Prévia do material em texto
<p>Maria Guimarães</p><p>Câmeras noturnas flagram polinização inédita, por gambá</p><p>revistapesquisa.fapesp.br/flor-polinizada-por-gamba-surpreende-pesquisadores/</p><p>Ilustração feita nos anos 1990 conforme interpretação de Patrícia Morellato, mostrando o</p><p>parasitismo de Scybalium fungiforme nas raízes de outras plantas, e como seria polinizada por</p><p>gambá</p><p>Jaime Somora</p><p>Enquanto observavam as flores da planta Scybalium fungiforme para documentar os</p><p>visitantes diurnos na Reserva Biológica da Serra do Japi, interior paulista, estudantes de</p><p>biologia começaram a receber por WhatsApp mensagens de seus colegas que estavam</p><p>no laboratório da base de pesquisas assistindo às gravações realizadas na noite anterior:</p><p>um rato apareceu lambendo o néctar das flores. A notícia era boa. Alunos da disciplina</p><p>de graduação Projetos Integrados em Ecologia, ministrada pelo biólogo Felipe Amorim,</p><p>do Instituto de Biociências da Universidade Estadual Paulista (Unesp), campus de</p><p>Botucatu, os jovens tinham previsto que a planta seria polinizada por algum roedor.</p><p>Logo em seguida novas mensagens trouxeram a surpresa: depois do rato aparecera um</p><p>gambá, da espécie Didelphis aurita, que acabou sendo o visitante mais assíduo.</p><p>“Pensávamos em um mamífero, mas não tinha nos ocorrido que poderia ser um</p><p>gambá”, lembra o pesquisador, que redigiu os resultados no artigo publicado na revista</p><p>Ecology em 11 de fevereiro.</p><p>Ao comentar o achado aparentemente inédito com colegas, Amorim acabou</p><p>descobrindo que a novidade não era assim tão nova. Há quase 30 anos, início dos anos</p><p>1990, a bióloga Patrícia Morellato, do campus de Rio Claro da Unesp, andou curiosa</p><p>com essa mesma planta da família das balanoforáceas, que de fato é bem peculiar. Os</p><p>conjuntos de flores (inflorescências) brotam junto ao chão e mais se parecem com</p><p>cogumelos vermelhos. Apenas depois de retiradas as brácteas de cor vermelha (folhas</p><p>1/6</p><p>https://revistapesquisa.fapesp.br/flor-polinizada-por-gamba-surpreende-pesquisadores/</p><p>https://revistapesquisa.fapesp.br/wp-content/uploads/2020/02/SITE_Beija-flor-1-1140.jpg</p><p>https://revistapesquisa.fapesp.br/wp-content/uploads/2020/02/SITE_Beija-flor-5-1140.gif</p><p>modificadas semelhantes a escamas), aparecem as minúsculas flores. Milhares delas</p><p>nas inflorescências femininas, centenas nas masculinas. Essas flores são praticamente a</p><p>planta inteira, que é uma parasita das raízes de outras plantas, como árvores e</p><p>trepadeiras, e não tem folhas verdadeiras – apenas um tubérculo onde armazena os</p><p>nutrientes extraídos da planta hospedeira. Apreciadora das plantas africanas e</p><p>australianas da família das proteáceas, polinizadas, respectivamente, por roedores e</p><p>marsupiais, a bióloga viu uma semelhança na estrutura floral. Desconfiada dos</p><p>pequenos mamíferos, passou a tentar descobrir o responsável por transferir o pólen das</p><p>flores masculinas para as femininas de S. fungiforme.</p><p>Felipe Amorim /Unesp</p><p>Didelphis aurita com mariposa na ponta da cauda: polinizadores inesperadosFelipe Amorim /Unesp</p><p>Frequentando a mata de Santa Genebra, junto ao campus da Universidade Estadual de</p><p>Campinas (Unicamp) de dia e à noite, ela verificou que as flores produziam néctar entre</p><p>22h e 2h. “A quantidade era grande, como umas cascatas de mel”, lembra. Ela explica</p><p>que a copiosa produção não custa nada para a planta parasita, que suga a seiva</p><p>diretamente dos vasos do floema de suas hospedeiras. Era um inverno seco, e durante o</p><p>dia praticamente não restava líquido açucarado. Ela nunca conseguiu ver os visitantes</p><p>noturnos, mas deixou pó fluorescente nas inflorescências e dispôs armadilhas em torno</p><p>com a ajuda do marido, o zoólogo Célio Haddad, igualmente da Unesp de Rio Claro,</p><p>habituado à lida noturna na floresta por ser especialista em sapos e afins. Capturaram</p><p>um gambá da espécie Didelphis albiventris, cujo focinho, exposto à luz negra, brilhou</p><p>na cor do pó deixado nas flores. Era um indício animador, suficiente para que Morellato</p><p>2/6</p><p>apresentasse a observação no 46º Congresso Nacional de Botânica no ano de 1995 e</p><p>encomendasse ao ilustrador Jaime Somora um desenho do gambá se servindo do néctar</p><p>de S. fungiforme.</p><p>Nesse ínterim nasceu a filha que ela à época gestava, as obrigações de professora recém-</p><p>contratada se enfileiraram e os projetos seguiram por outros rumos, embora a vontade</p><p>de solucionar o enigma nunca a tenha deixado. Por isso foi grande o entusiasmo quando</p><p>recebeu, por WhatsApp, o vídeo enviado por Amorim com o flagra noturno. Era</p><p>exatamente o que ela previra com base nas características da flor, quando Amorim, por</p><p>volta dos 10 anos, ainda brincava de ser biólogo e os alunos de sua disciplina nem</p><p>sequer tinham nascido. “Não tínhamos câmeras de visão noturna naquela época”,</p><p>compara Morellato. Hoje não é preciso muitos recursos para obter esse tipo de</p><p>equipamento. “Usamos duas câmeras de segunda mão que comprei no Mercado Livre</p><p>com meu próprio dinheiro e as protegemos da umidade da noite com potes de sorvete”,</p><p>conta Amorim.</p><p>Equipe coordenada por Felipe Amorim / Unesp</p><p>De maneira meticulosa, marsupial bebe néctar produzido pelas inflorescênciasEquipe coordenada</p><p>por Felipe Amorim / Unesp</p><p>Ele ficou ainda mais entusiasmado ao comparar as observações dos alunos aos registros</p><p>do caderno de campo de Morellato, que ela escaneou e enviou. “As medições da</p><p>produção de néctar, os horários de abertura das flores, tudo batia.” Durante os seis dias</p><p>da expedição de campo os estudantes acordaram cedo e trabalharam madrugada</p><p>3/6</p><p>adentro, fazendo medições nas plantas, no ambiente e registrando os animais visitantes.</p><p>O rato nunca mais voltou, mas o gambá esteve presente em quatro das cinco noites de</p><p>observação, e fazia um trajeto aparentemente ordenado, de uma planta para outra,</p><p>bebendo o nutritivo néctar. “É uma estratégia que chamamos de linha de captura, que</p><p>se assemelha à estratégia de alimentação adotada por outros animais nectarívoros,</p><p>como beija-flores e morcegos”, e semelhante ao que os biólogos fazem quando dispõem</p><p>armadilhas”, explica Amorim. “Quando chega à última flor, o animal pode voltar à</p><p>primeira que possivelmente ela já terá produzido mais néctar.”</p><p>De dia, mais descobertas surpreendentes: beija-flores-de-fronte-violeta (Thalurania</p><p>glaucopis) eram visitantes florais frequentes, assim como vespas e abelhas. Todos</p><p>buscando o néctar, mas ainda não é possível avaliar a eficiência desses animais na</p><p>polinização de Scybalium fungiforme. A hipótese dos pesquisadores é de que o</p><p>principal polinizador é o gambá, que com suas mãos hábeis e focinho é capaz de retirar</p><p>as brácteas que cobrem a inflorescência e assim expor as flores e o néctar. Os</p><p>frequentadores diurnos devem atuar como polinizadores secundários. “É possível fazer</p><p>esses estudos construindo gaiolas que excluam apenas os gambás e comparando as</p><p>taxas de frutificação”, explica Morellato.</p><p>Thalurania glaucopis, provavelmente um polinizador secundário</p><p>Felipe Amorim / Unesp</p><p>4/6</p><p>É provável que não faltem candidatos para continuar a pesquisa e investigar as novas</p><p>hipóteses. A maior parte dos autores do artigo são os estudantes da disciplina, que</p><p>nunca tinham conduzido um projeto de pesquisa na íntegra nem publicado um artigo.</p><p>“Um dos objetivos da disciplina é possibilitar a alunos do último ano do curso de</p><p>ciências biológicas que coloquem em prática o método científico. Acho que tem dado</p><p>certo”, conta Amorim.</p><p>Precedente histórico</p><p>Especialista em polinização por mariposas da família dos esfingídeos, Amorim faz um</p><p>paralelo da história com um acontecimento que envolveu o naturalista britânico Charles</p><p>Darwin (1809-1882) em 1862. Ao receber do colecionador de orquídeas James Bateman</p><p>uma orquídea nativa de Madagascar (Angraecum sesquipedale), cujo tubo floral tinha</p><p>30 centímetros (cm), o autor da teoria da seleção natural postulou que existiria naquela</p><p>ilha uma mariposa com uma língua (probóscide) de comprimento compatível. Na época</p><p>a ideia foi ridicularizada pelos entomologistas, conta Amorim. Apenas 41 anos depois,</p><p>em 1903, uma dupla de entomologistas britânicos, Walter Rothschild (1868-1937) e</p><p>Heinrich Jordan (1861-1959), coletando</p><p>insetos noturnos em Madagascar, encontraram</p><p>e descreveram uma mariposa da família dos esfingídeos. Ao desenrolar sua probóscide,</p><p>verificaram que era longa o suficiente para alcançar o néctar da orquídea e transferir</p><p>seu pólen. Darwin não viveu o suficiente para ver sua previsão confirmada, mas chegou</p><p>a receber em 1877 o apoio do naturalista alemão radicado no Brasil Fritz Müller (1821-</p><p>1897), que, trabalhando em Santa Catarina, encontrou uma mariposa da mesma família</p><p>com probóscide de tamanho semelhante.</p><p>No dia 12 de fevereiro, 211º aniversário do mais célebre naturalista britânico, a</p><p>Sociedade Americana de Ecologia, que publica a revista Ecology, divulgou um texto</p><p>sobre o trabalho brasileiro. “Na nossa história, a Patrícia fica no lugar de Darwin”,</p><p>brinca Amorim.</p><p>5/6</p><p>https://www.esa.org/esablog/research/caught-on-camera-pollinating-opossums-confirm-decades-long-theory/</p><p>https://youtu.be/potgkH1_rs8</p><p>Watch Video At: https://youtu.be/potgkH1_rs8</p><p>Artigo científico</p><p>AMORIM, F. W. et al. Good heavens what animal can pollinate it? A fungus‐like</p><p>holoparasitic plant potentially pollinated by opossums. Ecology. on-line. 11 fev. 2020.</p><p>Republicar</p><p>Polinização</p><p>6/6</p><p>https://esajournals.onlinelibrary.wiley.com/doi/abs/10.1002/ecy.3001</p><p>https://revistapesquisa.fapesp.br/flor-polinizada-por-gamba-surpreende-pesquisadores/#cc-republish</p><p>https://revistapesquisa.fapesp.br/keywords/polinizacao/</p><p>Câmeras noturnas flagram polinização inédita, por gambá</p>