elevação do corpo da língua acima da posição neutra; os não altos são produzidos sem essa elevação. Vogais altas, glides (w, j), consoantes alvéolo-palatais, palatais, palatalizadas, velares e velarizadas são [+alto]. Todos os outros sons são [– alto]. 2) Baixo [bx]: os sons baixos apresentam um abaixamento do corpo da língua em relação à posição neutra; os não baixos não apresentam essa característica. As vogais abertas, consoantes faringais e faringalizadas são [+baixo]; outras consoantes, vogais altas e médias são [–baixo]. Na realidade, as vogais médias são [–alto, –baixo]. Para alguns fonólogos as glotais [h] e [] são também [+baixo]. 3) Recuado [rec]: também definido como [posterior]34, serve para caracterizar os sons produzidos com uma retração do corpo da língua relativamente à sua posição neutra. Os não recuados produzem-se sem essa retração. Vogais centrais e posteriores, consoantes velares, uvulares, faringais, velarizadas, faringalizadas e o glide [w] são [+recuado]. Todos os outros sons caracterizam-se por serem [–recuado]; incluem-se nessa característica as glotais [h] e [], pois na articulação delas não há retração do corpo da língua. A aplicação desses três traços às vogais permite diferenciar vogais fechadas [+alto], vogais abertas [+baixo] e vogais centrais e posteriores [+recuado], como se indica na tabela a seguir: (11) 4) Raiz da língua avançada [ATR]: na emissão dos sons ATR, a raiz da língua é puxada em direção à parte anterior do trato vocal, o que faz com que a cavidade faríngea se amplie e produza uma elevação do corpo da língua; os sons [–ATR] são produzidos numa posição neutra. Esse traço foi aplicado para diferenciar vogais tensas [+ATR] das não tensas [–ATR], encontradas principalmente em línguas africanas como em Akan e Igbo. Na língua Akan35 há dez fonemas vocálicos que podem ser diferenciados pelo traço [ATR], como se vê a seguir: (12) Os quatro traços citados, na proposta atual de Clements e Hume (1995), são substituídos pelo traço abertura da boca,36 isto é, [aberto]; porém, ele se aplica somente às vogais, não aos segmentos consonantais. Por exemplo, pelo traço [aberto] as vogais orais do português se diferenciariam como na tabela a seguir: (13) 3.1.4. Traços relacionados com a forma dos lábios Esse tipo de traços caracteriza o estreitamento da passagem do ar, obtido tanto pelo arredondamento dos lábios, por exemplo, na produção das vogais [o], [u], quanto pela constrição dos mesmos, como na emissão das consoantes labiais. 1) Arredondado [arr]: os sons arredondados são produzidos com uma protrusão dos lábios. Os não arredondados são produzidos com uma distensão dos lábios, ou numa posição neutra. Vogais arredondadas, glides [w, ] e consoantes labializadas são [+arredondado], os outros são [– arredondado]. 2) Labial [lab]: esse traço não aparece em Chomsky e Halle (1968), porém ele é apresentado em Halle e Clements (1983), também em Clements e Hume (1995). Os sons labiais são produzidos com uma constrição dos lábios; os não labiais sem essa constrição. Consoantes labiais e labiodentais são [labiais]. Dessa maneira as consoantes [p, b, f, v, , , m, , pW, bW, kW], as vogais [u, o, , y, ø] e os glides [w, ] são [labial]. Em Clements e Hume (1995), o traço [labial] é considerado como monovalente, sendo tratado como traço de cobertura, ou seja, é um traço que serve para se referir a qualquer envolvimento dos lábios. Isso faz com que o traço arredondado seja aplicado tão somente aos sons que são articulados com protrusão dos lábios. Assim, então, [labial] pode ser dividido em sons labiais [–arredondados] e sons labiais [+arredondados], ou seja: (14) 3.1.5. Traços de modo de articulação Esses traços servem para identificar os processos articulatórios usados na produção dos sons. Tais processos são determinados pela atuação dos articuladores nos pontos de articulação. Nesse sentido, o articulador pode provocar um impedimento total, parcial, intermitente ou deixar a passagem do ar totalmente livre (Barroso, 1999, p. 55-59). 1) Contínuo [con]: na produção dos sons contínuos há uma obstrução da passagem do ar pelo trato vocal, mas sem chegar a ser total. Nos não contínuos a passagem do ar é completamente bloqueada. Os sons fricativos, glides [w, j], consoantes líquidas, e consoante [h] são [+con]. Os segmentos laterais podem ser considerados como [+contínuo] ou como [–contínuo], a caracterização como positivo ou negativo depende da língua em questão. A situação dos sons róticos [r] também é problemática. O problema se relaciona com a qualidade desses sons. Por exemplo, as aproximantes [] do inglês americano e [] do britânico são [+contínuo], também a vibrante uvular [R] que ocorre em palavras do português como [Rumu] “rumo”, [kaRu] “carro”, [iZ{jlit] “israelita”, na pronúncia dos falantes de Portugal, pode ser caracterizada como [+contínuo]. Porém, as vibrantes, tepes e flepes são [–contínuo]. 2) Lateral [lat]: os sons laterais são produzidos com o abaixamento da parte média da língua de um ou dos dois lados, o que permite o fluxo lateral da corrente de ar. Nos sons não laterais o fluxo de ar dá-se pela parte central do trato vocal. As líquidas laterais, as fricativas laterais e as africadas laterais são [+lateral]. 3) Nasal [nas]: na produção dos sons nasais o véu palatino está abaixado, permitindo o fluxo do ar pela cavidade nasal. Nos sons não nasais o véu está elevado contra a parede da faringe, então o ar flui pela cavidade oral. As plosivas nasais, consoantes nasalizadas, vogais e glides nasalizados são [+nasal].37 Com base nesses três traços podemos diferenciar consoantes fricativas, líquidas, nasais e glides como a seguir: (15) 4) Estridente [estr]: o uso desse traço limita-se aos sons fricativos e africados. Acusticamente, os sons estridentes se caracterizam pela presença de mais ruído do que seus correspondentes não estridentes. Fricativas labiodentais, alveolares, alvéolo-palatais e uvulares são [+estridente], fricativas bilabiais, interdentais, palatais e velares são [–estridente]. Esse traço diferenciará africadas e fricativas da forma seguinte: (16) 5) Distensão retardada [DR]: existem duas maneiras pelas quais o fechamento do trato vocal pode ser liberado: (a) abruptamente como nas plosivas, (b) gradualmente como nas fricativas e africadas. O traço distensão retardada foi proposto inicialmente em Chomsky e Halle (1968) para diferenciar as plosivasorais das africadas. Nesse sentido, as consoantes africadas são [+DR], e as plosivas, [–DR],38 como na tabela a seguir: (17) 3.1.6. Traços de fonte Esses traços caracterizam os diferentes tipos de fonação que intervêm na produção dos sons. Os órgãos principais envolvidos nessa operação são a laringe e as cordas vocais. Desse modo, podemos ter sons vozeados, aspirados e glotalizados. Esse tipo de segmentos pode ser caracterizado pelos seguintes traços: 1) Vozeado [voz]: sons vozeados são produzidos com vibração das pregas vocais. Os sons não vozeados são produzidos sem essa vibração. Todos os segmentos sonoros, incluindo os glides [w, j], vogais e consoantes nasais e líquidas são vozeados. Os segmentos surdos são [–voz]. 2) Pressão subglotal elevada [PSE]: existem sons que são produzidos com um aumento das cartilagens aritenoides,39 criando uma abertura maior da glote. Outro tipo de sons é produzido sem essa configuração. Consoantes aspiradas, murmuradas, vogais e glides desvozeadas são caracterizadas como [+PSE]. 3) Constrição glotal [CG]: os sons que apresentam constrição glotal são produzidos com um forte fechamento da glote, que impossibilita a vibração das pregas vocais. Os sons sem constrição glotal não apresentam essa configuração. Esse traço serve para caracterizar as consoantes ejetivas, implosivas, laringalizadas e a glotal []. Os traços de fonte podem ser exemplificados como se indica na tabela a seguir: (18) 3.1.7. Traços prosódicos Uma especificação fonética requer, além dos traços segmentais que caracterizam os sons individualmente, outros traços que se apresentam numa sequência de sons. Esses traços são os prosódicos ou suprassegmentais. O sistema desenvolvido por Chomsky e Halle (1968) incluía basicamente os traços: [longo], [acento] e [tom]. O traço [longo] era para caracterizar segmentos que apresentavam duração, tais como vogais longas (ex.: latim) e consoantes geminadas40 (ex.: italiano). O traço [acento] era usado para caracterizar as sílabas que apresentavam maior intensidade que outras. Essa intensidade era considerada como característica inerente de uma vogal e não propriamente da sílaba como constituinte. O traço [tom] era empregado para caracterizar a altura das unidades portadoras de tom, neste caso também, com referência as vogais. Esses traços prosódicos, com o surgimento das fonologias não lineares, passaram a ser tratados não como traços, mas como representações em diagramas arbóreos, batizados com o nome de representações métricas. Dessa forma, os segmentos geminados e os que apresentam alongamento não são mais tratados como [+longo]. Eles apenas são representados como em (19): (19) Do mesmo modo, uma palavra como àkhwá “ovos” da língua Igbo41, com tom baixo na primeira sílaba e alto na segunda, será representada como: (20) 42 Finalmente, na fonologia não linear o acento é um conceito relacional, de maneira que uma sílaba acentuada é mais proeminente que aquela não acentuada. Essa relação de proeminência é expressa por meio de árvores binárias, cujos ramos são rotulados em termos de forte (S) e fraco (W).43 Por exemplo, a palavra falavam (forma verbal) do português terá a seguinte representação: (21) Em conclusão, a teoria dos traços distintivos veio alterar o conceito de fonema, considerado inicialmente como unidade mínima da Fonologia. Ora, o fonema é um segmento sonoro, constituído por determinadas propriedades, isto é, os traços distintivos. Os traços distintivos são identificáveis e servem para distinguir os fonemas, daí que essas propriedades passem a ser consideradas como as unidades primitivas da Fonologia. Nesse sentido, a teoria fonológica atual considera os fonemas como conjuntos de traços distintivos e, por essa razão, muitas vezes emprega-se o termo segmentos fonológicos ou apenas segmentos. Portanto, quando identificarmos segmentos numa cadeia fonológica, teremos em mente os traços distintivos que os identificam. 4. SÍLABA Nesta seção, considerar-se-ão os princípios de organização que governam a combinação dos fonemas. Os fonemas podem combinar-se entre si para formar unidades maiores, como sílabas, morfemas e palavras. Essa combinação não se dá ao acaso, mas segue determinados princípios da Gramática e da estrutura fonológica de uma língua. O primeiro nível de organização que rege os fonemas está relacionado com as condições definidas pela estrutura fonotática44 da sílaba. A sílaba é una unidade básica que nos informa acerca de como está organizado o sistema fonológico de uma língua; ela é uma entidade estritamente fonológica, não pode ser confundida com uma unidade da gramática ou da semântica. Na teoria fonológica desenvolvida por Chomsky e Halle (1968), a sílaba não foi reconhecida como um constituinte estruturado. Esses autores consideraram apenas o traço [silábico] para diferenciar os segmentos consonantais dos vocálicos. Assim, as vogais foram tratadas como [+silábico] e as consoantes como [–silábico]. De acordo com esse critério, as palavras foram vistas como uma sequência de segmentos consonantais e vocálicos. Foi somente com o surgimento da fonologia não linear que a sílaba adquiriu um papel central nos estudos fonológicos. Atualmente, existem vários modelos teóricos que tratam dela. Comparar todos esses modelos não é objetivo deste capítulo. Tudo o que podemos fazer aqui é dar alguma noção daquilo que se convencionou chamar de estrutura silábica. 4.1. Importância da sílaba O reconhecimento de um constituinte sílaba permite eliminar o traço [silábico] da teoria fonológica que permite, por extensão, eliminar os traços prosódicos [acento] e [longo]. Eliminado o traço [silábico], veremos que a característica de um segmento como [silábico] ou como não [silábico] dependerá de sua posição na estrutura silábica de uma língua, e não das propriedades inerentes dos segmentos. Por exemplo, o contraste entre as vogais altas [i], [u] e os glides [j], [w] não depende mais do traço [silábico], mas de sua posição na estrutura da sílaba. Se esses segmentos ficarem na posição de núcleo serão automaticamente silábicos, se ficarem nas bordas do núcleo serão não silábicos. 4.2. Representação da estrutura silábica A sílaba representa o primeiro nível de organização fonológica dos fonemas de uma língua particular. É necessário focalizar o termo “língua particular”, pois as línguas variam de acordo com seus padrões silábicos. Apesar das variações nos padrões silábicos, é possível reconhecer que todas as línguas do mundo têm o padrão CV (Consoante-Vogal), considerado a sílaba menos marcada45 (cf. Jakobson, 1962). Na estrutura silábica, as vogais formam o núcleo da sílaba, mas em determinadas línguas, como no inglês, as consoantes líquidas e as nasais podem também ocupar a posição de núcleo. As consoantes que se situam nas bordas do núcleo denominam-se ataque46 e coda, respectivamente. Ataque é a denominação para a consoante que precede o núcleo e coda é a consoante que ocorre após o núcleo. Contudo, a teoria fonológica reconhece que essa relação não é estritamente linear, em termos de ataque–núcleo– coda, mas que a estrutura da sílaba obedece a uma construção hierárquica. Sendo assim, a sílaba é um constituinte estruturado em termos de ataque e rima, esta última ramificando-se, por sua vez, em um subconstituinte obrigatório, o núcleo, seguido opcionalmente pela coda. Dessa forma, o molde da sílaba será representado como segue: (a letra grega [σ] é para indicar o constituinte sílaba, A para ataque, R para rima, Nu para núcleo e Co para coda). (22) A teoria assume, também, que a associação dos fonemas com os subconstituintes ataque, núcleo e coda não se dá diretamente, mas por meio de uma camada intermediária chamada esqueleto CV. Por exemplo, em Shanenawá (Pano), a palavra utSuan “pimenta” será representada como: (23) 4.2.1. Classificação tipológica da sílaba Atendendo a sua estrutura, as sílabas podem ser leves ou pesadas. Uma sílaba leve tem a estrutura CV, ou seja, uma sílaba que apresenta uma rima não ramificada.Por exemplo, mehináku, uma língua indígena da família arawák, possui somente sílabas CV. Também há línguas que podem tratar uma estrutura CVC como sílaba leve. Uma sílaba pesada é aquela em que a rima se ramifica, ou seja, uma estrutura como CV:47, CV:C, CVV, CVC, CVCC. A propriedade de ser uma sílaba leve ou pesada é denominada pela teoria fonológica peso silábico. Outra forma de caracterizar os tipos de sílabas é em termos de sílaba aberta (ou livre) e sílaba fechada (ou travada). No primeiro tipo, a sílaba sempre termina em vogal (CV); no segundo, a sílaba termina em uma ou mais consoantes. Alguns tipos de sílabas que ocorrem no português se podem ver em (24). (24) a) a. cor . do V. CVC. CV48 b) pers . pe . ti . va CVCC. CV. CV. CV c) prá . ti . co CCV. CV. CV d) a. gru. par V. CCV. CVC Outro fato importante a se considerar na combinação dos fonemas na sílaba é que essa combinação não se dá aleatoriamente, mas os fonemas seguem um padrão específico de combinação conhecida na Fonologia como hierarquia de sonoridade (Hooper, 1976). A hierarquia de sonoridade relaciona-se com o vozeamento. Quanto mais propenso um segmento seja para o vozeamento espontâneo, maior sonoridade ele tem. A sonoridade dos segmentos é comumente representada por meio de uma escala como a seguinte: (25) A utilidade de se reconhecer uma escala de sonoridade como a de (25) apoia-se no fato de que cada vez que temos um segmento com grau de sonoridade alto teremos o núcleo da sílaba, e quando a escala de sonoridade for baixa teremos os segmentos que estão nas margens da sílaba: ataque e coda. Assim, na representação hierárquica de (25), os elementos de maior sonoridade, nesse caso, vogais, são candidatos a serem núcleo da sílaba; os de menor sonoridade são candidatos para ocuparem as bordas no núcleo silábico, ou seja, as posições de ataque e de coda. Existem outras propriedades e princípios relacionados com a estruturação da sílaba nas línguas naturais, porém esses temas são tópicos mais avançados a serem estudados em livros que tratam especificamente da teoria fonológica. 5. CONCLUSÃO Neste capítulo apresentamos uma breve introdução aos conceitos considerados básicos pela teoria fonológica. Nossa tarefa teve a finalidade de oferecer ao estudante de Letras e Linguística subsídios elementares no campo da Fonologia, que possam constituir um ponto de partida para estudos mais avançados. Os temas tratados estão apenas abrindo a porta para posteriores estudos, que nos permitam ir de maneira mais aprofundada na compreensão da teoria fonológica e das fonologias manifestadas pelas línguas particulares. REFERÊNCIAS BARBOSA, Jorge Morais. Fonologia e morfologia do português. Coimbra: Almedina, 1994. BARROSO, Henrique. Forma e substância da expressão da língua portuguesa. Coimbra: Almedina, 1999. BISOL, Leda (Org.). Introdução a estudos de fonologia do português brasileiro. Porto Alegre: Edipuc-RS, 2005. BLOOMFIELD, Leonard. Language. New York: Holt, Reinhart & Winston, 1933. BURQUEST, Donald A. Phonological analysis. A functional approach. Dallas, Texas: SIL, 1998. CAGLIARI, Luiz Carlos. Análise fonológica. Introdução à teoria e à prática com especial destaque para o modelo fonêmico. Campinas: Edições do Autor, 1997a. ______. Fonologia do português: análise pela geometria de traços. Campinas: Edições do Autor, 1997b. CÂMARA JÚNIOR, J. Mattoso. 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Uma das três cidades mais importantes da Holanda onde se realizou, em 1928, o Primeiro Congresso Internacional de Linguistas. 7. Trubetzkoy, N. S. Principles of phonology. Berkeley/Los Angeles: University of California Press, 1969. p. 4 (1ª edição, 1939). 8. Tradução, a partir do inglês, feita pelo autor do presente texto. Cf. Trubetzkoy, N. S. Principles of phonology. Berkeley/Los Angeles: University of California Press, 1969. p. 35. 9. O texto original de Bloomfield (1933) é: “... minimal unit of distinctive sound feature”. Bloomfield, L. Language. New York: Holt, Reinhart e Winston, 1993. p. 79. 10. Usamos o termo “tradicional” para nos referir ao modelo de Fonologia que se fundamenta nos procedimentos de descoberta para encontrar os fonemas de uma língua sem tradição de escrita. 11. Em Grimes (1969), a definição de ambientes análogos é denominada “near minimal pairs”. Assim, essas formas diferem em significante e significado, mas, ao contrário dos verdadeiros pares mínimos, a diferença do som se dá em mais de um lugar (Grimes, 1969, p. 136). 12. O Ewe é uma língua da floresta tropical da África ocidental. Essa língua, assim como o Igbo e o Akan, é a mais difundida dessa região africana. 13. Em outras palavras, as vogais sendo intrinsicamente vozeadas estariam condicionando de maneira diferente a ocorrência fonética da fricativa labiodental [f] não vozeada e a correspondente, também labiodental, vozeada [v]. Não há, também, razão alguma para dizer que as vogais nasais estariam condicionando a presença de [f] e as orais a correspondente [v]. 14. Moreno Cabrera, J. C. Curso universitário de linguística general. Semântica, pragmática, morfología y fonología. Madrid: Sínteses, 1994. t. II. 15. Observe-se que, na emissão desses três segmentos, a saída do ar pela cavidade oral é contínua, mas com alguma constrição nos pontos de articulação, a saber, bilabial, glote e palatal. Nesse sentido, as características acústicas são bastante similares. 16. Moreno Cabrera, J. C. Curso universitário de linguística general. Semântica, pragmática, morfología y fonología. Madrid: Sínteses, 1994. t. II. 17. O Shanenawá é uma língua indígena falada por uma população que habita a região do rio Envira, município de Feijó, Estado do Acre. 18. Para a definição de variáveis, ver o capítulo Sociolinguística, neste volume. 19. Glide é um empréstimo do inglês usado em fonética “para indicar um som de transposição quando os órgãos da fala se movimentam em direção a uma articulação ou se afastam dela (on-glide e off-glide, respectivamente). Como não são nem consoantes nem vogais, os glides costumam ser denominados semiconsoantes ou semivogais (têm uma qualidade vocálica e uma distribuição consonantal)”. Crystal, D. Dicionário de linguística e fonética. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998. p. 126. Para detalhes, ver o capítulo Fonética, neste volume. 20. Kulina é uma língua indígena da família Arawá falada nos Estados do Acre e Amazonas. 21. Margi é uma língua falada na região norte da Nigéria. 22. C = (consoante). 23. Para uma discussão teórica de esse ponto ver Jakobson, Fant e Halle (1952), Jakobson e Halle (1956), Chomsky e Halle (1968). Uma apresentação interessante sobre o status dos traços segmentais pode ser lida em Hall (2007). 24. Os autores privilegiaram as propriedades físicas dos sons. 25. Ou seja, Chomsky e Halle (1968) focalizaram a maneira como os sons são produzidos pela aparelho fonador. 26. O servo-croata é uma língua eslava falada principalmente na Sérvia, em Montenegro, na Croácia, na Bósnia e em Herzegovina, todas antigas repúblicas da Iugoslávia. 27. A partir da década de 1980 desenvolveu-se um quadro formal e conceptual de teoria fonológica integrada por diferentes subteorias: geometria de traços, teoria da sílaba e teoria métrica do acento, que em seu conjunto são conhecidas como fonologia não linear. A fonologia não linear vê os traços dispostos hierarquicamente em diferentes camadas de maneira que a) alguns traços têm sua própria camada de autossegmentalização, b) não há necessariamente uma correspondência biunívoca entre o número de autossegmentos e o número de fonemas presentes num determinado enunciado, e c) os autossegmentos ligam-se a suas unidades segmentais por meio de linhas de associação. 28. Constrição refere-se a um estreitamento que ocorre no aparelho fonador. Os diferentes tipos e graus de constrição servem de base qualitativa para a classificação articulatória dos sons. 29. Em SPE (Chomsky e Halle, 1968) os segmentos [w] e [j] são tratados como glides (I), os segmentos [h] e [?] como glides (II). Em teorias fonológicas mais recentes, os glides (I) são definidos como [aproximantes], junto as vogais e segmentos líquidos. 30. O traço oposto a soante é [obstruinte] para caracterizar os sons com uma constrição que impede o fluxo do ar, como ocorre nas consoantes plosivas, fricativas e africadas. 31. Schane (1973) e Hyman (1975) apresentam dados de línguas em que [h] e [?] partilham as características dos segmentos obstruentes e não de soantes. 32. A partir de Clements e Hume (1995), as vogais [i], [e] e [E] são tratadas igualmente como coronais. 33. Na realidade, o uso do traço distribuído resulta relevante em línguas que possuem segmentos coronais distintivos. 34. Recuado corresponde ao traço [back] em Chomsky e Halle (1968:305), que em algumas traduções em português e espanhol aparece como posterior. Porém, é preferível usar [recuado] para evitar um falso paralelismo entre os traços [anterior] e [posterior]. Lembre-se de que o traço [anterior] se define não em relação com a posição do dorso da língua, mas segundo a localização do ponto de articulação na cavidade oral. Por essa razão, todas as vogais são [–anterior], pois na articulação delas não se dá propriamente nenhum ponto de articulação. 35. Língua da família Kwa falada nos trópicos da África Ocidental. 36. O traço abertura expressa, na verdade, graus de altura da língua na emissão das vogais. O fato dessa caracterização encontra-se postulado a partir da geometria de traços, que trata de uniformizar a especificação dos pontos de articulação tanto das vogais como das consoantes. 37. Na fonologia não linear, o traço [nasal] representa uma autossegmento, pois em muitas línguas a nasalização não caracteriza apenas vogais e consoantes, mas ela pode espalhar-se pelos domínios da sílaba, morfema e palavra. Por exemplo, em Aguaruna (Jívaro), a nasalização pode espalhar-se por toda uma palavra, numa direção direita-esquerda como em [jawaã] →[jawãã] →[jawãã] →[jãwãã] “cachorro”. 38. Na fonologia não linear, o traço [distensão retardada] não é mais necessário. A diferença entre segmentos plosivos e africados é feita pela representação métrica dos mesmos. Assume-se que uma consoante plosiva é representada contendo uma raiz, e as africadas contendo duas raízes. Ambos os segmentos, por sua vez, associam-se a uma variável [X], denominada unidade de tempo. Assim, a africada pós-alveolar /tS/ está ligada, simultaneamente, a uma raiz com o traço [–contínuo] e a outra com o traço [+contínuo]. 39. As aritenoides são cartilagens que, junto com os ligamentos, músculos e membranas, governam a ação das cordas vocais. Existem duas aritenoides e estão localizadas na laringe. São importantes na movimentação das cordas vocais. 40. O termo geminado(a) se usa em Fonética e em Fonologia para indicar uma sequência de segmentos idênticos. Por exemplo, em italiano há consoantes geminadas como em fatto “fato”, que se diferenciam das não geminadas como em fato “destino”. 41. Língua falada na Nigéria. 42. L: tom baixo, H: tom alto. 43. S: do inglês Strong, e W: do inglês weak. 44. Fonotática é um termo usado na Fonologia para se referir às combinaçõesde segmentos possíveis numa determinada língua. 45. Entenda-se “menos marcada” em termos de ser mais natural, o mais comum. Um tipo de padrão silábico mais frequentemente encontrado nos tipos silábicos das línguas do mundo. 46. É comum também usar o uso do termo em inglês onset para se referir ao ataque. 47. V: significa vogal alongada. 48. V (= vogal), C (= consoante), (.) significa fronteira silábica. 5 MORFOLOGIA Maria Filomena Spatti Sandalo 1. INTRODUÇÃO A Morfologia é o ponto de maior controvérsia no estudo de linguagem natural. Especialistas se debatem tomando posições que vão desde aquelas que consideram a Morfologia como o principal componente do estudo gramatical, até aquelas que desconsideram totalmente o nível morfológico na construção de uma teoria da gramática. Este capítulo, cujo objetivo é fazer uma introdução aos estudos de Morfologia, tem como foco a controvérsia que caracteriza esta área, apresentando as formas como algumas correntes linguísticas variaram no decorrer dos anos ao darem um maior ou menor papel para a Morfologia. Este texto tem a seguinte organização: em primeiro lugar, apresentaremos noções básicas relacionadas aos domínios dos estudos morfológicos; em seguida, apresentaremos discussões sobre o papel da Morfologia dentro de dois quadros teóricos: o estruturalista e o da teoria gerativa; por fim, tentaremos fazer perceber que o momento atual vai na direção de um maior acordo sobre o papel da Morfologia na Gramática. 2. A MORFOLOGIA E SUAS UNIDADES BÁSICAS A Morfologia é frequentemente definida como o componente da Gramática que trata da estrutura interna das palavras. Mas o que é uma palavra?1 A existência de palavras é assumida como uma realidade pela maioria de nós, linguistas ou não. No entanto, não é simples definir o que é uma palavra. Na Linguística, como em qualquer ciência, um dos problemas básicos é identificar critérios para definirmos as unidades básicas de estudo. Em línguas isolantes, como o chinês, cada palavra carrega apenas um significado, mas em línguas polissintéticas, como a língua kadiwéu, falada no Mato Grosso do Sul, ou o georgiano, falado na Europa oriental, certas sequências de sons, assumidas por seus falantes como palavras, carregam significados traduzidos por frases em línguas como o português. Assim, como podemos ter certeza de que jotaγanγetaγadomitiwaji do kadiwéu é uma palavra e não uma frase? O significado não nos ajuda. Esta sequência de sons significa “eu falo com eles por vocês”. Tampouco, critérios semânticos não nos ajudam a definir uma palavra em línguas como o português. Como saber se construtor e aquele que constrói são palavras do português? Ambos têm o mesmo significado. Assim, se nosso critério for o significado, deveríamos dizer que ambas as sequências pertencem à mesma classe gramatical. No entanto, nosso conhecimento de falantes do português nos sugere que a primeira é uma palavra, mas a segunda sequência é uma frase. Critérios fonológicos também não nos ajudam. É impossível elaborar um teste baseado em critérios fonológicos que possa ser categoricamente aplicado para qualquer língua para sabermos se estamos lidando com uma palavra ou frase. Algumas pessoas já tentaram definir palavras pelo acento. Segundo este critério, uma palavra deveria contar com um acento principal (i.e. de maior intensidade) e alguns acentos secundários. No entanto [detèrgénte] e [dètergénte], ambos com um acento principal e um secundário, correspondem a uma frase e uma palavra, respectivamente. Essa ambiguidade é explorada pela seguinte piada: (1) O que é detergente? É o ato de prender pessoas. Muitos linguistas preferem definir palavras usando critérios sintáticos, os quais parecem funcionar em qualquer língua do mundo. Uma sequência de sons somente pode ser definida como uma palavra lexical se (i) puder ser usada como resposta mínima a uma pergunta e se (ii) puder ser usada em várias posições sintáticas. Em (2), nabos ocorre como a menor resposta possível à questão dada. Em (3), a palavra nabos ocorre como objeto da sentença e em (4) ocorre como sujeito. Isto é, esta sequência de sons pode ocorrer em mais de uma posição sintática. É, portanto, uma palavra. (2) O que Maria comprou na feira hoje? Nabos. (3) Maria comprou nabos na feira hoje. (4) Nabos foi o que Maria comprou na feira hoje. Um elemento como lhe pode ocorrer em mais de uma posição na sentença, como demonstrado em (5) e (6): lhe pode ocorrer antes ou depois do verbo. Lhe é uma palavra? (5) Maria quer lhe dar um livro de presente. (6) Maria quer dar-lhe um livro de presente. Palavra é a unidade mínima que pode ocorrer livremente. Uma vez assumida essa definição de palavra, podemos distinguir vários elementos que carregam exatamente o mesmo significado, mas que não têm o mesmo status gramatical. Assim, um pronome clítico, como lhe, embora possa carregar o mesmo significado que um pronome, não pode ser caracterizado como uma palavra, uma vez que não atinge os critérios sintáticos anteriormente definidos. Por exemplo, o pronome clítico o “terceira pessoa singular masculino” (Maria o viu na feira) não pode ocorrer como resposta a uma pergunta e não pode servir como sujeito de uma sentença. Não é, portanto, uma palavra. Mas o pronome ele, embora carregue o mesmo significado, isto é, “terceira pessoa singular masculino”, qualifica-se como uma palavra, pois pode ocorrer isoladamente e em várias posições sintáticas. No português brasileiro vernáculo, ele ocorre em qualquer posição argumental (Ele me viu, Eu vi ele, José deu um livro para ele). A pergunta “como podemos ter certeza de que jotaγanγetaγadomitiwaji do kadiwéu é uma palavra e não uma frase?” pode ser respondida da seguinte forma: a sequência de sons do kadiwéu obedece aos critérios sintáticos apontados, sendo, portanto, uma palavra, mesmo que, em português, ela seja traduzida como uma sentença. Uma vez definido o que é uma palavra, temos definida a unidade máxima da Morfologia. O que seria a unidade mínima deste componente da Gramática? As unidades mínimas da Morfologia são os elementos que compõem uma palavra. Seriam fonemas e traços, como definidos no capítulo Fonologia, neste mesmo volume? Não. A Morfologia tem seus próprios elementos mínimos. O conhecimento desses elementos é o que nos permite entender o significado de palavras que nunca ouvimos antes. Ao nos depararmos com uma palavra como nacionalização, mesmo sem nunca termos ouvido esta palavra, podemos descobrir o que ela significa se soubermos o significado de nação, “pátria”, e o significado dos elementos que derivam novas palavras em português: al, “elemento que transforma um substantivo em adjetivo”; izar, “elemento que transforma um adjetivo em verbo”; e ção, “elemento que transforma verbo em substantivo”.2 Assim, ao adicionarmos nação e al, criamos o adjetivo nacional e, ao adicionarmos izar, temos o verbo nacionalizar. Finalmente, ao somarmos ção com nacionalizar, formamos o nome (ou substantivo, segundo a terminologia da Gramática tradicional) nacionalização.3 A palavra nacionalização significa ato de nacionalizar. Seu significado é derivado do significado das partes que compõem esta palavra. Os elementos que carregam significado dentro de uma palavra são rotulados de morfemas e são estes a unidade mínima da Morfologia. Apesar de muitas pessoas afirmarem que a palavra é a unidade mínima que carrega significado, o morfema é que o é. 3. O QUADRO ESTRUTURALISTA Para o estruturalismo, uma das preocupações da Linguística é tentar explicar como reconhecemos palavras que nunca ouvimos antes e como podemos criar palavras que nunca foram proferidas antes. A resposta é que nosso conhecimento dos morfemas da língua é o que nos dá esta capacidade. Assim, o problema central da Linguística para o quadro teórico estruturalista é identificar os morfemas que compõem cada língua falada no mundo; a Morfologia, portanto, é de crucial importância para o estruturalismo.4 Nesta perspectiva, uma parte central do estudo envolve identificar morfemas delínguas não previamente descritas. A metodologia estruturalista mostra que não é necessário saber falar uma língua para ser capaz de identificar seus morfemas. Os seguintes passos são usados para a documentação dos morfemas de uma dada língua: a) Identifique formas recorrentes e tente observar qual é o pedaço de significado recorrente na tradução. Assim, nas palavras a seguir, provenientes da língua kadiwéu, j ocorre em todas as palavras. Na tradução é recorrente o significado “primeira pessoa”. Assim, j deve ser o morfema que carrega o significado de primeira pessoa na língua kadiwéu em verbos. Figura 5.1 Palavras do kadiwéu e identificação morfológica b) Não assuma que morfemas universalmente aparecem na mesma ordem que os morfemas do português. Assim, o português também conta com um morfema que marca a primeira pessoa em verbos: o (ajudo, soco, escuto). Mas as ordens de morfemas do kadiwéu e do português são distintas. Assim, este morfema é um prefixo no kadiwéu, isto é, ocorre antes da raiz verbal, mas é um sufixo (ocorre depois da raiz verbal) no português. c) Não assuma que todos os significados expressos por morfemas em sua língua nativa serão expressos em outra língua por um morfema específico. Em chinês, por exemplo, não há marcas de pessoa. d) Não assuma que sua língua nativa apresenta todos os contrastes morfológicos possíveis universalmente. Uma grande parte das línguas indígenas brasileiras, por exemplo, é caracterizada pela presença de um morfema, rotulado de relacional, que não se encontra em nenhuma língua europeia. O papel deste morfema ainda é amplamente desconhecido. Sabe-se apenas que, quando este morfema estiver presente no verbo, o objeto direto não pode ser deslocado. Isto é, ele deve estar contíguo ao verbo. O estudo de línguas não previamente descritas apresenta um universo de morfemas a serem descobertos.5 Estamos agora preparados para conhecer a estrutura interna da palavra do kadiwéu que deu início a este capítulo: Figura 5.2 Palavra do kadiwéu e a identificação morfológica “Eu falo com eles por vocês.” É possível observar que há várias diferenças entre a morfologia do português e a do kadiwéu, o que ilustra a diversidade linguística que encontramos ao estudar Morfologia. Assim, o kadiwéu separa os morfemas de pessoa daqueles de número. Já o português agrupa estes traços semânticos em um único morfema. Por exemplo, m (cf. amam) agrupa pessoa e número: terceira pessoa do plural. O kadiwéu conta com um morfema que marca o objeto indireto, além de um morfema que marca o sujeito. O verbo só é marcado para o sujeito no português. A interrogação no glossário em 7 indica que ainda não sabemos/entendemos este morfema. Como dito anteriormente, o estudo morfológico é um universo a ser explorado. As línguas polissintéticas, como o kadiwéu, são línguas em que qualquer palavra, exceto o verbo, pode ser omitida, uma vez que todos os significados de uma sentença são expressos por meio de morfemas verbais. Sapir (1921) propôs a seguinte caracterização para uma língua polissintética:6 Uma língua polissintética, como seu nome implica, é mais que ordinariamente sintética. A elaboração de uma palavra é extrema. Conceitos que nós nunca sonharíamos em tratar de uma maneira subordinada são simbolizados por afixos derivacionais ou mudanças “simbólicas” no elemento radical, enquanto noções mais abstratas, incluindo relações sintáticas, podem também ser transmitidas pela palavra.7 Assim, em uma língua como o kadiwéu, até mesmo significados expressos por meio de preposições, como acontece em português, são expressos por morfemas verbais. Esta língua apresenta um morfema verbal que indica o papel semântico do objeto indireto (benefactivo). Línguas como o português contam com preposições na sintaxe com essa função. O kadiwéu não tem adposições. Além de sufixos e prefixos, a tipologia de morfemas conta também com infixos. Infixos são morfemas adicionados dentro de outros morfemas. Por exemplo, na língua tagalog (falada nas Filipinas), um “passado” é adicionado dentro do verbo: Figura 5.3 Infixos do tagalog Infixos são muito raros nas línguas do mundo e parecem ser derivados, não primitivos. Assim, os infixos do tagalog parecem ser infixos somente porque a fonologia da língua evita sílabas travadas por consoantes, e a prefixação de um resultaria em uma palavra iniciada por uma sílaba travada por uma consoante. A língua resolve esse conflito adicionando o morfema de passado logo após a consoante (ou encontro consonantal) que inicia a palavra. Assim, uma sílaba ótima é criada. Aqueles que seguem o quadro estruturalista de análise linguística, entretanto, não têm como preocupação fundamental entender o porquê de certos afixos serem infixos, sufixos ou prefixos. Essa é uma preocupação da teoria gerativa recente, como será discutido mais adiante. Mas certos fenômenos gerados pela interação entre a Fonologia e a Morfologia são de fundamental importância para o estruturalismo, bem como para o quadro gerativo. Na seção seguinte, abordaremos o início da teoria gerativa, a qual deu muita ênfase para a interface entre Morfologia e Fonologia. 4. MORFOFONOLOGIA E A TEORIA GERATIVA PADRÃO Esta seção tem como objetivo introduzir o estudo da relação entre Fonologia e Morfologia, tomando como base os critérios usados nos primeiros anos do gerativismo (Chomsky e Halle, 1968). O exemplo do tagalog nos mostra que a Morfologia sofre um impacto bastante acentuado da Fonologia, pois os fatos do tagalog nos indicam que a Fonologia pode definir o lugar onde o morfema deverá ser inserido na palavra. Entretanto, derivar a posição de afixos não era uma preocupação para a teoria gerativa padrão, nem para o estruturaslismo. Ao observarmos as línguas naturais, veremos que a Fonologia pode exercer influência não apenas em relação ao lugar onde o morfema é inserido, mas também na própria forma fonética dos morfemas. A derivação das diferentes formas fonéticas de um mesmo morfema é de crucial importância para a teoria padrão. Assim, vemos que, em inglês, o morfema de plural em nomes é realizado como [z] depois de vogais e depois de uma oclusiva sonora (ex.: dogs), como [s] depois de uma oclusiva surda (ex.: cats), mas como [∂z] em palavras como judges. As variantes (i.e., as diferentes formas fonéticas) de um mesmo morfema são chamadas de alomorfes. No capítulo Fonologia deste volume, tratamos de variação alofônica (i.e., as diferentes formas fonéticas de um fonema) em termos de regras que derivam alofones de formas subjacentes. Como a variação alofônica, a variação alomórfica é tratada por meio da postulação de uma representação subjacente, da qual alomorfes podem ser derivados por meio de regras fonológicas. Uma estratégia fundamental do linguista ao selecionar uma representação subjacente de um morfema é escolher o alomorfe que conta com a distribuição menos marcada (i.e., mais frequente). A realização do morfema de plural nominal do inglês mais frequente é z, uma vez que ocorre depois de consoantes sonoras e depois de vogais. Vamos, assim, escolher esta forma para ser a forma subjacente. Os alomorfes podem, agora, ser derivados por meio de regras fonológicas como aquelas discutidas no capítulo Fonologia deste volume. São as seguintes as regras fonológicas responsáveis pela derivação dos alomorfes do morfema de plural nominal do inglês, segundo O’Grady et al. (1991): 1) Devozeamento: [+ consonantal, + sonoro] → [– sonoro] / [+ consonantal, – sonoro] ___ 2) Epêntese de schwa: Ø → ∂ / [+ consonantal, + estridente, + coronal] ___ [+ consonantal, + estridente, + coronal] A regra 1 postula que uma consoante sonora perde seu traço de vozeamento toda vez que estiver adjacente a uma consoante desvozeada. A regra 2 postula que um schwa, [∂], é inserido toda vez que duas fricativas estiverem adjacentes. A Figura 5.3 mostra a derivação dos alomorfes do morfema z “plural nominal” apresentados:8 Figura 5.4 Derivação das formas de plural nominal do inglês Há, entretanto, algumas diferenças entre alomorfiae alofonia. Por exemplo, regras de alofonia geralmente não têm exceções. Assim, sabemos que o segmento /l/ é realizado como [w] sempre que ocorrer na coda silábica (isto é, no final da sílaba) na fala de paulistas jovens (cf. /sal/, que se realiza como [saw]). Em contraste, regras morfofonêmicas, isto é, regras de alomorfia, nem sempre são produtivas como a variação alomórfica do morfema de plural nominal do inglês. As regras morfofonêmicas frequentemente fazem referência a uma estrutura morfológica específica, isto é, obrigam uma dada regra fonológica a ser aplicada somente quando uma dada estrutura morfológica for encontrada. Como exemplo, podemos citar a variação entre nação e nacion, vista anteriormente quando discutimos a palavra nacionalização, ou entre leão e leon (cf. leonino). Mattoso Câmara (1970) postula que formas contendo ditongos nasais, como ão, são derivadas. Traduzindo para o quadro gerativo, podemos dizer que as formas subjacentes relativas aos exemplos anteriores são nacion e leon. Este tipo de análise conta com a transformação de on em ão, a qual nem sempre ocorre, uma vez que baton não se transforma em batão. Essa transformação apenas acontece quando há o acréscimo de uma vogal temática, isto é, quando uma determinada estrutura morfológica é encontrada.9 Como já foi mencionado, uma representação subjacente é aquela da qual podemos derivar todos os alomorfes por meio de regras fonológicas. Dissemos que uma estratégia fundamental do linguista ao selecionar uma representação subjacente de um morfema é escolher o alomorfe que conta com a distribuição menos marcada. Entretanto, essa não é a única estratégia permitida pela teoria gerativa padrão. Nada na teoria gerativa da década de 1960 nos obrigava a escolher uma forma existente na língua como a forma subjacente. Naquele momento, era permitido postular uma forma jamais realizada na língua como a representação subjacente de um dado morfema (desde que fosse possível derivar da forma subjacente postulada todas as formas alomórficas por meio de regras fonológicas), o que é conhecido como neutralização absoluta. Esse tipo de abordagem coloca um sério problema para a aquisição de linguagem. Como pode uma criança adquirir uma forma que jamais ouviu? Na teoria gerativa recente, neutralizações absolutas não são permitidas. A seção seguinte apresenta um histórico do desenvolvimento do estudo da Morfologia na teoria gerativa, mostrando que a Morfologia tem também uma interface com a Sintaxe, além da interface com a Fonologia. 4.1. O desenvolvimento da teoria gerativa Com a apresentação da teoria gerativa na década de 1960, a morfologia e a descrição morfológica de línguas não previamente analisadas, como desenvolvidas pelos estruturalistas, perderam espaço. Segundo Anderson (1982), nesta época, “morphologists could safely go to the beach”.10 Neste momento, passou-se a buscar os universais da linguagem. Por esse motivo, a Sintaxe (i.e., o estudo da formação de sentenças) passou a ser o ponto central da Gramática, uma vez que é na Sintaxe que vemos uma maior similaridade entre as línguas. Como a Morfologia tem uma relação bastante importante com a Fonologia, a Morfologia passou a ser tratada dentro do componente fonológico, nas linhas apresentadas na seção anterior. Deixou de ser, assim, um componente da Gramática. É natural, assim, que a Morfologia tenha perdido espaço nesta época. Dentro do quadro gerativista das décadas de 1970 e 1980, passou-se a assumir que cada componente da Gramática deveria corresponder a um módulo independente governado por seus princípios particulares. Cada módulo seria, assim, completamente independente do outro. A Fonologia passou a ser dividida em duas partes: a Fonologia Lexical (processada no léxico) e a Fonologia Pós-lexical (processada depois da sintaxe). A Linguística Gerativa passou, assim, a contar com os módulos representados por quadrados na Figura 5.5: Figura 5.5 Módulos componentes da gramática segundo a teoria gerativa das décadas de setenta e oitenta A Morfologia passou a ser tratada dentro do quadro da Fonologia Lexical.11 O estudo da interação entre Morfologia e Fonologia ganhou o rótulo de Fonologia Lexical. Segundo essa abordagem, morfemas seriam adicionados uns aos outros no léxico, regras fonológicas seguiriam aplicadas depois da adição de cada morfema. Uma regra fonológica poderia ser aplicada mais de uma vez, se cíclica. Um exemplo de regra cíclica é a atribuição de acento no português.12 Assim, observamos que a palavra cafezinho conta com dois acentos: na sílaba fe e na sílaba zi. Sabemos que a sílaba fe conta com um acento porque a vogal desta sílaba é aberta (i.e. []). Vogais abertas como esta só ocorrem em sílabas acentuadas no português (compare pérola e perolado, onde a vogal [] passa para [e] quando não se encontra em uma sílaba acentuada). Sabemos também que a sílaba zi conta com um acento, uma vez que a palavra cafezinho é tradicionalmente classificada como paroxítona. Dentro do quadro da Fonologia Lexical, este fenômeno é analisado dizendo-se que primeiro o morfema café entra na derivação e o acento é atribuído. Então, o morfema zinho é acrescentado e o acento é atribuído novamente. Assim, regras cíclicas são aplicadas repetitivamente no final de cada operação de adição morfológica. As regras não cíclicas seriam aplicadas no final das operações de adição de morfemas.13 O léxico, como visto dentro desse modelo, é um local de armazenamento de irregularidades memorizadas. A morfologia específica de cada língua seria, assim, objeto da memória. Como cada língua tem seu léxico específico, explicar-se-ia, assim, a diversidade encontrada nos domínios da Morfologia. De acordo com Chomsky (1970), a Sintaxe seguiria toda e qualquer operação lexical, manipulando palavras inteiras, sendo, portanto, cega à estrutura interna das palavras, isto é, às operações lexicais. Essa perspectiva, entretanto, se mostrou simplista demais no decorrer da década de 1980. Anderson (1982) questionou, em um artigo chamado “Where is Morphology?”, se a Morfologia é realmente irrelevante para a Sintaxe e se toda Morfologia deve ser processada no léxico. O autor fundou uma discussão cujo objetivo era mostrar que, pelo menos uma classe de morfemas, aqueles conhecidos como morfemas flexionais, são relevantes para a Sintaxe e não podem ser ignorados pelo componente sintático. Antes, no entanto, de demonstrar o porquê de a Sintaxe não poder ignorar a Morfologia Flexional, é necessário definir Morfologia Flexional e Derivacional. A Morfologia Derivacional apresenta as seguintes propriedades: a) a Morfologia Derivacional tem a característica de alterar a categoria gramatical de uma palavra. Assim, em nosso exemplo nacionalização, trabalhamos com vários morfemas derivacionais. Vimos a transformação de um substantivo em adjetivo, deste adjetivo em verbo e, finalmente, deste verbo em substantivo novamente. Caso a categoria não seja alterada pela adição de um morfema derivacional, um novo traço de significado que pode ser parafraseado por uma palavra independente é adicionado. Por exemplo, se adicionarmos re ao verbo fazer, temos fazer de novo; b) a Morfologia Derivacional não é produtiva, isto é, não é qualquer morfema derivacional que pode ser adicionado a qualquer raiz. Morfemas derivacionais têm muitas restrições de co-ocorrência; assim, podemos adicionar o morfema iz ao substantivo hospital e criar hospitalizar, mas não podemos adicioná-lo ao substantivo clínica e criar clinizar. Devemos dizer clinicar; devemos memorizar que podemos dizer hospitalizar e que não podemos dizer clinizar. Este é um argumento para acreditar-se que a Morfologia Derivacional é um fenômeno lexical, uma vez que o léxico é visto neste modelo como um receptáculo de irregularidades e memorizações. A Morfologia Flexional conta com as seguintes propriedades: a) a Morfologia Flexional não altera categorias. Ela estabelece ligações entre as palavras. Assim, na frase eu falo, o morfema o mostra que o sujeito da sentença é primeirapessoa. Na frase Os macacos caíram da árvore, o plural no artigo, s, indica que o núcleo do sintagma nominal é plural, e o morfema m indica que o sujeito da sentença é terceira pessoa do plural. Assim, a Morfologia Flexional acena para a Sintaxe, ficando difícil de aceitar a sua não relevância para a Sintaxe; b) a Morfologia Flexional é produtiva. Assim, qualquer verbo pode ser marcado por um morfema indicando terceira pessoa do plural e qualquer artigo pode ser pluralizado. Exceções são muito raras, enquanto exceções no paradigma derivacional são muito frequentes. Evidência clara da relevância da Morfologia Flexional para a Sintaxe vem de morfemas que indicam caso. Algumas línguas são caracterizadas por apresentarem alguns morfemas adicionados ao núcleo de um sintagma nominal indicando o papel sintático deste sintagma; esses morfemas são conhecidos como morfemas de caso. Por exemplo, o caso nominativo mostra que o sintagma nominal é sujeito, o caso acusativo mostra que o sintagma nominal é objeto direto, o caso ergativo indica que o sintagma nominal é sujeito de um verbo transitivo. Assim, fica muito difícil pensar que a Morfologia pode ser totalmente processada antes da Sintaxe, uma vez que morfemas flexionais, como morfemas de caso, fazem referência a estruturas sintáticas. As línguas são classificadas entre aquelas com um padrão de caso nominativo-acusativo ou ergativo-absolutivo. Nas línguas com padrão ergativo-absolutivo, o objeto e o sujeito de um verbo intransitivo são marcados da mesma maneira, e o sujeito de um verbo transitivo conta com uma marca especial. Como exemplo de uma língua ergativa, veja as sentenças do Yidin, falado na Austrália: (7) Wagudja-ngu djugi gundal Homem-ERGATIVO árvore estar cortando “O homem está cortando uma árvore.” (8) Wagudja gundal Homem estar cortando “O homem está realizando a tarefa de cortar.” Observe que o sujeito da sentença transitiva é marcado por um morfema especial, ngu. Este é o morfema de caso ergativo. O sujeito da intransitiva e o objeto da transitiva não são marcados (absolutivo). Compare essas sentenças do Yidin com sentenças paralelas do russo: (9) Andrei ljubit Natash-u Andrei ama Natasha-ACUSATIVO “Andrei ama Natasha.” (10) Natasha uxodit Natasha partiu “Natasha partiu.” As línguas com o padrão nominativo-acusativo marcam o sujeito, de verbos transitivos ou intransitivos, da mesma maneira. O objeto é marcado de modo especial. Este é o caso do russo. O russo, ao contrário do Yidin, marca o objeto com um morfema especial, u. Este é o morfema de caso acusativo. O sujeito, seja de uma sentença transitiva ou intransitiva, não é marcado (nominativo). O russo apresenta um padrão acusativo-nominativo. Outras línguas acusativas são o latim, o alemão, o turco, o japonês, o coreano, entre muitas outras. As línguas ergativas são mais raras, entre elas estão o basco (falado na Espanha), o tagalog (Filipinas), o avar (Cáucaso), o inuktitut (norte do Canadá e Groenlândia), o dyrbal (Austrália) e o kuykuru (Brasil). É interessante observar que o sistema de caso tem um impacto na ordem de constituintes sintáticos, e esta é uma evidência forte para a afirmação de que a Sintaxe é sensível à Morfologia Flexional. Assim, não há nenhuma língua ergativa que apresente a ordem sintática SVO como ordem não marcada (i.e., sentenças que podem servir de respostas para questões como o que aconteceu?), ordem esta que é muito comum entre as línguas acusativas. Além disso, em nenhuma língua acusativa, ao coordenarmos sentenças do tipo o homem viu uma onça e correu, o falante nativo interpretará o sujeito da segunda sentença como a onça. Mas este fenômeno sintático, de interpretar o sujeito da coordenada como sendo aquele que corresponde ao objeto da oração principal, ocorre em várias línguas ergativas. A hipótese de Chomsky (1970), de que a Sintaxe deveria ser cega para a Morfologia, ficou conhecida como hipótese lexicalista. Mas a discussão levantada por Anderson (1982) convenceu a comunidade linguística de que a sintaxe não pode ser cega à Morfologia Flexional. A divisão entre Morfologia Derivacional como um processo lexical e Morfologia Flexional como um processo sintático passou a ser conhecida por hipótese lexicalista fraca. Assim, vemos a Morfologia Flexional ganhar espaço dentro da árvore sintática, como podemos ver no capítulo Sintaxe, deste volume, onde a flexão é representada na estrutura sintática por F. Degraff (1997) apresenta forte evidência empírica para acreditarmos que a flexão verbal deve realmente ocupar um papel na estrutura sintática. O autor mostra que diferenças entre o francês e o haitiano relativas ao posicionamento de advérbios podem ser elegantemente capturadas ao assumirmos que a flexão verbal ocupa uma posição sintática. Assim, os advérbios são sistematicamente colocados depois do verbo no francês, enquanto são colocados sistematicamente antes do verbo no haitiano. Veja os exemplos a seguir, que manipulam exatamente o mesmo advérbio: (11) Francês: L’élève étudie bien/mal la leçon. Haitiano: Elèv la byen/mal etidye leson an. “O aluno estudou bem/mal a lição.” Degraff assume que o francês e o haitiano têm a mesma estrutura subjacente para as sentenças acima, onde o advérbio ocupa uma posição mais alta que o verbo na árvore sintática (o advérbio é adjungido ao sintagma verbal). O francês e o haitiano, entretanto, diferem no fato de que o haitiano não conta com Morfologia Flexional. Degraff, assumindo que F (flexão) ocupa um lugar na árvore sintática, explica o fenômeno acima dizendo que o verbo é alçado no francês para a posição F, onde se anexa ao morfema flexional de tempo/modo/pessoa, passando a ocupar uma posição mais alta na árvore sintática que o advérbio. O haitiano não conta com Morfologia Flexional, com o verbo permanecendo in situ. Portanto, no haitiano, o advérbio continua ocupando uma posição mais alta, precedendo o verbo. A teoria sintática ganha uma teoria de caso, como também podemos observar no capítulo Sintaxe, neste volume. Isto é, caso passou a ser visto como um fenômeno puramente sintático. Assumiu-se, assim, dentro da teoria gerativa, que todas as línguas contam com atribuição de caso; as línguas apenas diferem no fato de que algumas têm caso morfologicamente marcado e outras não. Segundo esse ponto de vista, mesmo quando o caso não é marcado morfologicamente no substantivo, ainda é possível descobrir qual é o sistema de caso de uma dada língua pelo padrão de concordância verbal. No português, o caso não é marcado morfologicamente, mas percebemos que esta língua tem um padrão acusativo-nominativo. Percebemos isso porque o verbo sempre concorda com o sujeito, seja transitivo ou intransitivo, com o mesmo morfema (cf. eu como, eu lavo pratos). Em uma língua ergativa, é possível encontrar um padrão de concordância em que o verbo concorda da mesma forma com o objeto e com o sujeito intransitivo, apresentando uma concordância especial para o sujeito transitivo.14 Como fundador da discussão sobre o lugar da Morfologia na Gramática, Anderson (1982) não seguiu, entretanto, a corrente que simplesmente deslocou a Morfologia Flexional do léxico para a Sintaxe. Em sua obra de 1992, Anderson recusa a ideia de que a Morfologia Flexional fizesse parte da Sintaxe e funda um quadro teórico para a análise de Morfologia Flexional. Uma ideia muito interessante desse quadro é a proposta de que morfemas não constituem a unidade mínima da Morfologia. Morfemas são um epifenômeno, como o fonema. Para Anderson (1992), a unidade mínima da Morfologia são traços, aqui definidos como propriedades semânticas mínimas. Traços morfológicos seriam do tipo +1pessoa, +passado etc. O autor propôs que o léxico contivesse os traços a serem manipulados por uma dada língua. A Sintaxe poderia manipular esses traços e a Fonologia Pós-lexical resolveria como eles seriam (ou não) pronunciados na superfície. Isto é, para Anderson, a Morfologia Flexional não tem um lugar específico dentro dos módulos da teoria linguística. A Morfologiapercorre todo o processo linguístico e, portanto, estudar Morfologia envolve contar com uma visão global de Linguística. De acordo com Anderson (1992): [...] a estrutura da palavra pode ser entendida apenas como um produto de princípios em interação provenientes de muitas partes da gramática: ao menos da fonologia, da sintaxe e da semântica, em adição ao “léxico”. Como tal, não é uma teoria que lida com o conteúdo de uma caixa num diagrama de fluxo típico, mas, ao invés, uma teoria de um domínio substantivo, cujo conteúdo é disperso através da gramática.15 A proposta de Anderson de considerar traços como unidades mínimas da Morfologia foi adotada pelo Minimalismo de Chomsky (1993, 1995) e pela teoria denominada Morfologia Distribuída, de Halle e Marantz (1993, 1995), na década de 1990. O Minimalismo reformulou totalmente o papel da Morfologia dentro da teoria linguística. A Morfologia voltou a contar com certo papel de destaque. Segundo os adeptos do Minimalismo (1995), a Morfologia (i.e., os traços morfológicos) “guiam” a Sintaxe. Isto é, processos sintáticos, como o movimento de constituintes, somente podem ser ativados se a Morfologia exigir que isto ocorra. Para os minimalistas, entretanto, apesar de a Morfologia voltar a ganhar uma ênfase especial, ela continuou a ser parte da Sintaxe. Os adeptos da Morfologia Distribuída defendem, como os seguidores de Chomsky, que a teoria deve ser modular, mas se diferenciam daqueles que seguem o Minimalismo, ao afirmarem que, embora muito da Morfologia ocorra no módulo da Sintaxe, a Morfologia tem seu próprio componente, definido como um nível de interface entre a Sintaxe e a Fonologia. Assim, o módulo da Morfologia, segundo esta perspectiva, está localizado entre a Sintaxe e a Fonologia e, deste modo, a Sintaxe é visível para a Morfologia e a Morfologia é visível para a Fonologia, permitindo maior intersecção entre Morfologia-Fonologia-Sintaxe. A arquitetura de gramática proposta pela Morfologia Distribuída não inclui um Léxico, como proposto nos modelos lexicalistas da Gramática Gerativa. No entanto, este modelo não exclui a necessidade de listar certos tipos de informações distribuídas em três listas: a lista dos Morfemas, a lista do Vocabulário, e a lista da Enciclopédia. Figura 5.6 Estrutura da Gramática proposta pela Morfologia Distribuída de Halle e Marantz (1993) A Morfologia Distribuída passou a recusar a ideia de que as Morfologias Derivacional e Flexional estão separadas em dois módulos distintos e dependentes da Fonologia Lexical e da Sintaxe, respectivamente. Este modelo defende que a Morfologia, como um todo, tem seus processos independentes de quaisquer outros fenômenos linguísticos. Segundo Halle e Marantz (1993), processos morfológicos incluem fenômenos como fusão e fissão, os quais não caracterizam nenhum outro módulo linguístico. Não temos, segundo a Morfologia Distribuída, morfemas como primitivos linguísticos. Ao contrário, temos posições onde traços morfológicos e fonológicos são inseridos. De acordo com este modelo, as morfologias de todas as línguas do mundo teriam as mesmas posições sintáticas para inserção de traços morfológicos. Mas a Morfologia, a qual segue a Sintaxe, pode manipular as posições sintáticas por meio de fusão de determinadas posições ou fissão de uma dada posição. Como exemplo, podemos citar o caso dos morfemas de concordância. Como vimos antes, o kadiwéu conta com um morfema que marca a concordância do verbo com o sujeito e com um morfema que marca a concordância do verbo com o objeto, mas o português marca apenas a concordância do verbo com o sujeito. Como já dissemos, a Morfologia Distribuída postula que, universalmente, cada posição de concordância conta com uma posição sintática. Assim, a concordância com o sujeito conta com uma posição e a concordância com o objeto conta com uma segunda posição em todas as línguas do mundo. Segundo este modelo, línguas como o português, que só apresentam concordância com o sujeito marcada morfologicamente, passaram por um processo de fusão de posições para concordância.16 Outro fenômeno da Morfologia Flexional (também rotulada de morfossintaxe), abordado frequentemente por linguistas que dominam apenas as ferramentas da análise sintática, é a voz, como, por exemplo, a voz passiva e a voz antipassiva. Tanto a passiva como a antipassiva são processos de intransitivização. Elas diferem apenas no fato de que na passiva o agente é removido, enquanto o paciente é removido na antipassiva. A voz passiva pode ser representada pela seguinte frase do português: (12) Todos estes livros foram escritos pelo mesmo autor. A passivização tem um impacto considerável na Sintaxe. O argumento paciente passa a ser o sujeito da sentença e o argumento agente passa a ser governado por uma adposição. O agente passa a ser opcional, provando que a sentença se torna intransitiva. A antipassiva, comum nas línguas ergativas, também causa intransitivização. No caso da antipassivização, o argumento paciente passa a ser governado por uma adposição e passa a ser opcional, como pode ser notado no exemplo abaixo do chukchee, língua indígena norte-americana: (13) a) ∃nan qaa-t q∂rir-ninet. ele-ERG rena-ABS procurar-3SUBJ/3OBJ “Ele procurou uma rena”. (13) b) Ine-lq∂rir-∂-rk∂n (qora-ta). ANTIPASS-procurar-Ø-PRES/3SUBJ rena-adposição “Ele está procurando (por uma rena)”. A estrutura de passivas e antipassivas continua sendo uma questão atual dentro da teoria linguística.17 Outro fenômeno linguístico muito discutido na década de 1980, e que ainda continua sendo objeto de controvérsia, são os pronomes clíticos. Assim, alguns autores tentam abordar os pronomes clíticos na Sintaxe puramente, mas outros, como Anderson, Marantz e Halle, reivindicam que os clíticos são objeto de um módulo independente. Como mencionado anteriormente, clíticos não podem ser classificados como palavras, pois não ocorrem livremente em qualquer posição sintática e não podem ocorrer em isolamento. Mas também não podem ser classificados como afixos (prefixo, sufixo ou infixo), pois afixos têm uma posição fixa em relação ao seu hospedeiro, enquanto um clítico tende a ser mais livre. Assim, o afixo de primeira pessoa do singular o ocorre sempre sufixado à raiz verbal (cf. venho). Um clítico de primeira pessoa do singular no português brasileiro pode ocorrer antes ou depois do verbo (desculpe-me ou me desculpe). Dado o seu caráter híbrido, não é uma palavra, mas não chega a ser um afixo. Os clíticos têm sido objeto de muita controvérsia na teoria linguística, passando por aqueles que argumentam que clíticos devem ser tratados como palavras e que, portanto, devem funcionar como argumentos sintáticos (Jelinek, 1984) e por aqueles que acreditam que clíticos são afixos e devem ser tratados como concordância (Suñer, 1988). Uma proposta que ganhou bastante destaque foi a de Anderson (1992), segundo a qual clíticos são afixos. A diferença de afixos tradicionais é que eles seriam afixados à frase, enquanto afixos tradicionais seriam afixados à palavra.18 4.2. Outros desenvolvimentos dentro da teoria gerativa atual O objetivo deste capítulo é dar uma visão geral dos fenômenos encontrados ao trabalharmos com Morfologia. Entretanto, os fenômenos já apresentados não esgotam todas as possibilidades de análise. Os fenômenos morfológicos nem sempre são concatenativos, isto é, processados por meio da adição de morfemas. Toda língua conta com um componente de Morfologia Não concatenativa. No português, esses processos são os que se seguem: a) mistura: palavras que são criadas pela junção de partes de duas palavras já existentes na língua. Em português, podemos observar este processo em palavras como portunhol, uma mistura entre as palavras português e espanhol; b) abreviação: um processo no qual uma nova palavra é criada pelo truncamento de uma palavra já existente, como, por exemplo, biju para bijuteria; c) acronímia: palavras iniciadas pelas letras iniciais de uma sigla, por exemplo, IEL, pronunciada [ω] por Instituto de Estudos