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<p>PARA 0 ENSINO SUPERIOR 1 MORFOLOGIA EDITOR Marcos Marcionilo EDITORES CIENTÍFICOS Tommaso Raso [UFMG] CARLOS ALEXANDRE Celso Ferrarezi Jr. [UNIFAL-MG] CONSELHO EDITORIAL Ana Stahl Zilles [Unisinos] Angela Paiva Dionisio [UFPE] Carlos Alberto Faraco [UFPR] Celso Ferrarezi Jr. [UNIFAL] Egon de Oliveira Rangel [PUC-SP] Henrique Monteagudo [Universidade de Santiago de Compostela] José Ribamar Lopes Batista Jr. [UFPI/CTF/LPT] Kanavillil Rajagopalan [Unicamp] Marcos Bagno [UnB] Maria Marta Pereira Scherre [UFES] Roberto Mulinacci [Universidade de Bolonha] Roxane Rojo [UNICAMP] Salma Tannus Muchail [PUC-SP] Sírio Possenti [UNICAMP] Stella Maris Bortoni-Ricardo [UnB] Tommaso Raso [UFMG] Vera Lúcia Menezes de Oliveira e [UFMG/CNPq]</p><p>Direção: ANDRÉIA CUSTÓDIO Editores científicos: TOMMASO [UFMG] CELSO FERRAREZI JR. [UNIFAL-MG] Diagramação e capa: TELMA CUSTÓDIO Revisão: THIAGO ZILIO Sumário CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO NA FONTE SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ G625m Gonçalves, Carlos Alexandre Morfologia / Carlos Alexandre Gonçalves [coordenação] Tommaso Raso, Celso Primeiras palavras 7 Ferrarezi Jr. 1. ed. São Paulo Parábola, 2019. 168 p. 23 cm. (Linguística para ensino superior 1) Apresentação 9 Inclui bibliografia ISBN 978-85-7934-161-8 CAPÍTULO 1 - Conceitos básicos 1. Língua portuguesa Morfologia. I. Raso, Tommaso. II. Ferrarezi Jr., Celso. III. 13 Título. IV. Série. 1.1 Para início de conversa 13 19-56247 CDD: 1.2 Delimitação da área 13 CDU: 811.134.3'366 1.3 Nos meandros da palavra 14 Vanessa Mafra Xavier Salgado Bibliotecária CRB-7/6644 1.4 Vocábulo formal e vocábulo fonológico 15 1.5 Palavra e vocábulo 17 1.6 Os três tipos de formas linguísticas 18 1.7 Sistema aberto VS. sistema fechado 20 1.8 Amálgamas 21 1.9 0 (não)isomorfismo entre vocábulo formal e fonológico 21 1.10 Últimas notas sobre a complexa noção de palavra 25 1.11 0 morfema: primeiros contatos 26 1.12 Dupla articulação da linguagem 26 1.13 Morfema e morfe 27 Direitos reservados à 1.14 Identificando morfemas PARÁBOLA EDITORIAL 28 1.15 Sincronia e diacronia Rua Dr. Mário Vicente, 394 Ipiranga 30 04270-000 São Paulo, SP 1.16 Morfologia não é etimologia 31 pabx: [11] 5061-9262 5061-8075 fax: [11] 2589-9263 1.17 Os falantes dividem as palavras da mesma maneira? 33 home page: www.parabolaeditorial.com.br 1.18 A técnica da comutação 35 e-mail: parabola@parabolaeditorial.com.br 1.19 Segmentação: transparência e opacidade 37 Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta obra pode ser reproduzida Segmentação e conhecimento enciclopédico 39 ou transmitida por qualquer forma e/ou quaisquer meios (eletrônico ou mecânico, 1.21 Palavras finais 40 incluindo fotocópia e gravação) ou arquivada em qualquer sistema ou banco de dados sem permissão por escrito da Parábola Editorial Ltda. CAPÍTULO 2 - Estruturas morfológicas do português 41 2.1 Para início de conversa ISBN: 978-85-7934-161-8 41 Morfemas lexicais e gramaticais 41 edição, reimpressão: julho de 2021 2.3 Radical 42 do texto: Carlos Alexandre Gonçalves, 2019. Raiz e radical 42 da edição: Parábola Editorial, São Paulo, 2019. 2.5 temáticos 43</p><p>MORFOLOGIA Carlos Alexandre Gonçalves 6 2.6 Existe verbo de conjugação? 44 2.7 Tema 44 2.8 Atualizadores lexicais 46 2.9 Atualizador lexical e gênero 47 2.10 Afixos 48 2.11 Das diferenças entre prefixo e sufixo 52 2.12 Desinências 58 Primeiras palavras 2.13 Zeros morfológicos 59 2.14 Elementos não morfêmicos 62 2.15 Morfologia concatenativa VS. não concatenativa 68 2.16 Alomorfia 73 2.17 Homomorfia e polissemia afixal 84 2.18 Palavras finais 86 CAPÍTULO 3 Flexão derivação 87 3.1 Para início de conversa 87 3.2 Em busca de definições 88 3.3 Das diferenças entre flexão e derivação 89 Uma das principais missões da Associação Brasileira de Linguística [ABRALIN] 3.4 Proposta de continuum flexão-derivação 96 é divulgar o conhecimento da área em camadas cada vez mais amplas da po- 3.5 A polêmica envolvendo o grau 98 pulação, tentando se fazer presente na sociedade como agente de educação 3.6 Gênero e flexão de gênero 109 completo, não apenas como órgão de debates acadêmicos internos. 3.7 Número e flexão de número 111 3.8 0 padrão formal do verbo português 116 Essa missão tem se realizado pelo recurso a instrumentos e canais variados, 3.9 Padrões de fusão na estrutura do verbo 118 120 mediante iniciativas de diferentes naturezas, entre as quais a promoção de 3.10 Lexicalizações na estrutura de verbos 3.11 Palavras finais 121 redes internacionais, a produção de eventos em sedes tradicionalmente afastadas dos principais centros acadêmicos, o uso de mídia alternativa ao CAPÍTULO 4 de palavras 123 texto escrito para popularizar as diferentes disciplinas da área e um empe- 4.1 Para início de conversa 123 nho social articulado com outras instâncias 4.2 Motivações da criação lexical 124 4.3 Produtividade lexical 132 A Coleção Linguística para o ensino superior, da Parábola Editorial, editada 4.4 Formações analógicas 134 por Tommaso Raso e Celso Ferrarezi, apresenta-se como uma iniciativa am- 4.5 Analogia e produtividade 134 4.6 Formações padronizadas 135 pla, especificamente pensada para oferecer aos alunos do ensino superior 4.7 Processos concatenativos e não concatenativos: diferenças 135 um quadro completo das disciplinas linguísticas, com um olhar para o pa- 4.8 Derivação 136 norama internacional da área e meios de divulgação adequados aos nossos 4.9 Composição 140 tempos. Por essa razão, a coleção tem a chancela da ABRALIN. 4.10 Recomposição 143 4.11 Processos não concatenativos 144 Faltava ao panorama editorial e educacional do país um instrumento 4.12 Formações com splinters 155 como este, capaz de aproximar ainda mais o Brasil do padrão vigente em 4.13 Palavras finais 156 meios universitários internacionais. A ABRALIN, sempre atenta aos meios CAPÍTULO 5 Para saber mais 157 necessários para fortalecimento da área no País, sem nunca perder de 5.1 Conceitos básicos 157 vista compromisso com a qualidade, apoia e parabeniza a iniciativa da 5.2 Estruturas morfológicas do português 158 Parábola Editorial. 5.3 Flexão e derivação 158 5.4 Formação de palavras 159 MIGUEL OLIVEIRA JR. Presidente da ABRALIN Referências bibliográficas 161</p><p>Apresentação objetivo da coleção Linguística para o ensino superior é o de forne- cer ao Brasil livros de referência, escritos em nossa língua e por au- tores consagrados, como instrumentos de estudo em todos os cursos que demandem conhecimentos de base nessa ampla área de estudos que é a linguística. principal público-alvo é, portanto, constituído pelos alunos universitários, mas leitores interessados nos estudos linguísticos poderão encontrar, em todas as obras da coleção, tex- tos, ao mesmo tempo, bem fundamentados e amigáveis. A coleção foi idealizada de maneira integrada e coerente, com coordenadas que se repetem em todos os volumes. Isso uniformiza, tanto quanto vel, as obras e facilita o contato dos leitores com a coleção. Uma das intenções dos organizadores e do editor foi a de olhar para a rica manualística existente no âmbito internacional - em primeiro lugar, a produção em língua inglesa, mas também nas línguas alemã, francesa e italiana - procurando estabelecer contatos entre a pro- dução brasileira e a internacional. Primamos para que cada volume fosse escrito por um único autor, de forma que a exposição fosse a mais orgânica possível e a coerência informativa e didática envolves- se não somente o momento da organização da obra, mas também o da execução intelectual e material. Por essas razões todas, os volumes foram elaborados de forma a oferecer que de mais consolidado e consensual existe em lin- guística, sem direcionar conteúdo exposto para vertentes teó-</p><p>MORFOLOGIA Carlos Alexandre Gonçalves 10 ricas específicas. Cremos que a escolha de um arcabouço teórico longo do tempo. No caso em que aprofundamentos já tenham sido específico (gerativismo, cognitivismo, estruturalismo, otimalismo previstos desde a elaboração do volume, o símbolo avisa o leitor ou arcabouços específicos de matriz funcionalista) seja um passo de que há mais material no site para o tema em estudo. que só deve ser dado pelos alunos depois de eles construírem uma Todo esse esforço, que envolveu uma grande equipe de trabalho entre sólida base conceitual e metodológica na disciplina e de terem to- autores, organizadores e a Parábola, é uma tentativa de fornecer a alu- mado conhecimento da variedade e da riqueza do panorama teó- nos e docentes um material consistente, e, a despeito de todas as difi- rico disponível em cada disciplina e das motivações dessa varieda- culdades, de ampliar os horizontes da moderna linguística no Brasil. de. Dessa forma, no caso dos volumes desta coleção, os conceitos e as explicações sobre a área indicada no título são aqueles que Desejamos a todos uma excelente leitura! se consolidaram ao longo da linguística moderna como sendo os Tommaso RASO [UFMG] Celso FERRAREZI JR. [UNIFAL-MG] mais aceitos nas diversas vertentes, sempre que isso for possível, e, quando oportuno, mostrando possíveis abordagens diferentes às questões tratadas. Como editores científicos da coleção, cremos que organizar e dis- ponibilizar um sólido e abrangente conjunto de conhecimentos de referência não é tolher os horizontes dos estudantes ou eliminar o objetivo das disciplinas. Ao contrário disso, é proporcionar-lhes uma formação de base aberta e livre, oferecendo-lhes formas de avanço mais sólidas e mais cientificamente produtivas. Com esse mesmo objetivo, os volumes apresentam sempre uma se- ção final, intitulada "Para saber mais". Nela, o leitor encontrará ex- tensas indicações para o aprofundamento bibliográfico, organizadas de forma temática e com comentários para cada obra indicada. São apresentadas obras de referência em português e em outras línguas, com um duplo objetivo: por um lado, introduzir os leitores aos clás- sicos e às principais novidades do panorama internacional; por ou- tro, estimulá-los ao aprofundamento conceitual e metodológico. Mas, as obras de nossa coleção não terminam nos volumes físicos. A Parábola manterá uma página na internet associada a cada volu- me para abrigar materiais complementares escolhidos pelos auto- res. Nela, estarão presentes exercícios e, frequentemente, materiais adicionais e de natureza multimidiática: textos de aprofundamento, bibliografia suplementar, arquivos de áudio e vídeo, imagens e ou- tros formatos compatíveis com os objetivos da coleção. Essas pági- nas serão alimentadas periodicamente, mantendo trabalho vivo ao</p><p>CAPÍTULO Conceitos básicos 1.1 Para início de conversa 'Cheiinho, 'perua', 'cliquei', 'muso' e são algumas das inúmeras construções recentes com que nos deparamos nos dias de hoje. Por que e para que modificamos as palavras existentes? Como conseguimos interpretar aquelas que nunca ouvimos antes? Que tipo de relação estabelecemos entre diferentes unidades lexicais? que rege as combinações entre pedaços significativos de palavras? Por que determinadas formas, como, por exemplo, *unhudo e *destossir, são sentidas como estranhas e/ou inaceitáveis? Com que tipo de sig- nificado contribuem as pequenas peças que se combinam umas com as outras no interior de uma palavra? Essas perguntas, cuja respos- ta sabemos intuitivamente, constituem problemas centrais de uma área de estudos chamada morfologia. Neste capítulo, damos início ao estudo da morfologia, instrumentalizando o leitor com os prin- cipais conceitos desse nível de descrição linguística. Assim, busca- mos compreender o que é morfologia e quais são as unidades com as quais trabalha. Comecemos delimitando esse campo de investigação. 1.2 Delimitação da área 0 termo morfologia não é utilizado unicamente em referência aos es- tudos linguísticos; aparece também em várias áreas como botânica (morfologia vegetal) e a geologia (morfologia do solo). Na 13</p><p>MORFOLOGIA Carlos Alexandre Gonçalves 14 constituição do termo, encontram-se os elementos [morf(o)], do gre- enunciável em isolamento, ou seja, produzida sozinha, go morphé = "forma", e [logia], do gr. logía = "estudo". como, por exemplo, em resposta a perguntas Como se vê, o termo morfologia guarda relação direta com a noção Na escrita, é relativamente fácil identificar uma palavra em função de forma. No escopo dos estudos linguísticos, morfologia é a área de haver recursos gráficos como é o caso do espaço em branco ou que estuda a forma das palavras em diferentes usos e construções. mesmo do uso do hífen que sinalizam esses constituintes. Na fala, Desse modo, os estudos morfológicos abrangem (a) a análise da es- por outro lado, nem sempre se distingue uma unidade vocabular de trutura interna das palavras em seus constituintes menores dotados um grupo de palavras, pois, foneticamente, podem ser produzidos da de expressão e conteúdo, chamados morfemas, (b) as diferentes fun- mesma maneira, como se vê nos exemplos a seguir: ções dessas unidades e (c)os vários mecanismos responsáveis pela criação de novas unidades. A seguinte definição, de Cabral (1982: (00) cavá-lo cavalo amá-la a mala 166), resume bem o que se entende por morfologia: cale-se cálice sem hora senhora a gente agente preço pôr pressupor Parte da gramática que descreve as unidades mínimas de significa- do, sua distribuição, variantes e classificação, conforme as estruturas Muitas vezes, crianças em fase de alfabetização não conseguem dis- onde ocorrem, a ordem que ocupam, os processos na formação de tinguir o que é uma palavra do que constitui sequência sonora emi- palavras e suas classes. tida num só grupo acentual. Em casos como os de (01), a seguir, a ausência de segmentação, embora tenha relação direta com o domí- Para descrever a morfologia de uma língua, deve-se definir, primeira- nio da escrita, revela o fato de os redatores se pautarem na cadeia mente, o que se entende por forma linguística, aqui tomada dife- falada para grafar os chamados chunks (Bybee, 2010): unidades de rentemente da acepção mais comum como sinônimo de unidade organização da memória formadas pela junção de duas ou mais for- dotada de expressão (forma fonética; realização sonora) e conteú- mas linguísticas emitidas numa ordem rígida tal que, em função da do (significado; função). Dessa maneira, palavras são estruturadas frequência de uso, acabam sendo tomadas em bloco: por unidades menores que, concatenadas umas às outras, veiculam conteúdos diversos ou apresentam relações variadas entre si. (01) de repente derrepente com certeza concerteza de menor dimenor por isso porisso em cima encima a partir de apartir de à beça abeça o que oque 1.3 Nos meandros da palavra Como se pode perceber, o centro de interesse da morfologia é a pala- 1.4 Vocábulo formal vocábulo fonológico vra. No entanto, na literatura especializada, não há consenso sobre o que se entende por palavra, embora, para os falantes, de forma geral, Mattoso Camara Jr. (1970) diferenciou o vocábulo fonológico do ela seja uma unidade linguística vocábulo formal, evitando, com isso, os meandros do conceito de dotada de sentido(s); palavra. No primeiro caso, tem-se uma unidade apenas sonora: uma constituída por segmentos sonoros organizados numa de- sequência de sílabas pronunciada sob um único acento. No segundo, terminada ordem e emitidos sem interrupção; no entanto, tem-se uma unidade semântica que corresponde a um pertencente a uma (ou mais) categoria(s) sintática(s); lexical. Desse modo, temos um único vocábulo fonológico em delimitada, na escrita, por espaços em branco; todas as formas listadas em (01), apesar de serem constituídas de formadora de enunciados; dois (ou mais) vocábulos formais. 15</p><p>MORFOLOGIA Carlos Alexandre Gonçalves 16 Mattoso Camara Jr. (1970) postula que as unidades formais (forma) de uma segundo tipo de vocábulo, por sua vez, corresponde a uma unida- língua podem ser definidas tanto no plano da expressão ele con- de passível de ser produzida em isolamento numa enunciação e é no do conteúdo (significado). Na primeira definição, chamado de formal (ou mórfico). Nesse caso, tem-se uma unidade quanto cebe o vocábulo como uma estrutura prosódica identificada com semântico-lexical, um item de dicionário, que pode ser uma palavra base em uma escala de gradação do acento (tônica > pretônica > mesmo, ou seja, uma unidade de significado externo ou um vocábulo, postônica). Esse tipo de estrutura, chamada de vocábulo fonológi- quer dizer, uma unidade de caráter mais funcional. corresponde a uma sílaba tônica e eventuais postônicas e nicas. As tônicas são as dominantes isto é, as mais marcadas em 1.5 Palavra e vocábulo termos de correlatos físicos como a duração (parâmetro principal proposta, no português), a intensidade e a altura - e recebem, Entre na sua as átonas, há Na literatura linguística, os termos palavra e vocábulo são quase valor 3, que representa o ápice de tonicidade. sempre utilizados como sinônimos em referência a uma unidade o escala de debilidade. As postônicas são as mais fracas, pois se que transmite um significado elementar, como 'a', 'samba', 'pé-de- uma submetem mais a apagamentos, podendo, inclusive, ter uma realiza- escala -moleque', 'que' e Alguns autores, no ção ensurdecida; recebem o grau 0 (maximamente frágeis) na são entanto, distinguem esses conceitos. Para Monteiro (1987: 12), proposta pelo autor. As pretônicas são marcadas pelo valor receber 1 e por exemplo, "toda palavra é vocábulo, mas nem todo vocábulo é bem mais fortes que as postônicas, pois podem, inclusive, palavra". Desse modo, reserva-se o termo palavra somente para acento secundário: as unidades que apresentam significação lexical (ou extralinguís- POSIÇÃO GRAU DE ACENTO tica). Vocábulos como artigos, pronomes e preposições não são 3 tônica propriamente palavras; são "instrumentos gramaticais, cujo signi- 1 pretônica ficado (...) só é possível perceber na relação com outros vocábulos" 0 postônica (Monteiro, 1987: 12). No chamado grupo de força ("conjunto fonético significativo, enuncia- Palavras têm significado lexical porque fazem referência a fatos do do sem pausa, intercorrente e subordinado a um acento tônico predo- mundo biopsicossocial: entidades concretas ou abstratas, atributos é o do vocábulo mais importante do grupo" Mattoso ou processos do mundo cotidiano (significação chamada de exter- minante, Camara Jr., que 1980: 135), a sílaba acentuada mais à esquerda perde 'café um na). Vocábulos, por sua vez, têm significado gramatical (ou interno), grau de acento para a tônica dominante, sempre à direita. Em de pois estão na base das relações e categorias da língua. leite', por exemplo, a tônica de 'café', fé, é mais fraca que a PALAVRAS com 'leite', lei. Na convenção adotada por Mattoso, as segundas tônicas VOCÁBULOS substantivos de um grupo de força (GF) recebem grau 2 de acento, completando a preposições adjetivos artigos escala decrescente que ele verbos pronomes POSIÇÃO GRAU DE ACENTO advérbios conjunções 3 principal do GF numerais 2 Segunda tônica do GF 1 pretônica Um primeiro pivô da falta de correspondência um para um, cha- mada unívoca ou entre os vocábulos formal e fonoló-</p><p>MORFOLOGIA Carlos Alexandre Gonçalves 18 gico são as palavras funcionais inacentuadas, chamadas clíticos, Para Mattoso Camara Jr. (1970), essa divisão dicotômica não dá con- como os monossílabos átonos: os pronomes reflexivos 'se' 'me' e ta do estudo dos vocábulos em português. Ele então propõe um ter- 'te', as conjunções 'que' e 'se', os artigos 'a' e 'o', as preposições 'de' ceiro conceito: o de forma dependente, noção de algum modo já e 'em'. Essas unidades não têm acento próprio e precisam de ou- contemplada na seção precedente. A partir dessa proposta triparti- tras formas para atualizar os significados que têm; são elementos da, agrupam-se as formas linguísticas em três conjuntos bem delimi- que, em função de sua debilidade acentual, acabam funcionando tados: livres, presas e dependentes. como sílabas átonas em relação à palavra a que se juntam no GF. As formas livres podem funcionar isoladamente como comunicação Dependendo da posição em relação à tônica, podem equivaler a suficiente. Além disso, apresentam autonomia formal e fonológica, pretônicas ou postônicas: constituindo vocábulo fonológico independente. pronome posses- amá-la sivo 'nosso', por exemplo, constitui forma livre, pois pode ser respos- (02) a massa 130 130 ta à seguinte pergunta: encontrar-te 1130 De quem é o livro? 1113 feriu-se Nosso. 113 130 Formas presas só funcionam conectadas a outras; não apresentam Antes de aprofundarmos a questão da falta de equivalência entre os autonomia formal nem fonológica, não tendo, por isso mesmo, estatu- vocábulos formal e fonológico, convém distinguirmos os três possí- to de vocábulo formal ou fonológico. Exemplos de formas presas são veis tipos de formas linguísticas. encontrados nas seguintes divisões estruturais em que os hifens de- marcam as formas significativas mínimas: cas-eir-a-s, Nesses exemplos, as unidades separadas equivalem a 1.6 Os três tipos de formas linguísticas uma forma linguística, uma vez que portam significados ora re- Ao definir os critérios utilizados na identificação dos vocábulos metem a conceitos e a ações (estud-; cas-; prov-), ora a noções gra- formais em português, Mattoso Camara Jr. (1970, p. 69-71) retoma maticais (p. ex., o va expressa o imperfeito do indicativo e o mos, a Bloomfield, distinguindo as formas livres (free forms, aquelas com primeira pessoa do plural), ora a noções variadas, como a de agente autonomia discursiva e que não precisam de outras para atualizar os (o eir-, de 'caseira') e a de negação (o im-, de 'improvável'). significados que têm) das presas (bound forms, as que só carreiam Por fim, as formas dependentes, assim como as presas, também não significados quando agregadas a outras, no seu interior). Essas últi- podem funcionar isoladamente. Apesar disso, diferentemente das mas são geralmente definidas como "unidades linguísticas utilizadas presas, permitem a intercalação de outras formas ou têm mobilidade apenas como partes de uma palavra; nunca como palavras próprias" posicional. Pode-se dizer, portanto, que são formas soltas, não par- (Katamba, 1993: 23): garot-a-s; samb-a-ría-mos. As formas presas, da arquitetura de palavras morfologicamente complexas. embora portem significados claros, como o a de feminino e o S de Por exemplo, em 'a mala', é possível intercalar os adjetivos 'grande' e plural, só funcionam no interior de outra forma linguística, nunca Do mesmo modo, pronome 'se', embora não funcione sozi- podendo constituir, sozinhas, enunciados, pois não são unidades in- nho, pode aparecer antes ('se falou'), depois ('fala-se') ou no interior dependentes. Elas só têm valor quando articuladas com outras for- da forma verbal a que se submete fonologicamente mas, sendo parte de sua não é, como a sse, que expressa condicionalidade (como em</p><p>20 'falasse'), inteiramente presa. o quadro a seguir resume as diferen- 1.8 Amálgamas ças entre essas unidades: encadeamento das palavras e a repetição sequencial da relação en- FORMA LIVRE FORMA PRESA FORMA DEPENDENTE tre duas formas (p. ex., preposição + artigo ou pronome) moldam as Autonomia acentual + formas, fazendo emergir itens cristalizados com feição morfofono- Autonomia formal + + lógica própria, os chamados amálgamas. A frequência da palavra, a frequência no contexto e a previsibilidade a partir das unidades ad- Autonomia discursiva + jacentes justificam esses amálgamas e explicam a "fusão de duas for- Quadro 1: Diferenças entre formas livres, presas e dependentes. mas distintas numa só" (Carone, 1994: 30), de estatuto praticamente autônomo. No quadro a seguir, listam-se algumas possibilidades de 1.7 Sistema aberto vs. sistema fechado fusão preposição + artigo/pronome existentes na língua. Observe- -se: o que remanesce da preposição é apenas seu onset (unidade si- As formas linguísticas podem ser distribuídas em dois grandes lábica que precede o núcleo, como o /d/, de 'de') se essa posição grupos: as que caracterizam um sistema aberto e aquelas que cor- está preenchida ou a coda (unidade silábica que vem depois do respondem a um sistema fechado. No primeiro caso, tem-se um in- núcleo, como a nasal de 'em'). No caso de 'em', a coda nasal é ressila- ventário flexível, capaz de receber novos membros em função da bificada para o onset, como em 'na', 'nesta' e 'nele', por exemplo. cultura. Os elementos do sistema aberto são as formas livres, cujos conteúdos são nocionais: dizem respeito ao universo biossocial de Como se observa no quadro 2, quanto mais corpulenta a preposição, maior a distância fônica em relação ao amálgama. Tal fato se mostra uma comunidade linguística. bastante saliente na relação entre 'por' e 'pela', por exemplo, em que No segundo caso, tem-se um conjunto mais rígido, fixo, consti- não há correspondentes idênticos para os segmentos da rima (parte tuindo um número limitado de elementos. As unidades do siste- da sílaba que contém obrigatoriamente o núcleo vocálico, seguido, ma fechado são as formas presas e as dependentes, que abarcam opcionalmente, de uma coda). um inventário significativamente menor de constituintes, mas com PREPOSIÇÃO MASCULINO FEMININO ocorrência sem dúvida alguma mais frequente no discurso, pois a correspondem à gramática de uma língua, em oposição ao seu léxi- ao(s) à(s) CO (formas livres). de do(s) da(s) em no(s) na(s) Embora sejam uma constante fonte de confusão nos primeiros es- tágios de alfabetização, por sua semelhança no que diz respeito à por pelo(s) pela(s) falta de autonomia acentual e discursiva, formas dependentes são Quadro 2: Amálgamas de preposição + artigo existentes na língua. vocábulos formais, pois, ao contrário das presas, constituem uni- dades lexicais. As preposições 'a', 'de', 'em', 'com', 'por' e 'para', por 1.9 O (não)isomorfismo entre vocábulo formal figurarem com grande frequência antes de artigos e pronomes, as- fonológico sumem formas diferentes em função do mecanismo chamado de chunking (Bybee, 2010: 34): "Se dois ou mais pedaços menores ocor- poema a seguir, de José Lino Grünewald, brinca com os limites en- rerem juntos com algum grau de frequência, um pedaço maior con- tre os vocábulos formal e fonológico, uma vez que faz um interessan- tendo os menores será formado". te jogo entre sílabas átonas e tônicas: CONCEITOS BÁSICOS 21</p><p>MORFOLOGIA Carlos Alexandre Gonçalves 22 sempre ceder 1, tendo em vista constituir forma dependente em posição proclítica, sem preceder ou seja, 'sem' é uma partícula átona na condição de sílaba pretônica. ferir sem preferir Do mesmo modo, nota-se contraste entre os acentos da primeira sí- sumir laba do verbo nas linhas pares e a equivalente nas /pre/ é sem presumir sempre pretônica (grau 1 de acento) nos verbos e postônica no ad- sempre ver vérbio (grau 0). Em alguns casos, a sílaba inicial do verbo constitui sem prever forma presa, por portar claro significado de anterioridade, como em José Lino Grünewald. Sempre ceder. In: Escreviver. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1987. 'prever', que significa "ter ideia antecipada de; antever". Nas figuras abaixo, em paralelo as pautas acentuais de 'sempre e Constata-se que todos os oito versos do poema acima são compostos 'sem preceder'. Observe que, somente no primeiro caso, há dois picos de dois vocábulos mórficos (no primeiro de cada par, 'sempre' e o ver- acentuais, perdendo a tônica de 'sempre' um grau de acento no GF: bo que o sucede; no segundo, 'sem' e o verbo seguinte). Quanto aos DER acentos, nota-se que a segunda linha de cada par de versos é composta SEM 3 3 de apenas um vocábulo fonológico, pois é iniciada por uma preposição CE 2 1 1 1 1 DER que constitui um clítico, sendo, portanto, prosodicamente inerte. PRE SEM PRE CE 0 1.9.1 Presença de clíticos Clíticos, como vimos, são monossílabos átonos que sempre se apoiam 1.9.2 Nomes compostos foneticamente num termo hospedeiro. No poema de Grünewald, to- Os compostos, produtos de um processo de formação de palavras por dos os casos envolvendo a preposição 'sem' revelam uma situação meio de outras palavras, como 'boia-fria' e 'dedo-duro', constituem ou- de não isomorfismo, isto é, de não coincidência (falta de univocida- tra situação em que a relação entre o vocábulo formal e o vocábulo de, relação de um-para-um) entre os vocábulos formal e fonológico. fonológico não é isomórfica. Por exemplo, a sequência 'pé de tem No caso da combinação com 'sempre', o isomorfismo é restituído, diferentes análises formais conforme os empregos em (04) a seguir: pois há dois vocábulos formais para dois fonológicos, uma vez que o advérbio é dissilábico e, por isso mesmo, tem acento próprio. Des- (04) a. Plantei no quintal um pé de cana. sa maneira, a diferença entre os pares de versos do poema de Grü- b. Fulano é um tremendo pé de cana. newald está na pauta acentual das estruturas postas em paralelo: Do ponto de vista fonológico, não há qualquer diferença entre as es- sem preferir truturas, uma vez que tanto os segmentos quanto a pauta acentual (03) sempre ferir 1 são idênticos: a sílaba do substantivo 'pé' é uma tônica que perde um sempre ver VS. sem prever grau de acento para a tônica à direita, a mais forte do A prepo- 2 0 3 1 1 3 sição 'de' constitui um clítico. Portanto, é uma forma dependente e, Nota-se, portanto, que os segmentos sonoros de cada linha são simi- por mesmo, desprovida de acento, equivalendo a uma pretônica lares, mas sua força acentual não o é. A primeira sílaba de cada verso em relação à palavra 'cana': tem força 2, por ser uma tônica que não é a última do GF, enquanto a pé de sílaba equivalente na linha de baixo invariavelmente apresenta grau 2130</p><p>MORFOLOGIA Carlos Alexandre Gonçalves 24 Do ponto de vista formal, no entanto, há uma diferença crucial entre Como se vê, a relação entre o vocábulo formal e o vocábulo fono- as sequências fonologicamente idênticas de (04): pé de cana, por ser lógico nem sempre é de um para um (unívoca ou isomórfica). Isso uma construção mais aberta, apresenta três vocábulos mórficos, va- porque formas dependentes, embora correspondam a vocábulos for- lendo cada item individualmente: trata-se de planta de cana de açú- mais, por sua atonicidade, não projetam acento próprio. Além disso, car, havendo duas formas livres ligadas por uma dependente, como compostos correspondem a uma unidade lexical, ainda que sejam o seria também em 'pé de jaca' e 'pé de coco'. No segundo caso, por oriundos de estruturas com mais de um acento. Por fim, formas pre- sua vez, a interpretação é no todo, pois 'pé-de-cana' é uma palavra sas, como o sufixo -mente e os prefixos abaixo listados, contam como composta, evocando um único significado - o de pessoa afeita à em- palavras fonológicas, apesar de serem afixos, isto é, elementos que briaguez que não necessariamente irá perpassar pelo significado portam significados apenas no interior de formas complexas. das partes. mesmo sucede com os seguintes exemplos, todos com (07) pós-operatório; antissemitismo; pré-escolar; pró-cardíaco. a mesma constituição sonora e pauta acentual idêntica, mas com di- ferentes análises formais: 1.10 Últimas notas sobre a complexa noção de palavra (05) Mais fino que dedo de moça A pimenta mais ardida é a dedo-de-moça Ele ainda é café-com-leite Como se observa, não há, ainda, designação técnica suficientemente Ele tomou café com leite Ele sempre louva a Deus nome desse inseto é louva-a-deus precisa para palavra, já que nem sempre é fácil delimitá-la. Dito de ou- tra maneira, pode haver "palavras dentro de como em 'pei- 1.9.3 presas portadoras de acento e (nomes compostos). Além disso, a intuição do fa- lante pode não ser recurso suficiente para tal delimitação, pois nem Formas presas, na grande maioria das vezes, não têm acento próprio, sempre a ideia (o aspecto semântico) coincidirá com a escrita (o as- não constituindo, por isso mesmo, vocábulo fonológico independen- pecto gráfico). Tal é o caso, por exemplo, de 'acima', por oposição a te. sufixo mente, que forma advérbios a partir de adjetivos, consti- 'em cima'. Esses exemplos revelam que as convenções da escrita po- tui exceção a essa tendência, pois, apesar de nunca se atualizar como dem ser governadas por critérios arbitrários e pontuais, manifestan- palavra, comporta-se como membro de um composto do ponto de do um grau de opacidade. Muitas vezes, não há critério consistente vista acentual. Evidência disso é a preservação das características que justifique a escolha das representações gráficas, como em 'debai- segmentais das palavras a que se adjunge, como a manutenção da grafado com unidade, e 'de cima', escrito separadamente. nasalidade fonética (06a) e de médias abertas em posição pretônica (06b). Como esse sufixo não desacentua as formas à esquerda, tam- Nem mesmo o acento pode servir de parâmetro 100% confiável para bém responde pelo fenômeno da retração acentual, como se observa a delimitação da entidade linguística palavra. Nos termos de Rosa em (c). Perceba-se que, ao produzir em alta as formas em (06c), de (2000: 77), "o que é denominado de palavra fonológica (...) pode ser a retração acentual é responsável pela resolução de um choque menor do que aquilo que desejamos considerar uma palavra no estudo acentos (sílabas tônicas ficam contíguas), cuja implementação se dá morfológico". Tal é o caso, por exemplo, da maior parte dos prefixos, pela acentuação da sílaba imediatamente anterior (em negrito, itáli- que, embora sejam formas presas, só funcionando no interior de uni- dades maiores, portam acento por serem massivamente dissilábicos CO e sublinhado): (anti-, vice-, semi-, mega-) ou monossílabos tônicos (pré-, pós-, ex-). (06) (a) suma, ainda não foi possível estabelecer um conceito geral, válido (b) em todas as línguas, para definir palavra. Como mostra Basilio (2000:</p><p>MORFOLOGIA Carlos Alexandre Gonçalves 26 10), "a possibilidade de uma real definição do termo está longe de consti- de acordo com o linguista francês André Martinet, todas as línguas tuir um projeto viável a curto prazo". Apesar das enormes dificuldades na naturais podem ser analisadas em dois planos, reconhecendo-se, as- definição desse conceito, assumimos, aqui, na esteira de Basilio (2000), sim, duas principais divisões: a ideia de palavra como unidade lexical, ou seja, uma sequência fônica articulação: plano das unidades significativas (providas de sen- que se associa, de modo relativamente estável, a um conjunto de tido), equivalendo, nos termos de Saussure, a sig- (a) significados; nos linguísticos (formas com significado e signifi- (b) propriedades sintáticas (função na frase); cante), unidades dotadas de expressão e conteúdo. (c) propriedades morfológicas (variações formais); (d) determinações de uso (informações pragmáticas). articulação: plano das unidades distintivas (segmentos sono- ros contrastivos), ou seja, daquelas desprovidas de significado, tendo apenas significante (expressão). 1.11 morfema: primeiros contatos Tais sons podem alterar significados, mas não têm A morfologia, como estudo da palavra em sua estrutura e formação, significado algum. tem como unidade básica de análise o morfema. Se tomarmos a pa- Assim, numa primeira articulação, reconhecem-se as unidades pro- lavra morfema em seus elementos significativos mínimos, estare- vidas de significado, ainda que essas possam não funcionar livre- mos fazendo uma análise morfológica, uma vez que ema constitui mente, isto é, sejam formas presas (signos linguísticos mínimos). A sufixo técnico da área de linguística e significa "menor unidade fun- menor unidade da primeira articulação é o morfema, menor forma cional", como acontece com outros termos: linguística provida de conteúdo. As unidades da segunda articula- ção, embora possam distinguir significados, não são significativas. (08) Fonema: a menor unidade da língua capaz de distinguir significados, a Por exemplo, o /s/ de não evoca qualquer conceito, mas sua exemplo de /p/ e /b/ em 'capo' e 'cabo'; Grafema: o correspondente gráfico de um fonema; pode ser realizado troca por leva a uma palavra distinta, 'zelo', sem nenhum vínculo através de mais de um grafo (a menor unidade de um sistema de escri- de significado para com a primeira. ta), como é o caso da sequência nh-, relacionada ao fonema: /n/; Resumindo, a primeira articulação se revela "nas experiências a trans- Prosodema: unidade funcional da prosódia, como o acento, o tom e a mitir, nas necessidades que se pretende revelar a outrem" (Martinet, duração, por exemplo. 1960: 34) e está para o plano do conteúdo, assim como a segunda A rigor, então, o morfema é a menor unidade formal de uma língua. articulação está para o plano da expressão. Para Martinet (1960: 35), Devemos entender por formal, aqui, não apenas uma unidade do- a segunda articulação é "a forma vocal analisável numa sucessão de tada de expressão. morfema é diferente do fonema (som da fala unidades (discretas), que contribuem todas para distinguir "cabeça" de contrastivo) justamente porque é dotado de significado ou função. outras unidades, como "cabaça", por exemplo". Desse modo, são uni- portanto, uma unidade da primeira articulação da linguagem. dades da morfologia as encontradas na articulação da linguagem. 1.12 Dupla articulação da linguagem 1.13 Morfema e morfe A articulação aqui entendida como divisão é um universal morfema é geralmente definido como a menor unidade linguística linguístico, isto é, uma característica da linguagem humana, que portadora de significado. Desse modo, que é fundamental na defi- a torna diferente de outros sistemas de comunicação. Desse modo, dessa unidade é a estrutura Se não se pode dividir a</p><p>MORFOLOGIA Carlos Alexandre 28 palavra em partes ainda menores, então este é o morfema, como, por essas entidades o nome de morfes, como se vê nos versos a seguir, em exemplo, 'mar', e 'se', formas em que não há unidade menor de que a terminação eira se repete sempre atualizando um significado: significado em seu interior. Vem cá minha compoteira Por serem entidades abstratas, morfemas se concretizam por meio Me bate com a cabideira de morfes, aqui entendidos como sua representação fonética; cons- Me chama de lavadeira tituem a maneira como morfemas são pronunciados, sua concretiza- Periga marcar bobeira ção efetiva na língua através da fala. Do mesmo modo que o fone é a Cuidado com a cristaleira manifestação de um fonema, o morfe é a realização do morfema (que Segura, me deu gagueira pode ser única ou variável, como veremos com detalhes em 2.16). Por Tá dando uma tremedeira exemplo, em 'gostosas', são reconhecidos quatro morfemas (instân- que Kleiton & Kledir) cias de significado) que se realizam nos seguintes morfes (instâncias de expressão): gost- ("apreciar"), os ("dotado de"), a ("feminino") e Obviamente, só estaremos diante de morfemas se houver pertinên- cia do significado. Por exemplo, 'alho' e apresentam uma S ("plural"). Podemos assumir, então, que o morfe é o segmento ou a sequência de segmentos que representa um dado morfema, unidade sequência que se repete, mas está longe de existir relação morfoló- gica entre essas palavras simplesmente porque não há qualquer se- semântica ou funcional. melhança semântica entre elas. mesmo acontece com 'festa', 'lista' Um morfe, portanto, é uma cadeia fonética (de sons da fala) que não e 'casta', formas em que a terminação comum sta é mera coincidência pode ser decomposta em constituintes menores com significado le- formal. Diferente é o caso de cas-a, cas-ebre, cas-eiro e cas-arão, por xical ou gramatical. É a realização de morfemas como os seguintes: exemplo, nas quais a presença de a existência de um mor- MORFEMA MORFE fema, tendo em vista que há clara relação semântica entre as palavras. Futuro do pretérito Antes de aprofundar a questão do reconhecimento dos morfemas, Aumentativo -ão precisamos esclarecer uma distinção extremamente relevante para Correr corr- a descrição da morfologia sincronia e diacronia uma vez que Anterioridade pré- temos, daqui em diante, o propósito de mostrar como se segmentam Oposto in- os vocábulos formais da língua portuguesa nos dias de hoje. Nessa tarefa, são relevados os fatos morfológicos tais como se apresentam A distinção entre morfema e morfe corresponde a uma oposição do no atual estágio da língua, sem especulações de natureza etimológi- tipo abstrato/concreto: morfema e morfe são as duas faces da unida- Assim, à morfologia não cabe o estudo da origem e da evolução de básica de análise morfológica. Mas como chegar a elas? Que crité- das palavras; tal enfoque é adotado pela etimologia, disciplina que rios podemos adotar na identificação dessas partículas? trata da descrição de uma palavra em diferentes estados de língua anteriores, até remontar ao étimo (origem). 1.14 Identificando morfemas Uma descrição morfológica pressupõe o conhecimento dos falantes acerca da estruturação interna das palavras de sua língua, mas esse Quando identificamos uma unidade mínima significativa, estamos conhecimento não abarca informações históricas. Trocando em miú- diante de uma forma recorrente que não pode ser dividida em unida- dos, falantes de uma língua intuitivamente sabem se uma palavra des recorrentes menores, nos termos de Bloomfield (1933). Damos a apresenta ou não estrutura de constituintes morfológicos. Esse</p><p>MORFOLOGIA Carlos Alexandre 30 nhecimento inato, no entanto, restringe-se a fatos que abstraem das "repetição", que aparece em 'reler, 'rever', 'reestruturar' e 'repensar', relações entre palavras no "aqui e agora" da língua. Desse modo, pro- entre tantos outros iniciados por re-. Do mesmo modo, também em curamos descrever, aproveitando-nos das palavras de Marcos Bagno, 'induzir' não há o significado de "para dentro", manifestado em pa- o que o usuário da língua sabe, mas não sabe que sabe: lavras como 'importar', 'imigrar' e 'implodir', todas sentidas como prefixadas no atual estágio da língua, dada sua estreita relação com É que qualquer pessoa tem um conhecimento amplo e fundo da 'exportar', 'emigrar' e 'explodir', respectivamente. língua (ou das línguas) que ela fala. Uma vez adquirida pela crian- ça, a língua se firma profundamente em sua cognição, e tudo o que esse indivíduo vai fazer pelo resto da vida é aprofundar ainda mais seu conhecimento intuitivo e inconsciente e, também, analítico e 1.16 Morfologia não é etimologia consciente dessa língua adquirida na infância. Como se vê, só é possível reconhecer morfes se houver, no atual es- tágio da língua, pertinência do significado, o que faz com que morfo- 1.15 Sincronia diacronia logia e etimologia sejam disciplinas relacionadas, mas distintas, uma vez que a segunda investiga justamente o étimo, ou seja, a origem das Sincronia e diacronia são conceitos distintos, mas complementares, palavras, o que pode justificar a semelhança formal entre itens lexi- usados na descrição linguística para indicar diferentes perspectivas cais, como é o caso dos verbos com 'ferir' e 'mitir', que se desenvol- de estudo da língua: sua investigação num momento específico (sin- veram a partir de um remoto étimo latino comum, *ferere e *mittere. cronia) ou sua abordagem através do tempo (diacronia). Um estudo diacrônico, portanto, envolve a sucessão de fatos linguísticos numa (10) conferir preferir inferir proferir permitir admitir demitir omitir linha temporal. sincrônico, por sua vez, desconsidera o fator tempo. remitir Como o reconhecimento das menores unidades significativas varia a Para os falantes atuais do português, morfes latinos como ceber (em depender da perspectiva adotada, o recorte feito nos estudos morfo- 'receber' e 'perceber') não veiculam sentido independente, não sen- lógicos das línguas naturais é quase exclusivamente o sincrônico. Se do interpretáveis nas palavras de que foram constituintes. Se, por assim se procede, é porque a segmentação dos elementos morfológi- um lado, a semelhança formal entre essas palavras tem origens his- cos tem, necessariamente, de ser pautada na pertinência do significa- tóricas, por outro, não há, no presente, conexão semântica forte o su- do: caso o falante não consiga estabelecer qualquer relação semânti- ficiente para que possamos interpretá-las como constituídas de um ca entre palavras cuja forma se repete, isso constitui indício de que mesmo morfema. Sincronia e diacronia, portanto, levam a interpre- aquela coincidência formal ou é obra do acaso ou constitui fruto de tações distintas acerca da estruturação interna dos verbos em (09) um relacionamento histórico. Por exemplo, embora se reconheça his- (10): diacronicamente, são palavras complexas, oriundas de uma toricamente a existência de uma raiz comum às palavras abaixo, duz-, mesma raiz; no entanto, sincronicamente não passam de palavras do latim 'ducere' ("guiar"), a identificação de morfes compromete as simples eventuais relações de significado existentes no interior das palavras: Como o estudo da morfologia é pautado no conhecimento de um (09) reduzir seduzir conduzir produzir "falante comum do português" sobre a estrutura das palavras e abduzir traduzir aduzir induzir esse conhecimento é naturalmente sincrônico, muitas formas que Nesses verbos, as sequências iniciais não contribuem para O signifi- as gramáticas insistem em considerar compostas (oriundas de cado do todo. Em 'reduzir', por exemplo, não se manifesta conteúdo duas outras palavras) hoje não passam de simples, uma vez que</p><p>MORFOLOGIA Carlos Alexandre Gonçalves 32 a distância formal e semântica não mais possibilita a identifica- 1.17 Os falantes dividem as palavras ção das bases e, consequentemente, uma interpretação mais com- da mesma maneira? posicional, feita a partir da soma dos significados das partes. Um mecanismo importante incorporado ao conhecimento linguístico Várias questões importantes nem sempre são totalmente contem- implícito dos falantes e ativado no processamento semântico das pladas nos estudos de morfologia em perspectiva sincrônica, como palavras é a composicionalidade. Esse princípio permite calcular destaca Chung (2008): como decidir o que é ou não um "componen- (e torna predizível) o significado partilhado por toda a palavra te significativo" de uma palavra? Significativo para quem? Em qual através da identificação, em separado, do significado de cada um ponto na sua educação e da sua vida? Assumindo que tipo de conhe- dos seus constituintes básicos. Sem dúvida alguma, não é o que cimento, experiência de vida e interesses? Sem dúvida alguma, nem sempre é fácil decidir o que está ou não na consciência de um "falan- acontece com as formas a seguir: te comum do português" (o não letrado, que obviamente não dispõe (11) Fidalgo filho de algo? de conhecimento do latim e do grego) em termos de estruturação de Embora em boa hora? palavras complexas. Vinagre vinho acre? Embora o falante "comum" possa não conseguir analisar, no ato, Lembrando Haspelmath (2002), os morfes podem ser definidos componentes de palavras que nós, linguistas, facilmente interpreta- como os menores constituintes significativos de uma expressão lin- mos como tais, muito provavelmente tem consciência de, pelo me- guística. Por exemplo, quando tentamos dividir 'camaleão', não obte- nos, algumas das partes. Esse conhecimento de que alguma parte mos partes que possam ser consideradas significativas, seja porque porta significado por evocação à forma e à recorrência dos sentidos não são encontradas em outras palavras (como é o caso de maleão), genéricos mesmo quando o significado mais específico é vago ou seja porque as outras palavras nas quais ocorrem não compartilham não imediatamente conhecido assegura um grau de transparência nenhum aspecto de significado com (cf. 'caboclo', 'capa- para a segmentação das palavras. cho', 'casa'), nas quais seria teoricamente possível identificar a parte falantes de uma língua natural, mesmo os não inteiramente alfa- repetida ca. Assim, não pode ser segmentada em diver- betizados, contam com algum nível de reconhecimento do morfema morfemas, sendo, portanto, Desse modo, mor- e, por isso, conseguem consensualmente interpretar como comple- femas são "os elementos definitivos da análise morfológica; são, por até mesmo palavras em que uma das partes é opaca, ou seja, não assim dizer, os átomos morfológicos" (Haspelmath, 2002: 16). Assim, inteiramente vinculada a uma instância de significado. Por exemplo, também não seria constituída do morfe 'leão', idêntico as formações com ite, abaixo listadas, são facilmente reconhecidas em forma, uma vez que não há qualquer relação de significado entre como complexas, uma vez que fazem referência a algum tipo de dis- a não ser o fato de serem animais. Isso, no entanto, túrbio orgânico evocação essa assegurada pela terminação -ite não justifica a segmentação de 'camaleão' em cama+leão porque não no órgão do corpo humano evocado pela palavra-base: se observa nem mesmo uma possível motivação metafórica (baseada na semelhança) para o nome do réptil. A parte que sobraria com essa (12) amigdalite faringite labirintite pancreatite tendinite traqueíte identificação 'cama' igualmente não contribui semanticamente com a interpretação do todo, de modo que tem mesmo A alta recorrência de ite como forma presa remetendo ao significado de ser interpretada como forma una, isto é, indecomponível (pelo de anomalia; patologia" sem dúvida alguma possibilita menos com os parâmetros assumidos). que qualquer falante interprete genericamente as formações em (13),</p><p>MORFOLOGIA Carlos Alexandre 34 a seguir, ainda que, na posição de base, não haja forma que evoque não podem ser dissecados em unidades significativas ain- diretamente o órgão em que a infecção ocorre. Ainda assim, a seg- da menores; mentação das palavras é possível, embora nem sempre com a mesma são recicláveis, isto é, podem ser usados quantas vezes precisão para todos os falantes: a ideia genérica de enfermidade infla- forem necessárias para veicular os significados que car- matória é garantida pela alta transparência de -ite, embora os falantes reiam, como o eira da música que possam hesitar sobre a parte do corpo em que a infecção ocorre, já que a reciclabilidade pode ser enganosa, pois apesar de se- as bases (formas em posição de núcleo lexical) são opacas (não têm rem usados repetidas vezes em diferentes combinações livre curso na língua, ou seja, não se atualizam como palavras): partes não morfêmicas de palavras podem parecer aci- dentalmente morfes familiares, como é o caso de 'cadeira', (13) sinusite rinite bursite 'beira' e 'feira'; nefrite mastite otite não devem ser confundidos com sílabas, pois podem va- Esse mesmo raciocínio é válido para pares de palavras com significa- riar sensivelmente de comprimento; sílabas e segmentos do relacionado, mas sem elemento recorrente na posição de radical: são unidades de pronúncia (não de significado); cada palavra deve conter pelo menos um morfema. (14) Agente/adepto Qualidade/ideologia nazismo nazista Na próxima seção, abordamos a segmentação das palavras, mostran- fascista fascismo pugilista pugilismo do a metodologia frequentemente adotada na análise morfológica das línguas. Embora não haja uma forma com livre curso (disponível no atual es- tágio da língua) na posição de radical, a forte conexão entre o adje- tivo X-ista o substantivo abstrato X-ismo possibilita estabelecer um 1.18 A técnica da comutação padrão lexical que garanta a isolabilidade das partes, ainda que com Para segmentarmos as formas livres e dependentes, identificando as alguma opacidade, ou seja, quando um dos elementos encontrados possíveis formas presas, aplicamos a técnica chamada de comuta- não porta significado claramente identificável. Esse procedimento analítico está baseado na ideia de que, nas Falantes abstraem esquemas gerais a partir de seu contato com a lín- "tudo é oposição" (Saussure, 1912: 169) e "consiste na subs- gua. Esses esquemas fazem parte do léxico e são estruturas simbóli- pelo confronto, de uma forma por outra" (Martinet, 160: 24). cas que formalizam conceitos genéricos estocados na memória. Des- Ao contrário da fonologia, em que esse método atua unicamente pela sa maneira, representam conhecimento, na medida em que acessam permuta de um som por outro, com vistas a observar se significados os alicerces que sustentam informações linguísticas e enciclopédicas, alteram, na morfologia, a comutação deve sempre considerar se abstraídas de experiências do mundo a partir das quais se depreen- semelhanças e diferenças formais correspondem, também, a se- dem generalizações. Essas generalizações dificilmente seriam alcan- melhanças e diferenças na significação dos termos em contraste. Nos çadas em 'rubrica', 'rubi' e 'rubéola', todas oriundas de 'rubro' e com a seguir, em (16), a troca de uma parte por outra, ao mesmo rub- na primeira posição, mas hoje sem qualquer vínculo de signifi- tempo em que leva a uma diferença de significado, também corres- cado, pois as primeiras estão longe de evocar a ideia de "vermelho". a uma semelhança no conteúdo das formas em oposição. Em Em resumo, como os morfes são as menores unidades portadoras de por sua vez, a troca de um som por outro altera a palavra, mas significado, entre as formas comparadas, qualquer vínculo de significado:</p><p>MORFOLOGIA Carlos Alexandre Gonçalves 36 (15) pata, bata, data, cata, gata, mata, nata privação; oposto", o mesmo encontrado em 'descrer', 'desmontar', (16) (a) fritá-va-mos p. do pl. do imperfeito do indicativo de FRITAR 'desarmar'. Por fim, de 'mito' para 'mitificar', reconhecemos o nú- (b) frita-re-mos p. do pl. do futuro do presente de FRITAR cleo lexical mit-, sequência comum às duas palavras. sufixo ific, (c) fritá-sse-mos p. do pl. do imperfeito do subjuntivo de FRITAR p. do pl. do mais-que-perfeito de FRITAR que significa "transformar-se em", também pode ser isolado por (d) fritá-ra-mos aparecer em vários outros verbos derivados de adjetivos: 'fortificar', Foi o estruturalismo que nos forneceu os métodos apropriados 'frutificar'. Desse modo, observando as propriedades de para identificar um morfema e, consequentemente, segmentar um (a) a (d), acima formuladas, chegamos à seguinte segmentação: des- todo em partes discretas mínimas dotadas de significado. Na mor- fologia, as unidades são identificadas porque podem ser substituí- das por outras de igual valor. De acordo com Saussure, o valor das formas linguísticas surge justamente da oposição a outras formas, 1.19 Segmentação: transparência opacidade dando origem a contrastes gramaticais, como nas trocas efetuadas Pela comutação, além de dividirmos as palavras em partes discretas em (16). Além disso, por serem recicláveis, morfes aparecem recor- rentemente em contextos semelhantes. Pela técnica da comutação, é mínimas, ou seja, em morfes, também determinamos o grau de opa- cidade da segmentação. São totalmente transparentes as palavras possível enumerar as propriedades que uma unidade precisa apre- em que a parte constante é recorrente e o que sobra tem livre curso sentar para ser considerada realização de um morfema (Fábregas & na língua, ou seja, está disponível na atual sincronia: Scalise, 2012: 22): (17) cop-eiro (a) ISOLABILIDADE: deve ser isolável, isto é, deve ser possível jardin-eiro todas as palavras têm eiro e indicam profissões; identificá-la e separá-la do resto da palavra; sapat-eiro o que sobra com a retirada de eiro corresponde a uma palavra CONTRASTIVIDADE: no contexto identificado, deve poder verdur-eiro (b) ser substituída por outras, dando origem a diferenças gramaticais e/ou semânticas; semitransparentes as construções em que uma sequência não é RECORRÊNCIA: não pode se restringir a uma palavra recorrente, seja por corresponder a uma partícula sem livre curso, (c) em (18a), em que o radical não se vincula a qualquer palavra específica; (d) SIGNIFICADO: deve estar associado a um significado da língua, seja porque um elemento em posição de afixo só aparece forma linguística, como em (18b), ainda que o radical seja ple- específico. identificado. Pensemos na segmentação de uma forma verbal como semos'. Primeiramente, devemos contrastar essa forma com outras, (18) (a) marcen-eiro, pad-eiro, serralh-eiro, carpint-eiro (b) natur-eba, beb-um, cas-ebre, cop-ázio a exemplo de e Pela distintivida- de, isolamos a partícula mos, cujo significado é pessoa do plu- e 'padeiro', por exemplo, são profissões, mas o que so- ral", recorrente, com o mesmo sentido, em várias formas verbais: com a retirada de -eiro não se identifica com qualquer palavra 'cantamos', 'servimos', 'comemos'. Pelos mesmos motivos, também marcen- e pad- só aparecem, também, nas formas X-aria isolamos o sse, por contraste a ria ('desmitificaríamos') ou a va com as quais X-eiro profissional cria padrão para- ('desmitificávamos'), com o significado de "imperfeito do 'serralheria', 'padaria', quin- vo", recorrente, também, em 'cantasse', e 'comesse'. Ainda Em situação diametralmente oposta, 'bebum' e 'casebre' podemos isolar des-, forma relacionada ao significado "sufixos" - um -ebre que não aparecem em outras pala-</p><p>MORFOLOGIA Carlos Alexandre Gonçalves 38 vras a não ser nelas, embora as bases beb- e cas- sejam imediatamen- da primeira coluna do quadro 3) ou com algum grau de opacidade te reconhecidas como vinculadas ao verbo 'beber' e ao substantivo (segunda coluna). Por exemplo, os nomes de instrumentos são cla- 'casa', respectivamente. ramente vinculados à terminação (d)eira. Nas formas do primeiro As situações ilustradas nos exemplos em (18) são bem diferentes da- grupo, a função do objeto é previsível a partir da base: 'bater', 'assar', quelas examinadas em 1.15. Naqueles casos, e nos abaixo reproduzi- 'pipoca'. Nas semitransparentes, a ideia de instrumento se atualiza, dos, não há condições para a isolabilidade das partes, uma vez que muito embora nem todo falante, por exemplo, acesse a forma verbal nenhuma das unidades em comum se associa a significado algum, sen- 'frigir' ("fritar"), podendo não identificar 100% a base, uma vez que do as palavras da primeira linha interpretadas no todo, ou seja, sem esse verbo é pouco usual nos dias de hoje. é ainda mais acesso às partes, entendidas como meras sequências fonológicas: arcaico. No entanto, constitui instrumento, assim como 'peneira', que muito remotamente mantém conexão com o substanti- (19) re-pele mo-ção a-gir rom-ário 'pena'. Nas formas opacas desse exercício de comutação 'madei- pele mo-ver a-ção ot-ário e 'ladeira' não há a menor chance de se reconhecer A comutação é o procedimento básico para a identificação de morfe- estrutura interna, uma vez que nem de longe essas palavras se rela- mas. Mas em que situações pode ser aplicada com sucesso? Em que cionam com as demais, que sempre veiculam a ideia de instrumento. outras não leva ao reconhecimento de unidades morfológicas? Resumindo, podemos segmentar palavras ainda que com alguma Podemos dividir as formas linguísticas em três grandes grupos, con- opacidade. A condição necessária para efetuar os cortes é a forme a possibilidade de isolamento de suas eventuais partes míni- não reconhecimento das bases não inviabiliza as divisões, mui- mas significativas: to embora comprometa o entendimento global das construções, uma SEMITRANSPARENTES OPACAS vez que os falantes não dominam, da mesma maneira, o vocabulário TRANSPARENTES de uma língua nem dispõem de conhecimento histórico-etimológico, Uma das partes é altamente re- A semelhança formal não As partes recorrem, e o todo é claramente dividido em uni- corrente e assegura o significado é suficiente para estabe- embora a complexidade das palavras e intuitivamente mais geral da construção. A outra lecer conexão semântica dades que contribuem efetiva- "saibam" que é um morfema. porção é opaca porque constitui entre as unidades con- mente para a interpretação da forma complexa: a soma das forma não disponível nos dias de trastantes. A sequência comum não é fruto de partes equivale ao significado hoje. relacionamento morfo- do todo. Segmentação e conhecimento enciclopédico lógico entre as palavras. batedeira, assadeira, pipoqueira frigideira, escumadeira, peneira madeira, beira, bandeira Retomando Chung (2008), a questão de decidir o que é ou não um artrose, nefrose, lordose, micose dose, pose, rose fibrose, leococitose, parasitose depende de fatores variados, como o grau de escolaridade glossário, dicionário, sumário bário, binário, corsário fichário, hinário, ementário falante, sua relação com a leitura, os conhecimentos que adqui- Quadro 3: Graus de transparência na segmentação das palavras. longo da vida ou mesmo seus interesses particulares. Desse usuários da língua podem divergir em relação à opacidade A identificação das unidades de análise morfológica requer de uma forma como para aqueles que conhecem o verbo cia sincrônica no significado das formas postas em confronto. Caso forma é altamente transparente; para os que não têm acesso as semelhanças possibilitem vislumbrar uma recorrência de forma a forma em questão é semitransparente, pois interpretam associada a um padrão de significado, estamos diante de palavras como um nome de instrumento, graças à alta recorrência complexas, restando saber se maximamente transparentes (como terminação na expressão desse significado.</p><p>MORFOLOGIA Carlos Alexandre Gonçalves 40 CAPÍTULO Falantes mais escolarizados e/ou mais velhos normalmente têm co- 2 nhecimento enciclopédico maior, pois adquiriram mais experiências sobre o mundo e, consequentemente, sobre a linguagem. Embora a transparência morfossemântica possa variar de um falante para ou- tro, temos de nos pautar em critérios objetivos para decidir se uma Estruturas morfológicas palavra deve ou não ser dividida em partes discretas mínimas no do português atual estágio sincrônico. 1.21 Palavras finais Apesar da importância do conhecimento enciclopédico e da eficácia de dicionários etimológicos ou outros instrumentos que auxiliam no processo de segmentação, com vistas à pertinência do significado, 2.1 Para início de conversa insistimos que os falantes, em geral, não dispõem de conhecimento acerca da etimologia ou da história da língua, pois essa informação No capítulo 1, observamos as características básicas dos morfemas e os critérios adotados em sua identificação. Neste capítulo, primei- (i) não é comum a todos; fazemos um inventário dos tipos morfológicos - radical, (ii) não é acessível a sua intuição linguística; (iii) é adquirida em contexto formal explícito, como resultado de afixo, desinência etc. para, em seguida, descrever os principais fenômenos de análise morfológica. Nessa última empreitada, dedi- uma experiência cultural. camos especial atenção à alomorfia, mostrando que o componente Em resumo, em morfologia, é comum não aceitarmos como perti- morfológico de uma língua pode ser fortemente influenciado por nentes para a descrição linguística sincrônica aspectos da forma e da questões de natureza fonológica. estrutura das palavras atribuíveis unicamente à etimologia e à evo- lução histórica da língua. No próximo capítulo, dedicamo-nos à des- crição dos tipos morfológicos: sua natureza e função. Também abor- 2.2 Morfemas lexicais e gramaticais damos os principais fenômenos de análise morfológica, enfatizando Os morfemas podem ser divididos em dois grupos principais: os le- a questão da variabilidade na representação fonética de morfemas. e os gramaticais. Os primeiros veiculam conteúdo que diz respeito ao universo biossocial, como se vê nas sequências permu- tadas a seguir, cujos conteúdos principais são modificados pela ideia de presente do subjuntivo: (20) cant-e estud-e compr-e esmagu-e suj-e morfemas gramaticais, por sua vez, dizem respeito a significa- que especializam as noções veiculadas pelos lexicais, como é o por exemplo, das informações de número singular, nos nomes, futuro do pretérito, nos Assim, dá-se o nome genérico de</p><p>MORFOLOGIA Carlos Alexandre Gonçalves 42 morfema gramatical a todos os formativos que orbitam em torno do (21) abdominal estomacal mortal palatal renal filial lexical. Comecemos a descrição dos tipos morfológicos com uma uni- dental vital nasal dade que cobre o inventário mais aberto de significados: os radicais. Em todas as palavras de (21), o radical pode ser isolado com a reti- rada de al, o que não acontece com 'rival', hoje indecomponível. Da 2.3 Radical mesma maneira, o radical de é nociv-, obtido a partir da co- Damos o nome de radical (ou morfema nuclear, ou lexical) ao ele- mutação com, por exemplo, e mento originário e irredutível que concentra a significação dos vocá- bulos formais. Desse modo, é a partícula comum a todas as palavras 2.5 Índices temáticos da mesma família, ditas cognatas, como camp-, em 'campo', par', 'campista', 'campina' e 'campestre', entre outras. Obtém-se o Índices temáticos são unidades da flexão e, embora não veiculem radical eliminando-se todos os demais morfemas gramaticais a ele qualquer informação semântica, têm importante função morfológi- associados. Assim, radical é a palavra despojada de todas as suas ca: servem para agrupar as formas da língua em classes, como fazem marcas flexionais e derivacionais, como garot-, forma a que se chega, as vogais temáticas verbais, que distinguem os três grandes conjun- extraindo-se, por exemplo, as marcas de diminutivo, feminino e plu- tos de verbos, as chamadas conjugações grupamentos segundo ral de um padrão de flexão; disposição sistemática das formas flexionadas de um verbo com vogal a; C2 com e; com i): 2.4 Raiz e radical (22) C1 C, C3 cant-a(r), vend-e(r), part-i(r) Em geral, o termo raiz está associado a uma perspectiva diacrônica, Se, por um lado, pertencer a uma dada classe temática não implica razão pela qual optamos por radical, embora essas denominações qualquer relevância sintática ou semântica, por outro, o comporta- acabem se nivelando na prática. Por exemplo, as palavras 'nocivo', mento morfológico do verbo é diretamente afetado, sobretudo quando 'inocente' e apresentam a mesma raiz, numa perspectiva primeira conjugação (C1) requer marca morfológica própria, como diacrônica, pois todas provêm de noc- (do latim nocere = "prejudi- no presente do subjuntivo (23a) e no imperfeito do indicativo (23b): car"), muito embora seus radicais sejam diferentes, uma vez que, nos dias de hoje, falantes não estabelecem qualquer relação de significa- (23) C1 C, C3 do entre essas palavras, pois nem todas manifestam mais o conteúdo a. cant-e vend-a part-a b. cant-a-va vend-ia part-ia "causar dano". mesmo raciocínio é válido para 'rival', que só etimo- logicamente remete à noção de "rio" e apresenta a raiz latina riv-, do Desse modo, C2 e C3 podem se envolver num fenômeno chamado de latim, rivus. Sem dúvida alguma, o falante comum de português igno- neutralização, que consiste na perda do contraste entre catego- ra esse tipo de informação e interpreta a palavra holisticamente, isto gramaticais, como é o caso da falta de distinção entre a segun- é, sem acesso às partes. Hoje, o radical é, sem dúvida alguma, da a terceira conjugações nas situações de (23). De fato, nesses porque essa forma sequer é um adjetivo e está longe de se interpre- há oposição apenas entre C1 e as demais conjugações (C2, tada como "relativo ao rio". Na lista abaixo, adjetivos X-al remetem ao como também acontece no particípio passado, com contraste significado genérico de "referente / relativo apenas entre ado e</p><p>MORFOLOGIA Carlos Alexandre Gonçalves 44 (24) C1 C2 C3 que ela possa não se manifestar foneticamente. A primeira pessoa do canta-do vendi-do parti-do presente do indicativo e todas as formas do presente do subjuntivo não exibem esse constituinte, por conta de uma regra fonológica de Outra diferença formal entre as conjugações verbais, determinadas apagamento na fronteira (+) com o elemento seguinte, uma marca pelas vogais temáticas, é a irregularidade, encontrada flexional também expressa por vogal: na C2 e na De fato, verbos de como lembram Villalva & Silvestre (2014: 125), são mais regulares. Desse modo, casos de fusão, como (25) cant+(a)+o vend+(e)+o part+(i)+o detalharemos mais adiante, somente ocorrem em C2 e C3, estando a cant+(a)+e vend+(e)+a part+(a)+a talvez em função de ser uma classe mais aberta de formas ver- bais menos propensa a esse De fato, verbos irregulares, Nos casos em (25), pode-se recorrer ao uso dos parênteses para in- como 'trazer', 'caber', 'sentir' e 'dormir', que apresentam mais de uma dicar que a VT só não se atualiza porque foi apagada no contato com forma de raiz ('trago', 'coube', 'sinto', 'durmo'), pertencem à C2 ou à a marca morfológica seguinte. Desse modo, não constitui propria- mente um zero, pois só não se manifesta por questões de natureza fonotática (distribuição dos segmentos sonoros na cadeia fônica). 2.6 Existe verbo de conjugação? Há várias diferenças entre as VTs verbais e as VTs nominais. Em pri- Se a vogal do verbo determina a sua conjugação, verbos terminados meiro lugar, as verbais apresentam clara função distributiva, uma vez em -or 'repor', 'transpor', 'dispor' etc.) formariam uma quarta que respondem por escolhas morfológicas, preparando o verbo para classe flexional? verbo irregular 'pôr' pertence à segunda conjuga- flexão adequada. Em segundo lugar, são obrigatórias e não finais; ção e formou, ao longo do tempo, várias formas hoje não mais inter- não se realizam foneticamente quando a concatenação morfológi- pretadas como complexas: 'justapor', 'expor', 'pospor', 'apor', 'impor'. ca leva ao seu apagamento pelo contato com outra vogal adjacente. No português arcaico, apresentava-se como 'poer', classificando-se, Além disso, VTs verbais podem ser acentuadas ou não, ao contrário portanto, como de Reminiscências dessa forma arcaica são os ad- das nominais, que sempre se afiguram como elementos terminais e jetivos 'poente' (à semelhança de 'absorvente' e 'crescente', da se- sempre átonas e orais. gunda conjugação) e 'poedeira' (galinha poedeira), em que a presen- Os nomes dividem-se em temáticos (com VT) e atemáticos (sem esse ça da vogal e- sinaliza a primitiva conjugação do verbo constituinte). Substantivos e adjetivos terminados em vogal tônica, Além desses fatos, que apresentam explicação histórica, na própria ou consoante, como 'pai' e 'mar', respectivamente, conjugação dos verbos em or, encontramos a vogal que caracteriza a são desprovidos de VT. A ausência de VTs nominais não se explica fo- 'imporEs', 'repusEr', 'transpusEsse', 'dispusEmos', 'expusEra'. A como ocorre com as verbais. No quadro 4, resumem- presença da vogal e- nas formas flexionadas desses verbos contraria a as principais diferenças entre esses elementos morfológicos: existência de uma quarta conjugação e reforça a ideia de haver, quanto à VT, apenas três grupamentos de verbos em português: VT VERBAL VT NOMINAL Obrigatoriedade Obrigatória Não obrigatória na palavra Medial Final 2.7 Tema ou átonas Sempre átonas o tema é um constituinte secundário, pois resulta da união de um Distribuir os verbos em classes Completar a palavra dical com uma vogal temática (VT). Todo verbo apresenta VT, ainda 45</p><p>MORFOLOGIA Carlos Alexandre Gonçalves 46 Unidades [a] cantaremos [e] casa livres. Por esse motivo, radicais livres dispensam esse constituinte, [e] venderemos tomate pois, por sua constituição fonológica, já equivalem a palavras, como [i] : partiremos [u] livro se vê em (26). Como essas vogais servem justamente para "libertar" Sempre utilizada nas forma- Não utilizadas nas forma- Estatuto nas derivações formas presas, aparecem apenas em itens lexicais como os listados ções deverbais: ções denominais: anular > anulação casa > caseiro em (27), a seguir: reger > regência tomate > tomatal livro > livraria (27) arm-a preferir > preferível port-o sort-e praç-a preç-o verd-e Quadro 4: Principais diferenças entre vogais temáticas verbais e nominais. mes-a átom-o aram-e 2.8 Atualizadores lexicais 2.9 Atualizador lexical e gênero VTs nominais, por sua natureza, são mais bem acolhidas sob as ru- Pelos dados em (27), nota-se uma função secundária nos atualiza- bricas marcador de palavras (Lee, 1995) ou atualizador lexical dores lexicais a e o: a categorização da palavra quanto ao gênero. Ao (Bechara, 1999), dadas as inúmeras diferenças em relação às VTs ver- contrário das formas terminadas em e, que não apresentam corre- bais, estas sim elementos morfológicos com função precípua de distri- lação direta com as especificações masculino ou feminino, as formas buir as palavras de uma dada classe em grupos formais bem definidos, em o são quase categoricamente masculinas e as em a, maciçamente como as conjugações. As VTs nominais do português, ao contrário das De fato, excetuando-se as formas em (28) e aquelas oriun- existentes em línguas como o latim e o grego, não definem declina- das de encurtamento, como 'foto', 'moto', 'expo' e a associação ções, pois não constituem variações dos nomes correspondentes aos entre vogal o e gênero masculino é inteiramente previsível: diversos casos, de acordo coma função sintática na frase (sujeito, ob- jeto direto etc.). Em português, sequer são constituintes obrigatórios, (28) tribo virago imago libido pois há vários nomes atemáticos, como se vê na lista a seguir: soprano (26) anel caqui rei Também é previsível a relação entre vogal final -a e gênero femini- sofá pai no. Nesse caso, os contraexemplos são um pouco mais numerosos, luz glacê totem céu mas diminuem consideravelmente, quando observadas as seguintes situações: Depreende-se, dos exemplos em (26), que são temáticas apenas as (a) casos em que essa vogal faz parte de um sufixo erudito forma- palavras terminadas em vogal átona e oral. Esses dados sugerem que, dor de nomes femininos, como ema ("menor unidade funcio- nos nomes, cabe aos marcadores de palavras o papel primeiro de nal"), oma ("neoplasia") e eta ("pequeno"): atualizá-la para funcionar como palavra, integrando-a no léxico (29) morfema, fonema, lexema, grafema Muitas vezes o radical não pode funcionar imediatamente como pa- lavra; completa-o uma vogal para constituir o tema da palavra e por (30) o carcinoma, genoma, leucoma, fibroma isso se chama vogal temática ou atualizador léxico, isto é, atualiza-o (31) o planeta, gameta, cometa, profeta, poeta para funcionar concretamente no discurso (Bechara, 1999: 337). palavras complexas terminadas em formativos como grama e -cida: Dito de outra maneira, os atualizadores lexicais têm a função de com- (32) cardiograma, fluxograma, espectrograma pletar a palavra, fazendo com que radicais presos se transformem em inseticida, pesticida, raticida, germicida</p><p>MORFOLOGIA Carlos Alexandre Gonçalves 48 (c) palavras complexas terminadas em formativos como -ista e posicionais, aparecendo em posição predeterminada na estrutura nauta, que sempre respondem por uma oposição sintática de das palavras, vindo daí a distinção entre os vários tipos encontrados gênero, não sendo inerentemente femininas ou masculinas: nas línguas do mundo: prefixo, sufixo, infixo, circunfixo (ou simulfi- (33) o/a marxista, linguista, skatista, kardecista transfixo, suprafixo, interfixo, confixo. astronauta, aeronauta, internauta (d) palavras simples terminadas em a, mas comuns de dois, isto é, 2.10.1 Prefixos e sufixos: primeiros olhares sem gênero inerente, assim como vemos em (33): (34) o/a colega, sovina, careca, coringa, camarada Os termos técnicos X-fixo e se definem pela própria constituição mor- fológica da palavra. Desse modo, o elemento recorrente, fixo, corres- (e) nomes a maioria esmagadora de origem grega - contendo ponde ao radical núcleo básico de significação da palavra e o terminações não morfêmicas em que o a é precedido da nasal tipo de afixo é determinado pelo formativo que o precede. Assim, labial /m/: prefixo é a forma que aparece antes da base, como em e (35) drama, trauma, trema, problema, dogma, panorama, sistema, sufixo, o elemento anexado após esse constituinte, como poema, clima, estigma, magma, esperma, programa (do grego) carma, brama (de outras línguas) Em 2.11, mostraremos as várias outras diferenças entre esses dois principais afixos do português. Como se vê, a enorme lista de casos excepcionais se reduz drastica- mente, restringindo-se apenas a nomes como os abaixo listados, em 2.10.2 Infixos que a palavra termina em a, mas não remete ao gênero feminino: (36) omapa, papa, dia, gorila. infixo aparece no interior do radical, tornando-o descontínuo (fracionado em partes), como é o caso do tagalog, um dos principais Por outro lado, o gênero não constitui propriedade gramatical deter- das Filipinas, em que imposições silábicas (como o preen- minada pela vogal final (atualizador léxico), uma vez que formas ate- chimento da posição de onset) deslocam o formativo um- para po- máticas também portam essa informação ('o anel', 'a 'o/a már- sições mais internas, fazendo com que ele se realize no interior da tir'). Nesse sentido, consideramos secundária a atribuição de gênero base (Kager, 1999: 225): dos atualizadores lexicais a e As formas em -e, como vimos, ficam de fora, por não possibilitarem qualquer inferência quanto ao gênero dos (38) preno "quebrar" pr-um-eno "quebrando" nomes, sendo, por isso mesmo, de natureza mais idiossincrática: súlat "escrever" s-um-úlat "escrevendo" grádwet "graduar" gr-um-ádwet "graduando" (37) femininos masculinos ponte pente Circunfixos sorte porte fonte bonde peste poste 0 circunfixo, ao contrário do infixo, é o próprio elemento descon- e, por isso mesmo, aparece em diferentes lugares da cadeia Bastante usual nas línguas germânicas, é um tipo de 2.10 Afixos que "cerca" a palavra, anexando-se, simultaneamente, em suas Afixos são unidades que se adjungem ao radical para, a partir dele, Por exemplo, na formação do particípio passado em ale- formar novas palavras; são regidas por fortes restrições usa-se para verbos regulares, como spielen ("jogar") e</p><p>MORFOLOGIA Carlos Alexandre Gonçalves 50 töten ("matar"), que formam, nessa ordem, os particípios ge-spiel-t tre as quais são inseridos (ou intercalados) conjuntos de vogais, ca- e ge-töt-et. Em holandês, uma forma similar de circunfixo, ge-...-te, racteriza a estrutura morfológica básica das formas verbais. Desse é usada para criar nomes coletivos, como em berg ("montanha") modo, as consoantes da raiz dificilmente ocorrem em sequência, gebergte ("cadeia de montanhas"). pois vogais, que também não ficam adjacentes, respondem pela ex- Por esse conjunto de dados, infere-se que o circunfixo é um afixo pressão das categorias gramaticais, como tempo e caso. Uma forma com duas partes: uma colocada no início da palavra e outra no seu como qitalun ("morte") constitui substantivo no nominativo (as vo- final. Assim, esse elemento morfológico único posto que uma, e gais, nessa sequência, nominalizam o verbo qtl e informam a função somente uma, é a contribuição de significado fraciona-se em dois sintática dessa palavra). Uma forma como saafir expressa o impera- para que, no seu interior, seja anexado o radical. Em português, casos tivo do verbo sfr ("viaje"). mais padronizados de circunfixação envolvem a adição simultânea de uma forma de prefixo e outra de sufixo para efeitos de alteração Suprafixos categorial (um adjetivo passa a verbo) e expressão do significado "mudança de estado" Suprafixos são afixos de natureza prosódica, como o acento nos pares e entre tantos ou- (39) parte inicial parte final trist ecer tros. Nesses pares, o acento determina a classe a que a palavra pertence, en velh ecer en se nome ou verbo (paroxítono). Em 2.15.5, voltaremos surd ecer en assunto, observando o alcance dos suprafixos em eN ecer "ficar X" Como só há uma diferença de significado do derivante para deriva- Interfixos do, uma proposta que evita a proliferação indiscriminada de formas sem significado considera os exemplos em (39) casos emblemáticos são elementos relacionais que aparecem entre duas uni- de circunfixação, uma vez que se assemelham - e muito aos en- dades morfológicas, como será detalhado mais à frente, quando contrados nas línguas germânicas, nas quais a existência de circun- abordarmos as vogais e consoantes de ligação fixos é amplamente aceita. De acordo com Rio-Torto (1988), o termo circunfixação substitui com vantagem o rótulo parassíntese, "mar- cado por acentuado caráter equívoco": os segmentos inicial e final Confixos "deixam de ter o estatuto de verdadeiros prefixo e sufixo, para adquiri- rem o de constituintes circunfixais, um ocorrendo em posição prefixal, fim, termo confixo remete a um formativo caracterizado por posicional, podendo ocorrer tanto na margem esquerda, outro em posição sufixal" (Rio-Torto, 1998: 214). quanto na margem direita de uma palavra complexa, a exemplo de que, como se vê nos dados a seguir, pode expressar diferentes 2.10.4 Transfixos significados relacionados à noção genérica de "som": Transfixos são unidades descontínuas e atuam em bases (40) Borda esquerda Borda direita te descontínuas (Petter, 2003). Em árabe, palavras são comumente fonoteca francófono fonética formadas com base em raízes triconsonantais, como qtl "matar" lusófono foniatria telefone e sfr Nessa língua, um conjunto de três consoantes, fonologia acrofonia</p><p>MORFOLOGIA Carlos Alexandre Gonçalves 2.11 Das diferenças entre prefixo e sufixo Os pouquíssimos exemplos de prefixação com mudança de classe de modo algum comprometem a tendência mais geral: em No caso do português, os principais afixos são os prefixos e os sufi- prefixos não são cabeças categoriais das construções morfológicas XOS, formas presas que não podem ser instanciadas isoladamente na de que participam, uma vez que não promovem alteração na classe língua, não produzindo, sozinhas, o que Bloomfield (1933) chama de da palavra-base. "comunicação suficiente". A posição em relação à base se à direita ou à esquerda é, no entanto, a "diferença mais superficial" (Sand- mann, 1991: 38) entre esses dois constituintes. 2.11.2 Especificação de gênero Além de não serem cabeças categoriais, prefixos também não são 2.11.1 Mudança de classe cabeças morfológicas de palavras complexas, ao contrário dos su- fixos, que quase sempre determinam o gênero da palavra resul- Em primeiro lugar, prefixos não determinam a categoria lexical da tante. De fato, a maior parte dos sufixos é responsável pela especi- palavra complexa que formam, ou seja, são categorialmente neutros, ficação feminino / masculino do produto, como se vê no quadro 6. não apresentando o que Basilio (1987) denomina de função sintáti- Por sua posição à esquerda, prefixos jamais respondem por esse ca capacidade que um formativo apresenta de alterar a classe de tipo de informação. base. De fato, na prefixação, base e produto têm a mesma especifica- ção categorial, como atestam os dados em (41), a seguir. FEMININOS sufixo exemplos sufixo exemplos (41) [re [pensar] [des [crente] Ad ] Adj [pré [vestibular] S a abolição; -mento o abatimento a cassação; A sufixação, ao contrário, pode promover mudanças variadas de o entupimento a interdição o ferimento classe, a exemplo das observadas no quadro 5: a reitoria -ário o ranário a delegacia S Adj Adj Adv glossário S, Adj V a secretaria fichário -ice; -vel; -ense; -izar; -mente a velhice -tório lavatório -mento; -idade -ar -escer a tolice -tório -nte o escritório a gaiatice o dormitório esquisitice gerenciável canadense agilizar felizmente merecimento Quadro Sufixos formadores de nomes femininos e masculinos (Gonçalves, 2012: 150). lavatório lealdade estafante hospitalar florescer certamente Quadro 5: Mudanças de classe implementadas por sufixos (Gonçalves, 2012: 149). Elaboração de paráfrases Obviamente, essa diferença se aplica apenas aos representantes são cabeças semânticas, sufixos constituem a peça-chave na in- mais centrais (prototípicos), pois vários sufixos do português não terpretação de uma palavra. Por exemplo, na paráfrase de uma forma mudam classes, a exemplo dos listados em (42), a seguir. Casos de significado do sufixo geralmente é colocado em primeiro alteração categorial em formas prefixadas, como em [a [moral] equivalendo ao de um substantivo. Prefixos, ao contrário, são e [ anti [rugas] S são extremamente raros: pois são sempre parafraseáveis por advérbios e adje- (42) [jornal] ista [gord] inho não funcionando como cabeças As interpretações Ad em (43a) e (43b) comprovam o que estamos afirmando:</p><p>MORFOLOGIA Carlos Alexandre Gonçalves 54 (43) (a) dentista "profissional que cuida dos dentes" da de designatum, ou seja, elemento extralinguístico, real ou imagi- martelada "golpe dado com o martelo" "nascido no estado do Pará" nário, indicado por um signo linguístico). Impressões positivas são paraense também encontradas na sufixação: e 'gos- refazer "fazer novamente" (b) qualificam os referentes a partir de atributos como conforto, sobrepeso "peso a mais" beleza e qualidade. megashow "grande show" A prefixação, por operar com significados mais gramaticais, di- Conclui-se, portanto, que sufixos constituem o núcleo (cabeça) de ficilmente revela o impacto pragmático do falante em relação ao uma palavra morfologicamente complexa, enquanto prefixos sem- enunciado, ao referente ou ao interlocutor a não ser nos casos pre se comportam como adjuntos. Recorrendo a Sandmann (1990), de gradação intensiva, instanciados por elementos como super-, podemos afirmar que prefixos são sempre determinantes (DT), en- mega-, ultra- e Em outras palavras, a prefixação não mani- quanto sufixos funcionam como determinados (DM). festa a modalização apreciativa, "através da qual o locutor imprime sua marca ao enunciado, inscrevendo-se, explícita ou implicitamente, na mensagem" 2011: 45). Prefixos são neutros do ponto 2.11.4 Bases a que se adjungem de vista expressivo, sendo raras formações como 'desprefeito', em Outra diferença entre prefixos e sufixos diz respeito, nos termos de que falante em xeque a eficiência do administrador público, Villalva (1994), à variável lexical que selecionam. Prefixos combi- 'submundo', termo usado em referência a uma espécie de "mundo nam-se com palavras e, por isso mesmo, são menos aderentes, po- inferior", de que fazem parte marginais ou delinquentes, vistos como dendo ser retirados sem resultar numa forma presa (44a). Sufixos grupo social organizado. denominais, por sua vez, agregam-se predominantemente a radicais (44b), sendo raros os que se combinam com palavras, como mente Projeção de palavras prosódicas ('sabiamente') e zinho ('elazinha'). Desse modo, a retirada do sufixo resulta numa forma presa: Do ponto de vista fonológico, a maior parte dos prefixos projeta pa- in-feliz des-leal a-normal pré-teste sub-gerente lavra prosódica independente, fazendo com que a construção morfo- (44) a. b. apit-aço bel-eza paraib-ano paul-ista tim-inho lógica resultante se realize sob dois acentos. À exceção de in-, des- e prefixos fonologicamente funcionam como palavras autônomas, é, portam acento próprio, pois são dissílabos como 2.11.5 Expressividade contra-, entre-, mega- e super-, ou monossílabos tônicos, a exemplo Prefixos se caracterizam pela falta de função expressiva de avalia- de ex- e Na proposta de Mattoso Camara Jr. (1969) para a ção, nos termos de Basilio (1987). Como mostra Gonçalves representação dos graus de acento em português, esses prefixos têm 54-55), a sufixação, ao contrário, "pode servir como veículo para com grau 2 (segunda tônica de um grupo de força, conforme falante exteriorizar sua impressão a respeito de algo ou a Visto no capítulo 1): prefixação "quase nunca é utilizada com essa finalidade". De fato, (45) pré-vestibular meros sufixos podem externar juízos de valor e sinalizar impressões pró-reitor submundo 2 1 3 2 3 0 subjetivas do falante, como ocorre, por exemplo, nas formações vreco', 'gentinha', 'velhota' e nas quais está em relevo sufixação, relação inversamente proporcional à prefixação, no negativa do falante em relação à entidade referida (chama que respeito à projeção de palavras prosódicas. Se, por um lado,</p><p>MORFOLOGIA Carlos Alexandre Gonçalves 56 são menos numerosos os prefixos sem acento próprio, por outro, a outros Xs", como atestam os exemplos a seguir, retirados de Gonçal- maior parte dos sufixos não projeta palavras prosódicas indepen- ves (2012: 155): dentes, realizando-se, com a base a que se anexam, sob um único (49) Livre-se da rinite, sinusite e outros ites. Existe um modo consagrado pelo acento, como se vê nas representações abaixo. Nelas há total isomor- tempo de desobstruir os sínus com eficácia. fismo entre palavras prosódicas (PrWds), colocadas entre colchetes, As pessoas frequentemente pensam que, para engordar, é preciso comer e palavras morfológicas (MWds), delimitadas por chaves. feijoada, macarronada, churrascada... e outras "adas". (46) {[malandr Rad agem Suf ] PrWd MWd {[cert Rad eza Suf PrWd MWd Candidato a vereador em SP aposta em rima para atrair padeiro, funilei- ro, perueiro e outros "eiros". 1 3 0 1 1 1 3 2.11.8 Equivalência 2.11.7 Possibilidade de truncamento A possibilidade de determinados prefixos comportarem-se como Do ponto de vista semântico, prefixos assemelham-se a adjetivos, já formas livres pelo processo de truncamento (encurtamento em que que contribuem para qualificar/caracterizar o designatum, como em uma parte da palavra vale pelo todo) decorre da diferença prosódica. 'subumano', 'minimercado', 'ex-mulher' e 'megaempreendimento'; Prefixos são sensíveis a essa operação, pois, a depender do contex- advérbios, pois servem para expressar a circunstância que cerca a to de uso, eles podem ser empregados isoladamente, conforme os significação da base, aqui entendida como qualquer particularida- exemplos a seguir (47), em que a forma presa carrega a significação de que determina um fato, ampliando a informação nele contida, a exemplo de 'recompor', 'antessala', 'pré-natal' e e da palavra complexa da qual se desgarra: preposições, por emprestarem à base a ideia de posição ou movi- (47) Já estou quase terminando a pós. Maria reatou com o ex. mento no espaço: 'sobreloja', 'entressafra', 'coautoria', Minha vice é excelente. Consegui comprar meu micro. Meu time agora é tri. professor agora é meu CO. Noções como "posição ou movimento no espaço", "ausência, negação", "oposição", "intensidade" e "repetição", típicas de prefixos, diferem Sufixos não se submetem ao truncamento. Ao que tudo indica, o úni- consideravelmente das veiculadas pelos sufixos, que, embora tam- que, em determinadas circunstâncias, é forte o suficiente para possam atualizar conteúdos desse tipo, são, nos termos de Ralli atuar como forma livre é -ismo. No plural, pode ser empregado como (2010), mais densos semanticamente: expressam noções como "pro- palavra independente, resumindo uma série de derivados que ('vitrinista'), "instrumento" ('batedeira'), "local" ('insetário'), minam nessa sequência, como atesta o fragmento abaixo, extraído "nacionalidade" "apreciador" ('cervejeiro'), "ato ou de Abreu (2013: 1): e, até mesmo, "prato culinário" ('rabada'). Como sufixos equivalem, em termos semânticos, a substantivos. (48) "Comunismo, epicurismo, estoicismo, cristianismo, historicismo, capita- lismo, socialismo, imperialismo, funcionalismo, marxismo, cientificismo há, entre os dois principais tipos de afixos do português, etc. são alguns dos inúmeros 'ismos' das ciências sociais". diferenças bem marcadas. Os afixos de uma língua têm duas funções Como se vê, o sufixo -ismo só adquire estatuto de forma livre quan diferentes. A primeira é participar da formação de novas pala- do, no plural, conclui uma estrutura de enumeração e é empregado Os afixos que fazem isso são chamados de derivacionais, como em referência ao significado que manifesta. Esse uso, no su até então observados. o outro tipo de afixo, que não participa da não corresponde a um e ocorre com vários outros de palavras, é chamado de flexional. Recebe nome mais anenas nesse tipo de contexto, numa fórmula fixa do tipo de 57</p><p>MORFOLOGIA Carlos Alexandre Gonçalves 58 2.12 Desinências um significado: "feminino", no primeiro caso, e "plural", no segundo. Passemos, agora, à descrição de mais casos, como a cumulação, em As desinências indicam as flexões que nomes e verbos podem apre- que não há correlação direta entre conteúdo e forma em morfologia. sentar e se subdividem em dois tipos: as desinências nominais mar- Comecemos com o uso do zero como expressão morfológica. cam o gênero e o número das palavras que apresentam essas varia- ções, como em 'prim-a-s', que exibe a marca gênero feminino e a de número plural (-s). As desinências verbais correspondem às variações 2.13 Zeros morfológicos de tempo (presente, pretérito, futuro) e modo (indicativo, subjuntivo e imperativo), de um lado, e de número (singular, plural) e pessoa Às vezes, há uma unidade semântica que não apresenta expressão e de outro, como em 'list-e-mos', em que o e- manifesta a ideia na palavra; essa é a situação do chamado 0 morfológico. Motivado de presente do subjuntivo e omos a de pessoa do plural (P4). pelas noções estruturalistas de oposição, congruência e equilíbrio, é uma forma coberta (sem expressão fonológica), depreendida Desse modo, uma primeira diferença entre desinências verbais e no- a partir do contraste explícito com formas abertas (aquelas instan- minais é o fenômeno da cumulação, típico das flexões verbais. Nesse ciadas fonologicamente) que veiculam informação categorial de uma fenômeno de análise morfológica, uma forma una (indecomponível mesma classe. em partes significativas mínimas) comporta mais de um significado, Em português, são detectados Os nas formas de masculino e singular, ou seja, veicula, simultaneamente, dois (ou mais) conteúdos. Toda a nos nomes, e nas formas de presente do indicativo e pessoa do flexão verbal do português é marcada pela presença de elementos singular (P3), nos verbos. Assim, palavras como 'carro' e 'cantamos' cumulativos, uma vez que a informação temporal se superpõe à de apresentam Os porque não se valem de formas abertas para repre- modo e aspecto, da mesma forma que a de pessoa aparece fundida sentar, nesta ordem, as categorias gramaticais SINGULAR e PRE- com a de número. Um elemento como va, por exemplo, expressa a SENTE DO INDICATIVO. Há, nessas palavras, conteúdos que não se noção de "pretérito imperfeito do indicativo", referindo-se a um fato materializam fonologicamente, o que sugere a existência de vazios ocorrido no passado (tempo pretérito), mas não completamente significativos (ausências que atualizam conteúdos). terminado, dando ideia de continuidade e de duração (aspecto im- perfectivo). Simultaneamente, também expressa o modo indicativo, Em linhas gerais, Os são comumente empregados para caracterizar pois é usado para transmitir um acontecimento certo e real, em opo- unidades da flexão, as chamadas desinências, sendo postulados para sição a algo incerto ou desejável (como é o caso do subjuntivo). representar elementos não marcados de determinada categoria lin- Quando dizemos que uma forma é não marcada, significa As desinências verbais, ao contrário das nominais, constituem port- este caso mais comum e esperado. Por outro lado, entende-se manteaux. Portmanteau é um termo técnico usado, em morfologia, marcado algo que é menos geral e, por isso mesmo, mais rele- para um tipo de fusão de dois morfemas em um: é uma sequência membro mais marcado de uma categoria é aquele com fonológica que não pode ser analisada em unidades menores, mas maior complexidade estrutural; representa dois ou mais componentes distintos de significado, como menor distribuição de frequência; é o caso do S de 'estudas' e 'cantas', que, obviamente, não pode ser di- complexidade cognitiva. vidido, mas expressa, ao mesmo tempo, as noções de pessoa e sin gular (P2). Também é o caso da nasalidade em 'estudam' e maneira, uso de é cognitivamente motivado: além de apa- que responde pelos conteúdos pessoa e plural (P6). As desinên com os mesmos significados em línguas de troncos diferen- cias nominais, como a de 'nova' de atualizam apenas atualizam categorias gramaticais conceitualmente mais neu-</p><p>MORFOLOGIA Carlos Alexandre Gonçalves 60 tras (Bybee, 1985). Por exemplo, pode-se usar o presente com valor Camara Jr. (1970) propõe uma descrição original: a ideia de um de passado ou de futuro, como se observa nos seguintes exemplos: masculino em (não marcado), em contraste com um feminino em (50) No décimo corte consecutivo, Copom baixa juro básico para 7% ao ano; -a (marcado), numa oposição semelhante à de número, em que um -S taxa Selic é a menor desde 1986 Globo, Economia. Rio de Janeiro, 2 de de plural se opõe à sua ausência no singular (0). agosto de 2018, p. 4). principal argumento de que Mattoso se vale na defesa do de Vence no próximo mês o prazo estipulado para que a concessionária uni- masculino é o seguinte: não se deve considerar -0 uma desinência, versalize o abastecimento de água na Capital (SindusCon. Mato Grosso, pois esse raciocínio levaria o e a ser igualmente interpretado como Cuiabá, 3 de agosto de 2018, p. 10). tal, em casos como 'mestre', 'monge' e 'infante', que se a Nas duas notícias acima, foi empregado o presente do indicativo 'mestra', 'monja', isso sem contar os diversos pares em ('baixa' e 'vence'), mas a primeira faz referência a algo que já aconte- que o a de feminino já contrasta com sua ausência ('juiz'/'juíza; ceu (trata-se, portanto, de um presente histórico) e a segunda, a algo Se, por um lado, é fácil associar -0 que ainda está por vir (futuro). Por ser o marco zero da enunciação a masculino, o mesmo não se dá com -e, que, como vimos mais acima, e por ser desprovido de marca morfológica, o presente do indicativo pode estar ligado a um ou a outro gênero (p. ex., 'ponte' é feminino, é uma espécie de coringa, encerrando bem menos a ideia de tempo mas 'pente' é masculino). que, por exemplo, o imperfeito do indicativo ('falava') ou o futuro do A solução mais plausível é considerar o masculino desprovido de fle- pretérito ('falaria'), caracterizados, nessa ordem, pelas desinências Não específica (ou seja, analisável por um 0), em oposição ao femini- va e ria. no (marcado pela flexão em -a). Mattoso Camara Jr. (1970: as- Também o masculino constitui forma menos marcada na língua. Por- sinala que feminino é [...] uma particularização tanto, se uma forma recebe marca de feminino, descarta-se a possi- do masculino, uma forma marcada pela adjunção da desinência bilidade de referência ao masculino o termo 'alunas', por exemplo, portanto, "o masculino é uma forma geral, não marcada, enquanto o cobre apenas as mulheres de uma classe, naturalmente excluindo os indica uma especialização qualquer". A vogal final das formas homens. Já uma forma no masculino não implica, masculinas é interpretada como temática (atualizador lexical), tendo te, alusão a indivíduos do sexo masculino - o termo 'alunos' pode de 'primo' e de 'monge' o mesmo estatuto morfológico. abranger os homens e as mulheres de uma turma. Como bem ressal- Resumindo, aparecem em em português para representar as se- tam Schwindt & Collischonn guintes categorias gramaticais: gênero masculino; número singular; Uma noção importante para o entendimento completo da questão, "mar presente do indicativo; terceira pessoa do singular; pretérito perfei- crucial para a descrição de qualquer sistema linguístico, é a de do indicativo (à exceção de P6); primeira pessoa do singular (à cação". Num sistema de dois gêneros, como o do português, em do presente do indicativo, pretérito perfeito e futuro do pre- ral, um dos gêneros é não marcado. Isto significa que é usado como forma coringa [...]. masculino é também usado como o termo ge bastante consensual a postulação de zeros para esses casos nérico, que engloba os dois gêneros. "Todo" inclui homens e mulhe exceção do gênero masculino. res; "todas" só inclui as mulheres. Em muitas línguas, gênero não marcado é o masculino, e isso não significa uma relação de poder do autores, como Kehdi (1987), optam por analisar o como de- homem sobre a mulher. de gênero em pares como 'lobo'/'loba', e De fato, falantes tendem a estabelecer conexão entre Na contramão das gramáticas tradicionais, segundo as quais uma em o e gênero masculino. Como observa Kehdi (1987: forma masculina em contrasta com uma feminina em Matto há na linguagem popular espontânea criações que for-</p><p>MORFOLOGIA Carlos Alexandre 62 mas masculinas em o a outras em a originalmente femininas: "Coru- de conteúdo, pela não recorrência ou, pior ainda, pelo prejuízo de sua jo, crianço, madrasto". Do mesmo modo, lembra Nascimento (2006), identificação na suposta palavra complexa estruturada de que parti- são comuns, durante o período de aquisição da linguagem, formas cipariam. Elementos não morfêmicos são entidades de vários tipos. regularizadas produzidas por crianças, a exemplo de 'fado' (em opo- sição à 'fada'), 'coiso' e 'dentisto'. Considerando os argumentos de Mattoso Camara Jr. (1970), entretanto, optamos pela representação 2.14.1 Vogais e consoantes de ligação do masculino como não marcada, embora a forte co- Essa classe de elementos, tradicionalmente chamados de interfixos nexão entre o o e gênero masculino. Mantemos, assim, a ideia de 0 vem representada por segmentos fônicos que entram em como desinência de masculino, assumindo, assim, que a flexão nomi- determinados contextos para possibilitar junturas, de acordo com os nal como um todo envolve oposição do tipo privativa (caracterizada padrões sonoros da língua. Interfixos são entidades semanticamen- pelo contraste entre presença e ausência de marcas) to nulas (desprovidas de significado e, portanto, não morfêmicas) e Como se manifestam no contraste entre formas linguísticas, no- têm caráter meramente formal, já que surgem por imposições de na- mes podem exibir dois desses elementos, caso haja oposição mascu- tureza fonológica. lino/feminino, de um lado, e singular/plural, de outro. Tal é o caso, Há análises que não consideram isoláveis constituintes dessa natu- por exemplo, de 'peru', 'primo' e 'monge', morfologicamente anali- reza, interpretando-os como parte do elemento precedente ou sub- sadas como prim-0+0+0 e Quando não há sequente. Por exemplo, pode-se pensar na sequência -al como sufixo contraste de gênero, o nome apresenta, obviamente, só de singu- responsável pela noção de "lugar em que se concentram plantações lar, como 'árvore', 'prato' e 'véu' (árvor-e+0, prat-o+0 e Do de X", como ocorre em 'laranjal' e Em mesmo modo, formas verbais também podem apresentar dois zeros, e pode-se propor a existência de um -Z- como como é o caso de 'vende' (pres. ind.), segmentada No uma espécie de ponte (ou "cola entre as bases e o sufi- caso de 'venda' (pres. subj.), a segmentação é Não NO Também é possível admitir a alternância entre as formas -al e pode haver zero na posição de VT simplesmente porque o é uma na manifestação desse morfema. A primeira análise parece mais ausência significativa. VTs, como vimos, são unidades desprovidas Vantajosa exatamente porque o elemento epentético (consoante in- de conteúdo (assemânticas). serida), embora desprovido de significado, é recorrente na língua, Se, por um lado, unidades de conteúdo podem não ser representadas aparecendo junto a outros sufixos, como -ete, -eiro e -inho, entre outros: fonologicamente, como é o caso dos morfológicos, por outro, se- quências fônicas segmentáveis podem não ser associadas a unidades (51) anelzão, paizão, peruzão de conteúdo. Tem-se, nessa situação, o que se pode de ele- neymarzete, luanzete, kakazete mentos não morfêmicos. ingazeiro, açaizeiro, cacauzeiro jejunzinho, cafezinho, presença do intrusivo é justificável em termos fonológicos: ser- 2.14 Elementos não morfêmicos a adjacência vocálica e, consequentemente minimi- Quando dividimos palavras em morfes, muitas vezes despontam aparecimento de hiatos e otimizar sílabas iniciadas por onset. mentos de expressão que não satisfazem uma ou mais condições elementos relacionais efetivamente encontrados nas novas for- levantes à noção de morfema; são unidades caracterizadas pela falta do português são e d-, considerados as consoantes epen- 63</p><p>MORFOLOGIA Carlos Alexandre Gonçalves 64 téticas por excelência. A primeira aparece em formações denominais visível. Hápax afixais constam de palavras nas quais a segmentação é ('cafezinho', 'cafezal') e a segunda, em formações deverbais ('escor- possível graças à alta transparência das bases, diretamente vincula- regador', 'escorregadio'). Dito de outra maneira, as consoantes de li- das em expressão e significado, a uma forma de livre curso na língua. gação recorrentes na língua Z- e d- sinalizam a classe da base, Tal é o caso de 'bebum', que claramente remete a alguém que tem o já que a primeira desponta quando se formam nomes de nomes, e a hábito de beber muito. A sequência final, um, apesar de interpretá- segunda é associada a bases deverbais, que, como vimos, valem-se vel, não é propriamente um sufixo, por ser de uso exclusivo dessa de temas para formar novas palavras. contato entre a vogal final formação: não há outra palavra na língua em que um apareça, nessa do tema e a inicial do sufixo criaria estrutura que a língua rejeita, posição, com o mesmo significado. aparecendo o d- para contornar o hiato. São também hápax os vários elementos na posição de sufixo nas pa- A título de exemplificação, observem-se as formas em (52), todas lavras únicas, isoladas, em (53). Esses exemplos revelam que as ba- com o conteúdo de instrumento, mas terminadas em -eira (primeira são altamente transparentes, muito embora os elementos que a coluna), -zeira (segunda) e -deira (terceira). É mais tentadora a ideia ela se adjungem não sejam recorrentes, não se comportem como os de estarmos diante de um único sufixo e de duas diferentes colas verdadeiros sufixos de uma língua, elementos que constam de con- morfológicas com a mesma função fonológica (organizar melhor os juntos mais completos de palavras: segmentos em sílabas, evitando hiatos, por exemplo), mas com dife- (53) casebre felizardo rente estatuto em termos de informação categorial. corpanzil fogaréu longínquo pelanca boliche carnaval colorau espantalho peitoril riacho bocarra (52) iogurteira cuscuzeira batedeira copázio pedregulho inhoqueira arrozeira descascadeira omeleteira guizeira escarradeira 2.14.3 Unidades expletivas licoreira pozeira fritadeira vaporeira pãozeira frigideira Há determinadas formas que aparecem no interior do vocábulo sem As demais consoantes de ligação constituem resíduos históricos e qualquer motivação fonológica e sem atualizar significado algum. Tal podem ser interpretadas como fósseis morfológicos, pois ocorrem caso da vogal a, em advérbios como e 'historica- em palavras isoladas, recebendo explicações que variam da que fazer com essa vogal, numa análise composicional do gia (como é o caso 'cafeteira', que seria criada por espelhamento em significado? De acordo com Rosa (2000: 64), seria possível classifi- 'leiteira', em que o /t/ é parte do radical de 'leite') à melhor la como marca de feminino, mas, argumenta a autora, "essa mar- Essa última explicação justifica, por exemplo, a presença do de é decididamente supérflua num vocábulo invariável" e, pior ainda, 'paulada', segmento intrusivo provavelmente motivado pela presen- com o significado da palavra". Caso esse a seja enten- ça da semivogal posterior, /w/, na base. dido como expressão de gênero feminino, outro problema se coloca: "Marcar uma flexão (supérflua) antes da derivação" (Rosa, 2000: 64). Podemos apelar para outras soluções, mas estaríamos saindo de um 2.14.2 Hápax afixais problema para entrar em outro. termo grego hápax faz referência a uma palavra com uma única Tanto nas construções X-mente quanto em formações deverbais, abonação nos registros da língua. No caso em questão, os hápax cor 'conferível' e aparecem elementos respondem a elementos formais não recorrentes, conferindo ao item formais que não são considerados do ponto de vista do significado, morfologicamente complexo sentido exclusivo, específico e não que sejam formalmente obrigatórios e obviamente indispen-</p><p>MORFOLOGIA Carlos Alexandre Gonçalves 66 sáveis; o termo unidades expletivas (Rio-Torto, 2016: 45) cobre as gr. aesthé, "perceber") + -ema (suf. "menor unidade estrutural"). Des- formas isoláveis que não interferem no significado do todo tanto se modo, fonestemas são sons que se parecem com morfes, ou seja, o a que antecede mente como as outrora VTs verbais -a- ('retoma- são segmentos fônicos de composição fixa na estrutura da palavra e da'), -e- e i- ('discernimento'). Em 'usual' e alguma recorrência na língua, já que associam um pequeno conjunto 'vestiário', as vogais antepostas aos sufixos -oso, -al e -ário finalizam de palavras com significado relacionado. os temas das palavras primitivas 'uso' e 'vestir'. Por razões Muitos vocábulos negativos do português, como os que aparecem na variadas, acabaram sendo incorporadas à palavra derivada, lite- primeira coluna de (56) a seguir, apresentam uma nasal alveolar re- ralmente sobrando quando efetuada a segmentação: impet-u-oso; corrente, /n/, a que se pode atribuir uma identidade de significado: us-u-al; vest-i-ário. Conforme lembra Monteiro (2010:139), negação. No entanto, como lembra Rosa (2000), se tais formas são além de nem sempre se saber a que constituinte [...] o segmento reconhecidas no interior de unidades maiores, destroem-se, para o fônico vazio de significado deve ser agregado, a hipótese de não se restante do vocábulo, as relações de som e significado que funda- destacá-lo cria uma infinidade de variantes, o que com certeza não mentam a segmentação em unidades mínimas. Por exemplo, se iso- simplifica a análise linguística. lamos a nasal de 'nunca', o que fazemos com unca? Que significado Há casos em que a segmentação deixa uma sequência residual não essa forma teria? Em que outra palavra apareceria com igual fun- correspondente a qualquer instância de significado. Por exemplo, o mesmo acontece com os dados da segunda coluna de (56), quando aplicamos a técnica da comutação às formas abaixo, nos quais a isolabilidade da oclusiva velar surda, /k/, como suposto elemento caracterizador de pergunta, levaria à proposição de vários (54) agilizar hostilizar oficializar elementos não morfêmicos. Cumpre enfatizar que não é o fonestema finalizar colonizar banalizar 0 elemento não Na verdade, a sequência fônica que so- claramente reconhecemos o sufixo -izar como formador de verbos a braria após a segmentação é que seria interpretada como tal. partir de adjetivos com o sentido de "tornar, fazer, transformar". Esse (56) não quando mesmo significado também se manifesta em verbos como nada quanto ninguém ("ficar neutro") e 'ridicularizar' ("tornar ridículo"). Nessas constru- qual nenhum quem ções, no entanto, sobra uma sequência inteira que não é interpretável: nem que -al-, no primeiro caso, e ar-, no segundo. Nos dados a seguir, aparecem negar como várias sequências expletivas. Nessas palavras, as bases e os sufixos, isto é, as formas realmente recorrentes, são grafadas em negrito: diferem de morfes porque não atendem ao critério nor- de composicionalidade (um todo interpretável pela soma das (55) mat-ag-al fri-or-ento beb-err-ão Essas partículas devem consideradas, portanto, como um sab-ich-ão temp-or-al dorm-inh-oco distinto de som: um som que, por aparecer em várias palavras son-ol-ento peg-aj-oso temp-or-ário com-il-ão milh-ar-al de significado semelhante, tem associação semântica todas as situações até aqui apresentadas, as informações morfo- 2.14.4 apesar da falta de correspondência forma-conteúdo po- devidamente isoladas, já que se sucedem numa linha tempo- Do ponto de vista morfológico, a palavra fonestema pode ser No entanto, há casos em que é simplesmente impossível demarcar mentada da seguinte maneira: fon- (do gr. "som") (do Palavras podem apresentar claramente</p><p>MORFOLOGIA Carlos Alexandre Gonçalves 68 dois (ou mais) significados, sendo difícil estabelecer a segmentação. Há outros casos de flexão nominal em que a abertura acompanha Vejamos, a seguir, a concretização desse tipo de fenômeno. outra marca morfológica e não se apresenta como principal expo- ente da informação morfológica. Por exemplo, em e há uma marca aditiva específica, ou seja, concatenativa, 2.15 Morfologia concatenativa vs. não concatenativa que, por si só, expressa o morfema de feminino e o morfema de plu- Em morfologia, há os processos concatenativos e os não concate- ral. Porém, além dessa marca, há também uma mudança vocálica na raiz que funciona como reforço, informação secundária, ou, nos ter- nativos. Nos primeiros, uma informação morfológica termina exata- mos de Câmara Jr. (1970), submorfema. Dessa forma, há dois ex- mente no ponto em que a outra começa, como em ("ato de diminuir a influência do PSDB") e 'bols-ista' ("beneficiário poentes para expressar o mesmo morfema, ou seja, para atualizar de bolsa de estudos"). Ainda que sobre elas atuem processos fonoló- mesmo significado, sendo o acréscimo da marca final o expoente primário e a abertura da vogal, o secundário. Essa mudança na quali- gicos, como em tradicionalmente chamado de compos- to por aglutinação (por ser caracterizado pelo apagamento do /a/ dade da vogal se encontra em um número restrito de palavras, o que pode sugerir a não regularidade do padrão: final de 'água'), tais formações apresentam condições perfeitas para a isolabilidade das partes. (57) grosso > grossa, grossos novo > nova, novos ovo > ova, ovos As operações não concatenativas, em linhas gerais, são caracteri- porto > porta, portas zadas pela falta de encadeamento, de linearidade, isto é, há visivel- Há, no entanto, uma situação em que a alternância vocálica é previsí- mente uma informação morfológica que não necessariamente se dá vel e sistemática, tanto para o plural quanto para o Trata- por adição. Assim, um processo morfológico que inclui, por exemplo, se do sufixo de origem latina -oso, que forma adjetivos a partir de mutação segmental (consonantal ou vocálica) é não concatenativo substantivos. Reminiscência do fenômeno histórico da metafonia por definição. Desse modo, quando falamos em morfologia não con- que consiste na alteração de altura de uma vogal tônica catenativa, estamos abordando mecanismos nos quais as alterações por influência de átonas postônicas), as formas X-osa e X-osos exi- estão a serviço da expressão de um morfema, isto é, de um vogal tônica aberta, [b], ao contrário de X-oso, que sempre se realiza com a tônica fechada ([o]): 2.15.1 Mutação vocálica (58) formoso > formosa, formosos pintoso > pintosa, pintosos saboroso > saborosa, saborosos bondoso > bondosa, bondosos Exemplo clássico de morfologia não concatenativa é a mutação fibroso fibrosa, fibrosos ruidoso > ruidosa, ruidosos cálica. Em português, há mudanças na qualidade da vogal que fun cionam tanto como morfema quanto como submorfema. A mu também podem se modificar para expressar a categoria sin- tação vocálica aparece, por exemplo, na flexão nominal. Nos pares da palavra. É que acontece na sistemática oposição de classes 'av[o]'e os seus derivados), a mutação vocálica é o expoente em que nome é sempre caracterizado pela vogal média primário da informação de gênero, e, por isso, segundo Mattoso Ca ([o, e]), em oposição à forma verbal, categoricamente repre- mara Jr. (1970), temos uma alternância morfêmica. Nesse caso, há pela média aberta uma única raiz, que não pode ser segmentada, com uma vogal (59) (o) (eu) (o) ap[e]lo (eu) ap[E]lo a média fechada, está vinculada ao masculino, e a vogal média (o) (eu) (o) (eu) ap[E]go (o) aberta, ao gênero (eu) (o) (eu) ap[E]rto</p><p>MORFOLOGIA Carlos Alexandre Gonçalves 70 falante, ciente do padrão que envolve os dados de (59), contraria a 2.15.3 Subtração morfológica norma e pronuncia abertas as vogais tônicas de 'espelho' ("me Outro caso que não envolve sequenciação linear de formas é a sub- muito em Fulano"), 'veleja' ("Fulano vel[E]ja pela Baía de Guanaba- ra") e 'noiva' ("Cicrano com Fulana"). Do mesmo modo, as tração morfológica. Minus morfemas, nos termos de Nida (1949), devem ser postulados para acolher casos em que a expressão de um monotongações a seguir levam a diferentes vogais, caso o item em traço gramatical se faz através da diminuição do corpo fônico da pa- questão seja um nome ([o, e]) ou uma forma verbal E]): lavra-base. Consistem, pois, na perda de um ou mais sons para mar- (60) o roubo do jogo eu roubo no jogo car oposição entre membros de uma mesma categoria. Pares como o estouro da bola eu estouro a bola e entre outros, evidenciam que as formas o açoite é duro de aceitar não açoite minha amiga de feminino são caracterizadas pela queda da semivogal do mascu- Na flexão verbal, a mutação vocálica está relacionada à manifestação lino, como nos dados de (62). Veremos, mais adiante, que os únicos de presente, formalmente expressa por vogal média baixa na sílaba femininos que só podem ser explicados pelo encurtamento são os tônica do radical 't[E]sto'), e à materialização dos conteúdos da última linha; os demais (com ditongo nasal) também podem ser pessoa do singular (P1) e pessoa do singular (P3), veiculados descritos por meio de processos fonológicos gerais. por mais vogal alta ('est[i]ve') e média alta ('est[e]ve'), respectivamente. (62) ancião capitão Em relação ao conteúdo de número e pessoa, há dois padrões cidadão cidadã alemão gerais (Vivas, 2011). No primeiro, a vogal alta ([i, u]) e a média alta réu ré mau má ([o, e]) são os únicos expoentes da informação de P1 e P3 e a alter- nância ocorre no pretérito perfeito do indicativo ('est[i]ve', Truncamento e hipocorização: primeiros olhares 'p[u]de', 'p[o]de'). No segundo, a vogal alta é o expoente secundá- rio de P1, noção gramatical primariamente indicada pela desinência Outros casos de morfologia subtrativa são o truncamento (63a) e a número-pessoal -0 'ac[u]do', hipocorização (63b), processos descritos com mais vagar no capítulo Observe-se que, no primeiro caso, encurta-se um nome comum, em oposição ao segundo, redução de um antropônimo (nome de pessoa): 2.15.2 Mutação consonantal (63) a. profissional > profissa b. Elizabeth > Beth Nos verbos, uma mutação consonantal, mudança na pronúncia de refrigerante> refri Cristina > Cris consoantes (de ponto, modo de articulação e/ou vozeamento), tam- periferia > perifa Alexandre > Xande bém está a serviço da informação de tempo presente. Na C2, verbos tatuagem > tatu Patríci > Páti como 'perder', 'poder', 'valer', 'dizer' e 'fazer' têm uma forma de raiz que informa a P1 do presente do indicativo e, por conseguinte, o De volta aos suprafixos sente do subjuntivo. A consoante da raiz funciona como expoente Também há dificuldade de se demarcarem fronteiras nos casos em secundário (submorfema) da informação gramatical: que um conteúdo morfológico se manifesta prosodicamente. De fato, (61) perc- (de perder) eu perco, que ele perca determinadas informações morfológicas podem ser expressas atra- poss- (de poder) eu posso, que nós possamos de alterações na configuração prosódica da palavra-base, como dig- (de dizer) eu digo, que tu digas no tom, na duração vocálica e no acento lexical Em (de fazer) eu faço, que eu faça trag- (de trazer) eu trago, que vós tragais os chamados suprafixos servem para expressar diferen-</p><p>MORFOLOGIA Carlos Alexandre Gonçalves 72 ças de tempo e mudanças de classe. A oposição entre futuro do pre- (66) negocio negócio sente e pretérito mais-que-perfeito, como em 'cantará' 'cantara', rotulo rótulo formula evidencia que a informação quanto ao acento deve estar contida no fórmula historia história formativo -ra: se átono, caracteriza formas de mais-que-perfeito; se tônico, formas de futuro. Os dados analisados ao longo desta seção corroboram, nos termos Todos os exemplos de (64a), a seguir, caracterizam formas verbais, de Jensen (1990), a ideia de que morfemas não necessariamente em oposição aos exemplos de (64b), categorizados como nomes de- se concretizam como "coisas", ou seja, unidades corporificáveis, os verbais. que acontece nesses pares é que o acento, assim como morfes, podendo ser vistos também como processos/operações (re- determinados afixos derivacionais da língua -mento, gras fonológicas que atuam sobre radicais). Portanto, nem sempre as sinaliza a categoria sintática da palavra: o verbo é paroxítono, em informações morfológicas se expressam através da adição. No entan- to, a morfologia não concatenativa revela-se tão padronizada quanto oposição ao nome, sempre proparoxítono. a concatenativa. Passemos ao exame de um dos mais importantes (64) (a) calculo (b) cálculo fenômenos morfológicos: a duvida dúvida pratica prática vinculo vínculo 2.16 Alomorfia auxilio auxílio Entendida como fenômeno de variação na conformação física de mor- Por essa razão, o falante que domina os padrões linguísticos mui- femas, a alomorfia ocorre quando um mesmo significado se manifesta to mais do que imagina contrariando a norma, diz, por exemplo, por formas foneticamente diferentes. Não deve, portanto, ser confundida que irá apor sua "rúbrica" no documento. Desse modo, ele regulariza com modificações de natureza ortográfica, como em uma forma que não segue o comportamento das demais, a par em que não ocorre alomorfia, pois <qu> é a representação gráfica de despeito de a tradição exigir o contrário: /k/ diante de vogais anteriores. Nesse caso, a forma fonética do radical (65) Rubrica é uma palavra paroxítona, tendo a sílaba bri como sílaba não sofre nenhum tipo de modificação, já que não há qualquer alteração Geralmente, a palavra rúbrica é muito utilizada no português falado, na pronúncia. o mesmo pode ser dito em relação aos diversos modos do um erro de prosódia, onde uma palavra paroxítona é transformada em de se grafar o sufixo formador de substantivos a partir de verbos, cuja Acesso nos dados a seguir, é sempre em 15/02/2019). (67) anulação concessão imersão Pares verbo/nome podem diferir pelo acento e pela qualidade produção transgressão expansão vocálica, se houver uma vogal média na estrutura da rendição regressão extorsão Nesses casos, o acento constitui expoente primário da ção morfológica (indicação da classe a que a palavra pertence), casos abaixo, por outro lado, a variação é de natureza sonora, o enquanto a mudança de timbre é o submorfema. De fato, nos no que configura um caso de alomorfia, já que o sufixo se realiza mes, as vogais médias abrem por conta do acento proparoxito (68) invasão alusão decisão divisão no, em função de uma regra fonológica chamada de abaixamen adesão ilusão to dactílico (realização de médias como aberta quando portam fonética em praticamente todos os tipos morfológicos: acento em palavras bases nominais e verbais, sufixos, desinências verbais, fle-</p><p>MORFOLOGIA Carlos Alexandre Gonçalves xões nominais de gênero e de número etc. Os dados a seguir demons- (72) FAZER eu fiz fizesse, fizessem, fizéssemos QUERER eu quis tram alomorfia em radicais: quisesse, quisessem, quiséssemos TRAZER eu trouxe trouxesse, trouxessem, trouxéssemos (69) vida cabe vital coube Por fusão, portanto, devemos entender os casos em que o radical sofre vitalício caibo alomorfia, mas também incorpora noções A título de ilus- vidinha cabemos tração, vejamos, a seguir, as diferentes formas de raiz do verbo Na primeira coluna, a base nominal varia entre vid- e vit-, alternân- (73) /poN/ ponho, ponha, ponhamos cia envolvendo raízes ditas doublets: muitas palavras derivadas pre- /puN/ punha, púnhamos, punham /puS/ servam a forma de raiz importada diretamente do latim no Renasci- puséramos, pusemos, puséssemos, puser /poR/ porei, poríamos, poremos, poria mento (sécs. XIV-XVI), incorporada à língua sem sofrer os processos fonológicos porque passou a correspondente mais antiga, como a Em (73), representamos fonologicamente as diferentes formas de sonorização de surdas intervocálicas, de uitam, em latim, para 'vida', raiz do verbo 'pôr' para salientar que o desenvolvimento da nasal, em português. A situação dos doublets é abundante na formação de nas duas primeiras linhas, resulta de uma regra de ressilabificação adjetivos, o que se observa com vários sufixos: -ino, -do, udo, -eo, com a que ocorre nas duas outras linhas. A nasal desenvol- ense, ário e, principalmente, -al: vida, nesses casos, é /n/. As bases manifestam significados lexicais nariz > narigudo gramaticais, A forma /puN/, além de veicular a (70) touro > taurino árvore > arborizado pedra > pétreo Portugal > portucalense ordem > ordinário informação de "colocar, agrupar, botar", também expressa a noção estômago > estomacal fruta > frugal de tempo, haja vista ser usada somente no imperfeito do indicativo. estado > estatal A mesma afirmação vale para a variante /poN/, sempre associada Na segunda coluna de (69), mais acima, a raiz verbal apresenta três presente, nos modos indicativo, subjuntivo e imperativo. Assim, diferentes formas: cab-, coub- e caib-, resultando na fusão do formas com a sílaba <po> seguida de nasal palatal, como 'ponho', teúdo lexical CABER com conteúdos gramaticais de tempo-modo de semivogal, como mesclam o significado "por" com o -aspecto. A forma caib-, por exemplo, associa-se diretamente à de "tempo presente", de modo que o conteúdo gramatical aparece primeira pessoa do singular (P1) no presente do indicativo e, por fundido com o lexical. Como todas as formas verbais com /poN/ conseguinte, ao presente do subjuntivo, pois esse tempo deriva di ao presente, essa noção de tempo se manifesta no próprio retamente da P1 do presente do indicativo, como se vê, também, radical do verbo. nos seguintes casos: com /poR/ sempre veiculam a noção de futuridade (reme- (71) MEDIR eu meço meça, meças, meçamos, meçam futuro do presente ou do pretérito, nos modos indicativo eu valho valha, valhas, valhamos, valham VALER subjuntivo). Por fim, /puS/ se associa ao pretérito perfeito e ao SERVIR eu sirvo sirva, sirvas, sirvamos, sirvam Portanto, as várias realizações da raiz não são Do mesmo modo, as formas de raiz que aparecem no pretérito per também expressam tempo/modo/aspecto, significados feito, além de sinalizar essa informação gramatical, também relevantes para o conteúdo do verbo (BYBEE, 1985). imperfeito do subjuntivo. Generalizando, significado da raiz agora ao exame dos seguintes exemplos, que devem ser natureza lexical, portanto) funde-se, numa espécie de vertical, pois cada coluna ilustra a atuação da alomorfia num com o de constituinte morfológico: 75</p><p>MORFOLOGIA Carlos Alexandre Gonçalves 76 garota palatal andava (74) injusto casa que favoreçam a aplicação de um processo fonológico regular ou (c) mares dental sondava ilegal trazer à tona padrões sonoros que a língua tende a rejeitar, como se inapto canis hospitalar sorria leoa vê nos dados abaixo: inútil europeia papéis escolar vendia (75) mar+s freguês+s Na primeira coluna, há alomorfia no prefixo de negação. A forma do cant+á+va+is cant+a+i prefixo alterna entre vogal nasal ('injusto') e oral ('ilegal') e presen- passe+o café+al ça / ausência de soante nasal ('ilegal' vs. 'inapto'). Nas duas colunas seguintes, verificam-se modificações nas flexões de gênero e nú- Na primeira linha de (75), o acréscimo do -S de plural pode deixar ad- mero Na primeira situação, o acréscimo da marca de feminino jacentes duas consoantes. Como o português não permite tal combi- leva a modificações na base, sobretudo quando termina em segmen- nação em final de palavra, uma epêntese vocálica acaba sendo neces- to nasal, podendo perder a nasalidade, como em 'leoa' e 'patroa', ou sária: a da vogal [1] Esse segmento é a vogal de reduzir seu corpo fônico quando finaliza em -eu, abre a mé- ligação por excelência em português, surgindo sempre que questões dia, que passa de [e] no masculino ('ateu', 'hebreu', 'plebeu') a [E] no de ordem fonotática o exijam. No segundo, a desinência verbal do im- feminino ('ateia', 'hebreia', 'plebeia'), além de desenvolver a semivo- perfeito do indicativo, va, e a vogal temática de -a, ficam contíguas gal [j] no lugar de [u]. No caso do plural, a anexação do -S pode levar vogal -i, marca de Em ambos os casos, a vogal baixa a uma série de mudanças fonológicas: desde a epêntese vocálica em se atualiza como média, [e], segmento com articulação mais próxima palavras terminadas em consoantes ('mar'/'mares'; 'vez'/'vezes') até à da vogal subsequente a que inicia o morfema de número-pessoa o apagamento de líquidas laterais ('canil'/'canis'), podendo envolver, (P5, em e P1, em 'cantei'). Na terceira linha de exemplos, adicionalmente, a inserção de [i] ('papel'/'papéis'). a alomorfia deriva da tendência que o português apresenta de evitar hiatos: encadeamento dos formativos leva à adjacência de duas vo- Na quarta coluna, a forma do sufixo varia entre -al e -ar, alternância gais, situação resolvida com a epêntese vocálica de [1], realizado [j], determinada pela presença ou não de uma líquida lateral (/1/) no no primeiro caso ('passeio'), e a epêntese consonantal, no último ('ca- onset final da base, num claro processo de dissimilação, que consis- Esses dois segmentos igualmente se classificam como elemen- te em tornar diferente um som foneticamente semelhante ao outro, de ligação ("colas" morfológicas). como veremos mais adiante (cf. 2.16.1). Por fim, a desinência de perfeito do indicativo pode ser -va ou -ia, a depender da conjugação Alomorfia morfologicamente condicionada a que o verbo pertence. Como se observa nos dados, há dois tipos mais comuns de Na alomorfia morfologicamente condicionada, a justificativa da namento para a alomorfia: o fonológico e o morfológico. alteração não é de natureza sonora. Por exemplo, na expressão do do indicativo, observa-se sistemática mudança na forma desinência, e essa alteração é condicionada pela classe temática a 2.16.1 Alomorfia fonologicamente condicionada que 0 verbo pertence. Assim, -va, que aparece na Na alomorfia fonologicamente condicionada, a justificativa para concorre com -ia, forma utilizada nas demais conjugações alternância está na própria concatenação morfológica a adjunção 'vendias'; 'sentiam'). Aqui, o condicionamento de formativos pode (a) criar combinações de segmentos em desacor diferentes classes formais, determinadas pela VT do com os padrões sonoros da língua, (b) levar à adjacência de sons determinam a escolha da desinência, de modo que são agra-</p><p>MORFOLOGIA Carlos Alexandre 78 maticais formas como *bebeva, *partiva ou *cantia. Outro exemplo bém conhecimento como Item-e-Combinação (Crystal, 1980) e de alomorfia condicionada morfologicamente aparece a seguir: Item-e-Decomposição (Trask, 1996), palavras são vistas como sequên- cias lineares (combinações, arranjos) de formas mínimas significativas (76) amável amabilidade amabilíssimo amavelmente rentável rentabilidade rentabilíssimo rentavelzinho (itens): a tarefa do linguista o arranjo sintagmático das uni- dades constitutivas do vocábulo, sem preocupação com regras ou pro- Nesses exemplos, observa-se uma previsível alteração na forma do cessos, ou mesmo com explicações de cunho paradigmático" (Schwindt, sufixo formador de adjetivos a partir de verbos: quando em final de 2014: 111). Adota-se, para tanto, a ideia de que as informações morfo- palavra ou precedendo -mente e -zinho, tal afixo se manifesta como lógicas são devidamente dispostas num molde previamente estabele- -vel; diante dos demais sufixos, como -íssimo, por exemplo, a forma cido e a palavra é exaustivamente dividida, encapsulando-se os forma- usada é -bil. Podemos assumir que -vel e -bil se distribuem em função tivos. modelo alternativo, IP, prevê o uso de processos fonológicos do ambiente em que se encontram e admitir que essa alternância para descrever as relações formais no interior das palavras. não é fortuita; é morfologicamente condicionada (depende direta- Os modelos IA e IP muitas vezes diferem na maneira de explicar um mente do sufixo que eventualmente venha depois). mesmo fato linguístico, já que o primeiro concebe a língua como uma Outra alomorfia com condicionamento morfológico é a existente nas série de combinações lineares de formas/itens e o segundo analisa marcas de número-pessoa. Na P1, por exemplo, a distribuição abran- todo. A diferença consiste na concepção sobre a estruturação das ge as seguintes expressões morfológicas nos tempos do indicativo: unidades morfológicas: para o IA, vocábulos nada mais são do que o resultado da combinação de itens; para o IP, ao contrário, palavras (77) {P1} sofrem processos para alcançar a forma que têm. -0 Utilizando as palavras de Jensen (1990), podemos assumir que o pres. do ind. (am(a)- 0-0) pret. perfeito (am-(a)-e-i) pret. imperf. (am-a-va-0) modelo IA analisa os morfemas necessariamente como "coisas", en- fut. do pres. (am-a-re-i) fut. do pret. (am-a-ria-0) mais-que-perfeito (am-a-ra-0) quanto o IP possibilita que morfemas também sejam considerados regras, ou seja, operações sobre bases. Como o modelo IA trata os Se a escolha do alomorfe correto depende diretamente da informa- morfemas como "coisas" (entidades que necessariamente tomam ção de tempo-modo-aspecto, a justificativa da alternância é de ordem forma), uma diferença fundamental entre esses dois modelos, paradigmática, não havendo nada de fonológico que explique as dife- no caso da alomorfia, mais especificamente, é a noção de forma bási- rentes marcas de mesmo acontece na seleção de como estrutura a partir da qual as demais variantes podem ser descri- fe de P3: é apenas no pretérito perfeito do indicativo que essa forma explicadas. Somente em abordagens via IP essa noção pode ser aparece 'vendeu', 'partiu'); nas demais, a expressão é sempre aplicada com mais êxito, pois "itens" podem emergir passando por 0 cant-a-sse-0; cant-(a)-a-0). Trata-se, processos fonológicos, em vez de serem interpretados meramente tanto, de mais um caso de alomorfia condicionada combinações lineares. Para a diferença entre IP e IA na análise de um fenômeno do português, utilizemos a situação apresentada em 2.16.3 Modelos de descrição da alomorfia (2008). Segundo autor, um dos casos de difícil resolução Dois modelos de análise são utilizados na descrição da por não envolver sequenciação linear de formas, é a subtração Item-e-Arranjo (IA) e Item-e-Processo No modelo IA, tam Como vimos em 2.15.3, um minus morfema é postulado</p><p>MORFOLOGIA Carlos Alexandre Gonçalves 80 para acolher casos em que a expressão de um traço gramatical se A existência de diferentes alomorfes para um mesmo morfema re- faz através da diminuição no corpo fônico da palavra-base, consis- mete ao problema de eleger um deles para representar o conjunto. tindo, portanto, na perda de um ou mais sons para marcar oposição Kehdi (1987) sugere alguns critérios específicos para a escolha da entre membros de uma mesma categoria gramatical. Pares como forma básica (uma espécie de "representante oficial" do morfema e entre outros, sinalizam que as formas que se realiza por diferentes alomorfes). Para esse autor, o principal de feminino são caracterizadas pela queda da semivogal do mascu- critério para definir a forma básica entre as alternantes é a frequên- lino. Então, um modelo como o IA precisa lançar mão de um tipo de cia, isto é, a que aparecer mais vezes é a básica e as demais, suas morfema, como o subtrativo, para descrever casos desse tipo. Num variantes. Na situação de alomorfia em (80), a seguir, sem dúvida modelo do tipo IP, poder-se-ia pensar numa forma básica marcada alguma, -ria ocorre bem mais vezes que -rie, realização restrita à pela presença de um arquifonema nasal travador de sílaba para re- pessoa do plural (P5). Nesse caso, -ria fica contíguo à vogal [i] (a presentar os masculinos segmento final marca de P5 -is), e o de [a] para [e] é sistemático na fle- dessas formas, chamadas básicas, torna-se visível nas operações de- xão verbal do português (81), afetando, inclusive, a vogal temática: rivacionais, como em 'irmanar' e 'orfanato', e é suprimido, quando, em fronteira morfológica de flexão, precede o a de feminino, nasali- (80) cantaria cantarias cantaria cantaríamos cantaríeis cantariam zando a vogal precedente e ocasionando a posterior crase da vogal (81) cantei (cant-a-0-i > cantei), amei (am-a-0-i > amei) da base com a do feminino, como se vê no esquema a seguir: cantarei (cant-a-ra-i > cantarei) cantáveis (cant-a-va-is > cantáveis) (78) /iR'maN/ forma básica de masculino A frequência, no entanto, nem sempre se mostra inteiramente eficaz /iR'maN/ regra morfológica /iR. 'ma.Na/ concatenação e silabificação para se chegar à forma básica; outros critérios podem ser utilizados /iR. regra fonológica (queda de nasal e nasalização) nessa empreitada, como, por exemplo, (a) a regularidade de forma- /iR. regra fonológica (crase) forma fonética (fala carioca) e (b) o isolamento (Cabral, 1980). No primeiro caso, exemplifica- do com paradigma a seguir, as variantes -ra e -re ocorrem três ve- Sem dúvida alguma, a análise por forma básica terminada em nasal, cada. A decisão por -ra como forma básica de futuro do presente ainda que mais abstrata, é econômica e permite que se analisem feita observando-se o comportamento das marcas morfológicas do dos como 'irmão' e de maneira similar à de formas verbo como um todo, visto ser comum, na flexão verbal, que formati- como 'leão', 'patrão' e 'leitão'. Nesses últimos casos, a forma básica em apresentem variantes em -e, como destacamos mais acima. termina em /oN/, já que essa sequência aparece em 'leonino' e tronato', por exemplo. Assim, a única diferença entre essas palavras (82) cantarei cantará cantará cantaremos cantareis cantarão as formas com o minus morfema é a aplicação de uma do isolamento é utilizado nos casos em que uma das varian- regra de desnasalização, motivada pela adjacência de vogais finals independentemente, enquanto a outra aparece quando se diferentes, como se vê em (79) a seguir: adjunge um afixo específico. Ao contrário do que a língua escrita leva forma básica de masculino é esta última a forma básica, a exemplo do que ocorre nos se- (79) /IE'oN/ regra morfológica dados, nos quais a líquida lateral, sistematicamente se ma- /IE.o.Na/ concatenação e silabificação quando sufixo se inicia por vogal. Nesses casos, é mais eco- regra fonológica (queda de nasal e nasalização) regra fonológica (desnasalização em hiato) admitir que a lateral alveolar se vocaliza na palavra primitiva, forma fonética (fala do mesmo modo que 'papel' e 'anel', por exemplo:</p><p>MORFOLOGIA Carlos Alexandre Gonçalves 82 (83) chapéu chapelaria, chapeleiro, chapelão, chapelada mimos a presença desse segmento na coda, propondo a forma básica véu velar, velado, veludo iN-, que jamais se atualiza como tal. Cabral (1980) chama a atenção para o critério "restrição contextual", (85) [i]legal [i.n]apto considerando que as formas básicas são aquelas com menor grau de [i]moral [i.n]experiente restrição por ambientes fônicos. Tomemos como exemplo a alomor- [i]rreal [i.n]útil [i]negável fia abaixo, brevemente comentada anteriormente: [i.n]igualável (84) papal escolar As diferenças fônicas observadas na forma do prefixo de negação dorsal escalar são previsíveis e revelam um caso típico de distribuição comple- frontal familiar mentar (complementação das variantes por ambientes que se ex- laboratorial alveolar cluem mutuamente): o segmento vocálico oral ([i-]) ocorre antes Nos dados em (84), a realização do sufixo que forma adjetivos a par- de uma soante (nasal ou líquida); o segmento vocálico nasal tir de substantivos é condicionada pela existência de no onset da seguido de nasal tautossilábica, aparece sempre que a palavra-base sílaba final: quando essa sílaba apresenta uma lateral, o sufixo se se inicia por uma consoante (oclusiva ou fricativa); por fim, a se- manifesta como -ar, a exemplo de 'cavalar', 'tutelar' e 'familiar'. Nos quência bifônica constituída de vogal oral + nasal alveolar heteros- demais casos, a consoante do sufixo se realiza como líquida lateral silábica ([i.n-]) caracteriza somente o último bloco de formas as iniciadas por uma vogal. (p. ex., 'vital', 'mortal', 'constitucional'). Em outras palavras, a realiza- ção do sufixo é condicionada pela presença de uma lateral na última Por simplicidade e economia, podemos pensar em iN- que não sílaba do radical, coibindo formas com configuração *1 V com uma corresponde a nenhuma das realizações em (85) - como forma bá- lateral alveolar em onset e outra em coda (*familial, *escolal). sica (e teórica) do prefixo. Todas as diferentes realizações podem As palavras da segunda coluna de (84) revelam que a consoante do ser descritas por processos fonológicos regulares que modificam a sufixo contorna, obrigatoriamente, a da raiz, de modo a torná-la di- configuração básica desse formativo ao inspecionar a classe maior ferente da que a antecede na sílaba final CVC do derivado. fenôme- do som inicial da palavra-base. Assim, nos dados da primeira colu- no em causa é a dissimilação (processo pelo qual dois segmentos se na, a ausência da nasal é explicada pela atuação de um processo de tornam diferentes). Como nos casos de alomorfia, pode-se escolher a consoante abstrata é apagada quando em contato a forma básica dentre as que alternam, -al apresenta menos restri- com outra soante, seja ela nasal ou não. Na segunda, ao contrário, nasal abstrata assimila o ponto de articulação da consoante vizi- ção contextual, aparecendo em qualquer ambiente diferente de Desse modo, -ar é a forma menos frequente e mais restrita, sendo nha, realizando-se labial alveolar palatal ou velar em função do local de articulação considerada, por isso mesmo, variante condicionada de -al. do segmento subsequente. Por fim, nas palavras iniciadas por vo- Em outros casos, a forma básica pode não corresponder a nenhuma a soante nasal passa da posição de coda para a de onset silábico, das que alternam, sendo considerada, adicionalmente, uma forma adquirindo a articulação default, coronal, como acontece em outros teórica. Como vimos na análise do minus morfema, uma nasal não processos morfológicos do pecificada para ponto de articulação foi proposta como último cons (86) som sonoro tituinte fonológico de bases como e No caso do prefixo jardim jardineiro capim > capinar ranário bom bonissimo fim final de negação, cuja alternância é a seguir exemplificada, também um único verão veranista barão > baronesa</p><p>MORFOLOGIA Carlos Alexandre Gonçalves 84 Resta abordar um fenômeno morfológico que se define como diametral- Obviamente, o significado de malware constitui extensão do de mente oposto à alomorfia: a chamada homomorfia (Gonçalves, 2008). micro-organismo, pois, tal como um vírus biológico, o programa infecta o sistema, faz cópias de si mesmo e tenta se espalhar para outros computadores e dispositivos. computador é tomado como 2.17 Homomorfia polissemia afixal humano, numa clara projeção metafórica: designação de algo me- Se a alomorfia envolve uma variação na forma e invariância no con- diante propriedade compartilhada com outra entidade, numa rela- teúdo, na homomorfia ocorre exatamente o contrário: há uma única ção de semelhança. forma associada a diferentes instâncias de significado. A homomor- A homonímia, por outro lado, caracteriza palavras diferentes que fia é, portanto, uma espécie de homonímia em nível morfológico. Em partilham a pronúncia, mas conservam significados nitidamente outras palavras, uma mesma forma aparece associada a significados distintos, sendo, geralmente, de classes gramaticais também dife- nitidamente distintos, como é o caso do S, que pode ser marca de rentes. Exemplo clássico de homonímia é 'são', que pode ser verbo plural, nos nomes (as fala-s), e desinência de segunda pessoa do sin- ("eles são espertos"), substantivo ("São ou adjetivo ("o gular, nos verbos (tu fala-s). Por seus significados, estamos diante menino está são"). de morfemas diferentes que compartilham a mesma forma, ou seja, Assim, da mesma forma que, em nível lexical, diferencia-se a homo- tem-se, aí, um caso claro de homomorfia. nímia da polissemia, também no nível morfológico essa distinção se Outro exemplo de homomorfia é o do a, que pode ser marca de gêne- mostra relevante. Portanto, envolvem-se numa situação de homo- ro nos nomes (estudios-a) e vogal temática de primeira conjugação, morfia apenas significados nitidamente distintos, o que descarta a nos verbos (fal-a-r). Também aparece associado à noção de presente possibilidade de haver essa relação em significados claramente de- do subjuntivo (que ele venç-a) e pode ser vogal temática nominal rivados de outros por extensões semânticas oriundas de habilidades (vid-a). Como se vê, não há qualquer relação de significado até cognitivas como a metáfora metonímia. Por exemplo, nos casos mesmo porque VTs são unidades assemânticas e, por isso, a coin- de (87), a seguir, conceptualizam-se os instrumentos como dotados cidência é só formal. de um "fazer" tanto quanto os agentes, numa relação metafórica; em A homomorfia, do mesmo modo que a homonímia, deve ser restri- diferentemente, uma metonímia explica a relação entre os sen- ta aos casos em que não há extensão de sentido. A título de exem- tidos "nacionalidade" e "língua", ambos veiculados pelo sufixo ês: plo, o sufixo -eiro pode formar agentes profissionais ou habituais, como em 'jornaleiro' e 'fofoqueiro', respectivamente. Fato similar se (87) arrumadeira, lavadeira, passadeira, bordadeira, empacotadeira furadeira, enceradeira, batedeira, assadeira, chocadeira, roçadeira dá com outros sufixos agentivos, como -nte ('gerente' 'vigente'), -ista ('musicista' 'progressista') e -dor ('trabalhador' 'ligador'), (88) inglês, holandês, português, norueguês, senegalês, japonês para citar apenas alguns. Se há extensão regular dos significados dos Nos exemplos de (88), há metonímia porque ocorre uma relação de sufixos, é lícito pensar que se trata de uma relação de polissemia (e não de semelhança, como na metáfora). Nação e idio- afixal - e não de homomorfia. são domínios quase sempre associados, uma vez que uma pátria Polissemia é a propriedade de uma mesma palavra veicular signi é comunidade historicamente constituída, com base num terri- ficados relacionados que derivam uns dos outros. Por exemplo, numa língua e em ideias comuns. Relações como parte/todo, rus' pode designar um agente infeccioso (acepção primária, como e autor/obra são muito comumente encontra- em vírus da gripe) ou um software malicioso (acepção has</p><p>MORFOLOGIA Carlos Alexandre Gonçalves CAPÍTULO 86 3 2.18 Palavras finais capítulo, vimos como se estruturam as palavras complexas, No Neste reconhecendo os principais tipos e fenômenos morfológicos. duas capítulo, abordam-se as principais diferenças entre as Flexão e derivação próximo principais áreas da morfologia: flexão e derivação. Também discutin- são ana- lisados, com mais vagar, os mecanismos da flexão nominal, do-se a polêmica questão envolvendo as marcas de grau (aumentati- vo, diminutivo, intensivo): se são flexionais ou derivacionais. 3.1 Para início de conversa Quando criamos uma nova palavra e quando formalmente alteramos um mesmo item lexical? que nos leva a considerar 'cachorrada' 'cachorreiro' palavras distintas e 'cachorra' e 'cachorros', apenas modificações gramaticais de 'cachorro'? Que critérios podem ser uti- lizados para diferenciar uma palavra nova de uma mesma unidade variada em número ou em gênero? e 'cachor- devem constituir entradas de um dicionário? e são produtos de um mesmo processo morfológico ou re- de operações distintas? e outras questões norteiam a delimitação dos dois principais de operações morfológicas - flexão e derivação. Como vere- neste capítulo, as posições sobre essa dicotomia são polêmicas e desde as que defendem uma rígida separação até as que negam a de fronteiras intransponíveis entre elas. Em linhas gerais, é definida "como processo morfológico regular, aplicável em escala e sem qualquer possibilidade de mudança na categoriza- das bases" (Gonçalves, 2005: 6); é, conforme a etimologia 0 ato de fletir, ou seja, "dobrar-se", "curvar-se" à expressão como caso, gênero, modo e tempo. Como está a serviço gramaticais de uma língua, corresponde, em portu- às variações de gênero e número nos nomes e de tempo-modo- nos verbos.</p><p>MORFOLOGIA Carlos Alexandre Gonçalves 88 Numa direção bastante diferente, a derivação é quase sempre enten- podem estar associadas arbitrariedades formais e restrições de aplica- dida como "processo idiossincrático, caracterizado pelo potencial de bilidade, entre outras características tradicionalmente atribuídas à de- mudar classes e por grandes restrições de aplicabilidade" (Gonçalves, rivação" (Gonçalves, 2011: 6). Comecemos observando as característi- 2005: 7); é um mecanismo gerador, ou seja, cria formas independen- cas mais gerais dessas duas "morfologias". Ressaltamos, desde já, que o tes das que dela descendem e com ela guardam relação de significa- mapeamento das diferenças deve ser visto como tentativa de se reco- do. Tal é o caso, por exemplo, de construções com sufixos como -ento nhecerem os principais requisitos para que uma operação seja classi- ('sebento', 'gosmento') e -oso ('saboroso', ambos forma- ficada como flexional ou como derivacional, pois, como lembra Stump dores de adjetivos a partir de substantivos. (1998: 14), "a lógica clara dessa distinção pode ser difícil na prática". 3.2 Em busca de definições 3.3 Das diferenças entre flexão derivação Em linhas gerais, a flexão corresponde às diferentes formas de uma Um quadro-síntese com algumas diferenças entre flexão e derivação palavra. Por exemplo, 'andado', 'andavas', 'andando' e é apresentado a seguir são consideradas variações formais do verbo 'andar'. Nos dicioná- FLEXÃO rios, essas quatro formas de palavra não recebem entradas lexicais DERIVAÇÃO 1. Condicionada pela sintaxe separadas, sendo previsíveis a partir do verbete ANDAR. termo Obrigatória 1. Não condicionada pela sintaxe 2. Opcional 'andador', por outro lado, não é considerado mera alteração formal Altamente estruturada 3. Idiossincrática 4. Classe fechada de 'andar', mas palavra distinta, com significado diferente e, como 4. Classe aberta Numa língua, há menos elementos flexio- membro de outra categoria morfossintática (é um substantivo), cria nais que derivacionais 5. Numa língua, há mais elementos deriva- seu próprio paradigma. Tem, com isso, entrada lexical própria em Não muda a classe da base cionais que flexionais Produz formas da mesma palavra 6. Muitas vezes, muda a classe da base um dicionário. A palavra constitui produto da derivação, de 7. Cria novas unidades lexicais Seus significados se manifestam apenas sendo formada através da aplicação de um processo morfológico morfologicamente 8. Seus significados se manifestam de várias formas linguísticas Não muda o acento da base afixação: a adjunção do sufixo -dor ao tema do verbo. 10. Não expressa o ponto de vista do falante 9. Frequentemente muda o acento da base 10. Pode expressar o ponto de vista do falan- A distinção entre flexão e derivação é principalmente funcional: te acerca de algo/alguém fere-se a diferentes funções dos processos morfológicos a criação Quadro 7: Sumário das principais diferenças entre flexão e derivação. de diferentes formas de uma mesma palavra (flexão) contra a ção de diferentes palavras (derivação). Os meios formais para essas 0 quadro 7 sugere a existência de um corte rígido entre flexão e de- diferentes funções podem ser os mesmos, como é o caso do pois aponta para diferenças bem marcadas entre essas duas guês, língua em que tanto a flexão quanto a derivação fazem uso da Brandes áreas da morfologia. No entanto, nenhuma das caracterís- sufixação. Dessa maneira, prefixação, circunfixação e apontadas deixa de apresentar o que, no nosso en- por exemplo, por se valerem de mecanismos formais claramente tendimento, constitui evidência de a distinção em pauta ser menos diferenciados, afastam-se naturalmente da flexão, sendo mais discreta do que parece, havendo, por isso mesmo, várias situações mente acolhidas na rubrica formação de palavras (Booij, que as previsões acima deixam de se Ao longo deste capítulo, procuramos mostrar que as diferenças entre mais frequentemente usado para a demarcação da flexão, derivação são muitas vezes relativas, pois, à flexão com a derivação, é a relevância sintática, diferença 1 no</p><p>MORFOLOGIA Carlos Alexandre 90 quadro 7. Assim, a flexão é definida como a parte da morfologia re- singular admite plural correspondente, sendo os paradigmas extre- levante para a sintaxe (Anderson, 1982), uma vez que formas parti- Esse mamente coerentes e padronizados. Da mesma maneira, verbos são culares de palavras podem ser exigidas pelo contexto sintático. obrigatoriamente marcados para MTA, sendo natural e sistemática é o caso de configurações em que a concordância entre constituintes a organização de paradigmas nessa dimensão. Desse modo, tanto a é necessária. A regra de concordância sujeito-verbo em português marca de plural -S, quanto as formas variadas de MTA são flexionais indica que uma forma verbal específica é exigida pelo sujeito da ora- por esses critérios. ção: deve apresentar, portanto, as mesmas propriedades para as ca- Quando se fala na completude da flexão, muitas vezes se esquece da tegorias número e pessoa. Então, marcas morfológicas como -mos, defectividade (propriedade das categorias que não apresentam to- -m, por serem requeridas por um contexto sintático apropriado, das as formas do paradigma a que pertencem). Paradigmas defecti- são flexionais por esse critério, sendo o mesmo verdadeiro para as são caracterizados pela falta de uma ou mais formas, isto é, pela desinências de gênero e número, nos nomes, igualmente manipula- incompletude. Por exemplo, apesar de aplicáveis em larga escala, as das pela sintaxe de concordância: marcas de número-pessoa (NP) não são obrigatórias para todo e qual- quer verbo, deixando de se manifestar em muitas formas da língua, (89) Nós sempre encontramos como ele no parque. Renomada aluna brasileira de Linguística. em decorrência dos significados que veiculam. Certos verbos, como Justos preços americanos para carros. 'nublar' e 'chover', não admitem marcas variadas de nú- fato de se atrelar à concordância não implica que a flexão seja forma mero e pessoa porque falta compatibilidade entre o seu significado das desinências de NP. Um verbo como 'florescer', por nomear pre regida pela sintaxe. Em 'João viu o uso da de plural não é ditado pelo contexto sintático; trata-se de uma esco um fenômeno natural, que obviamente independe da presença de lha feita pelo usuário da língua para expressar determinada informa um agente, só é empregado na terceira pessoa do singular. No esque- ção (por exemplo, ele está comprando um imóvel e não se interessou ma a seguir, em (91), o futuro do pretérito ilustra o comportamento dos demais tempos; nessa representação, X sinaliza a ausência de por casas ou terrenos). o mesmo raciocínio é válido para a seleção de marcas como -va, -ria ou -re, de modo algum resultantes de uma variações formais questiona a aceitabilidade das formas, cujo em- imposição sintática. Como se vê nos dados a seguir, a escolha das prego é possível apenas em sentido figurado. Observe-se que apenas das seis células é preenchida: variações de modo-tempo-aspecto (MTA) depende dos propósitos comunicativos do emissor, pois não se relaciona à concordância: (91) 'entardecer' (Fut. do Pret.; Indicativo) (90) CompráVAmos sorvete para o jantar sorvete para o jantar p. sing. p. sing. p. pl. pl. p.pl. CompraREmos sorvete para o jantar X X X X entardeceria ?entardeceríamos ? entardeceriam Dois outros critérios muito utilizados para separar essas duas fologias são obrigatoriedade e perfeição dos paradigmas (diferenças defectividade ilustrada em (91) se justifica pelo mesmo fator que 2 e 3, no quadro 7), pois a flexão é vista como obrigatória e determina a incompletude dos paradigmas derivacionais: incom- zada, enquanto a derivação é entendida como opcional e semântica. Como tais verbos remetem a fenômenos da tica. Por exemplo, todo substantivo do português é marcado seu significado não é compatível com o de marcas mor- singular ou plural. Assim, a categoria número é obrigatória em que a presença de um agente, como é o caso língua e, por isso mesmo, estrutura conjuntos completos: todo Dessa maneira, desinências de NP apresentam restrições de 91</p><p>MORFOLOGIA Carlos Alexandre Gonçalves 92 aplicabilidade e, por isso, distanciam-se do que vem a ser estipulado A morfologia avaliativa de algumas línguas é um problema para os como flexional pelos critérios 2 e 3. dois critérios ora em Em português, sufixos avaliativos As diferenças 4 e 5dizem respeito ao fato de a flexão ser mais fechada sempre criam palavras da mesma categoria lexical de suas bases: que a derivação (4), apresentando um número menor de elementos (93) padre padreco livro livreco time timeco formais (5). Na prática, esses critérios não auxiliam muito no diag- gol golaço apto. apartamentaço sol solzaço nóstico de unidades morfológicas, uma vez que fazem referência a povo povinho gente gentinha mulher mulherzinha conjuntos, deixando de se aplicar a itens individuais. Se, por um lado, Nos dados em (93), os sufixos são categorialmente neutros, não pro- é verdadeira a alegação de que o inventário da flexão é mais restrito movendo qualquer alteração na especificação sintática de suas bases. que o da derivação, por outro, essa informação não nos ajuda, na prá- No entanto, não parecem casos emblemáticos de derivação, pois não tica, a deliberar sobre o estatuto de formas linguísticas específicas. criam palavras com significados nitidamente distintos dos de suas Um critério frequente de demarcação é a possível mudança na cate- respectivas entradas lexicais. De fato, a morfologia avaliativa consti- goria sintática das formas de entrada (ver 6, no quadro 7), uma vez tui um domínio bastante complexo, caracterizado pela intervenção que a flexão é sempre categorialmente neutra, não ostentando qual- da subjetividade do falante inscrita na estrutura das palavras; o que quer mudança de classe. Esse parâmetro reflete a ideia de que a fle- está em jogo nos dados em (93), bem mais que a criação de uma nova xão cria formas da mesma palavra (7), ao contrário da derivação. Ao palavra, é a intenção do falante de desqualificar 'timeco') determinar a categoria sintática das palavras, ela acaba gerando novo ou qualificar 'mulherão') as entidades referidas. item lexical. Por exemplo, o acréscimo de -douro, ao manifestar a ideia Essa questão está na base da diferença em 9, no quadro 7. genérica de locativo, forma substantivos a partir de verbos, criando, Inversamente, há alegados casos de flexão que estão longe de ser com isso, novos itens lexicais, cada um com seu paradigma próprio, neutros. Isso se aplica, por exemplo, às formas no- a exemplo de 'ancoradouro', 'matadouro' e da recente minais de verbos. Particípios, por exemplo, são interpretados como construção (objeto/local em que pets se alimentam). No variações formais de verbos. No entanto, apresentam propriedades extremo oposto, o -a de feminino não muda a classe de suas bases tanto verbais quanto nominais. Spencer (1993: 193) afirma: essas não leva a palavras novas, sendo flexional por ambos os critérios. formas "parecem envolver mudança de classe em relação ao verbo". grande problema do parâmetro mudança de classe é que a deriva Nas sentenças em (94), a seguir, extraídas de Gonçalves (2011:48 ção nem sempre se presta a isso; há processos morfológicos clara parece claro o fato de 'recompensado' funcionar como verbo e como mente analisáveis como derivacionais, mas não promovem qualquer Como verbo, é responsável pela formação da passiva. alteração categorial: Como adjetivo, está sujeito às modificações que caracterizam a clas- dos nomes: é perfeitamente possível variá-lo em gênero ('recom- (92) açougue açougueiro banana bananada Marx marxismo pensada') e em número ('recompensados'). Quando acrescentamos o sufixo -ismo ao substantivo 'Buda', por (94) Fulano foi recompensado pelo seu gesto de heroísmo. exemplo, derivamos uma palavra da mesma categoria: são Fulana foi recompensada substantivos. No entanto, esse é um caso claro de derivação, uma Fulanos foram recompensados que 'budismo' e 'Buda' são dois itens lexicais distintos; forma, slogan "morfologia que muda classe é derivacional" inclusive, a duas diferentes subcategorias de substantivos: consistente, pois, como mostra Bybee (1985: 'Buda' é um nome próprio, 'budismo' é um substantivo "operações que alteram a categoria sintática da base e po-</p><p>MORFOLOGIA Carlos Alexandre Gonçalves dem ser consideradas flexionais em muitas línguas", como é o caso do (95) encontrarei ~ encontrar particípio passado, caracterizado, nos termos de Vivas (2010), por encontraria iria encontrar fizera ~ tinha feito grande instabilidade categorial. Valem, aqui, as seguintes perguntas: havia chovido choveu (1) formas como 'cansado', 'afastado' e são verbos fle- xionados no particípio ou são, na verdade, adjetivos?; Em geral, sufixos derivacionais são tônicos e modificam o acento da (2) reformulando a questão, a marca de particípio é realmente fle- base, fazendo com que a regra do acento seja reaplicada, como em xional, já que pode mudar a categoria da base?; 'banana' >> 'bananada' >> Os flexionais, por serem (3) Essa alteração categorial cria nova palavra, ampliando o voca- não alteram a pauta acentual das bases a que se adjungem, bulário de uma língua? como em 'primos', 'prima'. Embora seja adequado e consi- Basilio (1987: 12) questiona o estatuto de particípios, ao assim se ga dar conta de muitas unidades morfológicas, o critério mudança de acento(diferença 10, quadro 7) também não se mostra 100% efi- pronunciar: "Devemos forma verbal de perder ou outra palavra?". Sandmann (1989: 31) observa que a questão é caz, uma vez que a derivação pode não mudar a tonicidade da base a flexão, por sua vez, imprimir deslocamento de acento. Os dados complicada mesmo para o técnico (lexicógrafo) e aponta algumas em (96) e (97) mostram, nessa ordem, derivações sem deslocamento contradições na listagem de particípios num dos mais importantes do acento e a flexões com mudança na posição das tônicas (sílabas dicionários de língua portuguesa: acentuadas são Aurélio traz, por exemplo, como verbetes distintos do verbo, folgado, (96) amar amável calor apaixonado, cansado, lido, e diz, imediatamente após o verbete, entre calórico cantar cantável velar velárico parênteses, que são particípios passados dos verbos folgar, apaixonar, cansar e ler e em seguida os classifica como adjetivos. Começado e (97) lúcifer lucíferes júnior juniores chateado, por exemplo, o Aurélio não traz como adjetivos, o que é Júpiter jupíteres seniores ticularmente intrigante no caso de chateado, sem dúvida muito mais usado como adjetivo do que como particípio passado. 0 mudança de acento também não se mostra adequado para tratamento da flexão verbal, já que, ao lado de formas rizotônicas Pelo que se comentou, é fácil concluir que os parâmetros mudança acentuadas na base), como 'canta' e 'lembro', há também as arri- de classe e formação de nova unidade não devem ser levados às úl (acentuadas nas flexões), como 'cantei' e 'lembrou'. Mais timas consequências porque podem ser falseados. Tentemos outros vez, estamos diante de um parâmetro nem sempre adequado critérios distintivos listados no quadro 7. a distinção que nos interessa. Todas as vezes que se alega serem os significados da flexão apenas esta seção afirmando que os critérios empíricos não expressos morfologicamente, em geral se esquecem todos os casos de modo coerente e preciso. Por isso mesmo, o mapeamento de perífrases: frases ou recursos linguísticos que exprimem que aspectos que diferenciam flexão de derivação deve ser encarado poderia ser dito por menor número de palavras. Em tentativa de diagnosticar afixos e não como um veredicto so- cas de MTA muitas vezes concorrem com locuções verbais, expres estatuto morfológico. Nenhum parâmetro de diferenciação sões semanticamente intercambiáveis, por expressarem de problemas. Além disso, há falta de uniformidade nos significado. Esse fato, por si só, já em xeque a eficácia da diferen pois os critérios empíricos nem sempre dividem as ça no item 8 do quadro 7, pois os significados da flexão nem morfológicas nos mesmos dois conjuntos: um parâmetro se manifestam apenas morfologicamente: levar a um agrupamento que não coincide necessariamente</p><p>MORFOLOGIA Carlos Alexandre Gonçalves 96 com aquele obtido a partir da inspeção a outro. Dito de outra manei- ra, uma mesma partícula pode ser considerada flexional por um cri- gorial. Tal é o caso dos inúmeros sufixos do português que não tério e derivacional por outro, sendo extremamente difícil encontrar, modificam a especificação sintática da base, como -eiro, -ista, -ada e -ário, entre tantos outros; na prática, marcas morfológicas "bem comportadas", em que todos (c) flexão e derivação igualmente se submetem ao fenômeno da os critérios levem à mesma categorização. lexicalização. Dito de outra maneira, irregularidades cas não constituem privilégio da derivação; a flexão pode ser 3.4 Proposta de continuum flexão-derivação igualmente idiossincrática, pois também apresenta desvios no significado, como 'perua', 'loba' e 'porca', que adquirem sen- Os aspectos que separam a flexão da derivação são passíveis de pro- tidos independentes do de "mulher extravagante", blemas e nem sempre coincidem nos agrupamentos. Dessa maneira, "quarentona" e "peça de metal de furo cilíndrico". entendemos que as diferenças listadas no quadro 7 sem dúvida algu- Para Bybee (1985), flexão e derivação não envolvem oposição dis- ma servem de guia ao reconhecimento dos principais atributos dessas creta, mas gradiente, sendo interpretadas como polos prototípicos duas morfologias, mas não estão isentas de contraexemplos (casos de um continuum como o idealizado a seguir. Nessa representação, excepcionais, situações destoantes do conjunto, formativos malcom- os extremos são modelos dos quais as unidades podem se afastar, em portados). Evidências encontradas em diferentes línguas sugerem que maior ou menor proporção, a depender da quantidade de atributos flexão e derivação apresentam tanto semelhanças quanto diferenças, que compartilham (a, b, d, g, etc.) com essas categorias de limites não havendo entre elas total identidade nem limites intransponíveis. Dessa maneira, existem exemplares mais representativos, Bochner (1992), Payne (1997) e vários morfólogos contemporâneos ou seja, mais prototípicos, ao lado de outros, que se dispõem nas fronteiras dessas duas operações morfológicas: (Bauer, 2005; Booij, 2006; Winter, 2011, entre tantos outros) defen- dem um continuum entre a morfologia flexional e a Quais (98) Flexão são as motivações para a proposta de um continuum flexão-derivação Derivação a nas línguas naturais? Quando surgiu essa ideia e por quem foi B fendida inicialmente? Há estudos sobre o português nessa linha 8 Y (...) u de investigação? (...) A proposição de um continuum flexão-derivação surge, pioneira A proposta de Bybee (1985) consiste na formulação de uma escala de mente, com Bybee (1985), obra em que a autora, a partir da análise prototipicidade e na identificação dos matizes caracterizadores dos de 50 línguas de diferentes grupos, relativiza as diferenças entre exemplares modelares desses dois tipos de operação morfológica. A sas duas áreas e acena para uma oposição gradiente entre elas. Para representação em (98) ilustra o fenômeno da gradiência. Para um tanto, pauta-se nas seguintes evidências: formativo ser representante modelar de uma das categorias, deve (a) flexão e derivação envolvem os mesmos tipos de operações portar todos seus atributos À medida que deixa de satis- formais. Nas línguas do mundo, processos como sufixação requisitos, distancia-se do ideal prototípico, localizando-se mutação segmental e reduplicação podem ser utilizados posições mais ao centro da escala, por apresentar menor grau de para fins flexionais quanto derivacionais; pertencimento às classes. (b) a derivação pode não requerer mudança de classe e, com dessa proposta ao português foi feita primeiramente em ser bastante semelhante à flexão, processo sem alteração (2001) e posteriormente testada por Piza (2002), na</p><p>MORFOLOGIA Carlos Alexandre lise das marcas de gênero, número e grau. Foi implementada no livro nais não seriam obrigatórios. As unidades da derivação podem ser Flexão e derivação em português (Gonçalves, 2005) e refinada em Ini- substituídas por alguma classe especial de formas simples, sem pro- ciação aos estudos morfológicos (Gonçalves, 2011). Damos, a seguir, duzir mudança na construção. Diferentemente, as unidades da flexão uma pequena amostra desse tipo de análise na descrição dos afixos têm uso compulsório, isto é, previsível a partir da sintaxe. de grau: aumentativos, superlativos e diminutivos. Como ressaltado por Mattoso Camara Jr. (1970) e reiterado por auto- res como Monteiro (1987) e Rocha (1998), é facultativa a utilização dos afixos gradativos, não havendo, portanto, obrigatoriedade em 3.5 A polêmica envolvendo grau seu emprego: nenhum contexto sintático leva ao acréscimo desse De todas as variações formais dos nomes, sem dúvida alguma as de tipo de marca morfológica, não havendo, além disso, concordância grau (aumentativo, diminutivo e intensidade) são as mais controver- no âmbito do sintagma nominal. Os exemplos a seguir evidenciam sas na literatura sobre o português: as abordagens não se mostram não haver concordância de grau, muito embora haja em gênero e coerentes tanto na sua categorização como processo morfológico número, não sendo, portanto, linguisticamente legítima a expressão quanto na determinação dos significados que veiculam. Vista como popular "concordo com você em gênero, número e grau": recurso usado para efeitos de focalização ou ênfase, a gradação (100) (a) cachorra bonitinha (b) cachorrinha bonita uma categoria semântica que se presta à indicação de atitudes (c) cachorrinha bonitinha (d) cachorra bonitona tivas do falante em relação ao enunciado ou a alguma de suas partes" (e) cachorrona bonita (f) cachorrona bonitona (g) cachorrinha bonitona (Gonçalves, 2007, 149). Por esse motivo, está diretamente vinculada (h) cachorrona bonitinha à perspectiva do emissor que, "ao intensificar ou dimensionar, orien Pela máxima estabelecida em (99), a expressão de grau constitui ta seu interlocutor para juízos de valor a respeito de algo ou processo derivacional em português porque não envolve mecanismo conferindo ao item morfologicamente complexo relevância Além disso, não há no interior que o torna marcado" (Gonçalves, 2007, 149) Apliquemos a idela do sintagma nominal quanto às noções de grandeza ou pequenez: se de continuum às marcas de grau, observando oito parâmetros é apenas estilística, como em (100c) e (100f). renciais que nos servirão de medidas de avaliação. Comecemos com a relevância sintática. Meios de materialização aspecto que diferencia a flexão da derivação é expresso na má- 3.5.1 Relevância sintática em (101) e também conspira em favor da categorização deri- Como vimos, o critério mais usado para diferenciar a flexão da National dos afixos gradativos. Recorrendo à noção de univocidade, vação é a relevância sintática, expressa a partir da seguinte a qual há relação de um para um entre forma e conteúdo, é chegar à seguinte (99) "A flexão é requerida pela sintaxe da sentença, isto é, um contexto tático apropriado leva à expressão das categorias flexionais, o que (101) "Uma categoria é flexional se a morfologia é o único meio de materiali- acontece com a derivação, isenta do requisito obrigatoriedade zar seu Ao contrário, quando há concorrência de estratégias, o (Gonçalves, 2005: 12). processo deve ser visto como derivacional" (Gonçalves, 2005: 24-25). Em (99), está implícita a ideia de que categorias flexionais em (101), denominado meios de materialização, tam- certas escolhas por parte dos falantes e, por afixos referência à noção de obrigatoriedade, dialogando direta-</p><p>MORFOLOGIA Carlos Alexandre Gonçalves 100 mente com o expresso em (99). No entanto, essa obrigatoriedade (104) esposo esposa - esposos esposas não é sintática, pois não se faz referência a um fenômeno, como a concordância, que motive o uso de marcas morfológicas específicas. (105) esposar -esposou - esposava esposássemos esposarás Por (101), a flexão seria uma espécie de "morfologia aprisionadora" sando esposes esposem esposarão esposei esposamos espo- esposasses esposaríamos esposardes esposara esposemos (...) (Gonçalves, 2001), uma vez que funciona como veículo único na ex- teriorização de determinados conteúdos. A derivação, ao contrário, Na flexão, observa-se paralelismo rígido entre as formas do paradig- por veicular um significado que pode ser parafraseado por outra for- ma, havendo, em consequência, poucos casos excepcionais ou ma de expressão que não a morfológica, pode ser vista como "morfo- A derivação forma paradigmas não necessariamente coesos logia libertária" (Gonçalves, 2001). porque tende a apresentar restrições de aplicabilidade, ou seja, pode Pelo critério em (101), os sufixos de grau são unidades da derivação, ser marcada pela Para Mattoso Camara Jr. 71), palavras derivadas "não obedecem a uma pauta sistemática e obriga- pois o conteúdo veiculado pode se manifestar morfológica ou sintati- tória para toda uma classe homogênea do Em outros termos, camente, o que corresponde, respectivamente, ao que as gramáticas uma derivação pode aparecer para um dado vocábulo e faltar para normativas chamam de grau sintético e analítico: um vocábulo congênere", não constituindo "quadro regular, coerente (102) Aumentativo: copão copo imenso senhor copo grande copo e preciso". Nos paradigmas derivacionais, encontram-se numerosas Diminutivo: tigelinha pequena tigela tigela de proporção diminuta lacunas (falhas), o que não acontece nos flexionais, que tendem a ser Intensivo: estudiosíssimo muito estudioso estudioso pacas mais padronizados: são conjuntos completos ou fechados, com pe- queno contingente de casos excepcionais. 3.5.3 Aplicabilidade Como bem observaram Gonçalves (2001) e Piza (2002), é possível Até então, os dois critérios levam a uma mesma categorização: a acrescentar afixos de grau a praticamente todos os nomes da língua: gradação morfológica não pode ser considerada flexão, pois não Não tão usuais em português que, além de estruturarem paradigmas é obrigatória nem sintática nem morfologicamente. Se compa- células vazias, extrapolam os limites categoriais da base, ane- rarmos a aplicabilidade das duas morfologias, chega-se a um Nando-se a numerais, pronomes, advérbios e até mesmo a interjei- como se exemplifica em cada coluna de (106) a seguir: sultado diferente. (106) cinquentão (103) A flexão é mais produtiva que a derivação, no sentido de que estrutura aquelazinha cedão dezinho até loguinho! paradigmas mais regulares e sistemáticos (Gonçalves, 2005: 31). euzinho cedinho oizinho! primeiríssimo cedíssimo Por (103), espera-se que os paradigmas da flexão tenham tamento bastante diferenciado em relação aos da derivação. Vistos A aplicabilidade dessas marcas morfológicas está associada aos va- como grupamentos de palavras com radical em comum, afetivos e, por isso mesmo, as lacunas praticamente não exis- mas apresentam estruturação interna e, por isso, estabelecem um Com a gradação diminutiva, ocorre o que Basílio (1990: 5-6) conjunto de relações possíveis entre formas de determinada classe exemplo, previu a respeito da generalidade de um processo mor- morfossintática. Por exemplo, nomes referentes a seres animados "a restrição categorial das bases não é obedecida no caso de geralmente apresentam quatro formas: masculino singular, mais gerais e de ausente ou mais geral". Tal fato con- nino singular, masculino plural e feminino plural. Verbos regulare de Mattoso Camara Jr. segundo a qual "não podem formar paradigmas que abrigam mais de quarenta diminutivo correspondente para todos os substantivos portugue- pesquisas sobre o diminutivo mostram exatamente o contrá-</p>

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