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<p>JEAN-CLAUDE KAUFMANN A ENTREVISTA COMPREENSIVA UM GUIA PARA PESQUISA DE CAMPO EDITORA Edufal VOZES Editora da Universidade Federal de Alagoas</p><p>Apesar das repetidas tenta- tivas, a entrevista parece resistir à formalização na prática, ela se mantém funda- mentada num conhecimento artesanal, numa arte discreta de bricolagem. Quando um método é exposto, dá-se sob a forma de um modelo abstrato, belo, mas dificilmente aplicável. Enquanto OS procedimentos realmente utilizados se escon- dem na sombra, envergonha- dos, como se fossem culpados por não se sentirem muito apresentáveis. A démarche aqui proposta resolve a dificuldade ao tratar, não da entrevista em geral, mas de uma metodologia particular: a entrevista compreensiva. Trata- -se de um método ao mesmo tempo pouco divulgado enquan- to tal e muito próximo de outros métodos em numerosos as- pectos [...]: ele se vale primeira- mente das diversas técnicas de pesquisa qualitativa e empírica, sobretudo as técnicas etno-</p><p>A ENTREVISTA COMPREENSIVA</p><p>ABDR ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE DIREITOS o DIREITO Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Kaufmann, Jean-Claude, 1948- A entrevista compreensiva : um guia para pesquisa de campo / Jean-Claude Kaufmann ; tradução de Thiago de Abreu e Lima Florencio ; revisão técnica de Bruno César Cavalcanti. - RJ : Vozes ; Maceió, AL : Edufal, 2013. Título original : L'Entretien compréhensif Bibliografia ISBN 978-85-326-4637-8 1. Entrevistas 2. Entrevistas em sociologia 3. Pesquisa - Metodologia 4. Sociologia compreensiva I. Título. 13.08458 CDD-306.072 Índices para catálogo sistemático: 1. Entrevista compreensiva : Sociologia 306.072</p><p>JEAN-CLAUDE KAUFMANN A ENTREVISTA COMPREENSIVA UM GUIA PARA PESQUISA DE CAMPO Tradução de Thiago de Abreu e Lima Florencio Revisão técnica de Bruno César Cavalcanti EDITORA Edufal VOZES Editora da Universidade Federal de Alagoas Petrópolis</p><p>Armand Colin, 2011. edição Título original francês: L'Entretien EDITORA Edufal Editora da Universidade Federal de Alagoas VOZES Direitos de publicação em língua Em coedição com: Edufal - Editora da Universidade portuguesa: 2013, Editora Vozes Ltda. Federal de Alagoas Rua Frei Luís, 100 Av. Lourival Melo Mota, s/n. Campus 25689-900 Petrópolis, RJ A.C. 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Começar o trabalho: rapidez, flexibilidade, empatia, 59 1 Entrar no tema, 59 2 Instrumentos evolutivos, 68 3 A condução das entrevistas, 78 III. O estatuto do material, 97 1 Por que as pessoas falam, 97 2 Verdade e mentira, 103</p><p>IV.A fabricação da teoria, 117 1 A investigação do material, 117 2 A fricção dos conceitos, 131 3 Algumas ferramentas, 150 V. Terminar o trabalho, 161 1 O calendário, 161 2 A estética do objeto, 166 3 A escrita, 173 Conclusão, 183 Referências, 185 Índice onomástico, 195 Índice geral, 199</p><p>Apresentação A entrevista compreensiva ou o elogio da pequena teoria Howard S. Becker, de quem se conhece a prosa espi- rituosa, afirmou certa vez ser a metodologia importante demais para ficar entregue aos metodólogos, sugerindo ao pesquisador social tomar para si a tarefa de traçar a rota de construção de um objeto, do levantamento e da análise de seus dados. Também sociólogo, Jean-Claude Kaufmann sabe que há mesmo uma dimensão flutuante da investigação que não costuma ser tratada nos manuais de ajuda metodológi- ca que abarrotam prateleiras em bibliotecas - ao menos de maneira realmente aproveitável na experiência única de cada trabalho de campo -, e em A entrevista compreensiva ele assu- me justamente as consequências de concordarmos com o au- tor de Outsiders, ou seja, de que, especialmente em pesquisa qualitativa existe uma dimensão improvisada, intransferível e em grande parte autoconstruída. Isso torna a prática científi- ca um processo de verdadeira bricolagem permanente, uma construção in situ no ato mesmo de sua efetivação. 7</p><p>Em boa hora ocorre entre nós o lançamento deste li- vro de Jean-Claude Kaufmann que, de saída, tem o mérito de proporcionar uma leitura agradável, mesmo tratando de questões de metodologia de pesquisa, usualmente Nele, o seu autor advoga o ponto de vista de que a entrevis- ta compreensiva não é apenas uma técnica, mas um método de trabalho diferenciado e com propósitos claros, visando à produção teórica a partir dos dados. A reivindicação de um procedimento de maior aproximação entre a produção da teoria e a pesquisa empírica é o núcleo central argumentado nesta obra, para além de toda a sua enumeração de dicas úteis e práticas e suas sugestões diretas para a ação em pesquisa qualitativa de campo. Ou seja, ele realiza de um modo muito feliz a façanha de ser, a um só tempo, um guia prático para a pesquisa de campo e um excelente suporte ao ensino de me- todologia qualitativa em Ciências Sociais Kaufmann coloca a entrevista num patamar da maior im- portância para a pesquisa social e ataca mitos insistentemente recorrentes, como a pretensa neutralidade do entrevistador como ideal científico; desconstrói hierarquias nas etapas de uma pesquisa e destaca a relação dialógica com o entrevis- tado e a interação global do cientista com o universo nativo como algo a se considerar para termos melhores chances na obtenção de respostas não superficiais dos pesquisados. O encontro no campo instiga à reflexão sobre si no pesquisado, provoca um esboço reflexivo e autoexplicativo e, assim, pode nos revelar a teoria nativa. Seu livro ainda dispara farpas na direção de procedimentos concorrentes em pesquisa social que não levam devidamente em conta esse construtivismo da 8</p><p>produção de dados, como determinadas "análises de conteú- do" que, segundo o autor, muitas vezes colhem na superfície da interação imediata aquilo que podem acabar interpretando como sendo elementos profundos do mundo investigado. Com linguagem acessível ao não especialista, o livro dis- cute questões relevantes para o tratamento metodológico na pesquisa qualitativa, e seu estilo absolutamente claro torna desnecessário que se acrescentem digressões explicativas so- bre as várias partes desta obra. O autor já o faz com grande competência e na medida certa. Mas há em A entrevista com- preensiva outros méritos a destacar. Um deles é o esforço na direção de recuperarmos o pra- zer da descoberta e da inovação analítica em cada investiga- ção, em cada objeto específico a que nos dediquemos para buscar uma explicação teórica a partir dos dados de campo. O poder da teoria foi ofuscado pelo utilitarismo da aplicação da ciência de resultados, de uma produção "industrial" de pesquisas sem desenvolvimento teórico e inovação analítica sobre novos objetos, temas e problemas. Portanto, em con- traste com o que ocorre em publicações metodológicas, este aqui não é um livro de elogio à técnica, mas de promoção da teoria processada na ambiência concreta da pesquisa. Assim sendo, é também um elogio do campo empírico. Recorrendo a outro sociólogo norte-americano, Wright Mills, Kaufmann chama a atenção para a imagem do "artesão intelectual", que lhe serve como ao processo de tecnização e especia- lização crescente da rotina científica que ele vê ocorrer hoje em dia, ou seja, uma burocratização resultante daquilo que 9</p><p>denuncia como sendo a industrialização da Sociologia, e em cujas consequências encontram-se o empobrecimento do deba- te teórico e da imaginação sociológica. A especialização excessiva da Sociologia foi criticada por Norbert Elias, a quem Kaufmann recorre para corroborar seu diagnóstico pessimista acerca do empobrecimento teórico ocasionado por essa De sua parte, o artesão constrói suas ferramentas e o modo de empregá-las, e é assim que Kaufmann inicia a sua explana- ção, revendo criticamente o modo habitual de tratamento me- todológico, aderindo a uma perspectiva dinâmica e construti- vista. Inspirado diretamente em Norbert Elias, ele se remete a uma "sociologia dos processos que se mantenha firmemente ligada à invenção teórica", em substituição ao formalismo e ao tecnicismo. Por isso, inverter o modo de construir um objeto de pesquisa, estreitar os horizontes entre entrevistador e en- trevistado, negando a impessoalidade na situação da entrevista, são outras sugestões do autor apresentadas no livro. Ao mesmo tempo, há que se buscar sempre honrar o méto- do, seguir suas diretrizes. Por isso, a dimensão artesanal de uma investigação e o reconhecimento das implicações de quem pes- quisa com quem é pesquisado não deve levar ao abandono do controle sobre o processo inteiro por parte do pesquisador, nem tampouco negar a importância da reflexão prévia sobre o ato de pesquisar. A ideia do autor é a de valorizar o procedimento aten- to do cientista quanto ao controle das ações e do modo de sua participação ativa no campo, mesmo que isso o leve a redefinir 1. Cf. ELIAS, N. Introdução à Sociologia. Lisboa: Ed. 70, 1980 [1970] [Trad. de Maria Luísa R. Ferreira]. 10</p><p>certos procedimentos usualmente recomendados, como o de negar-se a uma aderência empática com o mundo dos pesqui- sados. Esclarece que esse procedimento não impede de se to- mar a compreensão como algo compatível com a ideia de rigor, tão cara, esta última, à razão de ser de qualquer procedimento científico que mereça assim ser denominado. Segundo ele, a entrevista compreensiva é alvo de críticas comuns dirigidas às pesquisas qualitativas de um modo geral, e que preponderante- mente voltam-se à questão da validação de seus resultados. Tra- ta-se de um limite difícil de ser suplantado se não se considerar a especificidade desse tipo de investigação, deixando-se de lhe exigir aquilo que mais apropriadamente atende a procedimentos quantitativos: "é essencial ter em mente que os métodos quali- tativos têm mais vocação para compreender, detectar compor- tamentos, processos ou modelos teóricos do que para descrever sistematicamente, medir ou comparar". Evidentemente, por conta de suas prioridades didáticas para com o livro, Kaufmann não problematiza, como pode- ria, a imensa variedade de métodos denominados qualitativos que, no fundo, não nos autoriza a generalizar essa aproxima- ção instantânea com a noção de compreensão. Uma discussão sobre esse aspecto é levada a termo por Charmillot e Dayer, inclusive mencionando Ele encara a tarefa de discutir o compromisso com a cientificidade de seu projeto metodológico afastando-se de possíveis entendimentos sobre 2. Cf. CHARMILLOT, M. & DAYER, C. "Démarche compréhensive et méthodes qualitatives: clarifications épistémologiques". Recherches Qualita- tives Hors Série, n. 3, 2007, p. 126-139 [Atas do Colloque Bilan et Retros- pectives de la Recherche Qualitative. Béziers, jun./2006]. 11</p><p>a "compreensão" dos mundos que, de início, podem nos re- em termos de uma postura emergir de benevolente aceitação humanos, como, a propósito, numa situação lacionamentos Há critérios de verdade a perseguir, armadilhas de se entrevista. evitar e objetivos científicos a se alcançar com o Ele a segue aqui uma de suas referências intelectuais centrais, Pierre Bourdieu, para quem é necessário esquecer a distinção de Dilthey entre ciências explicativas e compreensivas e levar adiante o intento de Max Weber de revelar a complementari- dade entre compreender/interpretar e demonstrar/explicar.C tema é tratado por Bourdieu em A miséria do mundo e em ou- tros escritos sendo recorrente entre estudiosos de Weber, como Kaesler e Ringer4. 3. Cf. BOURDIEU, P. "Compreender" A miséria do mundo. 8. ed. Petrópo- lis: Vozes, 2011 [1993], p. 693-713 [Trad. de Mateus S.S. Azevedo et al.]. Uma explanação reativa ao dualismo de Dilthey já aparece em BOUR- DIEU, P.; CHAMBOREDON, J.-C. & PASSERON, J.-C. Ofício de so- ciólogo Metodologia da pesquisa na Sociologia. Vozes, 2004 [1968] [Trad. de Guilherme J.F. Teixeira]. Cf. esp. a Introdução, na qual os autores estabelecem uma comparação inesperada: "Epistemologias tão opostas em suas afirmações patentes quanto o dualismo de Dilthey - que só consegue apresentar a especificidade do método das Ciências do Ho- mem opondo-o a uma imagem das Ciências da Natureza suscitada pela mera preocupação de estabelecer distinções - e o positivismo, que se esfor- dessa ça por imitar uma imagem da Ciência Natural fabricada pela necessidade cias imitação, têm em comum o fato de ignorar a filosofia exata das Exatas" (p. 16). 4. Fayard, Cf. 1996 D. Max Weber: sa vie, son oeuvre, son influence. Paris: F. A metodologia [1995] [Trad. de Philippe Fritsch, do alemão]. RINGER, São Paulo: Edusp, de Max Weber unificação das Ciências Culturais Sociais. Introdução e o cap. 2004 4: "Interpretação [1997] [Trad. e de explicação". Gilson C.C. de Sousa]. e Cf. esp. a 12</p><p>Sem advogar nenhuma nova forma de ortodoxia ou de exclusividade para sua proposta, Kaufmann afirma simples- mente abrir a sua caixa de ferramentas e revelar como as uti- liza, referindo-se constantemente a temas por ele estudados. Ao longo dos cinco capítulos, utiliza exemplos retirados de duas de suas pesquisas empíricas para percorrer todos os mo- mentos de um trabalho científico, desde a escolha do tema até a redação final do texto: a primeira é A trama conjugal: aná- lise do casal por sua roupa suja, um estudo da vida a dois a partir da lavagem das roupas, e a segunda é Corpos de mulheres, olhares de homens sociologia dos seios desnudos, que aborda a prática do topless na praia. Ele pretende, nesses e em outros de seus trabalhos, reestabelecer o elo entre o debate teórico e aquele propriamente metodológico, separação levada a efeito pelo utilitarismo excessivo do emprego da ciência, que não apenas impõe uma hierarquia de temas considerados mais válidos ou dignos, mas, pior, desestimula a curiosidade científica para novos objetos e, assim, a renovação analítica do cotidiano. É agora o caso, portanto, de se fazer da metodologia um instru- mento mais orgânico a serviço da teoria explicativa de cada pequeno mundo de relações humanas singulares, ligadas a grupos igualmente específicos e que expressam a diversidade social e cultural de nosso tempo. Daí o porquê da busca da "pe- quena teoria", isto é, da teoria particular a cada um desses con- textos, com suas formas de sociabilidade, suas rotinas e rupturas. Há pesquisas que visam comprovar hipóteses e teorias já formuladas, mas teorias podem, em muitos casos, dizer res- peito a exclusivos, derivando da situação de cam- po e apresentando-se incorporadas nas falas, nas expressões 13</p><p>repetidas pelos atores sociais para explicarem suas práticas, e demonstradas em diversas atitudes dos entrevistados. Trata-se de uma boa tarefa para ocupar-se o pesquisador de campo, e não apenas aí encontrar o referente empírico do que fora esta- belecido como uma hipótese de caráter global que na situação de campo encontrasse um de seus correspondentes locais. O propósito de Kaufmann é que o trabalho de campo deixe de ser abordado majoritariamente como uma instância de verificação da teoria para se tornar o locus de seu nascedouro, o ponto de partida da problematização teórica sugerida pelos fatos. Kaufmann demonstra, com seus exemplos próprios, essas teorias nativas que explicam as ações dos sujeitos que ele acompanha à moda, diga-se, dos antropólogos em cam- po. Ele não resume sua proposta de método de entrevista compreensiva apenas ao momento em que um roteiro de perguntas é aplicado. Mais do que isso, aponta a boa ciabilidade entre pesquisador e pesquisado como condição incontornável da ambiência mais ou menos favorável em que ocorre uma entrevista, de fato, bem-sucedida. Trata- se, na verdade, de uma longa entrevista, com duração va- riável, com encontros repetidos com os informantes, sem- pre que possível ou necessário. Ele advoga que, em que pesem a necessidade e a utilidade de um roteiro, a boa per- gunta, por exemplo, não costuma ser aquela que compõe o esquema elaborado previamente. Na maioria das vezes, surge como resultado da conquista de uma interação efi- caz, que é a um só tempo existencial, social, cultural e po- lítica. Lembrando-nos, a propósito, o antropólogo Althabe, que se referiu a uma "antropologia implicada", 14</p><p>querendo sinalizar essa dimensão construtivista da obten- ção de dados no campo, quando não apenas a boa entrevista deve ser considerada em si, mas o próprio evento da entre- vista. As condições gerais desse encontro é algo decisivo na produção da O fato é que a razoabilidade das ponderações de Kaufmann o distancia de atitudes novida- deiras em matéria de métodos e técnicas para a pesquisa de campo. É sobretudo ao bom-senso que sua orientação faz apelo. Em seus exemplos pessoais veem-se soluções que parecem comuns à pesquisa satisfatoriamente conduzida no campo, como é, por exemplo, a prerrogativa de uma boa etnografia, sem que para isso ocorra a necessidade de nominar essas soluções com novas técnicas ou ferramen- tas, como o faz, a propósito, Kusenbach, discutindo o seu go-along como uma ferramenta de pesquisa. Segundo ela, o go-along se distinguiria de métodos etnográficos tradicio- nais, como observação participante e entrevista, devido à sua capacidade para dar conta de aspectos observados em momentos diferenciados da rotina dos pesquisados, como percepção do meio ambiente, práticas espaciais, biografias, arquitetura social e domínio social. Na verdade, se resume a uma disposição em acompanhar os sujeitos de pesquisa em suas rotinas diárias, em seus passeios solitá- rios ou acompanhados, nos quais o pesquisador se dispõe a 5. Cf. esp. ALTHABE, G. Une biographie entre ailleurs et ici. Paris: L'Harmattan, 2005 [Entrevista com Remi Hess]. 6. Cf. KUSENBACH, M. "Street Phenomenology The go-along as eth- nographic research tool". Ethnography, vol. 4 (3), 2003, p. 455-485. 15</p><p>São nas situações de maior intensidade, mas notada- de maior naturalidade, na interação em campo, que mente revelam - afirma Kaufmann - as camadas mais profun- das se de Ele acredita que devemos dar mais atenção à reflexividade de indivíduos e grupos que, instigados pelo entrevistador, empenham-se em pensar e processar expli- cações sobre si, em construir versões de suas vidas para si num movimento de autoconhecimento que também é uma espécie de autoconstrução. Por isso, ele vê com bons olhos as possibilidades da internet como veículo para abordagens em pesquisa social, pois a elaboração de perfis na rede mundial de computadores se lhe apresenta como uma evidência des- se caráter reflexivo dos atores sociais. Para demonstrar esse seu propósito de optar por abordagens centradas inicialmen- te no entendimento do "ponto de vista nativo", Kaufmann se remete com frequência à antropologia de Clifford Geertz, e especialmente à Grounded Theory, ou Teoria Fundamenta- da, de Barney Glaser e Anselm Strauss, que sistematizaram esse procedimento na tradição da sociologia norte-americana de Chicago. A remissão a esses dois últimos autores, no en- tanto, é mais retórica, ou nominativa, do que conteudística. Ele admite se inspirar no princípio geral comum à proposta de Glaser e Strauss e não exatamente na aplicação efetiva da metodologia praticada por eles, estando, no bem mais próximo fissionais do procedimento etnográfico dos antropólogos caso, outro e da indução analítica da sociologia praticada pro- Becker autor da tradição da Escola de Chicago, Howard por dicada pelos (menos formalista do que a codificação como dos dados in- autores da Grounded Theory) e, desse modo, até 16</p><p>mesmo sugerindo ultrapassar a proposta de Glaser e Strauss enquanto Assim, há mais do que apenas uma aproximação me- todológica das referências norte-americanas de Kaufmann. Ele está interessado no indivíduo, e daí por que se volta aos interacionistas simbólicos, operando em pequena escala na pesquisa e análise sociológicas. Em duas obras teóricas de grande fôlego que escreveu, Ego: pour une sociologie de l'individu e L'invention de Soi: une théorie de l'identité, ele expande esses vínculos teóricos que têm em comum a mesma remissão de fundo ao pensamento alemão e ao papel do indivíduo, seja através de Weber ou de Elias, seja ainda na forma como a sociologia compreensiva aporta em Chicago por intermédio de seus pioneiros formados na Alemanha. O envolvimento de Kaufmann com uma sociologia do indivíduo é o que mais conta nessas aproximações, que se poderiam recuar no tempo até nomes como George Herbert Mead ou mesmo o filósofo John Dewey8. Este último tendo, inclusive, atraído a atenção 7. A Grounded Theory se tornou conhecida após a obra fundadora The Disco- very of Grounded Theory: strategies for qualitative research, de Barney Glaser e Anselm L. Strauss, lançada em 1967, cujas ideias foram desenvolvidas pelos autores e por seus seguidores em várias outras publicações, até o pre- sente. Uma exposição contemporânea, esquemática e ampla dessa abor- dagem está em CHARMAZ, K. A construção da Teoria Fundamentada Guia prático para análise qualitativa. Porto Alegre: Artmed, 2009 [Trad. de Joice E. Costa]. Já as íntimas relações entre etnografia e indução analítica apare- cem em BECKER, H.S. Segredos e truques da pesquisa. Rio de Janeiro: Zahar 2007, esp. p. 244-265 [Trad. de Maria L.X.A. Borges]. 8. Cf. KAUFMANN, J.-C. Ego: pour une sociologie de l'individu. Paris: Nathan/Vuef, 2001. L'invention de Soi: une théorie de l'identité. Paris: Ar- mand Colin/Serjer, 2004. É a George Herbert Mead, colega de Dewey em 17</p><p>da Escola Francesa de Sociologia desde seu fundador Émile Assim como Dewey partiu do conceito de Habit, Kaufmann, através da problematização que estabelece sobre hábitos e habitus, referencia, seguindo notadamente o cami- nho aberto por Elias e Bourdieu, o que chamou de ma- terial social da construção Acompanhando de perto Norbert Elias, para quem a dicotomia indivíduo/socie- dade não passa de uma ficção que representou um atraso no desenvolvimento da Sociologia, ele cita-o para lembrar que "o homem é um processo", e por isso traz a sociedade de uma época consigo, dentro de si e entre ele e seus pares. Por esta última razão, Kaufmann aproxima-se da noção geertziana de cultura, de significados partilhados socialmente, de sistemas em último caso. Por fim, com A entrevista compreensiva o autor reafirma a importância da pesquisa social e da Sociologia como discipli- da L'invention de Soi, justamente para afirmar as determinações seu Chicago, que Kaufmann diretamente arrola no primeiro capítulo de noção de "si mesmo", visto não como uma substância, sociológicas social processo de interações internas diretamente tributárias de mas sua ambiência como um e, por último, histórica. sociedade 9. Esses vínculos são discutidos em MOREIRA, C.O.F. Entre de Durkheim com 2002. autor atenta não somente para essa aproximação Bragança Paulista: Edusf, Um estudo da Filosofia da Educação, de John Dewey. indivíduo e curso ministrado o pragmatismo de Dewey, revelado em para o fato de no ano universitário 1913-1914, mas chama seu ciais, que Dewey "parece ter compartilhado a atenção XX, a que visão estavam de se 'o constituindo no final do século XIX com e início as Ciências do século So- 10. procedimento Este dos que meio social cria as atitudes mental e emocional do é o título do sétimo capítulo (p. 124). de Ego: pour une sociologie de l'individu. 18</p><p>na. Não para enaltecer sua função social ou científica, mas para promover o prazer investigativo e reafirmar o primado da tradição racionalista que representa, e que preconiza a an- terioridade do social sobre o individual. Mesmo que, para re- conhecê-lo, dê aos sujeitos que falam a da sociedade, quando pensam expressar unicamente a si mesmos. Bruno César Cavalcanti Antropólogo, professor do Instituto de Ciências Sociais da Universidade Federal de Alagoas (ICS/Ufal). 19</p><p>Prefácio à terceira edição Este livro é um objeto híbrido. Elaborado principalmen- te a partir de minha própria maneira de proceder (eu abro minha caixa de ferramentas para explicar como as utilizo), ele alcança uma generalização que leva a propor uma metodolo- gia de vocação universal, aureolada de um título: A entrevista compreensiva. Em oposição à instrução dada na presente obra (fornecer rapidamente um título), devo também admitir que a escolha deste título tardou a chegar e me trouxe muitas dificul- dades. Pois eu não estava certo de que tamanha generalização, a partir de uma experiência pessoal, pudesse ser reconhecida como legítima. Na primeira edição, eu estava bastante ansioso para saber quais seriam as reações de meus colegas. Especial- mente porque a maioria das técnicas propostas se contrapõe aos princípios habituais ensinados nos livros de método de en- trevista e não haviam ainda sido enunciadas publicamente. Em muitos pontos eu dizia até mesmo o contrário do que estava escrito nos manuais (ainda hoje) mais difundidos. Fiquei mais tranquilo, mas muito surpreso, além de um pouco desapontado. Fora os elogios usuais (que devem ser sempre decodificados para saber se, nas entrelinhas, não dei- xam escapar algumas críticas), até bastante abundantes e sim-</p><p>páticos, a maioria das cartas de agradecimento terminava de forma menos agradável, como por exemplo: "mas é um livro que não me ensina muito, pois já trabalho dessa forma há muito tempo". Muitas vezes, de fato, os pesquisadores não procedem da forma que é ensinada nos cursos de metodologia, inexoravel- mente dominados por uma pedagogia formalista própria des- se tipo de ensino. Derivação lógica, quando constatamos que os pesquisadores raramente expõem as tentativas e os erros de seu procedimento, temendo que sejam vistos como conde- náveis bricolagens. Jack Katz (2001b) denuncia esse silêncio a respeito da "indução analítica", coração do procedimento qualitativo, massivamente utilizado, mas de forma clandesti- na. Numerosos pesquisadores praticam-no sem confessá-lo e (como o Sr. Jourdain em relação à prosa) outros sem mesmo sabê-lo. Parece-me ainda mais urgente dizer como a pesquisa se desenvolve de fato no campo. Esta terceira edição me possibilitou atualizar novamente determinados trechos, principalmente acrescentar um pará- grafo sobre as utilizações da internet. O surgimento da web abriu novas perspectivas sobre a forma de se conduzir uma entrevista. Em breve, novas obras serão necessárias sobre esse tema. Mas, enquanto isso, é possível notar que uma parte dos usos da internet pode ser considerada como uma sim- ples adaptação da situação de entrevista a um novo contexto. Os diálogos a distância por intermédio de uma webcam, por exemplo. Mas também, de forma mais abrangente, pergun- tas/respostas formuladas no teclado (chat, e-mail etc.). Para 22</p><p>todas essas novas formas de troca conversacional, o funda- mental do que é dito neste manual permanece aplicável. Não há dúvida de que o gravador para conversas face a face (o velho gravador analógico ou as maravilhas da tecnologia nu- mérica) irá diminuir no futuro próximo; trata-se, no entan- to, apenas de um aspecto técnico, que não transforma muito profundamente o caso. Além disso, notemos que ele resiste ao tempo! Como o livro de papel para a leitura. Ele está tão inserido no universo acadêmico da entrevista que temos difi- culdade em nos imaginar separados dele. Portanto, com ou sem gravador, é chegada a hora de nos lançarmos na entrevista. 23</p><p>Introdução Apesar das repetidas tentativas, a entrevista parece resis- tir à formalização metodológica: na prática, ela se mantém fundamentada num conhecimento artesanal, numa arte dis- creta da bricolagem. Quando um método é exposto, dá-se sob a forma de um modelo abstrato, belo, mas dificilmente aplicável. Enquanto os procedimentos realmente utilizados se escondem na sombra, envergonhados, como se fossem cul- pados por não se sentirem muito apresentáveis. A entrevista é, antes, um método econômico e de fácil acesso. Basta ter um pequeno gravador, um pouco de audá- cia para bater às portas, amarrar a conversa em torno de um grupo de questões, saber em seguida extrair do "material" re- colhido os elementos de informação e de ilustração das ideias a serem desenvolvidas e você já está quase lá: os engenho- SOS que confiam em seu bom-senso podem chegar a amarrar uma pesquisa que tenha um aspecto razoavelmente honesto. Os problemas se colocam quando eles desejam recomeçar ou aperfeiçoar: o que de imediato parecia fácil resiste ao aperfei- Mistério ainda mais angustiante quando a sombra do examinador da banca de mestrado ou de doutorado sur- ge nos pesadelos: não são justamente essas as perguntas que</p><p>ele adora colocar? "Sob quais critérios foram construídos sua amostra? Ela é representativa? Como provar que o que você está dizendo é verdadeiro?" Perguntas que nem sempre são as mais pertinentes, mas que são compreensíveis partindo de um examinador. Pois seu papel é o de ser garantia da serie- dade do trabalho. Ora, a entrevista é um método que parece frouxo, de acesso muito fácil, suspeito a priori. O pesquisador-aprendiz abre então os manuais para aper- feiçoar suas ferramentas. E ele descobre que o mínimo sor- riso do entrevistador influencia as falas do entrevistado: tudo deve ser tão estudado e controlado na condução da entrevista que se torna delicado falar a respeito. A análise de conteúdo deve responder a regras tão exigentes que ele não vê como aplicá-las. Impressionado, ele perde a confiança em si. Cons- ciente da distância que o separa do modelo, ele é geralmente constrangido a adotar uma dupla linguagem: ele dissimula os procedimentos que lhe permitiram avançar em sua pesquisa e redige um belo capítulo de metodologia com muitas cita- ções, para se proteger das críticas. Essa situação não é saudável. Ela extrai sua origem de um fato essencial, que não foi compreendido: não existe um método único de entrevista, mas muitos, tão diversos entre si que os instrumentos que têm definições contraditórias. Os ensaios de gene- ralização, por mais competentes que sejam, têm como efeito produzir confusão ao atenuar suas contradições. Eis por que o aperfeiçoamento do método é tão difícil. 26</p><p>A démarche aqui proposta resolve a dificuldade ao tratar, não da entrevista em geral, mas de uma metodologia parti- cular: a entrevista compreensiva. Trata-se de um método ao mesmo tempo pouco divulgado enquanto tal e muito pró- ximo de outros métodos em numerosos aspectos: grande parte é tomada emprestada de escolas vizinhas. Ele recebe emprestado primeiramente as diversas técnicas de pesquisa qualitativa e empírica, sobretudo as técnicas etnológicas de trabalho com No entanto, e reside aí a origi- nalidade deste livro, os dados qualitativos recolhidos in situ estão concentrados na palavra recolhida no gravador, vindo a se tornar o elemento central do dispositivo. Portanto, ele toma emprestado também da técnica habitual da entrevista semidiretiva. No entanto, os etnólogos ficarão desconcerta- dos diante deste método que permite, por exemplo, analisar as práticas utilizando a palavra, e os especialistas da entrevista semidiretiva ficarão surpresos ao constatar o grande núme- ro de inversões de suas instruções habituais (sobre a neu- tralidade, a amostra etc.). Situada no cruzamento de diversas influências, a entrevista compreensiva constitui de fato um método muito específico, com uma forte coerência interna. A especificidade da entrevista compreensiva me trouxe um problema para a redação deste livro no que diz respeito às ilustrações. Teria sido possível utilizar trabalhos próximos como exemplos. Mas o risco de aproximação e de diluição seria tão grande que teria sido difícil fazer ressaltar a coerên- cia do conjunto. Pareceu-me preferível, portanto, reter ape- nas trabalhos que respondessem estritamente ao espírito do método. Ora, acontece que estes são meus, o que não é um 27</p><p>acaso. Pois os princípios da entrevista compreensiva não são nada além da formalização de um conhecimento pessoal advindo do trabalho de campo. Aproximo-me novamente dos etnólogos e de seus diários de campo, simplesmente com um grau de formalização e de generalização mais Alguns poderão pensar que, com isso, eu demonstre minha imodéstia. Na verdade, é o caráter híbrido deste livro (entre caixa de ferramentas pessoal e exposição metodológica mais geral) que explica essa forma particular. Os exemplos são tirados de duas pesquisas (sobre a aná- lise do casal a partir da lavagem de suas roupas e sobre a prá- tica do topless nas praias) que levaram à publicação de dois li- vros: A trama conjugal (La trame conjugale), e Corpos de mulheres, olhares de homens (Corps de femmes, regards d'hommes). Na se- quência do texto, eles serão indicados de forma simplificada: A trama (La trame) e Corpos (Corps). Estou em dívida com outras correntes metodológicas, assim como correntes teóricas: a entrevista compreensiva não se posiciona em qualquer esfera da paisagem intelectual. O qualificativo "compreensiva" já fornece uma indicação. É preciso aqui no sentido weberiano mais es- trito, isto é, quando a intropatia é apenas um instrumento visando uma explicação, e não um objetivo em si ou uma compreensão intuitiva que bastaria a si mesma. objetivo principal do método é a produção de teoria, de acordo com a exigência formulada por Norbert Elias: uma articulação tão fina quanto possível entre dados e hipóteses, uma formulação de hipóteses tão criativa quanto enraizada nos fatos. Mas uma 28</p><p>formulação que de "baixo", do campo, uma Grounded Theory, para retomar a expressão de Anselm Strauss, parti- cularmente apta para apreender os processos Essa rápida descrição da constelação teórica na qual se inscreve a entrevista compreensiva estaria incompleta se não fosse dito algo sobre a posição do pesquisador. O modelo ideal é defi- nido por Wright Mills: é o do "artesão intelectual" que cons- trói, ele próprio, sua teoria e seu método. Como veremos, entretanto, a "imaginação sociológica" deve obedecer a re- gras precisas. 1. A Grounded Theory tem sido traduzida em por Théorie Ancrée como em língua "Teoria fundada nos fatos" ou simplesmente "Teoria e termo portuguesa. Aqui é seguida a intenção do autor, que manteve o no original inglês em seu texto 29</p><p>I A inversão do modo de construção do objeto 1 debate metodológico 1.1 A industrialização da sociologia A sociologia nos dá a impressão de se tornar cada vez mais científica, o movimento de especialização da discipli- na provoca em determinados campos uma profissionalização surpreendente. O personagem do sociólogo especialista vem se instalando na sociedade: ele domina um setor muito espe- cífico e compartilha com um grupo de responsáveis políticos, administrativos ou econômicos, o saber e a linguagem técni- ca que permitem intervir de forma competente no mais alto nível. Uma simbiose tão efetiva que acaba fazendo com que ele perca sua alma de pesquisador ao longo da caminhada. Diante dessa escalada da engenharia social, o debate teórico perde sua vivacidade e seu interesse: torna-se compreensível, por exemplo, que seja difícil se apaixonar pelo conceito de anomia quando se abrem as portas do vasto campo de luta contra a exclusão. Estamos errados. Pois a apreensão dos mo-</p><p>vimentos sociais em sua longa duração depende dos avanços teóricos. Se a mundialização desemboca hoje em sociedades sem bússolas, incapazes de desenhar cenários do futuro, isso não deve ser compreendido fora de uma ligação com a inves- tigação imediatista e o abandono da teoria. Restituir as condi- ções de um trabalho teórico representa uma questão política, uma questão considerável. A investigação auxiliar da tomada de deci- são, se opõe à lógica de funcionamento da pesquisa de cação teórica, que é fundamentalmente uma desconstrução/ reconstrução que transforma nosso olhar sobre aquilo que nos cerca. A pesquisa modifica a arquitetura interna do enquanto a investigação especializada compila e escolhe os dados, cada vez mais numerosos, agora produzidos de modo industrial, característico da "sociedade da informação". Pro- duzir dados e divulgá-los com uma interpretação rudimentar parece, portanto, ter se tornado uma profissão próspera: observa- tórios, agências, institutos e centros de estudos têm se multi- plicado. Dois elementos importantes caracterizam esta nova profissão. O primeiro é o de responder aos critérios da pro- dução industrial: os homens são intercambiáveis, as técnicas impessoais, o funcionamento coletivo. O segundo é a pro- telação da sofisticação das ferramentas, sendo que a técnica vem se tornando o instrumento de objetivação científica em detrimento da teoria. Percebida como contrária à neutrali- dade necessária para a objetividade, a interpretação é reduzida ao mínimo. O essencial do esforço se concentra na técnica 2. L'expertise, no original [N.R.]. 32</p><p>metodológica até que se produza uma verdadeira obsessão do método pelo método, artificialmente separado da elabora- ção teórica. 1.2 O artesão intelectual Em 1959 Wright Mills já havia violentamente denunciado essa evolução que se observava nos Estados Unidos, e que ele considerava um retrocesso. Para esse autor, o metodologismo se inscreve num movimento de burocratização da sociedade, uma "racionalização sem razão" que reduz o impacto das ideias sobre o desenrolar das coisas. Norbert Elias (1991, p. 160) fala do "encolhimento da perspectiva sociológica" e do "enfraque- cimento da imaginação", devidos à especialização e à tecnici- dade. A dimensão social do debate sobre a relação entre teoria e método é, portanto, como se vê, imensa. Para combater o "empirismo abstrato" da produção de dados brutos e do formalismo metodológico, assim como a teoria livresca e. a especialização limitada, Wright Mills toma como modelos os grandes autores clássicos e exalta uma figu- ra que não lhe parece nem um pouco obsoleta: a do "artesão intelectual". O artesão intelectual é aquele que sabe dominar e personalizar os instrumentos que são o método e a teo- ria, num projeto concreto de pesquisa. Ele realiza uma obra (e isso não está restrito a alguns autores importantes) que se destaca por sua importância, que está acima do fluxo unifor- me de dados simples e de outras informações. A informação não é o saber; a acumulação de informação pode até mesmo matar o saber. O artesão intelectual resiste à laminação do saber através dos dados. Ele é ao mesmo tempo: homem de 33</p><p>campo, metodologista, teórico, e recusa deixar-se dominar tanto pelo trabalho de campo quanto pelo método ou mesmo pela teoria, quando esta é dogmática. Pois, deixar-se dominar desta forma é "estar impedido de trabalhar, isto é, de desco- brir uma nova engrenagem na máquina do mundo" (1967, p. 127). O lugar do artesão intelectual no futuro das ciências hu- manas e sociais merecia ser debatido. Seria, sem dúvida, mui- to prejudicial que ele fosse esmagado pela industrialização da produção de dados. Atualmente, essa postura permanece importante, pelo menos num contexto particular: aquele do estudante exercitando-se em seu primeiro trabalho de pes- quisa. De fato, solicita-se ao pesquisador fornecer a prova de que ele está apto a construir um objeto científico, de que ele é capaz de utilizar um determinado número de instrumentos para fazer progredir o conhecimento partindo de um campo de investigação. Isso tudo por meios próprios (com a aju- da única de seu orientador de pesquisa). A conservação da postura do artesão intelectual para os estudantes explica que o ensino dos clássicos permanece forte na universidade, en- quanto que sua utilização desaparece quase totalmente nos setores mais especializados ou reservados à produção de da- dos. Daí a fratura tantas vezes assinalada entre ensino e pro- fissão da sociologia, e as pressões que se desenvolvem para assimilar o saber teórico a um Aí também é preciso saber resistir. Numa postura particular, o aprendiz-pesquisador não pode ter acesso aos diferentes métodos disponíveis com uma 34</p><p>mesma alegria. O que lhe é exigido, principalmente, é que faça progredir o conhecimento, que aprenda a construir o objeto científico em todas as suas dimensões. A entrevista compreensiva é particularmente adaptada a essa perspectiva. 1.3 Debate metodológico e debate teórico A industrialização da produção de dados e a especializa- ção crescente enfraqueceram, de forma incontestável, o de- bate teórico: cada qual se interessa, antes de tudo, pelos seus próprios assuntos e evita, tanto a polêmica quanto o interesse por aquilo que o vizinho faz. A acumulação dos resultados se torna compartimentada e asséptica, perfeitamente positiva no mundo da pesquisa que, entretanto, denuncia oficialmente o positivismo. Ainda que enfraquecido e condenado à dis- crição, o debate consegue, apesar de tudo, se encaminhar e até mesmo progredir em direções novas, ressaltadas por Philippe Corcuff as articulações micro/macro, in- dividual/coletivo, subjetivo/objetivo. O autor reagrupa esses temas numa "galáxia construtivista", que se torna um ponto de referência essencial na paisagem intelectual. O paradoxo é que, ao mesmo tempo, outra corrente é trazida pelos novos tempos, desta vez no campo metodológi- CO (o formalismo impessoal da produção industrializada dos dados), e que está em descompasso absoluto com os temas em voga, pois se encontra particularmente mal-adaptada às uma análises das articulações e dos processos. Em outros termos, simulada: uns exibindo sua bandeira conceitual, outros com- vasta polêmica tem se desenvolvido, mas de forma dis- 35</p><p>batendo (na aparência) apenas em nome da seriedade do mé- todo. Ou ainda, em outros termos: o debate de método é hoje um debate teórico muitas vezes ignorado e que compromete o futuro da disciplina. Este livro se inscreve nesse debate e toma claramente uma posição: por uma sociologia dos processos que se mantenha firmemente ligada à invenção teórica. 1.4 A multiplicidade dos métodos A entrevista nas ciências humanas e sociais já tem uma longa história. Sua origem é múltipla: pesquisas sociais do sé- culo XX, trabalho de campo dos etnólogos, entrevistas clíni- cas da psicologia. E ela se inscreve hoje numa vasta nebulosa de práticas mais ou menos próximas dos critérios científicos: estudos de motivação, entrevistas jornalísticas etc. Nessa his- tória muito rica, dois elementos podem ser destacados. Pri- meiramente, uma tendência a se conferir mais importância ao informante. Substituiu-se progressivamente a entrevista administrada enquanto questionário por uma escuta cada vez mais atenta da pessoa que fala. A contribuição de Carl Rogers (1942) marcou uma etapa essencial nesse sentido; a entre- vista compreensiva se inscreve enquanto continuação dessa tendência. Em segundo lugar, e isso embaralha as cartas, a variedade de métodos é muito grande. Cada pesquisa produz uma construção particular do objeto científico e uma utiliza- ção adaptada dos instrumentos: a entrevista não deveria nun- ca ser empregada exatamente da mesma forma. Para as duas pesquisas que nos servirão de exemplo ao longo do livro, os protocolos foram bem diferentes. Na análise de casais a partir da forma como lidam com suas roupas sujas, apenas vinte resi- 36</p><p>dências foram interrogadas, ao longo de dois anos. Dei-me o tempo de mergulhar nas histórias pessoais, de suscitar as con- fidências, de revirar o passado: a riqueza do material resulta da densidade complexa da substância biográfica. Na pesquisa sobre a prática do topless, com a mesma duração de dois anos, trezentas pessoas foram interrogadas, muito mais brevemen- te, na maior parte das vezes não no universo íntimo, mas no universo lúdico da praia. O estilo é claramente mais vivo e incisivo, as questões às vezes abruptas ou evasivas: a riqueza do material reside na enorme diversidade das respostas sobre detalhes muito A multiplicidade dos métodos diz respeito também ao lugar ocupado pelas entrevistas no dispositivo de pesquisa. Não é incomum que elas se limitem a ser um instrumento complementar: pesquisas exploratórias que permitem lançar ou enquadrar uma investigação; entrevistas de ilustração para dar vida às demonstrações demasiadamente rígidas; entrevis- tas cruzadas com outros métodos, notadamente estatísticos (BATTAGLIOLA; BERTAUX-WIAME; FERRAND & IM- BERT, 1993). Quando elas são utilizadas enquanto princípio maior ou exclusivo, a diversidade dos métodos pode então ser reduzida a dois domínios principais: a compreensão ou a medida. No primeiro caso, a entrevista é um "suporte de exploração"; no segundo, uma "técnica de recolhimento de informação" (GOTMAN, 1985, p. 166). A entrevista enquan- to suporte de exploração é um instrumento flexível nas mãos de um pesquisador atraído pela riqueza do material que está descobrindo. A técnica do recolhimento de informação é, ao contrário, um modelo de virtude metodológica. Infelizmen- 37</p><p>te, o belo instrumento não faz senão devolver um material pobre do ponto de vista da compreensão dos processos. É como se a entrevista (e, mais amplamente, o trabalho quali- tativo) fosse tomada por uma misteriosa maldição: quando rica, ela é inconsistente e quando rígida, ela é pobre; parece impossível se chegar a um meio-termo. É assim que, desde a primeira Escola de Chicago, a de William Thomas e de Robert Park, o conflito dos métodos é embalado por um movimento pendular bem marcado que desenha as modas do uma batida na inconsistência, outra na rigidez. Depois de um período de orgia qualitativa, sente-se uma forte náusea de- vido à permissividade do ambiente, à liberdade concedida a cada um de fazer o que bem queria. Chega então a hora dos cursos de método, da disciplina (e do enfraquecimento da pro- dutividade das investigações). Em seguida, alguns pesquisado- res redescobrem a riqueza do trabalho de campo, e quebram os grilhões que prendem a descoberta etc. O tempo estava mais favorável à disciplina até a rever- são (ou o regresso às fontes etnológicas?) de Pierre Bour- dieu em A miséria do mundo. As críticas não tardaram a che- gar (MAYER, 1995). É verdade que as propostas do coautor mais ortodoxo de O ofício de sociólogo se assemelham forte- mente a uma incitação ao regresso em direção à inconsis- tência depois de um período de muita rigidez. Mas a crítica formalista é fácil: o importante não é que um pesquisador tenha coragem de proclamar sua convicção de que nós não sabemos escutar a riqueza contida nas entrevistas? O debate está hoje aberto. Ainda que o trabalho qualitativo contenha 38</p><p>evidentemente uma parte de "empirismo irredutível" (SCH- WARTZ, 1993), alguns princípios de rigor poderiam ser pos- tos em evidência. 1.5 A entrevista impessoal A formalização está muito na moda, concentrando-se na condução da entrevista e na análise de conteúdo. No que diz respeito à condução da entrevista, a caça é declarada a todas as influências do entrevistador sobre o entrevistado. A conse- quência é o esforço para que haja a menor presença possível do entrevistador, uma ausência enquanto pessoa com senti- mentos e opiniões. A retenção do entrevistador inicia uma atitude específica para o entrevistado, que também evita um envolvimento mais pleno: à não personalização das perguntas ecoa a não personalização das respostas./ O material asséptico coletado dessa forma é ideal para uma análise de conteúdo impessoal, onde o pesquisador ten- ta minimizar suas próprias interpretações possíveis. O todo pode ocupar um lugar privilegiado na produção industrial de dados, principalmente com o desenvolvimento informático da análise de conteúdo. O objetivo, destaca Anne Gotman, seria então o da condução de entrevistas e do tratamento pa- dronizado dos dados, para que seja "possível conduzir todas as outras entrevistas da mesma forma, a fim de reduzir ao mí- nimo as variações de uma entrevista para outra". Mas, conclui ela, "para ganhar em extensão, estamos condenados a perder em profundidade" (GOTMAN, 1985, p. 173). 39</p><p>A entrevista compreensiva se inscreve em uma dinâmica exatamente oposta: o entrevistador está ativamente envolvido nas questões, para provocar o envolvimento do Durante a análise de conteúdo, a interpretação do material não é evitada, mas, ao contrário, constitui o elemento 1.6 A análise de superfície A opinião de uma pessoa não é um bloco homogêneo. As opiniões a serem coletadas através de entrevistas sobre uma mesma pergunta são múltiplas, até mesmo contraditórias, e estruturadas de forma não aleatória em diferentes níveis de consciência. O método da entrevista padronizada busca um estrato bem preciso: as opiniões superficiais, que são as mais imediatamente disponíveis. Esse material, por si só, não é de- sinteressante. No entanto, é prejudicial acreditar que a aná- lise centra-se na profundidade, ou, pior, sobre a totalidade do "conteúdo". O termo "análise de conteúdo" é igualmente muito inadequado para os métodos que o utilizam, e cuja ca- racterística é de trabalhar sobre o mais explícito e aparente. A ideia de "conteúdo" em si é problemática, na medida em que sugere que esse conteúdo possa ser transferido integralmen- te em sua totalidade, como um saco que esvaziamos. Ora, é muito importante entender que isso é absolutamente impos- sível. Toda entrevista é de uma riqueza profunda e de uma complexidade infinita, cuja compreensão total estritamente impensável. Seja qual for a técnica, a análise de conteúdo é uma redução e uma interpretação do conteúdo e não uma restituição de sua integridade ou de sua verdade oculta. 40</p><p>Instrumentos adaptados para a industrialização da pro- dução de dados, as técnicas padronizadas (e informatizadas) de análise de conteúdo prometem, sem dúvida, desenvolver- -se. Mas elas são relevantes sobretudo para um certo tipo de mensagens, já codificadas e explícitas, tais quais os pequenos anúncios ou, em menor grau, a imprensa (CIBOIS, 1985), o discurso político, a propaganda. O texto dos horóscopos, por exemplo, é um material ideal: "curto e conciso e constituindo em si mesmo um sistema fechado, finito" (BARDIN, 1977, p. 72). As entrevistas são, ao contrário, não apenas de uma riqueza e complexidade dificilmente reduzíveis, mas têm a particularidade de dissimular o essencial nos desvios e no viés da conversa (JULLIEN, 1995), nas "falhas da palavra clara" (Poirier; Clapier-Valladon & Raybaut, P.), nas "digressões incompreensíveis" e nas "negações turvas" (BARDIN, 1977, p. 94). A análise padronizada do conteúdo recolhe apenas o mais óbvio (MICHELAT, 1975), quando não as "opiniões flutuantes", cuja única função é a de "manter a comunica- ção verbal" (PENEFF, 1990, p. 85), ou as formas lexicais e sintáticas, longe do conteúdo profundo, quando os métodos são de inspiração linguística. A multiplicação das técnicas de análise de conteúdo é muitas vezes "a projeção sobre a su- perfície dos textos da proliferação de teorias da produção do discurso" (LÉGER & FLORAND, 1985, p. 238). A técnica mais grosseira é a do "saco de temas", onde a contagem dos itens produz uma "laminação" e destrói "definitivamente a arquitetura cognitiva e afetiva de pessoas singulares" (BAR- DIN, 1977, p. 95). 41</p><p>O problema está principalmente na forma de apresenta- ção do método. Como enfatiza Michel Messu: "Se o recurso ao entendimento do sentido não pode ser, aos nossos olhos, condenável em si, propagar a ilusão de que se pode evitá- -lo torna-se condenável" (1991, p. 30). O outro aspecto con- denável das técnicas padronizadas de análise de conteúdo (e de forma mais ampla dos princípios da entrevista impessoal) é o de elas se apresentarem como os únicos métodos sérios disponíveis. Isso é duplamente abusivo. Primeiramente, pelo fato de que elas apresentam apenas uma forma particular de conduzir as entrevistas e de analisar o material, adaptadas apenas para determinados contextos e relativamente pouco empregadas, não podendo, portanto, aspirar à hegemonia. Em segundo lugar, porque a prova da sua eficácia, mesmo nessas áreas limitadas, ainda não é realmente comprovada. 2 Outra forma de produzir a teoria 2.1 O que é "construir objeto"? "Construir o objeto" tornou-se uma expressão tão co- mum em sociologia que, muitas vezes, tem sido utilizada sem haver sequer uma compreensão clara de seu sentido. A expres- são vem, de fato, das ciências exatas e da teoria clássica do co- nhecimento: o objeto é aquilo que consegue se separar do co- nhecimento comum e da percepção subjetiva do sujeito graças a procedimentos científicos de objetivação. Em seus esforços para fundamentar e fazer reconhecer a sociologia enquanto ciência, Durkheim (1947) foi levado a desenvolver for- temente a ideia da separação entre a "coisificação" do social e 42</p><p>o mundo subjetivo. Desde então, a obsessão com a "quebra epistemológica" e com a objetivação não abandonou a socio- logia, tanto que a disciplina não se via capaz de atingir uma objetivação de qualidade comparável obtida nas ciências exatas. Foi assim que os conceitos de objeto sociológico e de construção do objeto tornaram-se centrais e de uso banalizado. 2.2 Teoria e técnica Com quais instrumentos opera-se a separação entre o senso comum e as percepções subjetivas? A respeito desta pergunta confrontam-se duas concepções da sociologia. Para uns, o instrumento prioritário, se não exclusivo, é o da téc- nica metodológica, do rigor formal, especialmente sob a for- ma ideal da modelização matemática. Para outros, a técnica permanece subordinada ao elemento prioritário do desen- volvimento científico: a hipótese, o conceito, a teoria. Nor- bert Elias considera, assim, que o fator decisivo da tomada de distância com o conhecimento espontâneo está na "maneira como colocar os problemas e construir as teorias" (1993, p. 33). Tomar a técnica como "critério decisivo da cientificidade não toca no cerne do problema" (1991, p. 65), e constitui de fato uma prova de fraqueza da sociologia que, sofrendo a pres- são ideológica de modelos mais bem-estabelecidos, procura assim proteger-se. A técnica por si só não permite construir a distância necessária para a Ela se liga apenas à aparência, mas o objeto permanece plano. É a teoria que lhe dá volume. Fica entendido que, para não derivar rumo à especulação abstrata, ela deve proceder por hipóteses e pro- cedimentos de verificação os mais rigorosos possíveis. 43</p><p>As concepções formalistas e técnicas, "mais cientistas do que científicas", "quase sempre carecem do essencial", se fi- xando aos "sinais exteriores do rigor" (BOURDIEU, 1993, p. 903). A construção do objeto segue, nesse modelo, uma evolução bem codificada: a elaboração de uma hipótese (ela mesma fundada em uma teoria já consolidada), seguida da definição de um procedimento de verificação, resultando ge- ralmente em uma retificação da hipótese. Ou, nas palavras radicais de Howard Becker, "isso não funciona. Você não pode realizar pesquisas sérias dessa forma, como acabam des- cobrindo todos os pesquisadores talentosos" (2006, p. 12). A entrevista compreensiva, inscrita na tradição da indução ana- lítica inaugurada por Florian Znaniecki e da Grounded Theory, popularizada por Anselm Strauss, inverte as fases da constru- ção do objeto: o trabalho de campo não é mais uma instância de verificação de uma problemática preestabelecida, mas o ponto de partida desta 2.3 A ruptura progressiva A ruptura com o senso comum para constituir a objeti- vação científica é muitas vezes apresentada com grande alar- de. Supostamente, a sociologia revelaria um sentido oculto, completamente distinto, cujos atores seriam totalmente in- capazes de ter consciência. No entanto, o conhecimento co- mum não é um não conhecimento, ao contrário, ele esconde tesouros. Desta constatação nasceram movimentos contesta- tórios da "ruptura epistemológica", sobretudo a etnometo- dologia: o conhecimento comum e o conhecimento científico estariam conectados em uma continuidade perfeita. No entanto, assim como o modelo clássico leva a uma definição 44</p><p>demasiadamente radical da ruptura, a oposição muito radical a este modelo também leva a um impasse. Entre estes dois extremos, a entrevista compreensiva enal- tece uma objetivação que se constrói aos poucos, graças aos instrumentos conceituais evidenciados e organizados entre eles, levando a uma visão do tema da pesquisa sempre mais afastada do olhar espontâneo de origem; mas sem jamais rom- per totalmente com ele. Tal modo de construção do objeto é típico dos métodos qualitativos, que são confrontados à enorme riqueza infor- mativa do trabalho de campo: a problematização não pode ser abstraída desta abundância. Isso leva ao desenvolvimento de uma postura de curiosidade, de expectativa, de abertura, até mesmo de passividade, nas fases preliminares da pesqui- sa (SCHWARTZ, 1993). Anselm Strauss chega a aconselhar deixar-se impregnar pelo trabalho de campo para se descobrir as primeiras hipóteses. Eu prefiro, pessoalmente, ir com uma ideia na cabeça, mas o resto é idêntico: o objeto é construído gradualmente, através de uma elaboração teórica que pro- gride diariamente, a partir de hipóteses forjadas no campo. resultado é uma teoria particular, friccionada ao concre- to, que só emerge lentamente a partir dos dados. Aquilo que Anselm Strauss (1992) chama de Grounded Theory, a teoria vinda de baixo, fundada nos fatos. 2.4 A sociologia compreensiva A perspectiva compreensiva sempre esteve muito próxi- ma das perguntas colocadas à metodologia qualitativa: ho- 45</p><p>mem comum tem muito a nos ensinar, e as técnicas formais fundamentadas no trabalho de tipo explicativo conseguem dar conta apenas de uma pequena fração desse conhecimen- to. O termo de sociologia compreensiva, que atualmente se vale tanto de seu favorecimento quanto de sua imprecisão, refere-se, entretanto, a sensibilidades diferentes. Desde o início, Wilhelm Dilthey o tinha definido em oposição ra- dical à A compreensão torna-se então uma pura apreensão de um conhecimento social incorporado pelos in- divíduos: basta saber dar prova de curiosidade e de empa- tia para descobri-lo. Esse projeto fez sucesso, está na base de correntes organizadas e de tendências mais espontâneas, que se valem do pretexto da aridez do formalismo metodológico para abandonar qualquer esforço de rigor, deixando-se levar pelo impressionismo e pela intuição sem controle. Exce- to em algumas fases do trabalho, tal posicionamento é um impasse para os métodos qualitativos, que se condenariam a não progredir e a reforçar a suspeita contra eles. Eles têm, ao contrário, todo interesse em produzir um esforço contí- nuo para alcançar um "rigor do qualitativo" (DE SARDAN, 2008). Eles devem "combater a padronização impossível e o misticismo da experiência interior" e fazer da "explicação das condições singulares da investigação uma exigência sistemá- tica" (BEAUD & WEBER, 2003, p. 12). Elas podem, por isso, se apoiar em outra definição da sociologia compreensiva, de fato, a mais disseminada (PU- GEAULT, 1995), que é especialmente aquela que foi desen- volvida por Max Weber em reação a Wilhelm Dilthey. Para Max Weber (1992), se a compreensão e a explicação têm pon- 46</p><p>tos de partida localizados em polos opostos, a sociologia deve rebelar-se contra a ideia de que se trata de dois modos de pensamento separados. processo compreensivo apoia-se na convicção de que os homens não são simples agentes porta- dores de estruturas, mas produtores ativos do social, portanto depositários de um saber importante que deve ser assumido do interior, através do sistema de valores dos indivíduos; ele começa, portanto, pela intropatia. O trabalho sociológico não se limita, entretanto, a esta fase. Ele consiste, ao contrário, na capacidade de interpretar e de explicar a partir de dados reco lhidos. A compreensão da pessoa é apenas um instrumento, objetivo do sociólogo é a explicação compreensiva do 2.5 Teoria e campo A questão da relação entre teoria e campo está no cerne da sociologia compreensiva (e da metodologia qualitativa). Na tradição das ciências humanas e sociais, é definido como teórico aquilo que é abstrato (mais sob a forma de uma ar- quitetura conceitual imponente do que sob a forma da hi- pótese nascente). Definição a partir da qual a teoria deriva geralmente para uma arte da linguagem: torna-se teórico aquele que sabe falar a teoria e que tem uma cultura teórica. É o que Wright Mills (1967) denuncia sob o nome de "Suprema aquela que se esqueceu de permanecer um simples instrumento nas mãos do pesquisador, cujo objetivo deveria sempre ser, não a produção de teoria pela teoria, mas a desco- berta, a capacidade de tornar inteligível o social graças à teoria. "A teoria que se trata de construir não é um sistema, mas um instrumento" (CLIFFORD, 2003, p. 265). Por isso, é preciso 47</p><p>confrontar regularmente e de forma controlada os modelos de explicação com os fatos. É esta a função do método, como a teoria, é um instrumento que deveria saber permanecer flexível, variável, evolutivo. Norbert Elias desta- ca um ponto importante: o método evolui historicamente, e o ponto crucial da evolução é justamente a "confrontação tica" entre teorias e observações, "movimento pendular inin- terrupto entre dois níveis do saber" (1993, p. 35). defeito (que tende a diminuir historicamente) é de separar estes dois níveis, o que produz, de um lado, especulações infundadas e, de outro, um conhecimento empírico desordenado e con- fuso. O progresso do método pode ser realizado apenas por uma articulação sempre mais fina entre teorização e observa- ção. A ambição reside no fato de se situar muito claramente nessa perspectiva, de propor uma combinação íntima entre trabalho de campo e fabricação concreta da teoria. 3 A validade dos resultados 3.1 O alvo das críticas Para quem não apreende o conjunto do processo, a en- trevista compreensiva pode parecer suspeita de falta de rigor. Regularmente, a crítica gira, portanto, em torno da mesma questão: o que lhe permite dizer isso, qual é a validade cientí- fica de seus resultados? Crítica legítima, pois se trata do ponto fraco do método, mas é uma crítica muitas vezes mal coloca- da e excessivamente exagerada, pela incompreensão do modo particular de construção do objeto. 48</p><p>É também curioso constatar o quanto o tratamento é diferente quando um trabalho se apresenta de uma forma puramente teórica: a questão da validade das propostas é ra- ramente colocada, sendo as referências a outras teorias sufi- cientes para legitimá-las. Ao contrário, quando um pesqui- sador se permite algumas interpretações um pouco livres a partir de suas observações, ela surge rapidamente. Como se a separação das áreas, criticada por Norbert Elias, estivesse ainda tão ancorada nas mentalidades (a teoria como lugar da especulação, os dados como lugar da medida ou da descrição rigorosa) que as interdições abrangem principalmente as ar- ticulações. Olivier Schwartz volta-se contra esta vontade de querer impor um "modelo forte" de rigor metodológico na pesquisa qualitativa, o que "mutilaria suas possibilidades de descoberta" (1993, p. 266). 3.2 A incompreensão da inversão Em diferentes instâncias de avaliação é frequente que as discussões não tomem um bom rumo quando se trata da metodologia qualitativa. Em primeiro lugar, porque o grau de liberdade reivindicado por Olivier Schwartz não é tolera- do. Segundo, porque a inversão do modo de construção do objeto não é compreendida. A respeito do primeiro ponto, é essencial ter em mente que os métodos qualitativos têm mais vocação para compreender, detectar comportamentos, processos ou modelos teóricos, do que para descrever siste- maticamente, medir ou comparar: para cada método corres- ponde uma maneira de pensamento e de produção do saber que lhe é próprio. Sobre o segundo ponto, Anselm Strauss 49</p><p>denuncia a cegueira de certas críticas direcionadas à Grounded Theory, que exigem um teste de validação dos resultados. No quadro dos métodos qualitativos, que produzem de forma evolutiva uma teoria fundada sobre os fatos, esse teste (além de ser, quase sempre, tecnicamente impossível) não tem lugar, uma vez que o campo já constitui a restrição inicial e que as hipóteses lançadas advêm da observação: a ordem dos proce- dimentos é invertida. A ordem é invertida, mas sem que as duas fases sejam separadas. A originalidade da teoria fundada sobre os fatos é que a descoberta e a justificativa estão intimamente e conti- nuamente imbricadas. "Não há duas fases, uma de formula- ção, outra de falsificação das hipóteses, mas um duplo mo- vimento de engendramento dos códigos, das categorias, de suas propriedades, e de suas relações na análise dos dados, e simultaneamente, de provação da validade destes códigos, de eliminação dos casos negativos, de modificação das amostras qualitativas, de refinamento controlado das identidades e das diferenças até a saturação. Descoberta e justificativa cami- nham juntas" (STRAUSS & CORBIN, 2003). 3.3 Os critérios de avaliação No modelo dedutivo clássico, o protocolo de investiga- ção desempenha em si mesmo o papel de prova. A sanção é, portanto, imediata e a comunidade científica pode julgar a validade do teste. Nas pesquisas qualitativas e indutivas, as hipóteses são retiradas da observação, o que é uma boa garan- tia de partida, mas não uma garantia de chegada. O pesquisa- dor pode, de fato, deixar-se levar por interpretações abusivas, 50</p><p>que serão de difícil revelação. Difícil, mas não impossível: julgamento da validade dos resultados de um trabalho quali- tativo exige uma atenção O importante é compreender que os instrumentos téc- nicos oferecem pouca garantia, contrariamente ao processo clássico hipótese-verificação, pois eles não desempenham o papel de teste. Logo, de nada adianta ir atrás deles. As provas devem ser buscadas em outro lugar. Primeiramen- te, na "coerência do conjunto do desenvolvimento da pes- quisa" (QUIVY & VAN CAMPENHOUDT, 1988, p. 225), a forma pela qual as hipóteses apoiam-se em observações e articulam-se entre si, e as generalizações são controladas. Em seguida, na análise precisa do modelo que é liberado, e em sua adequação aos fatos. Até mesmo o modelo teórico mais perfeito tem suas falhas, principalmente quando ele é con- frontado aos dados. Enfim, na avaliação sobre os resultados mais concretos. O avaliador deve conhecer a área as estatísticas, os trabalhos que confirmam o tema. Ele pode portanto, pôr em dúvida algumas propostas e solicitar com plementos de informação. 3.4 Modelo societal e modelo teórico Dois níveis de teorização podem ser considerados: a mo- delagem societal, que refina a descrição ou aprimora a com- preensão mais de um fato conhecido de todos, e a modelagem temológica e propõe um novo paradigma. Esses dois níveis especificamente teórica, que opera uma ruptura epis- zo, remetem a instâncias diferentes que, a médio ou longo podem participar da avaliação da validade dos resultados, pra- 51</p>