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A morte de Ivan Ilitch Apresentação A morte de Ivan Ilitch foi publicada em 1886 no tomo 12 das Obras reunidas do conde Liev Tolstói, organizadas por sua esposa. A história foi escrita entre 1882 e 1886, com vários intervalos no curso do trabalho. Tolstói tinha 58 anos na data de sua conclusão. Estava casado havia 24 anos e já tivera treze filhos. Em 1882, a família comprara uma chácara em Moscou, onde o escritor passava o inverno, retornando regularmente no verão para sua propriedade rural, Iásnaia Poliana. A novela, portanto, foi escrita nesses dois endereços. A origem do relato foi a doença e a morte de um procurador, ocorrida em 1881, em Tula, cidade vizinha de Iásnaia Poliana. Chamava-se Ivan Ilitch Miétchnikov e tinha dois irmãos: um geógrafo e revolucionário, então residente na Itália, e um importante biólogo chamado Iliá, que narrou todas as circunstâncias da morte do irmão para Tolstói. Quando começou a escrever a novela, no ano seguinte, a ideia de Tolstói era elaborar uma narrativa em primeira pessoa, na qual um amigo de Ivan Ilitch rememorava o convívio de ambos e, em paralelo, reproduzia e analisava trechos do diário do amigo morto. O título seria “A morte de um juiz”. A mudança da ideia inicial para o enfoque em terceira pessoa da versão definitiva nada tem de incomum no trabalho de escritores. Porém, no caso de Tolstói, ganha um sentido menos rotineiro quando compreendida como um testemunho a mais de seu constante esforço de experimentar formas literárias de toda natureza, na busca do melhor meio para expressar suas inquietações. Tanto assim que, na mesma ocasião em que trabalhava em A morte de Ivan Ilitch, ele escreveu não só a peça teatral O poder das trevas, na qual reflete acerca de um criminoso violento, como também contos de diversos formatos, tanto de concepção moderna, como “Kholstomer”, quanto calcados em parábolas e narrativas orais populares russas — objeto permanente de interesse do escritor —, como o conto “Do que vivem os homens”, de 1885. Ao mesmo tempo, Tolstói compôs o longo ensaio Então, o que fazer?, no qual discute as precárias condições de vida da população pobre de Moscou, com a qual tivera contato direto como voluntário num censo demográfico. Vale a pena nos determos neste ponto, pois na década de 1880 o Império Russo já se encontrava num estágio mais avançado de urbanização e industrialização, em que a expansão das relações capitalistas tomava novo impulso. O fim da servidão, em 1861, agravara as dificuldades de boa parte da população rural e, com isso, os camponeses afluíam em massa para as cidades, em busca de emprego. É vantajoso para o leitor atual de A morte de Ivan Ilitch ter isso em mente, ao observar, por exemplo, o personagem Guerássim, um mujique recém-chegado a Moscou, para entender sua função no conjunto da obra. Por outro lado, naqueles anos, o ambiente conjugal e familiar de Tolstói já adquirira o caráter conflituoso que, com altos e baixos, iria perdurar e se agravar até o fim de sua vida, em 1910. Embora pudesse haver razões mais profundas, um dos motivos imediatos para os desentendimentos com a esposa consistia na tentativa de Tolstói de abrir mão dos direitos autorais pelo menos das obras escritas a partir de 1881. Seus livros mais célebres, Guerra e paz e Anna Kariênina, tinham sido escritos nas décadas de 1860 e 1870, respectivamente, e, portanto, ficariam fora desse acordo com a esposa. Mesmo assim ela não se conformava, e as relações familiares se tornaram tão aflitivas para todos que Tolstói, já nessa época, chegou a pensar em sair de casa. Também por essa razão deve-se ressaltar o gesto do escritor de, concluída a novela, dá-la de presente à esposa. Além disso, na década de 1880, Tolstói andava às voltas com uma aguda crise intelectual, expressão de um acúmulo de questionamentos que abrangiam diversas esferas da experiência pessoal e social. Um dos marcos dessa crise foi o livro Uma confissão, escrito em 1879 e publicado em 1882 no exterior, pois tinha sido proibido pelas autoridades civis e religiosas do regime tsarista. A despeito da proibição oficial, nessa altura, uma infinidade de cópias manuscritas da obra já circulava pelo vasto Império Russo, sem falar dos exemplares impressos de forma clandestina. Algumas interrogações que, em Uma confissão, se manifestam em termos de uma experiência pessoal vivida pelo autor se traduzem, agora, em A morte de Ivan Ilitch, como matéria ficcional. Portanto, à luz de certos trechos de Uma confissão, esta novela pode apresentar contornos mais definidos. Vejamos, por exemplo, a seguinte passagem de Uma confissão: Aconteceu comigo que a vida de nosso círculo — das pessoas ricas, instruídas — não só me causou repulsa como perdeu todo o sentido. Todas as nossas atividades, argumentos, ciências, artes — tudo isso me pareceu uma brincadeira. Entendi que era impossível procurar nisso algum sentido. As atividades do povo trabalhador, que criava a vida, me pareceram a única tarefa verdadeira. A experiência que o personagem Ivan Ilitch percorre na novela, em seu dia a dia concreto, abre espaço para essa ordem de questionamentos, delineados agora em traços fortes e individualizados. Pois se o título diz “A morte de Ivan Ilitch”, a maior parte da matéria da novela, na realidade, corresponde à vida de Ivan Ilitch, sobretudo sua vida oficial, tanto no trabalho como na família. Entretanto, qual o fator que dispara a crise no interior desse arcabouço de aspecto tão sólido que é a vida de um alto funcionário das instituições judiciárias? Para responder, cabe reproduzir uma indagação presente no centro do livro Uma confissão: “Existe, em minha vida, algum sentido que não seria aniquilado pela morte, que me aguarda de modo inevitável?”. E também a tese que dá origem a tal indagação: “Cada passo rumo ao conhecimento nos leva na direção dessa verdade. E a verdade é a morte”. Ou seja, na busca de uma referência ou critério para avaliar e justificar as ações e preocupações que constituem a vida, Tolstói depara apenas com a morte — por definição, o oposto da vida. Menos uma resposta do que um problema, essa é uma das questões de fundo que impulsionam a narrativa de A morte de Ivan Ilitch. Como é regra em Tolstói, não se trata de um questionamento abstrato, mas sim vivido de modo particular, em situações concretas e específicas. Existe, de fato, o fio lógico de um raciocínio. Entretanto, em volta dos termos desse raciocínio, prevalece, muito mais ampla, a experiência direta de uma pessoa determinada. Importa ainda lembrar como o tema da morte acompanhou a vida de Tolstói desde muito cedo. Quando tinha dois anos, sua mãe morreu; aos nove, morreu o pai; aos dez, morreu a avó que o criava; aos treze, morreu a tia que o tomara para criar; como jovem militar, nas campanhas do Cáucaso e da Crimeia, viu muitos camaradas morrerem a seu lado; aos trinta anos, acompanhou, à beira do leito, a morte do irmão mais velho, vítima da tuberculose, experiência retratada no romance Anna Kariênina, no único capítulo da obra que recebeu um título: “Morte”; entre 1873 e 1875, cinco familiares morreram em sucessão; cinco de seus filhos morreram ainda crianças. No vasto painel do romance Guerra e paz, as mortes do conde Bezúkhov, de Liza, Hélène, Andrei, conde Rostov, Piétia e do camponês Platon Karatáiev, descritas com vagar e densidade especial, se distribuem como pilares que reforçam a coesão da obra. A esse respeito, no caso de A morte de Ivan Ilitch, três elementos específicos merecem destaque. O primeiro é a presença da doença como metonímia da morte, uma forma indireta de assinalar a realidade da morte. Pois, na mesma medida em que os amigos, os familiares e os médicos tentam encarar a doença de Ivan Ilitch como algo abstrato ou irrelevante, eles também fingem que a morte, para todos os efeitos, não existe. O segundo elemento é o sentido da propriedade privada e da busca de acumulação de riqueza na vida cotidiana da classe dominante e da camada média a ela associada, a que pertence o protagonista. Afinal, não háde ser por acaso que a tragédia de Ivan Ilitch se desencadeia justamente quando ele atinge o auge da carreira, o salário mais alto, e consegue, enfim, adquirir o tão sonhado apartamento de luxo. A circunstância de sua doença estar diretamente vinculada a seu empenho pessoal e entusiástico em decorar o apartamento não pode deixar de ter peso no significado geral da obra. A isso, por fim, se soma a “fraude”, conceito repisado no curso do relato e cuja função consiste em impedir que as pessoas enxerguem a morte e Nara Accorsi Fraude admitam seus efeitos sobre as escolhas cotidianas e sobre a maneira de viver. Quanto ao estilo e à composição, Tolstói optou por uma técnica que prima pela supressão de ornamentos, pela secura e até pela rispidez. Nesse quadro, forma-se uma dinâmica em que a força da angústia, presente no fundo do relato, pressiona a barreira de uma linguagem que, não raro, beira o tom oficial e burocrático. Um dos efeitos é a tendência para a compactação extrema e, em certa medida, crescente de todo o material da novela, como se verifica nas frases, nos parágrafos e nos capítulos — processo que podemos acompanhar no decorrer da história. Não são poucos os problemas que essa técnica cria para uma tradução. Por exemplo, as possibilidades da expressão concentrada da língua russa não se comparam com as do português. Um caso exemplar de compactação e secura é que Tolstói pode construir, com naturalidade, paralelismos com os termos russos opostos, e um tanto bruscos, to — ne to (literalmente, isso — não isso), em situações que só conseguimos traduzir como certo — errado, ou verdadeiro — falso. Tendo isso em mente, esta tradução fez o possível para preservar, em português, o efeito geral que Tolstói perseguiu com afinco na composição do texto de sua novela, como atestam seus inúmeros rascunhos e suas intermináveis correções. I No vasto edifício da Corte de Justiça, durante o intervalo de uma sessão do julgamento dos Melvínski, os membros da Corte e o procurador se reuniram no gabinete de Ivan Iegórovitch Chebek e teve início uma conversa sobre o célebre caso Krássov. Fiódor Vassílievitch se inflamou, ao demonstrar que a Corte não tinha jurisdição sobre o caso, Ivan Iegórovitch fincou pé em seu ponto de vista, enquanto, de outro lado, Piotr Ivánovitch, que desde o início não entrara na discussão e dela não tomava parte, se limitava a passar os olhos nos exemplares do jornal Viédomost [21] trazidos pouco antes. — Senhores! — disse ele. — O Ivan Ilitch morreu! — Será possível? — Veja, leia aqui — disse para Fiódor Vassílievitch, mostrando o jornal ainda fresco, cheirando a tinta. Cercado por um friso preto, estava escrito: “Praskóvia Fiódorovna Goloviná, com sincero pesar, comunica aos parentes e conhecidos o falecimento de seu adorado esposo, membro da Câmara de Justiça,[22] Ivan Ilitch Golovin, ocorrido no dia 4 de fevereiro deste ano de 1882. O enterro será na sexta-feira, à uma hora da tarde”. Ivan Ilitch tinha sido colega de trabalho dos senhores ali reunidos e todos gostavam dele. Fazia algumas semanas que adoecera; diziam que sua doença era incurável. Fora mantido no cargo, porém já estava acertado que, no caso de sua morte, Alekséiev podia ser nomeado em seu lugar e, para o posto de Alekséiev, seriam indicados ou Vínnikov ou Chtábel. Por isso, ao saber da morte de Ivan Ilitch, o primeiro pensamento de todos os senhores reunidos no gabinete foi sobre o efeito que aquela morte podia produzir na transferência ou na promoção dos próprios membros da Corte ou de seus conhecidos. “Agora, com certeza, vou receber o cargo de Chtábel ou de Vínnikov”, pensou Fiódor Vassílievitch. “Faz tempo que a vaga está prometida para mim e essa promoção representa um aumento de oitocentos rublos, sem falar da verba de secretaria.” “Agora vai ser preciso pedir a transferência do meu cunhado de Kaluga”, pensou Piotr Ivánovitch. “Minha esposa vai ficar muito contente. E não vai poder mais reclamar de que eu nunca fiz nada por seus parentes.” — Eu já estava mesmo achando que ele não ia se recuperar — disse Piotr Ivánovitch. — É uma pena. — Mas o que é que ele tinha, exatamente? — Os médicos não conseguiram determinar. Ou melhor, determinaram, mas de maneiras diferentes. Na última vez em que o vi, até achei que ia ficar bom. — E eu que não estive mais com ele desde as festas de fim de ano. Eu sempre pensava em ir lá. — Mas ele tinha fortuna? — Parece que a esposa tinha qualquer coisa, mas muito pouco. Algo insignificante. — Pois é, vai ser preciso ir até lá. Eles moravam tremendamente longe. — Quer dizer, longe da sua casa. Tudo é longe de onde você mora. — Pronto, ele não consegue me perdoar por morar do outro lado do rio — disse Piotr Ivánovitch, e sorriu para Chebek. Passaram a falar sobre a grande distância entre as partes da cidade, e voltaram para a sessão. Além das conjecturas que a morte havia despertado em todos eles a respeito de transferências e de possíveis mudanças no trabalho, em decorrência daquela morte, o simples fato da morte de um conhecido provocava, como sempre, em todos que recebiam a notícia, um sentimento de alegria por ter morrido “ele e não eu”. “Veja só, ele morreu; mas eu não”, pensou ou sentiu cada um deles. Os conhecidos mais próximos, os assim chamados amigos de Ivan Ilitch, ao saber do fato, não puderam evitar o pensamento de que, agora, seriam obrigados a cumprir as maçantes obrigações do decoro, comparecer às cerimônias fúnebres e visitar a viúva para prestar condolências. Entre todos, os mais ligados ao morto eram Fiódor Vassílievitch e Piotr Ivánovitch. Piotr Ivánovitch tinha sido seu colega na Escola de Jurisprudência[23] e se considerava em dívida com Ivan Ilitch. Depois de comunicar à esposa, durante o jantar, a morte de Ivan Ilitch e suas conjecturas sobre a possível transferência do cunhado para aquela comarca, Piotr Ivánovitch, sem mesmo deitar-se para repousar, vestiu o fraque e foi à casa de Ivan Ilitch. Na frente do edifício de Ivan Ilitch, estavam estacionados uma carruagem e dois coches de praça. No térreo, logo na entrada, uma tampa de caixão, com brocados dourados, franjas e um galão enfeitado com um pó cintilante, estava encostada à parede, junto aos ganchos para pendurar chapéus. Duas damas de preto tiravam os casacos de pele. Uma, a irmã de Ivan Ilitch, era conhecida, a outra era desconhecida. Schwartz, um colega de Piotr Ivánovitch, vinha descendo e, no alto da escada, ao ver quem havia chegado, parou e piscou para ele, como se dissesse: “O que o Ivan Ilitch fez foi uma bobagem; comigo e com você, já é diferente”. O rosto de Schwartz, de costeletas inglesas, e toda a sua figura magra, metida num fraque, exprimiam, como sempre, uma seriedade elegante, e tal seriedade, sempre em contradição com o caráter jocoso de Schwartz, tinha ali um toque particularmente picante. Assim pensou Piotr Ivánovitch. Piotr Ivánovitch deixou as damas passarem na sua frente e as seguiu devagar pela escada. Schwartz não desceu; ficou parado, no alto. Piotr Ivánovitch entendeu o motivo: era óbvio que ele queria combinar onde os dois iriam jogar cartas mais tarde. As damas seguiram pela escada rumo aos aposentos da viúva, enquanto Schwartz, de lábios sérios, cerrados e firmes, mas com um olhar jocoso, apontou à direita, com um movimento da sobrancelha, para Piotr Ivánovitch, indicando o quarto onde estava o defunto. Como sempre acontece, Piotr Ivánovitch entrou sem ter ideia de como era preciso agir. Só sabia que, nesses casos, nunca era de mais fazer o sinal da cruz. Quanto à necessidade de, além disso, curvar-se em reverências, não estava seguro e, portanto, optou pelo meio-termo: ao entrar no quarto, tratou logo de ficar fazendo o sinal da cruz, mas inclinou-se em reverências bem discretas. Enquanto isso, na medida em que os movimentos das mãos e da cabeça lhe permitiam, ele observava o quarto, ao redor. Dois jovens, um deles um ginasiano, na certa sobrinho do morto, estavam saindo do quarto, fazendo o sinal da cruz. Uma velha se mantinha imóvel. Umadama, de sobrancelhas estranhamente levantadas, falava com ela aos sussurros. O sacristão, de sobrecasaca, lia algo em voz alta, com ar decidido e vigoroso e com a expressão de quem rejeita qualquer discordância; o mujique Guerássim, um copeiro, ao passar diante de Piotr Ivánovitch, em passos leves, polvilhou algo no chão. Ao ver aquilo, Piotr Ivánovitch logo sentiu um ligeiro odor de cadáver em decomposição. Em sua última visita a Ivan Ilitch, Piotr Ivánovitch tinha visto aquele mujique no escritório; cumpria as funções de uma enfermeira e Ivan Ilitch gostava muito dele. Piotr Ivánovitch não parava de fazer o sinal da cruz e curvar-se de leve numa direção intermediária, entre o caixão, o sacristão e os ícones, que estavam num canto, sobre a mesa. Depois, quando achou que aquele movimento de benzer-se já havia se prolongado demais, parou e se pôs a observar o morto. O morto estava deitado, como sempre ficam deitados os mortos, de modo particularmente pesado, à maneira dos mortos, afogado no estofamento do caixão, as pernas e os braços rijos, a cabeça reclinada para sempre sobre um travesseiro, e exibia, como sempre fazem os mortos, sua testa amarela, cor de cera, as têmporas calvas e afundadas, e o nariz protuberante, que parecia comprimir o lábio superior. Ele havia mudado bastante, emagrecera mais ainda, desde que Piotr Ivánovitch o vira, porém, como acontece com todos os mortos, o rosto estava mais bonito e, acima de tudo, mais expressivo do que quando pertencera a um vivo. No rosto, havia a expressão de que aquilo que era preciso fazer já tinha sido feito, e fora feito da maneira correta. Além disso, havia também naquela fisionomia uma repreensão ou uma advertência dirigida aos vivos. Piotr Ivánovitch achou tal advertência despropositada, ou pelo menos não lhe dizia respeito. Algo começou a incomodá-lo e, por isso, Piotr Ivánovitch fez mais uma vez o sinal da cruz e, apressado demais, de modo até incompatível com as boas maneiras, virou-se e tomou a direção da porta. Schwartz o aguardava no cômodo contíguo, com os pés bem afastados e as mãos nas costas, brincando com a cartola entre os dedos. Um só olhar para a figura de Schwartz, jocosa, muito limpa e elegante, deixou Piotr Ivánovitch reanimado. Piotr Ivánovitch entendeu que ele, Schwartz, estava acima daquilo tudo e não ia se render a impressões desalentadoras. Só seu aspecto já dizia: o contratempo do enterro de Ivan Ilitch não poderá jamais ser motivo suficiente para admitir que a ordem da sessão seja perturbada, ou, em outras palavras, nesta noite, nada é capaz de impedir que o baralho de cartas novinhas em folha estale, na hora em que o selo do maço novo for rompido, enquanto o lacaio cuida de colocar sobre a mesa quatro velas que nunca antes foram acesas; no geral, não há base nenhuma para supor que esse incidente possa nos impedir de passar com alegria também a noite de hoje. E Schwartz chegou até a falar aquilo, num sussurro, para Piotr Ivánovitch, quando este passou por ele, e propôs reunirem-se em casa de Fiódor Vassílievitch para o jogo de cartas. Porém, pelo visto, não era o destino de Piotr Ivánovitch jogar baralho naquela noite. Praskóvia Fiódorovna, baixa e gorda, com a silhueta que, apesar de todo seu esforço em contrário, ainda assim se alargava dos ombros para baixo, sempre de preto, com um lenço de renda sobre a cabeça e as sobrancelhas estranhamente levantadas, igual àquela dama parada na frente do caixão, saiu de seus aposentos junto de outras senhoras, e depois de passar por eles, na porta do quarto do defunto, disse: — A cerimônia fúnebre logo vai começar; entrem. Schwartz curvou-se numa reverência dúbia e ficou parado, sem aceitar nem recusar claramente o convite. Praskóvia Fiódorovna, ao reconhecer Piotr Ivánovitch, deu um suspiro, chegou bem perto dele, pegou sua mão e disse: — Eu sei que o senhor era um verdadeiro amigo de Ivan Ilitch… — E olhou para ele, esperando uma reação condizente com aquelas palavras. Piotr Ivánovitch sabia que, assim como no outro quarto foi preciso fazer o sinal da cruz, ali era indispensável apertar a mão, suspirar e dizer: “Meus pêsames sinceros!”. E assim fez. E, dito isso, percebeu que o efeito foi o desejado: ele se comoveu e ela também se comoveu. — Venha comigo, enquanto ainda não começou; eu preciso conversar com o senhor — disse a viúva. — Dê-me o braço. Piotr Ivánovitch lhe deu o braço e os dois se dirigiram para um cômodo mais afastado, depois de passar por Schwartz, que piscou desolado para Piotr Ivánovitch: “Lá se vai o jogo de cartas! Não fique magoado, mas nós vamos arranjar outro parceiro. Quem sabe jogaremos em cinco, depois que você conseguir se livrar disto”, disse seu olhar jocoso. Piotr Ivánovitch suspirou ainda mais fundo e mais triste e Praskóvia Fiódorovna apertou sua mão com gratidão. Entraram numa sala revestida de cretone cor-de-rosa, com um lampião turvo, e sentaram junto à mesa: ela, num sofá e Piotr Ivánovitch, num pufe de molas, baixo e incômodo, que afundou demais com seu peso. Praskóvia Fiódorovna pensou em preveni-lo para que sentasse em outro lugar, mas concluiu que tal aviso não condizia com sua situação, e mudou de ideia. Ao sentar no pufe, Piotr Ivánovitch lembrou que, quando Ivan Ilitch estava decorando aquela sala de visitas, havia pedido sua opinião a respeito daquele mesmo cretone cor-de-rosa, com folhas verdes estampadas. Ao passar pela mesa para sentar no sofá (a sala toda era repleta de móveis e objetos decorativos), a mantilha preta de renda da viúva enroscou num entalhe da mesa. Piotr Ivánovitch fez menção de se levantar, a fim de soltar a mantilha, mas o pufe, liberado embaixo dele, começou a ondular e a empurrá-lo. A própria viúva conseguiu soltar sua mantilha de renda, Piotr Ivánovitch sentou-se outra vez e o pufe se rebelou de novo e deu até um estalo. Quando tudo aquilo terminou, ela pegou um lenço limpo de cambraia e começou a chorar. Já Piotr Ivánovitch havia esfriado com o episódio da mantilha de renda e com a luta contra o pufe, e se mantinha sentado, de sobrancelhas contraídas. A situação embaraçosa foi interrompida por Sokolóv, copeiro de Ivan Ilitch, que trouxe a informação de que uma sepultura no cemitério indicado por Praskóvia Fiódorovna ia custar duzentos rublos. Ela parou de chorar e, depois de olhar para Piotr Ivánovitch com ar de vítima, falou em francês que aquilo era muito penoso. Piotr Ivánovitch fez um gesto mudo que exprimia a certeza indiscutível de que não podia mesmo ser diferente. — Fume, por favor — disse ela com voz magnânima e, ao mesmo tempo, arrasada, e foi tratar com Sokolóv da questão do preço das sepulturas. Piotr Ivánovitch, enquanto fumava, ouvia como a viúva indagava muito minuciosamente acerca dos diversos preços da terra, até decidir o que convinha comprar. Além disso, uma vez escolhido o local, ela passou a dar ordens sobre os cantores da cerimônia fúnebre. Sokolóv foi embora. — Eu faço tudo sozinha — disse ela para Piotr Ivánovitch, afastando para o lado os álbuns que estavam sobre a mesa; e ao notar que as cinzas eram uma ameaça para a mesa, na mesma hora empurrou um cinzeiro na direção de Piotr Ivánovitch, e disse: — Acho hipocrisia afirmar que, por causa do desgosto, eu não sou capaz de cuidar de assuntos práticos. Ao contrário, se algo pode, não digo me consolar… mas me distrair, são justamente essas preocupações relativas a ele. — Pegou o lenço de novo, como se fosse chorar, mas de repente pareceu se controlar, recuperou-se e passou a falar tranquilamente: — Na verdade, eu tenho um assunto para tratar com o senhor. Piotr Ivánovitch inclinou-se um pouco, sem deixar que, por baixo dele, se alvoroçassem as molas do pufe, que logo começaram a se remexer. — Nos últimos dias, ele sofreu muito. — Sofreu muito? — perguntou Piotr Ivánovitch. — Ah, um horror! Não só nos últimos minutos, mas nas últimas horas, ele não parava de gritar. Por três dias e três noites seguidos, ele gritou, sem poupar a voz. Era insuportável. Nem consigo entender como foi que eu aguentei; dava para ouvir portrás de três portas fechadas. Ah! O que eu tive de suportar! — Mas será que ele estava consciente? — perguntou Piotr Ivánovitch. — Sim — sussurrou ela. — Até o último minuto. Ele se despediu de nós durante quinze minutos, até a morte, e ainda pediu para levar o Volódia[24] para fora do quarto. Apesar da desagradável consciência do fingimento, seu e daquela mulher, de repente Piotr Ivánovitch se apavorou diante da ideia do sofrimento de uma pessoa que ele conhecera tão de perto, primeiro como um menino alegre, na escola, e depois como um adulto, parceiro no jogo. Ele viu de novo aquela testa, o nariz que pressionava o lábio, e lhe veio um forte temor por si mesmo. “Três dias e três noites de sofrimentos horríveis, e a morte. Então, agora, a qualquer minuto, isso pode acontecer também comigo”, pensou, e no mesmo instante lhe veio um pavor. Porém, sem que ele mesmo soubesse como, logo acudiu em seu socorro o pensamento de costume, ou seja, que aquilo aconteceu com Ivan Ilitch e não com ele, e que aquilo não devia e não podia acontecer com ele; se pensasse de outro modo, acabaria se rendendo a um estado de ânimo melancólico, o que não convinha, como era evidente pelo rosto de Schwartz. Feito esse raciocínio, Piotr Ivánovitch se acalmou e, com ar interessado, passou a fazer perguntas sobre os detalhes do fim de Ivan Ilitch, como se a morte fosse uma espécie de aventura peculiar apenas a Ivan Ilitch e jamais a ele mesmo. Depois de expor várias vezes os pormenores realmente aterradores dos sofrimentos físicos de Ivan Ilitch (pormenores que Piotr Ivánovitch só pôde avaliar pelo modo como os tormentos de Ivan Ilitch agiram sobre os nervos de Praskóvia Fiódorovna), a viúva, pelo visto, julgou necessário entrar no assunto. — Ah, Piotr Ivánovitch, como é doloroso, como é horrivelmente doloroso, horrivelmente doloroso. — E começou de novo a chorar. Piotr Ivánovitch suspirava e esperava que ela terminasse de assoar o nariz. Quando ela terminou, ele disse: — Meus pêsames sinceros… — E, de novo, ela desatou a falar e contou o que era, pelo visto, o assunto importante que tinha a tratar com ele; consistia em várias perguntas sobre as maneiras de obter dinheiro do governo, em consequência da morte do marido. Ela dava a entender que estava pedindo conselhos a Piotr Ivánovitch sobre a sua pensão; mas ele percebeu que a viúva já conhecia o assunto nos mínimos detalhes, e sabia até coisas que ele ignorava: estava a par de tudo que era possível arrancar do governo em razão daquela morte; mas o que Praskóvia Fiódorovna queria mesmo era saber se não seria possível, de algum modo, arrancar ainda um pouco mais de dinheiro. Piotr Ivánovitch tentou imaginar alguma forma, porém, depois de refletir mais um pouco e, por decoro, fazer críticas ao nosso governo por sua mesquinharia, respondeu que parecia não ser possível obter mais nada. Então ela deu um suspiro e, pelo visto, se pôs a imaginar um meio de se livrar daquela visita. Ele entendeu, apagou o cigarrinho, levantou-se, apertou sua mão e foi para a antessala. Na sala de jantar, onde havia um relógio cuja aquisição num brechó deixara Ivan Ilitch muito contente, Piotr Ivánovitch encontrou o padre e mais alguns conhecidos, que foram até lá para a cerimônia fúnebre, e viu uma bela senhorita, conhecida sua, a filha de Ivan Ilitch. Estava toda de preto. Sua cintura, já muito fina, parecia mais fina ainda. Tinha uma expressão sombria, decidida, quase raivosa. Cumprimentou Piotr Ivánovitch com uma inclinação de cabeça, como se ele tivesse culpa de algo. Atrás da filha, de pé, com a mesma expressão ofendida, estava um jovem rico, já conhecido de Piotr Ivánovitch, um juiz de instrução, o noivo da jovem, pelo que ele tinha ouvido falar. Piotr Ivánovitch cumprimentou-o com uma reverência entristecida e quis seguir para o quarto do defunto, quando surgiu, subindo pela escada, a figurazinha do filho ginasiano, parecidíssimo com Ivan Ilitch. Era o pequeno Ivan Ilitch, tal como Piotr Ivánovitch o recordava dos tempos da Escola de Jurisprudência. Tinha os olhos chorosos, como os meninos de treze ou catorze anos que perderam a inocência. Ao ver Piotr Ivánovitch, o menino começou a contrair o rosto, sério e encabulado. Piotr Ivánovitch inclinou a cabeça para ele e entrou no quarto do defunto. Teve início a cerimônia fúnebre — velas, gemidos, incenso, lágrimas, soluços. Piotr Ivánovitch estava de sobrancelhas contraídas, parado, olhando para os pés à sua frente. Não dirigiu o olhar nem uma vez para o defunto, não cedeu às influências debilitantes, até o fim, e foi um dos primeiros a sair. Na antessala, não havia ninguém. Guerássim, o mujique copeiro, saiu depressa do quarto do falecido, revirou, com as mãos fortes, todos os casacos a fim de encontrar o de Piotr Ivánovitch e o entregou ao dono. — E então, Guerássim? — disse Piotr Ivánovitch, para falar alguma coisa. — Está triste? — É a vontade de Deus. Para lá, vamos todos nós — disse Guerássim, deixando à mostra os dentes brancos e perfeitos de mujique, e como uma pessoa no auge de uma intensa atividade, abriu a porta com vigor, chamou um cocheiro de praça, embarcou Piotr Ivánovitch e pulou de volta para o alpendre, como se já estivesse pensando no que tinha de fazer em seguida. Para Piotr Ivánovitch, foi particularmente agradável respirar o ar puro, depois do cheiro de incenso, cadáver e fenol. — Para onde o senhor que ir? — perguntou o cocheiro. — Não é tarde. Vou dar um pulo na casa de Fiódor Vassílievitch. E Piotr Ivánovitch foi até lá. De fato, ainda deu tempo de chegar para o fim do primeiro rubber[25] e, desse modo, ele pôde tranquilamente entrar na partida como um quinto jogador. II A história da vida de Ivan Ilitch foi a mais simples e rotineira, e também a mais horrível. Ivan Ilitch morreu aos quarenta e cinco anos, na condição de membro da Câmara de Justiça. Era filho de um funcionário que, em Petersburgo, passando por diversos ministérios e departamentos, havia cumprido o tipo de carreira que conduz as pessoas a uma situação na qual, embora se revele com toda a clareza que são inaptas para qualquer função importante, mesmo assim, em virtude de seu longo tempo de serviço e dos muitos postos que ocuparam, elas não podem mais ser demitidas e, por isso, recebem cargos fictícios, além de milhares de rublos nada fictícios — entre seis e dez mil —, com os quais viverão até a mais avançada velhice. Foi este o caso do conselheiro privado[26] Iliá Iefímovitch Golovin, funcionário supérfluo de diversas repartições supérfluas. Teve três filhos. Ivan Ilitch foi o segundo. O mais velho fez uma carreira igual à do pai, apenas em outro ministério, e já estava se aproximando da idade funcional em que se recebe o salário da inércia. O terceiro filho era um desastre. Ganhou má fama nos mais diversos cargos e agora trabalhava nas estradas de ferro; o pai, os irmãos e, sobretudo, suas esposas não só não gostavam de encontrá-lo como nem mesmo se lembravam de sua existência, exceto em caso de extrema necessidade. A irmã casara com o barão Greff, também funcionário em Petersburgo, a exemplo do sogro. Ivan Ilitch era, como diziam, la phénix de la famille.[27] Não era frio e meticuloso como o mais velho nem desastrado como o caçula. Era o meio-termo — inteligente, vivaz, simpático e correto. Junto com o irmão caçula, havia estudado na Escola de Jurisprudência. O irmão não concluiu o curso e foi expulso na quinta série, mas Ivan Ilitch terminou os estudos com sucesso. Na Escola de Jurisprudência, ele já era o mesmo que viria a ser durante toda a vida: uma pessoa capaz, alegre, cordial e sociável, mas que cumpria com rigor aquilo que julgava ser o seu dever; e Ivan Ilitch julgava ser o seu dever tudo aquilo que as pessoas do mais alto escalão da sociedade julgavam ser o seu dever. Não era bajulador, nem quando menino nem depois, quando adulto, porém, desde muito pequeno, assim como a mosca é atraída para a luz, ele se sentia impelido para perto das pessoas mais bem situadas na sociedade, se impregnava de suas maneiras, desua visão da vida, e estabelecia com elas relações amistosas. Todos os entusiasmos da infância e da juventude haviam passado por ele sem deixar grandes vestígios; rendeu-se à voluptuosidade e à vaidade, e também — já no fim, nas séries mais adiantadas da escola — ao liberalismo, porém tudo dentro de determinados limites, que seu bom senso indicava com acerto. Na Escola de Jurisprudência, praticou atos que, antes, lhe pareciam grandes indecências e que, na hora em que os praticava, lhe inspiravam repulsa; mas depois, ao ver que tais atos eram praticados também por pessoas do alto escalão da sociedade e que elas não os consideravam ruins, Ivan Ilitch, se não chegou a admitir que fossem bons, pelo menos tirou da cabeça tais atos por completo e suas lembranças não lhe traziam amargura. Ao sair da Escola de Jurisprudência com o título da décima classe,[28] e receber do pai o dinheiro para o uniforme,[29] Ivan Ilitch encomendou roupas no Scharmer, pendurou na corrente do relógio uma medalhinha com a inscrição “respice finem”,[30] despediu-se do príncipe que era o diretor da escola, almoçou com seus camaradas no restaurante Donon e, com sua mala nova e na moda, com suas camisas e ternos, bem barbeado, provido de todos os acessórios de toalete e de sua manta escocesa de viagem, tudo encomendado e comprado nas melhores lojas, partiu para a província, a fim de ocupar o posto de encarregado das missões especiais do governador, vaga arranjada pelo pai. Na província, Ivan Ilitch logo conquistou para si uma condição tão cômoda e agradável quanto a que desfrutara na Escola de Jurisprudência. Trabalhava, fazia sua carreira e, ao mesmo tempo, se divertia com alegria e decoro; de vez em quando, recebia a missão de viajar pelos distritos, portava-se com dignidade diante de superiores e subalternos, e também Nara Accorsi dever cumpria, com rigor e honestidade incorruptível — algo de que não podia deixar de se orgulhar —, as missões a ele atribuídas, principalmente nos casos que envolviam os cismáticos.[31] Apesar da juventude e de sua inclinação para o divertimento volúvel, Ivan Ilitch, nas questões do trabalho, se mostrava extremamente contido, formal e até severo; porém, nas situações sociais, era não raro engraçado e espirituoso, e sempre bem-humorado, decoroso e bon enfant,[32] como diziam a seu respeito o chefe e a esposa, que o tratavam como alguém da família. Na província, teve um caso com uma dama, que assediou o elegante homem de leis; houve também uma modista; houve ainda bebedeiras com ajudantes de campo, de passagem pela região, e viagens a uma rua distante, depois do jantar; houve também alguma subserviência com o chefe e até com a esposa do chefe, mas tudo imbuído de um tom de decoro tão elevado que nada poderia ser designado com palavras ruins: tudo aquilo apenas se enquadrava na rubrica do ditado francês: il faut que la jeunesse se passe.[33] E tudo se passava com mãos limpas, camisas limpas, palavras francesas e, o mais importante, no mais alto escalão da sociedade e, portanto, com pessoas do mais elevado conceito. Assim Ivan Ilitch trabalhou cinco anos, e então ocorreu uma reforma no funcionamento da justiça. Surgiram novas instituições judiciais; precisavam de pessoas novas. E Ivan Ilitch se tornou uma dessas pessoas novas. Ofereceram-lhe o posto de juiz de instrução e ele aceitou, apesar de sua vaga ser em outra província, o que o obrigava a abandonar as relações já estabelecidas e criar outras. Os amigos organizaram uma festa de despedida para Ivan Ilitch, lhe deram uma cigarreira de prata e ele partiu para seu novo posto. Como juiz de instrução, Ivan Ilitch também foi comme il faut,[34] correto, capaz de separar as obrigações judiciais da vida particular, merecedor do respeito geral, assim como tinha sido antes, quando funcionário encarregado de missões especiais. O trabalho de juiz de instrução, em si, oferecia a Ivan Ilitch interesse e atrativo imensamente Nara Accorsi moral Nara Accorsi decoro maiores do que a função anterior. Em seu antigo posto, era agradável passar direto, e em passos desenvoltos, com seu uniforme feito na alfaiataria Scharmer, diante dos peticionários trêmulos que aguardavam para ser recebidos por ele e diante de funcionários que o invejavam, seguir ligeiro para o gabinete do chefe e sentar-se com ele para tomar chá e fumar um cigarro; porém pessoas que, de fato, dependessem diretamente de seu arbítrio, havia poucas. Tais pessoas eram apenas os delegados de polícia e os cismáticos, quando Ivan Ilitch era enviado para suas missões especiais; e ele adorava tratar com respeito, quase com camaradagem, as pessoas que dependiam dele, adorava dar a impressão de que lá estava ele, alguém que poderia esmagá-los, mas que os tratava com simplicidade e de modo amistoso. Antes, tais pessoas eram poucas. No entanto, agora, como juiz de instrução, Ivan Ilitch percebia que todos, todos sem exceção, mesmo as pessoas mais importantes e presunçosas, todos estavam em suas mãos e bastava ele escrever determinadas palavras num papel timbrado para que essa pessoa importante e presunçosa fosse levada à sua presença na condição de ré ou testemunha, e caso Ivan Ilitch não quisesse que a pessoa sentasse, ela teria de ficar de pé na sua frente e responder suas perguntas. Ivan Ilitch nunca abusava de sua autoridade, ao contrário, tentava atenuar seu exercício; no entanto, a consciência de tal autoridade e a possibilidade de atenuá-la constituíam, para ele, o principal interesse e atrativo de suas novas funções. No trabalho propriamente dito, ou seja, na condução dos inquéritos, bem depressa Ivan Ilitch depreendeu um modo de pôr de lado todas as circunstâncias que não diziam respeito ao processo e tratar todo e qualquer caso mais complicado de tal forma que só o aspecto exterior da questão se refletisse no papel, excluindo completamente sua opinião pessoal e, acima de tudo, observando toda a formalidade exigida. Essa era uma questão nova. E ele era uma das primeiras pessoas que elaboravam, na prática, a implementação das normas instituídas em 1864.[35] Ao se transferir para uma cidade nova e ocupar o posto de juiz de instrução, Ivan Ilitch fez novos conhecidos, novas relações, portou-se de maneira nova e assumiu um tom um pouco diferente. Mantinha uma distância respeitável das autoridades provinciais e escolheu o melhor Nara Accorsi poder Nara Accorsi atitude de nobreza indiferença círculo de nobres ricos e de membros do judiciário, residentes na cidade, assumiu um tom de leve insatisfação com o governo, de liberalismo comedido e de civilizado espírito público. Ao mesmo tempo, sem alterar em nada a elegância de sua toalete, Ivan Ilitch, em suas novas funções, parou de raspar o queixo e deu liberdade para a barba crescer onde bem entendesse. Em sua nova cidade, a vida de Ivan Ilitch também se organizou de modo muito agradável: a sociedade que se rebelava contra o governador era boa e unida; o salário era maior e a vida ganhou um prazer a mais com o uíste, que Ivan Ilitch passou a jogar, com sua capacidade de manejar as cartas com alegria e de raciocinar rápido e com muita argúcia, tanto assim que, no final, saía sempre vencedor. Após dois anos de serviço em sua nova cidade, Ivan Ilitch conheceu sua futura esposa. Praskóvia Fiódorovna Míkhel era a moça mais encantadora, inteligente e radiante do círculo em que girava Ivan Ilitch. Entre os outros divertimentos e repousos dos afazeres de juiz de instrução, Ivan Ilitch incorporou, também, as relações divertidas e ligeiras com Praskóvia Fiódorovna. Quando era funcionário encarregado de missões especiais, Ivan Ilitch costumava dançar; porém, como juiz de instrução, dançava apenas em casos excepcionais. Agora, dançava como se quisesse indicar que, embora servisse nas novas instituições e fosse um funcionário da quinta classe, no que dizia respeito a danças, podia provar que, nesse quesito, ele era melhor do que os outros. Assim, de vez em quando, no fim da festa, dançava com Praskóvia Fiódorovna, e foi principalmente durante essasdanças que a conquistou. Praskóvia Fiódorovna ficou apaixonada. Ivan Ilitch não tinha intenção clara e determinada de casar, no entanto, quando a moça se apaixonou, ele se fez a seguinte pergunta: “Na verdade, por que não casar?”. A jovem Praskóvia Fiódorovna pertencia a uma boa família da nobreza e não era feia; havia um pequeno patrimônio. Ivan Ilitch podia ter esperado por um partido mais vistoso, porém aquele já estava bom. Ivan Ilitch contava com seu salário e ela, assim ele esperava, traria outro tanto. As Nara Accorsi convenções, interesse relações familiares eram boas, ela era meiga, bonitinha e absolutamente correta. Dizer que Ivan Ilitch casou porque se apaixonou pela noiva e encontrou nela uma sintonia com sua maneira de ver a vida seria tão injusto quanto dizer que ele casou porque as pessoas do seu círculo social aprovaram aquela noiva. Ivan Ilitch casou por duas razões: ao tomar aquela esposa, fazia algo agradável para si e, ao mesmo tempo, fazia o que as pessoas do mais alto escalão da sociedade consideravam correto. E Ivan Ilitch casou. A própria realização do casamento e os primeiros tempos de vida matrimonial, com os carinhos conjugais, a mobília nova, as louças novas, as roupas de cama novas, transcorreram muito bem, até a gravidez da esposa, tanto assim que Ivan Ilitch já começava a pensar que o casamento não só não perturbava aquele tipo de vida ligeira, agradável e divertida, mas sempre decorosa e aprovada pela sociedade, que Ivan Ilitch considerava inerente à vida em geral, como o reforçava mais ainda. No entanto, com os primeiros meses da gravidez, surgiu algo novo, inesperado, desagradável, penoso e inconveniente, que era impossível prever e do qual era impossível se livrar. Sem nenhum motivo, assim parecia a Ivan Ilitch, de gaité de coeur,[36] como ele dizia para si, a esposa passou a perturbar o caráter agradável e decoroso da vida: sentia ciúmes sem nenhuma razão, exigia dele galanteios, implicava com tudo e fazia cenas rudes e desagradáveis. No início, Ivan Ilitch ainda contava livrar-se do incômodo de tal situação por meio da mesma relação decorosa e ligeira com a vida que antes lhe trazia alívio — tentou ignorar o temperamento da esposa, continuou a viver como antes, de modo ligeiro e agradável: convidava amigos para jogar cartas em sua casa, tentava ir ao clube ou à casa dos amigos. Contudo, uma vez que a esposa começou a imprecar contra ele com palavras rudes e muita veemência, continuou a imprecar toda vez que ele não atendia suas demandas, e o fazia com tamanha virulência que parecia firmemente decidida a não parar, até que ele se sujeitasse, ou seja, até que ficasse quieto em casa e, como ela, afundado na melancolia, então Ivan Ilitch se apavorou. Compreendeu que a vida conjugal — pelo menos, no caso de sua esposa — Nara Accorsi de acordo com o sistema Nara Accorsi !!!! nem sempre contribuía para as amenidades e o decoro da vida, mas, ao contrário, muitas vezes os perturbava e, portanto, era necessário erguer uma barreira contra tais perturbações. E Ivan Ilitch tratou de procurar os meios para isso. O trabalho era a única coisa que inspirava respeito a Praskóvia Fiódorovna e, por meio do trabalho e das obrigações dele decorrentes, Ivan Ilitch começou a travar uma luta com a esposa, a fim de proteger o seu mundo independente. Com o nascimento do bebê, com as tentativas de amamentação e os seguidos insucessos, com as doenças reais e imaginárias do bebê e da mãe, casos em que a participação de Ivan Ilitch era cobrada, embora ele não conseguisse entender nada do assunto, a necessidade de Ivan Ilitch de defender o seu mundo fora da família se tornou ainda mais premente. À medida que a esposa se mostrava mais exigente e mais irritada, Ivan Ilitch transferia, cada vez mais, o centro de gravidade de sua vida para o trabalho. Passou a gostar mais do trabalho e se tornou mais ambicioso do que antes. Em muito pouco tempo, não mais de um ano após o casamento, Ivan Ilitch compreendeu que a vida de casado, apesar de trazer alguns confortos para a vida em geral, na verdade era um assunto muito complicado e penoso, com o qual era preciso elaborar uma relação muito bem delimitada, como acontecia no caso do trabalho, para ele poder cumprir seu dever, ou seja, levar uma vida decorosa e aprovada pela sociedade. E Ivan Ilitch elaborou esse tipo de relação com a vida conjugal. Só exigia da vida familiar as comodidades do jantar em família, da dona de casa, da cama, coisas que a vida de casado podia lhe proporcionar, mas também, acima de tudo, o decoro das formalidades exteriores, definidas pela opinião pública. No restante, porém, ele buscava amenidades alegres e, se as encontrava, ficava muito agradecido; porém, se esbarrava com resistência e resmungos, Ivan Ilitch prontamente se refugiava no seu mundo do trabalho, que ele havia isolado e protegido por uma barreira, e ali encontrava a amenidade. Ivan Ilitch era considerado um bom funcionário e, após três anos, foi nomeado procurador adjunto. As novas funções, sua importância, a Nara Accorsi sacrifício possibilidade de levar a julgamento e mandar para a prisão qualquer pessoa que ele quisesse, a publicidade de seus discursos, o sucesso de Ivan Ilitch nesse terreno — tudo aquilo o atraía ainda mais para o trabalho. Vieram os filhos. A esposa se tornou cada vez mais rabugenta e irritada, porém o tipo de relação com a vida doméstica que Ivan Ilitch havia elaborado o deixava quase impermeável às rabugices. Após sete anos de trabalho na mesma cidade, transferiram Ivan Ilitch para uma vaga de procurador em outra província. Mudaram-se, o dinheiro era pouco e a esposa não gostou do local onde foram morar. Embora o salário fosse maior do que o anterior, a vida era mais cara; além do mais, dois filhos morreram e, por isso, a vida conjugal, para Ivan Ilitch, se tornou ainda mais desagradável. Praskóvia Fiódorovna recriminava o marido por todos os transtornos enfrentados em seu novo local de moradia. A maioria dos assuntos das conversas entre marido e esposa, sobretudo a educação dos filhos, desaguava em questões que traziam suas brigas de volta à lembrança, e assim sempre, a qualquer momento, as brigas estavam prontas a explodir. Restavam apenas os raros períodos de afeição que ainda conseguiam alcançar os cônjuges, porém duravam pouco. Eram ilhas em que eles ancoravam por um tempo, mas depois partiam de novo para o mar do ressentimento latente, que se expressava na forma de um alheamento recíproco. Esse alheamento poderia amargurar Ivan Ilitch, se ele considerasse que aquilo não devia ser assim, mas agora ele já admitia que essa situação não só era normal, como constituía a própria finalidade do seu papel na família. Seu objetivo era libertar-se, cada vez mais, daqueles dissabores e conferir a eles um caráter inofensivo e decoroso, e o conseguia passando cada vez menos tempo com a família; porém, quando isso era indispensável, tentava resguardar sua posição por meio da presença de pessoas estranhas. O mais importante era que Ivan Ilitch tinha seu trabalho. Para ele, todo o interesse da vida se concentrava no mundo do trabalho. E esse interesse o absorvia. A consciência de seu poder, a possibilidade de aniquilar qualquer pessoa que ele quisesse aniquilar, sua importância, até exterior, na hora em que entrava no tribunal, os encontros com os Nara Accorsi fuga/prazer subordinados, seu sucesso diante de superiores e subalternos e, acima de tudo, sua perícia na condução dos processos, algo que ele mesmo percebia — tudo aquilo o alegrava e, junto às conversas com os colegas, os almoços e as partidas de uíste, preenchia sua vida. Desse modo, no geral, a vida de Ivan Ilitch continuou a correr da maneira como ele achava que devia correr: agradável e decorosa. Assim viveu mais sete anos. A filha mais velha já contava dezesseis anos de idade, mais uma criança morreu e restou um menino ginasiano, motivo de discórdia. Ivan Ilitch queria que o filho cursasse a Escola de Jurisprudência, mas Praskóvia Fiódorovna, por desfeita,matriculou-o no ginásio. A filha estudava em casa e fazia progressos, e o menino também não era mau aluno. III Assim tinha passado a vida de Ivan Ilitch, ao longo de dezessete anos, desde o casamento. Agora, já era um velho procurador que havia recusado algumas transferências, à espera de uma vaga mais desejável, quando, de modo imprevisto, ocorreu uma circunstância importuna e sua tranquilidade foi totalmente destruída. Ivan Ilitch estava à espera de uma vaga de presidente de tribunal numa cidade universitária, porém Goppe, de algum modo, tomou sua frente e recebeu o cargo. Ivan Ilitch se irritou, passou a fazer acusações e se desentendeu com ele e com seu chefe imediato; em troca, passaram a tratá-lo com frieza e, na nomeação seguinte, Ivan Ilitch foi mais uma vez preterido. Isso aconteceu em 1880. Foi o ano mais penoso da vida de Ivan Ilitch. Naquele ano, ficou claro, de um lado, que seu salário não era o bastante para viver; de outro lado, que ele tinha sido esquecido e que aquilo que, para ele, representava a mais cruel e mais grave injustiça não passava, para os outros, de um caso completamente trivial. Nem o pai se considerou na obrigação de ajudá-lo. Ivan Ilitch percebia que todos o haviam abandonado, julgando sua situação, com um salário de três mil e quinhentos rublos, a mais normal do mundo, e até uma felicidade. Só Ivan Ilitch sabia que, com a consciência das injustiças cometidas contra ele, com o eterno azedume da esposa e com as dívidas que ele passou a fazer, já que vivia acima de seus recursos — só ele sabia que sua situação estava longe de ser normal. No verão daquele ano, a fim de aliviar as despesas, Ivan Ilitch tirou férias e foi com a esposa passar o verão no campo, na casa do irmão de Praskóvia Fiódorovna. No campo, sem o trabalho, pela primeira vez Ivan Ilitch sentiu não só tédio como uma melancolia insuportável, e decidiu que era impossível viver assim e que era necessário tomar algumas providências enérgicas. Depois de uma noite de insônia, que ele passou inteira andando pela varanda, Ivan Ilitch decidiu partir para Petersburgo com o propósito de dar entrada numa petição e se transferir para outro ministério, no intuito de punir aqueles que não souberam lhe dar valor. No dia seguinte, apesar de todos os apelos da esposa e do cunhado, ele partiu para Petersburgo. Tinha um único propósito: obter uma vaga com o salário de cinco mil rublos. Já não fazia questão de nenhum ministério específico nem de um cargo de direção ou de algum tipo determinado de atividade. Só precisava de um cargo, e um cargo de cinco mil rublos, no setor administrativo, num banco, na estrada de ferro, numa das instituições de caridade da imperatriz Maria,[37] até na Alfândega, mas necessariamente com cinco mil rublos de salário, e contanto que ele saísse daquele ministério onde não sabiam apreciar seu valor. E aconteceu que a viagem de Ivan Ilitch foi coroada de um sucesso extraordinário e inesperado. Em Kursk, um amigo chamado F. S. Ilin embarcou na primeira classe do mesmo trem e lhe contou a respeito do telegrama que o governador acabara de receber sobre a revolução que ia ocorrer no ministério, nos dias seguintes: para a vaga de Piotr Ivánovitch, iam nomear Ivan Semiónovitch. A suposta revolução, além de sua relevância para a Rússia, tinha também um significado especial para Ivan Ilitch, porque a promoção de um novo personagem, Piotr Petróvitch, levaria junto seu amigo Zakhar Ivánovitch, o que era favorável ao extremo a Ivan Ilitch. Zakhar Ivánovitch era seu colega e amigo. Em Moscou, a notícia foi confirmada. Além disso, ao chegar a Petersburgo, Ivan Ilitch encontrou Zakhar Ivánovitch e recebeu a promessa de um bom cargo no Ministério da Justiça, o mesmo ministério de antes. Na semana seguinte, telegrafou para a esposa: “Zakhar vaga de Miller no primeiro despacho recebo nomeação”. Graças a esse deslocamento de funcionários, Ivan Ilitch recebeu inesperadamente, em seu ministério anterior, um cargo que o situava dois graus acima de seus colegas: cinco mil de salário, e ainda mais três mil e quinhentos rublos para custear a mudança. Todo o desgosto com seus inimigos de antes e com todo o ministério foi esquecido e, agora, Ivan Ilitch sentia-se completamente feliz. Ivan Ilitch voltou para o campo alegre, satisfeito, como fazia muito tempo não se sentia. Praskóvia Fiódorovna também se alegrou e, entre ambos, selou-se uma trégua. Ivan Ilitch contou que, em Petersburgo, todos o festejavam e todos que antes eram seus inimigos ficaram cobertos de vergonha e agora o bajulavam, contou que o invejavam por sua posição e, sobretudo, que ele era adorado em Petersburgo. Praskóvia Fiódorovna ouvia e fingia acreditar, não apresentava nenhuma objeção e se limitava a traçar planos para uma nova maneira de viver na cidade para onde iriam se mudar. E Ivan Ilitch notou, com alegria, que tais planos eram também os seus, que os dois convergiam e que sua vida titubeante iria, de novo, adquirir seu caráter próprio e autêntico, de amenidade alegre e decoro. A estada de Ivan Ilitch no campo seria curta. Tinha de assumir seu posto no dia 10 de setembro e, além do mais, precisava de tempo para se organizar em suas novas funções, transportar tudo da província para a capital, fazer compras e ainda encomendar muitas outras coisas; em suma, organizar tudo exatamente da forma como havia decidido, em pensamento, que era quase exatamente igual à que Praskóvia Fiódorovna havia decidido, em seu íntimo. E agora, quando tudo havia se arranjado com tanto êxito, quando ele e a esposa haviam convergido para o mesmo propósito e quando, além disso, passavam pouco tempo juntos, os dois se entendiam tão amistosamente como não acontecia desde os primeiros tempos da vida conjugal. Ivan Ilitch havia pensado em levar a família logo para Petersburgo, mas a insistência da irmã e do cunhado, que de repente se mostravam amáveis e íntimos ao extremo com Ivan Ilitch e sua família, levou-o a viajar sozinho. Ivan Ilitch partiu e, o tempo todo, não o abandonava o alegre estado de ânimo produzido por seu sucesso e pela concórdia com a esposa, dois fatores que reforçavam um ao outro. Encontrou um apartamento encantador, exatamente como ele e a esposa haviam sonhado. Salas altas, espaçosas, no estilo antigo, um escritório esplêndido e confortável, quartos para a esposa e a filha, uma salinha de aula para o filho — parecia que tudo tinha sido planejado de encomenda para eles. O próprio Ivan Ilitch cuidou de montar o apartamento, escolheu o papel de parede, comprou móveis adicionais, em geral no estilo antigo, que ele classificava como extremamente comme il faut, encomendou o estofamento, e tudo foi crescendo, crescendo, até alcançar o ideal que ele próprio havia traçado. Antes mesmo de chegar à metade dos trabalhos, a decoração já havia superado suas expectativas. Ele já percebia o caráter comme il faut, elegante e sem vulgaridade, que tudo terminaria adquirindo depois de pronto. Ao adormecer, imaginava como ia ficar o salão. Ao olhar para a sala de visitas, ainda inacabada, chegava a ver a lareira, o guarda-fogo, a estante de livros, algumas cadeirinhas esparsas, os pratos e as travessas nas paredes, e também os bronzes, tal como ficariam depois de colocados no lugar. Alegrava-se ao imaginar o espanto que causaria em Pacha e Lizanka,[38] que também tinham gosto para aquelas coisas. Ele jamais havia esperado tanto. Foi particularmente bem- sucedido no que dizia respeito a localizar e adquirir antiguidades baratas, que conferiam a tudo um caráter nobre peculiar. Em suas cartas, de propósito, descrevia tudo pior do que era na realidade, só para impressioná- las. Tudo aquilo o deixou tão interessado que até seu novo trabalho, tão apreciado por ele, despertava menos interesse do que esperava. Nas sessões do tribunal, Ivan Ilitch tinha momentos de distração: punha-se a pensar nas molduras que encobriam o trilho das cortinas, se seriam lisas ou trabalhadas. A tal ponto ficou interessado em tudo aquilo que, muitas vezes, ele mesmo punha mãosà obra, até mudava os móveis de lugar e pendurava as cortinas de maneira diferente. Certa vez, subiu numa escadinha para mostrar a um forrador de paredes obtuso como ele queria que os tapetes fossem pendurados,[39] pisou em falso e caiu, mas, como era forte e ágil, segurou-se e apenas bateu com o lado do corpo no puxador de uma janela. O ferimento começou a doer, mas logo passou. Durante todo esse tempo, Ivan Ilitch sentia-se particularmente alegre e saudável. Escreveu: “Sinto que estou quinze anos mais jovem”. Ele pensava em terminar tudo em setembro, porém o trabalho se estendeu até meados de outubro. Em compensação, Nara Accorsi acerta no alvo Nara Accorsi preocupação com a aparência de nobre ficou um encanto — e não só ele dizia isso: todos que viam lhe diziam o mesmo. Só que, no fundo, estava acontecendo o mesmo que se passa com todas as pessoas não muito ricas, mas que desejam se mostrar parecidas com os ricos e, por isso, conseguem apenas ficar parecidas umas com as outras: o estofamento, a madeira escura, as flores, os tapetes e os bronzes, brilhantes e foscos — ali estava tudo aquilo que todas as pessoas de determinada espécie fazem para ficarem parecidas com todas as pessoas de outra determinada espécie. E sua casa ficou tão parecida que era impossível até mesmo prestar alguma atenção; ainda assim, Ivan Ilitch achava tudo aquilo especial. Quando recebeu os familiares na estação ferroviária, levou-os logo para seu apartamento pronto e iluminado, um lacaio de gravata branca abriu a porta que dava para o vestíbulo, decorado com flores, e em seguida, quando eles percorreram a sala e o escritório, entre exclamações de contentamento — Ivan Ilitch ficou muito feliz, levou-os para toda parte da casa, sorveu com avidez seus elogios e mostrou-se radiante de satisfação. Na mesma noite, na hora do chá, Praskóvia Fiódorovna perguntou-lhe, de passagem, como havia levado o tombo, e ele riu e representou, por meio de gestos, como tinha voado e como dera um susto no forrador. — Não é à toa que sou ginasta. Outra pessoa teria morrido, mas eu só levei uma batidinha de leve, bem aqui, olhe; quando eu encosto, dói, mas já está passando; uma simples contusão. E passaram a morar em sua nova residência, onde, como sempre acontece, depois de devidamente instalados, sentiram falta de só mais um quarto, e passaram a viver com os novos recursos, que, como sempre acontece, se revelaram só um pouquinho insuficientes — uns quinhentos rublos a menos do que devia —, no entanto, a vida ia correndo muito bem. Os primeiros tempos foram particularmente bons, quando nem tudo estava pronto e era preciso, ainda, tomar providências: comprar, encomendar, mudar de lugar, arrumar de novo. Apesar de algumas desavenças entre marido e esposa, ambos estavam tão satisfeitos e havia tanto a fazer que tudo terminava sem grandes brigas. Porém, quando já não havia mais nada para arrumar, a vida se tornou um pouco maçante, sentiam falta de algo, Nara Accorsi estilo buscado na burguesia - objeto que mostram a que classe pertencem Nara Accorsi fake mas então já haviam feito alguns conhecidos, tinham adquirido alguns costumes, e a vida foi se preenchendo. Depois de passar a manhã no tribunal, Ivan Ilitch voltava para almoçar e, nos primeiros tempos, seu estado de ânimo era bom, apesar de se incomodar um pouco justamente por causa de sua moradia. (Qualquer mancha na toalha de mesa, no estore, ou um simples cordão de cortina esfiapado despertavam irritação: ele havia empenhado tanto trabalho naqueles arranjos que qualquer sinal de deterioração causava dor.) Porém, no geral, a vida de Ivan Ilitch seguia da maneira como, segundo sua crença, a vida devia ser: ligeira, agradável e decorosa. Acordava às nove, bebia café, lia o jornal, depois vestia o uniforme e ia para o tribunal. Lá, os arreios com os quais ele trabalhava já estavam prontos: ele se atrelava sem demora. Os requerentes, os documentos na chancelaria, a própria chancelaria, as sessões, públicas e administrativas — em todos aqueles casos, era preciso excluir tudo que era bruto, trivial, e que sempre perturbava o devido andamento dos trabalhos: era preciso não admitir quaisquer relações com as pessoas fora do protocolo, o motivo de qualquer relação tinha de ser apenas protocolar, e a própria relação só podia ser protocolar. Por exemplo, chegava uma pessoa e desejava saber alguma coisa. Como não era essa a sua função, Ivan Ilitch não podia manter nenhuma relação com tal pessoa; mas se a pessoa tivesse algo a tratar com um membro da Corte, algo que podia ser expresso em papel timbrado, então, dentro dos limites dessas relações, Ivan Ilitch faria tudo que era permitido e possível, e ao mesmo tempo manteria uma aparência de relações humanas amistosas, ou seja, certa civilidade. Uma vez terminada a relação protocolar, terminava também a própria relação. Ivan Ilitch dominava, no mais alto grau, a habilidade para separar o lado protocolar, não permitir que aquilo se misturasse com sua vida real e, graças à sua longa experiência e ao seu talento, aprimorou-a a tal ponto que às vezes, como faz um virtuose, como se fosse apenas por brincadeira, ele até se permitia misturar as relações humanas com as protocolares. Permitia-se aquilo porque sentia, em si mesmo, força bastante para depois, mais uma vez, sempre que necessário, realçar apenas o protocolar e relegar o humano. Ivan Ilitch executava essa operação não só de modo ligeiro, agradável e decoroso, mas também com virtuosismo. Nos intervalos, fumava, bebia chá, conversava um pouco sobre política, um pouco sobre assuntos gerais, um pouco sobre o jogo de cartas e, acima de tudo, sobre nomeações. E voltava cansado para casa, mas com o sentimento de um virtuose, um dos primeiros violinos da orquestra, que executou sua partitura com primor. Em casa, filha e esposa tinham ido a algum lugar ou estavam recebendo alguma visita; o filho estava no ginásio, preparava as lições com o professor particular ou estudava com afinco aquilo que ensinavam no ginásio. Tudo estava bem. Depois do jantar, quando não havia visitas, às vezes Ivan Ilitch lia algum livro muito comentado e à noite cuidava do seu trabalho, ou seja, lia documentos, consultava leis — cotejava os testemunhos e os submetia às normas legais. Não achava aquilo nem maçante nem divertido. Só era maçante quando havia a possibilidade de jogar uíste; mas, quando não havia jogo nenhum, trabalhar era ainda melhor do que ficar sentado sozinho ou com a esposa. Os prazeres de Ivan Ilitch eram, de fato, os pequenos jantares para os quais ele convidava damas e cavalheiros importantes, pela posição na sociedade, e aquele passatempo em tais companhias se parecia com o passatempo habitual daquelas mesmas pessoas, assim como a sala de visitas de Ivan Ilitch se parecia com todas as demais salas de visitas. Certa vez, houve uma festa em sua casa, e as pessoas até dançaram. E Ivan Ilitch se divertiu, tudo foi bom, só que houve uma grande briga com a esposa por causa de tortas e bombons: Praskóvia Fiódorovna tinha seu próprio plano, mas Ivan Ilitch fez questão de comprar tudo numa confeitaria cara e trouxe muitas tortas, e a briga se deu porque sobraram tortas e a conta da confeitaria chegou a quarenta e cinco rublos. A briga foi grande e desagradável, porque Praskóvia Fiódorovna lhe disse: “Burro, trapalhão”. Ele ergueu as mãos à cabeça e, transtornado, mencionou algo sobre divórcio. Mas a festa, propriamente dita, foi alegre. A melhor sociedade compareceu e Ivan Ilitch dançou com a princesa Trúfonova, irmã da famosa fundadora da sociedade beneficente Alivie Meu Infortúnio.[40] As alegrias protocolares eram alegrias do amor-próprio; as alegrias sociais eram alegrias da vaidade; mas as verdadeiras alegrias de Ivan Ilitch eram as alegrias do jogo de uíste. Ele confessava que, depois de tudo, depois de quaisquer acontecimentos infelizes em sua vida, a alegria que brilhava como uma vela acesa acima de todas as demais era sentar-se para uma partida de uíste com bons jogadores e parceiros que falavambaixo, e sempre em quatro (em cinco era muito penoso, quando chegava sua vez de ficar fora da partida, apesar de ele fingir que estava adorando), participar de um jogo inteligente e sério (quando as cartas ajudavam) e em seguida jantar e beber uma taça de vinho. E depois do uíste, sobretudo quando o lucro era pequeno (um lucro grande era desagradável), Ivan Ilitch ia se deitar para dormir num humor excelente. Assim viviam. O círculo social em sua casa era o melhor de todos, lá iam pessoas importantes e também jovens. Quanto ao círculo de conhecidos, marido, esposa e filha estavam perfeitamente de acordo e, sem nada combinar, mas em perfeita sintonia, rechaçavam e se desvencilhavam de todos os amigos e parentes pobretões que afluíam, cheios de mimos, a sua casa e a seu salão decorado com pratos japoneses nas paredes. Em pouco tempo, os amigos pobretões deixaram de afluir à casa dos Golovin e, no salão, restou apenas a melhor sociedade. Os jovens faziam a corte a Lizanka, e Petríschev, filho de Dmítri Ivánovitch Petríschev, único herdeiro de sua fortuna e juiz de instrução, passou a cortejar Liza, tanto assim que Ivan Ilitch já conversava com Praskóvia Fiódorovna a respeito do assunto e indagava se não seria o caso de levá-los para um passeio de troica ou organizar um espetáculo teatral doméstico. Assim viviam. E assim corria tudo, sem mudanças, e tudo ia muito bem. IV Todos estavam bem de saúde. Era impossível chamar de enfermidade o fato de Ivan Ilitch dizer que, às vezes, sentia um gosto estranho na boca e algo incômodo no lado esquerdo da barriga. Mas aconteceu que tal incômodo começou a aumentar e a transformar-se não ainda numa dor, mas na consciência de um peso constante no lado do corpo e num mau humor. Esse mau humor, que aumentava e aumentava, cada vez mais, começou a estragar a vida amena, ligeira e decorosa que havia se estabelecido na família Golovin. Marido e esposa passaram a brigar com frequência cada vez maior, toda leveza e amenidade logo desapareceram e só a muito custo se mantinha o decoro. De novo, as cenas se tornaram constantes. De novo, restaram apenas ilhazinhas, e mesmo assim poucas, nas quais marido e esposa podiam se encontrar sem explosões. E agora, não sem razão, Praskóvia Fiódorovna dizia que o marido tinha um gênio difícil. Com seu hábito característico de exagerar, ela dizia que o gênio do marido sempre tinha sido horrível e que só graças à sua bondade havia conseguido suportar aquilo por vinte anos. Era verdade que, agora, as brigas partiam dele. As implicâncias começavam sempre durante o jantar e, muitas vezes, exatamente quando ele começava a comer, ainda na hora da sopa. Ora notava que alguma peça da louça estava danificada, ora a comida não estava boa, ora o filho colocava o cotovelo na mesa, ora reclamava do penteado da filha. E, por tudo aquilo, culpava Praskóvia Fiódorovna. No início, ela retrucava e lhe dizia palavras desagradáveis, porém, por duas ou três vezes, no começo do jantar, Ivan Ilitch chegou a tal estado de fúria que a esposa entendeu que se tratava de um efeito da doença, atiçada pela ingestão de comida, e se controlou; já não retrucava, limitava-se a jantar mais depressa. Praskóvia Fiódorovna considerava um grande mérito aquela sua resignação. Depois de concluir que o marido tinha um gênio horrível e tornava sua vida infeliz, ela passou a ter pena de si mesma. E quanto mais tinha pena de si mesma, mais odiava o marido. Começou a desejar que ele morresse, mas não podia desejar aquilo, porque, nesse caso, não haveria mais salário. E isso a deixava ainda mais irritada com o marido. Considerava-se muito infeliz justamente porque nem a morte dele poderia salvá-la, e ela se irritava, escondia sua irritação, e essa irritação oculta reforçava, por sua vez, a irritação do marido. Depois de uma cena em que Ivan Ilitch foi particularmente injusto e depois que, em seguida, a título de explicação, disse que andava mesmo muito nervoso, mas que era por causa da sua doença, ela respondeu que, se estava doente, era preciso tratar-se, e exigiu que ele fosse a um médico famoso. Ele foi. Tudo correu como já esperava; tudo se passou como sempre acontece. A expectativa, o ar de importância doutoral e afetada, a mesma pose de importância que ele tão bem conhecia em si mesmo, no tribunal, e também as percussões, as auscultações, as perguntas que exigiam respostas já definidas de antemão e, pelo visto, desnecessárias, e o ar imponente que parecia dizer: cabe a você apenas submeter-se a nós e, então, nós vamos cuidar de tudo — nós sabemos, sem dúvida nenhuma, como cuidar de tudo, e existe um único procedimento, para qualquer pessoa, quem quer que seja. Tudo correu exatamente como no tribunal: assim como ele fazia pose diante dos acusados, o médico famoso fazia o mesmo diante dele. O médico disse: isso e aquilo mostram que, dentro do senhor, existe isso e aquilo; mas se isso não for confirmado por tal e tal exame, aí o senhor terá de supor isso e aquilo. Porém, se supuser isso e aquilo, aí então… etc. etc. Para Ivan Ilitch, só uma pergunta era importante: seu estado era grave ou não? Mas o médico ignorava aquela questão irrelevante. Do ponto de vista do médico, tratava-se de uma pergunta ociosa, que não era passível de análise; só existia a ponderação das probabilidades — rim flutuante, catarro crônico, alguma enfermidade no intestino delgado. A vida de Ivan Ilitch não estava em questão, mas houve uma disputa entre o rim flutuante e o ceco. E, diante dos olhos de Ivan Ilitch, o médico resolveu tal disputa de forma Nara Accorsi relacionamento Nara Accorsi agora vítima - provar do veneno Nara Accorsi ironia brilhante, em favor do ceco, com a ressalva de que o exame de urina poderia fornecer novas indicações e, então, o caso seria revisto. Tudo aquilo, ponto por ponto, era exatamente o mesmo que o próprio Ivan Ilitch fazia mil vezes com os acusados, e também de forma brilhante. O médico fez seu resumo final também de forma brilhante, triunfal e até alegre, enquanto olhava para o acusado por cima dos óculos. Do resumo do médico, Ivan Ilitch extraiu a conclusão de que ele estava mal e que, para o médico, e talvez para todo mundo, pouco importava que ele estivesse mal. E essa conclusão deixou uma impressão dolorosa em Ivan Ilitch, despertou um sentimento de grande pena de si mesmo e, também, um sentimento de grande rancor contra aquele médico, indiferente a respeito de uma questão de tamanha importância. Mas Ivan Ilitch não falou nada, levantou-se, colocou o dinheiro sobre a mesa e, ao sair, disse: — Na certa, nós, os pacientes, fazemos ao senhor muitas perguntas despropositadas. Mas, de forma geral, é uma doença perigosa ou não?… O médico olhou para ele com ar severo, só com um olho, através dos óculos, como se quisesse dizer: acusado, se o senhor não se mantiver dentro dos limites das perguntas feitas ao senhor, eu serei obrigado a determinar que seja retirado do tribunal. — Eu já disse o que considero ser necessário e útil — respondeu o médico. — O exame vai revelar o resto. — E o médico se despediu com uma inclinação de cabeça. Ivan Ilitch saiu devagar, subiu melancólico no trenó e foi para casa. Durante todo o caminho, não parou de analisar tudo que o médico tinha dito, tentando traduzir em linguagem simples todas aquelas palavras científicas obscuras e confusas e ler nelas a resposta para a pergunta: estou mesmo muito mal ou não é nada de mais? E lhe pareceu que o sentido de tudo que o médico tinha dito era que ele estava muito mal. Para Ivan Ilitch, tudo nas ruas parecia triste. Os coches de praça eram tristes, os prédios eram tristes, os pedestres e as lojas eram tristes. E aquela dor, uma dor surda, renitente, que não cessava um segundo, parecia adquirir outro sentido, mais grave, sob o efeito das palavras obscuras do médico. Agora, com um sentimento novo e opressivo, Ivan Ilitch dava muita atenção à sua dor. Chegou em casa e foi logo contar para a esposa. Ela escutou, mas, no meio do relato, chegou a filha, já de chapeuzinho: tinha se arrumadopara sair com a mãe. Ela também sentou e fez um esforço para ouvir aquela história sem graça, mas não aguentou muito tempo e a mãe também não ouviu até o fim. — Bem, eu estou contente — disse a esposa. — Então, agora, você trate de tomar o remédio no horário certo. Vamos, me dê a receita, eu vou mandar o Guerássim à farmácia. — E foi trocar de roupa. Até a esposa sair do quarto, ele não conseguiu acalmar a respiração e, quando ela voltou, Ivan Ilitch suspirou fundo. — Pois é — disse ele. — Quem sabe isso que eu tenho ainda não seja nada de grave?… Começou a tomar os remédios e seguir as prescrições do médico, que depois mudaram por causa do exame de urina. Mas foi exatamente aí que ocorreu certa confusão, entre aquele exame e o que devia acontecer em seguida. Não foi possível localizar o médico e, mais tarde, se viu que não estava ocorrendo o que o médico havia previsto. Ou o médico tinha esquecido ou mentira ou estava escondendo algo dele. Mas Ivan Ilitch, apesar de tudo, continuou a cumprir as prescrições e, no início, encontrou consolo naquela observância rigorosa. Desde o dia da consulta ao médico, a principal ocupação de Ivan Ilitch passou a ser o cumprimento exato das prescrições médicas relativas à higiene e à ingestão dos remédios, além da observação atenta da própria dor e de todas as funções do seu organismo. As doenças e a saúde das pessoas se tornaram o principal interesse de Ivan Ilitch. Quando, diante dele, alguém falava de pessoas doentes, mortas, recuperadas e, sobretudo, de alguma doença parecida com a sua, Ivan Ilitch, tentando esconder a emoção, escutava atento, fazia perguntas e comparações com sua enfermidade. A dor não diminuía; mas Ivan Ilitch fazia um esforço para se obrigar a pensar que estava melhor. E, enquanto nada o perturbava, conseguia Nara Accorsi indiferença dos seus enganar a si mesmo. Porém, bastava alguma questão desagradável com a esposa, algum revés no trabalho ou cartas ruins no jogo de uíste para ele sentir, no mesmo instante, toda a força da doença; antes, Ivan Ilitch suportava aqueles reveses, na esperança de logo corrigir o erro, superar o obstáculo, alcançar o sucesso, dar a cartada final. Mas agora qualquer revés o deixava arrasado e o afundava no desespero. Ivan Ilitch dizia para si mesmo: mal comecei a melhorar, mal o remédio começou a agir, e logo me acontece essa desgraça ou me vem esse maldito contratempo… E se enfurecia contra aquela desgraça ou contra as pessoas que tinham lhe causado o contratempo e que o estavam matando, e sentia também como a raiva o estava matando; só que não conseguia abrir mão daquela raiva. À primeira vista, deveria ser bem claro, para ele, que sua exasperação contra as circunstâncias e contra as pessoas reforçava sua doença e que, por isso, ele precisava não dar atenção aos incidentes desagradáveis; porém Ivan Ilitch fazia o raciocínio exatamente inverso: dizia que precisava de sossego, ficava à espreita de tudo que perturbava o sossego e, a qualquer mínimo sinal de perturbação, se exasperava. Sua situação piorava ainda mais, porque lia livros de medicina e consultava médicos. Sua piora se dava em ritmo tão gradual que ele ainda conseguia se enganar, comparando cada dia com o dia anterior — as diferenças eram poucas. No entanto, quando consultava os médicos, tinha a impressão de que ia de mal a pior, e até muito depressa. E, apesar disso, consultava médicos constantemente. Naquele mês, foi ao consultório de outra sumidade: a outra sumidade lhe disse quase o mesmo que a primeira, mas fez perguntas diferentes. E a consulta com essa sumidade só serviu para atiçar a dúvida e o temor de Ivan Ilitch. Um amigo de um amigo — excelente médico — definiu a doença de forma completamente distinta e, apesar de garantir a plena recuperação, com suas perguntas e suas hipóteses, deixou Ivan Ilitch ainda mais confuso e aumentou suas dúvidas. Um homeopata definiu a doença de outra forma, receitou outro remédio e Ivan Ilitch, em segredo, sem ninguém saber, tomou-o durante uma semana. Porém, depois de uma semana, como não sentia melhora alguma e perdera a confiança tanto nos tratamentos anteriores quanto no último, caiu num desânimo ainda maior. Um dia, uma Nara Accorsi insinuação da presença da morte: busca pela vida senhora conhecida falou da cura com a ajuda de ícones de santos. Ivan Ilitch deparou consigo mesmo escutando com toda a atenção e acreditando na realidade da história. Esse incidente o deixou assustado. “Será que minha mente está tão debilitada assim?”, pensou. “Quanta bobagem! Tudo isso é absurdo, não se deve capitular dessa forma para as manias, o melhor é escolher um médico só e seguir com rigor o seu tratamento. Eu vou fazer isso. E agora, chega de indecisões!…” Falar era fácil, mas pôr em prática, impossível. A dor no lado do corpo o atormentava sem cessar, parecia crescer o tempo todo, passara a ser contínua, o gosto ruim na boca se tornou ainda mais esquisito, o cheiro de algo repugnante parecia exalar de sua boca e seu apetite e suas forças estavam minguando. Não era possível se iludir: algo novo, aterrador e muito grave, o mais grave de toda a vida de Ivan Ilitch, estava acontecendo com ele. E só ele sabia, todos à sua volta não compreendiam, ou não queriam compreender, e achavam que tudo no mundo seguia como antes. Era isso, mais que tudo, que atormentava Ivan Ilitch. As pessoas de casa — sobretudo a esposa e a filha, que estavam no auge da temporada das visitas sociais — não compreendiam nada, ele percebia, e ficavam aborrecidas por ele se mostrar tão sem alegria e austero, como se a culpa fosse dele. Embora tentassem disfarçar, Ivan Ilitch notava que representava um peso para elas e notava também que a esposa havia elaborado uma relação bem definida com a sua doença e se mantinha fiel a tal relação, a despeito do que Ivan Ilitch dissesse e fizesse. Tal relação era a seguinte: — Você sabe — dizia ela aos conhecidos —, como todas as pessoas boas, Ivan Ilitch não consegue seguir com rigor o tratamento prescrito. Hoje, ele toma as gotas, come o que foi determinado e dorme na hora certa; mas amanhã, de repente, se eu não tomar conta, ele vai se esquecer de tomar as gotas, vai comer esturjão (o que não é permitido), e depois ainda vai ficar jogando uíste até uma hora da madrugada. — Puxa, quando foi que eu fiz isso? — pergunta Ivan Ilitch, irritado. — Uma vez só, na casa do Piotr. — E ontem, com o Chebek? — Ora, isso não faz diferença nenhuma, a dor não me deixa dormir… — Sei, mas, seja qual for a justificativa, o fato é que desse jeito você nunca vai ficar bom e assim nos faz sofrer. A atitude aparente de Praskóvia Fiódorovna com respeito à doença do marido, como era visível para todos e para ele mesmo, sugeria que a culpa de tudo era de Ivan Ilitch e que toda a história daquela doença não passava de um dissabor a mais que ele causava à esposa. Ivan Ilitch sentia que, da parte da esposa, era sem querer que aquilo vinha à tona e ganhava expressão, mas nem por isso a situação, para ele, era mais fácil. No tribunal, Ivan Ilitch notava, ou pensava notar, a mesma atitude estranha a seu respeito: ora parecia que olhavam para ele como alguém que logo ia deixar um cargo vago; ora seus amigos, de repente, começavam a dizer gracejos amistosos sobre sua mania de doença, como se aquela coisa horrível, aterradora, e nunca vista, que havia se instalado dentro dele e que não parava de sugá-lo e arrastá-lo, de modo incontrolável, ninguém sabia para onde, fosse o motivo mais prazeroso para gracejos. E, entre todos, quem o deixava mais irritado era Schwartz, que, com seu espírito jocoso, vivaz e comme il faut, fazia Ivan Ilitch lembrar-se de si mesmo, dez anos antes. Os amigos vêm a sua casa para jogar uma partida, sentam-se. Dão as cartas, amaciam um baralho novo, ouros se juntam com ouros, sete cartas. O parceiro diz: “Sem trunfo”. E reforça seu jogo com mais dois ouros. O que mais falta? A vitória deveria ser alegre e contundente. Mas, de súbito, Ivan Ilitch sente aquela dor sugadora, aquele gosto na boca, elhe parece totalmente desvairado, em tal situação, ainda querer alegrar-se com uma vitória nas cartas. Olha para Mikhail Mikháilovitch, seu parceiro, vê como ele bate na mesa com a mão sanguínea e, com civilidade e complacência, se abstém de pegar para si as cartas que estão na mesa de jogo e as empurra para Ivan Ilitch, a fim de lhe dar o prazer de juntá-las, para ele não ficar aborrecido e até para não ter de estender muito o braço. “Então ele acha que estou tão fraco que nem consigo estender o braço”, pensa Ivan Ilitch, e assim deixa passar um trunfo, corta o jogo do parceiro com um trunfo supérfluo e acaba perdendo a batida por três rodadas de diferença, e o mais horrível de tudo é que ele vê como Mikhail Mikháilovitch sofre com aquilo, enquanto, para Ivan Ilitch, tanto faz. E também é horrível pensar no motivo por que, para ele, tanto faz. Todos veem que ele não está se sentindo bem, e lhe dizem: “Nós podemos parar, se está cansado. Descanse um pouco”. Descansar? Não, ele não está nem um pouquinho cansado, e eles jogam até o fim a melhor de três. Todos estão taciturnos e calados. Ivan Ilitch sente que foi ele quem insuflou nos demais aquele humor taciturno e também sente que não é capaz de dissipá-lo. Eles jantam e se dispersam, e Ivan Ilitch fica sozinho com a consciência de que sua vida está envenenada, para ele mesmo, e que ele também está envenenando a vida dos outros, e que tal veneno não perde a força e se infiltra, mais e mais, em seu ser. E com essa consciência, e também com a dor física, e também com o pavor, ainda era preciso deitar-se na cama e, muitas vezes, ficar sem dormir de tanta dor, durante a maior parte da noite. Mas de manhã era necessário levantar-se outra vez, trocar de roupa, ir para o tribunal, conversar, escrever e, se ele não fosse, teria de ficar em casa todas as vinte e quatro horas do dia, e cada hora era um suplício. Tinha de viver sozinho naquele estado, à beira da aniquilação, sem uma pessoa sequer que o compreendesse e sentisse pena. Nara Accorsi fragilidade física e emocional Nara Accorsi solidão V Assim se passou um mês, e outro. Antes do Ano-Novo, o cunhado chegou à cidade e se hospedou na casa deles. Ivan Ilitch estava no tribunal. Praskóvia Fiódorovna tinha ido fazer compras. Ao entrar em seu escritório, Ivan Ilitch deu de cara com o cunhado, saudável, cheio de vida, quando estava desfazendo a própria mala. Ergueu a cabeça ao ouvir os passos de Ivan Ilitch e olhou para ele, em silêncio, por um segundo. Seu olhar deixou tudo claro para Ivan Ilitch. O cunhado chegou a abrir a boca num gesto de espanto, mas se conteve. E esse gesto foi a confirmação de tudo. — O que houve, eu mudei muito? — É… houve uma mudança. E depois, por mais que Ivan Ilitch induzisse o cunhado a falar sobre sua aparência, ele se manteve calado. Praskóvia Fiódorovna chegou e o cunhado foi ao quarto dela. Ivan Ilitch trancou a porta à chave e ficou se olhando no espelho — de frente, depois de lado. Pegou seu retrato com a esposa e cotejou com o que via no espelho. A mudança era enorme. Depois, desnudou o braço até o cotovelo, olhou bem, baixou a manga, sentou na otomana e sentiu-se mais escuro do que a noite. “Não pode ser, não pode ser”, disse consigo, ergueu-se bruscamente, foi até a mesa, abriu um processo, começou a ler, mas não conseguiu. Destrancou a porta, foi para o salão. A porta da sala de visitas estava fechada. Aproximou-se na ponta dos pés e se pôs a escutar. — Não, você está exagerando — disse Praskóvia Fiódorovna. — Exagerando como? Você é que não está enxergando: ele é um homem morto, olhe para os olhos dele. Não têm luz. O que é que ele tem? — Ninguém sabe. O Nikoláiev — era outro médico — disse algo, mas eu não sei. O Leschetítski — era um médico famoso — disse o contrário… Nara Accorsi confirmação do aniquilamento Nara Accorsi enfrentamento Ivan Ilitch se afastou, foi para seu quarto, deitou-se e começou a pensar: “O rim, o rim flutuante”. Lembrou-se de tudo que o médico dissera, como o rim se desprendia e como passava a flutuar. Com um esforço de imaginação, tentou apanhar aquele rim, imobilizá-lo e prendê-lo; parecia que era preciso muito pouco. “Não, eu vou falar com o Piotr Ivánovitch mais uma vez.” (Era o tal amigo que tinha um amigo médico.) Tocou a sineta, mandou o criado atrelar o cavalo e se preparou para sair. — Aonde vai, Jean?[41] — perguntou a esposa com a fisionomia particularmente triste e com uma bondade fora do comum. Aquela bondade incomum o deixou furioso. Olhou para ela de cara feia. — Tenho de ir à casa de Piotr Ivánovitch. Foi à casa do amigo que tinha um amigo médico. E de lá, com ele, foi consultar o médico. Encontrou-o em casa e conversou com ele demoradamente. Depois de examinar os pormenores anatômicos e fisiológicos daquilo que, na opinião do médico, tinha acontecido, ele compreendeu tudo. Era só uma coisinha, uma coisinha de nada, no ceco. Tudo aquilo podia ser resolvido. Reforçar a energia de um órgão, enfraquecer a atividade de outro, para ocorrer a absorção, e tudo estaria resolvido. Ivan Ilitch se atrasou um pouco para o jantar. Jantou, conversou com alegria, mas demorou bastante para conseguir se recolher ao escritório a fim de cuidar dos processos. Finalmente, foi para o escritório e, no mesmo instante, sentou para trabalhar. Lia os processos, trabalhava, mas a consciência de que tinha uma questão íntima importante, em suspenso, uma questão da qual teria de se ocupar ao fim do trabalho, não o largava. Quando terminou o serviço, lembrou-se de que aquela questão íntima eram os pensamentos sobre o ceco. Porém, em vez de se dedicar a tais pensamentos, foi à sala de jantar para tomar chá. Havia visitas, estavam conversando, tocavam piano e cantavam; estava ali o juiz de instrução, o sonhado noivo da filha. Aos olhos de Praskóvia Fiódorovna, naquela noite, Ivan Ilitch pareceu mais alegre que de outras vezes, porém ele não esquecia nem um minuto que tinha, em suspenso, pensamentos importantes sobre o ceco. Às onze horas, despediu-se e foi para o quarto. Desde o início da doença, ele dormia Nara Accorsi piedade sozinho, num quarto pequeno, junto ao escritório. Foi para lá, despiu-se e pegou um romance de Zola, mas, em vez de ler, ficou pensando. Na imaginação, se dava a almejada melhora do ceco. Dava-se a absorção, o descolamento, restabelecia-se o funcionamento correto. “Sim, isto é tudo”, pensava. “Basta ajudar a natureza.” Lembrou-se do remédio, levantou-se, pegou-o, deitou de costas, se pôs a sentir como o remédio agia de modo benéfico e como aniquilava a dor. “Basta tomar com regularidade e evitar influências nocivas; agora eu já estou me sentindo um pouco melhor.” Apalpou a lateral do corpo — não doeu. “Sim, é verdade, já estou me sentindo imensamente melhor.” Apagou a vela e deitou-se de lado… O ceco está melhorando, está se reabsorvendo. De repente, sentiu a velha e conhecida dor, surda, cortante, renitente, silenciosa, grave. Na boca, a mesma conhecida imundície. O coração começou a fazer movimentos de sucção, um torpor lhe envolveu a cabeça. “Meu Deus, meu Deus!”, disse. “De novo, de novo, e nunca vai parar.” De repente, seu caso se apresentou de um ângulo muito diferente. “O ceco! O rim”, pensou. “A questão não está no ceco nem no rim, mas na vida e… na morte. Sim, a vida estava aqui, mas agora está indo embora, indo embora, e eu não sou capaz de retê-la. Sim. Para que me enganar? Por acaso não está evidente para todo mundo, menos para mim, que eu estou morrendo e que a questão, agora, é só o número de semanas, de dias… e pode acontecer agora mesmo. Havia luz, e agora são trevas. Uma hora eu estava aqui, mas agora eu estou indo embora! Para onde?” O frio tomou conta de Ivan Ilitch, a respiração parou. Ele só escutava as pancadas do coração. “Eu não vou existir, mas então o que vai existir? Nada vai existir. Mas, então, quando eu não existir, onde estarei? Será mesmo a morte? Não, eu não quero.” Levantou-se bruscamente, quis acender uma vela, procurou tateante, com as mãos trêmulas, deixou a velae o castiçal caírem no chão, e Ivan Ilitch desabou de novo em cima do travesseiro. “Para quê? Tanto faz”, disse consigo, de olhos abertos, olhando para a escuridão. “É a morte. Sim, é a morte. E eles, todos eles, não sabem de nada, não querem saber, e não têm pena. Ficam tocando música.” Longe, por trás da porta, ele ouvia o estrondo de uma voz e o canto dos refrões. “Para eles, tanto faz, mas eles Nara Accorsi revolta Nara Accorsi consciência também vão morrer. Tolos. Primeiro eu; depois eles; mas eles também vão. E ficam se alegrando. São umas bestas!” A raiva o sufocava. E para ele era um suplício, uma opressão insuportável. “Não pode ser, não é possível que todos estejam sempre condenados a esse pavor medonho.” Ivan Ilitch se levantou. “Algo está errado; é preciso me acalmar, é preciso repensar tudo isso, desde o início.” E começou a refletir. “Pois bem, o início da doença. Esbarrei com o lado esquerdo do corpo e, naquele dia e no dia seguinte, tudo ficou igual ao que era; então, ardeu um pouco, depois mais, depois o médico, depois a tristeza, o abatimento, de novo o médico; e eu fui indo, indo, cada vez mais perto do abismo. Menos forças. Mais perto, mais perto. E agora eu estou acabado, sem luz nos olhos. É a morte, e fico pensando no intestino. Fico pensando em pôr o intestino em ordem, mas é a morte. Será possível que seja a morte?” De novo, lhe veio um horror, ele perdeu o fôlego, curvou-se para a frente, se pôs a procurar os fósforos e a mesinha de cabeceira imprensou seu cotovelo. A mesinha era um estorvo e o machucou. Ivan Ilitch se enfureceu contra ela e, irritado, empurrou-a com mais força, até a mesinha tombar no chão. Em desespero, ofegante, ele se deixou cair de costas, agora já à espera da morte. Nessa altura, as visitas estavam indo embora. Praskóvia Fiódorovna as levava até a porta, para se despedir. Ela ouviu o barulho de algo que caiu e foi até lá. — O que você tem? — Nada. Derrubei sem querer. Ela saiu, trouxe uma vela. Ele estava deitado, ofegante, respirava muito acelerado, como um homem que correu uma versta, e mirava a esposa com os olhos parados. — O que você tem, Jean? — Na… da. De… rru… bei. — “O que vou dizer? Ela não vai entender”, pensou. E não entendeu mesmo. Levantou a vela, acendeu para ele e saiu depressa: precisava se despedir das visitas. Quando voltou, ele continuava deitado de costas, olhando para cima. — O que há com você, piorou? — Sim. Ela balançou a cabeça, sentou-se. — Sabe, Jean, estou pensando em chamar o Leschetítski. Aquilo significava chamar um médico famoso e não poupar dinheiro. Ivan Ilitch sorriu com veneno e disse: — Não. Ela ficou sentada um pouquinho, chegou perto dele e o beijou na testa. No momento em que o beijou, Ivan Ilitch a odiava com todas as suas forças e teve de se controlar para não lhe dar um empurrão. — Boa noite. Você vai conseguir dormir, se Deus quiser. — Sim. Nara Accorsi ódio da vida que ela representava VI Ivan Ilitch via que estava morrendo e vivia em constante desespero. No fundo da alma, Ivan Ilitch sabia que ia morrer, mas não apenas não estava acostumado com a ideia como, pura e simplesmente, não pensava no assunto e não conseguia, de maneira nenhuma, compreender aquilo. O exemplo de silogismo que ele havia estudado na lógica de Kiesewetter[42] — Caio é homem; homens são mortais; portanto, Caio é mortal — sempre, durante toda sua vida, lhe parecera verdadeiro apenas no caso de Caio, mas nunca no seu caso. Tratava-se do homem Caio, o homem em geral, e isso era perfeitamente correto; só que ele não era Caio nem o homem em geral, ele foi sempre, completa e absolutamente distinto de todas as demais criaturas; ele era o Vânia, que tinha mãe, tinha pai, tinha Mítia e Volódia, tinha seus brinquedos, seu cocheiro, sua babá, e depois Kátienka, e tinha todas as alegrias, os desgostos e os enlevos da infância, da adolescência e da mocidade. Por acaso Caio havia sentido o cheiro daquela bolinha de couro listrada que Vânia tanto adorava? Por acaso Caio havia beijado, daquele modo, a mão daquela mãe? Por acaso Caio tinha ouvido aquele rumor das pregas da seda do vestido da mãe? Por acaso ele havia arrumado briga na Escola de Jurisprudência por causa de uns pirojki?[43] Por acaso Caio estivera algum dia tão apaixonado? Por acaso Caio era capaz de presidir, daquele modo, uma sessão de julgamento no tribunal? Caio era, de fato, mortal e, no seu caso, estava certo morrer, mas para ele, para Vânia, para Ivan Ilitch, para mim, com todos os meus sentimentos, pensamentos — para mim, é diferente. E não é possível que eu tenha de morrer. Seria horrível demais. Essa era a sensação que ele tinha. “Se eu, como Caio, tivesse de morrer, eu já saberia disso, uma voz interior me diria, só que, dentro de mim, nunca houve nada parecido; eu e Nara Accorsi reflexão sobre a transitoriedade e fatos que diferenciam a existência da teoria Nara Accorsi presença do silogismo todos os meus amigos, nós todos entendíamos que o caso de Caio era completamente distinto. Mas agora, vejam só!”, disse consigo. “Não pode ser. Não pode ser, mas é. Como assim? Como entender isso?” Ele não conseguia entender e tentava rechaçar a ideia como falsa, errada, doentia, e substituí-la por outras, corretas, sadias. No entanto, aquela ideia não era só uma ideia, parecia ser a própria realidade, que voltava de novo e se postava parada na sua frente. Então Ivan Ilitch convocava outras ideias, uma por uma, para tomarem o lugar daquela, na esperança de encontrar algum apoio. Tentava retornar aos antigos caminhos do pensamento que mantinha a ideia da morte oculta para ele. Porém — fato estranho — tudo que antes ocultava, barrava, anulava a consciência da morte, agora já não era capaz de produzir o mesmo efeito. Ultimamente, Ivan Ilitch consumia a maior parte do tempo naquelas tentativas de retomar os antigos caminhos do sentimento que mantinha a morte oculta. Então, ele dizia consigo: “Vou me ocupar com o trabalho, afinal era para isso que eu vivia”. E seguia para o tribunal, afastando de si todas as dúvidas; travava conversas com os colegas, tomava seu assento de juiz e, segundo seu velho costume, lançava um olhar pensativo e difuso para a multidão à sua frente, enquanto segurava os braços da cadeira de carvalho com as mãos emagrecidas, e também, como fazia habitualmente, inclinava-se para um colega, puxava para si a pasta do processo, sussurrava algo e depois, de repente, erguendo os olhos e pondo as costas eretas no espaldar da cadeira, pronunciava as palavras conhecidas e dava início à sessão. Mas, de repente, no meio da sessão, a dor no lado do corpo voltava e, sem dar a mínima importância ao andamento do processo, dava início ao seu processo de sucção. Ivan Ilitch voltava sua atenção para o que estavam falando, afastava do pensamento aquela dor, mas ela continuava, ela chegava até ele, se punha de pé na sua frente, olhava direto para ele, e Ivan Ilitch ficava estupefato, o fogo dos olhos se apagava e ele recomeçava a se perguntar: “Será possível que só ela seja verdade?”. E os colegas e os subordinados viam, com surpresa e pesar, que ele, um juiz tão brilhante e arguto, se confundia, cometia erros. Ivan Ilitch sacudia-se de leve, tentava se controlar e, aos trancos e barrancos, conduzia a sessão até o fim, e Nara Accorsi trabalho - ação - vida voltava para casa com a triste consciência de que sua atividade de juiz não era capaz de ocultar, como antes, aquilo que ele queria manter oculto; que, por meio da atividade de juiz, ele não conseguia esquivar-se dela. E o pior de tudo era que ela o atraía para si, não para ele fazer alguma coisa, mas só para ficar olhando para ela, direto em seus olhos, só para ele ficar olhando e, sem fazer nada, atormentar-se de modo indescritível. A fim de se salvar dessa situação, Ivan Ilitch procurava consolos, buscava outros biombos e, de fato, estes surgiam, e, durante algum tempo, pareciam salvá-lo, porém, de novo, e bem depressa, os biombos não chegavam propriamente a tombar, mas se tornavam transparentes,era como se ela transparecesse através de tudo e nada fosse capaz de ocultá-la. Nos últimos tempos, acontecia, por exemplo, de Ivan Ilitch entrar na sala de visitas, decorada por ele, a sala onde havia levado um tombo, a sala cuja decoração — e ele pensava nisso com venenoso sarcasmo — havia custado sua vida, porque ele sabia que sua doença tinha começado com aquele ferimento — ele entrava na sala e via que na mesa laqueada havia uma cicatriz, tinha sido cortada por alguma coisa. Ivan Ilitch procurava a causa e a encontrava no canto torcido do enfeite de bronze de um álbum de fotografias. Pegava o álbum caro, que ele havia montado com amor, e se irritava com o descuido da filha e das amigas dela — ora havia um rasgo, ora as fotografias estavam viradas. Com esforço, punha tudo em ordem, torcia o enfeite de volta à posição correta. Depois, lhe vinha a ideia de mudar de lugar todo aquele établissement [44] com os álbuns, levá-los para outro canto, para junto das flores. Chamava o lacaio: quem acudia era a filha ou a esposa; elas não concordavam, faziam objeções, ele discutia, se irritava; mas tudo estava bem, porque Ivan Ilitch não se lembrava dela: ela estava fora da vista. Porém, quando ele mesmo ia mudar as coisas de lugar, a esposa dizia: “Deixe que os criados façam isso, assim você vai passar mal de novo”. E, de repente, ela espiava por trás do biombo, e Ivan Ilitch via. Ela estava espiando, ele ainda tinha esperança de que ela voltasse a se esconder, mas não conseguia impedir que sua atenção se voltasse para o lado do corpo — ali, é sempre a mesma coisa, sempre a mesma dor, e ele já não consegue esquecer e, por trás das flores, lá está ela, olhando sem disfarces para ele. E tudo isso para quê? “E a verdade é que aqui, nesta cortina, como se fosse num ataque contra uma fortaleza, eu perdi a vida. Será possível? Que horror e que estupidez! Não pode ser! Não pode ser, mas é.” Seguiu para o escritório, deitou-se e, de novo, ficou sozinho com ela. Frente a frente com ela, e não podia fazer nada com ela. Apenas ficar olhando para ela e gelar. VII Era impossível explicar como aquilo aconteceu no terceiro mês da doença de Ivan Ilitch, porque, na verdade, foi acontecendo pouco a pouco, de modo imperceptível, mas o fato, puro e simples, era que a esposa, a filha, o filho, os criados, os conhecidos, os médicos e, sobretudo, ele mesmo sabiam, agora, que todo interesse dos outros por Ivan Ilitch se resumia à ideia de que, em breve, e finalmente, ele ia deixar um lugar vago, ia libertar os vivos do constrangimento produzido por sua presença, e ele mesmo ia se libertar dos próprios sofrimentos. Ivan Ilitch dormia cada vez menos; já estavam lhe dando ópio e começaram a lhe aplicar morfina. No entanto, aquilo não lhe trazia alívio. A angústia cega que ele experimentava no estado de semiconsciência só lhe trouxe alívio no início, por ser algo novo, mas depois se tornou igual ou ainda mais torturante do que a dor sem disfarces. Preparavam comidas especiais para ele, segundo a prescrição dos médicos; no entanto, para ele, toda e qualquer comida ficava cada vez mais sem gosto, cada vez mais repugnante. Para que pudesse defecar, também fizeram adaptações especiais, e aquilo era um suplício cada vez maior. Um suplício por causa da sujeira, da indecência e do cheiro, e também por causa da consciência de que outras pessoas tinham de tomar parte naquilo tudo. Porém, nessa mesma ocupação desagradável, havia um consolo para Ivan Ilitch. Guerássim, o copeiro mujique, sempre vinha remover os excrementos. Guerássim era um mujique jovem, limpo, fresco, que havia engordado com a comida pesada da cidade. Estava sempre alegre e radiante. No início, a imagem dessa pessoa sempre limpa e vestida à maneira russa, que cumpria aquela tarefa repulsiva, deixava Ivan Ilitch constrangido. Certa vez, ao levantar-se do vaso, sem forças para suspender as calças, Ivan Ilitch tombou numa poltrona macia e, com horror, olhou para as próprias coxas, débeis e desprovidas de músculos. Com seus passos fortes e leves, Guerássim entrou de avental limpo, feito de cânhamo, botas grossas, camisa limpa de chita com mangas arregaçadas nos braços jovens e fortes, propagando à sua volta o aroma agradável de alcatrão que vinha das botas, bem como o frescor do ar do inverno, e, sem olhar para Ivan Ilitch — era óbvio que, para não ofender o doente, reprimia a alegria de viver que irradiava do seu rosto —, aproximou-se do vaso. — Guerássim — chamou Ivan Ilitch, com voz fraca. Guerássim estremeceu, visivelmente com medo de ter feito algo errado, e, com um movimento rápido, virou para o doente o rosto fresco, bondoso, simples e jovem, no qual a barba apenas começara a brotar. — O que o senhor deseja? — Imagino como isso é desagradável para você. Desculpe-me. Eu não consigo. — Não é nada, senhor. — Os olhos de Guerássim brilharam e seus dentes brancos e jovens ficaram à mostra. — O que tem de mais fazer este trabalho? O senhor está doente. Com as mãos fortes e ágeis, cumpriu sua tarefa rotineira e saiu, em passos leves. Cinco minutos depois, com os mesmos passos leves, voltou. Ivan Ilitch continuava sentado na poltrona. — Guerássim — disse, quando Guerássim colocou o vaso limpo e lavado no lugar. — Por favor, venha cá, me ajude. — Guerássim se aproximou. — Levante-me. Sozinho, é difícil para mim, e eu mandei embora o Dmítri. Guerássim chegou perto; da mesma forma como dava seus passos leves, Guerássim envolveu-o com agilidade entre os braços fortes, suspendeu-o com suavidade e segurou-o de pé, ergueu as calças com uma só mão e quis sentá-lo. Mas Ivan Ilitch pediu que o pusesse no sofá. Guerássim, sem o menor esforço, e como se não estivesse fazendo pressão nenhuma, conduziu-o, quase o carregou até o sofá, e o sentou ali. — Obrigado. Como você faz tudo bem-feito… com agilidade. Guerássim sorriu outra vez e fez menção de sair. Mas Ivan Ilitch se sentia tão bem com ele que não quis deixar que saísse. — Escute aqui: traga aquela cadeira para perto de mim. Não, aquela ali, coloque debaixo dos meus pés. Eu me sinto melhor com os pés levantados. Guerássim trouxe a cadeira, posicionou-a no lugar, sem fazer barulho, baixou-a no chão com um movimento único e certeiro, levantou os pés de Ivan Ilitch e os acomodou sobre a cadeira; Ivan Ilitch teve uma sensação de alívio na hora em que Guerássim levantou seus pés. — Eu me sinto melhor com os pés levantados — disse Ivan Ilitch. — Ponha aquele travesseiro embaixo dos meus pés. Assim fez Guerássim. Levantou os pés de novo e pôs o travesseiro por baixo deles. Ivan Ilitch, mais uma vez, sentiu-se melhor, enquanto Guerássim mantinha seus pés suspensos. Quando abaixou as pernas, Ivan Ilitch pareceu sentir-se pior. — Guerássim — disse. — Você está ocupado? — Nem um pouco, senhor — respondeu Guerássim, que na cidade havia aprendido como se deve falar com os patrões. — Tem mais alguma coisa para fazer? — Se eu ainda tenho o que fazer? Eu já fiz tudo, só falta cortar lenha para amanhã. — Então segure as minhas pernas um pouco levantadas, assim. Pode? — Claro, posso sim. Guerássim ergueu seus pés e Ivan Ilitch teve a impressão de que, naquela posição, não sentia dor nenhuma. — Mas e a lenha, como vai ficar? — Por favor, não se preocupe, patrão. Tem tempo. Ivan Ilitch mandou Guerássim sentar, segurar seus pés no alto e conversou com ele. E — fato estranho — teve a impressão de ficar melhor enquanto Guerássim segurava seus pés no alto. A partir daí, Ivan Ilitch passou a chamar Guerássim, de vez em quando, e o obrigava a levantar seus pés e colocá-los sobre os ombros, e adorava ficar conversando com ele. Guerássim fazia aquilo com leveza, boa vontade, de maneira simples e bondosa, o que deixava Ivan Ilitch comovido. Em todas as outras pessoas, a saúde, a força e o entusiasmo de viver davam a Ivan Ilitch uma sensação de ofensa; só no caso de Guerássim, a força e o entusiasmo de viver, em vez de ofenderem, apaziguavam. O maior suplício para Ivan Ilitch era a mentira — aquela mentira, por algummotivo admitida por todos, segundo a qual ele estava apenas enfermo, e não à beira da morte, e que bastava ficar calmo e tratar-se para que algo muito bom ocorresse. Porém ele sabia que, a despeito do que fizessem, nada iria ocorrer, senão sofrimentos ainda mais torturantes e a morte. E tal mentira o atormentava, e o atormentava o fato de que não queriam admitir aquilo que ele e todos já sabiam, preferiam mentir para ele a respeito de sua terrível situação e queriam que o próprio Ivan Ilitch tomasse parte naquela mentira, e até o forçavam a isso. A mentira, aquela mentira contada para ele nas vésperas de sua morte, a mentira destinada a rebaixar o ato supremo e terrível de sua morte ao nível de todas as visitas, das cortinas, do esturjão servido no jantar… era um suplício horroroso para Ivan Ilitch. E muitas vezes — fato estranho —, quando os outros encenavam aquela farsa na sua frente, o próprio Ivan Ilitch ficava apenas por um fio de berrar na cara deles: Parem de mentir, vocês sabem e eu também sei que estou morrendo, então pelo menos parem de mentir. No entanto, nunca tinha coragem de fazer aquilo. O ato horrível e aterrador de sua morte, ele percebia, estava sendo rebaixado, por todos à sua volta, ao nível de um incômodo fortuito, de uma espécie de falta de decoro (do mesmo tipo que ocorre com uma pessoa que, ao entrar no salão, propaga um cheiro ruim), e aquilo se dava em razão do mesmo “decoro” que ele tanto cultivara durante toda sua vida; Ivan Ilitch via que ninguém sentia pena, porque ninguém queria sequer compreender sua situação. Só Guerássim compreendia a situação e tinha pena dele. Por isso, Ivan Ilitch só se sentia bem com Guerássim. Sentia-se bem quando Guerássim, às vezes por noites a fio, segurava seus pés levantados e não queria ir dormir, dizendo: “O senhor não precisa se preocupar, Ivan Ilitch, eu durmo depois”; ou quando, de repente, passando a tratá-lo por “você”, acrescentava: “Se você não estivesse doente, vá lá, mas assim, o que tem de mais ajudar?”. Só Guerássim não mentia, e em tudo estava bem claro que só ele compreendia o que se passava, só ele não julgava necessário esconder aquilo e, simplesmente, tinha pena do patrão debilitado e à beira da morte. Certa vez, quando Ivan Ilitch o mandou sair, Guerássim chegou a lhe dizer, sem rodeios: — Todos nós vamos morrer. O que tem de mais fazer esse trabalho? — expressando desse modo que não se incomodava com seu trabalho exatamente porque fazia aquilo para um homem que estava morrendo, e esperava que alguém fizesse o mesmo por ele quando chegasse sua vez. Além daquela mentira, ou por causa dela, o maior suplício para Ivan Ilitch era o fato de ninguém ter pena dele da maneira como ele gostaria: certas horas, depois de muito sofrimento, Ivan Ilitch gostaria, acima de tudo, e por mais que lhe causasse vergonha admitir aquilo — Ivan Ilitch gostaria que alguém sentisse pena dele, como se fosse uma criança doente. Gostaria que fizessem carinho, beijassem, chorassem por sua causa, como fazem carinho e consolam, no caso de uma criança. Ivan Ilitch sabia que era um funcionário importante, sabia que tinha barba grisalha e que, portanto, aquilo era impossível; mesmo assim, era o que ele gostaria. E na relação com Guerássim havia algo mais próximo disso e, portanto, a relação com Guerássim o consolava. Ivan Ilitch tinha vontade de chorar, tinha vontade de que alguém lhe fizesse um carinho e chorasse por ele, mas então chegava um colega, o funcionário Chebek, e, em lugar de chorar e pedir carinho, Ivan Ilitch mostrava um rosto sério, austero, pensativo e, por inércia, dava seu parecer sobre alguma decisão do tribunal de apelação, e insistia em seus argumentos com tenacidade. Aquela mentira, à sua volta e dentro dele mesmo, era o que mais envenenava os últimos dias da vida de Ivan Ilitch. VIII Era de manhã. E era de manhã só porque Guerássim saiu e voltou trazendo o lacaio Piotr, apagou as velas, abriu uma cortina e, sem fazer barulho, começou a arrumar o quarto. Mas, fosse manhã ou tarde, fosse domingo ou sexta-feira, não fazia a menor diferença, era sempre a mesma coisa: a dor pungente, torturante, implacável; a consciência de que a vida estava indo embora, sem nenhuma esperança, só que ainda não tinha ido embora de todo; a morte aterradora, abominável, se aproximava mais e mais, e ela era a única realidade, mas aquela mentira continuava. E assim, para que saber dos dias, das semanas, das horas do dia? — O senhor não vai mandar trazer o chá? “Para ele, tem de haver ordem, os patrões tem de tomar chá de manhã”, pensou Ivan Ilitch, e respondeu apenas: — Não. — O senhor não prefere passar para o sofá? “Ele precisa arrumar o quarto e eu estou atrapalhando, eu sou a sujeira, a desordem”, pensou, e respondeu apenas: — Não, me deixe. O lacaio continuou sua faina. Ivan Ilitch estendeu o braço. Piotr se aproximou, solícito. — O que o senhor deseja? — O relógio. Piotr pegou o relógio, que estava ao alcance de sua mão, e entregou para ele. — Oito e meia. Os outros ainda não levantaram? — Não, senhor, nem sombra. O Vassíli Ivánovitch — o filho de Ivan Ilitch — foi para o ginásio, mas a Praskóvia Fiódorovna pediu que só a acordassem se o senhor perguntasse por ela. Quer que mande chamar? — Não precisa. — “E se eu tomar um pouco de chá?”, pensou. — Sim, traga o chá… Piotr seguiu na direção da porta. Para Ivan Ilitch, era horrível ficar sozinho. “Como vou detê-lo? Sim, o remédio.” — Piotr, me dê o remédio. “Afinal, quem sabe o remédio ainda pode ajudar?” Pegou a colher, bebeu tudo. “Não, não vai ajudar. Tudo isso é bobagem, ilusão”, concluiu assim que sentiu o conhecido gosto açucarado e sem esperança. “Não, eu já não consigo acreditar. Mas e essa dor, por que essa dor? Quem dera parasse só um minuto.” E começou a gemer. Piotr virou-se. — Não é nada, vá. Traga o chá. Piotr saiu. Ao se ver sozinho, Ivan Ilitch começou a gemer, menos de dor — embora a dor fosse terrível — que de angústia. “Sempre e sempre a mesma coisa, sempre os mesmos dias e noites intermináveis. Quem dera viesse mais depressa. Mais depressa, o quê? A morte, as trevas. Não, não. Qualquer coisa é melhor do que a morte!” Quando Piotr entrou com o chá numa bandeja, Ivan Ilitch olhou para ele demoradamente, perplexo, sem entender quem era e o que desejava. Piotr se sentiu embaraçado com seu olhar. E assim que Piotr se mostrou embaraçado, Ivan Ilitch voltou a si. — Sim — disse —, o chá… Está bem, coloque aí. Mas me ajude a me lavar e a vestir uma camisa limpa. E Ivan Ilitch começou a se lavar. Com pausas para descansar, lavou as mãos, o rosto, limpou os dentes, começou a se pentear e olhou-se no espelho. Achou horrível; e o mais horrível de tudo eram os cabelos escorridos e grudados na testa pálida. Quando trocaram sua camisa, ele se deu conta de que acharia mais horrível ainda se visse o próprio corpo, e não olhou para si. Mas então tudo terminou. Vestiu o roupão, agasalhou-se com a manta e sentou-se na poltrona para tomar o chá. Por um minuto, sentiu-se fresco. Porém, tão logo começou a beber o chá, veio de novo o mesmo gosto, a mesma dor. Com esforço, bebeu o chá até o fim e deitou-se, esticando as pernas. Deitado, dispensou Piotr. Sempre a mesma coisa. Ora brilha uma gota de esperança, ora o mar do desespero se ergue revolto, e sempre a dor, sempre essa dor, sempre a angústia, sempre igual, sempre a mesma coisa. O mesmo tédio aterrador, ele tem vontade de chamar alguém, mas sabe de antemão que, com os outros, é pior ainda. “Seria bom tomar morfina de novo, eu perderia a consciência. Vou dizer a ele, o médico, que invente alguma outra coisa. Não é possível, desse jeito não é possível.” E assim se passa uma hora, duas horas. Mas aí, na entrada, a campainha toca. Deve ser o médico. Exatamente, é o médico, fresco, gordo, cordial, alegre, com aquela expressão que diz: Pronto, o senhor se assustou com alguma coisa, mas agora nós estamos aqui e vamos resolver tudo para o senhor. O médico sabe que tal expressão não convém, no caso de Ivan Ilitch, mas já vestiuaquela expressão de uma vez por todas e não consegue mais despi-la, como um homem que, de manhã cedo, vestiu um fraque e saiu para fazer visitas. Animado, consolador, o médico esfrega as mãos. — Fiquei gelado. Está fazendo um frio de rachar. Deixe que eu me aqueça um pouco — explica, como se quisesse dizer que bastaria esperar um pouquinho, até ele se aquecer, e depois, uma vez aquecido, ele daria um jeito em tudo. — E então, que tal? Ivan Ilitch sente que o médico, em seguida, gostaria mesmo era de dizer: “Como vão as coisas?”, mas percebe que não pode falar assim, e diz: — Como o senhor passou a noite? Ivan Ilitch olha para o médico com ar interrogativo: “Será possível que nunca vai ter vergonha de mentir, doutor?”. No entanto, o médico não quer entender a pergunta. E Ivan Ilitch diz: — É horrível, o mesmo de sempre. A dor não passa. Quem dera acontecesse alguma coisa! — Pois é, vocês, doentes, são sempre assim. Muito bem, senhor, agora parece que eu já estou aquecido, nem a rigorosíssima Praskóvia Fiódorovna faria objeção à minha temperatura. Muito bem, senhor, bom dia. — E o médico aperta sua mão. Deixando de lado todo o espírito jocoso de antes, o médico, agora com ar sério, se põe a examinar o paciente, toma o pulso, a temperatura e dá início às percussões e auscultações. Ivan Ilitch sabe, de forma segura e indubitável, que tudo aquilo é absurdo, vã ilusão, mas quando o médico, de joelhos, se estica por cima dele, encosta o ouvido ora mais no alto, ora mais embaixo, e faz por cima dele, com o rosto muito sério, diversas evoluções de ginasta, Ivan Ilitch se rende àquilo tudo, como se rendia, anteriormente, aos discursos dos advogados, embora soubesse muito bem que todos eles estavam mentindo e por que estavam mentindo. De joelhos sobre o sofá, o médico ainda percutia algum ponto do seu corpo quando o vestido de seda de Praskóvia Fiódorovna rumorejou na porta e ressoou sua censura contra Piotr, por não ter avisado que o médico tinha chegado. Ela entra, beija o marido e trata logo de deixar claro que fazia tempo que estava acordada e só por causa de um mal-entendido não recebera o médico quando ele chegou. Ivan Ilitch olha para ela, observa-a por inteiro e, mentalmente, recrimina a esposa pela brancura, pela gordura, pela limpeza das mãos, do pescoço, pelo brilho dos cabelos e pelo resplendor dos olhos, cheios de vida. Ele a odeia com todas as forças da alma. O contato com a esposa força Ivan Ilitch a sofrer, sob o efeito de uma onda de ódio. A atitude da esposa com relação a ele e sua doença continua a mesma. Assim como o médico elaborou para si uma determinada atitude com relação aos pacientes, da qual ele não consegue mais se desfazer, ela também elaborou uma atitude com relação a Ivan Ilitch — para Praskóvia Fiódorovna, o marido não faz o que devia, ele mesmo é o culpado e, por isso, ela o censura amorosamente — e ela também, da mesma forma, já não consegue se desfazer daquela atitude com relação ao marido. — Pois é, ele não obedece! Não toma o remédio na hora certa. E o pior é que fica deitado na posição que, com certeza, é a mais nociva para ele: com os pés para o alto. Contou como o marido obrigava Guerássim a segurar seus pés levantados. O médico sorriu, com desdém e carinho: “Ora essa, o que se vai fazer? Às vezes, esses doentes inventam cada bobagem; mas é perdoável”. Quando o exame terminou, o médico olhou para o relógio e então Praskóvia Fiódorovna avisou a Ivan Ilitch que, gostasse ele ou não, ela havia chamado um médico famoso para examiná-lo naquele mesmo dia, em companhia de Mikhail Danílovitch (assim se chamava o médico de costume), para que os dois discutissem a questão. — Por favor, não se oponha. É por mim mesma que estou fazendo isso — disse ela com ironia, dando a entender que fazia tudo pelo marido e que só isso já retirava de Ivan Ilitch todo o direito de não aceitar a ideia. Ele ficou mudo e contraiu o rosto. Sentia que a mentira que o rodeava havia se embaralhado a tal ponto que já se tornara difícil distinguir uma coisa da outra. Tudo o que ela fazia pelo marido era só para si mesma, mas Praskóvia Fiódorovna lhe dizia que fazia para si mesma aquilo que fazia realmente para si mesma, como se aquilo fosse algo tão inacreditável que Ivan Ilitch se via obrigado a entender no sentido inverso. De fato, às onze e meia chegou o médico famoso. E mais uma vez vieram as auscultações, as conversas em tom grave, em presença de Ivan Ilitch e no quarto vizinho, a respeito do rim e do ceco, e vieram as perguntas e as respostas num tom tão grave que, de novo, em lugar da questão real sobre a vida e a morte, que agora se erguia sozinha na frente de Ivan Ilitch, o que se apresentou foi a questão sobre o rim e o ceco, que não estavam se comportando da forma devida e que, por isso, seriam atacados, sem demora, por Mikhail Danílovitch e pela celebridade, e seriam forçados a se corrigir. O médico famoso se despediu com ar sério, mas não desesperançado. E à pergunta, que Ivan Ilitch lhe dirigiu, com os olhos faiscantes de medo e de esperança erguidos para ele, sobre se existia alguma possibilidade de cura, o médico respondeu que era impossível garantir, mas a possibilidade existia. O olhar de esperança com que Ivan Ilitch se despediu do médico inspirava tanta pena que, ao vê-lo, Praskóvia Fiódorovna até começou a chorar, na hora em que saiu pela porta do escritório a fim de pagar os honorários do médico famoso. A melhora do estado de ânimo, produzida pelas palavras de esperança do médico, durou pouco. De novo, o mesmo quarto, os mesmos quadros, cortinas e papéis de parede, os mesmos frascos de vidro e o mesmo corpo dolorido e sofredor. E Ivan Ilitch começou a gemer; deram-lhe uma injeção e ele perdeu a consciência. Quando acordou, estava escurecendo; trouxeram o jantar; tomou a sopa com esforço; e depois, de novo, a mesma coisa, e de novo caiu a noite. Após o jantar, às sete horas, Praskóvia Fiódorovna entrou no quarto, vestida como se fosse a uma festa, com os seios fartos e aprumados, e vestígios de pó de arroz no rosto. Ainda de manhã, já havia lembrado ao marido que eles iriam ao teatro. Sarah Bernhardt[45] estava na cidade e eles tinham ingressos para um camarote, comprados por insistência de Ivan Ilitch. Agora, ele já havia esquecido aquilo e os trajes da esposa o deixaram ofendido. Mas escondeu sua afronta quando lembrou que ele mesmo havia insistido para comprarem os ingressos e irem ao teatro, pois, afinal, era um prazer estético e educativo para os filhos. Praskóvia Fiódorovna entrou satisfeita consigo mesma, no entanto, parecia sentir-se culpada. Sentou-se, perguntou a respeito de sua saúde, mas apenas por perguntar e não para saber de nada, como Ivan Ilitch bem percebia, pois já estava sabendo que nada havia para saber, e em seguida passou a dizer aquilo que precisava dizer: que ela preferia mil vezes não ir ao teatro, porém o camarote já estava comprado e também iriam Elen, a filha e Petríschev (o juiz de instrução, noivo da filha), e não era possível deixar que eles fossem sozinhos. E disse também que, para ela, seria muito mais agradável ficar com o marido. Mas que, na sua ausência, ele devia cumprir à risca a prescrição do médico. — Além disso, o Fiódor Petróvitch — o noivo — gostaria de entrar. Pode? E a Liza também. — Mande entrar. Entrou a filha, muito arrumada, com o corpo jovem desnudo, um corpo igual àquele que obrigava Ivan Ilitch a sofrer tanto. Só que a filha estava exibindo o corpo. Forte, saudável, visivelmente apaixonada, e avessa à doença, ao sofrimento e à morte, que representavam estorvos à sua felicidade. Entrou também Fiódor Petróvitch, de fraque, cabelo frisado à la Capoul, [46] pescoço comprido e musculoso, cingido com rigor pelo colarinho branco, com um imenso peitilho branco, quadris robustos comprimidos por calças pretas e justas, luva branca muito apertada na mão, que segurava uma cartola dobrável. Por trás dele, discretamente, esgueirou-se o ginasiano, de uniforme novo, o pobrezinho, de luvas e com as horríveisolheiras azuis cujo significado Ivan Ilitch conhecia. O filho sempre lhe dava pena. O mais terrível de tudo era seu olhar assustado e cheio de compaixão. Ivan Ilitch achava que, além de Guerássim, só Vássia compreendia a situação e sentia pena. Todos sentaram, perguntaram de novo a respeito de sua saúde. Veio um momento de silêncio. Liza questionou a mãe sobre o binóculo. Houve uma discussão, entre mãe e filha, sobre quem tinha pegado e onde havia deixado. Foi constrangedor. Fiódor Petróvitch perguntou a Ivan Ilitch se alguma vez tinha visto Sarah Bernhardt. De início, Ivan Ilitch não entendeu o que estavam perguntando, mas depois respondeu: — Não; e o senhor, já viu? — Sim, em Adrienne Lecouvreur.[47] Praskóvia Fiódorovna disse que ela representara particularmente bem certo papel. A filha discordou. Teve início uma conversa sobre o refinamento e o realismo do seu desempenho — a mesma conversa de sempre, e sempre igual. No meio da conversa, Fiódor Petróvitch lançou um olhar para Ivan Ilitch e calou-se. Os outros também lançaram um olhar e calaram-se. Ivan Ilitch mirava para a frente, com os olhos cintilantes, visivelmente indignado com eles. Era preciso corrigir aquilo, mas não existia a menor possibilidade. De alguma forma, era preciso interromper aquele silêncio. Mas ninguém tomava a iniciativa, e em todos eles nasceu o medo de que, de súbito, de algum modo, a mentira decorosa desmoronasse e ficasse claro, para todos, o que existia de fato. Liza foi a primeira a se decidir. Ela interrompeu o silêncio. Queria esconder o que todos estavam experimentando, mas acabou deixando escapar. — Bem, se é para ir, está na hora — disse, depois de dar uma olhada no seu relógio, presente do pai, e sorriu para o jovem de maneira quase imperceptível, numa alusão a algo que só os dois conheciam, e levantou-se, com um rumor do vestido. Todos se levantaram, se despediram e foram embora. Quando se retiraram do quarto, Ivan Ilitch teve uma sensação de alívio: não havia mais a mentira — a mentira tinha ido embora junto com eles, porém a dor ficou. Sempre a mesma dor, sempre o mesmo temor, que não deixavam nada mais difícil, nada mais fácil. Sempre pior. De novo, os minutos passaram, um após o outro, hora após hora, sempre a mesma coisa, sempre sem fim e, cada vez mais aterrador, o fim inevitável. — Sim, chame o Guerássim — respondeu ele, a uma pergunta de Piotr. IX A esposa voltou tarde da noite. Entrou na ponta dos pés, mas ele ouviu: abriu os olhos e, depressa, fechou de novo. Ela queria dispensar Guerássim e ficar com o marido. Ivan Ilitch abriu os olhos e disse: — Não. Pode ir. — Está sofrendo muito? — O mesmo de sempre. — Tome ópio. Ele concordou e bebeu. Ela saiu. Até as três da madrugada, mais ou menos, Ivan Ilitch ficou numa inconsciência torturante. Tinha a impressão de que estava sendo empurrado, de forma dolorosa, para dentro de um saco estreito, fundo e negro, e de que o espremiam cada vez mais, sem conseguir enfiá-lo. Aquela situação horrível era fonte de sofrimento para ele. Tinha medo, queria tombar de uma vez lá dentro e, por isso, se debatia e ajudava. E então, de repente, conseguiu se desvencilhar, caiu e despertou. O mesmo Guerássim de sempre continuava sentado ao pé da cama, cochilando tranquilo, paciente. Já Ivan Ilitch estava deitado, os pés magros, de meias, levantados e apoiados sobre os ombros de Guerássim; a mesma vela de sempre, com um quebra-luz, e a mesma dor incessante. — Vá embora, Guerássim — sussurrou. — Não se preocupe, senhor, eu posso ficar mais um pouquinho. — Não, vá embora. Ivan Ilitch recolheu as pernas, deitou-se de lado, por cima do braço, e teve pena de si mesmo. Apenas esperou que Guerássim fosse para o quarto vizinho e, sem conseguir mais se conter, desatou a chorar como uma criança. Chorava por sua condição indefesa, por sua terrível solidão, pela crueldade das pessoas, pela crueldade de Deus, pela ausência de Deus. “Para que fez tudo isso? Para que me trouxe até aqui? Por quê, por que está me torturando dessa forma horrorosa?…” Não contava receber resposta alguma e chorava porque não havia nem poderia haver resposta alguma. A dor se levantou de novo, mas ele não se mexeu, não chamou ninguém. Disse, para si mesmo: “Está bem, mais forte, pode bater! Mas por quê? O que foi que eu fiz para você? Por quê?”. Depois, se acalmou, parou de chorar, parou até de respirar, e todo ele se converteu numa atenção: como se escutasse não uma voz que falava por meio de sons, mas a voz da alma; como se ouvisse o fluxo dos pensamentos que se erguiam dentro dele. — Do que você precisa? — Foi o primeiro pensamento claro, capaz de ser expresso por meio de palavras, que ele ouviu. — Do que você precisa? Do que você precisa? — repetiu para si. — Do quê? Não sofrer. Viver — respondeu o próprio Ivan Ilitch. E, de novo, todo ele se absorveu numa atenção tão concentrada que até a dor deixou de ter interesse. — Viver? Como assim, viver? — perguntou a voz da alma. — Sim, viver como eu vivia antes; bem, de maneira agradável. — Como vivia antes, vivia bem e de maneira agradável? — perguntou a voz. E Ivan Ilitch se pôs a escolher, na imaginação, os melhores momentos de sua vida agradável. No entanto — coisa terrível —, todos aqueles melhores momentos de sua vida agradável agora lhe pareciam inteiramente distintos do que pareceram na época. Todos — exceto as primeiras lembranças da infância. Lá, na infância, havia algo de fato agradável, algo com que seria possível viver, se tudo voltasse. Porém a pessoa que tivera aquela experiência agradável já não existia mais: era como a lembrança de outra pessoa. A partir do ponto em que teve início aquilo que redundou no que ele, Ivan Ilitch, era neste momento, tudo o que antes parecia alegria, agora se derretia diante de seus olhos e se transformava em algo insignificante e, muitas vezes, repulsivo. Quanto mais longe da infância, quanto mais próximo do presente, mais insignificantes e mais duvidosas eram as alegrias. Começou na Escola de Jurisprudência. Lá, ainda havia algo verdadeiramente bom: lá, havia alegria; lá, havia amizade; lá, havia esperanças. Porém, nas séries mais adiantadas, já eram mais raros aqueles momentos bons. Depois, quando Ivan Ilitch começou a trabalhar junto ao governador, surgiram de novo bons momentos: eram recordações do amor por uma mulher. Depois, tudo se embaralhava e havia cada vez menos coisas boas. Adiante, havia ainda menos e, quanto mais avançava, tanto menos havia. O casamento… Tão acidental, e a decepção, o hálito da esposa, a volúpia, a dissimulação! E aquele trabalho morto, as preocupações com o dinheiro, e assim um ano, dois, dez, vinte anos se passam — e sempre a mesma coisa. E quanto mais à frente, mais morto. “É como se eu estivesse descendo a montanha e imaginasse que estava subindo. E era isso mesmo. Na opinião da sociedade, eu estava subindo a montanha, na exata medida em que a vida escapava por baixo de mim… E agora, acabou-se, pronto: morra! “Mas então o que é isto? Para quê? Não pode ser. Não é possível que a vida seja tão sem sentido, tão repugnante. Mas, se ela for mesmo tão repugnante e sem sentido, para que morrer, e morrer sofrendo? Algo está errado.” “Quem sabe eu não vivi como devia?”, de repente lhe veio à cabeça. “Mas como não, se eu fiz tudo o que é certo?”, disse consigo, e logo rechaçou a única solução de todo o enigma da vida e da morte como algo completamente impossível. “O que você quer agora? Viver? Viver como? Viver como tem vivido no tribunal, na hora em que o oficial de justiça anuncia: Está aberta a sessão!… Está aberta a sessão, a sessão está aberta”, repetiu consigo. “Pois bem, aqui está ele, o julgamento! Mas eu não tenho culpa!”, exclamou, com rancor. “Por quê?” Parou de chorar e, voltando o rosto para a parede, se pôs a pensar numa coisa só, e sempre a mesma: por quê, para que todo aquele horror? No entanto, por mais que pensasse, não encontrava resposta. E quando lhe veio a ideia, como lhe ocorria muitas vezes, de que tudo aquilo estava acontecendo porqueele não tinha vivido como devia viver, logo Ivan Ilitch trazia à memória toda a retidão de sua vida e rechaçava aquela ideia estranha. X Passaram-se mais duas semanas. Ivan Ilitch já não saía mais do sofá. Ficava deitado e não queria ir para a cama. Quase o tempo todo de cara para a parede, sofria sozinho, sempre o mesmo sofrimento insolúvel, e pensava sozinho, sempre o mesmo pensamento insolúvel. O que é isto? Será verdade, é mesmo a morte? E uma voz interior respondia: Sim, é verdade. E por que estes tormentos? A voz respondia: Porque sim, sem razão nenhuma. E, fora isso, não havia mais nada. Desde o início da doença, desde o momento em que Ivan Ilitch foi ao médico pela primeira vez, sua vida se dividiu em dois estados de ânimo opostos, que se alternavam: ora o desespero e a expectativa da morte inexplicável e aterradora; ora a esperança e a observação, carregada de interesse, do funcionamento do próprio corpo. Ora só havia diante de seus olhos um rim ou um ceco, que se desviaram temporariamente do cumprimento de suas obrigações; ora havia apenas a morte inexplicável e aterradora, da qual era impossível escapar. Desde o início da doença, os dois estados de ânimo se alternavam; porém, quanto mais a doença avançava, mais incerta e fantasiosa se tornava a ideia do rim, e mais real a ideia da morte iminente. Bastava lembrar como estava três meses antes e o que ele era agora; bastava lembrar a maneira ininterrupta como vinha descendo a montanha para qualquer possibilidade de esperança cair por terra. Nos últimos tempos da solidão em que se encontrava, deitado de cara para o encosto do sofá, aquela solidão no meio de uma cidade cheia de gente, entre incontáveis conhecidos e a família — uma solidão que em parte alguma, nem no fundo do mar nem dentro da terra, poderia ser mais completa —, nos últimos tempos daquela solidão terrível, Ivan Ilitch vivia apenas com a imaginação no passado. Um após outro, lhe ocorriam quadros de seu passado. Sempre começava com algo mais próximo no tempo, recuava rumo ao mais distante, à infância, e ali se detinha. Quando pensava na ameixa seca e cozida que tinham lhe oferecido para comer naquele dia, Ivan Ilitch recordava a ameixa seca francesa, crua e rugosa, de sua infância, recordava aquele gosto especial e como lhe vinha água na boca quando chegava ao caroço e, junto com a lembrança do gosto, se desencadeava toda uma série de recordações daquela época: a babá, o irmão, os brinquedos. “É melhor não pensar nisso… dói demais”, dizia consigo Ivan Ilitch, e se transportava de novo para o presente. O botão no estofamento do encosto do sofá e as rugas do marroquim. “O marroquim é caro, frágil; foi por causa dele que houve uma briga. Mas houve outro marroquim, e outra briga, quando rasgamos a pasta do papai e fomos castigados, mas a mamãe nos trouxe uns pirojki.” E, mais uma vez, ele se deteve na infância e, mais uma vez, Ivan Ilitch sentiu dor e tentou rechaçar tudo aquilo, pensar em outra coisa. E, mais uma vez, na mesma hora, junto com aquela cadeia de recordações, veio à sua alma outra cadeia de recordações — a maneira como sua doença ganhou força e cresceu. Aqui também, quanto mais recuava no tempo, mais vida havia. Mais coisas boas havia na vida, e também mais vida, propriamente dita. E as duas coisas se fundiam. “À medida que os tormentos vão se tornando piores, toda a vida também vai se tornando pior”, pensou. O único ponto luminoso está lá atrás, no início da vida, mas depois a vida se torna cada vez mais escura e cada vez mais acelerada. “É inversamente proporcional ao quadrado da distância da morte”,[48] pensou Ivan Ilitch. E essa imagem de uma pedra que voa para baixo, em velocidade crescente, cravou-se em sua alma. A vida é uma série de sofrimentos crescentes, voa cada vez mais depressa rumo ao fim, rumo ao mais terrível sofrimento. “Eu estou voando…” Ele estremeceu, se debateu, quis resistir; mas já sabia que não era possível resistir e, mais uma vez, com os olhos cansados de ver, porém incapazes de não olhar para o que estava na sua frente, Ivan Ilitch olhou para o encosto do sofá e esperou — esperou aquela terrível queda, o choque e o aniquilamento. “Não é possível resistir”, disse consigo. “Se ao menos eu pudesse entender por quê. Mas também não é possível. Se eu pudesse afirmar que eu não vivi como se deve viver, seria possível explicar. Só que é impossível admitir tal ideia”, dizia consigo, enquanto recapitulava toda a legalidade, a retidão e o decoro de sua vida. “É impossível concordar com isso”, dizia consigo, forçando um riso com os lábios, como se alguém pudesse ver aquele sorriso e ser enganado por ele. “Não existe explicação! O tormento, a morte… para quê?” XI Assim se passaram duas semanas. E, naquelas semanas, ocorreu o que Ivan Ilitch e sua esposa desejavam: Petríschev pediu formalmente a filha deles em casamento. Isso aconteceu à noite. No dia seguinte, Praskóvia Fiódorovna entrou no quarto do marido pensando em como lhe dar a notícia do pedido de Fiódor Petróvitch, porém, naquela madrugada, o estado de saúde de Ivan Ilitch sofrera nova mudança para pior. Praskóvia Fiódorovna encontrou-o no mesmo sofá, mas numa posição diferente. Deitado de costas, gemia e olhava para a frente, com um olhar fixo. Ela começou a falar de remédios. Ivan Ilitch desviou seu olhar para a esposa. Ela nem terminou de falar o que havia apenas começado, tamanho o rancor expresso naquele olhar, e logo contra ela. — Pelo amor de Cristo, me deixe morrer em paz — disse Ivan Ilitch. Ela quis sair, mas naquele momento a filha entrou e se aproximou para dar bom-dia. Ivan Ilitch olhou para a filha da mesma forma como havia olhado para a esposa, e a suas perguntas sobre seu estado de saúde, respondeu com secura que, muito em breve, deixaria todos livres dele. As duas ficaram caladas, sentaram-se um instante e saíram. — Que culpa temos nós? — disse Liza para a mãe. — Parece que fomos nós que fizemos isso! Eu tenho pena do papai, mas para que ele nos faz sofrer? O médico chegou na hora de costume. Ivan Ilitch respondeu ao médico apenas “sim” e “não”, sem desviar dele o olhar furioso e, no fim, disse: — O senhor sabe muito bem que nada vai ajudar, me deixe. — Podemos aliviar o sofrimento — disse o médico. — Nem isso o senhor pode fazer, me deixe. O médico saiu para a sala e comunicou a Praskóvia Fiódorovna que ele estava muito mal e que o único recurso era o ópio, para aliviar os sofrimentos, que deviam ser horríveis. O médico disse que seus sofrimentos físicos eram horríveis, e era verdade; porém mais horríveis do que os sofrimentos físicos eram seus sofrimentos morais, e nisso consistia o principal tormento de Ivan Ilitch. Seus sofrimentos morais consistiam em que, naquela madrugada, enquanto olhava para o rosto sonolento e generoso de Guerássim, com seus malares salientes, de súbito lhe veio à cabeça: E se, de fato, toda a minha vida, a vida consciente, não foi como devia? E lhe veio à cabeça a ideia de que aquilo que antes ele imaginava ser absolutamente impossível — a ideia de que não tinha vivido como devia — podia ser verdade. E lhe veio à cabeça a ideia de que seus impulsos fantasiosos, quase imperceptíveis, de lutar contra aquilo que as pessoas do escalão superior da sociedade consideravam bom — impulsos fantasiosos e quase imperceptíveis que ele, prontamente, tratava de reprimir —, lhe veio a ideia de que tais impulsos é que podiam ser verdadeiros, e o restante não. Seu trabalho, seu modo de vida, sua família, os interesses da sociedade e seu trabalho de juiz — tudo aquilo podia não ser verdadeiro. Ivan Ilitch tentava defender tudo aquilo para si mesmo. Mas, de repente, sentiu toda a debilidade do que estava defendendo. Não havia nada para ser defendido. “Mas, se é mesmo assim”, pensou, “e se eu estou partindo da vida com a consciência de que destruí tudo que me foi dado e também de que é impossível corrigir isso, então, e agora?” Deitado de costas, ele se pôs a examinar sua vida inteira de forma completamente nova. De manhã, quando viu o lacaio,depois a esposa, depois a filha, depois o médico — cada movimento deles, cada palavra deles confirmava, para Ivan Ilitch, a terrível verdade revelada durante a noite. Neles, Ivan Ilitch via a si mesmo, via tudo o que ele vivera, e via com clareza que tudo aquilo não era verdadeiro, tudo aquilo era uma enorme e pavorosa fraude, que encobria a vida e a morte. Tal consciência ampliou, decuplicou seus sofrimentos físicos. Ele gemia, se revolvia e tentava arrancar as próprias roupas. Tinha a impressão de que o sufocavam e o oprimiam. E, por isso, tinha ódio deles. Deram-lhe uma grande dose de ópio e ele perdeu a consciência; mas, na hora do jantar, recomeçou a mesma coisa. Ele expulsava todos que entravam no quarto e ficava se revolvendo de um lado para outro. A esposa entrou e disse: — Jean, meu bem, faça isso por mim (por mim?). Não pode fazer mal e, muitas vezes, ajuda. Vamos, não é nada de mais. Até pessoas sadias, muitas vezes… Ele arregalou os olhos. — O quê? A comunhão? Para quê? Não precisa! Além do mais… Ela começou a chorar. — Está certo, meu amigo? Vou chamar o nosso padre, ele é tão gentil. — Está ótimo, muito bom — respondeu. Quando o sacerdote chegou e tomou sua confissão, Ivan Ilitch se tranquilizou, sentiu uma espécie de alívio de suas dúvidas e, por isso, um alívio de seus sofrimentos, e sobreveio um minuto de esperança. Mais uma vez, se pôs a pensar no ceco e na possibilidade de curá-lo. Comungou com lágrimas nos olhos. Depois de receber o sacramento, quando deitaram de novo Ivan Ilitch, por um minuto ele sentiu alívio e, mais uma vez, veio uma esperança na vida. Pôs-se a pensar na cirurgia que haviam lhe sugerido. “Viver, eu quero viver”, disse consigo. A esposa veio cumprimentá-lo; disse as palavras de costume e acrescentou: — Não é verdade que está melhor? Sem olhar para ela, respondeu: — Sim. A roupa da esposa, seu aspecto, a expressão de seu rosto, o som de sua voz — tudo dizia para ele só uma coisa: “Isto não é verdadeiro. Tudo aquilo pelo qual você viveu e vive é mentira, é uma fraude que esconde, de você mesmo, a vida e a morte”. E mal pensou naquilo, seu ódio se levantou e, junto com o ódio, vieram sofrimentos físicos torturantes e, junto com os sofrimentos, veio a consciência do iminente e inevitável aniquilamento. Algo novo se manifestou: começou a torcer, dar pontadas e tolher sua respiração. A expressão do rosto de Ivan Ilitch, quando disse “sim”, era horrível. Depois de pronunciar aquele “sim”, enquanto olhava em cheio para o rosto da esposa, ele virou-se ligeiro de bruços, de forma extraordinária para sua debilidade, e começou a gritar: — Vá embora, vá embora, me deixe! XII A partir desse instante, teve início aquele grito ininterrupto de três dias, tão pavoroso que nem por trás de duas portas fechadas era possível ouvi-lo sem horror. Naquele instante em que respondeu à esposa, Ivan Ilitch entendeu que estava perdido, que não havia volta, tinha chegado o fim, o fim completo, só que a dúvida continuava sem solução, continuava a ser uma dúvida. — O! O! O! — gritava, em diversas entonações. Tinha começado a gritar: — Não quero! — Mas continuou a gritar só a última letra, “o”. Naqueles três dias inteiros, durante os quais, para ele, o tempo deixou de existir, Ivan Ilitch se debatia dentro do saco escuro no qual ele estava sendo empurrado por uma força indeterminada e invisível. Ele se debatia como um condenado à morte se debate nas mãos do carrasco, sabendo que não pode se salvar; e a cada minuto, sentia que, apesar de todo o esforço da luta, estava cada vez mais perto daquilo que o apavorava. Sentia que seu tormento também consistia no fato de estar sendo empurrado para dentro daquele buraco negro, e mais ainda no fato de não conseguir, ele mesmo, se embrenhar lá dentro. O que o atrapalhava era a consciência de que sua vida era boa. Era essa justificação de sua vida que o tolhia, que não o deixava ir em frente e, mais que tudo, era o que fazia Ivan Ilitch sofrer. De repente, uma espécie de força o empurrou no peito, no flanco, constringiu sua respiração com mais vigor ainda e ele desabou dentro do buraco e, lá no fim, algo se iluminou. Aconteceu com Ivan Ilitch o que acontecia dentro de um vagão de trem, quando ele acreditava que estava indo para a frente, mas estava andando para trás e, de repente, descobria a direção verdadeira. — Sim, tudo estava errado — disse consigo. — Mas não importa. É possível, é possível fazer o certo. E o que é o “certo”? — perguntou para si e, de repente, calou-se. Isso aconteceu no fim do terceiro dia, uma hora antes de sua morte. Naquele exato momento, o ginasiano se esgueirou em silêncio na direção do pai e ficou junto à cama. O moribundo não parava de gritar, desesperadamente, e sacudia os braços. Sua mão atingiu a cabeça do menino. O ginasiano agarrou-a, apertou-a contra os lábios e começou a chorar. Naquele exato momento, Ivan Ilitch desabou de uma vez até o fundo, viu uma luz e se revelou, para ele, que sua vida não tinha sido o que devia ser, mas que isso ainda podia ser corrigido. Perguntou para si mesmo o que era o “certo”, e ficou em silêncio, atento. Então sentiu que alguém estava beijando sua mão. Abriu os olhos e viu o filho. Sentiu pena dele. A esposa se aproximou. Ivan Ilitch olhou para ela. De boca aberta e com lágrimas, que não secavam, no nariz e na face, olhava para o marido com expressão de desespero. Ele sentiu pena dela. “Sim, eu estou fazendo todos eles sofrer”, pensou. “Sentem pena, mas será melhor para eles quando eu tiver morrido.” Quis dizer aquilo, mas não teve forças para falar. “Na verdade, para que falar, é preciso agir”, pensou. Com o olhar, apontou para o filho e disse para a esposa: — Leve-o embora… dá pena… você também… — Ainda quis dizer “desculpe”, mas acabou falando “deixe ir”[49] e, já sem forças para se corrigir, resignou-se, ciente de que seria entendido por quem importava. E de repente ficou claro, para ele, que aquilo que o afligia e que não o largava, ficou claro que tudo aquilo estava indo embora de uma vez só, de dois lados, de dez lados, de todos os lados. Tinha pena deles, era preciso cuidar para que não sentissem dor. Poupá-los e poupar a si mesmo daqueles sofrimentos. “Como é bom e como é simples”, pensou. “E a dor?”, perguntou para si. “Para onde ela foi? Ei, onde está você, dor?” Ficou atento. “Sim, aí está ela. Mas o que é que tem? Deixe a dor.” “E a morte? Onde está ela?” Procurou seu anterior e costumeiro medo da morte e não o encontrou. Onde está? Que morte? Não havia medo nenhum, por isso também não havia morte. Em lugar de morte, havia luz. — Então, aí está! — de repente disse em voz alta. — Que alegria! Para ele, tudo aquilo se passou num instante, e o sentido desse instante já não se modificava. Para as pessoas presentes, porém, sua agonia ainda se prolongou por duas horas. No seu peito, algo borbulhava; seu corpo descarnado se sacudia. Depois, os roncos e as borbulhas foram ficando cada vez mais raros. — Terminou! — disse alguém, acima dele. Ele ouviu aquelas palavras e as repetiu, no seu íntimo. “A morte terminou”, falou consigo. “Ela não existe mais.” Puxou o ar para dentro de si, parou no meio da respiração, esticou-se e morreu. A morte de Ivan Ilitch